02-IntroducaoaosEstudosLiterarios 2ed PDF
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ESTUDOS LITERRIOS
SOMESB
Sociedade Mantenedora de Educao Superior da Bahia S/C Ltda.
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Superintendente Administrativo e Financeiro
Superintendente de Ensino, Pesquisa e Extenso
FTC - EAD
Faculdade de Tecnologia e Cincias - Ensino a Distncia
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PRODUO ACADMICA
Gerente de Ensino Jane Freire
Superviso Jean Carlo Bacelar, Leonardo Santos Suzart,
Wanderley Costa dos Santos e Fbio Viana Sales
Coordenao de Curso Jussiara Gonzaga
Autor (a) Mnica Oliveira
PRODUO TCNICA
Reviso Final Carlos Magno Brito Almeida Santos
Mrcio Magno Ribeiro de Melo
Equipe Andr Pimenta, Antonio Frana Filho, Amanda
Rodrigues, Bruno Benn, Cefas Gomes, Cluder Frederico,
Francisco Frana Jnior, Herminio Filho, Israel Dantas,
Ives Arajo, John Casais, Mrcio Serafim,
Mariucha Silveira Ponte, e Ruberval da Fonseca.
Editorao John Casais
Ilustrao John Casais
Imagens Corbis/Image100/Imagemsource
Sumrio
07
O QUE LITERATURA
07
Mimese e Verossimilhana
15
20
12
OS GNEROS LITERARIOS
A Lrica
21
O pico
27
O Trgico
35
38
42
42
A narrao na ps-modernidade
46
Quem o autor?
53
56
OS ESTUDOS CULTURAIS
59
66
O Cnone
68
71
Glossrio
77
Referncias Bibliogrficas
79
Apresentao da Disciplina
Prezado aluno,
A disciplina Introduo aos Estudos Literrios tem por objetivo levar voc a mergulhar
no universo da crtica e das teorias da literatura e da cultura. Comeamos o nosso passeio
refletindo sobre a noo de literatura e sobre a antiguidade clssica, com os primeiros
textos, na cultura ocidental, que tiveram por objeto de estudo a literatura. Mostraremos
que esses textos tinham objetivos bem diferentes daqueles que tm orientado a teoria da
literatura desde a sua constituio como disciplina, porque os autores desses primeiros
textos, os filsofos Plato e Aristteles, possuam uma perspectiva normativa e prescritiva
em relao literatura, o que no o objetivo da teoria literria. Procuramos, ao longo do
curso, mostrar que o texto literrio um eterno devir e que as reflexes em torno dele devem
sempre se pautar numa recusa a verdades e conceitos totalizadores que possam sufocar a
literatura, funcionando como camisas de fora para o seu contnuo movimento de danar com o mundo, revelando-o e sendo revelada por ele. Vigilantemente numa posio de
advogados do diabo em relao a essas verdades, compartilhamos a mesma posio de
tericos contemporneos da literatura, como Antoine Compagnon, Eneida Maria de Souza,
Jonathan Culler e Silviano Santiago. Imbudos desse esprito crtico e atentos ao nosso
tempo e ao mundo a nossa volta, revisitamos os conceitos de arte, de teoria da literatura, os
antigos conceitos de mimesis, verossimilhana, catarse, passamos pelos gneros literrios,
expusemos a questo do autor, questionamos a noo de cnone literrio, colocamos em
pauta a literatura atual. O nosso porto de chegada so as discusses contemporneas em
torno da literatura, principalmente a apresentao da perspectiva culturalista, que coloca a
literatura em dilogo com outras manifestaes culturais, principalmente com a cultura de
massa, lanando novo desafio a ns, professores, alunos, estudiosos e crticos da literatura
a oxigenar e potencializar as nossas formas de ver e de viver a literatura.
Sorte, nos estudos e na vida!
INTRODUO E GNEROS
LITERRIOS
O QUE LITERATURA
A literatura fala da literatura Antoine Compagnon e os
demnios da teoria
Ol! Nas reflexes que iniciaremos acerca do universo da literatura, comearemos
com a questo da arte da escrita. O texto do escritor francs Gilles Deleuze, logo abaixo,
apresentar algumas rpidas questes para pensarmos sobre a lngua, o ato de escrever,
dentre outras coisas, que nos far perceber esse no-limite do literrio, suas frestas, seus
sulcos, seu modo de ser e nos fazer delirar!
PRLOGO
(Gilles Deleuze)
Este conjunto de textos, dos quais alguns so inditos, outros j publicados, organizase em torno de determinados problemas. O problema de escrever: o escritor, como diz
Proust, inventa na lngua uma nova lngua, uma lngua de algum modo estrangeira. Ele
traz luz novas potncias gramaticais ou sintticas. Arrasta a lngua para fora de seus
sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas, o problema de escrever tambm inseparvel
de um problema de ver e de ouvir: com efeito, quando se cria uma outra lngua no interior
da lngua, a linguagem inteira tende para um limite assinttico, agramatical, ou que
se comunica com seu prprio fora.
O limite no est fora da linguagem, ele o seu fora: feito de vises e audies
no-linguageiras, mas que s a linguagem torna possveis. Por isso, h uma pintura e
uma msica prprias da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam
acima das palavras. atravs das palavras, entre as palavras, que se v e se ouve.
Beckett falava em perfurar buracos na linguagem para ver ou ouvir o que est escondido
atrs. De cada escritor preciso dizer: um vidente, um ouvidor, mal visto mal dito,
um colorista, um msico.
Essas vises, essas audies no so um assunto privado, mas formam as figuras
de uma histria e de uma geografia incessantemente reinventadas. o delrio que as
inventa, como processo que arrasta as palavras de um extremo a outro do universo.
So acontecimentos na fronteira da linguagem. Porm, quando o delrio recai no estado
clnico, as palavras em nada mais desembocam, j no se ouve nem se v coisa alguma
atravs delas, exceto uma noite que perdeu sua histria, suas cores e seus cantos. A
literatura uma sade.
Introduo aos
Estudos
Literrios
Toda obra uma viagem, um trajeto, mas que s percorre tal ou qual caminho exterior
em virtude dos caminhos e trajetrias interiores que a compem, que constituem sua
paisagem ou seu concerto.
DELEUZE, Gilles. Crtica e clnica. So Paulo: Ed.34, 1997.
A LITERATURA
(Antoine Compagnon)
Os estudos literrios falam da literatura das mais diferentes maneiras. Concordam,
entretanto, num ponto: diante de todo estudo literrio, qualquer que seja seu objetivo,
a primeira questo a ser colocada, embora pouco terica, a da definio que ele
fornece (ou no) de seu objeto: o texto literrio. O que torna esse estudo literrio? Ou
como ele define as qualidades literrias do texto literrio? Numa palavra, o que para
ele, explcita ou implicitamente, a literatura?
Certamente, essa primeira questo no independente das que se seguiro.
Indagaremos sobre seis outros termos ou noes, ou, mais exatamente, sobre a
relao do texto literrio com seis outras noes: a inteno, a realidade, a recepo,
a lngua, a histria e o valor. Essas seis questes poderiam, portanto, ser reformuladas,
acrescentando-se a cada uma o epteto literrio, o que, infelizmente, as complica mais
do que as simplifica:
O que inteno literria?
Introduo aos
Estudos
Literrios
No sentido mais amplo, literatura tudo o que impresso (ou mesmo manuscrito),
so todos os livros que a biblioteca contm (incluindo-se a o que se chama literatura oral,
doravante consignada). Essa acepo corresponde noo clssica de belas-letras as
quais compreendiam tudo o que a retrica e a potica podiam produzir, no somente a
fico, mas tambm a histria, a filosofia e a cincia, e, ainda, toda a eloqncia. Contudo,
assim entendida, como equivalente cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde
o sculo XIX, a literatura perde sua especificidade: sua qualidade propriamente literria
lhe negada. Entretanto, a filologia do sculo XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo
de toda uma cultura, da qual a literatura, na acepo mais restrita, era o testemunho mais
acessvel. No conjunto orgnico assim constitudo, segundo a filologia, pela lngua, pela
literatura e pela cultura, unidade identificada a uma nao, ou a uma raa, no sentido
filolgico, no biolgico do termo, a literatura reinava absoluta, e o estudo da literatura era
a via rgia para a compreenso de uma nao, estudo que os gnios no s perceberam,
mas no qual tambm forjaram o esprito.
