Uma História de Arrepiar - Pedro Bandeira
Uma História de Arrepiar - Pedro Bandeira
Uma História de Arrepiar - Pedro Bandeira
Pedro Bandeira
H muitos anos sou um apaixonado pela pea de teatro Otelo, que o ingls William
Shakespeare escreveu h mais de quatrocentos anos. E adoro tambm Dom Casmurro,
que o brasileiro Machado de Assis publicou h cem anos, inspirando-se na trama de Otelo.
E de que tratam Otelo e Dom Casmurro? Tratam do cime. Do cime! Por isso, usando de
novo a mesma trama de Shakespeare e at mesmo incluindo trechos de Otelo e de Dom
Casmurro, retomei o tema do cime, desta vez fazendo-o corroer a alma de uma jovem
estudante brasileira.
No final do livro, identificados por nmeros, voc encontrar os tais trechos de
Otelo e de Dom Casmurro que foram adaptados linguagem de hoje e espalhados ao longo
do texto.
Depois, que tal aproveitar a ocasio para ler os prprios Otelo e Dom Casmurro?
Hein?
Aquele abrao e... divirta-se!
Pedro Bandeira
Sumrio
1. Por que voc no me quis?
2. As ondas do verde mar
3. Entorpecida pela dor
4. Fazendo sangrar a mistura
5. Do jeito que ele
6. Eu sempre estarei por perto
7. Animal de duas costas
8. Uma pessoa muito srdida
9. Aumentando a dose de veneno
namorado?"
Iara e Adele subiam as arquibancadas agora como simples torcedoras. Em
instantes, comearia a segunda partida: os garotos do Queiroz Telles jogariam contra o time
masculino do Colgio Santo Ambrsio, simplesmente o campeo juvenil do ano anterior.
Que mulata, hein? comentou uma voz masculina.
E a outra gostosinha, ento? Eu queria essas duas na minha escola...
E eu queria qualquer das duas em qualquer lugar, cara!
A torcida batucava, cantava e assobiava, animada, apesar da derrota do time
feminino da casa para as "seis baixinhas". Essa provocao tinha partido da gigante Vanda,
meio de rede do colgio anfitrio, junto com uma risada sarcstica, logo que o Anhangera
tinha fechado o primeiro set, enfiando quinze a doze em cima das meninas do Queiroz
Telles.
Pela cabea de Iara passava a recapitulao da virada...
Iara e suas companheiras haviam voltado com outra motivao para o segundo
set.
Aos poucos, ponto a ponto, as gozaes da Vanda foram sendo caladas. O saque
das meninas do Queiroz comeou a entrar e aquele set terminou com uma cortada de Iara
e um erro da prpria Vanda. Pronto: um a um.
Logo no incio do terceiro set, Cssia, a capit do Queiroz, marcou um ace num
saque "viagem ao fundo do mar". Iara, Sandra e Neusinha conseguiam amortecer a maioria
das cortadas das jogadoras do Anhangera nos bloqueios, e os passes de Cssia ou de
Marisa para as mos de Adele melhoravam a cada virada de rede.
Elegante como uma fada, Adele distribua o jogo como se tivesse cintura de
borracha, servindo ora Neusinha, ora Sandra, mas principalmente Iara, que sabia se
colocar sempre livre do alto bloqueio adversrio. As duas jogavam como se tivessem
crebros interligados, como se cada uma soubesse onde estava a outra, sem necessidade
de se olharem.
Cada vez que o saque estava com as adversrias, os dedos de Adele anunciavam
atrs das costas a prxima jogada a ser executada, e a variao de jogo enlouquecia as
garotas do Anhangera.
Final do terceiro set e dois a um para o Queiroz. No quarto set, oito a oito, e jogo
duro.
Dona Maria Helena, a treinadora do Queiroz, pediu tempo, reuniu suas jogadoras e
comandou:
Ns todas fomos demais, Iara! No final do set, voc matou o bloqueio delas com
aquela cortada!
"Por que voc me roubou o Desmond, Adele?"
E o saque "viagem" da Cssia, ento? Ah, nunca vou esquecer daquele ace e
da cara da Vanda, esborrachada na quadra!
Ah, ah! Quero ver aquela danada chamar a gente de "baixinhas" agora!
"Ou de negrinha suja, no , sua negrinha suja?" Pediam licena e tentavam
encontrar espao na arquibancada. Os dois times logo entrariam em quadra para a
semifinal masculina.
Temos de vencer, Iara! Temos de vencer no masculino tambm. O time do
Santo Ambrsio danado de bom, mas os nossos meninos vo arrasar. Vamos voltar para
o Queiroz com duas vitrias, voc vai ver!
So trezentos quilmetros de estrada, Adele. E vai ter prova de Geometria
amanh de manh... comentou Iara, lembrando a longa distncia que o nibus fretado
pela escola teria de percorrer noite, de volta a So Paulo.
"Voltar no nibus sem Desmond ao lado... Ai, vendo Desmond com voc durante
toda a viagem! Eu no vou agentar... no vou agentar... Outra vez no, outra vez no!"
Passaram por um homem de terno que carinhosamente acenou para Adele:
Grande atuao, menina. Meus parabns.
Obrigada...
Acabaram conseguindo dois lugares para sentar e Iara segredou:
Sabe quem esse engravatado que te cumprimentou, Adele?
Sei l, Iara. S achei estranho algum vir de terno e gravata num domingo para
assistir a uma partida de vlei...
o diretor do Anhangera, menina. O prprio!
Mas que bom! sorriu Adele, brincando com sua primeira conquista esportiva,
a medalha dourada em forma de bola de vlei que a menina nunca tirava do pescoo.
Por sorte, o pessoal de Ribeiro Preto civilizado, Iara. Como torcida, s
tivemos os doze garotos do nosso time mais o professor Joo Massa. E eles agora s vo
ter ns doze e a dona Maria Helena...
Se o problema for torcida, Adele, pode deixar que eu vou gritar como se fosse
uma multido!
Nesse caso vo ser duas multides, Iara, porque eu vou torcer at ficar rouca!
Naquele momento, os dois times entravam em quadra. Aplausos, assobios e
Bem que
vindo ao ginsio mais para aspirar testosteronas do que para vibrar com o vlei.
podia ter um gato desses na nossa escola...
Aquele? De faixa no cabelo? Me disseram que o nome dele Emlio...
Os titulares e reservas do Queiroz Telles saudavam o pblico e procuravam
reconhecer no meio da multido as colegas do time feminino.
"L esto os olhos verdes DELE...", suspirava Iara por dentro. "Na certa
procurando por Adele..."
relao quele beijo que unia um rapaz louro a uma menina negra. Nem olhou de lado. Em
sua alma, aquele beijo doa como uma bofetada:
"Ladrona! Esse beijo era meu, Adele. Voc rouba os meus beijos... Mas isso vai ter
um fim, ah, vai acabar! Eu vou dar um jeito... tenho de dar um jeito..."
Um rapaz que havia invadido a quadra para participar da comemorao
reconheceu-a:
Voc aquela cortadora sensacional do Queiroz, no ? Parabns, garota!
"Desmond... Ai, Desmond!", lamentava a alma sombria de Iara, escondida pelo
sorriso que agradecia o cumprimento. "Por que voc no me quis? Voc disse 'fim' como
final de cinema, mas o mocinho e a mocinha no se beijaram no final... Agora seus beijos
so s da Adele, no so?"
Iara nem tinha pensado a srio em disputar a aposta mas sua vida inteira mudou
ao ver Desmond entrar na casa da Roberta. Andar de atleta, sorriso fcil, iluminado, olhar
de... olhar assim como o de uma onda, que chega ruidosa praia e parte, sugando tudo,
carregando tudo o que conquista na areia. Para no ser arrastada, Iara tentou desviar-se,
fixar-se no resto, nos braos fortes, nos cabelos louros, longos, espalhando-se pelos
ombros... mas logo voltava aos olhos e a onda que saa deles crescia, espumando,
ameaando envolv-la, puxa-la, trag-la para o alto-mar...
Desejou toma-lo, como um brbaro viking que invadisse a Inglaterra, roubando
favores sexuais sob a ameaa de um machado recurvo. Mas a vontade foi s uma idia,
uma idia sem lngua, que permaneceu calada na garganta.
Desmond estendeu a mo, cumprimentou... Nessa hora o que ocorreu menina
foi uma idia com mos, ela quis agarrar a mo do garoto, no apert-la apenas, quis
roub-lo pela mo, comear pela mo e tomar o resto. Ele continuava a espalhar charme
por todo o salo, ria-se para Roberta, cumprimentava mais uma garota... Iara quis
persegui-lo, envolv-lo pela cintura, impedi-lo de dividir-se com outras... Mas agora o que
vinha era uma idia sem pernas, idia s, as pernas de verdade pesavam como chumbo e
ancoravam a menina ao cho.
De repente, o inesperado: aquele garoto bonito jogava seu verde olhar justamente
em cima de Iara, sem que a menina sequer tivesse tido tempo de preparar charminhos
especiais para tentar a conquista. Ele voltava, algo incrvel acontecia, ele se chegava a ela,
tomava-a pela mo...
"Ai..."
Logo estavam no jardim, a msica alta vinha da sala, da aglomerao das colegas
que perderiam a aposta, ele falava sobre vlei, elogiava o jogo da menina, dizia que sua
cortada era demais... Ela derretia, sentia mpetos de peg-lo, pux-lo e beij-lo...
Idia s. Idia sem braos, os dela continuaram cados e mortos.
"Doze de maio... Nunca vou me esquecer daquela noite, daquele doze de maio..."
A idia do mais cobiado garoto do segundo ano por sorte era semelhante, e a dele
tinha braos, braos fortes, que como um milagre envolviam Iara, fazendo-a flutuar no
escurinho do jardim da casa da Roberta, ao som de um conjunto que berrava, na certa
implorando para no estar ali e flutuar junto com Iara a bordo daquela nuvem de felicidade
que pairava acima de tudo e de todos.
Ele cheirava bem, oh, como ele cheirava bem...
Ficar com garotos todas as suas amigas ficavam desde os onze ou doze anos,
mas aquele momento aquecia a menina como se fosse o primeiro. Desmond no veio
sedento e apressado como os moleques inexperientes com quem Iara j tinha ficado.
Era delicado, como se estivesse mais preocupado em faz-la sentir-se feliz do que
em satisfazer-se.
Os lbios de Desmond! Ah, os lbios de Desmond pareciam conhec-la como se o
garoto tivesse passado a vida a beij-la. Sua lngua tocava-lhe a sensibilidade do cantinho
da boca, esfregando de leve, acariciando com doura, antes do beijo trrido, tropical...
Beijou-lhe o pescoo, aspirando-a, como se quisesse respir-la. E suas mos! As mos de
Desmond eram as de um colhedor de pssegos que no quer machucar a fruta,
enlouquecendo Iara...
No! Aquele no poderia ser somente um encontro inconseqente, uma chama
que havia sido levantada, alimentada com furor, mas cujo destino seria apenas as cinzas
mornas de um dia seguinte. Iara queria mais, queria tudo, queria a eternidade e, na manh
seguinte, tratou de pedir o infinito a Desmond.
Ns, Iara? Puxa, eu no pensei que... Desmond no tinha aceitado iniciar um
namoro de m vontade. Isso no. Iara estava certa disso. Ao contrrio, ele parecia fazer
tudo para que as coisas corressem bem. Por seu lado, a garota tentou ser a namorada mais
carinhosa, mais presente, mais apaixonada, mais dedicada, mas o que havia comeado to
gostoso no se desenvolvia em cima da mesma nuvem que acolchoara o encontro nos
jardins da Roberta. Tinham voltado a pisar o cho de verdade e o rapaz comeou a
demonstrar-se incomodado com a insistncia com que Iara ligava para sua casa, nos raros
momentos em que a menina no impunha sua presena fsica a Desmond.
Oi... O que foi, Iara? A gente acabou de se ver... Por que eu demorei para
atender? Ora, estava no banho e...
Estar juntos, juntinhos, agarrados, tambm no parecia uma soluo:
Puxa, Iara! Mas que cime esse? Eu no estava olhando pra garota nenhuma.
Eu s...
Logo em seguida, em mais um telefonema, a voz de Desmond alterava-se:
Por que meu telefone estava ocupado? Ora, Iara, era minha me e uma amiga
que... Como? Ora, claro que eu no estava falando com garota nenhuma!
Juntos, ela implicava com tudo:
Foi uma tia da Inglaterra que me mandou esse bluso, Iara. No foi nenhuma
"namoradinha inglesa", ora essa!
Em pouco tempo, com jeito, sem qualquer agressividade, Desmond pediu a ela
que parassem com o namoro antes que acabassem brigando feito marido e mulher.
No agento esse seu cime, Iara. Vamos manter nossa amizade, t?
"Amizade?! Amizade s? Ah, no! Isso eu no vou aceitar! E cime?! Que
besteira...
Ciumenta, eu? E aquelas galinhosas que ficam arrastando as penas pra ele o
tempo todo? Ele pensa que eu sou besta? Eu tenho de..."
Mas no havia nada que ela pudesse fazer para recuperar o namorado.
Sem Desmond, as frias de final de ano passaram como tortura.
E a tinha surgido a nova aluna do Queiroz...
