Uma História de Arrepiar - Pedro Bandeira

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Uma histria de arrepiar

Pedro Bandeira

H muitos anos sou um apaixonado pela pea de teatro Otelo, que o ingls William
Shakespeare escreveu h mais de quatrocentos anos. E adoro tambm Dom Casmurro,
que o brasileiro Machado de Assis publicou h cem anos, inspirando-se na trama de Otelo.
E de que tratam Otelo e Dom Casmurro? Tratam do cime. Do cime! Por isso, usando de
novo a mesma trama de Shakespeare e at mesmo incluindo trechos de Otelo e de Dom
Casmurro, retomei o tema do cime, desta vez fazendo-o corroer a alma de uma jovem
estudante brasileira.
No final do livro, identificados por nmeros, voc encontrar os tais trechos de
Otelo e de Dom Casmurro que foram adaptados linguagem de hoje e espalhados ao longo
do texto.
Depois, que tal aproveitar a ocasio para ler os prprios Otelo e Dom Casmurro?
Hein?
Aquele abrao e... divirta-se!

Pedro Bandeira

Sumrio
1. Por que voc no me quis?
2. As ondas do verde mar
3. Entorpecida pela dor
4. Fazendo sangrar a mistura
5. Do jeito que ele
6. Eu sempre estarei por perto
7. Animal de duas costas
8. Uma pessoa muito srdida
9. Aumentando a dose de veneno

10. Como se fosse uma irm


11. A gente vai fazer o seguinte...
12. Ela est fora do time
13. Olhos ciganos
14. Nunca mais quero te ver
15. Estoque de maldade
16. A dor e o sofrimento
17. Lamentar uma dor passada
A hora da verdade

Referncias dos trechos originais de OTELO e DOM CASMURRO recriados por


Pedro Bandeira

1. Por que voc no me quis?


A levantadora do time feminino do Colgio Carlos Queiroz Telles saa do vestirio e
voltava gloriosa para o ginsio de esportes do Colgio Anhangera, depois do chuveiro que
se seguira vitria em cima das donas da casa, na semifinal do Campeonato da Liga
Juvenil de Vlei. Vitria de garra, vitria de quem tem sangue nas veias. Tinha valido a pena
viajar mais de trezentos quilmetros de So Paulo at Ribeiro Preto: na quadra, as
meninas do Queiroz haviam conquistado o direito de disputar a final da Liga Juvenil, no fim
de semana seguinte.
A, Adele! Voc foi demais!
Abraada com Iara, sua melhor amiga e a atacante mais agressiva do sexteto,
Adele acenou agradecida na direo do cumprimento que vinha de um ponto indefinido no
meio do pblico.
O brao de Iara envolvia a cintura de Adele e beliscoua de leve, acrescentando
carinho ao cumprimento do torcedor. No rosto, Iara sorria. Mas, por dentro, a menina
torturava-se com um sentimento que nada tinha a ver com sorrisos:
"Ai, Adele... Por que voc tinha de vir para o Queiroz? S pra me roubar o

namorado?"
Iara e Adele subiam as arquibancadas agora como simples torcedoras. Em
instantes, comearia a segunda partida: os garotos do Queiroz Telles jogariam contra o time
masculino do Colgio Santo Ambrsio, simplesmente o campeo juvenil do ano anterior.
Que mulata, hein? comentou uma voz masculina.
E a outra gostosinha, ento? Eu queria essas duas na minha escola...
E eu queria qualquer das duas em qualquer lugar, cara!
A torcida batucava, cantava e assobiava, animada, apesar da derrota do time
feminino da casa para as "seis baixinhas". Essa provocao tinha partido da gigante Vanda,
meio de rede do colgio anfitrio, junto com uma risada sarcstica, logo que o Anhangera
tinha fechado o primeiro set, enfiando quinze a doze em cima das meninas do Queiroz
Telles.
Pela cabea de Iara passava a recapitulao da virada...
Iara e suas companheiras haviam voltado com outra motivao para o segundo
set.
Aos poucos, ponto a ponto, as gozaes da Vanda foram sendo caladas. O saque
das meninas do Queiroz comeou a entrar e aquele set terminou com uma cortada de Iara
e um erro da prpria Vanda. Pronto: um a um.
Logo no incio do terceiro set, Cssia, a capit do Queiroz, marcou um ace num
saque "viagem ao fundo do mar". Iara, Sandra e Neusinha conseguiam amortecer a maioria
das cortadas das jogadoras do Anhangera nos bloqueios, e os passes de Cssia ou de
Marisa para as mos de Adele melhoravam a cada virada de rede.
Elegante como uma fada, Adele distribua o jogo como se tivesse cintura de
borracha, servindo ora Neusinha, ora Sandra, mas principalmente Iara, que sabia se
colocar sempre livre do alto bloqueio adversrio. As duas jogavam como se tivessem
crebros interligados, como se cada uma soubesse onde estava a outra, sem necessidade
de se olharem.
Cada vez que o saque estava com as adversrias, os dedos de Adele anunciavam
atrs das costas a prxima jogada a ser executada, e a variao de jogo enlouquecia as
garotas do Anhangera.
Final do terceiro set e dois a um para o Queiroz. No quarto set, oito a oito, e jogo
duro.
Dona Maria Helena, a treinadora do Queiroz, pediu tempo, reuniu suas jogadoras e
comandou:

Depois de uma viagem de nibus to longa, no sei se vocs vo ter gs para


agentar um tie break, meninas. Por isso, vamos fazer de tudo para acabar com a partida
neste set. Temos de continuar variando o jogo. No adianta enfrentar o bloqueio delas.
Vamos fintar, fintar o tempo todo. Elas no podem adivinhar as jogadas. com voc, Adele!
Pode deixar, dona Maria Helena respondeu a levantadora.
Vamos l, garotas! chamou a capit Cssia, com entusiasmo.
Voltaram quadra e Marisa conseguiu aparar uma cortada da enorme Vanda. Sua
manchete amaciou a bola, enviando-a reta, de cima para baixo, na direo da fita superior
da rede. Iara saltou de brao direito erguido, fingindo preparar-se para a cortada, e as
adversrias subiram para o bloqueio. Executando o que tinha comunicado s companheiras
antes do saque com seus sinais de dedos, Adele aproveitou a finta de Iara e tocou por cima
da rede, de leve, sem tempo para que as grandonas do Anhanguera pudessem
organizar-se. Vanda mergulhou inutilmente, encharcou a quadra de suor e levantou os
olhos, fuzilando Adele atravs da rede:
Negrinha suja!
A confuso tomou conta da quadra mas, antes que as coisas piorassem, o juiz
principal meteu um carto amarelo na cara da Vanda. Da para a frente, o Anhanguera
descontrolou-se, o Queiroz Telles fechou o terceiro set e Adele, a "negrinha suja", saiu
coberta de glrias. Trs a um. As visitantes haviam vencido a semifinal do Campeonato da
Liga Juvenil.
Relembrando e saboreando a gostosa vitria, as duas garotas ainda subiam as
arquibancadas, quando um assobio maroto veio do pblico, logo seguido de uma gracinha
machista:
E a, Adele gostosa? Levanta uma bola pra mim, levanta, vai!
Hum... as duas acabaram de sair do banho! Ah, eu queria ser o sabo que
escorreu por esses corpinhos...
Um grupo de torcedores ps-se de p e comeou a bater palmas, ao reconhecer
as duas. Logo, boa parte do pblico de Ribeiro Preto aplaudia as vencedoras,
esportivamente.
Olha a, Adele: voc ganhou at a torcida inimiga!
Ns, menina! Fomos ns que ganhamos! "Por que voc roubou meu namorado,
Adele?"
Isso porque voc foi mesmo demais, Adele! reforou Iara, beijando o rosto da
colega. Se no tivesse sido aquela bola de segundo toque, no quarto set...

Ns todas fomos demais, Iara! No final do set, voc matou o bloqueio delas com
aquela cortada!
"Por que voc me roubou o Desmond, Adele?"
E o saque "viagem" da Cssia, ento? Ah, nunca vou esquecer daquele ace e
da cara da Vanda, esborrachada na quadra!
Ah, ah! Quero ver aquela danada chamar a gente de "baixinhas" agora!
"Ou de negrinha suja, no , sua negrinha suja?" Pediam licena e tentavam
encontrar espao na arquibancada. Os dois times logo entrariam em quadra para a
semifinal masculina.
Temos de vencer, Iara! Temos de vencer no masculino tambm. O time do
Santo Ambrsio danado de bom, mas os nossos meninos vo arrasar. Vamos voltar para
o Queiroz com duas vitrias, voc vai ver!
So trezentos quilmetros de estrada, Adele. E vai ter prova de Geometria
amanh de manh... comentou Iara, lembrando a longa distncia que o nibus fretado
pela escola teria de percorrer noite, de volta a So Paulo.
"Voltar no nibus sem Desmond ao lado... Ai, vendo Desmond com voc durante
toda a viagem! Eu no vou agentar... no vou agentar... Outra vez no, outra vez no!"
Passaram por um homem de terno que carinhosamente acenou para Adele:
Grande atuao, menina. Meus parabns.
Obrigada...
Acabaram conseguindo dois lugares para sentar e Iara segredou:
Sabe quem esse engravatado que te cumprimentou, Adele?
Sei l, Iara. S achei estranho algum vir de terno e gravata num domingo para
assistir a uma partida de vlei...
o diretor do Anhangera, menina. O prprio!
Mas que bom! sorriu Adele, brincando com sua primeira conquista esportiva,
a medalha dourada em forma de bola de vlei que a menina nunca tirava do pescoo.
Por sorte, o pessoal de Ribeiro Preto civilizado, Iara. Como torcida, s
tivemos os doze garotos do nosso time mais o professor Joo Massa. E eles agora s vo
ter ns doze e a dona Maria Helena...
Se o problema for torcida, Adele, pode deixar que eu vou gritar como se fosse
uma multido!
Nesse caso vo ser duas multides, Iara, porque eu vou torcer at ficar rouca!
Naquele momento, os dois times entravam em quadra. Aplausos, assobios e

poucas vaias acompanhavam as duas dzias de adolescentes, os titulares e os reservas


que fariam a semifinal masculina do Campeonato da Liga Juvenil de Vlei.
Centenas de coraezinhos femininos pulsaram mais forte, mas dois deles quase
explodiram. frente da fila dos rapazes do Queiroz, Desmond capitaneava o time e
embalava os sentimentos de Adele e de Iara.
Vai, Desmond!
Fora, Caca!
Olha, Iara, l est o Emlio! Emlioooo!
A, Leo!
Takashi, a bola t na tua mo! Pe na rede, Taka!
Na rede, pr Desmond e pr Milto!
E pr Emlio, pr Emlio!
Trs a zero! A gente quer trs a zero!
As duas gritavam como tietes, esquecendo-se que tinham acabado de viver seu
momento de estrelas.
Os jogadores pulavam, faziam flexes e tocavam vrias bolas na quadra, no
processo de aquecimento. Quase todo o time do Santo Ambrsio era mais alto do que o do
Queiroz Telles, com exceo do Milto, garoto gigante e desengonado, com menos de
quatorze anos. Os professores achavam que, com aquele tamanho todo, ele deveria era
jogar basquete. Mas o menino grande acabou se dando muito bem no vlei. Logo, era titular
na rede, dividindo a funo de atacante com Emlio e com Desmond.
Olha aquele loiro l! apontava uma vozinha feminina atrs das duas amigas.
Vai ser lindo assim na China!
Na China, coisa nenhuma!

explicava outra voz. Ouvi dizer que ele

americano. Ou ingls, sei l...


Iara e Adele sorriram, cmplices, uma para a outra, ao ouvirem falar do colega.
Ai, ai! E aquele outro ali?

continuava a vozinha excitada, que parecia ter

Bem que
vindo ao ginsio mais para aspirar testosteronas do que para vibrar com o vlei.
podia ter um gato desses na nossa escola...
Aquele? De faixa no cabelo? Me disseram que o nome dele Emlio...
Os titulares e reservas do Queiroz Telles saudavam o pblico e procuravam
reconhecer no meio da multido as colegas do time feminino.
"L esto os olhos verdes DELE...", suspirava Iara por dentro. "Na certa
procurando por Adele..."

Mas foram os olhos castanhos de Emlio os primeiros a identificar os bluses


vermelhos do Queiroz. Seu sorriso abriu-se franco, ao reconhecer Iara. Mas a menina no
desviou a ateno de Desmond, sua idia fixa. A seu lado, Adele acenava para o mesmo
garoto, eufrica.
Ah, Iara! O Desmond demais!
Que sorte conseguir um namorado como ele, no, Adele?
Se ! o paraso! Ns vamos continuar juntos, Iara, juntos! Vou dar um jeito de
fazer a mesma faculdade que ele. Da, ns vamos casar e voc... Ora, claro que voc vai
ter de ser a madrinha do nosso primeiro filho!
Ah, Adele, voc fala em ter um filho como se falasse em ganhar uma boneca!
No muito cedo pra pensar nisso?
Que nada, Iara. Voc tem sido a madrinha do nosso namoro. Vai ser minha
madrinha pra sempre. Vai ser minha amiga pra sempre. Voc a minha melhor amiga, Iara!
Voc a minha melhor amiga, Adele...
O jogo masculino acabou mesmo em trs sets a zero, mas foi duro demais: 15 a
13, 16 a 14 e 17 a 15. Os rapazes do Santo Ambrsio deram tudo o que sabiam, mas
naquela tarde de domingo o time do Queiroz estava imbatvel. Takashi tinha sido uma flecha
certeira na distribuio de jogo, Caca e Leo foram muralhas na defesa, o menino Milto
estivera firme no bloqueio e Desmond, magnfico no saque. Mas, se algum devesse ser
apontado como heri naquele trs a zero em cima do Santo Ambrsio, s poderia ser Emlio
e suas cortadas fulminantes de ponta de rede.
Adele e Iara gritavam o nome de Emlio, mas era em Desmond que as duas
pensavam.
Emlio saiu carregado da quadra, nos ombros de todo o time, mas seu rosto no
estava alegre ao ver a sua querida Iara vir correndo das arquibancadas para abraar
Desmond, apenas o segundo heri daquela tarde...
Desmond ofereceu o rosto para o beijo de Iara e voltou-se para Adele. Os dois
abraaram-se apertado e suas bocas se colaram, como se naquele ginsio lotado ningum
estivesse prestando ateno neles.
Iara passou lentamente a lngua pelos lbios, degustando o salgado do suor do
rosto de Desmond. Seus olhos queriam chorar. Como um beija-flor, conseguira recolher
uma gota de orvalho da ptala desejada, mas teria de contentar-se s com aquilo.
Todo o resto era de Adele.
Afastou-se. Dentre o pblico, deu para ouvir um comentrio preconceituoso em

relao quele beijo que unia um rapaz louro a uma menina negra. Nem olhou de lado. Em
sua alma, aquele beijo doa como uma bofetada:
"Ladrona! Esse beijo era meu, Adele. Voc rouba os meus beijos... Mas isso vai ter
um fim, ah, vai acabar! Eu vou dar um jeito... tenho de dar um jeito..."
Um rapaz que havia invadido a quadra para participar da comemorao
reconheceu-a:
Voc aquela cortadora sensacional do Queiroz, no ? Parabns, garota!
"Desmond... Ai, Desmond!", lamentava a alma sombria de Iara, escondida pelo
sorriso que agradecia o cumprimento. "Por que voc no me quis? Voc disse 'fim' como
final de cinema, mas o mocinho e a mocinha no se beijaram no final... Agora seus beijos
so s da Adele, no so?"

2. As ondas do verde mar


Como tinha comeado bem o namoro de Iara e Desmond! Que noite inesquecvel!
Tinha sido no ano anterior, no primeiro do segundo grau. Na festa da Roberta, a
colega rica, a levantadora titular e capit do time de vlei. Tinha sido naquela casa grande,
com jardim e tudo, a noite que os deuses gregos do amor haviam escolhido para o encontro
entre Iara e Desmond.
Desmond, o belo rapaz do segundo ano, a conquista dos sonhos de qualquer
garota daquele colgio. Seu pai, representante de uma exportadora inglesa, viera com a
famlia para o Brasil, trazendo o filho de apenas um ano de idade. Foram conquistados pelo
pas e aqui resolveram ficar em definitivo. Os anos passaram e o menino Desmond cresceu
brasileiro. Um brasileiro loiro, de olhos verdes...
"Desmond..."
Somente com os olhos, as recm-chegadas da oitava srie, calouras do primeiro
colegial, acompanhavam o garoto no recreio, na quadra, na cantina, rindo entre os amigos,
mas coragem para chegar nele ainda no tinham reunido.
"Ai, ficar com o Desmond..."
Durante os preparativos para a festa, um desafio tinha sido proposto, Iara no se
lembrava mais quem viera com a idia da aposta. Talvez tivesse sido a Neusinha: aquela
que conseguisse ficar com Desmond teria uma semana de refrigerante pago no recreio
pelas outras meninas do grupo.

Iara nem tinha pensado a srio em disputar a aposta mas sua vida inteira mudou
ao ver Desmond entrar na casa da Roberta. Andar de atleta, sorriso fcil, iluminado, olhar
de... olhar assim como o de uma onda, que chega ruidosa praia e parte, sugando tudo,
carregando tudo o que conquista na areia. Para no ser arrastada, Iara tentou desviar-se,
fixar-se no resto, nos braos fortes, nos cabelos louros, longos, espalhando-se pelos
ombros... mas logo voltava aos olhos e a onda que saa deles crescia, espumando,
ameaando envolv-la, puxa-la, trag-la para o alto-mar...
Desejou toma-lo, como um brbaro viking que invadisse a Inglaterra, roubando
favores sexuais sob a ameaa de um machado recurvo. Mas a vontade foi s uma idia,
uma idia sem lngua, que permaneceu calada na garganta.
Desmond estendeu a mo, cumprimentou... Nessa hora o que ocorreu menina
foi uma idia com mos, ela quis agarrar a mo do garoto, no apert-la apenas, quis
roub-lo pela mo, comear pela mo e tomar o resto. Ele continuava a espalhar charme
por todo o salo, ria-se para Roberta, cumprimentava mais uma garota... Iara quis
persegui-lo, envolv-lo pela cintura, impedi-lo de dividir-se com outras... Mas agora o que
vinha era uma idia sem pernas, idia s, as pernas de verdade pesavam como chumbo e
ancoravam a menina ao cho.
De repente, o inesperado: aquele garoto bonito jogava seu verde olhar justamente
em cima de Iara, sem que a menina sequer tivesse tido tempo de preparar charminhos
especiais para tentar a conquista. Ele voltava, algo incrvel acontecia, ele se chegava a ela,
tomava-a pela mo...
"Ai..."
Logo estavam no jardim, a msica alta vinha da sala, da aglomerao das colegas
que perderiam a aposta, ele falava sobre vlei, elogiava o jogo da menina, dizia que sua
cortada era demais... Ela derretia, sentia mpetos de peg-lo, pux-lo e beij-lo...
Idia s. Idia sem braos, os dela continuaram cados e mortos.
"Doze de maio... Nunca vou me esquecer daquela noite, daquele doze de maio..."
A idia do mais cobiado garoto do segundo ano por sorte era semelhante, e a dele
tinha braos, braos fortes, que como um milagre envolviam Iara, fazendo-a flutuar no
escurinho do jardim da casa da Roberta, ao som de um conjunto que berrava, na certa
implorando para no estar ali e flutuar junto com Iara a bordo daquela nuvem de felicidade
que pairava acima de tudo e de todos.
Ele cheirava bem, oh, como ele cheirava bem...
Ficar com garotos todas as suas amigas ficavam desde os onze ou doze anos,

mas aquele momento aquecia a menina como se fosse o primeiro. Desmond no veio
sedento e apressado como os moleques inexperientes com quem Iara j tinha ficado.
Era delicado, como se estivesse mais preocupado em faz-la sentir-se feliz do que
em satisfazer-se.
Os lbios de Desmond! Ah, os lbios de Desmond pareciam conhec-la como se o
garoto tivesse passado a vida a beij-la. Sua lngua tocava-lhe a sensibilidade do cantinho
da boca, esfregando de leve, acariciando com doura, antes do beijo trrido, tropical...
Beijou-lhe o pescoo, aspirando-a, como se quisesse respir-la. E suas mos! As mos de
Desmond eram as de um colhedor de pssegos que no quer machucar a fruta,
enlouquecendo Iara...
No! Aquele no poderia ser somente um encontro inconseqente, uma chama
que havia sido levantada, alimentada com furor, mas cujo destino seria apenas as cinzas
mornas de um dia seguinte. Iara queria mais, queria tudo, queria a eternidade e, na manh
seguinte, tratou de pedir o infinito a Desmond.
Ns, Iara? Puxa, eu no pensei que... Desmond no tinha aceitado iniciar um
namoro de m vontade. Isso no. Iara estava certa disso. Ao contrrio, ele parecia fazer
tudo para que as coisas corressem bem. Por seu lado, a garota tentou ser a namorada mais
carinhosa, mais presente, mais apaixonada, mais dedicada, mas o que havia comeado to
gostoso no se desenvolvia em cima da mesma nuvem que acolchoara o encontro nos
jardins da Roberta. Tinham voltado a pisar o cho de verdade e o rapaz comeou a
demonstrar-se incomodado com a insistncia com que Iara ligava para sua casa, nos raros
momentos em que a menina no impunha sua presena fsica a Desmond.
Oi... O que foi, Iara? A gente acabou de se ver... Por que eu demorei para
atender? Ora, estava no banho e...
Estar juntos, juntinhos, agarrados, tambm no parecia uma soluo:
Puxa, Iara! Mas que cime esse? Eu no estava olhando pra garota nenhuma.
Eu s...
Logo em seguida, em mais um telefonema, a voz de Desmond alterava-se:
Por que meu telefone estava ocupado? Ora, Iara, era minha me e uma amiga
que... Como? Ora, claro que eu no estava falando com garota nenhuma!
Juntos, ela implicava com tudo:
Foi uma tia da Inglaterra que me mandou esse bluso, Iara. No foi nenhuma
"namoradinha inglesa", ora essa!
Em pouco tempo, com jeito, sem qualquer agressividade, Desmond pediu a ela

que parassem com o namoro antes que acabassem brigando feito marido e mulher.
No agento esse seu cime, Iara. Vamos manter nossa amizade, t?
"Amizade?! Amizade s? Ah, no! Isso eu no vou aceitar! E cime?! Que
besteira...
Ciumenta, eu? E aquelas galinhosas que ficam arrastando as penas pra ele o
tempo todo? Ele pensa que eu sou besta? Eu tenho de..."
Mas no havia nada que ela pudesse fazer para recuperar o namorado.
Sem Desmond, as frias de final de ano passaram como tortura.
E a tinha surgido a nova aluna do Queiroz...
No incio das aulas, Adele veio para o segundo colegial, a classe de Iara. Era
falante, sorridente, amiga, sem timidez alguma.
Adele tinha sido campe infantil e jogava vlei desde criana. Nos primeiros testes
em quadra, a treinadora do time feminino do Carlos Queiroz Telles descobriu que nunca
tinha tido uma levantadora como ela. Mezona como era, dona Maria Helena conversou
com a Roberta at cansar e a menina no teve outro jeito seno aceitar a reserva.
O posto de capita costuma ser da levantadora. Voc ser tambm a nova capita,
Adele.
Adele protestou, com veemncia:
Oh, dona Maria Helena! Isso no. Ser que a menina mais antiga do time no
mereceria esse posto mais do que eu, que estou chegando agora?
Est bem, ento concordou a treinadora. A capita da equipe passa a ser a
Cssia, mas a coordenao ttica em quadra fica com a Adele.
No vestirio, depois do treino que se seguira quelas modificaes no time titular,
Marisa e Iara tinham ficado para o fim da fila do chuveiro e conversavam, ainda
ensaboadas:
Puxa, Iara! Essa Adele boa mesmo, no? Voc viu onde ela foi buscar aquele
passe que eu dei, toda torta, depois de aparar a pancada da Lorena? Nunca vi tanta
agilidade! A danadinha jogou-se na quadra e ainda colocou a bola no ponto certo pra voc!
E eu: pimba! Ponto pra ns! Coitada da Roberta... Essa nova levantadora
mesmo melhor que ela...
E o que voc acha da Cssia como nova capita? Ser que ela vai dar conta do
recado, quando a gente tiver de enfrentar meninas duronas como aquelas do Visconde de
Sepetiba?
Ora, no vai ter problema, Marisa...

Me passa a toalha?
Anda logo, que a aula de Qumica j vai comear. Enxugando-se, Marisa
continuava a comentar as mudanas no time:
A Cssia sempre foi a mais estudiosa da nossa classe, desde o primeiro grau. A
"certinha", sempre fazendo tudo do jeito que os professores queriam.
Do jeito que qualquer adulto queria, Marisa.
Cssia puxa-saco! Mas boa gente, Iara.
Claro que . A Cssia tima.
Bom, ela nunca foi lder de coisa nenhuma e acho que nem sabe enfrentar
jogadoras histricas em quadra como a Roberta, mas...
Mas vai dar tudo certo, Marisa. A gente vai dar a maior fora pra ela. Vamos l,
seno a gente chega atrasada.
Logo no dia seguinte, antes do bate-bola costumeiro do intervalo, Iara guardou o
aparelho dentrio no bolso do bluso e enganchou o agasalho na tela do alambrado, como
sempre fazia. Quando o sino tocou, cad o aparelho?
Ai, algum derrubou o bluso! meu aparelho!
Vamos logo, Iara chamou Adele.. Agora a prova de Histria.
No vou! a menina quase gritava, comeando a desesperar-se. Enquanto
eu no achar o meu aparelho, eu no vou! Meu pai vive reclamando do preo do dentista e
dizendo que no v a hora de acabar esse tratamento. Se eu aparecer em casa sem o
aparelho, meu pai vai me matar!
Voc perdeu o aparelho? Fica calma que a gente acha.
E as duas puseram-se de quatro, esquadrinhando cada centmetro da quadra
procura do aparelho dentrio de Iara. O recreio esvaziou-se.
O que isso, Iara? No chore...
Voc no conhece o meu pai, Adele... No vejo a hora de poder sair de casa,
pra sempre! Voc acredita que ele ainda bate em mim? Parece um louco, quando perde a
cabea. E perde a cabea por qualquer coisinha...
Iara soluava, como criana, e Adele abraou-a ternamente:
Calma, a gente vai encontrar esse aparelho. Eu no saio daqui enquanto a
gente no descobrir onde ele est.
Os minutos correram e a prova de Histria j estava perdida. Ansiosa com a
situao, Iara no pensou que Adele estava aceitando receber o mesmo zero que ela
receberia. Essa conscincia s lhe ocorreu quando ouviu o grito triunfante de Adele, que

rastreava a grama alm do alambrado:


Achei, Iara! Olha aqui!
Nas mos da colega, o aparelho de acrlico, cheio de arames, estava intacto!
Encontrei aqui, cado na grama. Quase no dava pra ver. Ainda bem que
ningum pisou..
Iara chorava, agora de alegria, abraada colega.
Ai, Adele, que maravilha! Mas a gente perdeu a prova de Histria. Voc vai tirar
zero!
S eu vou tirar zero? Voc tambm, ora!
, mas o seu zero vai ser por minha causa!
Adele enlaou os ombros da colega:
Pode deixar, Iara. Histria fcil. A gente arrasa na prxima prova!
Vitoriosa nas quadras e generosa nos relacionamentos, Adele foi se tornando cada
vez mais popular na escola e no time. Enturmou-se no Colgio Carlos Queiroz Telles como
se fosse uma veterana e conquistou Iara desde aquele dia.
Voc a minha melhor amiga, Iara!
Eu te adoro, Adele!
A companhia de Adele havia conquistado Iara. A menina era inteligente e sempre
simptica em tudo o que fazia. Na quadra, o jogo de Iara conseguiu melhorar ainda mais,
com a nova parceira como levantadora.
Nos primeiros treinos, levantando para as reservas, Roberta tentou de tudo para
superar o que Adele fazia na metade titular da quadra. Mas a histria do time feminino
daquele colgio tinha mudado com a entrada de Adele. Logo, a recm-chegada percebeu a
agressividade dos ataques de Iara e, quando as duas estavam na rede, com Iara cortando
pelas pontas, o sexteto feminino do Queiroz foi se tornando arrasador.