No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literrio e o no-literrio) varia
consideravelmente segundo as pocas e as culturas. Separada ou extrada das belasletras, a literatura ocidental, na acepo moderna, aparece no sculo XIX, com o
declnio do tradicional sistema de gneros poticos, perpetuado desde Aristteles. Para
ele, a arte potica - a arte dessa coisa sem nome, descrita na Potica - compreendia,
essencialmente, o gnero pico e o gnero dramtico, com excluso do gnero Lrico,
que no era fictcio nem imitativo - uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira
pessoa - vindo a ser, conseqentemente, e por muito tempo, julgado um gnero menor.
A epopia e o drama constituam ainda os dois grandes gneros da idade clssica, isto
, a narrao e a representao, ou as duas formas maiores da poesia, entendida como
fico ou imitao (Genette, 1979; Combe). At ento, a literatura, no sentido restrito (a
arte potica), era o verso. Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do sculo XIX:
os dois grandes gneros, a narrao e o drama, abandonavam cada vez mais o verso para
adotar a prosa. Com o nome de poesia, muito em breve no se conheceu seno, ironia
da histria, o gnero que Aristteles exclua da potica, ou seja, a poesia lrica a qual, em
revanche, tornou-se sinnimo de toda poesia. Desde ento, por literatura compreendeuse o romance, o teatro e a poesia, retomando-se trade ps-aristotlica dos gneros
pico, dramtico e lrico, mas, doravante, os dois primeiros seriam identificados com a
prosa, e o terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema em prosa
dissolvessem ainda mais o velho sistema de gneros.
O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) inseparvel do
romantismo, isto , da afirmao da relatividade histrica e geogrfica do bom gosto,
em oposio doutrina clssica da eternidade e da universalidade do cnone esttico.
Restrita prosa romanesca e dramtica, e poesia lrica, a literatura concebida, alm
disso, em suas relaes com a nao e com sua histria. A literatura, ou melhor, as
literaturas so, antes de tudo, nacionais.
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11
Introduo aos
Estudos
Literrios
O termo literatura tem, pois, uma extenso mais ou menos vasta segundo os
autores, dos clssicos escolares histria em quadrinhos, e difcil justificar sua
ampliao contempornea. O critrio de valor que inclui tal texto no , em si mesmo,
literrio nem terico, mas tico, social e ideolgico, de qualquer forma extraliterrio.
Pode-se, entretanto, definir literariamente a literatura?
COMPAGNON, Antoine. O demnio da teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
Espero que voc tenha apreciado o texto durante sua leitura. Escolhemos este fragmento de
texto pelo fato de, nele, o autor colocar questes que j fazem parte de uma espcie de tradio
no mundo literrio. Essas questes perseguem todos os alunos, professores, pesquisadores
de literatura que se debruam sobre a rdua tarefa de continuar repassando e repensando os
conhecimentos literrios. Tarefa que Compagnon faz com gosto e leveza: repensa a literatura dentro
de uma forma no-prescritiva, sem estancar os movimentos pelos quais ela passou ou tem passado,
sem fazer uso de uma predileo crtica ou terica que exclua leitores menos preparados.
Ao distinguir literatura de fico, o autor caminha com o cotidiano, propondo um dilogo
com o senso comum como aquele que tambm determina um status para a noo do literrio,
ainda que essa determinao surja recheada de possveis mitificaes acerca do mesmo.
Para saber mais, visite o site abaixo. Nele, voc encontrar uma entrevista bem interessante
com o escritor Gilles Deleuze. Fatores extra-literrios nos ajudando a pensar a literatura...
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51
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Introduo aos
Estudos
Literrios
Saiba mais !
O termo Katharsis, ou catarse, esteve ligado ao culto de Dionsio, ou Baco, pelo
fato de as danas realizadas neste culto levarem o indivduo a uma liberao de temor
e malefcios, produzindo, assim, a cura no portador de doenas. O termo, portanto,
associa-se s cincias mdicas. Entretanto, justamente devido sua associao
com a liberao de emoes, a palavra passou a designar a liberao da emoo
causada pela apreciao de um objeto artstico de qualquer natureza. Para Plato,
a catarse surtia um efeito negativo; Aristteles, porm, ligando a catarse idia de
msica, aconselha-a com fins de purificao, fato que passou a gerar controvrsias
a respeito da significao do termo, uma vez que Aristteles no a explica. A palavra
catarse, portanto, encontra-se traduzida como purgao no sentido mdico, e como
purificao no sentido religioso.
A catarse tem como funo liberar o indivduo de uma emoo forte, geralmente o
terror ou a compaixo. Desse modo, Aristteles associa a catarse poesia trgica, j que na
tragdia, o prazer o efeito causado pela liberao dos sentimentos de terror e compaixo
acumulados pelos espectadores durante a sua apresentao.
A tragdia a imitao de uma ao importante e completa; de certa extenso;
num estilo agradvel pelo emprego separado de cada uma das suas formas,
segundo as partes: ao apresentada no com ajuda de uma narrativa, mas por
atores, e que suscitando a compaixo e o terror, tem por efeito obter a purgao
dessas emoes (Aristteles, p. 229).
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Para Aristteles, a catarse exerce uma funo de controle, uma vez que impede
o excesso passional nos indivduos, purgando-os, e, conseqentemente, levando-os
a uma clareza racional.
Indicao de site:
http://www.espirito.com.br/portal/artigos/diversos/filosofia/a-arte-poetica.html
Mimese e Verossimilhana
Plato, em A Repblica, considera os artistas como imitadores do terceiro grau. O que
significa isso? Plato situa os seres em trs categorias, ou graus, e, tomando como exemplo
uma mesa, estabelece o seguinte critrio: em primeiro lugar estaria Deus, Criador da idia;
em segundo lugar estaria o artficie, o materializador da idia; e em terceiro grau e ltimo grau
encontra-se o artista, como por exemplo, um pintor, pelo fato de copiar ou imitar a realidade,
no caso atravs da pintura. O interesse de Plato residia em identificar a utilidade do poeta, ou
do artista de modo geral, e o efeito da sua arte, ou seja, o efeito da tragdia no espectador.
Mas ainda no formulamos a mais sria acusao contra a poesia. O que nela h de
mais terrvel a sua capacidade de fazer danos aos homens de real valor, e poucos so os
que escapam essa influncia. (Plato)
A concepo platnica pressupe um efeito negativo da arte sobre o seu apreciador,
pois a emoo causada pela obra de arte, a catarse, prejudicaria o indivduo no entendimento
da verdade. O platonismo concebe a arte como mimesis, ou seja, a reproduo de algo
que existe na realidade, e que deve ser reconhecido pela razo. As imitaes so danosas
aos indivduos por no se tratarem de objetos reais na essncia, mas por se constiturem
segundo a tica platnica - de uma viso espelhada da realidade, uma aparncia ilusria,
levando os cidados ao engano.
Por outro lado, Aristteles, embora influenciado por
Plato, afasta-se da concepo platnica e, considerando
a arte no somente como imitao da realidade imitatioidentifica a mmesis como a imitao da ao humana,
ou seja, uma representao. Por exemplo, na tragdia, a
representao de um drama envolve a ao do(s) ator(es)
e do texto representado, e que gera uma reao no pblico
espectador. O objeto artstico, portanto, supe uma interao
entre o autor e o receptor, considerando que a obra s se
realiza pelo efeito causado no receptor (pblico).
Enquanto Plato considera a obra de arte como apenas uma imitao, Aristteles
amplia esta noo considerando a arte no apenas uma mera imitao da realidade, mas
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Introduo aos
Estudos
Literrios
No compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acontecido, o possvel, segundo a verossimilhana ou necessidade (Aristteles, p.306).
E a literatura?
A literatura fico, algo que existe na imaginao de seu
criador, e, portanto, no pode ser submetido uma verificao extratextual (fora do texto).
A literatura cria seu prprio universo, semanticamente autnomo
em relao ao mundo em que vivemos. Ela traz seus seres ficcionais,
seu ambiente imaginrio, seu cdigo ideolgico, sua prpria verdade:
pessoas metamorfoseadas em animais, animais que falam a
linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantsticas, amores
incrveis, situaes paradoxais, sentimentos contraditrios, etc.4
A realidade criada pela fico potica tem relao significativa
com o real, uma vez que a criao no parte de um vazio, e sim de algo
que j existe. As estruturas lingsticas, sociais, e ideolgicas, reais,
fornecem o material para que o artista crie o mundo imaginrio.
importante observar que mesmo a literatura de cunho realista , contudo, fruto da
imaginao do artista, que faz um recorte da realidade que pretende mostrar, mesmo quando
4 - Autor desconhecido. Fonte: Apostila de Teoria da Literatura I-A. Ufba. Profas. Lvia Ma. Santos e Viviane Freitas, 2004.