No incio das aulas, Adele veio para o segundo colegial, a classe de Iara. Era
falante, sorridente, amiga, sem timidez alguma.
Adele tinha sido campe infantil e jogava vlei desde criana. Nos primeiros testes
em quadra, a treinadora do time feminino do Carlos Queiroz Telles descobriu que nunca
tinha tido uma levantadora como ela. Mezona como era, dona Maria Helena conversou
com a Roberta at cansar e a menina no teve outro jeito seno aceitar a reserva.
O posto de capita costuma ser da levantadora. Voc ser tambm a nova capita,
Adele.
Adele protestou, com veemncia:
Oh, dona Maria Helena! Isso no. Ser que a menina mais antiga do time no
mereceria esse posto mais do que eu, que estou chegando agora?
Est bem, ento concordou a treinadora. A capita da equipe passa a ser a
Cssia, mas a coordenao ttica em quadra fica com a Adele.
No vestirio, depois do treino que se seguira quelas modificaes no time titular,
Marisa e Iara tinham ficado para o fim da fila do chuveiro e conversavam, ainda
ensaboadas:
Puxa, Iara! Essa Adele boa mesmo, no? Voc viu onde ela foi buscar aquele
passe que eu dei, toda torta, depois de aparar a pancada da Lorena? Nunca vi tanta
agilidade! A danadinha jogou-se na quadra e ainda colocou a bola no ponto certo pra voc!
E eu: pimba! Ponto pra ns! Coitada da Roberta... Essa nova levantadora
mesmo melhor que ela...
E o que voc acha da Cssia como nova capita? Ser que ela vai dar conta do
recado, quando a gente tiver de enfrentar meninas duronas como aquelas do Visconde de
Sepetiba?
Ora, no vai ter problema, Marisa...
Me passa a toalha?
Anda logo, que a aula de Qumica j vai comear. Enxugando-se, Marisa
continuava a comentar as mudanas no time:
A Cssia sempre foi a mais estudiosa da nossa classe, desde o primeiro grau. A
"certinha", sempre fazendo tudo do jeito que os professores queriam.
Do jeito que qualquer adulto queria, Marisa.
Cssia puxa-saco! Mas boa gente, Iara.
Claro que . A Cssia tima.
Bom, ela nunca foi lder de coisa nenhuma e acho que nem sabe enfrentar
jogadoras histricas em quadra como a Roberta, mas...
Mas vai dar tudo certo, Marisa. A gente vai dar a maior fora pra ela. Vamos l,
seno a gente chega atrasada.
Logo no dia seguinte, antes do bate-bola costumeiro do intervalo, Iara guardou o
aparelho dentrio no bolso do bluso e enganchou o agasalho na tela do alambrado, como
sempre fazia. Quando o sino tocou, cad o aparelho?
Ai, algum derrubou o bluso! meu aparelho!
Vamos logo, Iara chamou Adele.. Agora a prova de Histria.
No vou! a menina quase gritava, comeando a desesperar-se. Enquanto
eu no achar o meu aparelho, eu no vou! Meu pai vive reclamando do preo do dentista e
dizendo que no v a hora de acabar esse tratamento. Se eu aparecer em casa sem o
aparelho, meu pai vai me matar!
Voc perdeu o aparelho? Fica calma que a gente acha.
E as duas puseram-se de quatro, esquadrinhando cada centmetro da quadra
procura do aparelho dentrio de Iara. O recreio esvaziou-se.
O que isso, Iara? No chore...
Voc no conhece o meu pai, Adele... No vejo a hora de poder sair de casa,
pra sempre! Voc acredita que ele ainda bate em mim? Parece um louco, quando perde a
cabea. E perde a cabea por qualquer coisinha...
Iara soluava, como criana, e Adele abraou-a ternamente:
Calma, a gente vai encontrar esse aparelho. Eu no saio daqui enquanto a
gente no descobrir onde ele est.
Os minutos correram e a prova de Histria j estava perdida. Ansiosa com a
situao, Iara no pensou que Adele estava aceitando receber o mesmo zero que ela
receberia. Essa conscincia s lhe ocorreu quando ouviu o grito triunfante de Adele, que
professor de Geografia.
Os segundos e terceiros anos partiram da escola, bem cedinho, em dois nibus
separados.
Juntas, sentadas lado a lado, Adele e Iara vieram papeando e trocando
confidncias o tempo todo, inseparveis como sempre.
Muito bem, gente comandava o professor, depois de quase trs horas de
passeios e explanaes por todo o ambiente do pico mais alto de So Paulo.
Agora
temos uma pausa para o almoo. Vamos descansar por uma hora. Quem quiser pode
passear por a. Os bosques so belssimos, porque ainda temos uma boa reserva de Mata
Atlntica aqui no alto. Cuidado com as escarpas, hein? Hein? Cobras? No se preocupem.
As cobras so mais covardes do que vocs...
Os alunos haviam trazido seus lanches e espalharam-se, cobrindo com sua alegria
o topo do pico do Jaragu. Iara correu at o nibus, para buscar o sanduche que trouxera.
Quando voltou, quase no havia nenhum colega vista.
"Cad a Adele?", pensou ela, procurando companhia.
Desembrulhou o sanduche e meteu-se por entre as rvores, fugindo do sol forte. A
mata era fresca e acolhedora. Pssaros de todos os tipos ali se refugiavam da poluio da
cidade, enchendo o bosque de msica. Um esquilo aproximou-se da menina, de p nas
patinhas traseiras, acostumado a receber sobras dos lanches dos excursionistas.
Iara ia sentar-se numa raz alta, quando ouviu uma conversa sussurrada, pouco
mais adiante. Avanou alguns passos na direo das vozes e estacou, surpresa: num leito
de folhas amarelas, Desmond estirava-se, com o corpo de Adele quase sobre o dele.
"Desmond! E Adele!"
Dali vinham os sussurros, dali emanava uma onda de carinho, dali comeava a
mover-se a avalanche do desespero de Iara. Aturdida, a menina mal ouvia o que era dito
entre os dois, mas, vendo, foi como se ouvisse tudo. E tudo presenciou:Adele acariciava
lentamente os longos cabelos de Desmond, tirando-lhe pedacinhos de folhas que haviam
se enredado durante a caminhada atravs da mata. Desmond parecia repousar, olhos
semicerrados, recebendo a carcia da brisa que afastava o calor e relaxando com a ternura
das mos de Adele.
Iara sentiu como se algum a estivesse estrangulando. E foi contendo a respirao
que ela continuou a testemunhar a cena.
Adele trabalhava os cabelos do garoto devagar, devagarinho, saboreando pelo
tato aqueles fios grossos, que eram parte dele. Parecia no querer encontrar todos os
pedacinhos de folhas, para prolongar o trabalho. Os dedos roavam por seu rosto,
enfiavam-se atrs da nuca, tocavam os ombros... Adele parecia desejosa de que aquela
tarefa durasse por todos os sculos dos sculos, desejosa de continuar dedilhando aqueles
cabelos ao infinito, por um nmero inominvel de vezes...
Desmond erguia-se, apoiando-se num cotovelo. Os olhos encontravam-se,
contando o que os dois leves sorrisos proclamavam com clareza.
Logo estavam sentados sobre as pernas, com as calas de brim enfeitadas pelas
folhas amareladas. Adele baixava a cabea, brincando com o leito de folhas, que escondia
a terra. Ele baixou tambm a cabea, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os
dela... Desmond fitava-a com uns olhos ternos e a posio os fazia splices...
"Um beijo! um beijo que ele est suplicando!" Rindo, provocadora, Adele
punha-se de p. Desmond erguia-se junto com ela e passava os braos em volta de sua
cintura. Puxava-a para si. Faceira, Adele fazia-se de difcil, recuando o busto.
Com a insistncia do rapaz, o busto afinal cedeu, mas a cabea no queria ceder
tambm e, cada para trs, inutilizava os esforos da boca de Desmond, que procurava
avidamente a sua. De repente, atirando-se para a frente, enlaando seu pescoo, Adele
colou-se gulosamente aos lbios de Desmond, entregando completa e apaixonadamente o
que fingia recusar ainda havia pouco. Foi um beijo frentico, imenso, avassalador...
A paisagem sombreada comeou a girar, como se uma ventania destruidora
prenunciasse uma tempestade, e os elementos enfurecidos invadiram o interior de Iara,
explodindo sua alma em troves. Cambaleando, a menina afastou-se,
aos poucos
furiosamente no sanduche.
Na hora de embarcar no nibus que levaria os jogadores do Queiroz de volta a So
Paulo, Iara escolheu a poltrona logo atrs de onde j estavam Desmond e Adele e ali
sentou-se sozinha.
Apesar do cansao, a sada do nibus comeou com balbrdia, cantoria, batucada
e alegria pelas duas vitrias. Eles saam como vencedores e tinham o que comemorar.
Bola pr alto, bola no cho! O Queiroz campeo!
E a, Taka? brincava Caca, sabendo que o colega havia recebido um convite
para treinar num clube profissional.
japons?
O vlei tambm engenharia, Caca... E eu no sou japons. Sou mais
brasileiro que voc, sabia?
Risadas, risadas, risadas...
Essa a gente j papou! O Anhangera j era!
Vai virar Anhanguera Ah, ah!
Ainda no acabou, pessoal informou Joo Massa. Acabei de saber que o
Cultura Mndi tambm se classificou hoje. No masculino e no feminino, como a gente. A
guerra final vai ser contra eles!
Quer dizer ento que a grande final vai ser em Santos? Boa! Vamos pegar uma
praia, pessoal!
O Cultura Mndi? Puxa, eles no so de brincadeira...
Olha o Milto! J ferrou no sono, o bebezinho!
Ei, Leo. V se o Milto dorme chupando o dedo! Ah, ah!
Deixem o menino em paz, pessoal! vinha l da frente a voz de dona Maria
Helena. Que tal todo mundo tentar dormir? A viagem vai ser longa e ningum tem
dispensa das aulas amanh...
Aos poucos, a excitao foi diminuindo e o balano do nibus comeou a embalar
os jovens exaustos.
No escuro, algum se aproximava para invadir a idia fixa de Iara. Era Emlio e
sentava-se a seu lado.
Oi, fofinha. Que tal os dois atacantes que mais marcaram pontos hoje passarem
juntos as prximas horas?
Iara via a brancura dos dentes de Emlio brilhando intermitentemente na medida da
passagem dos postes de iluminao da cidade que o nibus comeava a deixar para trs.
Ah, Emlio... Estou cansada...
Ento que tal a gente descansar juntos?
Voc no est com jeito de querer descanso, Emlio... O rapaz pegou a mo de
Iara e falou, srio:
Eu gosto de voc, fofinha. Voc sabe quanto eu gosto de voc...
Iara encarou o rapaz, com um tipo diferente de seriedade. Uma expresso quase
de repulsa:
O que voc est precisando de algum que levante alguma coisa a de voc.
Esse no o meu jogo. Eu s sei cortar. A Adele est ocupada, mas por que voc
no vai procurar a Roberta? Ela a levantadora reserva...
Emlio suspirou profundamente:
Iara, Iara... Por que esse cinismo? O que eu fiz pra voc?
Voc no fez nada, Emlio, nem vai fazer. Olha, desculpe, mas eu estou
cansada mesmo. No estou a fim de ficar com ningum.
O rapaz fez uma pausa mnima, desviando os olhos de Iara, e continuou:
Sabe, fofinha? Voc me fez lembrar um conto que uma professora de Portugus
mandou a gente ler na stima srie. Chama-se "Serespaperconfi". Voc j leu?
Iara nada disse.
nada. Sem o lugar de levantadora titular e sem o posto de capita. A alma da garota agora
era um campo frtil para Iara semear urtigas:
"A Roberta! "Eu queria que essa negra quebrasse a perna!", no foi isso que voc
resmungou, Roberta? No voc que anda com cara de trouxa invejando as vitrias de
Adele, enquanto voc fica esquentando o banco de reservas? Ah, ah, ento voc est
prontinha pra me ajudar a esmagar esse rosbife! isso! Vou destruir essa paixo babaca
dos dois. Ah, e o Desmond vai voltar pra mim, vai descobrir que aqui, do meu lado, que ele
tem de se amarrar! Ai, Desmond..."
Os rudos do namoro apaixonado que se desenrolava sua frente alimentavam
ainda mais sua dor e faziam crescer o dio:
"Vingana! Ah, como um veneno, essa idia me corri as entranhas. por isso que
nada, nada, acalmar minha alma, at o dia em que eu conseguir dar o troco: traio por
traio. Vou transformar esse amor em dio e a ponte que leva o amor ao dio o cime!
Tenho de despertar dentro da alma de Adele o cncer do cime, at que ela perca a razo.
Se ela engolir a isca, essa Cssia estar na minha mo, para o uso que eu quiser. a, a
que eu farei a minha cama, muito bem feitinha, at que Desmond volte a deitar-se nela!"
Procurava fechar-se dentro de si mesma e no ouvir os rudos de amor das
poltronas sua frente.
"Enquanto isso, preciso fazer com que Adele goste ainda mais de mim e me
agradea... Ah, ah! Ela vai me agradecer exatamente porque eu vou fazer com que ela
represente o papel de uma perfeita, de uma grandissssima burra. Depois, s roubar a
certeza que ela tem do amor de Desmond e lev-la loucura!