3. Entorpecida pela dor


Eu queria era que essa negra quebrasse a perna!
Adele havia cado de mau jeito, depois de um bloqueio. Dona Maria Helena a
examinou e concluiu que era uma entorse leve no tornozelo. A dor ia passar num instante.

No era preciso nem sair de quadra.


Iara estava atrs de Roberta e ouviu quando a levantadora reserva resmungava
baixinho, mostrando toda a frustrao que ainda trazia dentro de si por ter perdido o lugar
no time para Adele. O sangue subiu-lhe cabea e Iara teve de conter-se para no
esbofetear Roberta. Mas fazer o qu? O problema s aumentaria se ela fosse defender a
amiga. Decidiu que seria melhor fingir que no tinha ouvido nada.
Mas logo chegou um momento em que Iara no pde ficar calada. Foi no intervalo,
ptio lotado, um cretino de uma outra classe do segundo ano veio com uma frase grossa,
nojenta, racista, exibindo-se para os colegas e tentando humilhar Adele. Iara pulou como
uma leoa, engalfinhando-se com o rapaz, sem pensar que ele era maior e mais forte do que
ela. Com a fora da fria, derrubou-o no cho e o esbofeteou como louca. Quando a turma
do "deixa-disso" conseguiu arranc-la de cima do rapaz, ela ainda gritava:
Voc tem de pedir desculpas! Tem de pedir desculpas pra Adele, seu miservel!
Os garotos mais debochados riam e aplaudiam a cena, arrasando com o colega:
E a, hein? Apanhando de mulher!
Mas o garoto, atnito, com o rosto unhado, vermelho, quase chorando, tinha sido
dominado pela fria da garota:
Est bem, era s uma brincadeira... eu no tive inteno... Desculpa...
Os dois foram suspensos pela orientadora educacional, pois a regra do Queiroz
proibia brigas e a pena era suspenso para todos os envolvidos, no importando quem
tivesse ou no tivesse razo. Mas a garota virou a herona da classe por um tempo.
Voc viu? A Iara! Deu uma surra no Gustavo pra defender a Adele!
O Gustavo? Aquele grando?
Pois apanhou feito moleque! A Iara demais!
Na tarde do dia seguinte, Adele foi casa de Iara levar as anotaes das aulas
perdidas pela suspenso. Palavras entre as duas no eram necessrias: abraaram-se
caladas, por um tempo longo, muito longo...
Iara e Adele tornaram-se inseparveis como irms siamesas, na quadra, na escola
e na vida.
Uma amizade que nada poderia destruir.
Mas, como tudo sempre tem um "mas", Desmond e Adele acabaram descobrindo
um ao outro.
"Malditos!"
Foi numa excurso de "estudo do meio" ao pico do Jaragu, organizada pelo

professor de Geografia.
Os segundos e terceiros anos partiram da escola, bem cedinho, em dois nibus
separados.
Juntas, sentadas lado a lado, Adele e Iara vieram papeando e trocando
confidncias o tempo todo, inseparveis como sempre.
Muito bem, gente comandava o professor, depois de quase trs horas de
passeios e explanaes por todo o ambiente do pico mais alto de So Paulo.

Agora

temos uma pausa para o almoo. Vamos descansar por uma hora. Quem quiser pode
passear por a. Os bosques so belssimos, porque ainda temos uma boa reserva de Mata
Atlntica aqui no alto. Cuidado com as escarpas, hein? Hein? Cobras? No se preocupem.
As cobras so mais covardes do que vocs...
Os alunos haviam trazido seus lanches e espalharam-se, cobrindo com sua alegria
o topo do pico do Jaragu. Iara correu at o nibus, para buscar o sanduche que trouxera.
Quando voltou, quase no havia nenhum colega vista.
"Cad a Adele?", pensou ela, procurando companhia.
Desembrulhou o sanduche e meteu-se por entre as rvores, fugindo do sol forte. A
mata era fresca e acolhedora. Pssaros de todos os tipos ali se refugiavam da poluio da
cidade, enchendo o bosque de msica. Um esquilo aproximou-se da menina, de p nas
patinhas traseiras, acostumado a receber sobras dos lanches dos excursionistas.
Iara ia sentar-se numa raz alta, quando ouviu uma conversa sussurrada, pouco
mais adiante. Avanou alguns passos na direo das vozes e estacou, surpresa: num leito
de folhas amarelas, Desmond estirava-se, com o corpo de Adele quase sobre o dele.
"Desmond! E Adele!"
Dali vinham os sussurros, dali emanava uma onda de carinho, dali comeava a
mover-se a avalanche do desespero de Iara. Aturdida, a menina mal ouvia o que era dito
entre os dois, mas, vendo, foi como se ouvisse tudo. E tudo presenciou:Adele acariciava
lentamente os longos cabelos de Desmond, tirando-lhe pedacinhos de folhas que haviam
se enredado durante a caminhada atravs da mata. Desmond parecia repousar, olhos
semicerrados, recebendo a carcia da brisa que afastava o calor e relaxando com a ternura
das mos de Adele.
Iara sentiu como se algum a estivesse estrangulando. E foi contendo a respirao
que ela continuou a testemunhar a cena.
Adele trabalhava os cabelos do garoto devagar, devagarinho, saboreando pelo
tato aqueles fios grossos, que eram parte dele. Parecia no querer encontrar todos os

pedacinhos de folhas, para prolongar o trabalho. Os dedos roavam por seu rosto,
enfiavam-se atrs da nuca, tocavam os ombros... Adele parecia desejosa de que aquela
tarefa durasse por todos os sculos dos sculos, desejosa de continuar dedilhando aqueles
cabelos ao infinito, por um nmero inominvel de vezes...
Desmond erguia-se, apoiando-se num cotovelo. Os olhos encontravam-se,
contando o que os dois leves sorrisos proclamavam com clareza.
Logo estavam sentados sobre as pernas, com as calas de brim enfeitadas pelas
folhas amareladas. Adele baixava a cabea, brincando com o leito de folhas, que escondia
a terra. Ele baixou tambm a cabea, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os
dela... Desmond fitava-a com uns olhos ternos e a posio os fazia splices...
"Um beijo! um beijo que ele est suplicando!" Rindo, provocadora, Adele
punha-se de p. Desmond erguia-se junto com ela e passava os braos em volta de sua
cintura. Puxava-a para si. Faceira, Adele fazia-se de difcil, recuando o busto.
Com a insistncia do rapaz, o busto afinal cedeu, mas a cabea no queria ceder
tambm e, cada para trs, inutilizava os esforos da boca de Desmond, que procurava
avidamente a sua. De repente, atirando-se para a frente, enlaando seu pescoo, Adele
colou-se gulosamente aos lbios de Desmond, entregando completa e apaixonadamente o
que fingia recusar ainda havia pouco. Foi um beijo frentico, imenso, avassalador...
A paisagem sombreada comeou a girar, como se uma ventania destruidora
prenunciasse uma tempestade, e os elementos enfurecidos invadiram o interior de Iara,
explodindo sua alma em troves. Cambaleando, a menina afastou-se,

aos poucos

conseguiu acelerar o passo, a custo recuperou o equilbrio e correu, doidamente, como se


um lobo de histrias infantis houvesse surgido no bosque disposto a devor-la. Chegou
sem rumo nem idia clareira onde ficava a construo que acolhia os excursionistas. Mal
pde chegar ao banheiro e vomitar o sanduche que no havia comido.
Adele e Desmond voltaram juntos, agarradinhos, na mesma poltrona de um dos
nibus.
No outro nibus, Iara tentou isolar-se. Seus olhos estavam esbugalhados, em
pnico, sem nada fixar.
O que houve, fofinha? Que cara essa?
Emlio vinha balanando o corpo junto com o andar do nibus. Vinha trazer carinho
e oferecer simpatia. Como sempre, esperando o calor e a companhia da menina, de quem
ele no parecia desistir. Naquele momento, porm, quem visse a expresso de Iara,
respondendo muda ao rapaz, pensaria que um dos erros da engenharia dos seres humanos

foi deixar-lhes unicamente os braos e os dentes, como armas de ataque.


Isso porque os olhos bastariam.
O rapaz voltou para o fundo do nibus, entendendo o recado.
Iara manteve-se como sonmbula at chegar em casa. Havia conseguido escapar
dos colegas, da insistncia de Emlio, mas no escapava de si mesma. Correu para o
quarto e entrou atrs de si. Falava-se, perseguia-se, atirava-se cama, e rolava consigo, e
chorava, e abafava os soluos com a ponta do lenol.
S conseguiu dormir de madrugada, entorpecida pela dor.

4. Fazendo sangrar a mistura


Para Iara, a viagem a Ribeiro Preto tinha significado nova tortura, mais algumas
horas dentro de um nibus, tendo de testemunhar a continuao dos agarramentos entre
Desmond e Adele, tal como no retorno da excurso ao pico do Jaragu. Agora, depois da
vitria, no havia satisfao em sua alma. S a expectativa de mais horas sob o mesmo
tormento.
Vamos l, meninas! chamava a treinadora Maria Helena, batendo palmas.
A diretoria do Anhanguera ofereceu um lanche pra gente. S temos quarenta minutos at a
sada do nibus. No se percam por a, hein? Em meia hora quero todas aqui na frente do
ginsio com suas mochilas, prontas para a partida.
Joo Massa saa carregando uma rede cheia de bolas. Quase esbarrou em Adele
e fez aquela cara de gozao j conhecida de todos:
Como , cafezinho? bom no esfriar, porque o seu leite j est vindo a!
Depois da surra que Iara havia dado no colega malcriado, o professor de
Educao Fsica dos rapazes era o nico que ousava fazer piadas com a cor de Adele. Mas
naquele momento a menina nem parecia ouvi-lo, com os olhos postos bem atrs do
gigantesco treinador, que em anos distantes j havia jogado na Seleo.
Da sada do vestirio masculino, Desmond vinha abraado ao garoto Milto, que
ria feliz, como criana que tivesse passado uma tarde no parque de diverses.
O rapaz logo avistou Adele e em um instante estavam nos braos um do outro.
Oi, campe!
Eu te amo, campeo!
Iara pegou um sanduche da bandeja que havia sido deixada numa mesa da

entrada do ginsio e afastou-se.


Roberta segurava um refrigerante, isolada de todos. Iara percebeu que o olhar da
colega perdia-se no vazio, na certa tentando sonhar consigo mesma em quadra, alvo dos
aplausos da torcida. Mas Roberta era agora apenas a levantadora reserva.
"Est tristinha, boneca?", pensava Iara, olhando de longe. "Ento somos duas...
Ser que qualquer um pode ler as emoes no meu rosto como eu posso ler no da
Roberta? No! No posso deixar que ningum saiba o que eu sinto. Meu dio somente
meu!"
Encostada do lado de fora de uma das colunas de concreto da entrada do ginsio,
Iara aproximou o sanduche da boca. Deteve-se. No meio do po de frma, l estavam
juntas uma fatia fina de rosbife, marrom como a pele de Adele, e outra de queijo, amarelo
como os cabelos de Desmond.
"Adele e Desmond... Juntos..."
Uma rodela de tomate completava o conjunto. Com as pontas dos dedos, Iara
esfregou o tomate sobre o rosbife e o queijo, fazendo sangrar a mistura.
Uma lgrima quente escorria-lhe pela face, quando

Iara fechou os dentes

furiosamente no sanduche.
Na hora de embarcar no nibus que levaria os jogadores do Queiroz de volta a So
Paulo, Iara escolheu a poltrona logo atrs de onde j estavam Desmond e Adele e ali
sentou-se sozinha.
Apesar do cansao, a sada do nibus comeou com balbrdia, cantoria, batucada
e alegria pelas duas vitrias. Eles saam como vencedores e tinham o que comemorar.
Bola pr alto, bola no cho! O Queiroz campeo!
E a, Taka? brincava Caca, sabendo que o colega havia recebido um convite
para treinar num clube profissional.

J desistiu da engenharia? Vai viver de vlei,

japons?
O vlei tambm engenharia, Caca... E eu no sou japons. Sou mais
brasileiro que voc, sabia?
Risadas, risadas, risadas...
Essa a gente j papou! O Anhangera j era!
Vai virar Anhanguera Ah, ah!
Ainda no acabou, pessoal informou Joo Massa. Acabei de saber que o
Cultura Mndi tambm se classificou hoje. No masculino e no feminino, como a gente. A
guerra final vai ser contra eles!

Quer dizer ento que a grande final vai ser em Santos? Boa! Vamos pegar uma
praia, pessoal!
O Cultura Mndi? Puxa, eles no so de brincadeira...
Olha o Milto! J ferrou no sono, o bebezinho!
Ei, Leo. V se o Milto dorme chupando o dedo! Ah, ah!
Deixem o menino em paz, pessoal! vinha l da frente a voz de dona Maria
Helena. Que tal todo mundo tentar dormir? A viagem vai ser longa e ningum tem
dispensa das aulas amanh...
Aos poucos, a excitao foi diminuindo e o balano do nibus comeou a embalar
os jovens exaustos.
No escuro, algum se aproximava para invadir a idia fixa de Iara. Era Emlio e
sentava-se a seu lado.
Oi, fofinha. Que tal os dois atacantes que mais marcaram pontos hoje passarem
juntos as prximas horas?
Iara via a brancura dos dentes de Emlio brilhando intermitentemente na medida da
passagem dos postes de iluminao da cidade que o nibus comeava a deixar para trs.
Ah, Emlio... Estou cansada...
Ento que tal a gente descansar juntos?
Voc no est com jeito de querer descanso, Emlio... O rapaz pegou a mo de
Iara e falou, srio:
Eu gosto de voc, fofinha. Voc sabe quanto eu gosto de voc...
Iara encarou o rapaz, com um tipo diferente de seriedade. Uma expresso quase
de repulsa:
O que voc est precisando de algum que levante alguma coisa a de voc.
Esse no o meu jogo. Eu s sei cortar. A Adele est ocupada, mas por que voc
no vai procurar a Roberta? Ela a levantadora reserva...
Emlio suspirou profundamente:
Iara, Iara... Por que esse cinismo? O que eu fiz pra voc?
Voc no fez nada, Emlio, nem vai fazer. Olha, desculpe, mas eu estou
cansada mesmo. No estou a fim de ficar com ningum.
O rapaz fez uma pausa mnima, desviando os olhos de Iara, e continuou:
Sabe, fofinha? Voc me fez lembrar um conto que uma professora de Portugus
mandou a gente ler na stima srie. Chama-se "Serespaperconfi". Voc j leu?
Iara nada disse.

Um conto diferente... um jogo de palavras com os verbos de ligao: ser,


estar, parecer, permanecer, continuar e... ficar... completou o rapaz, enfatizando a ltima
palavra.
Olha, aqui, Emlio, nessa hora, tudo o que eu no estava precisando era de uma
aula de Gramtica...
Emlio fez que no ouviu:
No conto, tem uma garota que no quer ficar com um cara. Ela est a fim dele
de verdade e quer viver todos os verbos de ligao com o cara e no apenas ficar com ele...
Iara mudou um pouco de ttica, amansando a voz:
Emlio, por favor. Eu no estou querendo nenhuma ligao agora. No quero
ser coisa nenhuma, nem estar, nem parecer, nem permanecer, nem continuar e muito
menos ficar. Tenho prova de Geometria amanh e me matei na quadra. As garotas do
Anhangera no deram moleza. Este nibus tem mais de quarenta lugares e ns somos
apenas vinte e seis, contando com o Joo Massa e com a dona Maria Helena. Deixa eu me
esticar nesta poltrona, deixa? Amanh a gente conversa melhor, est bem?
O rapaz no discutiu. Levantou-se, obediente, e baixou o rosto para a menina,
procurando um beijo. Iara ofereceu-lhe a face e forou um sorriso.
Boa noite, fofinha...
E pare de me chamar de fofinha que eu no sou almofada!
Ouvindo a retirada do rapaz, Iara afofou a mochila no apoio de brao do lado da
janela e encolheu-se, tentando deitar-se do melhor jeito possvel na poltrona dupla.
No tecido da mochila, esfregou o rosto com raiva, para apagar o beijo de Emlio,
que mais uma vez havia suspirado desolado, ao afastar-se.
"Pelo jeito esse da vai passar a noite suspirando... Boboca!"
J haviam alcanado a estrada e as luzes da cidade afastavam-se,
acompanhando o cansao de todos, que j comeava a arrefecer o entusiasmo. Aos
poucos, somente um cochicho daqui e dali rivalizava com o ronronar montono do motor.
Desconfortavelmente deitada, Iara mantinha os olhos abertos, fixos no pequeno
intervalo entre os dois encostos das poltronas sua frente. No escuro, mal dava para
perceber pequenos trechos do namoro que se desenrolava entre Adele e Desmond.
"Sussurros... tlec, tlec... estalidos de beijocas... Mais sussurros... O que ser que
esses dois esto dizendo? "Ai, ai, ai, te amo, Adele"... "Ai, ai, ai, te amo, Desmond"...
Cretinos!"
Ela queria estar naquela poltrona, envolta por aqueles braos, sentindo aquele

calor, recebendo aqueles beijos... As lgrimas voltaram a rolar, abundantes.


"Que dio! Eu no quero chorar, no posso chorar. No por causa desses dois!"
Pescando uma palavra aqui, outra ali, Iara foi conseguindo retirar algum sentido do
dilogo apaixonado que se entremeava entre os beijos:
Est com sono, amor?
Hum... Eu no queria dormir, pra ficar mais tempo com voc... Mas, ao mesmo
tempo, estou louca para pegar no sono, s pra ter um sonho lindo... um sonho com voc...
Pois fique sabendo que meu sonho vai ser ainda mais lindo, Adele. Porque vai
ser com voc...
"Mais tlec, tlec... cuspe com cuspe!"
Desmond... olha aqui... Eu sempre uso essa medalha, voc j notou?
claro que sim...
a minha primeira medalha ganha no vlei. Eu estava no infantil. o meu
trofu. Pegue. Ela agora sua. Quero que voc a use para sempre...
Oh, Adele...
"A medalhinha! Maldita! Ela deu a medalhinha pra ele. Ah, eu preciso dar um jeito
de... O que eu vou fazer? O que eu posso fazer para que essa metida sinta a mesma dor
que eu estou sentindo? Oh, eu queria que esse safado se metesse com outra para que essa
Adele descobrisse o que bom pra tosse! Espera a: e se eu conseguir envolver o
Desmond com outra? Boa! Mas com quem? claro, tem a Cssia! Tem de ser ela! Todos os
garotos acham aquela c-d-efe a mais gostosa da classe. uma cretina, uma puxa-saco e
a mais fcil de embrulhar que eu conheo. Anda toda feliz com o lugar de capita da equipe.
Humpf!"
Encolheu-se, apertou os braos em torno de si, como se quisesse abraar a si
mesma.
"Ah, eu nunca vou esquecer daquela tarde... Dona Maria Helena, oferecendo o
lugar de capita pra Adele e ela, toda cheia de nobrezas, dizendo que agradecia, mas que
no era justo, que o posto de capita devia ir para algum mais antigo no time. E a mais
antiga era justo a bestalhona da Cssia! Alm disso, tenho certeza de que a bobona
tambm est cada pelo Desmond, ah, isso ela est! Pensando bem, acho que no vai ser
difcil... Eu s precisava encontrar algum pra me ajudar, no posso fazer tudo sozinha..."
Para fechar seu plano, resolveu aproveitar a primeira deciso da treinadora, que
desbancara a antiga levantadora do time e dera seu lugar para a nova jogadora que
acabava de matricular-se no Carlos Queiroz Telles. E a coitada da Roberta tinha ficado sem

nada. Sem o lugar de levantadora titular e sem o posto de capita. A alma da garota agora
era um campo frtil para Iara semear urtigas:
"A Roberta! "Eu queria que essa negra quebrasse a perna!", no foi isso que voc
resmungou, Roberta? No voc que anda com cara de trouxa invejando as vitrias de
Adele, enquanto voc fica esquentando o banco de reservas? Ah, ah, ento voc est
prontinha pra me ajudar a esmagar esse rosbife! isso! Vou destruir essa paixo babaca
dos dois. Ah, e o Desmond vai voltar pra mim, vai descobrir que aqui, do meu lado, que ele
tem de se amarrar! Ai, Desmond..."
Os rudos do namoro apaixonado que se desenrolava sua frente alimentavam
ainda mais sua dor e faziam crescer o dio:
"Vingana! Ah, como um veneno, essa idia me corri as entranhas. por isso que
nada, nada, acalmar minha alma, at o dia em que eu conseguir dar o troco: traio por
traio. Vou transformar esse amor em dio e a ponte que leva o amor ao dio o cime!
Tenho de despertar dentro da alma de Adele o cncer do cime, at que ela perca a razo.
Se ela engolir a isca, essa Cssia estar na minha mo, para o uso que eu quiser. a, a
que eu farei a minha cama, muito bem feitinha, at que Desmond volte a deitar-se nela!"
Procurava fechar-se dentro de si mesma e no ouvir os rudos de amor das
poltronas sua frente.
"Enquanto isso, preciso fazer com que Adele goste ainda mais de mim e me
agradea... Ah, ah! Ela vai me agradecer exatamente porque eu vou fazer com que ela
represente o papel de uma perfeita, de uma grandissssima burra. Depois, s roubar a
certeza que ela tem do amor de Desmond e lev-la loucura!
Todo o plano j est na minha cabea. Ai, tudo to confuso... Mas o que mau
torna-se bom com o uso!"
Alheios dor que provocavam no corao de Iara, Desmond e Adele tocavam-se,
trocavam risadinhas excitadas, pesquisavam-se, conheciam-se...
"Hum, mas que namorinho mais besta! Vamos, pega a mozinha dela, pega... E
a?
Cochichos no ouvido? Muito bem... sorrizinhos para a negra... Ah, eu vou te pegar,
Adele, eu vou te pegar... Olha s: agora so beijinhos nos dedos machucados pelo jogo?
Mas que beijos, sim senhora! Mas que paixo, hein? O qu? Mais beijinhos nos dedos?
Pena que esses dedinhos no te sirvam de supositrio!"
Aos poucos, o cansao venceu e Iara mergulhou no sono, imergindo em seus
pesadelos de vingana.

5. Do jeito que ele


Ai, Iara, estou morrendo de sono! Cheguei em casa s depois das duas da
madrugada... E mal consegui dormir, pensando na partida de ontem...
Eu tambm, Adele. Eu tambm mal consegui dormir...
A manh de segunda-feira comeava febril, primeiro com os colegas querendo
saber detalhes das duas vitrias sobre o temvel Colgio Anhangera e depois com o
imenso risco que representava enfrentar uma prova de Geometria cansados como estavam
os jogadores do segundo ano. E daquela classe faziam parte Iara, Adele, Cssia, Leo,
Roberta e mais trs reservas: Toms, Malu e Lorena. Todo mundo alegre com as vitrias e
exausto pela noite mal dormida.
De braos dados, Iara e Adele subiam as escadas comentando os perigos daquela
prova. O professor Valongo, de Geometria, era o mais severo do corpo docente e
verdadeiro terror para todo o Colgio Carlos Queiroz Telles.
Pra mim, acho que est tudo bem, Adele. Estudei bastante, na sexta e no
sbado, antes da viagem. Essas frmulas malucas j esto na ponta da lngua...
Adele sorriu marota, apertando o corpo contra o da amiga e confessando uma
malandragem:
Eu tambm estudei e acho que est tudo decorado, Iara. Mas, por via das
dvidas, no quis confiar na ponta da minha lngua e anotei as frmulas com letra mida
num papelzinho, que est bem aqui, na bainha da camiseta...
"Uma cola? Ela vai colar na prova? Hum... preciso dar um jeito de tirar vantagem
disso..."
Uma cola, Adele? Boa idia... Se eu precisar, voc me empresta?
claro que empresto. Voc a minha melhor amiga, no ? E alm disso
nossas carteiras ficam praticamente coladas uma na outra. O Valongo nem vai perceber.
Ento, t. Se eu fizer com os dedos o sinal que voc faz para a jogada de dois
tempos, que preciso da cola. E voc me passa quando o Valongo no estiver olhando.
Confie em mim. Do jeito que eu sempre confiei em voc.
claro, querida. Nenhuma de ns capaz de deixar a outra na mo, no ?
Eu te adoro, Iara!
Eu te adoro, Adele!