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Introduo aos
Estudos
Literrios
Rua da Unio...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infncia
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrs de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de l era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
Capibaribe
L longe o sertozinho de Caxang
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moa nuinha no banho
Fiquei parado o corao batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto rvores destroos redemoinho sumiu
E nos peges da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela comeou a passar a mo nos meus cabelos
Capiberibe
Capibaribe
Rua da Unio onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale
vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
Que se chamava midubim e no era torrado era cozido
Me lembro de todos os preges:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi h muito tempo...
A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na lngua errada do povo
Porque ele que fala gostoso o portugus do Brasil
Ao passo que ns
O que fazemos
macaquear
A sintaxe lusada
A vida com uma poro de coisas que eu no entendia nem
Terras que no sabiam onde ficavam...
Recife...
Rua da Unio...
A casa de meu av...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo l parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu av morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu av.
Rio, 1925.
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6 - KAFKA, Franz. A Metamorfose Um Artista da Fome Cartas a Meu Pai. So Paulo: Martins Claret, 2001.p.17.
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Feita essa leitura da HQ de Crumb, percebemos o quo intensa sua narrativa, mesmo
que esta no seja permeada de palavras escritas. A noo de texto se amplia para outras
formas que ventilam as palavras e atribuem novos sentidos ao espao da enunciao. Um
filme mudo, a imagem esttica de um objeto, o caminhar silencioso de cada um pelas ruas...
todos eles formam um grande texto. A literatura faz dobras na sua forma e, no espao da
contemporaneidade, qualquer manifestao artstica nos ajuda a compreender as instncias
da arte, da cultura. Pensando uma noo de texto para alm das palavras, o olhar da literatura
alcana o longe e fragmentado cotidiano.
Atividades
Complementares
1. Lidos os dois textos, o de Deleuze e o de Compagnon, como voc caracterizaria
a literatura, suas formas, seu sentido? E, voltando pergunta de Compagnon: possvel,
finalmente, definir a literatura? Por qu?
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OS GNEROS LITERRIOS
Os Gneros Literrios so as vrias formas de trabalhar a linguagem, de registrar
a histria, e fazer com que a essa linguagem seja um instrumento de conexo entre os
diversos contextos literrios que esto dispersos ao redor do mundo. Desde a antiguidade,
os gneros literrios so conhecidos e geralmente so divididos, segundo Aristteles, como:
Lrico, Narrativo ou pico e Dramtico.
Neste segundo bloco, estudaremos cada um dos gneros literrios em particular e as
relaes mantidas entre eles. Veremos a lrica, o pico e o dramtico, assim como suas
particularidades e, posteriormente, veremos como cada gnero no se estabiliza em uma
frmula nica e totalizante.
A lrica
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Isto equivale a dizer que o poeta moderno reconhece a sua incapacidade de apresentar
o mundo de forma verdadeira e inquestionvel, ou, ainda, na sua totalidade; o poeta sabe
que a sua viso de mundo parcial e segmentada.
Observem o soneto abaixo:
Correspondncias
Baudelaire
Como longos ecos que de longe se confundem
numa tenebrosa e profunda unidade,
vasta como a noite e a claridade,
os perfumes, as cores e os sons se correspondem.
Dica:
Para ver fotos de escritores, entre no site de Lygia Fagundes Telles e vasculhe seu ba!
http://portalliteral.terra.com.br/ligia_fagundes_telles/bau/fotos.shtml?bau
12 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 43.
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Introduo aos
Estudos
Literrios
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
H tal soturnidade, h tal melancolia,
Que as sombras, o bulcio, o Tejo, a maresia,
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O cu parece baixo e de neblina,
O gs extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifcios, com as chamins, e a turba,
Toldam-se duma cor montona e londrina.
Donde antes natureza e a sua conciliao com o sujeito, na modernidade, a cidade
surge como paisagem predominante: ruas e lojas engolfam o poeta e seu mundo. Solto na
grande cidade, o poeta moderno busca na Histria sentido para a sua condio atual, e,
espelhando a sua perplexidade diante do mundo novo, surge uma linguagem alegrica e
fragmentada a dialogar com a tradio. Nessa busca, elementos caractersticos da poesia
como o ritmo, a sonoridade, a ambigidade de sentidos, a organizao de idias e associaes
criativas, abandonam os antigos modelos e regras, se expandindo e emancipando.
O sujeito lrico moderno no mais existe como referente, ou algum em particular;
torna-se oculto quanto poeta e como leitor, na medida em que a sua existncia surge com
o texto, e o leitor participa atravs do ato de leitura.
Na lrica moderna, a fala do sujeito lrico no reflete necessariamente a voz do autor;
o sujeito lrico se encontra imbricado na trama do texto potico. ...sua existncia brota da
melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lrico o prprio texto,e no texto que o
poeta real transforma-se em sujeito lrico13.
A partir do Simbolismo, o sujeito lrico moderno passa a perceber que a subjetividade
pode tambm ser ilusria, j que o espao da poesia no se constitui nem do espao da
realidade nem do eu, dando lugar precariedade do sujeito, estabelecida pela via da
prpria linguagem. Vejamos o que Fernando Pessoa nos diz sobre o poeta:
O poeta um fingidor
Finge to completamente
Que chega a fingir que dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa
A poesia lrica moderna vem abarcar, portanto, todos os tipos de digresses da alma
e do eu. Suas audcias resultam num conceito de poesia que se assemelha transgresso
lgica e num direcionamento utopia e ao mundo do desejo, uma vez que o poeta liberta13 - CARA, Salete de Almeida. Op. cit. loc. cit. p. 46.
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se de regras e modelos pela via do poema alcanando um outro espao, o espao possvel
da liberdade e do sonho.
Tomando como exemplo alguns poetas modernos brasileiros poderemos perceber que
o texto se constitui como uma fotografia ou uma pintura, em que o sujeito lrico o elemento
que une as escolhas de linguagem que forma o texto em si.
Penso familiar14
Manoel Bandeira
Jardim da pensozinha burguesa,
Gatos espapaados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassis
amarelo!
resistem.
E as dlias, rechonchudas, plebias, dominicais,
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegncia a patinha direita:
a nica criatura fina na pensozinha burguesa.
pela construo do texto que se revela o sujeito do/no texto, ponto de encontro com o leitor,
elemento indispensvel para que o efeito leitura-traduo seja realizado, e tenha significao.
Algumas outras questes a respeito da poesia ainda merecem destaque, como as
suas caractersticas e a diferenciao de outros gneros literrios. Vamos ver?
Ezra Pound15 resume os aspectos representativos da poesia em melopia, logopia
e fanopia, em que cada um desses aspectos corresponde s caractersticas rtmicas,
organizao/combinao de palavras (forma), e visuais, respectivamente. A fanopia consiste
na projeo do objeto na imaginao visual; a melopia se refere musicalidade ou ritmo; e
a logopia designa a arte de combinar palavras, dando-lhes forma e contedo, e provocando
efeitos e associaes atravs das duas caractersticas anteriores, a fanopia e a melopia.
Mauro Faustino ainda ressalta dois aspectos importantes na poesia: o prosaico e o
potico. Ambos esto contidos de modo implcito na escrita, considerando que no haveria uma
literatura que, por mais prosaica que fosse, como por exemplo, um relatrio, no contivesse
sequer uma palavra, ou uma organizao de palavras que no se configurasse como potica;
por outro lado, no haveria uma poesia to pura que no abordasse algo prosaico.
Todavia, esclarecemos que a distino entre a prosa e a poesia se faz por alguns outros
aspectos, a saber: do ponto de vista formal citamos os aspectos concretos, ou exteriores,
da poesia como a sua representao grfica. Acrescente-se tambm o fato que o poema
possui um carter mais musical que a prosa lembremos que no que pese a potica ter se
desvinculado da msica, esta ainda se faz presente, marcando a poesia atravs do ritmo e da
rima, fluindo e configurando o poema. Considerando a prosa e a poesia, ou especificamente
prosa e verso, como idias contrastantes, observamos que ambas as formas se distinguem
14 - BANDEIRA, Manoel. Op.cit.loc.cit. p. 27.