Todo o plano j est na minha cabea. Ai, tudo to confuso... Mas o que mau
torna-se bom com o uso!"
Alheios dor que provocavam no corao de Iara, Desmond e Adele tocavam-se,
trocavam risadinhas excitadas, pesquisavam-se, conheciam-se...
"Hum, mas que namorinho mais besta! Vamos, pega a mozinha dela, pega... E
a?
Cochichos no ouvido? Muito bem... sorrizinhos para a negra... Ah, eu vou te pegar,
Adele, eu vou te pegar... Olha s: agora so beijinhos nos dedos machucados pelo jogo?
Mas que beijos, sim senhora! Mas que paixo, hein? O qu? Mais beijinhos nos dedos?
Pena que esses dedinhos no te sirvam de supositrio!"
Aos poucos, o cansao venceu e Iara mergulhou no sono, imergindo em seus
pesadelos de vingana.
lado da quadra.
No precisa contar pra ningum a histria da cola, Adele. Isso fica entre ns.
Ah, isso no, Iara! Da todo mundo vai ficar achando que voc teve culpa, que a
cola era sua. E eu no...
Tudo bem, Adele cortou Iara. Estou pouco ligando para o que os outros
pensem ou deixem de pensar. Ningum tem nada com a minha vida.
Adele no conseguia aceitar tanta generosidade da amiga:
Mas, desse jeito, a turma vai pensar que voc uma coisa que voc no ...
A gente do jeito que a gente faz com que a gente seja, Adele. Minha alma um
jardim e a minha vontade o jardineiro! Eu sou o que minha vontade quer que eu seja!
Adele enlaou o brao de Iara, encostou a cabea em seu ombro e suspirou
profundamente, feliz com a fora e a amizade daquela colega que no hesitava em
sacrificar-se por ela.
Suspiros? sorriu Iara. Acho que um suspiro fundo como esse estava
reservado para outra pessoa, no estava?
Olhando longe, para os lados do porto de sada para o ptio, sem nada fixar, s
espera do sinal para o recreio, quando seu namorado por ali apareceria, Adele abriu o
corao para sua amiga to querida e a quem ela tanto devia:
O Desmond especial, Iara. Amadurecido que s vendo! Muito mais homem do
que eu sou mulher... Quando eu estou longe dele, as horas levam sete vezes mais tempo
pra passar...
Ento bom o Desmond aparecer logo, seno, quando ele chegar, vai
encontrar uma velhinha coroca ao lado de uma garota novinha e gostosa como eu!
Ah, Iara! Voc demais!
Demais so esses ingleses. Na verdade no so de todo maus, apesar
daqueles olhos de gua que so o diabo! Voc j reparou nos olhos do Desmond? So
como os de um cigano, dissimulados, como quem olha de lado, querendo esconder alguma
coisa...
Adele apenas sorriu com a brincadeira e continuou:
Que gosta de mim, isso ele no esconde, Iara. O Desmond demais mesmo.
Sabe? Eu no esperava encontrar to cedo algum de quem eu pudesse dizer que
" o homem da minha vida". Essa frase sempre me pareceu uma coisa velha, fala
exagerada de novela barata. claro que, desde que me senti mulher, eu sonhava com um
prncipe encantado, com algum especial, que um dia surgiria na minha vida e me levaria
brincou Iara.
Como se no tivesse sido interrompida, Adele procurava desenhar com palavras a
imagem idealizada de seu amor pelo rapaz:
Mas agora... Agora eu descobri que nem sabia sonhar direito: o Desmond
muito mais do que minha pobre imaginao poderia ter criado. Ele ... Ora, mas o que eu
estou dizendo? Voc sabe como o Desmond! Vocs namoraram no ano passado, antes
de eu me transferir para o Queiroz, no foi?
Iara deu de ombros, sem encarar a amiga:
Voc sabe que foi. Um namoro breve, quase nada, muito pouco... No podia
durar muito, do jeito que o Desmond...
Do jeito que ele ? De que jeito ele ?
Iara levantou o queixo de Adele, olhando-a carinhosamente nos olhos:
O que isso, menina? Voc acha que, como amiga, eu seria capaz de fingir um
sentimento que eu no tivesse de verdade? Desmond
ma-ra-vi-lho-so...
Adele afastou-se um pouco, sorrindo, como se a colega tivesse proposto uma
brincadeira, mas com um leve e ressabiado franzir de sobrancelhas:
Pois voc no parece achar nada disso dele, dizendo que "o namoro no podia
durar muito, do jeito que o Desmond ". Ah, vai, fala, Iara. Se voc minha amiga, me diga:
como foi o namoro de vocs dois?
O sinal tocou naquele momento. Iara levantou-se, olhando com tranqilidade para
Adele:
Foi o que todo mundo sabe. O Desmond danado quando v mulher...
Como assim?
Nada, Adele. que ele vivia falando aquelas palavras bonitas dele, mas eu
soube que ele no estava nem a pra essa histria velha, essa tal de "fidelidade". Por isso,
mandei ele andar...
Naquele momento, quem observasse a expresso de Iara tambm haveria de
achar errada a engenharia humana que teria criado apenas as pernas como alternativa de
fuga. Para fugir, bastariam certas expresses do olhar.
Adele tambm estava de p, agora claramente preocupada:
O que voc est dizendo?
Nada mesmo, Adele. As pessoas mudam. Quando a gente namorou, acho que
ele ainda era muito criana, estava comeando a descobrir que existe mulher no mundo.
Pode ter mudado muito, do ano passado para c. Me diga: voc pode confiar no Desmond?
claro que eu posso confiar nele, Iara. Aposto a minha vida nisso!
A zoeira dos estudantes que desciam para o recreio explodiu no porto do ptio.
Iara colocou as duas mos nos ombros da colega e sorriu:
claro que pode! As coisas mudam. Nem precisa ficar de olho, Adele. S
porque ele traiu uma vez, isso no quer dizer que venha a trair de novo...
Lutando contra a lgrima que queria rolar, Iara afastou-se da coluna para no ouvir
outra vez o rudo de salivas e mucosas se esfregando, como sola de borracha em piso
encerado.
Andou a esmo, sem querer na direo da biblioteca, s pensando em sair do ptio
e afastar-se da felicidade de Adele e Desmond.
A biblioteca do Colgio Carlos Queiroz Telles era ampla. Uns poucos alunos do
terceiro ano espalhavam-se pelas mesas, s voltas com alguma pesquisa. Dos jogadores
dispensados da classe de Iara, s Lorena estava ali, com um livro aberto na frente.
Aproximou-se da colega:
O que voc est lendo?
Uma pea de teatro. o Otelo, do Shakespeare. Eu adoro teatro! Vou ser atriz,
sabia?
"Humpf...", pensava Iara ao afastar-se. "Essa metida a intelectual fica lendo essas
drogas... Aposto que esse Shakespeare deve ser uma velharia coberta de teias de aranha!"
Passou pela prateleira especial, onde ficavam sempre expostas todas as obras do
escritor Carlos Queiroz Telles, que dera seu nome escola, e parou diante das estantes
repletas com os romances clssicos da literatura brasileira. Lado a lado, ela contou dez
exemplares iguais de Dom Casmurro, de Machado de Assis, leitura obrigatria do bimestre
para o segundo ano.
"Mais velharias... Bom, acho que os alunos ingleses tambm tm de sofrer como a
gente. Aposto que l eles so obrigados a ler esse chato do Shakespeare, como a gente
tem de ler essas chatices do Machado. O Desmond nasceu na Inglaterra... Ah, ah, em vez
de ficar livre do Shakespeare, caiu nas mos do Machado!"
Ainda nem tinha comeado a encarar a tal "leitura obrigatria do bimestre" e pegou
um dos exemplares do Dom Casmurro. Deu uma olhada no texto da orelha do livro.
"... a perfeio de um grande amor destrudo pelo cime... Hum! Talvez esse livro
no seja assim to velho, afinal de contas. Se o cime o remdio que eu vou usar para
destruir um grande amor, acho que esse romance est voltando moda..."
Atrs de si, o calor de um corpo, o carinho de uma voz masculina:
Oi, fofinha!
Ai, Emlio! O que voc quer, hein?
Eu pensei que todo mundo j soubesse: voc!
Eu o qu?
voc que eu quero.
que o meu?
A Adele? Melhor do que voc? claro que no, Roberta. Em quadra voc
sensacional. Voc a melhor levantadora e a melhor capita que o Queiroz j teve. S
aquela burra da dona Maria Helena no sabe disso!
Roberta comeou a parecer deprimida, como se somente naquele momento
estivesse percebendo a injustia de sua excluso do time.
Voc acha, ?
Tenho certeza! Nem sei como voc pde ficar calada, caindo fora do time e
ainda perdendo o lugar de capita...
Pois ...
Pois ... E dona Maria Helena, alm de sacar voc do time e promover a Adele,
ainda foi dar o lugar de capita para a besta da Cssia. O que que a Cssia sabe?
Matemtica? Lidar com computador? Quero ver se o computador vai ajudar a gente na hora
que a Cssia tiver de segurar o time contra uma equipe de provocadoras, como voc fez
contra as danadas do Visconde de Sepetiba...
isso a, Iara concordou Roberta, com veemncia. Pra ser capita tem de
ter autoridade, seno o juiz acaba deixando o jogo correr solto e as provocadoras montam
em cima! Pelo menos, se ela tivesse promovido voc a capita em vez da Cssia...
Eu? Ora, uma vez ela veio com a histria de que eu sou "emocionalmente
instvel". Imagine!
Imagine...
Imagine, perder o lugar de capita para uma fazedora de contas e o lugar de
levantadora titular para uma negra...
isso mesmo: uma negra! "Ela j est no ponto... Vamos l!"
Que raiva, hein, Roberta? Tirar zero em Geometria depois de ter ficado no
banco sabendo que o nosso time no teria passado por aquele sufoco todo se voc
estivesse em quadra, no mesmo?
... Pensando bem, isso mesmo, Iara. Que raiva! "Agora!"
Ento acho que a gente bem que podia aprontar uma brincadeira pra cima da
Adele, voc no acha? Uma vinganazinha inocente, s pra aliviar a raiva. O que
voc acha?
Uma vingana? Sei l... O que que voc est pretendendo?
Ora, pouca coisa... S acho que est na hora de a gente dar o troco e mostrar
quela desgraada qual o lugar dela.
mas para o qual j no ligava havia meses, e do qual havia meses nunca mais recebera
uma ligao.
Passava das seis da tarde e mister Bradley, o pai de Desmond, j estava em casa.
Para o senhor... disse a empregada, estendendo o telefone
para o
recm-chegado.
Al, Bradley falando... o ingls falava com leve sotaque o Portugus que j
dominava depois de tantos anos vivendo na terra tropical que havia escolhido como nova
ptria.
Iara respondeu fazendo uma voz rouca, como de filme de terror, para garantir que
o pai de seu ex-namorado no a reconhecesse:
Mister Bradley? Aqui uma amiga que gostaria de saber se algum j lhe
contou quem o seu filho anda namorando...
Como? O que tem o meu filho? O que houve com o Desmond?
Muita coisa, mister Bradley, muita coisa... Ou pouca, se o senhor acha certo seu
lindo filho loiro estar namorando uma negra...
Uma negra? Que histria essa?
Uma linda histria de fadas: agora mesmo, neste instante, uma carneirinha
negra est pastando com o seu carneirinho loiro!
Mas isso uma loucura! O que isso quer dizer?
Pouca coisa agora, mas talvez muita com o tempo: o que pode resultar da unio
do seu filho com uma eguinha negra? Ser que o senhor vai gostar de ver seus netos
relinchando ao cham-lo de "vov"?
Meu Deus! Quem est falando? Quem voc?
Sou quem ligou para contar ao senhor que, nesse momento, seu filho est
brincando de animal de duas costas com uma negra!
O clic do telefone mostrou a mister Bradley que aquele era o fim da surpresa que o
esperava depois de um dia estafante de trabalho. O ingls largou o aparelho e procurou o
leno, para enxugar o suor que lhe brotava da testa:
E ainda h quem queira ser pai!
Oi, pai...
O pai de Desmond!
Com raiva contida na voz, o ingls alto e furioso ordenou, secamente:
Desmond. Entre no carro.
O rapaz percebeu que alguma coisa grave tinha acontecido, mas no podia
imaginar que a fria do pai se dirigisse a ele e sua namorada:
O que foi, pai? A tia Amy piorou, l na Inglaterra?
Isso no tem nada a ver com sua tia Amy, Desmond. Tem a ver com voc e
esse seu namoro, que voc vem escondendo de seu prprio pai.
Adele sentiu-se gelada, prevendo tempestade. Desmond soltou o ar contido nos
pulmes pela expectativa e apresentou, procurando manter a calma:
Papai, esta Adele, minha namorada. Adele, este Raimond Bradley, meu pai.
"Mister Bradley! Este o famoso mister Bradley!", repetia a menina por dentro,
sem coragem de dizer uma palavra.
O pai do namorado olhou-a de alto a baixo, sustentando do melhor modo que
podia a pose de ingls educado. Mas o olhar denotava sua clarssima desaprovao.