Misturaram-se ao empurra-empurra da entrada em classe e j estavam sentadas


quando o professor Valongo chegou.
Como toda a classe esperava, tratava-se de uma prova durssima, cheia de
armadilhas, como sempre eram as provas daquele professor. Iara conseguia lembrar-se
bem das frmulas e na certa conseguiria uma nota bem razovel. Roberta cabeceava com
a lapiseira na mo, morta de sono.
"Pelo jeito, o Valongo vai satisfazer o seu sadismo ao corrigir em vermelho a prova
da Roberta..."
Olhou de lado. Adele fazia os clculos normalmente, sem demonstrar qualquer
aflio. Parecia estar se lembrando de tudo. No precisaria recorrer cola.
" agora..."
Com os dedos, fez discretamente o sinal de "dois tempos". Adele percebeu e tirou
um papelzinho dobrado da bainha da manga da camiseta. Valongo caminhava lentamente
entre as carteiras, de olho nos alunos. Passou pelo corredor entre as duas amigas e
continuou. Num gesto rpido, Adele estendeu o brao e passou a cola para Iara.
" agora..."
Fingindo nervosismo, Iara pegou o papel desajeitadamente e deixou-o cair no
cho.
Na mesma hora, fez um pequeno rudo de surpresa, muito baixo, mas o suficiente
para ser ouvido pelo professor.
Ahn...
Que foi?
Valongo voltava-se, com a cara fechada. No cho, no espao entre as duas
carteiras, l estava o papelzinho.
Hum? O que isso, hein? A faxineira no varreu essa sala, ?
O professor abaixou-se e pegou o papel. Desdobrou-o e exibiu aquele sorriso
sdico com que brindava qualquer aluno em dificuldades.
Ora, ora, ora! Ento temos aqui um belssimo resumo da matria! Mas que
trabalho bem-feito! Vamos l, de quem esta cola to caprichada? E ento? Quero
cumprimentar o autor da faanha...
Foi como se um vento gelado, austral, tivesse percorrido a sala de aula. Os alunos
ficaram em suspenso e o vo de um mosquito poderia ser ouvido.
O vento gelado parecia ter atingido principalmente Adele. Seus lbios comearam
a abrir-se, sabendo que teria de entregar-se, pois, se ningum se acusasse, Valongo daria

zero para todos os alunos das duas fileiras.


minha, professor... A cola minha. Desculpe...
A boca de Adele abriu-se mais ainda: quem acabara de falar tinha sido Iara,
entregando-se em seu lugar, assumindo o zero na prova por ela, salvando seu pescoo!
O sorriso sdico de Valongo escancarava-se agora. Ele parecia feliz ao extravasar
seu cinismo:
Muito bem, Iara. Parabns pela cola. Pode me entregar a prova, por favor.
Como prmio, voc pode sair mais cedo da sala com a vantagem de ficar sabendo antes
dos outros qual ser sua nota. Mais uma vez, parabns...
Iara era um pouco mais alta que o professor. Levantou-se e encarou-o com a
expresso mais inocente do mundo:
Desculpe, professor.
Sem voltar a cabea, percebeu que os olhos de Adele estavam cheios d'gua. De
surpresa e gratido. "Deu certo!"
Altiva, saiu da sala de aula.
Faltavam ainda uns dez minutos para o sinal e Iara treinava saques sozinha na
quadra do colgio, quando Adele chegou correndo, depois de ter entregue a prova de
Geometria.
Parou a dois passos de distncia e as duas se encararam. Adele olhava com olhos
de lgrimas para o sorriso tranqilo da amiga.
Num repente, uma jogou-se na direo da outra, num abrao apertado, intenso,
agradecido.
Iara, voc demais! Eu nunca ia imaginar que...
Voc no precisa imaginar nada. Minha mdia no est m em Geometria. Esse
zerinho no vai ser uma catstrofe. Voc precisava mais de nota do que eu.
Mesmo assim! Olhe, eu nem sei o que dizer... eu...
No precisa dizer nada, minha amiga. Eu no falei que voc sempre podia
confiar em mim? E, depois, a culpa foi minha. Nem sei como fui deixar cair a cola bem nas
barbas do Valongo.
Adele bateu duas vezes uma bola no cho e levantou-a, como se estivesse
servindo numa partida de vlei, como se procurasse oferecer um presente em retribuio
ao imenso sacrifcio que a amiga tinha acabado de fazer por ela. Iara pulou e cortou forte,
com fora, com raiva, agressiva, e a bola bateu no alambrado, com estrondo.
Rindo e brincando, uma tomou o brao da outra e sentaram-se numa mureta ao

lado da quadra.
No precisa contar pra ningum a histria da cola, Adele. Isso fica entre ns.
Ah, isso no, Iara! Da todo mundo vai ficar achando que voc teve culpa, que a
cola era sua. E eu no...
Tudo bem, Adele cortou Iara. Estou pouco ligando para o que os outros
pensem ou deixem de pensar. Ningum tem nada com a minha vida.
Adele no conseguia aceitar tanta generosidade da amiga:
Mas, desse jeito, a turma vai pensar que voc uma coisa que voc no ...
A gente do jeito que a gente faz com que a gente seja, Adele. Minha alma um
jardim e a minha vontade o jardineiro! Eu sou o que minha vontade quer que eu seja!
Adele enlaou o brao de Iara, encostou a cabea em seu ombro e suspirou
profundamente, feliz com a fora e a amizade daquela colega que no hesitava em
sacrificar-se por ela.
Suspiros? sorriu Iara. Acho que um suspiro fundo como esse estava
reservado para outra pessoa, no estava?
Olhando longe, para os lados do porto de sada para o ptio, sem nada fixar, s
espera do sinal para o recreio, quando seu namorado por ali apareceria, Adele abriu o
corao para sua amiga to querida e a quem ela tanto devia:
O Desmond especial, Iara. Amadurecido que s vendo! Muito mais homem do
que eu sou mulher... Quando eu estou longe dele, as horas levam sete vezes mais tempo
pra passar...
Ento bom o Desmond aparecer logo, seno, quando ele chegar, vai
encontrar uma velhinha coroca ao lado de uma garota novinha e gostosa como eu!
Ah, Iara! Voc demais!
Demais so esses ingleses. Na verdade no so de todo maus, apesar
daqueles olhos de gua que so o diabo! Voc j reparou nos olhos do Desmond? So
como os de um cigano, dissimulados, como quem olha de lado, querendo esconder alguma
coisa...
Adele apenas sorriu com a brincadeira e continuou:
Que gosta de mim, isso ele no esconde, Iara. O Desmond demais mesmo.
Sabe? Eu no esperava encontrar to cedo algum de quem eu pudesse dizer que
" o homem da minha vida". Essa frase sempre me pareceu uma coisa velha, fala
exagerada de novela barata. claro que, desde que me senti mulher, eu sonhava com um
prncipe encantado, com algum especial, que um dia surgiria na minha vida e me levaria

para sempre, na garupa de seu cavalo branco...


Ou, no mnimo, no banco do carona de uma Ferrari conversvel branca...

brincou Iara.
Como se no tivesse sido interrompida, Adele procurava desenhar com palavras a
imagem idealizada de seu amor pelo rapaz:
Mas agora... Agora eu descobri que nem sabia sonhar direito: o Desmond
muito mais do que minha pobre imaginao poderia ter criado. Ele ... Ora, mas o que eu
estou dizendo? Voc sabe como o Desmond! Vocs namoraram no ano passado, antes
de eu me transferir para o Queiroz, no foi?
Iara deu de ombros, sem encarar a amiga:
Voc sabe que foi. Um namoro breve, quase nada, muito pouco... No podia
durar muito, do jeito que o Desmond...
Do jeito que ele ? De que jeito ele ?
Iara levantou o queixo de Adele, olhando-a carinhosamente nos olhos:
O que isso, menina? Voc acha que, como amiga, eu seria capaz de fingir um
sentimento que eu no tivesse de verdade? Desmond

do jeito que voc falou:

ma-ra-vi-lho-so...
Adele afastou-se um pouco, sorrindo, como se a colega tivesse proposto uma
brincadeira, mas com um leve e ressabiado franzir de sobrancelhas:
Pois voc no parece achar nada disso dele, dizendo que "o namoro no podia
durar muito, do jeito que o Desmond ". Ah, vai, fala, Iara. Se voc minha amiga, me diga:
como foi o namoro de vocs dois?
O sinal tocou naquele momento. Iara levantou-se, olhando com tranqilidade para
Adele:
Foi o que todo mundo sabe. O Desmond danado quando v mulher...
Como assim?
Nada, Adele. que ele vivia falando aquelas palavras bonitas dele, mas eu
soube que ele no estava nem a pra essa histria velha, essa tal de "fidelidade". Por isso,
mandei ele andar...
Naquele momento, quem observasse a expresso de Iara tambm haveria de
achar errada a engenharia humana que teria criado apenas as pernas como alternativa de
fuga. Para fugir, bastariam certas expresses do olhar.
Adele tambm estava de p, agora claramente preocupada:
O que voc est dizendo?

Nada mesmo, Adele. As pessoas mudam. Quando a gente namorou, acho que
ele ainda era muito criana, estava comeando a descobrir que existe mulher no mundo.
Pode ter mudado muito, do ano passado para c. Me diga: voc pode confiar no Desmond?
claro que eu posso confiar nele, Iara. Aposto a minha vida nisso!
A zoeira dos estudantes que desciam para o recreio explodiu no porto do ptio.
Iara colocou as duas mos nos ombros da colega e sorriu:
claro que pode! As coisas mudam. Nem precisa ficar de olho, Adele. S
porque ele traiu uma vez, isso no quer dizer que venha a trair de novo...

6. Eu sempre estarei por perto


A aula seguinte ao intervalo era de Educao Fsica e dona Maria Helena
dispensou os alunos que haviam jogado na vspera:
A vitria de ontem foi sensacional, meninos. Descansem por hoje. O cansao
muscular pode causar uma contuso e eu no quero que nosso time tenha de enfrentar a
final contra o Cultura Mndi desfalcado por qualquer besteira. O Leo, a Malu, a Lorena, a
Cssia, a Iara, a Adele, o Toms e a Roberta esto dispensados da aula de hoje. Fiquem
por a se quiserem, quem quiser pode ir para a biblioteca ou para a sala de computao.
Mas nenhum de vocs toca em bola hoje, t bem?
No passou nem um minuto e a classe do terceiro B despencou no ptio. Perto de
Iara, duas colegas conversavam:
O que houve?
Era aula de Biologia. A professora voltou pra casa. Voc sabe que ela est
esperando nen, no ? Parece que ficou com enjos...
Desmond aparecia no meio da turma do terceiro B e acenava para Adele.
"Hum... claro que o primeiro a descer para c tinha de ser o Desmond, no tinha?
E l vem ele, com a medalhinha da Adele no pescoo...", Iara via o garoto
abraar-se levantadora titular do time feminino. "Desmond, Desmond, tudo o que eu vou
fazer vai ser s pra voc voltar pra mim, meu amor... comigo que voc tem de estar,
Desmond..."
Mas, alheio aos sonhos de Iara, o rapaz pegava Adele pela mo e a levava para
trs de uma coluna, conhecida pelos alunos do Queiroz como "o canto dos amassos",
embora naquele colgio fosse comum encontrar casaizinhos em qualquer canto. Ali, os

adolescentes pareciam no ter outra ocupao, nem os cantos outra utilidade.


Sorrateiramente, Iara encostou-se do outro lado da coluna.
"O que ser que ela vai dizer? Ser que o veneno que eu injetei j est fazendo
efeito?"
Depois do rudo habitual de mucosas e salivas, Adele perguntava, delicadamente:
Desmond... eu queria saber uma coisa...
O que , meu amor?
Como que foi o seu namoro com a Iara?
Ora, por que isso agora? Foi uma coisa curta, passageira...
"Passageira, ? Curta, ? Voc vai ver uma coisa, Desmond, voc ainda no viu
nada..."
Por que vocs acabaram, hein? Foi por causa de outra garota?
Nada disso, Adele. Eu no sou assim. A Iara muito ciumenta, isso. Vivia
imaginando coisas, achando que eu estava olhando pra outras garotas. Isso chato, depois
de algum tempo...
"Chata, eu?! Miservel!"
Uma pequena pausa. Em seguida, a voz de Adele continuava:
E agora? Voc anda olhando pra outras garotas?
Como que eu posso prestar ateno em qualquer gatinha quando eu tenho
voc do meu lado, meu bem? Voc foi minha primeira descoberta, o maior diamante que
esse garimpeiro aqui podia encontrar na vida, Adele...
A frase do rapaz derretia a pequena pedra do gelo do cime que havia sido
implantada por Iara. Adele derretia-se junto e entregava-se:
Ento voc nunca mais vai precisar garimpar, meu amor. Nunca mais. Se eu
sou um diamante, voc meu anel de ouro. E eu vou me engastar em voc, pra sempre,
querido...
Adele... Toda minha vida achei que eu era o que de mim eu tinha feito e que
sempre seria aquilo que de mim eu estivesse fazendo. Mas da surgiu voc. Agora eu sei
que s serei aquilo que voc fizer de mim, aquilo que voc est fazendo de mim, minha
Adele...
Em Adele no havia mais cime, nem um pingo:
Oh, que lindo, meu garimpeiro poeta!
Eu te amo, Adele...
Eu te amo, Desmond...

Lutando contra a lgrima que queria rolar, Iara afastou-se da coluna para no ouvir
outra vez o rudo de salivas e mucosas se esfregando, como sola de borracha em piso
encerado.
Andou a esmo, sem querer na direo da biblioteca, s pensando em sair do ptio
e afastar-se da felicidade de Adele e Desmond.
A biblioteca do Colgio Carlos Queiroz Telles era ampla. Uns poucos alunos do
terceiro ano espalhavam-se pelas mesas, s voltas com alguma pesquisa. Dos jogadores
dispensados da classe de Iara, s Lorena estava ali, com um livro aberto na frente.
Aproximou-se da colega:
O que voc est lendo?
Uma pea de teatro. o Otelo, do Shakespeare. Eu adoro teatro! Vou ser atriz,
sabia?
"Humpf...", pensava Iara ao afastar-se. "Essa metida a intelectual fica lendo essas
drogas... Aposto que esse Shakespeare deve ser uma velharia coberta de teias de aranha!"
Passou pela prateleira especial, onde ficavam sempre expostas todas as obras do
escritor Carlos Queiroz Telles, que dera seu nome escola, e parou diante das estantes
repletas com os romances clssicos da literatura brasileira. Lado a lado, ela contou dez
exemplares iguais de Dom Casmurro, de Machado de Assis, leitura obrigatria do bimestre
para o segundo ano.
"Mais velharias... Bom, acho que os alunos ingleses tambm tm de sofrer como a
gente. Aposto que l eles so obrigados a ler esse chato do Shakespeare, como a gente
tem de ler essas chatices do Machado. O Desmond nasceu na Inglaterra... Ah, ah, em vez
de ficar livre do Shakespeare, caiu nas mos do Machado!"
Ainda nem tinha comeado a encarar a tal "leitura obrigatria do bimestre" e pegou
um dos exemplares do Dom Casmurro. Deu uma olhada no texto da orelha do livro.
"... a perfeio de um grande amor destrudo pelo cime... Hum! Talvez esse livro
no seja assim to velho, afinal de contas. Se o cime o remdio que eu vou usar para
destruir um grande amor, acho que esse romance est voltando moda..."
Atrs de si, o calor de um corpo, o carinho de uma voz masculina:
Oi, fofinha!
Ai, Emlio! O que voc quer, hein?
Eu pensei que todo mundo j soubesse: voc!
Eu o qu?
voc que eu quero.

Iara revirou os olhos para o alto:


Que voc quer encher, isso sim. Sai da, que voc muito grande e est
fazendo sombra aqui no meu livro.
O rapaz tocou levemente o brao de Iara. Olhou-a srio, compenetrado como um
mdico olharia para um paciente:
O que h com voc, fofinha? Voc anda to mudada de uns tempos pra c... O
que que anda preocupando voc?
Minha nica preocupao com os colegas chatos que me impedem de ler o
livro do bimestre em paz.
Deixa disso, Iara. Voc no est bem, eu sei que no est bem. Se voc no
quer nada comigo, no faz mal, mas pelo menos me deixe ajud-la. Voc anda com uma
expresso esquisita, assim como...
Como o qu? Vamos, Emlio, me diga, como o qu?
O rapaz sorriu, procurando aliviar a tenso entre os dois.
Sei l... Voc vai achar que eu estou maluco, mas outro dia, no recreio, voc me
lembrou um filme do Disney, Branca de Neve e os sete anes...
Se fosse agora, eu diria que estou igualzinha ao Zangado! Voc ficou maluco
mesmo!
Pode ser, mas voc estava com a expresso exata da rainha, quando o espelho
mgico diz que Branca de Neve mais bonita do que ela...
Maluco e malcriado! Isso coisa que se diga, Emlio?
, sim, porque eu acho a rainha muito mais gostosa do que a Branca de Neve.
L vem voc...
Desculpe a brincadeira, Iara. Mas a gente se conhece h mais de um ano,
desde que voc entrou no Queiroz e virou titular do time de vlei. E eu nunca vi uma
expresso como aquela em voc. Parecia, parecia... maldade!
que eu sou mesmo a rainha da Branca de Neve, seu bobo! Eu sou m, sou
m! Eu viro bruxa nas noites de lua cheia!
Nas noites de lua cheia gente vira lobisomem, Iara...
Ento eu viro "lobismulher". Sou devoradora de homens! Ora, v se pra de me
encher!
Dos fundos da biblioteca, a encarregada levantou-se com o "psiu" regulamentar e
a bronca esperada:
Aqui no lugar de conversa, meninos. Silncio!

Iara espalmou a mo no peito do rapaz, enfadada:


Chega, Emlio. Me deixa em paz, preciso estudar.
O rapaz abaixou-se, enfiando o rosto nos cabelos cheirosos da menina e
sussurrando-lhe ao ouvido:
Voc no m, fofinha. Voc tima. S est confusa. Eu quero ajudar...
Por um instante, o calor da proximidade de Emlio fez Iara estremecer e a menina
sentiu um mpeto de abra-lo. Refreou-se, mas no o afastou.
Lembre-se, Iara. Se voc precisar de ajuda, pode contar comigo.
Est bem... respondeu a menina, num suspiro. Vou lembrar...
Os lbios quentes de Emlio roaram-lhe o rosto. Ela queimou.
Estou por perto, Iara. Lembre-se disso, sempre estarei por perto.
Emlio virou-se e saiu da biblioteca.
Nas mos de Iara ficou o exemplar do Dom Casmurro. Sentou-se numa das
cadeiras de uma mesinha onde no havia ningum e abriu o livro.

7. Animal de duas costas


No amplo quarto de Roberta, Iara recostou-se na cama, ao lado da colega. Sabia
que, quela hora, Adele e Desmond estavam juntos, na lanchonete de costume, para
depois, como de costume, meterem-se no canto de costume, na praa de costume, onde
Iara j estivera com o rapaz, durante as poucas e to fantsticas semanas que tivera o
garoto a seu lado, sentindo-o seu, sentindo-se dele, enquanto o tempo "de costume" de
Desmond era gasto com ela.
"Um tempo que passou, mas que eu hei de fazer voltar..."
De acordo com seu plano, Iara ligara para Roberta dizendo que ia dar um pulo em
sua casa naquele fim de tarde.
S pra fofocar um pouco... tinha dito ela.
Foi duro passar de novo pelo jardim onde ela havia conquistado Desmond, mas
Roberta era a cmplice e o libi mais fcil que Iara encontrara para realizar e acobertar o
que tinha de ser feito. Uma "maria-vai-com-as-outras", o retrato da ingenuidade. Iara jamais
entendera como uma garota frgil como Roberta tinha sido um dia escolhida como capita do
time de vlei. E isso acontecera no mesmo dia em que dona Maria Helena havia descartado
Iara como candidata quela funo:

Voc emocionalmente instvel, Iara...


As duas recostavam-se na cama ainda desarrumada, sobre lenis e cobertores
embolados, pois Roberta tinha dormido quase a tarde inteira, tentando recuperar o cansao
da longa viagem de nibus de Ribeiro a So Paulo.
Ai, menina! Essa viagem foi um horror! Cheguei morrendo de sono para a prova
de Geometria... Nem conseguia entender o que o maldito Valongo queria que a gente
resolvesse, quanto mais lembrar de frmulas e fazer contas! Acho que vou tirar um zero
igual ao seu. E nem ao menos por causa de cola...
Iara sorriu, compreensiva:
Duro mesmo, Roberta. Fazer uma viagem horrvel dessas por nada...
U? Como, "por nada"? A gente ganhou, no ganhou?
claro... O que eu queria dizer que voc teve de tirar zero em Geometria sem
nem ao menos ter entrado em quadra contra o Anhanguera...
Roberta pensou um pouco, tentando compreender a observao de Iara. Depois,
deu de ombros:
... isso mesmo. Mas o que a gente pode fazer, n? Jogo jogo. Quem est
na reserva tem de ficar sempre de prontido, jogando ou no jogando.
Pois . Dona Maria Helena alternou vrias jogadoras em quadra, para mudar as
posies, conforme o andamento da partida. Mas na levantadora ela no mexeu...
O rosto de Roberta repetiu a expresso de expectativa e ansiedade que havia
revelado na tarde anterior, esquecendo-se de que a treinadora tambm no havia tirado
Iara de quadra nem uma v?:
Ai, menina, que vontade de entrar no jogo eu sentia o tempo todo!
Principalmente no quarto set, quando a partida estava aquela dureza!
... A reserva chata mesmo... Puxa, como foi bom jogar ao seu lado partidas
ainda mais duras do que aquela, Roberta! Voc servindo e eu cortando, voc servindo e eu
cortando...
Eu servindo e voc cortando... Era bem legal...
Lembra daquela bola que voc levantou pra mim, cada na quadra, e eu fechei o
jogo contra o Visconde de Sepetiba?
Se lembro! Foi demais...
... mas agora tem a Adele, no ?
Roberta pensou um pouco e encarou a colega a seu lado:
Me diga uma coisa, Iara, sinceramente: voc acha o jogo da Adele melhor do

que o meu?
A Adele? Melhor do que voc? claro que no, Roberta. Em quadra voc
sensacional. Voc a melhor levantadora e a melhor capita que o Queiroz j teve. S
aquela burra da dona Maria Helena no sabe disso!
Roberta comeou a parecer deprimida, como se somente naquele momento
estivesse percebendo a injustia de sua excluso do time.
Voc acha, ?
Tenho certeza! Nem sei como voc pde ficar calada, caindo fora do time e
ainda perdendo o lugar de capita...
Pois ...
Pois ... E dona Maria Helena, alm de sacar voc do time e promover a Adele,
ainda foi dar o lugar de capita para a besta da Cssia. O que que a Cssia sabe?
Matemtica? Lidar com computador? Quero ver se o computador vai ajudar a gente na hora
que a Cssia tiver de segurar o time contra uma equipe de provocadoras, como voc fez
contra as danadas do Visconde de Sepetiba...
isso a, Iara concordou Roberta, com veemncia. Pra ser capita tem de
ter autoridade, seno o juiz acaba deixando o jogo correr solto e as provocadoras montam
em cima! Pelo menos, se ela tivesse promovido voc a capita em vez da Cssia...
Eu? Ora, uma vez ela veio com a histria de que eu sou "emocionalmente
instvel". Imagine!
Imagine...
Imagine, perder o lugar de capita para uma fazedora de contas e o lugar de
levantadora titular para uma negra...
isso mesmo: uma negra! "Ela j est no ponto... Vamos l!"
Que raiva, hein, Roberta? Tirar zero em Geometria depois de ter ficado no
banco sabendo que o nosso time no teria passado por aquele sufoco todo se voc
estivesse em quadra, no mesmo?
... Pensando bem, isso mesmo, Iara. Que raiva! "Agora!"
Ento acho que a gente bem que podia aprontar uma brincadeira pra cima da
Adele, voc no acha? Uma vinganazinha inocente, s pra aliviar a raiva. O que
voc acha?
Uma vingana? Sei l... O que que voc est pretendendo?
Ora, pouca coisa... S acho que est na hora de a gente dar o troco e mostrar
quela desgraada qual o lugar dela.

Puxa, Iara! Mas voc e a Adele so to amigas!


Amigas? Pois sim! Nem todos neste mundo podem ser amigos e nem todos os
amigos merecem confiana!
Bom, mas a amizade uma coisa boa que... Iara cortou, furiosa:
Coisa boa! Como que voc acha que eu posso ser amiga sincera de uma
garota que tomou meu namorado?
Como seu namorado? Faz tempo que voc e o Desmond desmancharam...
Nunca! O Desmond meu namorado! Sempre ser! E eu no posso perdoar
uma garota que anda por a atracada com ele, como mosca na mussarela!
Puxa, Iara, s vezes voc diz cada coisa!
Amizade! Ora, tem gente boba, que faz qualquer coisa pra no perder uma
amizade. Idiotas como esses acabam servindo de capacho. A troco de qu? Da satisfao
do outro que s se aproveita dele? Na hora em que precisarem cobrar essa amizade, o que
os cretinos conseguem um belo p no traseiro!
Seu olhar fixava-se num ponto neutro, alm das paredes do quarto, e Iara falava
para si mesma:
Eu no. Sou daquelas amigas que demonstram amizade cega e eterna, mas,
para mim, quem tem de servir a outra metade! Por fora, qualquer um diria que eu sou uma
escrava dos meus amigos. Mas, por dentro, eu bem sei que s sou amiga de mim mesma!
Quer dizer ento que voc no minha amiga? surpreendeu-se Roberta.
Que eu no posso confiar em voc?
Iara sacudiu a cabea, despertando-se do devaneio e segurou firme o ombro da
colega, transmitindo-lhe confiana:
claro que pode, Roberta. Ns duas somos as tradas, as chifradas. Sofremos
da mesma dor e por isso podemos confiar uma na outra. Oua bem o que digo e acredite:
nossas dores vo acabar, Roberta, vo acabar. Mas s se a gente puder passar o mico da
dor para a outra. Para Adele!
O telefone sem fio estava jogado sobre as cobertas, entre as duas meninas.
Sentadas nos joelhos, elas riam e comentavam excitadamente a brincadeira que estavam
prestes a fazer.
Um trote! Boa, Iara, um trote! Vai ser demais. Espere que eu vou pegar a
extenso. Quero ouvir tudinho!
Roberta foi buscar outro aparelho no quarto dos pais e voltou para junto da amiga.
Lentamente, Iara teclou o nmero do telefone que ela jamais poderia esquecer,

mas para o qual j no ligava havia meses, e do qual havia meses nunca mais recebera
uma ligao.
Passava das seis da tarde e mister Bradley, o pai de Desmond, j estava em casa.
Para o senhor... disse a empregada, estendendo o telefone

para o

recm-chegado.
Al, Bradley falando... o ingls falava com leve sotaque o Portugus que j
dominava depois de tantos anos vivendo na terra tropical que havia escolhido como nova
ptria.
Iara respondeu fazendo uma voz rouca, como de filme de terror, para garantir que
o pai de seu ex-namorado no a reconhecesse:
Mister Bradley? Aqui uma amiga que gostaria de saber se algum j lhe
contou quem o seu filho anda namorando...
Como? O que tem o meu filho? O que houve com o Desmond?
Muita coisa, mister Bradley, muita coisa... Ou pouca, se o senhor acha certo seu
lindo filho loiro estar namorando uma negra...
Uma negra? Que histria essa?
Uma linda histria de fadas: agora mesmo, neste instante, uma carneirinha
negra est pastando com o seu carneirinho loiro!
Mas isso uma loucura! O que isso quer dizer?
Pouca coisa agora, mas talvez muita com o tempo: o que pode resultar da unio
do seu filho com uma eguinha negra? Ser que o senhor vai gostar de ver seus netos
relinchando ao cham-lo de "vov"?
Meu Deus! Quem est falando? Quem voc?
Sou quem ligou para contar ao senhor que, nesse momento, seu filho est
brincando de animal de duas costas com uma negra!
O clic do telefone mostrou a mister Bradley que aquele era o fim da surpresa que o
esperava depois de um dia estafante de trabalho. O ingls largou o aparelho e procurou o
leno, para enxugar o suor que lhe brotava da testa:
E ainda h quem queira ser pai!

8. Uma pessoa muito srdida


Na manh de tera-feira, Adele tinha chegado ao colgio ainda perturbada pelo

que acontecera na noite anterior.