15 - POUND, Ezra. Apud MOISS, Massaud. Dicionrio de Termos Literrios. So Paulo: Ed. Cultrix, 1974. p. 316 e 323.
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O pico
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narrador pico dispe de tempo para contar a sua histria com maior calma
e lucidez. O gnero pico constitudo por dois horizontes: o maior, ou do
narrador, e o menor, ou dos personagens, ambos de pleno conhecimento
do narrador a histria j decorreu, o que vem a diferenciar, mais uma vez,
Introduo aos
este gnero da Lrica.
Estudos
Mesmo na narrao em que o narrador conta uma estria acontecida
Literrios
a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior que o eu narrado e ainda
envolvido nos eventos, visto j conhecer o desfecho do caso.
A distncia do narrador tambm o possibilita a no necessitar se metamorfosear
nos personagens dos quais narra os destinos; poder imit-los, fingir estar presente nos
acontecimentos, conhecer os sentimentos dos protagonistas, mas nunca se transforma neles.
Estar sempre mostrando, ou ilustrando, as aes dos personagens.
A epopia e o poema pico, embora vistos como sinnimos, apresentam uma caracterstica
curiosa: nem todo poema pico , necessariamente, uma epopia; entretanto, uma epopia ser
sempre um poema pico. Isto se explica pelo fato de que, quando um poema pico torna-se
representativo da histria de um povo, torna-se, concomitantemente, uma epopia. O poema
pico, contudo, no conseguiu se alar altura de se realizar como uma epopia, ou como uma
lenda histrica de uma comunidade. Isto pode ocorrer tanto pela falta de criatividade, ou engenho
e arte, ou por estar concentrado em um recorte: um acontecimento secundrio, historicamente,
como, por exemplo, Caramuru, O Uraguai, etc. As epopias podem ser annimas, ou de criao
coletiva, como, por exemplo, A Odissia, Ilada, A Cano de Rolando, El Cid, e a essas se
denomina de epopia natural, folclrica ou primitiva. As epopias de autoria conhecida como
Eneida e Os Lusadas so denominadas de epopia erudita ou artifical20.
O personagem central da epopia, o heri representa o destino de uma comunidade,
e passa por uma srie de provas ou aventuras das quais sair consagrado pela comunidade.
O heri representa os valores ticos do povo ou nao a que a lenda se refere.
A epopia, como gnero, encontra-se caracterizada por Bakthin por trs traos: o
primeiro, pelo passado nacional pico, objeto da epopia; o segundo, a lenda nacional,
e no a experincia pessoal, atua como fonte da epopia; e o terceiro, que o mundo
pico o tempo do autor e dos ouvintes, distante.
O primeiro trao diz respeito ao passado nacional, isto , ao mundo da origem da
histria de uma nao, constitudo pelo que houve de primeiro e de melhor. O tempo da
epopia sempre o passado, inacessvel, que atua como referncia e orientao para os
descendentes de uma nao, ou povo.
Qualquer que tenha sido a sua origem, a epopia que chegou at ns a forma de
um gnero acabado de maneira absoluta e muito perfeita, cujo trao constitutivo a relao
do mundo por ela representado no passado absoluto das origens e dos fastgios nacionais.
O passado absoluto uma categoria (hierarquia) de valores especficos. Para a viso do
mundo pico, o comeo, o primeiro, o fundador, o ancestral, o predecessor, etc.,
no so apenas categorias temporais, mas igualmente axiolgicas e temporais, este o
grau superlativo axiolgico-temporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas, como
tambm pela atitude de todas as coisas e fenmenos do mundo pico: neste passado tudo
bom, e tudo essencialmente bom (o primeiro) unicamente neste passado. O passado
pico absoluto a nica fonte e origem de tudo que bom para os tempos futuros. Assim
afirma a forma da epopia.
A epopia tem como objeto o tempo e, como nica fonte, a lenda. Podemos afirmar,
portanto, que a fora da epopia reside na memria de um tempo remoto, inacessvel, e
20 - MOISS, Massaud. Op. Cit.p. 188.
21 - BAKTHIN, Mikhail. Epos e Romance. In: Questes de Literatura e de Esttica (Teoria do Romance).So Paulo: Unesp, 1998. p.407.
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para trs. E os anis se estendiam molemente para em seguida voltarem posio anterior,
formando uma coroa de caracis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de
perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lbulos das orelhas, no vrtice do decote
e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Atravs do espelho, olhou para o menino. Ele
sorriu tambm, era linda, linda, linda! Em todo o bairro no havia uma moa linda assim.
Quantos anos voc tem, mame?
Ah, que pergunta! Acho que trinta ou trinta e um, por a, meu amor, por a... Quer se
perfumar tambm?
Homem no bota perfume.
Homem, homem! Ela inclinou-se para beij-lo. voc um nenenzinho, ouviu bem?
o meu nenenzinho.
O menino afundou a cabea no colo perfumado. Quando no havia ningum olhando,
achava maravilhoso ser afagado como uma criancinha. Mas era preciso mesmo que no
houvesse ningum por perto.
Agora vamos que a sesso comea s oito, avisou ela, retocando apressadamente
os lbios.
O menino deu um grito, montou no corrimo da escada e foi esper-la embaixo. Da
porta, ouviu-a dizer empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.
Na rua, ele andava pisando forte, o queixo erguido, os olhos acesos. To bom sair
de mos dadas com a me. Melhor ainda quando o pai no ia junto porque assim ficava
sendo o cavalheiro dela. Quando crescesse haveria de casar com uma moa igual. Anita
no servia que Anita era sardenta. Nem Maria Ins com aqueles dentes saltados. Tinha que
ser igualzinha me.
Voc acha a Maria Ins bonita, mame?
bonitinha, sim.
Ah! tem dento de elefante.
E o menino chutou um pedregulho. No, tinha que ser assim como a me, igualzinha
me. E com aquele perfume.
Como o nome do seu perfume?
Vent Vert. Por qu, filho? Voc acha bom?
Que que quer dizer isso?
Vento Verde.
Vento Verde, vento verde. Era bonito, mas existia vento verde? Vento no tinha cor,
s cheiro. Riu.
Posso te contar uma anedota, me? Posso?
Se for anedota limpa, pode.
No limpa no.
Ento no quero saber.
Mas por que, p!?
Eu j disse que no quero que voc diga p.
Ele chutou uma caixa de fsforos. Pisou-a em seguida.
Olha me, a casa do Jlio...
Jlio conversava com alguns colegas no porto. O menino fez questo de cumprimentlos em voz alta para que todos voltassem e ficassem assim mudos, olhando. Vejam, esta
minha me!, teve vontade de gritar-lhes. Nenhum de vocs tem uma me linda assim! E
lembrou-se deliciado que a me de Jlio era grandalhona e sem graa, sempre de chinelo
e consertando meia. Jlio devia estar agora roxo de inveja.
Ele bom aluno? Esse Jlio.
Que nem eu.
Ento no .
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No digo mais.
Diante da casa de Jlio, instintivamente ele retardou o passo. Teve um olhar para a
janela acesa. Vislumbrou uma sombra disforme passar atravs da cortina.
Dona Margarida.
Hum?
A me do Jlio.
Quando entraram na sala, o pai estava sentado na cadeira de balano, lendo o jornal.
Como todas as noites, como todas as noites. O menino estacou na porta. A certeza de
que alguma coisa terrvel ia acontecer paralisou-o atnito, obumbrado. O olhar em pnico
procurou as mos do pai.
Ento, meu amor, lendo o seu jornalzinho? perguntou ela, beijando o homem na
face. Mas a luz no est muito fraca?
A lmpada maior queimou, liguei essa por enquanto, disse ele, tomando a mo da
mulher. Beijou-a demoradamente. Tudo bem?
Tudo bem.
O menino mordeu o lbio at sentir gosto de sangue na boca. Como nas outras
noites, igual. Igual.
Ento, filho? Gostou da fita? Perguntou o pai, dobrando o jornal. Estendeu a mo ao menino
e com a outra comeou a acariciar o brao nu da mulher. Pela sua cara, desconfio que no.
Gostei, sim.