Boa tarde... disse entre dentes, ainda se contendo, mas revelando profundo
mal-estar com a presena daquela linda menina negra ao lado de seu filho.
Com o corpo, Desmond quase tapou Adele inteirinha e encarou o pai:
Agora que vocs j esto apresentados, por favor, papai, eu queria saber por
que voc apareceu aqui assim, de surpresa, fechando minha moto e dizendo que eu estou
"escondendo" meu namoro de voc.
Os dois tinham a mesma altura e eram muito parecidos, embora a cabeleira longa
de Desmond e suas roupas informais contrastassem com os cabelos rentes e o terno
escuro do pai.
melhor conversarmos a ss, Desmond. Estou certo de que a mocinha aqui
no vai se importar.
Desculpe, papai, mas, como eu j disse, "a mocinha aqui" minha namorada e
seu nome Adele. E eu vou me importar sim, se voc no tiver a gentileza de nos dar uma
explicao.
O ingls mal conseguia manter a pose, falando baixo, quase sussurrando, dividido
entre a vontade de gritar com o filho e a necessidade de no chamar a ateno dos
ocupantes das mesinhas de calada da lanchonete de onde o casalzinho acabara de sair.
For God sake, Desmond, I should...
Adele tinha ouvido falar que qualquer pessoa que vive em um pas estrangeiro,
mesmo por muito tempo e mesmo dominando perfeitamente a lngua do pas anfitrio, nos
momentos de nervosismo sempre acaba usando a lngua de nascena, a lngua materna.
Sem querer, imaginou o que aconteceria se ela mesma estivesse na Inglaterra e gritasse
"socorro" ao ver-se em dificuldades. Se a dificuldade fosse no mar, na certa se afogaria... E,
se a informao era mesmo correta, a frase do ingls revelava que ele estava encarando o
namoro do filho como um afogamento.
Mas Desmond era o salva-vidas e provava a Adele que teria sido impossvel
encontrar um namorado melhor: enfrentava a fria do pai, protegendo a namorada, e ao
mesmo tempo fazia com que o homem conseguisse controlar-se, pouco a pouco, at que
fosse possvel uma conversa mais esclarecedora do que aquela absurda cena pblica. Os
trs afastaram-se da frente da lanchonete e a voz de Desmond ia conseguindo fazer baixar
o excesso de adrenalina negativa que corria pelas artrias do pai.
Hum... que algum... uma pessoa acabou de ligar para a nossa casa e disse
coisas que... Me ofendeu... O que a voz disse foi...
Um trote? Voc veio aqui por causa de um trote, papai?
O ingls parou um pouco, tomando flego, tentando lembrar-se do que havia
ouvido.
Era mais que um trote. Uma voz rouca... Talvez de mulher, parecia... Bom, na
verdade o que ela disse foi que vocs estavam namorando e que o namoro estava sendo
escondido de mim, por alguma razo...
Desmond interrompeu:
Eu?! No tenho nada para esconder de voc, pai. E tambm no estou
entendendo direito por que voc est to ofendido.
A maneira como aquilo tudo foi dito que foi horrvel... Nessa hora eu... eu fiquei
furioso e...
Nervoso, Desmond parecia comear a entender as razes de tanta preocupao.
Como se fosse brincadeira, mas pretendendo dizer somente a verdade,
interrompeu o pai:
Nessa hora voc atravessou o Oceano Atlntico, no , papai? E de repente
ficou preconceituoso como um americano!
Ora, Desmond, no brinque! Isso no tem nada a ver com preconceito racial.
Apenas...
melhor a gente enfrentar a verdade, papai: voc teria ficado to alterado se a
minha melhor amiga e se for preciso eu meto a mo na cara de qualquer um, como eu fiz
com o Gust...
Adele interrompeu, tomando a mo da amiga e apertando-a contra o peito:
claro que eu sei de tudo isso! Desde o primeiro dia, eu vi que voc me
compreenderia e me apoiaria. Foi voc quem foi suspensa por me defender, no foi? Foi
voc que tirou zero duas vezes pra me ajudar, no foi? Voc um anjo, Iara. E sabe como
eu sou agradecida a voc!
Iara tocou-lhe o rosto, aliviada:
Voc que um anjo, Adele. Voc nem me conhecia direito e tambm tirou um
zero pra me ajudar. Pensa que eu me esqueci do caso do aparelho que voc me ajudou a
procurar? Mas deixa pra l: eu s estava preocupada com quem poderia ter feito essa
fofoca horrorosa...
O professor aparecia no corredor. Era hora de voltar para a classe. Adele estava
sria, enquanto encerrava a conversa:
Quem pode ter feito isso eu nunca vou saber, Iara. O pai de Desmond disse que
s pode ter sido uma pessoa muito srdida...
"Srdida! Aposto que foi esse pai do Desmond que fez com que ele acabasse com
o nosso namoro. O peixe Cssia vai ter de esperar. Primeiro eu tenho de fisgar um arenque.
Esse maldito ingls vai ver uma coisa!"
A voz de Iara era quase um rosnado quando chamou Roberta de lado, durante o
recreio grande, num canto do ptio:
Roberta, convoque o Milto para estar na sua casa hoje tarde, l pelas cinco...
O Milto? Aquela criana grande? Mas o que que a gente vai fazer? Por que o
Milto?
Faa o que eu digo, Roberta. Voc vai ver. Ns vamos nos divertir como nunca!
Rindo, excitadas pela expectativa, as duas passaram por Emlio, distradas. O
rapaz estava encostado na parede do corredor, observando, srio. Fez um movimento para
seguir Iara, para cham-la, mas pareceu desistir. Balanou lentamente a cabea e foi para o
outro lado.
Isso, eu quero a maior cesta de caf da manh que a senhora tiver. Por favor,
entregue s sete em ponto, hein?
Iara ia ticando a lista que havia preparado e coordenando os telefonemas:
Companhias de dedetizao j chega. Telefonamos para seis delas. E as cestas
de caf da manh?
J liguei para cinco.
S cinco? Ah, cinco j est bom. Agora as tapearias...
Al? Aqui Marjory Bradley, esposa de Raimond Bradley. Por favor, estou
querendo trocar todas as cortinas e estofados aqui de casa. Vocs poderiam mandar
algum?
Por favor, envie para este endereo dez caixas de usque Black Label, cinco de
Gin Gordon, duas caixas de vinho Casillero dei Diablo... ahn... tinto, por favor. E pode
mandar tambm uma caixa de Chateau Mouton Lafitte. Como? muito caro? Pode deixar
que eu pago a entrega. Meu nome Raimond Bradley! Ah, e mais uma caixa de
champanhe Don Perignon, por favor...
Al? Estamos com uma privada entupida aqui em casa e...
Al? Agncia funerria? Por favor, mande uma coroa de defunto da maior que
tiver. Qual a inscrio da faixa? Escreva por favor: "Saudades. Oferta dos amigos de
Raimond Bradley". Isso. Com psilon no final...
Al? O enterro tem de sair amanh de manh, s dez. Quero o caixo mais
caro. . Em bano e dourado. E king size, por favor, que o defunto muito grande...
Na medida em que o trote se desenrolava, a excitao dos trs ia crescendo e eles
j agiam como se estivessem embriagados. Quando a loucura chegou ao final, Roberta,
entre o prazer e o pnico, olhou para a idealizadora da brincadeira:
Ai, ai, ai! O que foi que ns fizemos, Iara?
Ora, uma brincadeira... Uma boa brincadeira s, no foi, Roberta? Foi divertido,
no foi, Milto?
"O que foi que eu fiz? Agora no importa mais. O que est feito, est feito. Tenho
agora de me aproveitar da situao..."
Na manh seguinte, as aulas j estavam quase no final, quando correu um rumor
pela escola de que Desmond tinha sido chamado ao telefone com urgncia e que agora
estava na sala do diretor.
O que ser que houve? especulava algum. Ser que o pai do Desmond
est passando mal?
No deve ser isso informava outro aluno. Ouvi dizer que o pai dele est
vindo para c para falar com o diretor. Alguma coisa aconteceu...
Iara levantou a mo e pediu professora de Geografia para sair da sala. Correu
para a entrada da escola. No precisou esperar muito para ver a chegada do carro de
mister Bradley. Deu um jeito de, "casualmente", esbarrar com ele.
Oh, mister Bradley! Como vai o senhor? Lembra-se de mim? Sou a Iara, aquela
amiga do Desmond que ia tanto sua casa no ano passado...
Ah, Iara! Lembro sim. Como vai? Mas, por favor, me d licena que eu...
Nossa, mister Bradley! O senhor parece to preocupado! O que houve?
Uma barbaridade, menina. Uma invaso da minha casa! Ontem noite
comearam a aparecer entregadores de pizzas um atrs do outro. Hoje, desde as seis
horas da manh, chegam txis, entregadores de encomendas, uma pilha de coisas que
algum sdico resolveu pedir em meu nome!
Que horror!
O ingls estava afogueado, fora de si:
E que eu saiba no tenho nenhum inimigo que pudesse fazer uma maldade
igual a essa. Veio at um homem para tirar cupim do meu piano de cauda. E eu nem tenho
piano!
J no havia nem um trao de pose britnica naquele homem. Iara teve de lutar
para no rir. Ao contrrio, a menina oferecia a mais confivel expresso de solidariedade:
Mas quem poderia ter feito uma coisa dessas, mister Bradley?
A maioria das pessoas que recebeu essas encomendas diz que a voz ao
telefone era jovem. Por isso vim falar com o diretor do colgio. Isso s pode ter sido uma
brincadeira de algum moleque desocupado dessa escola. Eu acho que...
Bom, mister Bradley, se o senhor no tem nenhum inimigo, isso deve ter partido
de algum das relaes da Adele. O senhor sabe: esses negros andam com todo tipo de
gente, no ? Com as piores companhias...
As aulas j tinham terminado, e Adele e Iara esperavam no corredor, em frente
sala da diretoria, onde continuavam fechados Desmond e o pai.
Obrigada, Iara, por ficar aqui comigo, esperando pra saber no que vai dar essa
confuso toda. Eu estou to nervosa...
Amiga pra essas coisas, no , Adele? Imagine se eu ia deixar voc na mo!
Iara, querida, no sei o que eu faria sem voc!
Encontrei o pai do Desmond sem querer, logo que ele chegou aqui. Estava
furioso. Disse que algum sdico havia feito um monte de encomendas para ele, em nome
dele, uma espcie de vingana, sei l... Voc acredita que ele ficou dizendo que isso devia
ser coisa de algum amigo seu?
Meu amigo?! Como assim?
Esse homem um poo de preconceitos! Do tipo que vive jogando a culpa de
tudo de mau que acontece nos negros, nos nordestinos, essas coisas. Voc sabe, no ?
claro que eu falei com ele que isso era um absurdo, mas eta ingls duro de roer! Olha, tive
at vontade de sacudir o homem, pra ver se punha um pouco de juzo naquela cabea dura!
A reunio chegava ao fim naquele momento e Desmond saa da sala do diretor.
Sua expresso desanuviou-se ao ver a namorada sua espera.
Iara afastou-se para uma sombra do corredor e deixou que o diretor conduzisse o
furioso pai para a sada. Ia defendendo os alunos do Queiroz, sugerindo que o ingls
investigasse em sua empresa. Talvez algum jovem empregado demitido, ou coisa assim,
querendo uma desforra:
Nenhum aluno desta escola poderia ter feito uma coisa dessas, mister Bradley.
Nossos mtodos educacionais so os melhores que...
A voz do diretor afastava-se. Pensando que os dois estavam ss no corredor,
Desmond abraava-se a Adele, como se tivesse acabado de salvar-se de um naufrgio:
Ai, que alvio te encontrar aqui me esperando! Que sufoco! Que coisa mais
maluca aconteceu com a gente!
Calma, Desmond, calma...
O rapaz pegava entre as mos o rosto da namorada e, das sombras onde se
escondia, o que Iara podia perceber nele era s ternura por Adele:
Voc a minha alegria, Adele. Se eu te encontrar depois de cada problema
cabeludo que eu tiver de enfrentar, eu queria que todos os problemas do mundo
desabassem em cima de mim!
Ah, Desmond... suspirava Adele, recebendo o abrao e apoiando o rosto no
peito do rapaz, sobre a medalhinha que desde domingo no saa do pescoo do namorado.
Voc a coisa mais linda que j aconteceu na minha vida, Adele. Eu podia at
morrer nesse momento, porque acho impossvel que alguma coisa melhor possa acontecer
comigo...
No fale em morte, meu amor, no fale em morte. Nossa felicidade est apenas
comeando...
Voc tem razo, voc tem razo... Nem sei o que dizer, gosto tanto de voc que
Cssia voltava-se
para a colega, com o tpico arzinho de fofoca. um repetente, deve ter j uns dezenove
e ainda est na oitava. E o pior que o cara tem at mau hlito! E as espinhas, menina!
Como tem espinhas aquele chato!
Por trs das costas de Iara, Emlio e Leo juntavam-se ao grupo:
O que isso, Cssia? Falando mal dos homens, ?
Cssia levantou os olhos para o rapaz e desculpou-se:
De homem, Emlio, eu s sei falar bem. s um cara que voc no conhece.
Uma porcaria de homem!