Iara, preciso falar com voc.
O que foi?
Um assunto complicado. Um horror! Voc nem vai acreditar. A gente se v no
intervalo, est bem?
No fim da primeira aula havia cinco minutos de intervalo para a troca de
professores. Adele chamou Iara para o corredor, com um aceno. A menina levantou-se da
carteira e levou Roberta junto.
Aconteceu alguma coisa, Adele? Voc parece to nervosa!
Se aconteceu, meninas! Vocs nem imaginam a cena!
Que cena? Conta logo! O que houve?
Bom, primeiro, ontem algum telefonou para o pai do Desmond falando um
monte de besteira sobre mim e ele!
Iara fez a maior cara de surpresa:
Ontem? A que horas foi isso?
Logo que o pai do Desmond tinha chegado do trabalho. L pelas seis e pouco...
Que horror, menina! Nessa hora a gente estava assistindo novela l na casa da
Roberta, no verdade, Roberta?
Roberta no estava prevenida para a mentira e titubeou:
H? Assistindo novela? claro, a gente estava assistindo novela...
Vai, Adele! apressou Iara. Continue. O que que disseram?
Vocs nem vo acreditar. Ouam s...
Mister Bradley no quis assustar a esposa e inventou a necessidade urgente de
voltar ao escritrio para buscar uma pasta que havia esquecido. Sabia muito bem onde
encontrar o filho. Nos finais de tarde, era comum que Desmond e seus amigos estivessem
reunidos na lanchonete de costume, a poucas quadras da escola.
Desmond e Adele j tinham sado da lanchonete e preparavam-se para subir na
moto do rapaz, quando um carro importado parou ao lado deles, bloqueando a moto
contra a calada.
Adele no conhecia aquele carro e nunca tinha visto o homem alto, magro e
bem-vestido que, aos trancos, abria a porta e desembarcava. Mas era bvio que o rosto
daquele homem no podia ser to vermelho e que o tremor em seus lbios no devia ser
seu estado normal. As dvidas foram resolvidas quando Desmond disse, claramente
demonstrando a surpresa do encontro:

Oi, pai...
O pai de Desmond!
Com raiva contida na voz, o ingls alto e furioso ordenou, secamente:
Desmond. Entre no carro.
O rapaz percebeu que alguma coisa grave tinha acontecido, mas no podia
imaginar que a fria do pai se dirigisse a ele e sua namorada:
O que foi, pai? A tia Amy piorou, l na Inglaterra?
Isso no tem nada a ver com sua tia Amy, Desmond. Tem a ver com voc e
esse seu namoro, que voc vem escondendo de seu prprio pai.
Adele sentiu-se gelada, prevendo tempestade. Desmond soltou o ar contido nos
pulmes pela expectativa e apresentou, procurando manter a calma:
Papai, esta Adele, minha namorada. Adele, este Raimond Bradley, meu pai.
"Mister Bradley! Este o famoso mister Bradley!", repetia a menina por dentro,
sem coragem de dizer uma palavra.
O pai do namorado olhou-a de alto a baixo, sustentando do melhor modo que
podia a pose de ingls educado. Mas o olhar denotava sua clarssima desaprovao.
Boa tarde... disse entre dentes, ainda se contendo, mas revelando profundo
mal-estar com a presena daquela linda menina negra ao lado de seu filho.
Com o corpo, Desmond quase tapou Adele inteirinha e encarou o pai:
Agora que vocs j esto apresentados, por favor, papai, eu queria saber por
que voc apareceu aqui assim, de surpresa, fechando minha moto e dizendo que eu estou
"escondendo" meu namoro de voc.
Os dois tinham a mesma altura e eram muito parecidos, embora a cabeleira longa
de Desmond e suas roupas informais contrastassem com os cabelos rentes e o terno
escuro do pai.
melhor conversarmos a ss, Desmond. Estou certo de que a mocinha aqui
no vai se importar.
Desculpe, papai, mas, como eu j disse, "a mocinha aqui" minha namorada e
seu nome Adele. E eu vou me importar sim, se voc no tiver a gentileza de nos dar uma
explicao.
O ingls mal conseguia manter a pose, falando baixo, quase sussurrando, dividido
entre a vontade de gritar com o filho e a necessidade de no chamar a ateno dos
ocupantes das mesinhas de calada da lanchonete de onde o casalzinho acabara de sair.
For God sake, Desmond, I should...

Adele tinha ouvido falar que qualquer pessoa que vive em um pas estrangeiro,
mesmo por muito tempo e mesmo dominando perfeitamente a lngua do pas anfitrio, nos
momentos de nervosismo sempre acaba usando a lngua de nascena, a lngua materna.
Sem querer, imaginou o que aconteceria se ela mesma estivesse na Inglaterra e gritasse
"socorro" ao ver-se em dificuldades. Se a dificuldade fosse no mar, na certa se afogaria... E,
se a informao era mesmo correta, a frase do ingls revelava que ele estava encarando o
namoro do filho como um afogamento.
Mas Desmond era o salva-vidas e provava a Adele que teria sido impossvel
encontrar um namorado melhor: enfrentava a fria do pai, protegendo a namorada, e ao
mesmo tempo fazia com que o homem conseguisse controlar-se, pouco a pouco, at que
fosse possvel uma conversa mais esclarecedora do que aquela absurda cena pblica. Os
trs afastaram-se da frente da lanchonete e a voz de Desmond ia conseguindo fazer baixar
o excesso de adrenalina negativa que corria pelas artrias do pai.
Hum... que algum... uma pessoa acabou de ligar para a nossa casa e disse
coisas que... Me ofendeu... O que a voz disse foi...
Um trote? Voc veio aqui por causa de um trote, papai?
O ingls parou um pouco, tomando flego, tentando lembrar-se do que havia
ouvido.
Era mais que um trote. Uma voz rouca... Talvez de mulher, parecia... Bom, na
verdade o que ela disse foi que vocs estavam namorando e que o namoro estava sendo
escondido de mim, por alguma razo...
Desmond interrompeu:
Eu?! No tenho nada para esconder de voc, pai. E tambm no estou
entendendo direito por que voc est to ofendido.
A maneira como aquilo tudo foi dito que foi horrvel... Nessa hora eu... eu fiquei
furioso e...
Nervoso, Desmond parecia comear a entender as razes de tanta preocupao.
Como se fosse brincadeira, mas pretendendo dizer somente a verdade,
interrompeu o pai:
Nessa hora voc atravessou o Oceano Atlntico, no , papai? E de repente
ficou preconceituoso como um americano!
Ora, Desmond, no brinque! Isso no tem nada a ver com preconceito racial.
Apenas...
melhor a gente enfrentar a verdade, papai: voc teria ficado to alterado se a

Adele no fosse negra?


Mister Bradley mostrou-se ofendido:
O que isso, Desmond? Voc me deve respeito e...
Num repente, o filho tomou o brao do pai e encarou-o:
Um minuto, papai. Agora me deixe falar. claro que eu lhe devo todo o respeito
do mundo. Sei que voc me deu tudo e fez de mim o que eu sou. Mas aqui ao meu lado est
a menina que eu amo. Esteja certo de que eu gosto tanto dela quanto voc ama a mame.
Eu sou um s, e em meu afeto cabem voc e Adele. Por favor, papai, no me divida em
duas metades!
O ingls tentava controlar-se e esconder o incmodo que lhe provocava a cor da
pele da garota que seu filho havia escolhido para namorar. Suspirou fundo e resolveu
encerrar a discusso:
Est bem... Se vocs dois j conquistaram um ao outro, o que eu posso dizer?
olhou para Adele e tentou forar um sorriso, sem conseguir nada convincente. Se o
corao do meu filho j seu, menina, o que tem um pai a ver com isso?
O ingls voltou para o carro. Adele montou na moto abraando a cintura de
Desmond. Esperava ter sido apresentada ao "sogro" de um modo mais feliz. Deixou uma
lgrima cair nas costas do bluso do namorado, sem que ele notasse.
E foi isso Adele encerrava a narrativa. O pai de Desmond cedeu, mas
aprovar o namoro da gente, isso ele no aprovou no. Engoliu, s isso...
Roberta no disse uma palavra, mantendo uma palidez inalterada durante todo o
relato de Adele. Mas Iara mostrou-se surpreendida, como se tivesse acabado de ouvir a
mais excitante das novidades:
Menina! Que horror! Quem poderia ter feito uma fofoca dessas sobre voc e o
Desmond?
Como que eu posso saber, Iara? O pai do Desmond, no fundo, parece um bom
sujeito, mas, ainda mais no fundo, guarda todos os preconceitos do mundo. Eu sei como
so essas coisas. No ligo, fao que no comigo, mas vocs no imaginam o que uma
pessoa negra tem de enfrentar, ainda mais sendo mulher... Vocs no podem compreender
o que acontece com uma menina negra, crescendo no meio da classe mdia brasileira...
Iara mostrou-se ofendida:
O que isso, Adele? Como que voc pode dizer uma coisa dessas? Que eu
no compreendo voc?! Voc acha que quando escolhi voc como amiga eu estava
pensando na cor da sua pele? Voc pode ser at verde ou azul. Para mim, voc sempre foi

minha melhor amiga e se for preciso eu meto a mo na cara de qualquer um, como eu fiz
com o Gust...
Adele interrompeu, tomando a mo da amiga e apertando-a contra o peito:
claro que eu sei de tudo isso! Desde o primeiro dia, eu vi que voc me
compreenderia e me apoiaria. Foi voc quem foi suspensa por me defender, no foi? Foi
voc que tirou zero duas vezes pra me ajudar, no foi? Voc um anjo, Iara. E sabe como
eu sou agradecida a voc!
Iara tocou-lhe o rosto, aliviada:
Voc que um anjo, Adele. Voc nem me conhecia direito e tambm tirou um
zero pra me ajudar. Pensa que eu me esqueci do caso do aparelho que voc me ajudou a
procurar? Mas deixa pra l: eu s estava preocupada com quem poderia ter feito essa
fofoca horrorosa...
O professor aparecia no corredor. Era hora de voltar para a classe. Adele estava
sria, enquanto encerrava a conversa:
Quem pode ter feito isso eu nunca vou saber, Iara. O pai de Desmond disse que
s pode ter sido uma pessoa muito srdida...
"Srdida! Aposto que foi esse pai do Desmond que fez com que ele acabasse com
o nosso namoro. O peixe Cssia vai ter de esperar. Primeiro eu tenho de fisgar um arenque.
Esse maldito ingls vai ver uma coisa!"
A voz de Iara era quase um rosnado quando chamou Roberta de lado, durante o
recreio grande, num canto do ptio:
Roberta, convoque o Milto para estar na sua casa hoje tarde, l pelas cinco...
O Milto? Aquela criana grande? Mas o que que a gente vai fazer? Por que o
Milto?
Faa o que eu digo, Roberta. Voc vai ver. Ns vamos nos divertir como nunca!
Rindo, excitadas pela expectativa, as duas passaram por Emlio, distradas. O
rapaz estava encostado na parede do corredor, observando, srio. Fez um movimento para
seguir Iara, para cham-la, mas pareceu desistir. Balanou lentamente a cabea e foi para o
outro lado.

9. Aumentando a dose de veneno


Demais o lanche, hein, Roberta?

Como a fase de crescimento do Milto parecia longe de estar concluda, o apetite


do rapaz era de assustar duas magrinhas como Roberta e Iara: o menino grande tinha
devorado quase tudo o que a empregada de Roberta havia servido na mesa da copa.
Iara incentivava outro tipo de apetite no garoto, propondo alguma coisa parecida
com uma desforra das brincadeiras que os mais velhos faziam com ele. Ele era jovem
demais e ainda mais fcil de enrolar do que Roberta:
Esse pessoal gosta de gozar com a tua cara, no , Milto? Mas agora chegou
a tua vez. Nossa brincadeira vai ser maravilhosa! Nenhum daqueles bobocas teria uma
idia dessas. Eles vo ver que com o Milto no se brinca!
isso mesmo, Iara. Eles vo ver! ria-se o garoto. Durante o lanche, enquanto
conversavam, Iara avaliou que a voz do Milto ia mesmo se tornando muito grossa, s de
vez em quando retornando ao falsete de menino. Pelo telefone, pareceria um vozeiro de
adulto para quem quer que o ouvisse. A diverso planejada, a vingana pretendida, ou
qualquer que fosse a razo do que Iara estava prestes a fazer, estava pronta para ser feita.
Tudo certo, pessoal. Vamos para o seu quarto, Roberta.
Logo estavam os trs sentados no tapete do quarto. Iara abriu a lista de
classificados e fez uma relao de telefones. Os pais de Roberta ficavam o dia inteiro fora
de casa e a rica residncia tinha trs linhas telefnicas.
Chamar os txis fica comigo e com a Roberta. Milto, voc fica encarregado da
parte de comida: so supermercados que fazem entregas e pizzarias.
Em poucos minutos, Iara e Roberta j tinham telefonado para doze empresas de
radio txis e de txis especiais, fazendo-se passar por secretrias e chamando todos para a
casa de Desmond. Deveriam chegar pontualmente s seis da manh seguinte, pois
"Raimond Bradley" tinha um vo para a Europa que partia do Aeroporto de Cumbica s oito
horas. Enquanto isso, Milto ligava para oito diferentes pizzarias e encomendava pizzas
gigantes que deveriam ser entregues, em horrios alternados, desde as sete at as onze da
noite.
Duas grandes, sim senhor. De alho. Isso. E pode caprichar no alho, viu?
Al? Meu nome Raimond Bradley e estou dando uma feijoada para cem
pessoas em minha casa amanh. Por favor, mande entregar bem cedinho vinte quilos de
orelhas de porco, vinte de carne-seca, cinco de paio, dez de lingia... Ah! E mande
tambm dez melancias para a sobremesa...
Al? da companhia de dedetizao? Por favor, minha casa est infestada de
ratos. Preciso urgente de...

Isso, eu quero a maior cesta de caf da manh que a senhora tiver. Por favor,
entregue s sete em ponto, hein?
Iara ia ticando a lista que havia preparado e coordenando os telefonemas:
Companhias de dedetizao j chega. Telefonamos para seis delas. E as cestas
de caf da manh?
J liguei para cinco.
S cinco? Ah, cinco j est bom. Agora as tapearias...
Al? Aqui Marjory Bradley, esposa de Raimond Bradley. Por favor, estou
querendo trocar todas as cortinas e estofados aqui de casa. Vocs poderiam mandar
algum?
Por favor, envie para este endereo dez caixas de usque Black Label, cinco de
Gin Gordon, duas caixas de vinho Casillero dei Diablo... ahn... tinto, por favor. E pode
mandar tambm uma caixa de Chateau Mouton Lafitte. Como? muito caro? Pode deixar
que eu pago a entrega. Meu nome Raimond Bradley! Ah, e mais uma caixa de
champanhe Don Perignon, por favor...
Al? Estamos com uma privada entupida aqui em casa e...
Al? Agncia funerria? Por favor, mande uma coroa de defunto da maior que
tiver. Qual a inscrio da faixa? Escreva por favor: "Saudades. Oferta dos amigos de
Raimond Bradley". Isso. Com psilon no final...
Al? O enterro tem de sair amanh de manh, s dez. Quero o caixo mais
caro. . Em bano e dourado. E king size, por favor, que o defunto muito grande...
Na medida em que o trote se desenrolava, a excitao dos trs ia crescendo e eles
j agiam como se estivessem embriagados. Quando a loucura chegou ao final, Roberta,
entre o prazer e o pnico, olhou para a idealizadora da brincadeira:
Ai, ai, ai! O que foi que ns fizemos, Iara?
Ora, uma brincadeira... Uma boa brincadeira s, no foi, Roberta? Foi divertido,
no foi, Milto?
"O que foi que eu fiz? Agora no importa mais. O que est feito, est feito. Tenho
agora de me aproveitar da situao..."
Na manh seguinte, as aulas j estavam quase no final, quando correu um rumor
pela escola de que Desmond tinha sido chamado ao telefone com urgncia e que agora
estava na sala do diretor.
O que ser que houve? especulava algum. Ser que o pai do Desmond
est passando mal?

No deve ser isso informava outro aluno. Ouvi dizer que o pai dele est
vindo para c para falar com o diretor. Alguma coisa aconteceu...
Iara levantou a mo e pediu professora de Geografia para sair da sala. Correu
para a entrada da escola. No precisou esperar muito para ver a chegada do carro de
mister Bradley. Deu um jeito de, "casualmente", esbarrar com ele.
Oh, mister Bradley! Como vai o senhor? Lembra-se de mim? Sou a Iara, aquela
amiga do Desmond que ia tanto sua casa no ano passado...
Ah, Iara! Lembro sim. Como vai? Mas, por favor, me d licena que eu...
Nossa, mister Bradley! O senhor parece to preocupado! O que houve?
Uma barbaridade, menina. Uma invaso da minha casa! Ontem noite
comearam a aparecer entregadores de pizzas um atrs do outro. Hoje, desde as seis
horas da manh, chegam txis, entregadores de encomendas, uma pilha de coisas que
algum sdico resolveu pedir em meu nome!
Que horror!
O ingls estava afogueado, fora de si:
E que eu saiba no tenho nenhum inimigo que pudesse fazer uma maldade
igual a essa. Veio at um homem para tirar cupim do meu piano de cauda. E eu nem tenho
piano!
J no havia nem um trao de pose britnica naquele homem. Iara teve de lutar
para no rir. Ao contrrio, a menina oferecia a mais confivel expresso de solidariedade:
Mas quem poderia ter feito uma coisa dessas, mister Bradley?
A maioria das pessoas que recebeu essas encomendas diz que a voz ao
telefone era jovem. Por isso vim falar com o diretor do colgio. Isso s pode ter sido uma
brincadeira de algum moleque desocupado dessa escola. Eu acho que...
Bom, mister Bradley, se o senhor no tem nenhum inimigo, isso deve ter partido
de algum das relaes da Adele. O senhor sabe: esses negros andam com todo tipo de
gente, no ? Com as piores companhias...
As aulas j tinham terminado, e Adele e Iara esperavam no corredor, em frente
sala da diretoria, onde continuavam fechados Desmond e o pai.
Obrigada, Iara, por ficar aqui comigo, esperando pra saber no que vai dar essa
confuso toda. Eu estou to nervosa...
Amiga pra essas coisas, no , Adele? Imagine se eu ia deixar voc na mo!
Iara, querida, no sei o que eu faria sem voc!
Encontrei o pai do Desmond sem querer, logo que ele chegou aqui. Estava

furioso. Disse que algum sdico havia feito um monte de encomendas para ele, em nome
dele, uma espcie de vingana, sei l... Voc acredita que ele ficou dizendo que isso devia
ser coisa de algum amigo seu?
Meu amigo?! Como assim?
Esse homem um poo de preconceitos! Do tipo que vive jogando a culpa de
tudo de mau que acontece nos negros, nos nordestinos, essas coisas. Voc sabe, no ?
claro que eu falei com ele que isso era um absurdo, mas eta ingls duro de roer! Olha, tive
at vontade de sacudir o homem, pra ver se punha um pouco de juzo naquela cabea dura!
A reunio chegava ao fim naquele momento e Desmond saa da sala do diretor.
Sua expresso desanuviou-se ao ver a namorada sua espera.
Iara afastou-se para uma sombra do corredor e deixou que o diretor conduzisse o
furioso pai para a sada. Ia defendendo os alunos do Queiroz, sugerindo que o ingls
investigasse em sua empresa. Talvez algum jovem empregado demitido, ou coisa assim,
querendo uma desforra:
Nenhum aluno desta escola poderia ter feito uma coisa dessas, mister Bradley.
Nossos mtodos educacionais so os melhores que...
A voz do diretor afastava-se. Pensando que os dois estavam ss no corredor,
Desmond abraava-se a Adele, como se tivesse acabado de salvar-se de um naufrgio:
Ai, que alvio te encontrar aqui me esperando! Que sufoco! Que coisa mais
maluca aconteceu com a gente!
Calma, Desmond, calma...
O rapaz pegava entre as mos o rosto da namorada e, das sombras onde se
escondia, o que Iara podia perceber nele era s ternura por Adele:
Voc a minha alegria, Adele. Se eu te encontrar depois de cada problema
cabeludo que eu tiver de enfrentar, eu queria que todos os problemas do mundo
desabassem em cima de mim!
Ah, Desmond... suspirava Adele, recebendo o abrao e apoiando o rosto no
peito do rapaz, sobre a medalhinha que desde domingo no saa do pescoo do namorado.
Voc a coisa mais linda que j aconteceu na minha vida, Adele. Eu podia at
morrer nesse momento, porque acho impossvel que alguma coisa melhor possa acontecer
comigo...
No fale em morte, meu amor, no fale em morte. Nossa felicidade est apenas
comeando...
Voc tem razo, voc tem razo... Nem sei o que dizer, gosto tanto de voc que

at sinto uma coisa aqui, na garganta... bom demais!


Desmond beijava o rosto da menina, sem parar, sem parar, falando entre beijos:
Adele... que isto... isto... e mais isto... seja sempre a msica que acompanhar a
nossa vida, para sempre!
Para sempre, amor, para sempre...
O som de cada beijo tinha o efeito de uma chicotada em Iara. Oculta, odiando
aquele resultado de seu plano, a menina pensava, apertando os punhos cerrados a ponto
de quase ferir as palmas das mos com as unhas:
"Hum! Mas que msica afinada, hein? Ah, essa msica de beijinhos... Mas deixa
pra l: ou eu no me chamo Iara, ou vou j, j afrouxar as cravelhas desse violo e era uma
vez a doce melodia! Parece que o meu veneno ainda no fez grande efeito. Preciso
aumentar a dose..."
Naquela mesma quarta-feira, logo aps o almoo, Roberta ligou para a casa de
Iara.
Estava nervosa e excitada como se fosse um terrorista perseguido pela Interpol
depois de ter colocado uma bomba no Vaticano:
O Milto? Ele um bom moleque mesmo, Iara. Estava na maior tranqilidade,
sem nem esquentar a cabea. Pode deixar, que ele no vai dar com a lngua nos dentes.
Ele criano, mas no bobo!
Est bem, Roberta. Mas voc precisava ter visto a cara do ingls, reclamando
com o diretor e tentando descobrir que inimigo to terrvel poderia ter feito uma sacanagem
daquelas com ele... Bem feito!
O que foi que o gringo disse?
Te conto logo mais, no treino...
Ah, v, conta agora, Iara! Como que foi a queixa de mister Bradley? O que ele
contou ao diretor?
Fiquei sabendo de tudo, Roberta. Nosso trote foi bom, mas podia ter sido
melhor. Uma poro de empresas no cumpriu os tratos. Outras ligaram perguntando o
nmero do carto de crdito de mister Bradley e estragaram a brincadeira. Imagine: nem o
caixo eles entregaram!

10. Como se fosse uma irm

Na quarta-feira, o treino comeou pontualmente s quatro da tarde. Foi bola na


mo o tempo todo, com os dois professores j roucos de tanto dar instrues, forando os
jogadores e exigindo o mximo de cada um. Ningum podia descansar. No mximo, um ou
outro tinha uma curta licena para tomar gua ou ir ao banheiro.
Iara levantou o brao, pedindo uma dessas licenas, e dona Maria Helena
concedeu, advertindo:
Dois minutos, Iara. Esteja aqui no mximo em dois minutos, hein?
"Essa parte vai ser mais complicada...", pensava a menina, correndo para o lado
dos vestirios. "E isso eu tenho de fazer sozinha..."
Nos dois dias anteriores, a famosa medalhinha estivera sempre no pescoo de
Desmond. Mas Iara tinha notado que o garoto nunca estava com ela nos treinos.
"Onde ele deixa a medalhinha? S pode ser no vestirio..."
Era um risco, mas ela havia decidido correr esse risco. Tinha procurado ficar atenta
e pedira para sair num momento em que todos os rapazes estavam na outra quadra,
treinando forte sob as ordens de Joo Massa.
De longe, parecia que Emlio estava olhando para o seu lado, mas o saque estava
com a equipe reserva e o rapaz teve de voltar a ateno para o jogo.
Iara correu na direo da porta do vestirio feminino. No ltimo momento, desviou
o passo e sumiu pela outra porta.
Pronto, l estava ela dentro do vestirio masculino. Sorriu, lembrando-se de suas
fantasias de menina, quando se imaginava escondida l dentro, espiando os corpos nus
dos rapazes, expostos aos seus olhos. Uma vez, tinha surpreendido um trecho de uma
conversa entre garotos, quando um deles dizia, vendo Cssia entrar no vestirio:
Hum... eu bem que queria ser uma mosquinha, para entrar no vestirio junto
com essa gata!
E a, bobo? tinha gozado um companheiro. Se essa gata estivesse a fim,
voc acha que ia querer transar com uma mosca?
Iara correu os olhos pelos armrios do vestirio. L estava a malha colorida do
Emlio. Pegou-a e levou-a ao rosto, sentindo o cheiro do rapaz.
"Onde que est a roupa do Desmond? Ai, com que roupa ele estava hoje?"
Sua perna esbarrou num banco e uma mochila aberta caiu. No mesmo instante,
um rudo metlico atraiu sua ateno.
Tlin...
Presa na corrente, l estava a medalhinha!

Abaixou-se, pegou-a e enfiou-a entre os seios, dentro do suti. Verificou. O


esconderijo era seguro. No cairia quando ela saltasse durante o resto do treino.
Saiu sem tomar cuidado, confiante em que ningum estivesse olhando para a
porta do vestirio. Antes de completados os dois minutos concedidos por dona Maria
Helena, Iara j estava em quadra, saltando e cortando um passe de Marisa.
O treino seguiu e, perto das seis, todo mundo j estava cansado. Apesar disso, os
dois treinadores ainda no se davam por satisfeitos. Tudo o que concederam foi um
intervalo.
Quinze minutos, pessoal comandava Joo Massa. Depois vamos fazer um
rodzio de saques. A defesa do Cultura Mndi forte demais. Vamos ter de forar o saque
desde o incio, para dificultar o passe deles...
O jogo contra o temvel Colgio Cultura Mndi seria na prxima noite de sbado,
na quadra do adversrio, em Santos, e tanto dona Maria Helena quanto Joo
Massaqueriam suas equipes afinadas para tentar a vitria. Sandra estava alongando muito
os saques e continuou em quadra, por conta prpria. Se o time feminino do Queiroz sasse
derrotado no sbado, a garota no queria ser a responsvel.
Emlio saa do vestirio e olhava de longe para Iara, com uma expresso estranha,
um jeito que a menina no se lembrava de jamais ter visto em seu rosto. Fez um movimento
para vir para o seu lado, mas Leo chamou sua ateno e os dois ficaram conversando.
Enxugando o rosto com uma toalha, Iara sentou-se na mureta ao lado da quadra,
observando Sandra saltar e bater, saltar e bater...
Roberta aproximou-se, com um sorriso meio amarelo, muito sem jeito.
O que foi, Roberta? Iara levantava os olhos, os olhos agora firmes, duros,
com a fora da determinao. Um olhar que Roberta no conseguia encarar, no conseguia
desafiar, s conseguia receber, cedendo. Que cara essa? Vamos, voc no capaz de
me enganar. Diga: o que voc est pensando?
Eu precisava dizer que... Bom, ser que a gente no est exagerando, Iara?
Iara riu-se, abertamente:
Exagerando? Exagerando o qu? No foi voc que disse, ainda um dia desses,
que queria que a negra quebrasse a perna?
Ah, Iara, isso modo de dizer... Eu estava de cabea quente. Aos quinze anos,
a gente ameaa muito mas depois no faz nada de verdade...
Mas voc no quer ser a capit de novo? Voc no quer de volta seu lugar no
time? Sbado a gente vai jogar a final. Pense s em quem vai levantar a taa, depois que a

gente tiver esmagado as meninas do Cultura Mndi... Voc? Ou a Cssia?


Roberta sentou-se ao lado da amiga, carregada de dvidas e evitando encar-la:
Sei l, Iara... Est certo, eu bem que queria meu lugar de volta, eu bem que
queria levantar a taa l em Santos. Mas, sabe? Esses telefonemas, esses trotes... No sei,
isso parece jogo sujo...
Jogo sujo, voc diz, Roberta? Ai, ai! O que importa, minha querida, so os
resultados. Uma vez um jardineiro me disse que, para se conseguir violetas mais
perfumadas, deve-se usar estrume de porco!
Quieta! alertou Roberta. A Cssia vem a...
Alegremente, a capit do time veio vindo e sentou-se de ccoras diante das duas:
Treino puxado, hein? Dona Maria Helena est malhando a gente como se fosse
o Joo Massa!
Iara sorria, charmosa, e fez um agrado na cabea de Cssia:
Sabe o que eu estava agora mesmo falando para a Roberta? Eu estava
lembrando do tal do Branco, aquele carinha l do seu prdio, que voc me contou... O
moleque um horror, no verdade, Cssia?
Cssia abriu-se numa gargalhada gostosa:
Se , menina! Nunca vi garoto mais boboca!
Puxa, pelo jeito que voc me contou, o cretino est mesmo a fim de voc,
Cassinha...
Ele me persegue sem parar, Roberta, voc precisa ver!