Ah, confessa, filhote, voc detestou, no foi? Contestou ela. Nem eu entendi direito,
uma complicao dos diabos, espionagem, guerra, mfia... Voc no podia ter entendido.
Entendi. Entendi tudo! Ele quis gritar e a voz saiu num sopro to dbil que s ele ouviu.
E ainda com dor de dente! Acrescentou ela, desprendendo-se do homem e subindo
a escada. Ah, j ia esquecendo a aspirina!
O menino voltou para a escada os olhos cheios de lgrimas.
Que isso? Estranhou o pai. Parece at que voc viu assombrao. Que foi?
O menino encarou-o demoradamente. Aquele era o pai. O pai. Os cabelos grisalhos.
Os culos pesados. O rosto feio e bom.
Pai... murmurou, aproximando-se. E repetiu num fio de voz: Pai...
Mas meu filho, que aconteceu? Vamos, diga!
Nada. Nada.
Fechou os olhos para prender as lgrimas. Envolveu o pai num apertado abrao.
O trgico
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essas aes estavam circunscritas cenas cotidianas, prximas gente vulgar, comuns
aos indivduos de classes inferiores.
Um dos traos mais marcantes da Dramtica o fato de seu autor no aparecer na
obra, confundindo-se muitas vezes com os personagens ou com o prprio texto. Isto, porm,
incorre em algumas exigncias a fim de que o seu desenvolvimento ocorra de forma adequada,
como, por exemplo, o recorte dado ao tema. Uma vez que no existe a intermediao do
narrador que inicie um desenrolar de um enredo, faz-se necessrio que a pea se inicie j
dentro de um contexto, histrico. No Drama a ao se desenrola no presente, no agora,
no havendo um narrador que a situe no tempo, nem que a faa tornar ao passado, muito
menos ao futuro. O tempo da ao sempre o presente, e o futuro desconhecido. A evocao
do passado s pode ser realizada atravs dos dilogos travados pelos personagens, j que
o tempo no Drama linear e sucessivo, como na realidade.
A ao dramtica acontece agora e no aconteceu no passado, mesmo quando se
trata de um drama histrico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo (11o captulo), diz
com acerto que o dramaturgo no um historiador; ele no relata o que se acredita haver
acontecido, mas faz com que acontea novamente perante os nossos olhos. Mesmo o
novamente demais. Pois a ao dramtica, na sua expresso mais pura, se apresenta
sempre pela primeira vez. No a representao secundria de algo primrio. Origina-se,
cada vez, em cada representao, pela primeira vez; no acontece novamente o que j
aconteceu, mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ao original,
cada rplica nasce agora, no citao ou variao de algo dito h muito tempo.26
Na ao dramtica a catarse gerada pela verossimilhana, cuja ocorrncia se d pelo
funcionamento da pea, que, como um organismo, todas as partes interagem dinamicamente
e so determinadas pelo todo. As funes de coro, prlogo e eplogo no contexto do drama
se manifestam como uma interveno do autor, no sentido que deslocam cenas e sugerem
um mediador, insinuando uma funo lrico-narrativa. Na ausncia de um narrador, a ao se
realiza pelo dilogo; Rosenfeld aponta para o fato que o dilogo constitui a Dramtica como
literatura e como teatro declamado (apartes e monlogos no afetam a situao essencialmente
dialgica)27 . Os dilogos representam a tenso suscitada pelo entrechoque de vontades que
caracterizam o conflito, afirmando o seu carter dialtico como propulsor da afirmao e rplica
atravs dos choques de inteno. Caracterizando a funo lingstica dos gneros literrios,
Rosenfeld racionaliza que se o pronome da Lrica o eu, e o do pico, ele, o do Drama seria
o tu ou vs. Portanto, a sua linguagem, preponderante, seria apelativa, diferentemente da
expressiva e comunicativa da Lrica e da pica, respectivamente.
Por no possuir um mediador que componha, descrevendo, seus personagens em seus
aspectos fsicos nem psicolgicos, nem tampouco o ambiente que a pea se situa, o texto dramtico
necessita de um palco, ou local que o complete cenicamente. As representaes visuais, as rubricas,
a coreografia, a msica e a pantomima assumem as funes do narrador, situando a platia acerca
do contexto da pea e seus personagens. O paradoxo da literatura dramtica que ela no se
contenta em ser literatura, j que, sendo incompleta, exige a complementao cnica.
O teatro como representao, portanto, depende fortemente de um pblico presente,
mesmo quando o ato de representar aparentemente no se dirija a ningum presente. Na
realidade, na maioria das vezes, a platia inexiste para os personagens. Os atores sabem
da existncia do pblico, porm, desempenham os seus papis como se ignorassem a
platia, porque esto metamorfoseados em seus personagens. importante ressaltar que as
observaes aqui realizadas dizem respeito ao Drama puro, ou peas fechadas; quanto
mais distante a obra dramtica se situar da Dramtica pura, mais se aproximaro do que
chamamos de pica, ou lrica-picas, ou abertas.
26 - ROSENFELD, Anatol. O Teatro pico. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1985.p.31.
27 - Op. Cit. p.34.
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A idia central desta teoria a noo de romance como um gnero em devir. Alm de
desestabilizar a clssica teoria dos gneros poticos, assentada sobre formaes precisas
e estruturas cannicas, esta concepo de Bakhtin polemiza com algumas tendncias
atuais que entendem o romance como um gnero que viveu a plenitude de suas formas no
sculo XIX, encontrando-se definitivamente morto neste sculo. Bakhtin no compactua
com esta tendncia e considera o inacabamento da estrutura composicional do romance
o trao maior de sua poeticidade. Da a inoperncia da estilstica tradicional na apreenso
deste tipo de formao potica. O estilo do romance antes uma combinao de estilos
agenciados, sobretudo, pela diversidade social de linguagens que organizam artisticamente
sua composio, dificultando, assim, a consolidao de uma estrutura cannica, premissa
elementar dos gneros poticos. Alis, a verdadeira premissa da prosa romanesca ,
para Bakhtin, a estratificao interna da linguagem, que torna o romance um fenmeno
pluriestilstico, plurilnge e plurivocal. por estas vias que Bakhtin envereda no sentido de
apreender os nveis de poeticidade da palavra no romance.
Bakhtin reconhece que o romance trouxe um dilema para a estilstica e filosofia do
discurso, colocadas, assim, diante de um impasse: ou reconheciam o romance e a prosa
literria que gravita em torno dele como gneros no-literrios, ou seriam obrigadas a rever
de maneira radical a concepo de discurso potico. Bakhtin parte exatamente de uma
reviso da noo de gnero, pois entende que a poeticidade do discurso literrio, depois
do surgimento do romance, no podia ser pensada fora do contexto da dialogia interna da
linguagem. A dialogia supera o smbolo potico do tropo e torna-se, conseqentemente, o
trao distintivo deste discurso a que Bakhtin chama prosa potica. Um discurso moldado
pelo arranjo de vozes atravs das quais ressoa a voz do poeta prosador. O discurso potico
assim concebido no mais emanao de um Eu lrico individual e soberano, que oculta
a vida plena de dialogia em que o poeta vive.
importante ressaltar que ao eleger o romance como um discurso potico privilegiado,
Bakhtin no depe contra a poesia (poema), nem a nega enquanto discurso, como pode parecer
primeira vista. O problema que Bakhtin opera com um aspecto no-previsto pela clssica teoria
dos gneros poticos. Tornar a dialogia da prosa como um trao distintivo do discurso potico
significa reverter totalmente as regras do gnero. Para Bakhtin, o poema que exclui a interao
entre discursos e em que o poeta no acede ao pensamento de outrem no poesia. Poesia
manifestao de uma conscincia potica que v, imagina e compreende o mundo, no com
os olhos de sua linguagem individual, mas com os olhos de outrem. Por isso, a linguagem dos
gneros poticos canonizados , para Bakhtin, autoritria, dogmtica, conservadora.