A voz de Iara imps-se:
Porcaria? Essa palavra sinnimo de homem, Cssia!
Emlio apoiou as duas mos nos ombros de Iara, massageando-lhe as costas de
leve, carinhosamente:
Iara, Iara... Se a minha fofinha j teve algumas experincias ruins com homens,
voc?
Ainda no falou. Vai falar hoje tarde. Escute bem: eu, voc e Cssia vamos
estar aqui, s quatro, como se o treino no tivesse sido cancelado. Eu consegui o nmero
do celular da dona Maria Helena. Traga o celular da sua me. J fiz o clculo e, quando a
gente ligar pra ela, no vai levar nem vinte minutos pra ela chegar da Liga Juvenil at aqui.
Mas ela no disse que no vem? O que que...?
J planejei tudinho cortou Iara.
Hoje tarde voc vai ter de provocar a Cssia.
O qu?
Oua!
abrigaram-se sob a cobertura do galpo do recreio. O colgio estava deserto. Iara pegou
sua mochila e dirigiu as trs colegas para uma das mesas compridas, de alvenaria, que
havia por todo o galpo.
Que chuvarada, hein? Acho que vai esfriar...
Vai esfriar? riu-se Neusinha. J est frio, Iara!
Cssia sentou-se no banco que acompanhava toda a extenso da mesa e apoiou
os cotovelos no tampo de concreto:
Que chato esse cancelamento! Vamos perder a tarde toda, sem treino nem
nada. E eu precisava estudar Fsica, meninas, ando mal de Fsica...
Voc?! riu-se Iara. Desde que eu te conheo, Cassinha, quando voc est
mal em alguma matria, porque vai tirar s nove e meio na prova! Nem sei como voc
pode se concentrar em Fsica com a final que a gente vai ter de jogar daqui a dois dias!
Roberta arregalou os olhos e franziu a boca, lembrando-se do desafio que as
esperava:
Nem fale, Iara! Vai ser o jogo do sculo!
A chuva fazia um barulho infernal, martelando o telhado do galpo. Iara,
lentamente, abria o zper da mochila:
Se vai, Roberta, se vai! Imagine se, com essa chuva toda, uma de ns pegar um
resfriado!
Nem fale nisso, menina!
amparando Neusinha. A manga da jaqueta da garota tinha sido cortada e uma mancha de
sangue misturava-se ao vermelho do tecido. Voc cortou a Neusinha!
Hein? balbuciava Cssia, sem entender direito o que acontecia.
Nesse momento, o porto que ligava o prdio da escola ao ptio abriu-se
violentamente. Os dois treinadores chegavam juntos, preocupados pelo telefonema de
Roberta, que interrompera a reunio na Liga Juvenil de Vlei.
Dona Maria Helena! Professor Joo Massa! chamava Iara, preocupadssima,
amparando Neusinha. Acudam!
E a posio de titular no meio da defesa fica com Malu. Para a reserva da Malu,
vou promover a Norminha, da oitava...
O tempo todo Iara sabia que a deciso s poderia ter sido mesmo aquela. Desde o
comeo, Roberta no tivera a menor chance de recuperar seu lugar no time, pois era
levantadora, e no defensora como Cssia ou Malu. Mas fez a mais convincente expresso
de surpresa quando recebeu o olhar pnico de Roberta, ao ouvir a nova escalao do
sexteto titular.
Na primeira oportunidade que teve para procurar Iara sozinha, Roberta no teve
tempo de abrir a boca e reclamar do desastroso resultado do plano da amiga. Iara levantou
a mo, fazendo-a calar-se e procurando acalm-la:
Fique fria, Roberta. As coisas esto indo do jeito que eu planejei. Agora s falta
o prximo peixe em nossa rede: vamos fisgar uma trara negra...
Logo as duas estavam rodeadas pelas outras jogadoras do grupo, todas excitadas,
nervosas, umas falando em injustia, outras sem conseguir entender como que uma
garota certinha como a Cssia podia ter se embriagado daquele jeito.
Conheo a Cassinha h anos, meninas Iara balanava a cabea,
demonstrando-se arrasada com tudo o que havia acontecido.
Coitada da Cassinha,
coitadinha dela! Isso problema de famlia, sabem? Uma desgraa... Ela tem at um tio
internado, com problemas de bebida... Isso coisa de famlia...
Alcolatra? Ser que a Cssia uma alcolatra?
Claro que no! Isso leva tempo. Mas, por favor, no espalhem nada mais,
nenhum comentrio, nenhuma fofoca que possa piorar o drama da Cssia. Vocs sabem
como eu adoro a Cassinha. No h o que eu no fizesse na vida para livr-la desse maldito
vcio...
Coitada da Cssia... lamentava Lorena, chorando pela amiga.
Magda tentava ver a coisa por um lado menos grave:
Foi uma sorte danada a Neusinha estar com frio e ter vestido a jaqueta, no foi?
Iara tocou delicadamente o rosto da colega e sorriu, com tristeza.
Quando a Cssia bebe, menina, ela perde a cabea mesmo, perde a cabea...
Por sorte essa violncia dela acabou s com um corte de nada na Neusinha...
continuou Magda. No precisou nem levar ponto...
Sandra ainda no entendia como Cssia podia esconder tantos problemas numa
aparncia to adequada, to de acordo com o que os adultos esperavam dela:
Quem podia imaginar uma coisa dessas, hein? S voc mesma, Iara, que
conhece a Cssia h tanto tempo... Mas que idia a dela, trazer uma garrafa de pinga para
a escola!
No foi? completou Iara. Por sorte eu estava l... Se eu no apartasse as
duas... No sei no...
Naquele momento, Roberta estava mais plida que a prpria Cssia.
Iara, tenho de falar com voc!
A menina levantou os olhos, fixando o olhar preocupado de Emlio, parado na sua
frente, bloqueando-lhe a passagem.
Tem de falar comigo? Por qu? Eu no tenho de falar com voc...
Emlio no aceitou a agresso:
Alguma coisa muito errada est acontecendo, fofinha. Muito torta mesmo. O
que h? Tenho observado voc nos ltimos dias e...
Observado?! cortou Iara, com desdm. Pois trate de ficar de olho em
quem quiser ser olhada por voc. Eu no!
Iara, eu vi quando voc...
Quando eu o qu? Ora, v se me esquece!
Contornou o corpo de Emlio e deixou-o para trs. Ao longe, sentada na terra,
debaixo da velha jabuticabeira que ficava atrs dos alambrados das quadras, Iara viu uma
solitria e desolada Cssia. Pelo jeito, a menina no encontraria foras para entrar em aula.
"Ela agora est no ponto. Vamos ao prximo captulo, querida Cssia..."
Iara deu a volta nos alambrados e ajoelhou-se ao lado da colega. Sem uma
palavra, abraou-a apertado, intensamente. Cssia desabou num choro sofrido, entregue,
sem censuras.
Ai, Iara! Por que que eu fui fazer uma coisa dessas?
Shhh... querida... shhh... Pode desabafar, comigo voc pode desabafar tudo o
que quiser...
Perdi tudo, Iara, perdi tudo!
No, Cassinha, todo mundo conhece voc, e logo todos vo descobrir que o
que aconteceu foi um acidente idiota. Voc sempre foi a aluna mais querida do Queiroz.
Sua reputao ...
Cssia enterrou o rosto nas mos:
Reputao! Reputao! A minha est perdida! Isso fazia parte de mim, agora
estou vazia, como um cadver. Minha reputao, Iara, minha reputao!
Calma, isso no nada. Voc est inteirinha, como sempre foi. Um ferimento no
Adele. Duvido que ela no faa uma coisa que a Adele pedir. E voc no sabe como a Adele
tem jeito com as palavras, menina, voc nem calcula!
mesmo? Mas ser que a Adele vai aceitar fazer isso por mim?
A depende. Depende de quem pedir esse favor a ela. O caminho o Desmond,
Cssia, o Desmond! Voc est cansada de saber como a Adele apaixonada pelo
Desmond, no ? Voc acha que ela negaria qualquer coisa que ele pedisse?
O ptio esvaziava-se e os alunos voltavam s classes, tangidos pela campainha
estridente.
Uma aula de Geografia arrastou-se inteirinha, at que batesse o sinal para o
intervalo. Com o canto do olho, Iara viu Cssia sair apressada da sala. Seguindo seu
conselho, a pobre menina iria procura de Desmond. Era preciso reter um pouco Adele na
classe, para no estragar o plano:
Ai, menina! Estou arrasada com tudo o que est acontecendo. Estive agora
mesmo falando com o Leo e...
Iara conseguiu prolongar o curto dilogo por mais dois minutos e desceu junto com
Adele. Chegaram ao ptio e, ao fundo, encostados em uma parede, l estavam Cssia e
Desmond. O rapaz ouvia, preocupado, e Cssia falava com insistncia, agarrada em seu
brao.
Olha s, Adele... comentou Iara, com o ar mais cndido do mundo. Acho
superlegal essa amizade do Desmond com a Cssia...
Hum?
Est vendo? Logo que alguma coisa de ruim acontece com ela, com o
Desmond que ela vai desabafar. Superbonita essa amizade...
Os olhos de Adele estavam abertos, mudos, e seu lbio tremeu levemente.
Do outro lado do ptio, Desmond tocava a cabea de Cssia, com carinho, e seus
lbios se abriam, respondendo com imensa ternura ao que acabava de ouvir. Logo, Cssia
separava-se de Desmond e sumia para o fundo do galpo do recreio.
Hum? fez Iara, muito baixo. A boneca vai fugir de novo?
Adele teve um sobressalto:
Fugir?
Desmond esticava o olhar e encontrava a namorada ao lado de Iara, perto da
cantina.
Veio vindo, com um ar preocupado.
Oi, amor!
toda a escola, e, do outro, eu, a negra que sonhou ser possvel conquistar o corao de um
homem como ele?
No me venha com isso, Adele! Onde est a menina segura que eu conheo?
Eu escolhi voc! Todo mundo escolheu voc! Por que o Desmond no haveria de escolher
uma garota linda como voc? Confie nele, confie nos seus amigos, confie em mim!
Voc a nica pessoa em quem eu confio cegamente no mundo, Iara. Mas,
nesse momento, voc s pode me oferecer palavras de consolo. Palavras! As palavras no
servem para quem est sofrendo. Nunca ouvi dizer que um corao machucado possa ser
tratado pelo ouvido!
Adele, calma! Voc est confundindo tudo! A amizade do Desmond com a
Cssia a coisa mais comum do mundo! Voc tem de agir como se...
Adele no conseguia ouvir:
Desculpe, Iara, mas eu estou farta de conselhos! Conselho que procura
consolar a quem sofre fcil de seguir para quem no est sofrendo. Para quem est em
desespero, duro ter de aturar ao mesmo tempo a dor e o conselho!
Adele, Adele! O cime um monstro, Adele. Um monstro que cria a si mesmo,
que se alimenta de si mesmo! Fuja do cime!
Adele chorava desconsoladamente e abraou-se amiga, absorvendo o calor da
solidariedade que Iara lhe oferecia.
Cime! Melhor ser trada cem mil vezes, Iara, do que suspeitar uma s vez de
traio! Nos lbios dele, eu jamais encontrei os beijos dela. No corpo dele, eu nunca aspirei
o cheiro dela. Tudo ia to bem... Por que eu fui descobrir tudo? Por qu?
Iara demonstrava-se aflitssima:
Ele seu namorado, Adele. Ele adora voc. Jamais faria alguma coisa para
feri-la. ele quem carrega a sua medalhinha, no ? O smbolo do amor entre vocs, no
? A medalhinha como uma aliana de noivado, Adele!
Adele separou-se bruscamente do abrao da amiga e encarou-a, com os olhos
arregalados:
A medalhinha! Espere um pouco, Iara. Eu volto num minuto. No saia daqui!
Iara recostou-se na parede, soltando lentamente o ar contido nos pulmes e vendo
Adele correr de volta ao ptio. Aliviada, sentia-se aliviada. Tudo estava dando to certo, to
certo...
"Logo, ai, logo eu vou estar novamente nos seus braos, Desmond... Voc vai me
encontrar como eu sempre fui, apaixonada. Amanh, eu vou continuar como sou hoje,
comportamento. Est bem. Ela vai com a gente para Santos. Mas a titular continua sendo a
Malu. Cssia fica no banco de reservas. Podem avis-la.
Mal Cssia chegava em casa, a me estendia-lhe o telefone:
Pra voc, minha filha...
Al...
Do outro lado da linha, a voz de Iara, na maior alegria e na maior excitao:
ltimas notcias, querida: nossa reportagem acaba de apurar que a sua grande
amiga Iara acaba de falar com dona Maria Helena implorando para que voc volte equipe
e... E ela cedeu!
Como?!
Bom, no cedeu completamente. Voc ainda est na reserva, mas vai poder
viajar amanh com a gente. Trate de aparecer hoje tarde no treino. Voc est de novo no
time, Cassinha querida!
tarde, como ocorre sempre em vsperas de grandes decises, como acontece
nos ensaios gerais de teatro antes das estrias, a qualidade do treino transcorria muito
abaixo do que os treinadores normalmente exigiam dos dois times do Carlos Queiroz Telles.