Cssia voltava-se

para a colega, com o tpico arzinho de fofoca. um repetente, deve ter j uns dezenove
e ainda est na oitava. E o pior que o cara tem at mau hlito! E as espinhas, menina!
Como tem espinhas aquele chato!
Por trs das costas de Iara, Emlio e Leo juntavam-se ao grupo:
O que isso, Cssia? Falando mal dos homens, ?
Cssia levantou os olhos para o rapaz e desculpou-se:
De homem, Emlio, eu s sei falar bem. s um cara que voc no conhece.
Uma porcaria de homem!
A voz de Iara imps-se:
Porcaria? Essa palavra sinnimo de homem, Cssia!
Emlio apoiou as duas mos nos ombros de Iara, massageando-lhe as costas de
leve, carinhosamente:
Iara, Iara... Se a minha fofinha j teve algumas experincias ruins com homens,

devia experimentar alguns outros, s para notar a diferena. Eu estava at pensando em


um em especial...
Iara fez que no ouviu a provocao do garoto e encarou Cssia, agachada sua
frente. Seus olhos fuzilavam:
Ora, os homens! No tenho nem dezessete anos, Cssia, mas j conheo os
homens bem demais. Quando passam pela gente, so paves, exibindo-se como se
estivessem numa vitrine e ns fssemos compradoras. Quando esto entre eles mesmos,
falam da gente como aougueiro fala de carne. Exigem nossa fidelidade, mas esperam que
a gente fique quietinha quando eles nos corneiam. Querem que a gente os admire, que a
gente elogie sua inteligncia e sua fora. Mas s demonstram mesmo atividade quando
encostam a gente na parede, num canto escuro!
Do outro lado da quadra, Desmond conversava com Takashi. Cssia apontou-o e
brincou, tentando relaxar a conversa:
Todos eles? At que aquele loiro ali? Com esse voc j ficou, no foi?
Os loiros, os morenos, os burros, os inteligentes, todos os homens so iguais!
Se so belos e inteligentes, acham que a gente tem de v-los como deuses. Se so feios e
burros, logo do um jeito de tentar nos convencer de que servem para alguma coisa!
Emlio tentava acalm-la, continuando a massagear delicadamente seus ombros,
por trs.
Ora, fofinha, o que isso? Voc est falando como se tivesse ficado maluca de
repente! Ou isto s uma brincadeira? Palavra de homem que...
A menina interrompeu, furiosa, falando para Cssia como se encarasse Emlio:
Se a Terra fosse coberta pelas palavras dos homens, de cada slaba sairia um
escorpio!
As mos de Emlio soltaram-se repentinamente das costas da menina, como se
tivessem levado um choque eltrico.
Depois da srie de saques, os treinadores misturaram jogadores e jogadoras nas
duas quadras, para alguns sets recreativos.
Vamos l, pessoal! ria-se Joo Massa, procurando descontrair o grupo.
Homem com mulher, mulher com homem. Vamos ver como fica!
Vlei misto? Oba, vamos l!
A inteno dos professores era enturmar melhor os dois grupos, uma vez que os
vinte e quatro jogadores passariam por uma presso muito grande, no prximo sbado,
jogando as partidas finais contra o Colgio Cultura Mndi, em Santos.

Espalhem-se e escolham os times vocs mesmos dizia dona Maria Helena,


batendo palmas. Alegria, gente!
Iara viu Desmond e Cssia juntos em uma das metades da primeira quadra. Adele
fez um movimento para correr para l, mas a amiga a segurou pelo brao mantendo-a na
segunda quadra.
Ah, fica comigo, Adele! O Takashi j est l, eles no precisam de levantador...
Naqueles jovens, o cansao virou farra e a inteno dos treinadores estava dando
certo.
Na quadra onde jogavam Adele e Iara, houve uma curta interrupo na partida
para o Leo amarrar os tnis. Ao lado de Adele, Iara apontou para a outra quadra:
Voc j reparou, Adele, como a Cssia linda?
A Cssia? Hum... sim...
J notou como os olhos claros dela so doces? To doces...
Observada pelas duas, Cssia conseguia aparar uma incrvel pancada do Emlio
logo do Emlio! e a bola passou por Takashi, sobrando perfeita para Desmond, que
arrematou cruzado, botando a bola no cho.
Grande, Cssia! gritou o rapaz, cabelos louros desalinhados, alegre como
uma criana.
Cssia estava a seu lado, e os dois abraaram-se forte, rindo da cara do Emlio,
que brincava de reclamar, fazendo palhaadas na quadra:
No vale! No vale! O que vocs querem? Acabar com o jogo do pobre do
Taka? Se a bola ficar s no alto, ele nunca vai alcanar! Ah, ah!
Te cuida, Emlio! respondia Magda, uma das mais fortes reservas do time
feminino. O Takasfti faixa preta de jud!
Iara, na outra quadra, com a bola na mo para um saque, parou de repente,
olhando para o lado da ao dos colegas. Seu olhar dizia alguma coisa, tinha um ar de
surpresa e preocupao.
Adele acompanhou aquele olhar e fixou-se no grupo de rapazes e garotas, que
fazia uma farra para comemorar o ponto. Quando voltou-se novamente para Iara, viu que a
amiga sacudia a cabea, como se no tivesse gostado do que havia presenciado.
Batia a bola duas vezes no cho e sacava sem saltar, enviando uma bola fcil para
o outro lado.
Ei, Iara! chamou Marisa, do outro lado. Que bola boba! assim que voc
vai sacar contra o Cultura Mndi, ? Ento estamos perdidas! Ah, ah!

Ambas as partidas viraram brincadeira, cheias de provocaes, do jeito que a


experincia dos professores havia previsto.
Mais uns minutos e o saque estava com Cssia, na primeira quadra. A menina
subiu e enfiou um belssimo "viagem ao fundo do mar". Do outro lado, a bola explodiu no
peito do Milto e os times caram na gargalhada com a expresso atnita do menino
grande. Desmond, muito alegre, correu para a amiga e os dois abraaram-se, danando e
pulando.
Na quadra ao lado, Iara estava de mos na cintura, rindo:
Olha l, Adele! Olha s que beijo!
Ahn? Beijo?
Ah, no... Acho que no foi um beijo...
No prximo passe, enviado de Malu para Adele, foi a vez de o time de Iara
despencar em gozao: Adele estava desconcentrada e "furou", como uma iniciante.
Conseguido o intento de descontrair o grupo, pouco depois os professores
interrompiam as partidas:
Chega, turma! Todo mundo pro chuveiro!
As brincadeiras continuavam e os jovens correram desorganizadamente para os
vestirios. Iara passou o brao pelos ombros de Adele, rindo muito, entrando no clima de
todos e comentando:
Puxa, foi demais, Adele! E voc viu como o Desmond e a Cssia se do bem?
Que amizade, hein? Legal, n?
Distrada, Adele no se apressava para o chuveiro. Iara ficou com ela, pois ambas
sabiam que teriam de esperar um pouco, pois s havia cinco chuveiros em cada vestirio.
Ficaram olhando os que entravam na frente. Todos riam e se cumprimentavam, batendo-se
as palmas das mos, como fazem os profissionais de vlei.
Quando Desmond e Cssia bateram-se as mos e Desmond correu em seguida
para o vestirio, Iara comentou, baixinho:
Puxa, que estranho...
O que voc disse? perguntou Adele.
Eu? Nada, ora... nem sei o que eu disse...
Era por causa do Desmond com a Cssia?
Isso? Ora, claro que no... S porque o Desmond entrou rpido no vestirio
quando notou que voc estava olhando para ele com a Cssia? Ora, isso no tem nada
demais...

Por qu? Voc achou que eles...


Eu no achei nada, Adele. Que bobagem!
Voc acha que ele fugiu de propsito, quando viu que eu estava olhando?
Deixa disso, Adele! O Desmond no nenhum criminoso, no est fazendo
nada de errado. Por que haveria de fugir de voc?
No sei... Acho que sim...
Iara voltou-se para a amiga, com uma expresso divertida, olhando-a bem nos
olhos, de frente, com as duas mos em seus ombros:
Que cara essa, menina? O que voc est pensando? Ah, v! No v me dizer
que est com cimes do Desmond com a Cssia! Ora, o que que tem? Um rapaz pode ter
uma amiga, no pode? Como se fosse uma irm...
Para a tarde de quinta-feira, s cinco, estava marcado novo treino das equipes de
vlei do Queiroz Telles. A temida final estava prxima e nenhum dia podia ser desperdiado.
Mas os treinos tiveram de ser cancelados. Surgira algum detalhe burocrtico que
teria de ser resolvido pelos dois treinadores com a diretoria da Liga Juvenil, e dona Maria
Helena e Joo Massa mandaram avisar do cancelamento.
Cad a Cssia?
Conseguiu dispensa da ltima aula, Iara. Algum parente dela est chegando ou
partindo de viagem e ela teve de ir com a famlia ao aeroporto...
"Hum! A Cssia, a nossa capit, saiu mais cedo? Ah, ah! agora que eu vou pegar
uma gorda ratazana! Cssia: chegou a tua hora!"
A gente precisa avisar a Cssia lembrou Magda. Iara adiantou-se:
Pode deixar que eu telefono pra Cassinha. Deixa que eu aviso...
"Isso no poderia vir em melhor hora. Preciso falar com a Roberta!", pensava a
menina, sem nenhuma inteno de telefonar para Cssia.
Roberta, vem c

chamou Iara autoritariamente, logo depois, quando

descobriu a colega na cantina, esperando ser atendida.


Espera a, ainda no me deram o refrigerante.
O refrigerante pode esperar. Vem c!
Obediente, Roberta acompanhou Iara para o "canto dos amassos", que naquele
momento estava desocupado.
Roberta, tenho a maior notcia do mundo: voc vai recuperar o seu lugar ainda
hoje!
Mesmo? Que maravilha! alegrou-se Roberta. Dona Maria Helena falou pra

voc?
Ainda no falou. Vai falar hoje tarde. Escute bem: eu, voc e Cssia vamos
estar aqui, s quatro, como se o treino no tivesse sido cancelado. Eu consegui o nmero
do celular da dona Maria Helena. Traga o celular da sua me. J fiz o clculo e, quando a
gente ligar pra ela, no vai levar nem vinte minutos pra ela chegar da Liga Juvenil at aqui.
Mas ela no disse que no vem? O que que...?
J planejei tudinho cortou Iara.
Hoje tarde voc vai ter de provocar a Cssia.
O qu?
Oua!

11. A gente vai fazer o seguinte...


O cu da tarde estava escuro, ameaando tempestade, quando Cssia chegou ao
Queiroz com sua mochila nas costas.
U? Cad todo mundo?
Somente Iara e Roberta batiam bola com Neusinha, que havia faltado naquela
manh para ir ao dentista e tambm no tinha sido avisada do cancelamento do treino.
Olha a, gente! a Cssia apontou Neusinha. Tambm esqueceram dela.
Uma trovoada estrondeou, furiosa, quando Iara segurou a bola e veio sorrindo
para o lado da colega:
Oi, Cassinha! O professor Joo Massa e dona Maria Helena tiveram de ir Liga
Juvenil de Vlei para resolver no sei o qu. Parece que para levar a lista dos jogadores
inscritos para a final...
Neusinha veio para perto, encolhendo-se por causa do vento gelado, que varria as
quadras.
O guarda da tarde que avisou a gente do cancelamento do treino, Cssia.
Acho que s ns no fomos avisadas...
Cssia arreou os ombros, parecendo sem nimo:
Puxa... que eu tive de ir a Cumbica para o botafora de um primo. o Jaime,
lembram dele? Arrumou um intercmbio, nos Estados Unidos...
Olha a chuva, gente!
Pingos fortes comearam a cair sobre as quadras descobertas e as quatro

abrigaram-se sob a cobertura do galpo do recreio. O colgio estava deserto. Iara pegou
sua mochila e dirigiu as trs colegas para uma das mesas compridas, de alvenaria, que
havia por todo o galpo.
Que chuvarada, hein? Acho que vai esfriar...
Vai esfriar? riu-se Neusinha. J est frio, Iara!
Cssia sentou-se no banco que acompanhava toda a extenso da mesa e apoiou
os cotovelos no tampo de concreto:
Que chato esse cancelamento! Vamos perder a tarde toda, sem treino nem
nada. E eu precisava estudar Fsica, meninas, ando mal de Fsica...
Voc?! riu-se Iara. Desde que eu te conheo, Cassinha, quando voc est
mal em alguma matria, porque vai tirar s nove e meio na prova! Nem sei como voc
pode se concentrar em Fsica com a final que a gente vai ter de jogar daqui a dois dias!
Roberta arregalou os olhos e franziu a boca, lembrando-se do desafio que as
esperava:
Nem fale, Iara! Vai ser o jogo do sculo!
A chuva fazia um barulho infernal, martelando o telhado do galpo. Iara,
lentamente, abria o zper da mochila:
Se vai, Roberta, se vai! Imagine se, com essa chuva toda, uma de ns pegar um
resfriado!
Nem fale nisso, menina!

comentou Cssia. Nosso time tem de estar

completo no sbado. E em ponto de bala!


Neusinha levantou-se:
T frio demais. Vou buscar a jaqueta na mochila. Afastou-se para o vestirio e
Iara retomou a conversa do ponto anterior:
Como capit do time, voc que tem de estar na melhor forma, Cassinha. Acho
melhor a gente nem tentar voltar pra casa, antes que essa chuva passe de todo...
Que chato... lamentou Roberta. O que a gente vai ficar fazendo?
Que tal dar uma esquentada nos ossos? Iara tirava da mochila uma garrafa
sem rtulo, cheia de um lquido pardo. Olhem s o que eu trouxe: batida de amendoim!
Cssia espantou-se:
O qu? Vocs vo beber isso?
Ns vamos beber isso, querida. Roberta, v pegar uns copos plsticos ali no
bebedouro.
Roberta riu-se e correu para o bebedouro, que ficava a poucos metros. Cssia

estendia o brao, rindo, meio temerosa, com a mo espalmada na direo da garrafa:


Eu, hein? O que isso, meninas? Eu no posso com lcool. S uma vez na vida
eu me meti a experimentar um usque do meu pai e vocs nem imaginam como eu fiquei!
Iara sacudia a garrafa, para misturar o contedo, e pegava um dos copos trazidos
por Roberta.
Ora, Cassinha! Que frescura essa? Quando voc tomou l seu foguinho com
o usque do papai? Faz tempo, no ? Agora voc no mais criana. Alm disso, essa
uma batidinha deliciosa, fraquinha, quase um refresco... Voc no gosta de paoca? Pois ,
esta uma batida de paoca! Ah, ah!
Sei no, Iara...
Vai, boba. S um golinho pra esperar a chuva passar...
Cssia pegou o copo cheio at a metade que a amiga lhe estendia.
T bom... S um gole, t?
Iara e Roberta levaram seus copos boca, mantendo os lbios trancados e
fingindo que bebiam. Como haviam combinado, s Cssia deveria beber.
Hum... at que no est nada m essa bebidinha, no , Cssia?
Tem um gostinho de paoca, como voc disse. Puxa, meninas, eu no devia...
Vai firme, Cssia! incentivou Roberta. Isso vacina contra resfriado!
Aos poucos, aquela pobre garota, que sempre procurava agradar a todo mundo e
jamais tinha foras para dizer "no", mal tinha consumido o primeiro copo e j levantava a
nova dose servida por Iara, propondo um brinde:
nossa amizade, garotas! Viva o Queiroz!
Bola pr alto, bola no cho! secundaram Roberta e Iara, rindo soltas, como se
tivessem bebido como Cssia. O Queiroz campeo!
Neusinha voltava naquela hora:
Ei, gente! Isso uma festa, ?
Uma festana, Neusinha! gritou Cssia. Junte-se gente. Ns somos as
trs mosqueteiras! Venha ser o Porthos!
Eu? Eu, no. Quero ser o D'Artagnan!
Voc muito grande, Neusinha! brincava Cssia. S pode mesmo ser o
Porthos! Ah, ah!
Iara fez o sinal combinado para Roberta. Estava na hora. A menina levantou-se
discretamente e sumiu para os fundos do galpo. O celular de sua me estava na mochila e
aquela era a hora de ligar para dona Maria Helena.

Viva o Queiroz! gritava Cssia, entornando nova dose de um s gole.


Vivaaaa! acompanhavam Iara e Neusinha. Quando Roberta voltou, Cssia
estava de p, segurando a garrafa de batida pelo gargalo e aceitando o desafio de
Neusinha, que tambm havia entornado uns bons dois copos de batida:
Quero ver voc fazer um quatro! Vamos l, Cssia, um quatro!
Cambaleando, Cssia tentava dobrar uma das pernas e ria-se, bbada:
Eu estou tima, meninas, tima! Fao quatro, fao oito, fao qualquer nmero,
querem ver?
Obedecendo ao aceno de Iara, Roberta entrou com a ltima parte do plano:
Por que no faz um sessenta e nove, Cssia?
A menina parou os volteios que tentava fazer com as pernas e olhou
embaadamente para Roberta. Neusinha comentou:
Hoje voc est uma grossa mesmo, hein, Roberta?
O que , turma? continuava a garota com sua provocao planejada. Nem
se pode brincar, ?
Cssia cambaleou em sua direo, sem saber se ria ou se ficava brava:
isso da, meninas! Brincadeira tem hora. E a hora agora! Ah, ah!
Apoiou-se pesadamente no ombro de Roberta, que se afastou, num repelo:
Sai pra l, cu-de-ferro!
O olhar vago de Cssia tentou fixar-se na colega, sem grande resultado:
O que voc disse?
Eu disse o que voc : cu-de-ferro!
A pobre menina bbada e enganada era incapaz de erguer a voz contra algum.
Mas esse xingamento tinha sido um problema para ela durante toda sua vida escolar:
Retire o que voc disse, Roberta! Retire o que voc disse! J!
Ei, meninas Neusinha tentava intervir. Vamos, deixem disso! Cssia, vem
c, voc no est boa...
Cssia cambaleou para trs...
Quem que no est boa aqui?
... e trombou contra a mesa de concreto, espatifando a garrafa.
Hein?
Neusinha tentou ampar-la e o gargalo da garrafa, ainda agarrado por Cssia,
rasgou a manga de sua jaqueta.
Ai! gritou Neusinha.

Meu Deus, o que voc fez, Cssia?

Iara interveio, agora pressurosa,

amparando Neusinha. A manga da jaqueta da garota tinha sido cortada e uma mancha de
sangue misturava-se ao vermelho do tecido. Voc cortou a Neusinha!
Hein? balbuciava Cssia, sem entender direito o que acontecia.
Nesse momento, o porto que ligava o prdio da escola ao ptio abriu-se
violentamente. Os dois treinadores chegavam juntos, preocupados pelo telefonema de
Roberta, que interrompera a reunio na Liga Juvenil de Vlei.
Dona Maria Helena! Professor Joo Massa! chamava Iara, preocupadssima,
amparando Neusinha. Acudam!

12. Ela est fora do time


Se atos como esse seu, Cssia, comeam a ser cometidos livremente, sem
punio, o bom nome do nosso time e do prprio Colgio Carlos Queiroz Telles que vai
acabar sendo manchado.
Na manh de sexta-feira, dona Maria Helena no aceitou a intermediao nem da
diretoria do colgio, nem dos pais de Cssia. O prprio Joo Massa teve de ficar parte,
sem voz ativa na deciso da professora.
E a deciso foi drstica: Cssia perdia seu lugar no time.
Parece incrvel que jovens como voc, Cssia, metam pela boca um inimigo que
lhes rouba a razo, o raciocnio, a vergonha! Eu no posso entender por que os jovens
aceitam meter-se com lcool e drogas, transformando a si mesmos em verdadeiros
animais. E isso tudo com prazer, rindo e brincando!
Na quadra principal do colgio, de p, na frente da professora, com todo o time
feminino sentado em volta, Cssia tinha a expresso de um trapo. Plida como papel, seus
lbios tremiam e lgrimas mudas brotavam sem parar dos olhos vermelhos, que haviam
chorado durante toda a noite e ainda conseguiam encontrar reservas salgadas para
demonstrar sofrimento e humilhao.
Depois de ter vomitado, de ter passado mal a noite toda, sua cabea ainda girava
pelo efeito da aguardente vagabunda que Iara trouxera. Mas a menina no tinha aberto a
boca para denunciar quem havia trazido a bebida. Considerou-se a nica culpada e no
quis piorar tudo, envolvendo Iara, Roberta e Neusinha em sua desgraa.
Voc fica fora da final, Cssia encerrava dona Maria Helena. No ficar
nem no banco. No ir com o grupo para Santos. O posto de capit fica com Adele.

E a posio de titular no meio da defesa fica com Malu. Para a reserva da Malu,
vou promover a Norminha, da oitava...
O tempo todo Iara sabia que a deciso s poderia ter sido mesmo aquela. Desde o
comeo, Roberta no tivera a menor chance de recuperar seu lugar no time, pois era
levantadora, e no defensora como Cssia ou Malu. Mas fez a mais convincente expresso
de surpresa quando recebeu o olhar pnico de Roberta, ao ouvir a nova escalao do
sexteto titular.
Na primeira oportunidade que teve para procurar Iara sozinha, Roberta no teve
tempo de abrir a boca e reclamar do desastroso resultado do plano da amiga. Iara levantou
a mo, fazendo-a calar-se e procurando acalm-la:
Fique fria, Roberta. As coisas esto indo do jeito que eu planejei. Agora s falta
o prximo peixe em nossa rede: vamos fisgar uma trara negra...
Logo as duas estavam rodeadas pelas outras jogadoras do grupo, todas excitadas,
nervosas, umas falando em injustia, outras sem conseguir entender como que uma
garota certinha como a Cssia podia ter se embriagado daquele jeito.
Conheo a Cassinha h anos, meninas Iara balanava a cabea,
demonstrando-se arrasada com tudo o que havia acontecido.

Coitada da Cassinha,

coitadinha dela! Isso problema de famlia, sabem? Uma desgraa... Ela tem at um tio
internado, com problemas de bebida... Isso coisa de famlia...
Alcolatra? Ser que a Cssia uma alcolatra?
Claro que no! Isso leva tempo. Mas, por favor, no espalhem nada mais,
nenhum comentrio, nenhuma fofoca que possa piorar o drama da Cssia. Vocs sabem
como eu adoro a Cassinha. No h o que eu no fizesse na vida para livr-la desse maldito
vcio...
Coitada da Cssia... lamentava Lorena, chorando pela amiga.
Magda tentava ver a coisa por um lado menos grave:
Foi uma sorte danada a Neusinha estar com frio e ter vestido a jaqueta, no foi?
Iara tocou delicadamente o rosto da colega e sorriu, com tristeza.
Quando a Cssia bebe, menina, ela perde a cabea mesmo, perde a cabea...
Por sorte essa violncia dela acabou s com um corte de nada na Neusinha...
continuou Magda. No precisou nem levar ponto...
Sandra ainda no entendia como Cssia podia esconder tantos problemas numa
aparncia to adequada, to de acordo com o que os adultos esperavam dela:
Quem podia imaginar uma coisa dessas, hein? S voc mesma, Iara, que

conhece a Cssia h tanto tempo... Mas que idia a dela, trazer uma garrafa de pinga para
a escola!
No foi? completou Iara. Por sorte eu estava l... Se eu no apartasse as
duas... No sei no...
Naquele momento, Roberta estava mais plida que a prpria Cssia.
Iara, tenho de falar com voc!
A menina levantou os olhos, fixando o olhar preocupado de Emlio, parado na sua
frente, bloqueando-lhe a passagem.
Tem de falar comigo? Por qu? Eu no tenho de falar com voc...
Emlio no aceitou a agresso:
Alguma coisa muito errada est acontecendo, fofinha. Muito torta mesmo. O
que h? Tenho observado voc nos ltimos dias e...
Observado?! cortou Iara, com desdm. Pois trate de ficar de olho em
quem quiser ser olhada por voc. Eu no!
Iara, eu vi quando voc...
Quando eu o qu? Ora, v se me esquece!
Contornou o corpo de Emlio e deixou-o para trs. Ao longe, sentada na terra,
debaixo da velha jabuticabeira que ficava atrs dos alambrados das quadras, Iara viu uma
solitria e desolada Cssia. Pelo jeito, a menina no encontraria foras para entrar em aula.
"Ela agora est no ponto. Vamos ao prximo captulo, querida Cssia..."
Iara deu a volta nos alambrados e ajoelhou-se ao lado da colega. Sem uma
palavra, abraou-a apertado, intensamente. Cssia desabou num choro sofrido, entregue,
sem censuras.
Ai, Iara! Por que que eu fui fazer uma coisa dessas?
Shhh... querida... shhh... Pode desabafar, comigo voc pode desabafar tudo o
que quiser...
Perdi tudo, Iara, perdi tudo!
No, Cassinha, todo mundo conhece voc, e logo todos vo descobrir que o
que aconteceu foi um acidente idiota. Voc sempre foi a aluna mais querida do Queiroz.
Sua reputao ...
Cssia enterrou o rosto nas mos:
Reputao! Reputao! A minha est perdida! Isso fazia parte de mim, agora
estou vazia, como um cadver. Minha reputao, Iara, minha reputao!
Calma, isso no nada. Voc est inteirinha, como sempre foi. Um ferimento no

corpo di mais do que na reputao. Essa histria de nome, de honra, de reputao, no


vale nada. O que significa isso de reputao? O mundo anda cheio de gente que ganha
uma tima reputao sem merecer e de gente que a perde sem motivo, como voc. Isso a
vida, Cssia...
Ai, Iara! Todo mundo agora vai me olhar diferente... Que vergonha! Eu preferia
que um ladro tivesse roubado toda a minha mesada. Pelo menos, se eu ficasse sem
dinheiro, o ladro poderia ficar com ele e gastar como entendesse. Mas, quando algum
rouba o meu nome, eu fico totalmente pobre, mas o ladro no enriquece com isso...
Ricos e pobres, Cssia? A gente tem de valorizar o que a gente tem. Um
pobre que est contente com o pouco que possui muito mais rico que o rico que vive na
parania de perder o que tem... E voc tem muito, querida, muito... Todas ns gostamos de
voc, todas ns estamos do seu lado. Isso o que vale, isso o que voc tem. Faa como
o pobre, que vive feliz valorizando o que tem!
Ah, Iara! Se eu no tivesse uma amiga como voc...
Iara acariciava delicadamente os cabelos de Cssia, como se ninasse um beb na
hora de dormir:
Esquea. que voc perdeu o controle. Eu s queria que a gente tomasse um
gole, um golinho s... mas voc abusou, perdeu a cabea...
Por que voc foi trazer aquela bebida horrvel, Iara?
Para um golinho s, Cssia. No foi o que eu disse: "Um golinho s"?
Lembra-se? Mas voc abusou, querida, perdeu o controle...
A culpa minha, minha! Ai, a bebida! Se a bebida no tivesse nome, era s
cham-la de demnio!
Calma, calma... preciso saber lidar com a bebida...
Eu no sei lidar com mais nada, Iara, com mais nada...
Iara tocou a ponta do queixo da amiga com o indicador e levantou seu rosto:
Olhe, Cassinha, isso tudo vai passar. S que a gente no tem tempo para
esperar que as coisas esfriem. Ns precisamos de voc em quadra amanh noite.
Isso impossvel, Iara, impossvel...
Nada disso! Eu sei o jeito de voc recuperar tudo. Dona Maria Helena uma
tima pessoa. No corao dela no tem lugar pra raiva, nem pra dio. Ela sabe perdoar.
Deixe que eu vou falar com ela.
Ela no vai querer conversa, Iara...
Talvez no, mas tem uma pessoa que a dona Maria Helena ouviria melhor. a

Adele. Duvido que ela no faa uma coisa que a Adele pedir. E voc no sabe como a Adele
tem jeito com as palavras, menina, voc nem calcula!
mesmo? Mas ser que a Adele vai aceitar fazer isso por mim?
A depende. Depende de quem pedir esse favor a ela. O caminho o Desmond,
Cssia, o Desmond! Voc est cansada de saber como a Adele apaixonada pelo
Desmond, no ? Voc acha que ela negaria qualquer coisa que ele pedisse?
O ptio esvaziava-se e os alunos voltavam s classes, tangidos pela campainha
estridente.
Uma aula de Geografia arrastou-se inteirinha, at que batesse o sinal para o
intervalo. Com o canto do olho, Iara viu Cssia sair apressada da sala. Seguindo seu
conselho, a pobre menina iria procura de Desmond. Era preciso reter um pouco Adele na
classe, para no estragar o plano:
Ai, menina! Estou arrasada com tudo o que est acontecendo. Estive agora
mesmo falando com o Leo e...
Iara conseguiu prolongar o curto dilogo por mais dois minutos e desceu junto com
Adele. Chegaram ao ptio e, ao fundo, encostados em uma parede, l estavam Cssia e
Desmond. O rapaz ouvia, preocupado, e Cssia falava com insistncia, agarrada em seu
brao.
Olha s, Adele... comentou Iara, com o ar mais cndido do mundo. Acho
superlegal essa amizade do Desmond com a Cssia...
Hum?
Est vendo? Logo que alguma coisa de ruim acontece com ela, com o
Desmond que ela vai desabafar. Superbonita essa amizade...
Os olhos de Adele estavam abertos, mudos, e seu lbio tremeu levemente.
Do outro lado do ptio, Desmond tocava a cabea de Cssia, com carinho, e seus
lbios se abriam, respondendo com imensa ternura ao que acabava de ouvir. Logo, Cssia
separava-se de Desmond e sumia para o fundo do galpo do recreio.
Hum? fez Iara, muito baixo. A boneca vai fugir de novo?
Adele teve um sobressalto:
Fugir?
Desmond esticava o olhar e encontrava a namorada ao lado de Iara, perto da
cantina.
Veio vindo, com um ar preocupado.
Oi, amor!