Tudo isso levou Bakhtin a considerar a poesia como um discurso monolgico, a temer
a linguagem nica da poesia e a condenar com veemncia o conceito de linguagem potica
defendido pelos poetas simbolistas (Balmont, Ivanov), pelos futuristas (V. Khlibnikov) e
se tornado a chave do formalismo russo. Devemos esclarecer, contudo, que pelo menos
no que se refere a Khlibnikov, o temor de Bakhtin no procede, visto que a poesia zam
assumiu a poeticidade articulada na (in)tensa vivncia da palavra no contexto dinmico da
lngua e num universo pluralista de linguagens. Embora este exerccio de linguagem tenha
escapado a Bakhtin, ele no deixou de perceber a riqueza dialgica do discurso potico de
Horcio, Villon, Heine, Laforgue, nienski e de Pchkin, de quem analisa alguns fragmentos
do notvel Evguinin Oniguin. Estas poucas pginas, que ocupam dois captulos do ensaio
sobre o discurso no romance (pp. 85-133), merecem uma leitura particular daqueles que
desejam entender o conceito de poesia que Bakhtin tinha em mente ao se propor estudar a
potica da prosa romanesca (...)
A romancizao, o metacriticismo e o drama da evoluo literria
Quando Bakhtin atribui ao romance a caracterstica de gnero em devir, seu objetivo
principal apresentar uma estrutura potica cujas possibilidades plsticas ainda no foram
39
Introduo aos
Estudos
Literrios
romance no um gnero entre outros, mas o nico que est evoluindo em meio a outros
gneros j consolidados (p. 398). Sua convivncia com estes gneros , contudo, conflituosa,
no h harmonia; pelo contrrio, o romance serve-se da pardia para denunciar os graus
de convencionalidade das composies estveis, reinterpret-las e at mesmo elimin-las.
O romance, enfim, pe em crise o prprio conceito de gnero como formao estvel e se
apresenta como antignero, um metagnero, em desacordo com normas e cnones; reconhece
a arbitrariedade e convencionalidade de todas as formas, inclusive de si prprio.
Este olhar corrosivo e ao mesmo tempo criativo, que o romance dirige aos outros gneros,
prefigura a performance do romance na Histria literria. O romance, quando surge, romanciza
os outros gneros. Romancizar no significa, contudo, subjugar para mais facilmente impor um
cnone estranho aos dominados, pois o prprio romance est privado deste cnone. Trata-se
de liber-los (os gneros subjugados) de tudo o que convencional, necrosado, empolado
e amorfo, impedindo sua evoluo (p. 427). O fenmeno da romancizao, apontado por
Bakhtin, no apenas uma implicao direta do carter pardico que reina na estrutura
interna do romance; sintoma das alteraes e, conseqentemente, da reordenao dos
fenmenos literrios dentro de um novo quadro num determinado momento do processo
evolutivo. Ou seja, quando o romance se estabelece como gnero predominante, toda a
literatura afetada por uma espcie de criticismo de gneros. Esta reviso de posies ante
um novo quadro que permite a reformulao dos constituintes dos gneros poticos.
(...) O romance tornou-se o principal personagem do drama da evoluo literria na
era moderna precisamente porque, melhor do que todos, ele que expressa as tendncias
evolutivas do novo mundo; ele , por isso, o nico gnero nascido naquele mundo e em tudo
semelhante a ele (p. 400). Na verdade, todas estas propriedades do romance estudadas
por Bakhtin ainda no tiveram, a meu ver, a devida acolhida nos estudos literrios, que no
contam com um instrumental terico para tratar de formaes inacabadas e em evoluo.
(...)Colocando o romance na perspectiva da pica, Bakhtin procura valorizar aqueles
aspectos que ficam fora de qualquer comparao. Por exemplo, enquanto a pica - a mais
sublime expresso dos gneros elevados - s se dignificou ao representar o passado pico
nico, distante e glorioso, o romance se alimenta do presente vulgar, instvel, transitrio.
isso que o situa na perspectiva direta dos gneros inferiores, as stiras populares, que
fizeram da instabilidade do presente e do sujeito que nele vive o objeto de sua representao.
O gnero srio-cmico torna-se, para Bakhtin, a primeira etapa da evoluo do romance
enquanto gnero em devir, em prejuzo, inclusive, da pica. nas representaes burlescas
que a atualidade entra pela primeira vez como objeto de representao literria. Quando o
presente se torna o centro da orientao humana no tempo e no mundo, estes perdem seu
carter acabado. O tempo e o mundo tornam-se histricos (p. 419). O tema do heri que
tudo vence perde, assim, terreno no romance, cujos temas gravitam em torno da inadequao
do homem ao seu destino; o personagem, ao invs de glorioso e invencvel, um idelogo em
potencial, como j foi referido anteriormente. E o que mais importante: a pica no suscita
nenhum questionamento, ao passo que o romance, travestido de Sherazade, especula sobre
categorias da ignorncia, mantendo aceso o interesse pelo que vem depois. As respostas
adiadas so perguntas em formao nem sempre resolvidas no final.
40
BIBLIOGRAFIA
Atividades
Complementares
Aps termos estudado a teoria dos gneros literrios neste bloco, escolha um gnero e tente
refletir sobre seu desdobramento na atualidade. Para efetivar essa reflexo, cite exemplos que
demonstrem, com as respectivas marcas textuais, a situao que voc pretende insinuar acerca
deste gnero, como um processo de desdobramento e/ou transfigurao. Voc pode, ao escolher
a lrica, traar um breve comentrio sobre como a lrica se configurava e como poderia ser visto,
hoje, um poema concretista como uma continuidade da lrica clssica na contemporaneidade.
41
Introduo aos
Estudos
Literrios
EM TEMPO:
OUTRAS QUESTES
LITERRIAS
QUEM NARRA AQUI
O NARRADOR
Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov
(Walter Benjamin)
1
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador no est de fato presente entre
ns, em sua atualidade viva. Ele algo de distante, e que se distancia ainda mais.
28 - BENJAMIN
BENJAMIN, Walter
Walter. O Narrador
Narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov
Leskov. In: Arte e Poltica
Poltica. Ensaios sobre literatura e
histria da cultura. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
29 - Op. Cit. p. 199.
42
Descrever um Leskov*30 como narrador no significa traz-Io mais perto de ns, e sim,
pelo contrrio, aumentar a distncia que nos separa dele. Vistos de uma certa distncia,
os traos grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor,
esses traos aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem
num rochedo, para um observador localizado numa distncia apropriada e num ngulo
favorvel. Uma experincia quase cotidiana nos impe a exigncia dessa distncia e
desse ngulo de observao. a experincia de que a arte de narrar est em vias de
extino. So cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando
se pede num grupo que algum narre alguma coisa, o embarao se generaliza. como
se estivssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienvel: a
faculdade de intercambiar experincias.
Uma das causas desse fenmeno bvia: as aes da experincia esto em
baixa, e tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. Basta
olharmos um jornal para percebermos que seu nvel est mais baixo que nunca, e que
da noite para o dia no somente a imagem do mundo exterior, mas tambm a do mundo
tico sofreram transformaes que antes no julgaramos possveis. Com a guerra
mundial tornou-se manifesto um processo que continua at hoje. No final da guerra,
observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha no mais ricos,
e sim mais pobres em experincia comunicvel. E o que se difundiu dez anos depois,
na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experincia
transmitida de boca em boca. No havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve
experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia estratgica pela
guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo
pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes. Uma gerao que ainda
fora escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem
em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo
de foras de torrentes e exploses, o frgil e minsculo corpo humano.
2
A experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a que recorreram todos os
narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores so as que menos se distinguem
das histrias orais contadas pelos inmeros narradores annimos. Entre estes, existem
dois grupos, que se interpenetram de mltiplas maneiras. A figura do narrador s se
torna plenamente tangvel se temos presentes esses dois grupos. Quem viaja tem
muito que contar, diz o povo, e com isso imagina o narrador como algum que vem
de longe. Mas tambm escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente
sua vida sem sair do seu pas e que conhece suas histrias e tradies. Se quisermos
concretizar esses dois grupos atravs dos seus representantes arcaicos, podemos
dizer que um exemplificado pelo campons sedentrio e outro pelo marinheiro
comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas
respectivas famlias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos
sculos, suas caractersticas prprias. Assim, entre os autores alemes modernos
Hebel e Gotthelf pertencem primeira famlia, e Sielsfield e Gerstcker segunda. No
entanto essas duas famlias, como j se disse constituem apenas tipos fundamentais.
30 - (*) Nikolai Leskov nasceu em 1831 na provncia de Orjol e morreu em 1895 em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias
pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi e por sua orientao religiosa com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros
de sua obra so exatamente aqueles em que tais tendncias assumem uma expresso dogmtica e doutrinria - os primeiros romances.