O nervosismo imperava, mas tanto Joo Massa quanto dona Maria Helena sabiam que
aquilo era energia represada para uma grande luta no dia seguinte.
Na hora do intervalo, todos estavam suados e muito falantes, na expectativa do
jogo.
Adele, como havia sido combinado, sumiu atrs
amassos".
Iara pegou Cssia pelo brao e comeou o encontro com o mais alegre sorriso
deste mundo:
E ento? As coisas esto comeando a melhorar, no , Cassinha?
Ah, obrigada, Iara! Voc foi maravilhosa! Hoje, quando eu cheguei para o treino,
a primeira coisa que fiz foi correr para dona Maria Helena e agradecer. Ela disse que eu
devia era agradecer s amigas que eu tenho e ao Desmond. Mas eu sei que tudo foi mesmo
por sua causa, Iara! Obrigada mesmo! Que advogada voc vai dar!
O que eu no faria por voc, Cassinha? Vem c, vem...
J estavam encostadas na coluna ao lado da cantina, atrs da qual ficava o
famoso "canto dos amassos". Iara conhecia muito bem a acstica do local, depois de tantos
namoros de Adele e Desmond que havia espionado. Sabia qual o volume de voz que podia
ser ouvido daquele lado e, conseqentemente, sabia que volume deveria usar quando
quisesse ou quando no quisesse que Adele ficasse sabendo o que estava sendo dito.
Comeou num tom fofoqueiro, quase cochichando para Cssia:
E o tal do Branco, hein? E elevou o volume da voz:
O carinha continua insistindo? Nunca vi garoto mais doido por mulher!
Cssia riu:
um pobre-coitado. Parece mesmo que est cado por mim...
Bom... continuou Iara, num tom de deboche.
cheirosinho e...
Cheirosinho! aparteou Adele, lembrando-se da tarde anterior.
Todo
entendo!
Adele quase arrancou a corrente com a medalha da mo de Iara.
Eu entendo, Desmond. Pode ficar sossegado que eu no vou fazer nenhum
escndalo. S te digo uma coisa: nunca mais quero te ver!
O nibus arrastava-se lentamente, tentando superar o trnsito congestionado de
So Paulo, difcil at para um comeo de tarde de sbado. Alheios ao drama que envolvia
alguns deles, os rapazes e as moas riam, brincavam e cantavam, preparando-se com
alegria para a guerra esportiva que pretendiam vencer logo mais noite.
Adele e Iara ocuparam as poltronas da frente, as que ficavam atrs do motorista. O
rosto de Adele no trazia nenhuma expresso, revelando o vazio. Estava esttica, mirando
a placa de acrlico que isolava o motorista como se ali houvesse uma tela de televiso. De
seus olhos, lgrimas escorriam mudas, ininterruptas...
Iara no largava a mo da amiga e tambm nada dizia. Dizer o qu? Nada mais
havia a dizer, nada mais havia a fazer. Tudo tinha dado certo. Agora Desmond estava livre
como uma lebre num campo sem raposas e Iara era o caador que j havia preparado a
armadilha.
Um pouco voltada para Adele, ningum, nem mesmo os dois professores que
ocupavam as poltronas ao lado, podia ver o breve, leve, misterioso sorriso que suavizava
seu rosto.
"Bem, uma coisa eu ainda tenho de fazer... A mais importante. A mais gostosa!
Ganhar de novo o Desmond para mim. Ah, hoje exatamente 12 de maio! Eu
ganhei voc, Desmond, h um ano justinho. Por isso hoje o melhor dia para retomar voc
de volta para mim!"
Tinha vontade de levantar-se e correr para o fundo do nibus, atirando-se sobre o
corpo adorado do rapaz. Mas para que a pressa? Se tinha agido com cuidado at ali, um
pouco mais de tranqilidade no faria mal nenhum.
"Este o momento. Agora voc est frgil, pronto para que eu preencha o vazio
que voc acha que est sentindo, meu Desmond. Sei que Adele vai me odiar para sempre...
Mas o que eu posso fazer? Para se conseguir violetas mais perfumadas, o nico jeito usar
estrume de porco..."
J estavam na interligao da Rodovia dos Imigrantes com a Anchieta, prontos
para descer a Serra do Mar, quando Iara levantou-se. Beijou o rosto de Adele e caminhou
pelo corredor, para a parte de trs do nibus.
"Tenho de ir devagar, humilde como uma violeta... L est ele... Desmond..."
Passou pelas poltronas onde estavam juntos Cssia e Emlio. sua passagem, o
rapaz a olhou com uma expresso dura, inquisidora. Pegou seu brao e levantou-se:
Iara, voc no quis me ouvir aquela hora, mas eu preciso falar com voc. O que
voc estava fazendo quando...
Iara sacudiu o brao, como se andasse por uma floresta e um cip incmodo
impedisse sua caminhada. Nem olhou de lado. Para ela, era como se no houvesse mais
ningum naquele nibus, como se ela mesma fosse um pequeno alfinete sendo atrado
pelo im que se sentava na ltima poltrona.
Ei, Iara! chamou Caca, brincando, como sempre. Por que voc est to
embonecada? Voc pensa que as garotas do Cultura Mndi so todas sapatonas e vo
desmaiar de paixo vendo voc na quadra? assim que vocs pretendem ganhar hoje, ?
Milto ria, gargalhava, com a piada do colega.
Iara tinha levantado cedo naquela manh. Nem almoou. Levou horas no banho,
horas se maquiando, horas escolhendo a camiseta mais sedutora, de decote mais cavado,
e acabou se decidindo por um busti que deixava livre o umbigo, revelando tambm boa
parte dos seios, onde a menina tivera o cuidado de perfumar, primeiro exageradamente e,
depois de novo banho, com a delicadeza que ela julgou suficiente para inebriar o garoto que
ela precisava reconquistar.
Atrs dela, Emlio terminava a conversa com Cssia e ia sentar-se ao lado de
Roberta.
Desmond estava sozinho na ltima poltrona. Olhava pela janela, com a ateno
perdida pela sucesso de verde tropical que ladeava a estrada.
Sem uma palavra, Iara sentou-se ao lado dele, suave como uma serpente que se
aproxima da vtima, mas fofa como um gatinho que vem se aninhar no colo do dono.
Sentindo sua presena, Desmond voltou o rosto para ela. Estava coberto de
lgrimas.
Querido! Oh, querido!
Iara, Iara, o que aconteceu?
Aceitou o abrao da colega, enterrando o rosto em seu colo, envolvendo-se no
perfume planejado pela menina e desabando num choro triste, num choro de menino.
Shhhh... shhhh... Desmond, meu querido... Tudo vai ficar bem. Sua Iara est
aqui. Eu sempre estive aqui, meu amor... Voc vai ser feliz, Desmond, muito feliz. Eu vou
fazer de voc o homem mais feliz do mundo, meu Desmond. Agora voc meu... agora
voc meu de novo...
provocava Caca.
Algum precisa de ajuda pra abrir um zper? Pra desabotoar qualquer coisa? Deixa comigo!
As garotas fecharam as cortininhas das janelas. Sandra segurou uma toalha e
ficou bloqueando a metade traseira do nibus, criando um espao reservado para a troca
de roupa das colegas.
Fiu-fiu! Fiu-fiu! assobiavam os rapazes, fazendo um corredor polons na
porta do nibus, para cada menina que descia, gloriosamente despida para nadar.
U... Cad a Adele? E a Cssia? E a Roberta?
perguntou Iara, s de
"Iara Regina! Um dia, a senhora Desmond Bradley! Que tal o nome Iara Bradley,
hein?"
Passou pela cortina de toalha, desta vez nas mos de Malu que, j vestindo um
biquini mnimo, substitua Sandra para que a colega tambm pudesse se trocar.
Atravessou o corredor e desembarcou do nibus. Livrou-se das gozaes dos
rapazes como pde e viu-se na calada, recebendo no rosto a brisa salgada do mar.
Desmond... chamou ela, baixinho.
Seus olhos percorreram tudo em volta. No se fixavam nem nas rvores dos
jardins, nem no mar escuro, ruidoso, nem no cu muito azul, que j comeava a colorir-se
sobre as montanhas, sua esquerda, preparando-se para o esplendoroso espetculo do
crepsculo santista.
Desmond...
Em sua ansiedade, nem percebeu que Emlio tambm no estava mais no grupo.
De repente, o pnico:
Desmond? Cad o Desmond? Ei, Leo! Voc viu o Desmond?
Sei l, vai ver j entrou n'gua.
"J? Que danadinho! Correu para a praia sem me esperar. Voc vai ver uma coisa,
seu menininho! Mame vai ter de ensinar voc a se comportar..."
Correu para a areia, sentindo o calor de vrias horas de sol sob os ps descalos.
Mas a figura alta e bronzeada de Desmond no estava vista. Ansiosa, correu
pela areia, com o corao aos pulos.
"Danadinho..."
Foi direto para a gua, desta vez gritando:
Desmond! Desmond!
"Desmond... ai, querido...", pensava seu corao confuso. "Que brincadeira
essa, meu amor? Voc est se escondendo de mim?"
Seus ps entraram no mar e o choque trmico da gua fria contra os tornozelos fez
Iara parar um pouco, tentando reconhecer alguma cabea loira entre as dezenas de
pontinhos que salpicavam o mar.
Desmond! Onde est voc? Pra com essa brincadeira, vai!
O grupo vinha em desordem pela areia e logo alcanava a menina. Trs rapazes
vieram por trs e pegaram-na no colo:
Um caldo! Vamos dar um caldo na Iara! Vamos esfriar a Iara, pessoal!
Me larga, Caca! Leo, pra com isso! Jonas, voc vai ver uma coisa!
procurando tanger o desorganizado rebanho de rapazes e moas, que saa da gua sem
parar de brincar, de se provocar, produzindo adrenalina para a disputa de logo mais.
Para Iara, parecia no haver mais nenhuma adrenalina armazenada para reagir ao
desaparecimento de Desmond. Todo seu estoque tinha sido gasto na ltima semana.
"Estoque de qu? Estoque de maldade?" Levantou-se lentamente e lentamente
andou at o nibus.
"O que eu fiz, hein? Por que o Desmond desapareceu? No estou entendendo
nada, eu no estou entendendo mais nada..."
enxugar-se.
De repente, notou o corpo grande de Neusinha a seu lado. Levantou o rosto. A
colega sorria amavelmente e estendia-lhe uma folha de caderno dobrada, exibindo o
curativo no brao, resultante do corte da fatdica tarde de quinta-feira.
Pegue, Iara. pra voc...
"Um bilhete? O que isso?"
Pegou o papel e desdobrou-o, avidamente.
do Desmond?
Um bilhete de Desmond! Afinal ele no a havia abandonado! O que tinha
acontecido, realmente? Leu:
Querida Iara,
A gente precisa conversar. Por favor, acompanhe a Neusinha. Ela vai lev-la
aonde eu estou, esperando, ansiosamente, por voc.
Desmond.
"Desmond! Esperando por mim?"
Numa frao de segundo, sentiu a adrenalina correndo novamente por suas
artrias, levando vida a todo seu corpo. Ps-se de p. No, nem tudo estava perdido.
Desmond no estava perdido. Ela no tinha lutado tanto por nada.
Vamos, Neusinha! O que voc est esperando? Onde est o Desmond?
O que eu estou esperando? Que voc vista alguma coisa, por exemplo...
Sem enxugar-se, Iara vestiu rapidamente o shortinho justo do uniforme do time e
enfiou o minsculo busti, sem nem preocupar-se com as roupas de baixo nem em calar
os tnis.
Pronto. Estou pronta, Neusinha.
Com delicadeza, Neusinha pegou-a pela mo.
Venha, Iara. Por aqui.
Sem nada mais dizer, Neusinha guiou-a apressadamente pelos corredores.
Subiram dois lances de escadas e a colega parou na frente da porta de uma sala de aula.
Entre, Iara. Desmond est esperando por voc. Sem poder controlar as batidas
do corao, Iara passou pela porta. Era o final de maio, e o sol j se punha mais cedo.
Estava escuro l dentro e seus olhos demoraram a acostumar-se.
Pronto. Podem acender a luz.
"Como? Que voz essa? Dona Maria Helena?!"
O brao de Neusinha, entrando atrs de Iara, esticou-se um pouco alm da
porta.
Eu sei o que a paixo acrescentava a professora, como se sua matria
fosse educao sentimental, e no fsica. A paixo no pensa, nem tem juzo. O mundo
estaria perdido, Iara, se a gente no tivesse um pouco de juzo para equilibrar nossa paixo.
Iara respirava ofegante, os olhos esbugalhavam-se, o suor comeava a correr-lhe
pelo rosto. Seus olhos passeavam em volta, encontrando cada expresso que a encarava.
Muita coisa podia ser lida nessas expresses: dor, espanto, susto. Havia tristeza nos olhos
de Desmond, um pouco de medo nos de Milto, aflio nos de Adele, autoridade nos de
dona Maria Helena, quase desespero nos de Emlio, mas nenhum deles parecia acusador,
inquisidor, como ela esperava. Nenhum deles eram os olhos violentos do pai.
O olhar de Cssia era o nico que parecia dividido entre a compreenso e a raiva.