Adele aceitou o beijinho na face e nada disse.


Oi, Desmond brincou Iara. Quer que eu v tomar um sorvete, quer?
O rapaz tocou-lhe o brao:
No, nada disso, Iara. Eu preciso pedir uma coisa a Adele e at bom que voc
oua...
Pedir uma coisa? estranhou Adele. O que que voc quer me pedir?
Desmond pegava Adele pelos ombros e falava, com uma voz de veludo:
a Cssia, querida. O que aconteceu com ela foi uma tragdia
incompreensvel. A Cssia nunca fez nada de errado na vida e isso vai acabar com ela...
Nunca fez nada de errado, , Desmond? balbuciou Adele, trmula, ao ver
confirmadas suas suspeitas.
Isso mesmo, meu amor. Dona Maria Helena precisa perdo-la e devolver o
lugar dela no time. A Cssia tem de estar em Santos, jogando a final contra o Cultura
Mndi...
Tem, ? E o que eu tenho com isso?
Voc a verdadeira lder do time, Adele. Dona Maria Helena ouve tudo o que
voc diz. Tenho certeza de que, se voc pedir, ela vai dar outra chance Cssia. Por favor,
Adele...
Adele parecia diferente, com uma expresso que nenhum dos colegas do Queiroz
tinha visto antes.
Encarou o namorado sria, como se tentasse ler algo que o rosto do rapaz poderia
estar escondendo:
Est bem, Desmond. Vou pensar nisso.
Pensar, Adele? insistiu Desmond. No h tempo a perder. Hoje sexta. A
gente viaja para Santos amanh, depois do almoo. S temos o treino de hoje tarde. Se
voc no conseguir mudar o pensamento de dona Maria Helena ainda hoje, a Cssia no
vai cons...
Adele ergueu a mo, interrompendo com dureza:
J disse que vou pensar, Desmond. Agora, por favor, me d licena, que eu
tenho de falar com Iara sobre um problema.
Um problema? Que problema?
Matemtica, Desmond. Sobre um problema de Matemtica...

13. Olhos ciganos


As duas saram apressadas de perto de Desmond, Iara segurando o brao de
Adele, as duas em busca de algum canto isolado, tentando fugir da aglomerao do
intervalo.
Entraram pelo corredor lateral externo da escola, enfiando-se pelo jardim
bem-cuidado.
De repente, Adele parou bem debaixo das janelas da sala da administrao e
encostou-se, com os braos para baixo, apoiando as mos espalmadas na parede, como
se estivesse sendo ameaada por algum perigo iminente. O pnico estampava-se no rosto
da menina, que arregalava os olhos para a amiga:
Miservel! fcil dizer que esses garotos so nossos namorados! Mas dizer
que o teso deles nosso, isso nunca!
Iara balanava freneticamente as mos, tentando espantar as suspeitas de Adele
como se elas fossem um enxame de mosquitos:
Que loucura essa, querida? Ficou maluca? O que voc est dizendo? O que
que tem o Desmond fazer um pedido pela Cssia? como se o Leo, ou o Caca, ou eu
mesma tivssemos pedido isso a voc! Todas ns, todos ns queremos ajudar a Cassinha.
Voc no quer?
Eu?! O que eu quero ... Adele susteve o que ia dizer, cerrou os olhos e
balanou a cabea, afastando um mau pensamento. Ai, amiga, minha amiga, nem sei o
que eu quero... Essa noite... nem dormi, pensando de novo tudo o que eu pensava quando
eu e o Desmond comeamos a namorar. Ele dizia todas aquelas coisas bonitas... Eu
pensava... Eu pensei... eu ainda penso que s pode ser uma loucura passageira um garoto
como o Desmond olhar para algum como eu...
Algum como voc? O que voc quer dizer com isso?
Eu sou negra, Iara, eu sou negra! Voc no v isso?
Iara abriu os braos e jogou a cabea para trs:
Oh, eu sabia que qualquer dia desses voc acabaria vindo com essa bobagem!
Se a cor dos anjos a cor do cu, Adele, pra mim voc no negra,
azul-anjinho-de-procisso!"
Voc um amor, Iara, voc o nico ar que eu consigo respirar nesse
momento. Mas no adianta eu tentar me enganar. Pense bem: quem um garoto como o
Desmond escolheria, tendo de um lado a Cssia, linda, inteligente, alvo dos assobios de

toda a escola, e, do outro, eu, a negra que sonhou ser possvel conquistar o corao de um
homem como ele?
No me venha com isso, Adele! Onde est a menina segura que eu conheo?
Eu escolhi voc! Todo mundo escolheu voc! Por que o Desmond no haveria de escolher
uma garota linda como voc? Confie nele, confie nos seus amigos, confie em mim!
Voc a nica pessoa em quem eu confio cegamente no mundo, Iara. Mas,
nesse momento, voc s pode me oferecer palavras de consolo. Palavras! As palavras no
servem para quem est sofrendo. Nunca ouvi dizer que um corao machucado possa ser
tratado pelo ouvido!
Adele, calma! Voc est confundindo tudo! A amizade do Desmond com a
Cssia a coisa mais comum do mundo! Voc tem de agir como se...
Adele no conseguia ouvir:
Desculpe, Iara, mas eu estou farta de conselhos! Conselho que procura
consolar a quem sofre fcil de seguir para quem no est sofrendo. Para quem est em
desespero, duro ter de aturar ao mesmo tempo a dor e o conselho!
Adele, Adele! O cime um monstro, Adele. Um monstro que cria a si mesmo,
que se alimenta de si mesmo! Fuja do cime!
Adele chorava desconsoladamente e abraou-se amiga, absorvendo o calor da
solidariedade que Iara lhe oferecia.
Cime! Melhor ser trada cem mil vezes, Iara, do que suspeitar uma s vez de
traio! Nos lbios dele, eu jamais encontrei os beijos dela. No corpo dele, eu nunca aspirei
o cheiro dela. Tudo ia to bem... Por que eu fui descobrir tudo? Por qu?
Iara demonstrava-se aflitssima:
Ele seu namorado, Adele. Ele adora voc. Jamais faria alguma coisa para
feri-la. ele quem carrega a sua medalhinha, no ? O smbolo do amor entre vocs, no
? A medalhinha como uma aliana de noivado, Adele!
Adele separou-se bruscamente do abrao da amiga e encarou-a, com os olhos
arregalados:
A medalhinha! Espere um pouco, Iara. Eu volto num minuto. No saia daqui!
Iara recostou-se na parede, soltando lentamente o ar contido nos pulmes e vendo
Adele correr de volta ao ptio. Aliviada, sentia-se aliviada. Tudo estava dando to certo, to
certo...
"Logo, ai, logo eu vou estar novamente nos seus braos, Desmond... Voc vai me
encontrar como eu sempre fui, apaixonada. Amanh, eu vou continuar como sou hoje,

apaixonada. Para sempre, meu querido, apaixonada por voc..."


Adele voltava. Em seus olhos havia quase que um ar de satisfao por ter
confirmado uma suspeita. Uma espcie de euforia, que acobertava o desespero que
queimava em brasa seu corao:
Iara, Iara... Ele no est com a medalhinha que eu dei, Iara...
O que que voc est dizendo, Adele?
Ele e Emlio conversavam quando eu cheguei. Ele veio com um sorriso triste,
tentando me abraar, mas eu me afastei e pedi para fazer uma pergunta, uma pergunta s.
S o que eu queria ver era a medalhinha que eu havia dado a ele num instante de felicidade
nica, de paixo completa... A medalhinha que eu...
E a ele mostrou a medalhinha, no mostrou?
Ai, eu estava certa, Iara, eu estava certa! Ai, como eu queria que voc tivesse
razo, quando disse que o que eu suspeitava no passava de bobagem... Mas ele ficou
sem jeito, sem jeito, Iara! Disse que havia esquecido a medalha em cima da pia, quando
escovava os dentes pra vir pra escola... Mas os olhos dele, Iara, os olhos dele! Os olhos
dele mentiam! Havia mentira naquele olhar!
Iara segurou-lhe os ombros, insistente:
Adele, Adele! Por que voc acha que ele est mentindo? No se deixe tomar
pelo cime! O cime um monstro de olhos verdes que destri o prprio ser que ama!
Olhos verdes! Eu vi a mentira naqueles olhos verdes dele, Iara! Voc mesma
no me falou dos olhos ciganos do Desmond? Dos olhos que olham de lado, dissimulados?
Olhos de gua! Olhos do demnio!
Loucura, Adele! Isso loucura. Voc est transformando esse cime em dio!
Adele no a ouvia, dominada pelo que estava sentindo:
Ai, saber da traio! Isso o pior de tudo. Como seria bom se eu no soubesse
de nada! Ai, que tortura descobrir tudo! Se algum me furta por exemplo uma rgua da
mochila e eu no percebo, como se eu nem tivesse sido roubada. Roubado que no d
por falta do que lhe foi roubado, porque no foi roubado em nada! Mas descobrir...
descobrir... ficar sabendo... voc no sabe como isso di, Iara...
Mas de que traio voc sabe, Adele? O que que voc descobriu realmente?
Nada! Ser que to anormal assim esquecer a medalhinha em cima da pia?
Minha me diz que marido que esquece a aliana em cima da pia porque est
saindo pra aprontar alguma!
Iara abriu a boca, mas seus argumentos pareciam esgotados. Esperou um pouco,

olhando para o cho. Depois segurou a mo de Adele e levou-a ao peito, apertada:


Bom, talvez voc tenha um pouco de razo, Adele... Veja l: eu no estou
dizendo que voc est certa. s uma hiptese. Eu estava lembrando do tempo em que eu
estava com o Desmond. Na poca eu fiquei furiosa, claro que eu fiquei furiosa com aquela
fome dele por qualquer fmea que lhe passasse pela frente, mas essas coisas passam,
sabe?
Est vendo? E voc ainda me diz que o Desmond mudou! Ele ainda o mesmo,
Iara!
Iara olhou para longe, recordando momentos de aflio:
Talvez, sei l... quando eu lembro do que o Desmond me fez, no ano passado,
fico pensando se aquele Desmond no estaria ainda dentro deste, como uma fruta dentro
da casca...
Adele voltava a chorar, agora como uma criana que se perdeu da me na feira:
Ah, Iara! O que eu vou fazer, Iara?
A amiga apertou-lhe a mo ainda mais:
Voc acha que eu deixaria voc sozinha num momento como esse? Fico do teu
lado at o fim!
Eu estou nas tuas mos, Iara.. Abenoadas as tuas mos...
Vou dizer o que que ns temos de fazer, Adele. Nada pior do que a
incerteza. Sabe o "canto dos amassos"? Hoje tarde, na hora do intervalo do treino de
vlei, v para l e fique escondida. Eu vou dar um jeito de trazer a Cssia para perto. D pra
ouvir tudinho, do outro lado da coluna. Vou perguntar diretamente pra ela se o Desmond
anda dando em cima dela ou no. Como eu no sou voc, a Cssia no ter nenhum
problema em falar a verdade pra mim, eu tenho certeza.
Ora, ela vai ficar de bico calado. Por que voc acha que ela vai se abrir com
voc?
Vai sim, voc vai ver. E vai ver tambm que tudo isso no passa de maluquices
que voc mesma enfiou na cabea...
No final das aulas daquela manh, sem que Iara tivesse comunicado a Adele, uma
comisso de jogadoras, com Desmond junto, foi falar com dona Maria Helena. A professora,
j no estacionamento, pronta para ligar o carro e ir para casa, ouviu pacientemente a
solidariedade dos colegas de Cssia. Era uma grande educadora e resolveu:
Est bem. Como vocs, eu sei que Cssia uma menina excelente. Mas o
deslize foi grande demais e alguma conseqncia ela deve sofrer por seu mau

comportamento. Est bem. Ela vai com a gente para Santos. Mas a titular continua sendo a
Malu. Cssia fica no banco de reservas. Podem avis-la.
Mal Cssia chegava em casa, a me estendia-lhe o telefone:
Pra voc, minha filha...
Al...
Do outro lado da linha, a voz de Iara, na maior alegria e na maior excitao:
ltimas notcias, querida: nossa reportagem acaba de apurar que a sua grande
amiga Iara acaba de falar com dona Maria Helena implorando para que voc volte equipe
e... E ela cedeu!
Como?!
Bom, no cedeu completamente. Voc ainda est na reserva, mas vai poder
viajar amanh com a gente. Trate de aparecer hoje tarde no treino. Voc est de novo no
time, Cassinha querida!
tarde, como ocorre sempre em vsperas de grandes decises, como acontece
nos ensaios gerais de teatro antes das estrias, a qualidade do treino transcorria muito
abaixo do que os treinadores normalmente exigiam dos dois times do Carlos Queiroz Telles.
O nervosismo imperava, mas tanto Joo Massa quanto dona Maria Helena sabiam que
aquilo era energia represada para uma grande luta no dia seguinte.
Na hora do intervalo, todos estavam suados e muito falantes, na expectativa do
jogo.
Adele, como havia sido combinado, sumiu atrs

da coluna do "canto dos

amassos".
Iara pegou Cssia pelo brao e comeou o encontro com o mais alegre sorriso
deste mundo:
E ento? As coisas esto comeando a melhorar, no , Cassinha?
Ah, obrigada, Iara! Voc foi maravilhosa! Hoje, quando eu cheguei para o treino,
a primeira coisa que fiz foi correr para dona Maria Helena e agradecer. Ela disse que eu
devia era agradecer s amigas que eu tenho e ao Desmond. Mas eu sei que tudo foi mesmo
por sua causa, Iara! Obrigada mesmo! Que advogada voc vai dar!
O que eu no faria por voc, Cassinha? Vem c, vem...
J estavam encostadas na coluna ao lado da cantina, atrs da qual ficava o
famoso "canto dos amassos". Iara conhecia muito bem a acstica do local, depois de tantos
namoros de Adele e Desmond que havia espionado. Sabia qual o volume de voz que podia
ser ouvido daquele lado e, conseqentemente, sabia que volume deveria usar quando

quisesse ou quando no quisesse que Adele ficasse sabendo o que estava sendo dito.
Comeou num tom fofoqueiro, quase cochichando para Cssia:
E o tal do Branco, hein? E elevou o volume da voz:
O carinha continua insistindo? Nunca vi garoto mais doido por mulher!
Cssia riu:
um pobre-coitado. Parece mesmo que est cado por mim...
Bom... continuou Iara, num tom de deboche.

Ouvi dizer que ele anda

espalhando por todo canto que voc j est no papo...


No papo, eu? Ora, faa-me o favor, Iara! Voc acha que eu sou maluca? Se ele
anda dizendo besteira por a, isso l por conta dele... O idiota me persegue por toda parte!
Outro dia, quase tentou me agarrar. Voc imagina uma coisa dessas? E fica implorando
como um coitado! Ah, eu preciso me ver livre desse bobo. E agora deu de vir para o meu
lado todo perfumado. Imagina s!
Depois que Cssia foi para o vestirio aproveitar o restante do intervalo, o que Iara
encontrou atrs da coluna foi algo parecido com um fantasma. Era decepo, era asco, era
dio que se lia nos olhos de Adele. Antes que ela dissesse qualquer coisa, Iara decidia, com
segurana:
Espere, Adele. Tenha um pouco de pacincia. Essa histria de os garotos
viverem dizendo gracinhas pra qualquer menina um vcio machista. Um vcio que no
quer dizer nada, no quer dizer que o carinha seja um traidor.
Machista? Ai, nem isso eu percebi nele!
Todos so. Eles vivem dizendo besteira s pra se exibirem na frente dos
amigos. Espere at amanh, no embarque no nibus pra Santos. Se Desmond no estiver
com a medalha, ento talvez voc tenha razo em suspeitar dele.
Esperar at amanh! Como que eu vou conseguir dormir?
Calma. Voc vai ver: na hora, l vai estar ele, com aquele sorriso de anncio de
pasta de dente e com a medalhinha a reluzir na frente do peito...

14. Nunca mais quero te ver


Calminha, Adele. Eu disse: controle-se! Ele vai chegar j, j. No adianta ficar
de ouvido em p cada vez que ouve o ronco de uma moto. Em dias de viagem, voc sabe
que o Desmond vem de carona com o pai. Calma. Logo, logo ele vai chegar, todo

cheirosinho e...
Cheirosinho! aparteou Adele, lembrando-se da tarde anterior.

Todo

perfumado, como ele vem pra dar em cima da Cssia, no ?


Esse seu cime j est dando nos nervos, Adele! Est bem: ento ele vir todo
fedido, mas tenho certeza de que, desta vez, ele no vai esquecer a medalhinha em cima
da pia! Fique tranqila, que tudo vai acabar bem.
O nibus que levaria os dois times para a disputa das partidas finais em Santos
estava encostado na frente do Colgio Carlos Queiroz Telles. Quase todos os rapazes e
moas j tinham chegado e comeavam a embarcar, brincando sem parar e carregando
suas mochilas. Iara e Adele permaneciam na calada, espera. Iara no largava a mo da
amiga, apertando-a para dar-lhe confiana.
Um carro escuro, importado, encostava logo atrs do nibus. As duas meninas o
reconheceram na mesma hora: o carro do pai de Desmond.
Da porta do passageiro, descia o garoto, com os longos cabelos loiros
recm-lavados e presos por uma faixa elstica branca. A tarde de maio estava um pouco
fria, e o rapaz vestia um agasalho de nilon. Sorriu para as duas meninas que
acompanhavam cada movimento de sua chegada como se fossem duas devotas assistindo
a uma apario do papa. Mas era um sorriso fraco, meio inseguro, muito distante da risada
franca a que elas estavam acostumadas.
Adele desvencilhou-se da mo de Iara e caminhou firme para Desmond. Ele abria
os braos para receb-la e ela chegava, com as palmas das mos estendidas para a frente,
em busca do peito do namorado. Tocou-o, apalpou-o por dentro do agasalho, procurando e
s encontrando a pele morna e os primeiros plos loiros que j comeavam a enfeitar o
peito de Desmond.
Seus lindos olhos ergueram-se para o rapaz. Nada disse e tudo dizia com aquele
olhar. Eram olhos j midos, repletos de decepo. Eram olhos que perdiam a ltima
esperana.
Desmond sentiu na prpria pele a ansiedade da pesquisa. O toque da menina que
ele adorava desta vez parecia mais agresso que carinho. Triste, falou a verdade:
Voc est procurando a medalha, no ? Bom, no adianta mentir: eu no
consigo encontrar a medalha que voc me deu. Desculpe, meu amor, eu queria esse
presente amarrado ao meu pescoo por todos os anos que me restam para viver, eu daria
qualquer coisa para...
Adele ergueu a mo direita, quase tocando os lbios do garoto:

No precisa dar mais nada, Desmond. Est bem, eu compreendo. S peo um


favor: arranje outra companhia para a viagem, est bem?
Adele, no! a voz de Desmond implorava. Se voc me ama, tenho certeza
que pode me perdoar. Voc sabe que a medalha era o que mais me importava neste
mundo. Eu dormia com ela, eu...
No precisa explicar nada, Desmond dizia a menina, controlando-se, falando
baixo, pausadamente, no tom da resignao. Ela era negra, no era? Como podia ter
sonhado com a posse de um garoto como aquele? Pode deixar que eu compreendo tudo
o que voc quiser que eu compreenda. Eu s quero que voc me deixe sozinha, est bem?
Ao lado do nibus, Cssia chegava com uma grande mochila s costas. Iara
chamou-a:
Oi, Cassinha! Me empresta o batom?
Claro, Iara respondeu a menina, torcendo um ombro para oferecer a mochila
amiga. Olha, pega a. Est no zper de fora...
Adele voltava lentamente na direo de Iara, deixando Desmond para trs, com os
braos cados, em desnimo. Iara abria o zper da bolsinha externa da mochila de Cssia.
Desastradamente, sua mo saa derrubando parte do contedo na calada.
Junto com um pequeno estojo de maquiagem, uma escova de cabelo e alguns
tabletes de chiclete, caa uma correntinha dourada, com uma medalha em forma de bola de
vlei.
O que isso?
Iara abaixava-se e erguia-se em seguida, com a correntinha entre os dedos,
balanando como um pndulo.
O qu...? a boca de Adele abria-se em espanto e assim ela voltou-se para
Desmond.
Quase embarcando no nibus, Emlio assistia cena. Suas sobrancelhas
franziam-se e seus dentes apertavam-se, num esforo de compreenso.
A medalha! exclamava Desmond. Onde estava? Onde voc encontrou
essa medalha, Iara?
Dessa vez a voz de Adele transformou-se. Trazia dureza, raiva, decepo,
desespero:
Voc sabe muito bem onde ela estava, Desmond. Nesse momento, eu preciso
de tudo, menos de cinismo!
Mas o que est acontecendo? Adele! Iara! O que est acontecendo? Eu no

entendo!
Adele quase arrancou a corrente com a medalha da mo de Iara.
Eu entendo, Desmond. Pode ficar sossegado que eu no vou fazer nenhum
escndalo. S te digo uma coisa: nunca mais quero te ver!
O nibus arrastava-se lentamente, tentando superar o trnsito congestionado de
So Paulo, difcil at para um comeo de tarde de sbado. Alheios ao drama que envolvia
alguns deles, os rapazes e as moas riam, brincavam e cantavam, preparando-se com
alegria para a guerra esportiva que pretendiam vencer logo mais noite.
Adele e Iara ocuparam as poltronas da frente, as que ficavam atrs do motorista. O
rosto de Adele no trazia nenhuma expresso, revelando o vazio. Estava esttica, mirando
a placa de acrlico que isolava o motorista como se ali houvesse uma tela de televiso. De
seus olhos, lgrimas escorriam mudas, ininterruptas...
Iara no largava a mo da amiga e tambm nada dizia. Dizer o qu? Nada mais
havia a dizer, nada mais havia a fazer. Tudo tinha dado certo. Agora Desmond estava livre
como uma lebre num campo sem raposas e Iara era o caador que j havia preparado a
armadilha.
Um pouco voltada para Adele, ningum, nem mesmo os dois professores que
ocupavam as poltronas ao lado, podia ver o breve, leve, misterioso sorriso que suavizava
seu rosto.
"Bem, uma coisa eu ainda tenho de fazer... A mais importante. A mais gostosa!
Ganhar de novo o Desmond para mim. Ah, hoje exatamente 12 de maio! Eu
ganhei voc, Desmond, h um ano justinho. Por isso hoje o melhor dia para retomar voc
de volta para mim!"
Tinha vontade de levantar-se e correr para o fundo do nibus, atirando-se sobre o
corpo adorado do rapaz. Mas para que a pressa? Se tinha agido com cuidado at ali, um
pouco mais de tranqilidade no faria mal nenhum.
"Este o momento. Agora voc est frgil, pronto para que eu preencha o vazio
que voc acha que est sentindo, meu Desmond. Sei que Adele vai me odiar para sempre...
Mas o que eu posso fazer? Para se conseguir violetas mais perfumadas, o nico jeito usar
estrume de porco..."
J estavam na interligao da Rodovia dos Imigrantes com a Anchieta, prontos
para descer a Serra do Mar, quando Iara levantou-se. Beijou o rosto de Adele e caminhou
pelo corredor, para a parte de trs do nibus.
"Tenho de ir devagar, humilde como uma violeta... L est ele... Desmond..."

Passou pelas poltronas onde estavam juntos Cssia e Emlio. sua passagem, o
rapaz a olhou com uma expresso dura, inquisidora. Pegou seu brao e levantou-se:
Iara, voc no quis me ouvir aquela hora, mas eu preciso falar com voc. O que
voc estava fazendo quando...
Iara sacudiu o brao, como se andasse por uma floresta e um cip incmodo
impedisse sua caminhada. Nem olhou de lado. Para ela, era como se no houvesse mais
ningum naquele nibus, como se ela mesma fosse um pequeno alfinete sendo atrado
pelo im que se sentava na ltima poltrona.
Ei, Iara! chamou Caca, brincando, como sempre. Por que voc est to
embonecada? Voc pensa que as garotas do Cultura Mndi so todas sapatonas e vo
desmaiar de paixo vendo voc na quadra? assim que vocs pretendem ganhar hoje, ?
Milto ria, gargalhava, com a piada do colega.
Iara tinha levantado cedo naquela manh. Nem almoou. Levou horas no banho,
horas se maquiando, horas escolhendo a camiseta mais sedutora, de decote mais cavado,
e acabou se decidindo por um busti que deixava livre o umbigo, revelando tambm boa
parte dos seios, onde a menina tivera o cuidado de perfumar, primeiro exageradamente e,
depois de novo banho, com a delicadeza que ela julgou suficiente para inebriar o garoto que
ela precisava reconquistar.
Atrs dela, Emlio terminava a conversa com Cssia e ia sentar-se ao lado de
Roberta.
Desmond estava sozinho na ltima poltrona. Olhava pela janela, com a ateno
perdida pela sucesso de verde tropical que ladeava a estrada.
Sem uma palavra, Iara sentou-se ao lado dele, suave como uma serpente que se
aproxima da vtima, mas fofa como um gatinho que vem se aninhar no colo do dono.
Sentindo sua presena, Desmond voltou o rosto para ela. Estava coberto de
lgrimas.
Querido! Oh, querido!
Iara, Iara, o que aconteceu?
Aceitou o abrao da colega, enterrando o rosto em seu colo, envolvendo-se no
perfume planejado pela menina e desabando num choro triste, num choro de menino.
Shhhh... shhhh... Desmond, meu querido... Tudo vai ficar bem. Sua Iara est
aqui. Eu sempre estive aqui, meu amor... Voc vai ser feliz, Desmond, muito feliz. Eu vou
fazer de voc o homem mais feliz do mundo, meu Desmond. Agora voc meu... agora
voc meu de novo...