A menina falou, com uma voz tmida:
No sei se vou conseguir perdoar o que voc me fez, Iara. Quando a Roberta
contou tudo, acho que eu quis que voc morresse, ou que fosse expulsa do time, do
colgio... Nunca senti dio por ningum, mas... a frase foi engolida por um soluo.
Calma, Cssia, calma... dizia Adele, tambm a ponto de chorar.
E Cssia terminou chorando, chorando de verdade:
Bom, eu acabei aceitando que voc est numa pior, que a gente tem de tentar
compreender a sua loucura... Compreender! Ai, vou tentar te perdoar, Iara, vou tentar. Vai
ser difcil, mas eu juro que vou tentar...
Adele abraou-a. As duas choravam.
Os olhos de Iara permaneciam arregalados, em choque. Tudo o que a menina
percebia era que suas mentiras tinham sido desmascaradas. Aquela era a hora da verdade.
Iara... choramingava Roberta, sem conseguir olhar em seus olhos. Eu sei
que tambm tive culpa. Quando o Emlio veio falar comigo, eu tinha de contar o que a gente
estava fazendo. Eu j no conseguia dormir com aquele peso, com aquele remorso...
Lgrimas embaavam o olhar de Iara. Por um momento, aquelas pessoas
transformavam-se em rplicas de seu pai, figuras masculinas agressivas, de cinta dobrada
na mo, ameaando violncia. Uma surra de cinta, era uma surra de cinta que Iara
esperava agora, como conseqncia de tudo o que havia feito. Talvez uma surra de cinta
pudesse purgar um pouco da culpa que ela sentia, da vergonha que a sufocava...
No... continuava a repetir, balbuciando, o brao protegendo o rosto, como
se se precavesse contra uma bofetada.
Mas aquelas pessoas no vestiam a fantasia do pai. Nenhuma delas mostrava
raiva.
Por que no mostravam raiva? Por que no mostravam dio? O que eles estavam
pretendendo?
Abraada a Cssia, Adele chorava, chorava de verdade, mas seu olhar para Iara
era de splica. Suplicava que a amiga entendesse que eles lutavam para compreend-la:
Iara, quando eu soube de tudo, quis ver voc morta. Mas agora eu quero te
perdoar. Eu preciso te perdoar. Ainda sobra muita coisa boa entre ns...
No... no...
Quem fez o que voc fez no voc de verdade continuou Adele, com um fio
de voz. O que voc fez no pode apagar todas as provas de carinho e amizade que j me
ofereceu. Quando voc brigou com o Gustavo porque ele havia me ofendido, mostrou que
era minha amiga. Quando assumiu a cola de Geometria por mim, provou de novo que era
minha amiga...
No... no... balbuciava ela, batendo os dentes, incontrolavelmente, e ainda
no conseguindo elevar o tom de voz.
Logo, a menina sentia a areia sob os ps. Na certa no tinha ido to longe, entrara
apenas na arrebentao, e Emlio facilmente pde arrast-la. Deixou-se levar, nada
pensava, nenhuma fora tinha para resistir, no resistia...
Exaustos, os dois caram na areia molhada, com os corpos sendo lambidos a
perodos pelas lnguas que o mar estendia fracamente sobre a areia, como se lambe um
sorvete.
Ajoelhados, abraavam-se.
Iara...
Emlio... me deixa morrer... me deixa morrer, Emlio...
Iara, quietinha...
Aos poucos, o flego dos dois recuperava-se e Iara olhava para o rosto de Emlio,
iluminado pelo amarelo das luzes da cidade e dos faris dos carros que rodavam pela
avenida.
Atrs da cabea dela, Emlio via-a emoldurada pelas ltimas luzes do crepsculo,
formando um quadro escuro, triste, desolado, ttrico at, mas lindo, mas to lindo...
Voc... sussurrou ela. Por que, Emlio? Por que voc... por que eu... por
que eu fiz tudo isso...?
No pense em nada agora. Eu acompanhei toda essa loucura. Eu vi nos seus
olhos que as coisas no estavam bem, que voc no estava agindo como sempre foi, que
estava deixando que alguma coisa muito ruim tomasse conta de voc.
No, no...
Mas essa coisa no voc! Isso como um resfriado, que a gente tem de
espirrar para fora. Eu vi quando voc entrou no vestirio dos homens durante aquele treino.
Quando Desmond ficou desesperado, no encontrando a medalha, eu j desconfiava de
tudo...
Molhados, os dois sentiam frio agora, um frio intenso, que os fazia tremer. Iara
agarrou-se ao peito de Emlio, abraando-o com fora.
Ai, Emlio... Por que eu fiz isso tudo? Agora nem sei se eu queria o Desmond, ou
se eu queria me vingar dele, ou de Adele, ou de Cssia... Mas por que Cssia? Ela nunca
me fez nada! Ningum me fez nada... S eu fao mal a mim mesma... No tenho mais o
direito de viver... Eu quero morrer, Emlio...
No, meu amor, minha Iara... Voc tem o direito de aprender. Voc tem o direito
de crescer...
Eu brinquei com os sentimentos das pessoas, Emlio. Como se elas tivessem
colocando a inexperiente Norminha junto com Lorena na quadra, tentou at jogar com
Roberta como levantadora, na esperana de que as reservas se entendessem melhor, mas
a treinadora no conseguia anular o nervosismo de todas elas.
Desculpa te dizer, Maria Helena foi a nica ajuda de Joo Massa , mas o
seu time est apavorado. Esse jogo est perdido...
As meninas voltavam quadra, para o terceiro set. O servio estava na mo de
Adele. A menina jogou a bola para o alto e saltou, caprichando numa enfiada em diagonal,
procura de um dos pontos menos fortes das adversrias. Do outro lado, uma menina alta
aparou a pancada com uma manchete e serviu na medida para a levantadora. Hbil, a
menina fez o passe atravessar a quadra e encontrar livre de marcao uma atacante alta do
Cultura Mndi que estava fazendo a festa naquela noite.
"Pronto...", pensava desconsolada a treinadora. "Acabou. Agora o servio est
com elas e acabou..."
De repente, um grito:
Ei, vejam!
Os jogadores do Queiroz, roucos de tanto torcer, de gritar para as colegas, de
tentar dar-lhes fora, levantaram-se: no alto das arquibancadas, vindos da entrada
principal, surgiam dois jovens, molhados de mar, com os cabelos e os corpos imundos de
areia.
Dona Maria Helena! gritou Magda no meio das reservas. o Emlio! E a
Iara!
De mos dadas, os dois desciam correndo os degraus das arquibancadas e
pulavam a mureta, entrando em quadra.
Pararam por um segundo. Emlio olhava no fundo dos olhos da menina. De
repente, na frente dos colegas, na frente da multido, os dois uniram-se num beijo longo,
num beijo de entrega, num beijo de fora, num beijo de esperana...
Os lbios separaram-se e Emlio sussurrou:
Vai l, meu amor. Arrasa com elas!
Suja, descabelada, Iara enfiou a camiseta do uniforme por cima do busti e s teve
tempo de calar um par de tnis que dona Maria Helena lhe estendia.
Vamos, gente! Raa agora! Vamos virar!
Entrou como uma leoa entra no picadeiro, disposta a devorar o domador antes de
ser obrigada a saltar por dentro de uma argola de fogo.
Adele suspirou alto. Olharam-se. As duas amigas, as duas companheiras, as duas
melhores jogadoras da equipe do Queiroz naquele momento juraram luta, sem usar
nenhuma palavra.
Norminha saa da quadra e Iara entrava na ponta, pela direita. O saque veio do
outro lado, forte como nunca, forado como nunca. Marisa jogou-se e aparou com um
antebrao s, em direo a Adele. O passe veio alto, mas a menina subiu...
Na outra quadra, as adversrias entreolhavam-se, estranhando aquela nova
jogadora, to suja, que fintava o bloqueio e enfiava o passe da companheira em uma
porrada violenta, raivosa, magistral!
Eeeeeehhhhhh! subia a torcida dos rapazes do Queiroz. Bola no cho!
Vai, Iara! laraaaa!!
A rede no girou mais, at o fim do terceiro set. Como se fossem uma s cabea,
Adele e Iara variavam os ataques a cada ponto, pela esquerda, pela direita,
fintando para o arremate de Neusinha, para as pancadas de Sandra. Atrs, Marisa ainda
conseguiu dois aces, duas bolas diretas, em saques fulminantes.
A torcida adversria no entendia: o que estava acontecendo? Quinze a zero?!
Foi um rebulio. A torcida agora gritava o nome de Iara, o nome de Adele,
espantada com aquelas duas feras, a fera negra e a fera suja, que pareciam no ter ossos,
que pareciam no precisar respirar, que adejavam como borboletas pela quadra e matavam
como tigres.
O quarto set foi uma guerra campal. O time do Cultura Mndi comeou a reagir,
lutando bravamente, mas a histria parecia ter mudado de direo. O Queiroz fechou o set
com uma cortada sensacional de Neusinha: do outro lado, a bola voava, trazendo o sangue
da menina, e explodia no peito de uma adversria.
Meu Deus! espantou-se a capit do Cultura Mndi, vendo a camiseta da
colega. Voc se machucou?
No... dizia a garota, sem compreender o que acontecia. Veja: a bola est
ensangentada...
A partida foi para o tie break, naturalmente. Mas o time das donas da casa j no
sabia o que fazer. O nervosismo que havia tomado conta das meninas do Queiroz ainda h
pouco tinha atravessado a quadra e o grupo do Cultura Mndi parecia um bando de baratas
tontas, caindo, revezando-se, tentando resistir avalanche de bolas que quase estouravam
ao bater no cho da quadra.
Cobre l! Cobre l! a sujinha! A sujinha que vai receber a bola! Bloqueia!
Bloqueia! Ai! Eu no disse pra bloquear?
Quatorze a dez. Adele e Iara, lado a lado, respirando como pequenos touros,
suando, sorriram uma para a outra. Iara piscou o olho. Adele jogou a cabea para trs e
sinalizou para a defesa. Sandra sacou, enfiando uma bola difcil que foi aparada do outro
lado e voltou, para a manchete de Cssia. A menina esforou-se e a bola foi direto para...
para Iara!
E todos viram a "sujinha" subir como um beija-flor e assumir a funo da
levantadora, passando a bola para Adele. E a amiga, como um ponto final, enterrava a bola
do outro lado, no papel de uma atacante!
O pblico levantou-se, rugindo como em gol de Copa do Mundo. Ajoelhadas no
cho, Adele e Iara apertavam-se num longo abrao, sem mais necessidade de perdo, sem
mais necessidade de mentiras, selando aquela amizade, slida agora para sempre...
A quadra era invadida e uma montanha de jovens formava-se por cima do abrao
das duas...
Mais de trs horas da manh, no nibus, nos braos de Emlio, aninhada,
sentindo-se segura, Iara lembrava a euforia da vitria, que logo fora complementada pela
espetacular vitria do time masculino. Tinha sido demais. Tudo tinha sido demais.
Mas ainda havia uma sombra a toldar-lhe o olhar, quando ela encarou o garoto:
Ai, Emlio... Tudo parece to bom, to bom... mas sempre haver a lembrana
da loucura que eu cometi...
Emlio beijou-lhe delicadamente os lbios e falou:
No h mais loucura. Voc agora j outra. Aquela ficou para trs...
Mas a lembrana...
O namorado interrompeu:
Iara, esquea tudo. O passado a gente no pode mudar. O que a gente pode
fazer trabalhar bem o presente, para que o futuro possa ser melhor. Nada h a lamentar,
s a aprender. Uma vez, eu li uma frase linda, nem sei bem de quem . Oua s:
Lamentar uma dor passada, no presente, criar outra dor, e sofrer novamente...
Iara cerrou os olhos. Tinha de lutar contra as lembranas amargas. Emlio estava
ali, para ajud-la a adoar o futuro.
O luar invadia o interior do nibus, que sacudia levemente, subindo a Serra do Mar.
Prateada, Iara adormeceu nos braos de Emlio.
A HORA DA VERDADE
Referncias dos trechos originais de Otelo e Dom Casmurro recriados por Pedro
Bandeira
William Shakespeare, o autor de Otelo, nasceu em 1564, na pequena cidade de
Stratford-upon-Avon, perto de Londres, na Inglaterra, e morreu na mesma cidade, no dia 23
de abril de 1616. um dos maiores autores de teatro da humanidade e suas peas
permanecem atuais at os dias de hoje, porque nelas o poeta ingls apresenta problemas
universais da alma humana, que nem o tempo e o progresso conseguem resolver. O amor,
o cime, a cobia, a ambio, a inveja, a traio, a solido, esto profundamente discutidos
em peas como Romeu e Julieta, Otelo, Hamlet, Macbeth, Jlio Csar e tantas outras.
Shakespeare utilizava-se de muitos temas j explorados anteriormente por outros
escritores, como fez nos famosos Romeu e Julieta e Hamlet. Se voc quiser, procure nas
locadoras filmes de suas obras. H timas filmagens de Hamlet, de Rei Lear, de Henrique
V, de Jlio Csar, de Macbeth e do romntico Romeu e Julieta. H tambm uma verso
muito boa de Otelo, na qual Kenneth Branagh faz o papel de lago, enquanto Lawrence
Fishburne interpreta um timo Otelo.