Frgil demais, Desmond s chorava e no reagia s palavras de Iara.


frente, Emlio trocava novamente de lugar, procurando desta vez os professores,
na parte dianteira do nibus.
Apertando o rosto do rapaz contra os seios, acariciando ternamente os cabelos de
Desmond, consolando-o, Iara beijava o pedao de testa que estava ao alcance de seus
lbios.
Tudo tinha dado certo, tudo estava acabado.
Iara sentia, no delicado cheiro dos cabelos de Desmond, o perfume da vitria.

15. Estoque de maldade


Antes das duas partidas entre o Carlos Queiroz Telles e o Cultura Mndi, seriam
disputadas as decises masculina e feminina dos terceiros e quartos lugares do
Campeonato da Liga Juvenil de Vlei. O programa estava marcado para comear s cinco
e calculava-se que o time feminino do Queiroz s entraria em quadra l pelas nove da noite.
Pelo jeito, a ltima partida, a masculina, s terminaria depois da uma e a volta para So
Paulo s aconteceria de madrugada. Mas os alunos do Queiroz no estavam pensando no
horrio da volta. O que lhes interessava era como eles iriam voltar: se eufricos,
comemorando, ou de cabea baixa, lamentando.
Faltava pouco para as quatro da tarde quando o nibus chegou ao imenso Colgio
Cultura Mndi, que ficava a poucos quarteires da praia do Gonzaga. Os dois professores
sabiam que no adiantaria aceitar a oferta da diretoria do Cultura Mndi, que reservara uma
quadra ao lado do ginsio de esportes para um eventual treinamento dos adversrios. Por
isso resolveram que o melhor era deixar aqueles jovens se divertirem um pouco.
Ateno, turma! chamava Joo Massa na hora da chegada. Antes do jogo,
vamos ter a folga que vocs esperavam: o nibus vai levar vocs mais dois quarteires at
a praia. Acho que um banho de mar vai ajudar a relaxar para o jogo, vocs no acham?
Oba! foi a gritaria geral.
Agora so quatro horas continuava o professor. Eu e Maria Helena vamos
ficar aqui, no Cultura Mndi, para combinar os ltimos detalhes das finais. Podem cair
n'gua, podem nadar, podem fazer o que quiserem at as seis, quando o nibus vai
recolher todo mundo e trazer para c. S no abusem, tomem cuidado e nada de bola,
hein?

Isolada na ltima poltrona, abraada a Desmond, flutuando num sonho de fantasia


e felicidade, Iara no percebeu que Adele, Cssia, Roberta, Neusinha e Milto haviam
desembarcado junto com os professores.
Desmond mal falava, parecia aceitar a companhia de Iara, mas sem prestar
ateno alguma. Ela agia com pacincia, procurando dar ao rapaz o tempo que ele
precisasse para se recuperar. Dali para a frente, estava decidida a agir de outro modo, a
no brigar com ele, a no demonstrar cimes.
"Vou grudar tanto nesse gato, que ele nem vai ter tempo de olhar pra outra!"
O nibus estacionou na calada da avenida em frente praia, com um chiado de
freios.
Vamos descer, Desmond? convidou a menina. Acho que um banho de mar
vai ajudar a esquecer tudo isso. Se no ajudar, aqui estou eu, pra sempre do seu lado. No
tenho nenhuma medalhinha pra te dar como lembrana. Pra voc sempre se lembrar de
mim, eu dou eu mesma...
"Para sempre! Grudada no pescoo de Desmond feito medalhinha!"
Uma baguna generalizada, eufrica, jovem, tomava conta do grupo. Entre risos e
gozaes, foi organizado um sistema para a troca de roupa dentro do nibus.
Deixa que eu ajudo as meninas! Deixa que eu ajudo!

provocava Caca.

Algum precisa de ajuda pra abrir um zper? Pra desabotoar qualquer coisa? Deixa comigo!
As garotas fecharam as cortininhas das janelas. Sandra segurou uma toalha e
ficou bloqueando a metade traseira do nibus, criando um espao reservado para a troca
de roupa das colegas.
Fiu-fiu! Fiu-fiu! assobiavam os rapazes, fazendo um corredor polons na
porta do nibus, para cada menina que descia, gloriosamente despida para nadar.
U... Cad a Adele? E a Cssia? E a Roberta?

perguntou Iara, s de

calcinha, procurando o biquini na mochila.


Sei l! respondeu Marisa, comeando a despir-se. Vai ver no gostam de
praia. A Neusinha tambm ficou por l. E o Milto. Na certa o garotinho no tem licena da
mame pra ir praia sem bab! Ah, ah!
Magda acrescentou:
E ele ainda deve usar aquelas bias de brao, ah, ah!
Todas as garotas uniam-se s brincadeiras e Iara as acompanhava, agora feliz,
aliviada, eufrica com o resultado final de suas aes. Aquele banho de mar com Desmond
vinha como um prmio, como a coroao de algum que agora se sentia como uma rainha.

"Iara Regina! Um dia, a senhora Desmond Bradley! Que tal o nome Iara Bradley,
hein?"
Passou pela cortina de toalha, desta vez nas mos de Malu que, j vestindo um
biquini mnimo, substitua Sandra para que a colega tambm pudesse se trocar.
Atravessou o corredor e desembarcou do nibus. Livrou-se das gozaes dos
rapazes como pde e viu-se na calada, recebendo no rosto a brisa salgada do mar.
Desmond... chamou ela, baixinho.
Seus olhos percorreram tudo em volta. No se fixavam nem nas rvores dos
jardins, nem no mar escuro, ruidoso, nem no cu muito azul, que j comeava a colorir-se
sobre as montanhas, sua esquerda, preparando-se para o esplendoroso espetculo do
crepsculo santista.
Desmond...
Em sua ansiedade, nem percebeu que Emlio tambm no estava mais no grupo.
De repente, o pnico:
Desmond? Cad o Desmond? Ei, Leo! Voc viu o Desmond?
Sei l, vai ver j entrou n'gua.
"J? Que danadinho! Correu para a praia sem me esperar. Voc vai ver uma coisa,
seu menininho! Mame vai ter de ensinar voc a se comportar..."
Correu para a areia, sentindo o calor de vrias horas de sol sob os ps descalos.
Mas a figura alta e bronzeada de Desmond no estava vista. Ansiosa, correu
pela areia, com o corao aos pulos.
"Danadinho..."
Foi direto para a gua, desta vez gritando:
Desmond! Desmond!
"Desmond... ai, querido...", pensava seu corao confuso. "Que brincadeira
essa, meu amor? Voc est se escondendo de mim?"
Seus ps entraram no mar e o choque trmico da gua fria contra os tornozelos fez
Iara parar um pouco, tentando reconhecer alguma cabea loira entre as dezenas de
pontinhos que salpicavam o mar.
Desmond! Onde est voc? Pra com essa brincadeira, vai!
O grupo vinha em desordem pela areia e logo alcanava a menina. Trs rapazes
vieram por trs e pegaram-na no colo:
Um caldo! Vamos dar um caldo na Iara! Vamos esfriar a Iara, pessoal!
Me larga, Caca! Leo, pra com isso! Jonas, voc vai ver uma coisa!

Os rapazes s "pararam com isso" quando chegaram um pouco mais no fundo. s


gargalhadas, jogaram a garota para o alto e Iara esparramou-se na gua.
Tossindo, levantou-se do mergulho. O nvel do mar estava altura de seus seios e
a brincadeira havia equilibrado a temperatura de sua pele com a da gua. Seria uma delcia,
um blsamo natural para o corpo e para o nimo de qualquer pessoa, mas a menina nem se
apercebia de nada. Sua ateno estava numa ausncia, num sumio estranho,
inexplicvel...
Vagou pela praia todo o tempo da folga. Andou a esmo, com o corao saltando
boca cada vez que via uma cabea loira. Nem lhe ocorreu que o rapaz pudesse ter voltado
ao Cultura Mndi. Aos poucos, mais nenhuma idia, mais nenhuma hiptese lhe ocorria.
No sabia o que fazer.
"Desmond..."
Foi desanimando. J havia percorrido nem sabia quantas vezes a distncia entre o
Canal Trs e o Canal Dois, duas veias que transportavam as guas das chuvas desde o
centro da cidade at o mar. Estava de novo na altura da praia de onde dava para ver o
nibus estacionado. Nenhum dos colegas estava vista. Sentou-se na areia, abraando as
pernas.
Dois garotes queimados de sol aproximavam-se com aquele passo manemolente
da eterna postura de caa fmea, de caa a qualquer fmea. Para eles, a meia distncia,
aquela jovem fmea, com aquele corpo sensacional, quase nada coberto pelo biquni,
parecia-lhes mais digna do que nenhuma para justificar os esforos de um caador. Mas,
logo que ficaram mais prximos, a expresso da menina fez com que o passo cedesse,
ento se transformando em passos incertos, passos de retirada.
Como numa fita de vdeo, quando se aperta a tecla que a faz voltar
aceleradamente, passavam enlouquecidos pela memria de Iara a tristeza, a desolao, a
solido dos ltimos meses, at o roldo enlouquecido em que tudo havia se transformado
na ltima semana, desde o jogo contra o Colgio Anhangera.
"O que eu fiz? O que eu fiz, hein? Eu fiz tudo, tudo... Nada, de tudo o que
aconteceu, foi obra do acaso ou vontade de qualquer outra pessoa. Tudo, tudo obra
minha... Mas que obra essa? O que eu constru?"
O tempo do recreio na praia do Gonzaga chegava ao fim, sem que Iara tivesse
nem por um momento participado das brincadeiras junto com a turma. Cristina, uma das
reservas, tinha sido encarregada por dona Maria Helena de ficar de olho no relgio, para
garantir a volta de todos no horrio estabelecido. L vinha ela, batendo palmas e

procurando tanger o desorganizado rebanho de rapazes e moas, que saa da gua sem
parar de brincar, de se provocar, produzindo adrenalina para a disputa de logo mais.
Para Iara, parecia no haver mais nenhuma adrenalina armazenada para reagir ao
desaparecimento de Desmond. Todo seu estoque tinha sido gasto na ltima semana.
"Estoque de qu? Estoque de maldade?" Levantou-se lentamente e lentamente
andou at o nibus.
"O que eu fiz, hein? Por que o Desmond desapareceu? No estou entendendo
nada, eu no estou entendendo mais nada..."

16. A dor e o sofrimento


No levava nem cinco minutos para o nibus percorrer a distncia da praia at o
Colgio Cultura Mndi. Na frente do porto, uma funcionria de guarda-p azul recebeu os
jogadores do Queiroz e logo os guiou por dentro do prdio.
medida que se aproximavam do ginsio de esportes, a barulheira das torcidas
mostrava que os jogos preliminares j estavam em pleno andamento. A funcionria, muito
gentil, sorridente, levou-os para uma porta lateral do ginsio, que dava para os vestirios.
Por aqui, meninos. Temos apenas um vestirio para as moas e outro para os
rapazes. Assim, vocs vo dividi-lo com as equipes adversrias, est bem? Lembrem-se
que uma das principais finalidades do esporte a confraternizao. Queremos que vocs
lutem bravamente na quadra, mas, fora dela, que tal fazer mais algumas novas e timas
amizades? O pessoal aqui de Santos sensacional, vocs vo ver.
Vamos l, turma comandava Cristina. Vamos tirar o sal do corpo!
A prova de que o pessoal de Santos era mesmo sensacional comeava pela
hospitalidade: havia sabonetes e toalhas limpinhas para todos os visitantes e numa mesa
estrategicamente colocada na entrada dos vestirios, um monte de sanduches e sucos de
diferentes frutas.
Tomada pelo desnimo, Iara mal percebeu que Desmond no se juntava ao grupo
de rapazes que entravam fazendo arruaa no vestirio destinado ao time masculino. E
absolutamente no notou que Adele, Cssia, Roberta, Neusinha e muito menos Milto
tambm continuavam ausentes.
Deixou que a gua do chuveiro lavasse o mar de seu corpo. Nua, sentou-se num
banco comprido, estalando de novo, e ficou segurando a toalha, sem encontrar foras para

enxugar-se.
De repente, notou o corpo grande de Neusinha a seu lado. Levantou o rosto. A
colega sorria amavelmente e estendia-lhe uma folha de caderno dobrada, exibindo o
curativo no brao, resultante do corte da fatdica tarde de quinta-feira.
Pegue, Iara. pra voc...
"Um bilhete? O que isso?"
Pegou o papel e desdobrou-o, avidamente.
do Desmond?
Um bilhete de Desmond! Afinal ele no a havia abandonado! O que tinha
acontecido, realmente? Leu:
Querida Iara,
A gente precisa conversar. Por favor, acompanhe a Neusinha. Ela vai lev-la
aonde eu estou, esperando, ansiosamente, por voc.
Desmond.
"Desmond! Esperando por mim?"
Numa frao de segundo, sentiu a adrenalina correndo novamente por suas
artrias, levando vida a todo seu corpo. Ps-se de p. No, nem tudo estava perdido.
Desmond no estava perdido. Ela no tinha lutado tanto por nada.
Vamos, Neusinha! O que voc est esperando? Onde est o Desmond?
O que eu estou esperando? Que voc vista alguma coisa, por exemplo...
Sem enxugar-se, Iara vestiu rapidamente o shortinho justo do uniforme do time e
enfiou o minsculo busti, sem nem preocupar-se com as roupas de baixo nem em calar
os tnis.
Pronto. Estou pronta, Neusinha.
Com delicadeza, Neusinha pegou-a pela mo.
Venha, Iara. Por aqui.
Sem nada mais dizer, Neusinha guiou-a apressadamente pelos corredores.
Subiram dois lances de escadas e a colega parou na frente da porta de uma sala de aula.
Entre, Iara. Desmond est esperando por voc. Sem poder controlar as batidas
do corao, Iara passou pela porta. Era o final de maio, e o sol j se punha mais cedo.
Estava escuro l dentro e seus olhos demoraram a acostumar-se.
Pronto. Podem acender a luz.
"Como? Que voz essa? Dona Maria Helena?!"
O brao de Neusinha, entrando atrs de Iara, esticou-se um pouco alm da

moldura da porta e um dic iluminou a sala.


Sim, Desmond estava ali, sua espera. Mas estavam tambm dona Maria Helena,
Joo Massa, Emlio, Milto, Roberta, Cssia e... e Adele, abraada a Desmond. E o rapaz
estava com a medalha dourada no pescoo!
Iara tentou dizer alguma coisa, como "o que isso?", "que brincadeira essa?",
mas seus lbios s tremiam, como se estivesse enregelada pela gua do banho que no
havia enxugado do corpo.
Desmond! Naquele momento, os olhos de Desmond no eram dissimulados, nem
eram ondas do mar que ameaassem tragar a alma de Iara. Eram diretos, claros, lcidos.
Olhares... Os olhares de todos fixavam-se nela. Estava mais do que claro que o
centro daquela reunio era ela mesma.
Emlio foi o primeiro a falar. Aproximou-se com a maior delicadeza do mundo e
parou a dois passos dela, sem toc-la:
Iara... A gente queria falar com voc...
No... balbuciou ela, de modo quase inaudvel.
A gente quer ajudar voc...
No... sussurrava, como se implorasse que tudo aquilo fosse um sonho, a
surpresa de um sonho mau, que se apagaria com o amanhecer.
No tenha medo continuava o rapaz, como se estivesse se aproximando de
um cachorrinho assustado. No fique nervosa. Ningum aqui est querendo fazer nada
contra voc.
Por que um despertador no tocava agora, agora mesmo, para salv-la daquele
pesadelo? A voz de dona Maria Helena, profunda, tambm tentava acalmar a aluna:
Vamos conversar, Iara? Emlio falou com todos ns...
"Falou? Falou o qu?", o pensamento de Iara corria solto, imaginando uma reunio
em que Cssia, Roberta, Milto, Adele e Desmond e at Neusinha reconstruam toda
aquela semana, falando dela, revelando o que ela havia tramado...
No...
Cada um contou o que sabia dona Maria Helena confirmava as suspeitas de
Iara. Voc deve imaginar como foi difcil esclarecer tudo isso, no ? Ns sabemos que
voc se meteu numa enrascada ruim, deixou que o melhor dos seus sentimentos, o amor,
acabasse causando estragos. Estragos que poderiam prejudicar outros, mas que se
voltaram principalmente contra voc mesma...
No... no... sussurrava ainda a menina, acuada, procurando recuar para a

porta.
Eu sei o que a paixo acrescentava a professora, como se sua matria
fosse educao sentimental, e no fsica. A paixo no pensa, nem tem juzo. O mundo
estaria perdido, Iara, se a gente no tivesse um pouco de juzo para equilibrar nossa paixo.
Iara respirava ofegante, os olhos esbugalhavam-se, o suor comeava a correr-lhe
pelo rosto. Seus olhos passeavam em volta, encontrando cada expresso que a encarava.
Muita coisa podia ser lida nessas expresses: dor, espanto, susto. Havia tristeza nos olhos
de Desmond, um pouco de medo nos de Milto, aflio nos de Adele, autoridade nos de
dona Maria Helena, quase desespero nos de Emlio, mas nenhum deles parecia acusador,
inquisidor, como ela esperava. Nenhum deles eram os olhos violentos do pai.
O olhar de Cssia era o nico que parecia dividido entre a compreenso e a raiva.
A menina falou, com uma voz tmida:
No sei se vou conseguir perdoar o que voc me fez, Iara. Quando a Roberta
contou tudo, acho que eu quis que voc morresse, ou que fosse expulsa do time, do
colgio... Nunca senti dio por ningum, mas... a frase foi engolida por um soluo.
Calma, Cssia, calma... dizia Adele, tambm a ponto de chorar.
E Cssia terminou chorando, chorando de verdade:
Bom, eu acabei aceitando que voc est numa pior, que a gente tem de tentar
compreender a sua loucura... Compreender! Ai, vou tentar te perdoar, Iara, vou tentar. Vai
ser difcil, mas eu juro que vou tentar...
Adele abraou-a. As duas choravam.
Os olhos de Iara permaneciam arregalados, em choque. Tudo o que a menina
percebia era que suas mentiras tinham sido desmascaradas. Aquela era a hora da verdade.
Iara... choramingava Roberta, sem conseguir olhar em seus olhos. Eu sei
que tambm tive culpa. Quando o Emlio veio falar comigo, eu tinha de contar o que a gente
estava fazendo. Eu j no conseguia dormir com aquele peso, com aquele remorso...
Lgrimas embaavam o olhar de Iara. Por um momento, aquelas pessoas
transformavam-se em rplicas de seu pai, figuras masculinas agressivas, de cinta dobrada
na mo, ameaando violncia. Uma surra de cinta, era uma surra de cinta que Iara
esperava agora, como conseqncia de tudo o que havia feito. Talvez uma surra de cinta
pudesse purgar um pouco da culpa que ela sentia, da vergonha que a sufocava...
No... continuava a repetir, balbuciando, o brao protegendo o rosto, como
se se precavesse contra uma bofetada.
Mas aquelas pessoas no vestiam a fantasia do pai. Nenhuma delas mostrava

raiva.
Por que no mostravam raiva? Por que no mostravam dio? O que eles estavam
pretendendo?
Abraada a Cssia, Adele chorava, chorava de verdade, mas seu olhar para Iara
era de splica. Suplicava que a amiga entendesse que eles lutavam para compreend-la:
Iara, quando eu soube de tudo, quis ver voc morta. Mas agora eu quero te
perdoar. Eu preciso te perdoar. Ainda sobra muita coisa boa entre ns...
No... no...
Quem fez o que voc fez no voc de verdade continuou Adele, com um fio
de voz. O que voc fez no pode apagar todas as provas de carinho e amizade que j me
ofereceu. Quando voc brigou com o Gustavo porque ele havia me ofendido, mostrou que
era minha amiga. Quando assumiu a cola de Geometria por mim, provou de novo que era
minha amiga...
No... no... balbuciava ela, batendo os dentes, incontrolavelmente, e ainda
no conseguindo elevar o tom de voz.

Aquilo no foi de verdade... aquilo da cola foi

uma... tambm foi uma armao... No...


E a luta com o Gustavo, Iara? Tambm foi armao?
Emlio aproximou-se, tentando abra-la:
Iara, voc precisa de ajuda... Deixe-me...
No... no... era s o que ela conseguia repetir, recuando de leve, evitando o
abrao, como se tentasse livrar-se de um perigo.
... ajudar voc, Iara!
Ajudar! Todos eles se portavam como advogados de defesa, nenhum a acusava
realmente. Mas, num julgamento, no deve haver acusao? No h o terrvel papel do
promotor? De repente, Iara sentiu que ela mesma era o promotor. Tinha culpa estampada
no rosto, e teria de ser tambm seu prprio juiz e proferir a sentena.
"Estou condenada..."
No fuja de mim, Iara, por favor, chega de fugir de mim! insistia Emlio.
Tudo vai ficar bem. Eu no deixei de gostar de voc. Ns gostamos de voc. Queremos
ajudar voc!
Agora foi um grito que saiu da garganta da menina:
No!!!
Virou-se e, antes que o grupo atnito, emocionado, pudesse fazer um gesto, Iara
desapareceu pelo corredor.

17. Lamentar uma dor passada


Iara correu como louca, primeiro perdendo-se no labirinto dos corredores do
colgio anfitrio, depois encontrando a sada e disparando rua abaixo. Nunca havia estado
naquele lugar mas, como se fosse por um instinto natural, um instinto selvagem, suas
narinas percebiam qual o lado do mar. Correu seguindo a pista de sal.
A velocidade que ela conseguia era impressionante. Logo encontrou-se na larga
avenida que margeava a praia e embarafustou-se entre os carros, livrando-se do trnsito e
chegando areia.
J estava bem escuro, mas, sua esquerda, no poente, o cu coloria-se como se
aquele fosse um momento especial, merecedor de um cenrio de pera.
Ouvia o estrondear das ondas arrebentando-se na praia. Corria descala pela
areia que ainda guardava o calor do dia. Alcanou o mar e entrou por ele, esforando o
passo, como se estivesse apenas num rio, como se pudesse alcanar uma outra margem,
onde houvesse outra vida, onde pudesse deixar para trs todo o pesadelo que ela vivia
naquele momento.
Uma onda mais forte chocou-se de frente contra seu rosto, e ela virou para trs,
bebendo gua. Procurou aprumar-se e percebeu que seus ps no mais alcanavam a
solidez do fundo. Bateu os braos, querendo nadar, querendo continuar em frente,
procurando alcanar algum porto que se escondesse na escurido do abismo negro que se
estendia no infinito sua frente.
"O infinito... Adeus..."
Nova onda, forte e furiosa, vinha tentando expulsa-la do mar, mostrando que ali ela
era uma intrusa, que ali no havia lugar para a menina traidora chamada Iara. A onda que
castiga os invasores e leva para o fundo os insistentes.
No havia mais como saber para que lado ela tentava nadar, para que lado poderia
livrar-se do abrao negro do mar ou para que lado haveria de entregar a ele sua virgindade,
no casamento eterno com a morte.
"O infinito..."
Poderia ser um peixe, um peixe grande que a abocanhava, abreviando aquela luta
que ela no sabia bem se era contra o mar ou contra a vida. Sentiu-se agarrada, mas o
peixe no mordia, no feria.
Era um abrao. Era Emlio.

Logo, a menina sentia a areia sob os ps. Na certa no tinha ido to longe, entrara
apenas na arrebentao, e Emlio facilmente pde arrast-la. Deixou-se levar, nada
pensava, nenhuma fora tinha para resistir, no resistia...
Exaustos, os dois caram na areia molhada, com os corpos sendo lambidos a
perodos pelas lnguas que o mar estendia fracamente sobre a areia, como se lambe um
sorvete.
Ajoelhados, abraavam-se.
Iara...
Emlio... me deixa morrer... me deixa morrer, Emlio...
Iara, quietinha...
Aos poucos, o flego dos dois recuperava-se e Iara olhava para o rosto de Emlio,
iluminado pelo amarelo das luzes da cidade e dos faris dos carros que rodavam pela
avenida.
Atrs da cabea dela, Emlio via-a emoldurada pelas ltimas luzes do crepsculo,
formando um quadro escuro, triste, desolado, ttrico at, mas lindo, mas to lindo...
Voc... sussurrou ela. Por que, Emlio? Por que voc... por que eu... por
que eu fiz tudo isso...?
No pense em nada agora. Eu acompanhei toda essa loucura. Eu vi nos seus
olhos que as coisas no estavam bem, que voc no estava agindo como sempre foi, que
estava deixando que alguma coisa muito ruim tomasse conta de voc.
No, no...
Mas essa coisa no voc! Isso como um resfriado, que a gente tem de
espirrar para fora. Eu vi quando voc entrou no vestirio dos homens durante aquele treino.
Quando Desmond ficou desesperado, no encontrando a medalha, eu j desconfiava de
tudo...
Molhados, os dois sentiam frio agora, um frio intenso, que os fazia tremer. Iara
agarrou-se ao peito de Emlio, abraando-o com fora.
Ai, Emlio... Por que eu fiz isso tudo? Agora nem sei se eu queria o Desmond, ou
se eu queria me vingar dele, ou de Adele, ou de Cssia... Mas por que Cssia? Ela nunca
me fez nada! Ningum me fez nada... S eu fao mal a mim mesma... No tenho mais o
direito de viver... Eu quero morrer, Emlio...
No, meu amor, minha Iara... Voc tem o direito de aprender. Voc tem o direito
de crescer...
Eu brinquei com os sentimentos das pessoas, Emlio. Como se elas tivessem

uma boneca no lugar do corao... Eu destru tudo!