Machado de Assis, o autor de Dom Casmurro, nasceu em 21 de junho de 1839, no
Rio de Janeiro, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908. Considerado o
maior escritor brasileiro de todos os tempos, como Shakespeare registrou situaes e
emoes que ultrapassara as barreiras do tempo, em obras imortais como Memrias
pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Como Otelo, Machado de Assis
era negro.
recuou e quis tirar as mos das minhas; depois, talvez por no poder recuar mais, colocou
um dos ps adiante e o outro atrs, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a
reter-lhe as mos com fora. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabea no quis ceder
tambm, e, cada para trs, inutilizava todos os meus esforos, porque eu j fazia esforos,
leitor amigo. No conhecendo a lio do Cntico, no me acudiu estender a mo esquerda
por baixo da cabea dela; (...) fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e
deu de vontade o que estava a recusar fora. Repito, a alma cheia de mistrios. (Dom
Casmurro, cap. XXXVII)
10 Um dos erros da Providncia foi deixar ao homem unicamente os braos e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
11 Escapei ao agregado, escapei a minha me no indo ao quarto dela, mas no
escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrs de mim. Eu falava-me, eu
perseguia-me, eu atirava-me cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluos
com a ponta do lenol. (Dom Casmurro, cap. LXXV)
12 A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoo, enterrlas bem,
at ver-lhe sair a vida com o sangue... (Dom Casmurro, cap. LXXV)
13 Capitu um dia notou a diferena [dos sonhos], dizendo que os dela eram mais
bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitao, disse-lhe que eram como a pessoa que
sonhava... Fez-se cor de pitanga. (Dom Casmurro, cap. XII)
14 J essa idia s, como um veneno, me corri as entranhas. por isso que
nada, nada, acalmar minha alma, at o dia em que eu lhe d o troco: mulher por mulher!
A menos que eu consiga despertar-lhe dentro da alma o cancro do cime, de tal modo que
ele perca a razo. E se este pobre rafeiro de Veneza, que eu aulo porque parece rpido
na caa, seguir a pista, o nosso Miguel Cssio fica minha merc. A farei a sua cama,
muito bem feitinha, junto do Mouro. Tanto mais que temo que o tal de Cssio anda com o
olho em cima tambm do meu barrete de dormir. Em seguida, farei que o prprio Mouro
ainda me estime mais e me agradea... precisamente porque vou for-lo a fazer o papel de
uma perfeita, consumadssima cavalgadura, e lhe roubar paz e tranqilidade, at que fique
inteiramente louco. Tudo est aqui, embora ainda confuso... Mas o que mau torna-se bom
com o uso. (Otelo, 2- ato, cena I)
15 Pega-lhe na mo... hum, muito bem, muito bem... Anda, cochichalhe no
ouvido... Ser com uma teia difana como essa que apanharei um moscardo do tamanho
desse Cssio... A... sorri para a tua bela... assim... Corteja-a bem, enquanto eu c formo o
cortejo das tuas desgraas... Fazes bem... assim mesmo... Mas se com tais manejos
perdes o teu posto, melhor te fora no lhe atirares tantos beijos com as mos, como fazes
agora para te dares ares de casquilho! Que beijos, sim, senhor! Que soberba reverncia!
isso... qu? Mais beijinhos com a ponta dos dedinhos! pena que eles no te possam
servir de seringuinhas de cristel! (Otelo, 2e ato, cena I)
16 De ns mesmos depende sermos deste ou daquele feitio. O nosso corpo uma
horta de que o nosso arbtrio o hortelo. (Otelo, lato, cena III)
Capitu era Capitu, isto , uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era
homem. (Dom Casmurro, cap. XXXI)
As horas da ausncia, para quem ama, mostram-se mais enfadonhas e sete vezes
vinte e quatro horas mais longas do que as do mostrador do relgio. (Otelo, 3 ato, cena IV)
A gente Pdua no de todo m. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe
deu... Voc j reparou nos olhos dela? So assim de cigana oblqua e dissimulada. (Dom
Casmurro, cap. XXV)
20 (...) sabia bem que eu era amigo dela, e no seria capaz de fingir um sentimento
que no tivesse. (Dom Casmurro, cap. XLV)
21 Um dos erros da Providncia foi deixar ao homem unicamente os braos e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
Por sua fidelidade, respondo com a minha vida! (Otelo, 1 ato, cena III)
Abre os teus olhos, Mouro, e s cauteloso: se ela enganou o pai, pode enganar o
esposo. (Otelo, 2 ato, cena III)
(...) no era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
meninas de quatorze; ao contrrio, os adolescentes daquela idade no tinham outro ofcio,
nem os cantos outra utilidade. (Dom Casmurro, cap. XII)
25 Enquanto eu, que tantas vezes, aos olhos do prprio Mouro, dei tanta prova de
mim, em Rodes, Chipre e outras terras de cristos e de infiis, eu c fico a sotavento desse
perito de... cmputos! Pois : Cssio, nos bons ventos, fica sendo seu Tenente. E eu c que
bem me contente com ser apenas Alferes. Alferes? Valha-me Deus! (Otelo, 1 ato, cena
I)
26 Nem ele [Escobar] sabia s elogiar e pensar, sabia tambm calcular depressa e
bem. Era das cabeas aritmticas (...) No se imagina a facilidade com que ele somava ou
multiplicava de cor. A diviso, que foi sempre uma das operaes difceis para mim, era
para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as
denominaes dos algarismos. (...) A vocao era tal que o fazia amar os prprios sinais
das somas, e tinha esta opinio que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais
conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto. (Dom Casmurro, cap. XCIV)
27 Nem todos neste mundo podem ser patres; nem todos os patres do mundo
devem ser bem servidos. (Otelo, 1 ato, cena I)
Hs de ver muito servidor submisso que, encantado com a prpria servido,
consome a sua vida como os asnos servem ao dono: a troco de forragem. Uma vez velhos,
d-se-lhes a baixa. Chicote em tais honestos serviais! Outros h que mascaram as
maneiras e a carantonha do devotamento e, simulando bem servir aos amos, servem
apenas ao seu prprio bem. Quanto mais bem fornidos a expensas dos patres, mais lhes
fingem vassalagem. Dobram-se em reverncia diante destes; mas a si mesmos que eles
prestam culto. (Otelo, 1 ato, cena I)
29 Se tendes conhecimento disso e tudo foi feito com o vosso beneplcito, ento
certo que, h pouco, vos injuriamos temerria e impudentemente. (Otelo, 1 ato, cena I)
Agora, neste instante, agora mesmo, um velho carneiro negro est cobrindo a
vossa ovelhinha branca! (Otelo, Ia ato, cena I) O resultado que vereis a vossa filha coberta
por um cavalo da Berberia. Quereis que os vossos netos relinchem para vos pedir
abno? Agrada-vos uma parentela de corcis e ginetes? (Otelo, is ato, cena I)
32 Sou quem voz vem dizer que a vossa filha e o Mouro neste momento esto
fazendo de animal de duas costas. (Otelo, l- ato, cena I)
E h quem queira ser pai! (Otelo, 1a Ato, cena I)
Duplo dever defronto aqui, meu pai. A vs vos devo vida e educao. Ambas me
fazem ver que sois aquele a quem devo respeito para sempre. Sempre a vs, como filha,
obedeci. Mas aqui est tambm o meu marido. E a mesma submisso perante vs a que se
sujeitou a minha me outrora e que ela sobreps que seu pai devia, a que ora, com
razo, julgo dever ao Mouro, meu esposo e meu senhor. (Otelo, 1a ato, cena III)
35 Aproxima-te, Mouro. Aqui te dou, de todo o corao, o que tambm de todo o
corao te negaria, se porventura j no fosse teu. (Otelo, Ia ato, cena III)
36 J consumado o fato, o que convm encar-lo da melhor maneira. (Otelo, 13
ato, cena in)
A muito homem matei, nos campos de batalha. Mas minha conscincia isso
repugna: matar premeditadamente, no! Falta-me a crueldade nos momentos em que a
devia ter. Nove ou dez vezes, estive a ponto de var-lo aqui, abaixo das costelas. (...) Mas
ele tagarelava tanto, proferindo contra vs tantas cousas ofensivas e provocantes, que eu,
que no sou santo, tive dificuldade de conterme. (Otelo, Ia ato, cena II)
Otelo O meu prazer iguala esta maravilhosa surpresa de te achar aqui minha
espera! Abenoada alegria da minha alma! Se para mim agora as tempestades sero
seguidas de uma tal bonana, ento rujam os ventos insofridos at que a morte acorde e
as naus nos mares se levantem ao pice das vagas to altas como o Olimpo, e dessa altura
despenhem-se depois nos mais profundos abismos infernais! Morrer nesse momento; era o
supremo bem, pois to feliz me sinto que temo de uma vez ter esgotado todo o quinho de
bem-aventurana que o meu destino ignoto me tenha reservado!
Desdmona Deus h de permitir que o nosso amor e seus prazeres todos na
medida do tempo aumentem sempre. Otelo Que assim seja, assim seja! delcias do
amor! Eu no sei exprimir o meu contentamento... aperta-me a garganta... bom demais...
(beijando-a) Que isto... e mais isto... sejam para sempre a nica dissonncia entre ns dois.
lago ( parte) Como estais afinados! Mas deixai, que, ou no me chamo lago, ou
j vou afrouxar essas cravelhas e era uma vez a bela melodia! (Otelo, 2a ato, cena I)
Aos quinze anos, h at certa graa em ameaar muito e no executar nada. (Dom
Casmurro, cap. XVIII)
(...) o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, ho
mister de estrume de porco. (Dom Casmurro, cap. XCII)
Fora de casa, so como uma pintura; no salo, parecem campainhas; na cozinha,
gatas selvagens; se santas, injuriam; demnios, quando injuriadas; no trabalho domstico,
ociosas; diligentes e ativas... s na cama. (...) Levantam de manh para os cios do lar; de
noite deitam para trabalhar. (Otelo, 2- ato, cena I)
42 [A loira], bela, clara e sutil, usa o esprito e o apura em saber como usar a sua
formosura. Se morena, mas se de esprito no manca, h de saber fazer com que a
achem muito branca. Bela e tola, no h. Se bela, acha um parceiro que logo a ajudar a
achar um herdeiro. Feia e tola que seja, inda assim capaz de fazer o que a mais bonita e
esperta faz. (Otelo, 2 ato, cena I)
Se a terra pudesse ser fecundada por lgrimas de mulher, de cada gota vertida
brotaria um crocodilo. (Otelo, 4a ato, cena I)
44 Os olhos de Escobar, claros como j disse, eram dulcssimos; assim os definiu
Jos Dias, depois que ele saiu. (Dom Casmurro, cap. LXXI)
45Iago Hum, isso no me agrada... Otelo O que foi que disseste? lago
Nada, senhor. Isto ... no sei bem o que disse. Otelo No foi o Cssio, que se despediu
de Desdmona? lago Cssio, meu senhor? Certamente que no. No posso crer que se
esgueirasse, como um criminoso, s por vos ver chegar. Otelo Acho que foi. (Otelo, 3
ato, cena III)
46 Pois se passam a ser cometidos tais atos livremente e se livres ficam eles de
sano, julgamento ou desagravo, o Estado ento que passa a ser escravo. (Otelo, 1a
ato, cena II)
47 Parece incrvel que os homens metam pela boca adentro um inimigo que lhes
rouba a razo! Como somos capazes de nos transformarmos a ns mesmos em animais, e
isso prazerosamente, sob palmas, rindo, alegres, pulando! (Otelo, 2- ato, cena III)
48 Quero bem a Miguel Cssio e que no daria eu para livr-lo dessa desgraa!
(Otelo, 2- ato, cena III)
49 Reputao! Reputao! Reputao! A minha est perdida! O que em mim era
imortal, l se foi!
Resta-me apenas a parte animal. Minha reputao, lago, minha reputao! (Otelo,
2- ato, cena III)
50 Um ferimento no corpo (...) di mais que na reputao. (Otelo, 2 ato, cena III)
51 A reputao no passa de uma v e falsa atribuio. Tanto adquirida sem
merecimento, como perdida sem motivo. (Otelo, 2-ato, cena III)
52 Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro.(...) Assim
como era meu, passa a ser de outro, aps ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o
meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele no enriquece e a mim me torna
totalmente pobre. (Otelo, 3 ato, cena III) "
53 Rico o pobre a quem contenta o pouco que possui, que ento passa a ser
muito. Mas a opulncia hibernai pobreza para o rico que vive no constante temor de
empobrecer. (Otelo, 3 ato, cena III)
54 esprito invisvel do vinho: se no tens nome com que te chamem, eu te batizo
demnio! (Otelo, 2- ato, cena III)
55 Um bom vinho um bom gnio familiar, quando com ele se sabe lidar. (Otelo,
2a ato, cena III)
56 Ns podemos dizer que essas frgeis criaturas so nossas, isso sim. Mas que
os seus apetites so nossos, isso nunca! (Otelo, 3a ato, cena III)
57 Se o emblema da virtude a alvura, eu asseguro, Senhor, que vosso genro
mais branco que escuro. (Otelo, 13 ato, cena III)
58 As palavras s palavras so. Nunca ouvi dizer de um triste corao que pelo
ouvido viesse a ser curado. (Otelo, 1a ato, cena III)