Iara... Iara... Nada foi destrudo! O que precisa agora reconstruir a si mesma.
Para mim, minha Iara, para mim!
Iara falava loucamente, quase juntando uma palavra outra:
Eu me apaixonei, Emlio, e deixei que a paixo tomasse conta de tudo, que
justificasse tudo, at a violncia! E amor que comea violento s pode acabar em
violncia...
No, Iara, no! Nada acabou, vamos recomear!
O que eu fiz no merece perdo. Eu pensava que o que eu fazia era por muito
amor, que o amor poderia justificar qualquer coisa...
Iara...
Mas agora eu vejo que no h amor quando a conseqncia a dor e o
sofrimento. Ento eu mereo isso, Emlio, eu mereo ficar com os dois. Com a dor e o
sofrimento. Sozinha!
No, menina, minha menina louca...
Me deixe, Emlio, me deixe!
Eu nunca vou te deixar, Iara...
Os dois choravam, perdidamente, expulsando a dor, expulsando o pesadelo de
seus coraes...
Dois a zero! Dois a zero! Como que isso pode estar acontecendo? Joo, me
ajuda! O que que a gente pode fazer?
Dona Maria Helena, desesperada, procurava o conselho de Joo Massa. Era o
intervalo do segundo para o terceiro set e as meninas do Queiroz estavam levando um
banho das adversrias.
A Iara! A Iara no apareceu? Onde que ela foi parar? Nosso time est
entregue!
Todas haviam lutado tudo o que podiam. O brao de Neusinha at sangrava, tendo
aberto o corte, de tanto tentar bloquear o ataque alto das meninas do Cultura Mndi.
Cssia era uma parede na defesa, mas a maioria de suas bolas se perdia,
encontrando uma Adele desatenta, que distribua bolas para companheiras desentrosadas.
Sandra errava saques sem parar, nervosa. Na posio de Iara, Magda dava tudo o que
tinha, mas no se entendia com Adele e muitas vezes estava no lugar errado na hora do
passe.
Dona Maria Helena tinha tentado tudo, mudando o jogo, alternando as jogadoras,

colocando a inexperiente Norminha junto com Lorena na quadra, tentou at jogar com
Roberta como levantadora, na esperana de que as reservas se entendessem melhor, mas
a treinadora no conseguia anular o nervosismo de todas elas.
Desculpa te dizer, Maria Helena foi a nica ajuda de Joo Massa , mas o
seu time est apavorado. Esse jogo est perdido...
As meninas voltavam quadra, para o terceiro set. O servio estava na mo de
Adele. A menina jogou a bola para o alto e saltou, caprichando numa enfiada em diagonal,
procura de um dos pontos menos fortes das adversrias. Do outro lado, uma menina alta
aparou a pancada com uma manchete e serviu na medida para a levantadora. Hbil, a
menina fez o passe atravessar a quadra e encontrar livre de marcao uma atacante alta do
Cultura Mndi que estava fazendo a festa naquela noite.
"Pronto...", pensava desconsolada a treinadora. "Acabou. Agora o servio est
com elas e acabou..."
De repente, um grito:
Ei, vejam!
Os jogadores do Queiroz, roucos de tanto torcer, de gritar para as colegas, de
tentar dar-lhes fora, levantaram-se: no alto das arquibancadas, vindos da entrada
principal, surgiam dois jovens, molhados de mar, com os cabelos e os corpos imundos de
areia.
Dona Maria Helena! gritou Magda no meio das reservas. o Emlio! E a
Iara!
De mos dadas, os dois desciam correndo os degraus das arquibancadas e
pulavam a mureta, entrando em quadra.
Pararam por um segundo. Emlio olhava no fundo dos olhos da menina. De
repente, na frente dos colegas, na frente da multido, os dois uniram-se num beijo longo,
num beijo de entrega, num beijo de fora, num beijo de esperana...
Os lbios separaram-se e Emlio sussurrou:
Vai l, meu amor. Arrasa com elas!
Suja, descabelada, Iara enfiou a camiseta do uniforme por cima do busti e s teve
tempo de calar um par de tnis que dona Maria Helena lhe estendia.
Vamos, gente! Raa agora! Vamos virar!
Entrou como uma leoa entra no picadeiro, disposta a devorar o domador antes de
ser obrigada a saltar por dentro de uma argola de fogo.
Adele suspirou alto. Olharam-se. As duas amigas, as duas companheiras, as duas

melhores jogadoras da equipe do Queiroz naquele momento juraram luta, sem usar
nenhuma palavra.
Norminha saa da quadra e Iara entrava na ponta, pela direita. O saque veio do
outro lado, forte como nunca, forado como nunca. Marisa jogou-se e aparou com um
antebrao s, em direo a Adele. O passe veio alto, mas a menina subiu...
Na outra quadra, as adversrias entreolhavam-se, estranhando aquela nova
jogadora, to suja, que fintava o bloqueio e enfiava o passe da companheira em uma
porrada violenta, raivosa, magistral!
Eeeeeehhhhhh! subia a torcida dos rapazes do Queiroz. Bola no cho!
Vai, Iara! laraaaa!!
A rede no girou mais, at o fim do terceiro set. Como se fossem uma s cabea,
Adele e Iara variavam os ataques a cada ponto, pela esquerda, pela direita,
fintando para o arremate de Neusinha, para as pancadas de Sandra. Atrs, Marisa ainda
conseguiu dois aces, duas bolas diretas, em saques fulminantes.
A torcida adversria no entendia: o que estava acontecendo? Quinze a zero?!
Foi um rebulio. A torcida agora gritava o nome de Iara, o nome de Adele,
espantada com aquelas duas feras, a fera negra e a fera suja, que pareciam no ter ossos,
que pareciam no precisar respirar, que adejavam como borboletas pela quadra e matavam
como tigres.
O quarto set foi uma guerra campal. O time do Cultura Mndi comeou a reagir,
lutando bravamente, mas a histria parecia ter mudado de direo. O Queiroz fechou o set
com uma cortada sensacional de Neusinha: do outro lado, a bola voava, trazendo o sangue
da menina, e explodia no peito de uma adversria.
Meu Deus! espantou-se a capit do Cultura Mndi, vendo a camiseta da
colega. Voc se machucou?
No... dizia a garota, sem compreender o que acontecia. Veja: a bola est
ensangentada...
A partida foi para o tie break, naturalmente. Mas o time das donas da casa j no
sabia o que fazer. O nervosismo que havia tomado conta das meninas do Queiroz ainda h
pouco tinha atravessado a quadra e o grupo do Cultura Mndi parecia um bando de baratas
tontas, caindo, revezando-se, tentando resistir avalanche de bolas que quase estouravam
ao bater no cho da quadra.
Cobre l! Cobre l! a sujinha! A sujinha que vai receber a bola! Bloqueia!
Bloqueia! Ai! Eu no disse pra bloquear?

Quatorze a dez. Adele e Iara, lado a lado, respirando como pequenos touros,
suando, sorriram uma para a outra. Iara piscou o olho. Adele jogou a cabea para trs e
sinalizou para a defesa. Sandra sacou, enfiando uma bola difcil que foi aparada do outro
lado e voltou, para a manchete de Cssia. A menina esforou-se e a bola foi direto para...
para Iara!
E todos viram a "sujinha" subir como um beija-flor e assumir a funo da
levantadora, passando a bola para Adele. E a amiga, como um ponto final, enterrava a bola
do outro lado, no papel de uma atacante!
O pblico levantou-se, rugindo como em gol de Copa do Mundo. Ajoelhadas no
cho, Adele e Iara apertavam-se num longo abrao, sem mais necessidade de perdo, sem
mais necessidade de mentiras, selando aquela amizade, slida agora para sempre...
A quadra era invadida e uma montanha de jovens formava-se por cima do abrao
das duas...
Mais de trs horas da manh, no nibus, nos braos de Emlio, aninhada,
sentindo-se segura, Iara lembrava a euforia da vitria, que logo fora complementada pela
espetacular vitria do time masculino. Tinha sido demais. Tudo tinha sido demais.
Mas ainda havia uma sombra a toldar-lhe o olhar, quando ela encarou o garoto:
Ai, Emlio... Tudo parece to bom, to bom... mas sempre haver a lembrana
da loucura que eu cometi...
Emlio beijou-lhe delicadamente os lbios e falou:
No h mais loucura. Voc agora j outra. Aquela ficou para trs...
Mas a lembrana...
O namorado interrompeu:
Iara, esquea tudo. O passado a gente no pode mudar. O que a gente pode
fazer trabalhar bem o presente, para que o futuro possa ser melhor. Nada h a lamentar,
s a aprender. Uma vez, eu li uma frase linda, nem sei bem de quem . Oua s:
Lamentar uma dor passada, no presente, criar outra dor, e sofrer novamente...
Iara cerrou os olhos. Tinha de lutar contra as lembranas amargas. Emlio estava
ali, para ajud-la a adoar o futuro.
O luar invadia o interior do nibus, que sacudia levemente, subindo a Serra do Mar.
Prateada, Iara adormeceu nos braos de Emlio.

A HORA DA VERDADE

Referncias dos trechos originais de Otelo e Dom Casmurro recriados por Pedro
Bandeira
William Shakespeare, o autor de Otelo, nasceu em 1564, na pequena cidade de
Stratford-upon-Avon, perto de Londres, na Inglaterra, e morreu na mesma cidade, no dia 23
de abril de 1616. um dos maiores autores de teatro da humanidade e suas peas
permanecem atuais at os dias de hoje, porque nelas o poeta ingls apresenta problemas
universais da alma humana, que nem o tempo e o progresso conseguem resolver. O amor,
o cime, a cobia, a ambio, a inveja, a traio, a solido, esto profundamente discutidos
em peas como Romeu e Julieta, Otelo, Hamlet, Macbeth, Jlio Csar e tantas outras.
Shakespeare utilizava-se de muitos temas j explorados anteriormente por outros
escritores, como fez nos famosos Romeu e Julieta e Hamlet. Se voc quiser, procure nas
locadoras filmes de suas obras. H timas filmagens de Hamlet, de Rei Lear, de Henrique
V, de Jlio Csar, de Macbeth e do romntico Romeu e Julieta. H tambm uma verso
muito boa de Otelo, na qual Kenneth Branagh faz o papel de lago, enquanto Lawrence
Fishburne interpreta um timo Otelo.
Machado de Assis, o autor de Dom Casmurro, nasceu em 21 de junho de 1839, no
Rio de Janeiro, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908. Considerado o
maior escritor brasileiro de todos os tempos, como Shakespeare registrou situaes e
emoes que ultrapassara as barreiras do tempo, em obras imortais como Memrias
pstumas de Brs Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Como Otelo, Machado de Assis
era negro.

Em A hora da verdade, de Pedro Bandeira, Iara corresponde ao monstruoso lago,


de William Shakespeare, e ao sutil e maquiavlico Jos Dias, de Machado de Assis. Do
mesmo modo, Adele corresponde ao ciumento Otelo, o mouro criado por Shakespeare, e a
Bentinho, o casmurro protagonista de Machado. Ainda mais: Cssia faz o mesmo papel de
Cssio, em Shakespeare, e de Escobar, em Machado, e Desmond corresponde
Desdmona do ingls e imortal Capitu, do nosso Machado. Outros personagens s tm
correspondncia na pea de Shakespeare: Emlio Emlia, dona Maria Helena o Doge de
Veneza, Roberta Rodrigo e mister Bradley Brabncio. Nenhum destes personagens foi
claramente recriado por Machado de Assis em seu Dom Casmurro.

Aqui esto os trechos de Otelo e de Dom Casmurro reescritos e utilizados por


Pedro Bandeira no livro que voc acabou de ler. A traduo de Otelo de autoria de
Onestaldo de Pennafort.
1 Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca. (Dom Casmurro, cap.
XLV)
2 Olhos de ressaca? V, de ressaca. o que me d a idia daquela feio nova.
Traziam no sei que fluido misterioso e enrgico, uma fora que arrastava para dentro,
como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para no ser arrastado, agarrei-me
s outras partes vizinhas, s orelhas, aos braos, aos cabelos espalhados pelos ombros;
mas to depressa buscava as pupilas, a onda que saa delas vinha crescendo, cava e
escura, ameaando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (Dom Casmurro, cap. XXXII)
Mas a vontade aqui foi antes uma idia, uma idia sem lngua, que se deixou ficar
quieta e muda... (Dom Casmurro, cap. XXXV)
Era a idia com mos. Quis puxar as de Capitu... (Dom Casmurro, cap. XXXVII)
4 isto, vamos, isto... Idia s! idia sem pernas! As outras pernas no queriam
correr nem andar. (Dom Casmurro, cap. XXXVI)
Era ocasio de peg-la, pux-la e beij-la... Idia s! idia sem braos! Os meus
ficaram cados e mortos. (Dom Casmurro, cap. XXXVI)
7 Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas pores
iguais, para compor as duas tranas. No as fiz logo, nem assim depressa, como podem
supor os cabeleireiros de ofcio, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles
fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, s vezes por desazo, outras
de propsito, para desfazer o feito e refaz-lo.
Os dedos roavam na nuca da pequena ou nas espduas vestidas de chita, e a
sensao era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando por mais que eu os
quisesse interminveis (...) desejei pente-los por todos os sculos dos sculos, tecer duas
tranas que pudessem envolver o infinito por um nmero inominvel de vezes. (Dom
Casmurro, cap. XXXIII)
8 (...) como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou tambm a cabea, mas voltando
os olhos para cima a fim de ver os meus. (...) Capitu fitoume uns olhos to ternos, e a
posio os fazia to splices... (Dom Casmurro, cap. XLVI)
9 Penso que ameacei pux-la a mim. No juro, comeava a estar to alvoroado,
que no pude ter toda a conscincia dos meus atos: mas concluo que sim, porque ela

recuou e quis tirar as mos das minhas; depois, talvez por no poder recuar mais, colocou
um dos ps adiante e o outro atrs, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a
reter-lhe as mos com fora. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabea no quis ceder
tambm, e, cada para trs, inutilizava todos os meus esforos, porque eu j fazia esforos,
leitor amigo. No conhecendo a lio do Cntico, no me acudiu estender a mo esquerda
por baixo da cabea dela; (...) fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e
deu de vontade o que estava a recusar fora. Repito, a alma cheia de mistrios. (Dom
Casmurro, cap. XXXVII)
10 Um dos erros da Providncia foi deixar ao homem unicamente os braos e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
11 Escapei ao agregado, escapei a minha me no indo ao quarto dela, mas no
escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrs de mim. Eu falava-me, eu
perseguia-me, eu atirava-me cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluos
com a ponta do lenol. (Dom Casmurro, cap. LXXV)
12 A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoo, enterrlas bem,
at ver-lhe sair a vida com o sangue... (Dom Casmurro, cap. LXXV)
13 Capitu um dia notou a diferena [dos sonhos], dizendo que os dela eram mais
bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitao, disse-lhe que eram como a pessoa que
sonhava... Fez-se cor de pitanga. (Dom Casmurro, cap. XII)
14 J essa idia s, como um veneno, me corri as entranhas. por isso que
nada, nada, acalmar minha alma, at o dia em que eu lhe d o troco: mulher por mulher!
A menos que eu consiga despertar-lhe dentro da alma o cancro do cime, de tal modo que
ele perca a razo. E se este pobre rafeiro de Veneza, que eu aulo porque parece rpido
na caa, seguir a pista, o nosso Miguel Cssio fica minha merc. A farei a sua cama,
muito bem feitinha, junto do Mouro. Tanto mais que temo que o tal de Cssio anda com o
olho em cima tambm do meu barrete de dormir. Em seguida, farei que o prprio Mouro
ainda me estime mais e me agradea... precisamente porque vou for-lo a fazer o papel de
uma perfeita, consumadssima cavalgadura, e lhe roubar paz e tranqilidade, at que fique
inteiramente louco. Tudo est aqui, embora ainda confuso... Mas o que mau torna-se bom
com o uso. (Otelo, 2- ato, cena I)
15 Pega-lhe na mo... hum, muito bem, muito bem... Anda, cochichalhe no
ouvido... Ser com uma teia difana como essa que apanharei um moscardo do tamanho
desse Cssio... A... sorri para a tua bela... assim... Corteja-a bem, enquanto eu c formo o

cortejo das tuas desgraas... Fazes bem... assim mesmo... Mas se com tais manejos
perdes o teu posto, melhor te fora no lhe atirares tantos beijos com as mos, como fazes
agora para te dares ares de casquilho! Que beijos, sim, senhor! Que soberba reverncia!
isso... qu? Mais beijinhos com a ponta dos dedinhos! pena que eles no te possam
servir de seringuinhas de cristel! (Otelo, 2e ato, cena I)
16 De ns mesmos depende sermos deste ou daquele feitio. O nosso corpo uma
horta de que o nosso arbtrio o hortelo. (Otelo, lato, cena III)
Capitu era Capitu, isto , uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era
homem. (Dom Casmurro, cap. XXXI)
As horas da ausncia, para quem ama, mostram-se mais enfadonhas e sete vezes
vinte e quatro horas mais longas do que as do mostrador do relgio. (Otelo, 3 ato, cena IV)
A gente Pdua no de todo m. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe
deu... Voc j reparou nos olhos dela? So assim de cigana oblqua e dissimulada. (Dom
Casmurro, cap. XXV)
20 (...) sabia bem que eu era amigo dela, e no seria capaz de fingir um sentimento
que no tivesse. (Dom Casmurro, cap. XLV)
21 Um dos erros da Providncia foi deixar ao homem unicamente os braos e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
Por sua fidelidade, respondo com a minha vida! (Otelo, 1 ato, cena III)
Abre os teus olhos, Mouro, e s cauteloso: se ela enganou o pai, pode enganar o
esposo. (Otelo, 2 ato, cena III)
(...) no era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
meninas de quatorze; ao contrrio, os adolescentes daquela idade no tinham outro ofcio,
nem os cantos outra utilidade. (Dom Casmurro, cap. XII)
25 Enquanto eu, que tantas vezes, aos olhos do prprio Mouro, dei tanta prova de
mim, em Rodes, Chipre e outras terras de cristos e de infiis, eu c fico a sotavento desse
perito de... cmputos! Pois : Cssio, nos bons ventos, fica sendo seu Tenente. E eu c que
bem me contente com ser apenas Alferes. Alferes? Valha-me Deus! (Otelo, 1 ato, cena
I)
26 Nem ele [Escobar] sabia s elogiar e pensar, sabia tambm calcular depressa e
bem. Era das cabeas aritmticas (...) No se imagina a facilidade com que ele somava ou
multiplicava de cor. A diviso, que foi sempre uma das operaes difceis para mim, era
para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as

denominaes dos algarismos. (...) A vocao era tal que o fazia amar os prprios sinais
das somas, e tinha esta opinio que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais
conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto. (Dom Casmurro, cap. XCIV)
27 Nem todos neste mundo podem ser patres; nem todos os patres do mundo
devem ser bem servidos. (Otelo, 1 ato, cena I)
Hs de ver muito servidor submisso que, encantado com a prpria servido,
consome a sua vida como os asnos servem ao dono: a troco de forragem. Uma vez velhos,
d-se-lhes a baixa. Chicote em tais honestos serviais! Outros h que mascaram as
maneiras e a carantonha do devotamento e, simulando bem servir aos amos, servem
apenas ao seu prprio bem. Quanto mais bem fornidos a expensas dos patres, mais lhes
fingem vassalagem. Dobram-se em reverncia diante destes; mas a si mesmos que eles
prestam culto. (Otelo, 1 ato, cena I)
29 Se tendes conhecimento disso e tudo foi feito com o vosso beneplcito, ento
certo que, h pouco, vos injuriamos temerria e impudentemente. (Otelo, 1 ato, cena I)
Agora, neste instante, agora mesmo, um velho carneiro negro est cobrindo a
vossa ovelhinha branca! (Otelo, Ia ato, cena I) O resultado que vereis a vossa filha coberta
por um cavalo da Berberia. Quereis que os vossos netos relinchem para vos pedir
abno? Agrada-vos uma parentela de corcis e ginetes? (Otelo, is ato, cena I)
32 Sou quem voz vem dizer que a vossa filha e o Mouro neste momento esto
fazendo de animal de duas costas. (Otelo, l- ato, cena I)
E h quem queira ser pai! (Otelo, 1a Ato, cena I)
Duplo dever defronto aqui, meu pai. A vs vos devo vida e educao. Ambas me
fazem ver que sois aquele a quem devo respeito para sempre. Sempre a vs, como filha,
obedeci. Mas aqui est tambm o meu marido. E a mesma submisso perante vs a que se
sujeitou a minha me outrora e que ela sobreps que seu pai devia, a que ora, com
razo, julgo dever ao Mouro, meu esposo e meu senhor. (Otelo, 1a ato, cena III)
35 Aproxima-te, Mouro. Aqui te dou, de todo o corao, o que tambm de todo o
corao te negaria, se porventura j no fosse teu. (Otelo, Ia ato, cena III)
36 J consumado o fato, o que convm encar-lo da melhor maneira. (Otelo, 13
ato, cena in)
A muito homem matei, nos campos de batalha. Mas minha conscincia isso
repugna: matar premeditadamente, no! Falta-me a crueldade nos momentos em que a
devia ter. Nove ou dez vezes, estive a ponto de var-lo aqui, abaixo das costelas. (...) Mas
ele tagarelava tanto, proferindo contra vs tantas cousas ofensivas e provocantes, que eu,

que no sou santo, tive dificuldade de conterme. (Otelo, Ia ato, cena II)
Otelo O meu prazer iguala esta maravilhosa surpresa de te achar aqui minha
espera! Abenoada alegria da minha alma! Se para mim agora as tempestades sero
seguidas de uma tal bonana, ento rujam os ventos insofridos at que a morte acorde e
as naus nos mares se levantem ao pice das vagas to altas como o Olimpo, e dessa altura
despenhem-se depois nos mais profundos abismos infernais! Morrer nesse momento; era o
supremo bem, pois to feliz me sinto que temo de uma vez ter esgotado todo o quinho de
bem-aventurana que o meu destino ignoto me tenha reservado!
Desdmona Deus h de permitir que o nosso amor e seus prazeres todos na
medida do tempo aumentem sempre. Otelo Que assim seja, assim seja! delcias do
amor! Eu no sei exprimir o meu contentamento... aperta-me a garganta... bom demais...
(beijando-a) Que isto... e mais isto... sejam para sempre a nica dissonncia entre ns dois.
lago ( parte) Como estais afinados! Mas deixai, que, ou no me chamo lago, ou
j vou afrouxar essas cravelhas e era uma vez a bela melodia! (Otelo, 2a ato, cena I)
Aos quinze anos, h at certa graa em ameaar muito e no executar nada. (Dom
Casmurro, cap. XVIII)
(...) o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, ho
mister de estrume de porco. (Dom Casmurro, cap. XCII)
Fora de casa, so como uma pintura; no salo, parecem campainhas; na cozinha,
gatas selvagens; se santas, injuriam; demnios, quando injuriadas; no trabalho domstico,
ociosas; diligentes e ativas... s na cama. (...) Levantam de manh para os cios do lar; de
noite deitam para trabalhar. (Otelo, 2- ato, cena I)
42 [A loira], bela, clara e sutil, usa o esprito e o apura em saber como usar a sua
formosura. Se morena, mas se de esprito no manca, h de saber fazer com que a
achem muito branca. Bela e tola, no h. Se bela, acha um parceiro que logo a ajudar a
achar um herdeiro. Feia e tola que seja, inda assim capaz de fazer o que a mais bonita e
esperta faz. (Otelo, 2 ato, cena I)
Se a terra pudesse ser fecundada por lgrimas de mulher, de cada gota vertida
brotaria um crocodilo. (Otelo, 4a ato, cena I)
44 Os olhos de Escobar, claros como j disse, eram dulcssimos; assim os definiu
Jos Dias, depois que ele saiu. (Dom Casmurro, cap. LXXI)
45Iago Hum, isso no me agrada... Otelo O que foi que disseste? lago
Nada, senhor. Isto ... no sei bem o que disse. Otelo No foi o Cssio, que se despediu
de Desdmona? lago Cssio, meu senhor? Certamente que no. No posso crer que se

esgueirasse, como um criminoso, s por vos ver chegar. Otelo Acho que foi. (Otelo, 3
ato, cena III)
46 Pois se passam a ser cometidos tais atos livremente e se livres ficam eles de
sano, julgamento ou desagravo, o Estado ento que passa a ser escravo. (Otelo, 1a
ato, cena II)
47 Parece incrvel que os homens metam pela boca adentro um inimigo que lhes
rouba a razo! Como somos capazes de nos transformarmos a ns mesmos em animais, e
isso prazerosamente, sob palmas, rindo, alegres, pulando! (Otelo, 2- ato, cena III)
48 Quero bem a Miguel Cssio e que no daria eu para livr-lo dessa desgraa!
(Otelo, 2- ato, cena III)
49 Reputao! Reputao! Reputao! A minha est perdida! O que em mim era
imortal, l se foi!
Resta-me apenas a parte animal. Minha reputao, lago, minha reputao! (Otelo,
2- ato, cena III)
50 Um ferimento no corpo (...) di mais que na reputao. (Otelo, 2 ato, cena III)
51 A reputao no passa de uma v e falsa atribuio. Tanto adquirida sem
merecimento, como perdida sem motivo. (Otelo, 2-ato, cena III)
52 Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro.(...) Assim
como era meu, passa a ser de outro, aps ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o
meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele no enriquece e a mim me torna
totalmente pobre. (Otelo, 3 ato, cena III) "
53 Rico o pobre a quem contenta o pouco que possui, que ento passa a ser
muito. Mas a opulncia hibernai pobreza para o rico que vive no constante temor de
empobrecer. (Otelo, 3 ato, cena III)
54 esprito invisvel do vinho: se no tens nome com que te chamem, eu te batizo
demnio! (Otelo, 2- ato, cena III)
55 Um bom vinho um bom gnio familiar, quando com ele se sabe lidar. (Otelo,
2a ato, cena III)
56 Ns podemos dizer que essas frgeis criaturas so nossas, isso sim. Mas que
os seus apetites so nossos, isso nunca! (Otelo, 3a ato, cena III)
57 Se o emblema da virtude a alvura, eu asseguro, Senhor, que vosso genro
mais branco que escuro. (Otelo, 13 ato, cena III)
58 As palavras s palavras so. Nunca ouvi dizer de um triste corao que pelo
ouvido viesse a ser curado. (Otelo, 1a ato, cena III)

59 Sentena que prope consolo ao sofredor fcil de seguir, quando alheia a


dor. duro ao que j est sob uma dor intensa ter de aturar a dois, ao seu mal e sentena.
(Otelo, 1a ato, cena III)
60 O cime um monstro que a si mesmo se gera e de si mesmo nasce. (Otelo, 3a
ato, cena IV)
61 Melhor ser trado cem mil vezes que suspeitar uma s vez que o somos!
(Otelo, 3a ato, cena III)
62 Nos seus lbios jamais achava os beijos dele! (Otelo, 3a ato, cena III)
63 O cime um monstro de olhos verdes, que escarnece do prprio pasto de que
se alimenta. (Otelo, 3a ato, cena III)
64 Roubado que no d pela coisa furtada que, afinal, no foi roubado em nada.
(Otelo, 3a ato, cena III)
65 (...) se te lembras bem da Capitu menina, hs de reconhecer que uma estava
dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (Dom Casmurro, cap. CXLVIII)
66 lago (alto) Continua agarrando-te a Desdmona, que ela h de te satisfazer
em tudo. (Baixo)
Ah! se fosse com a Branca, a coisa ia depressa! (alto) Nunca vi uma mulher to
doida por um homem!
Cssio Pobre coitada! Parece mesmo que est cada por mim. lago (baixo)
Ela anda espalhando por a que te vais casar com ela. (alto) verdade?
Cssio Eu, casar-me com ela? Com uma prostituta? Por favor, no faas to
pouco do meu juzo!
Achas que sou doido? Ah! Ah! Ah! (...) So invenes daquela tola. Como me quer,
quer iludir-se a si prpria, pensando que vou cair em semelhante asneira. Mas isso l por
conta dela. (...) H pouco, ela esteve aqui. Persegue-me por toda parte. Outro dia,
conversava eu na praia com uns venezianos e nisso surge a toleirona. Lana-se-me ao
pescoo assim, palavra... E toca a pendurar-se em mim, a agarrar-me, choramingando e
puxando-me... ah! ah! ah! (...) Eu preciso deix-la. (...) uma fuinha. E por sinal que
perfumada! (Otelo, 4 ato, cenaI)
67 Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, no se descrevem; no eram
oblquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lcidos. (Dom Casmurro, cap. L)
68 Se na balana da nossa vida no houvesse o prato da razo para equilibrar o
outro prato das paixes, os nossos humores e a baixeza dos nossos instintos nos levariam
s mais absurdas conseqncias. (Otelo, le ato, cena III)

69(...) no se navegam coraes como os outros,mares deste mundo. (Dom


Casmurro, cap. XLIX)
Amor que comea violentamente tem desfecho correspondente. (Otelo, 1a ato,
cena III)
71 Lamentar uma dor passada, no presente, criar outra dor e sofrer novamente.
(Otelo, 1a ato, cena III)

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