A significao de Leskov est em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve vrias tentativas
de difundir essas narrativas nos pases de lngua alem. Alm das pequenas coletneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg
Mller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleo em nove volumes da editora C. H. Beck.
43
Introduo aos
Estudos
Literrios
44
Trouxemos para voc a seleo das partes que julgamos ser as mais interessantes para
darmos continuidade nossa conversa sobre o narrador. Repare como Benjamin fala, no
incio do texto, de dois tipos de narradores: o marinheiro viajante e o campons sedentrio.
Todos abraam o esteretipo do narrador que o autor quer traar como sendo aquele que
repassa a histria, os ensinamentos, a experincia. Um narra sua experincia de viagem e
o outro narra sua experincia de observao. Os dois, em mar ou em terra, fazem o papel
do sbio, daquele que pode falar e dar conselhos porque viveu, porque pode recorrer ao
acervo de toda uma vida: a sua prpria e a do outro que ele tambm conhece muito bem. O
narrador, trazido cena por Walter Benjamin, prima por uma leveza baseada muito mais na
concepo prtica da vida do que na abstrao de uma moral pura e simples. Ele tem suas
razes no povo, principalmente nas camadas artesanais. E a narrativa construda a partir
dessa raiz, tira de dentro de si o substrato com o qual unificar um discurso cuja fabricao
conta com o tempo da memria.
45
A narrao na ps-modernidade
Introduo aos
Estudos
Literrios
O narrador ps-moderno
(Silviano Santiago)
Os contos de Edilberto Coutinho servem tanto para colocar de maneira exemplar
como para discutir exaustivamente uma das questes bsicas sobre o narrador na psmodernidade. Quem narra uma histria quem a experimenta, ou quem a v? Ou seja:
aquele que narra aes a partir da experincia que tem delas, ou aquele que narra aes
a partir de um conhecimento que passou a ter delas por t-Ias observado em outro?
No primeiro caso, o narrador transmite uma vivncia; no segundo caso, ele passa
uma informao sobre outra pessoa. Pode-se narrar uma ao de dentro dela, ou de
fora dela. insuficiente dizer que se trata de uma opo. Em termos concretos: narro a
experincia de jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experincias de
um jogador de futebol porque acostumei-me a observ-Io. No primeiro caso, a narrativa
expressa a experincia de uma ao; no outro, a experincia proporcionada por um
olhar lanado. Num caso, a ao a experincia que se tem dela, e isso que empresta
autenticidade matria que narrada e ao relato; no outro caso, discutvel falar de
autenticidade da experincia e do relato porque o que se transmite uma informao
obtida a partir da observao de um terceiro. O que est em questo a noo de
autenticidade. S autntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser
autntico o que eu narro e conheo por ter observado? Ser sempre o saber humano
decorrncia da experincia concreta de uma ao, ou o saber poder existir de uma forma
exterior a essa experincia concreta de uma ao? Um outro exemplo palpvel: digo
que autntica a narrativa de um incndio feita por uma das vtimas, pergunto se no
autntica a narrativa do mesmo incndio feita por algum que esteve ali a observ-Io.
Tento uma primeira hiptese de trabalho: o narrador ps-moderno aquele
que quer extrair a si da ao narrada, em atitude semelhante de um reprter ou
de um espectador. Ele narra a ao enquanto espetculo a que assiste (literalmente
ou no) da platia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na
biblioteca; ele no narra enquanto atuante.
Trabalhando com o narrador que olha para se informar (e no com o que narra
mergulhado na prpria experincia), a fico de Edilberto Coutinho d um passo a mais no
processo de rechao e distanciamento do narrador clssico, segundo a caracterizao modelar
que dele fez Walter Benjamin, ao tecer consideraes sobre a obra de Nicolai Leskov. o
movimento de rechao e de distanciamento que torna o narrador ps-moderno.
Para Benjamin os seres humanos esto se privando hoje da faculdade de
intercambiar experincia, isso porque as aes da experincia esto em baixa, e
tudo indica que continuaro caindo at que seu valor desaparea de todo. medida
que a sociedade se moderniza, torna-se mais e mais difcil o dilogo enquanto troca
de opinies sobre aes que foram vivenciadas. As pessoas j no conseguem hoje
narrar o que experimentaram na prpria pele.
Dessa forma, Benjamin pode caracterizar trs estgios evolutivos por que passa
46
a histria do narrador. Primeiro estgio: o narrador clssico, cuja funo dar ao seu
ouvinte a oportunidade de um intercmbio de experincia (nico valorizado no ensaio);
segundo: o narrador do romance, cuja funo passou a ser a de no mais poder falar
de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que jornalista, ou seja, aquele
que s transmite pelo narrar a informao, visto que escreve no para narrar a ao da
prpria experincia, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora. Benjamin
desvaloriza (o ps-moderno valoriza) o ltimo narrador. Para Benjamin, a narrativa
no deve estar interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma
informao ou um relatrio. A narrativa narrativa porque ela mergulha a coisa na
vida do narrador para depois retir-la dele. No meio, fica o narrador do romance, que
se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa
como Flaubert o fez de maneira paradigmtica: Madame Bovary, cest moi.
Retomemos: a coisa narrada mergulhada na vida do narrador e dali retirada;
a coisa narrada vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse t-Ia
extrado da sua vivncia; a coisa narrada existe como puro em si, ela informao,
exterior vida do narrador.
No raciocnio de Benjamin, o principal eixo em torno do qual gira o embelezamento
(e no a decadncia) da narrativa clssica hoje a perda gradual e constante da sua
dimenso utilitria. O narrador clssico tem senso prtico, pretende ensinar algo.
Quando o campons sedentrio ou o marinheiro comerciante narram, respectivamente,
tradies da comunidade ou viagens ao estrangeiro, eles esto sendo teis ao ouvinte.
Diz Benjamin: Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral,
seja numa sugesto prtica, seja num provrbio ou numa norma de vida - de qualquer
maneira, o narrador um homem que sabe dar conselhos. E arremata: O conselho
tecido na substncia viva da experincia tem um nome: sabedoria. A informao no
transmite essa sabedoria porque a ao narrada por ela no foi tecida na substncia
viva da existncia do narrador.
Tento uma segunda hiptese de trabalho: o narrador ps-moderno o que
transmite uma sabedoria que decorrncia da observao de uma vivncia alheia
a ele, visto que a ao que narra no foi tecida na substncia viva da sua existncia.
Nesse sentido, ele o puro ficcionista, pois tem de dar autenticidade a uma ao que,
por no ter o respaldo da vivncia, estaria desprovida de autenticidade. Esta advm da
verossimilhana, que produto da lgica interna do relato. O narrador ps-moderno
sabe que o real e o autntico so construes de linguagem.
A perda do carter utilitrio e a subtrao do bom conselho e da sabedoria,
caractersticas do estgio presente da narrativa, no so vistas por Benjamin como
sinais de um processo de decadncia por que passa a arte de narrar hoje, como
sugerimos atrs, o que o retira de imediato da categoria dos historiadores anacrnicos
ou catastrficos. Na escrita de Benjamin, a perda e as subtraes acima referidas so
apontadas para que se saliente, por contraste, a beleza da narrativa clssica a
sua perenidade. O jogo bsico no raciocnio de Benjamin a valorizao do pleno a
partir da constatao do que nele se esvai. E o incompleto - antes de ser inferior -
apenas menos belo e mais problemtico. As transformaes por que passa o narrador
so concomitantes com toda uma evoluo secular das foras produtivas. No se
trata, pois, de olhar para trs para repetir o ontem hoje (seramos talvez historiadores
mais felizes, porque nos restringiramos ao reino do belo). Trata-se antes de julgar
belo o que foi e ainda o no caso, o narrador clssico , e de dar conta do que
apareceu como problemtico ontem o narrador do romance , e que aparece ainda
mais problemtico hoje o narrador ps-moderno. Aviso aos benjaminianos: estamos
47
Introduo aos
Estudos
Literrios
Como correlato afirmao anterior, acrescentemos que, ao dar fala ao outro, acaba
tambm por dar fala a si, s que de maneira indireta. A fala prpria do narrador que se
quer reprter a fala por interposta pessoa. A oscilao entre reprter e romancista,
vivenciada sofridamente pelo personagem (Hemingway), a mesma experimentada,
s que em silncio, pelo narrador (brasileiro). Por que este no narra as coisas como
sendo suas, ou seja, a partir da sua prpria experincia?
Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de
Edilberto Coutinho, Azeitona e vinho. Em rpidas linhas, eis o que acontece: um velho
e experiente homem do povoado (que o narrador do conto), sentado numa bodega,
toma vinho e olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como EI Mudo), cercado de
amigos, admiradores e turistas ricos. Olhando e observando como um reprter diante
do objeto da sua matria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre
a vida do outro, ou seja, o que acontece, aconteceu e deveria acontecer com o jovem
e inexperiente toureiro, depositando nele as esperanas de todo o povoado.
Os personagens e temas so semelhantes aos do conto anterior, e o que importa
para ns: a prpria atitude do narrador semelhante, embora ele, no segundo conto,
j no tenha mais como profisso o jornalismo, algum do povoado. O narrador tinha
tudo para ser o narrador clssico: como velho e experiente, podia debruar-se sobre
as aes da sua vivncia e, em reminiscncia, misturar a sua histria com outras que
convivem com ela na tradio da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais
novo e se embriaga com vinho e a vida do outro. Permanece, pois, como vlida e como
vrtebra da fico de EC uma forma precisa de narrar, ainda que desta vez a forma
jornalstica no seja coincidente com a profisso do narrador (onde a autenticidade
como respaldo para a verossimilhana?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma
viso do mundo, como preferimos, uma caracterstica do conto de EC que transcende
at mesmo as regras mnimas de caracterizao do narrador.
A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes
afirma que o essencial da fico de EC no a discusso sobre o narrador enquanto
reprter (embora o possa ser neste ou naquele conto), mas o essencial algo de
mais difcil apreenso, ou seja, a prpria arte do narrar hoje. Por outro lado, paralela
a esta constatao, surge a pergunta j anunciada anteriormente e estrategicamente
abandonada: por que o narrador no narra sua experincia de vida? A histria de
Azeitona e vinho narra aes enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela
basicamente a experincia do olhar lanado ao outro.
Atando a constatao pergunta, vemos que o que est em jogo nos contos de
EC no tanto a trama global de cada conto (sempre de fcil compreenso), nem a
caracterizao e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o prottipo), mas algo
de mais profundo que o denso mistrio que cerca a figura do narrador ps-moderno.
O narrador se subtrai da ao narrada (h graus de intensidade na subtrao, como
veremos ao ler A lugar algum) e, ao faz-Io, cria um espao para a fico dramatizar a
48
experincia de algum que observado e muitas vezes desprovido de palavra. Subtraindose ao narrada pelo conto, o narrador identifica-se com um segundo observador - o
leitor. Ambos se encontram privados da exposio da prpria experincia na fico e so
observadores atentos da experincia alheia. Na pobreza da experincia de ambos se
revela a importncia do personagem na fico ps-moderna; narrador e leitor se definem
como espectadores de uma ao alheia que os empolga, emociona, seduz etc.
A maioria dos contos de Edilberto se recobrem e se enriquecem pelo enigma que cerca
a compreenso do olhar humano na civilizao moderna. Por que se olha? Para que se olha?
Razo e finalidade do olhar lanado ao outro no se do primeira vista, porque se trata
de um dilogo-em-literatura (isto , expresso por palavra) que, paradoxalmente, fica aqum
ou alm das palavras. A fico existe para falar da incomunicabilidade de experincias: a
experincia do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo
tecido de uma relao, relao esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras,
envolve a experincia muda do olhar e torna possvel a narrativa.
No conto Azeitona e vinho, insiste o narrador: Pablito no sabe que o estou observando,
naquele grupo. E ainda: No se lembrar de mim, mas talvez no tenha esquecido as coisas
de que lhe falei. Permanece a fixidez imperturbvel de um olhar que observa algum, aqum
ou alm das palavras, no presente da bodega (de uma mesa observa-se a outra), ou no
passado revivido pela lembrana (ainda o vejo, mas no passado).
No importante a retribuio do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo
narrador em que ele no cobra lucro, apenas participao, pois o lucro est no prprio
prazer que tem de olhar. Dou uma fora, diz o narrador. Senti firmeza, retruca o
personagem. Ambos mudos. No h mais o jogo do bom conselho entre experientes,
mas o da admirao do mais velho. A narrativa pode expressar uma sabedoria, mas
esta no advm do narrador: depreendida da ao daquele que observado e no
consegue mais narrar - o jovem. A sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido.
H uma desvalorizao da ao em si.
Eis nas suas linhas gerais a graa e o sortilgio da experincia do narrador que
olha. O perigo no conto de EC no so as mordaas, mas as vendas. Como se o
narrador exigisse: Deixem-me olhar para que voc, leitor, tambm possa ver.
O olhar tematizado pelo narrador de Azeitona e vinho um olhar de generosidade,
de simpatia, amoroso at, que recobre o jovem Pablito, sem que o jovem se d conta
da ddiva que lhe est sendo oferecida. Mas, ateno!, o mais experiente no tem
conselho a dar, e por isso que no pode visar lucro com o investimento do olhar. No
deve cobrar, por assim dizer. Eis a razo para a briga entre Hemingway (observador e
tambm homem da palavra) e o toureiro Domingun (observado e homem da ao):
Nessa poca, Domingun o chamava de Pai. Pap. Agora dizia que o velho andava
zureta. Pai pirado. Poucos dias depois pude mostrar a Clara uma entrevista em que
Domingun contava: Eu era seu hspede em Cuba. Vieram uns jornalistas casa dele,
para entrevistar-me. [...] Quando um jornalista quis saber se era verdade que eu procurava
os conselhos [o grifo nosso] do dono da casa, para melhorar a minha arte, compreendi
bem como pudera ter surgido o despropositado boato, s de ver o rosto dele. Pensei em
dar uma resposta diplomtica, mas mudei de idia e falei com toda a franqueza: No creio,
no ponto a que cheguei, precisar dos conselhos de ningum em questo de tourada.
(...) A vivncia do mais experiente de pouca valia. Primeira constatao: a ao
ps-moderna jovem, inexperiente, exclusiva e privada da palavra - por isso tudo
que no pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma ao que ao
mesmo tempo, incomodamente auto-suficiente. O jovem pode acertar errando ou errar
acertando. De nada vale o paternalismo responsvel no direcionamento da conduta. A
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Introduo aos
Estudos
Literrios
Para evit-Io, o mais experiente deve subtrair-se para fazer valer, fazer brilhar o menos
experiente. Por a experincia do mais experiente ser de menor valia nos tempos psmodernos que ele se subtrai. Por isso tudo tambm que se torna praticamente
impossvel hoje, numa narrativa, o cotejo de experincias adultas e maduras sob a
forma mtua de conselhos. Cotejo que seria semelhante ao encontrado na narrativa
clssica e que conduziria a uma sabedoria prtica de vida.
Em virtude da incomunicabilidade da experincia entre geraes diferentes, percebese como se tornou impossvel dar continuidade linear ao processo de aprimoramento do
homem e da sociedade. Por isso, aconselhar - ao contrrio do que pensava Benjaminno pode ser mais fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria que est
sendo narrada. A histria no mais vislumbrada como tecendo uma continuidade entre
a vivncia do mais experiente e a do menos, visto que o paternalismo excludo como
processo conectivo entre geraes. As narrativas hoje so, por definio, quebradas.
Sempre a recomear. Essa a lio que se depreende de todas as grandes rebelies
menos experientes que abalaram a dcada de 60, a comear pelo Free speech movement,
em Berkeley, e indo at os vnements de mai, em Paris.
(...)
O velho na bodega j tinha passado por tudo pelo que passa o jovem El Mudo,
mas o que conta o mesmo diferente pelo que o observador passa, que o observado
experimenta na sua juventude de agora. A ao na juventude de ontem do observador
e a ao na juventude de hoje do observado so a mesma. Mas o modo de encar-Ias
e afirm-Ias diferente. De que valem as glrias picas da narrativa de um velho diante
do ardor lrico da experincia do mais jovem? - eis o problema ps-moderno.
Aqui se impe uma distino importante entre o narrador ps-moderno e o seu
contemporneo (em termos de Brasil), o narrador memoralista, visto que o texto de
memrias tornou-se importantssimo com o retorno dos exilados polticos. Referimonos, claro, literatura inaugurada por Fernando Gabeira com o livro O que isso,
companheiro?, onde o processo de envolvimento do mais experiente pelo menos se
apresenta de forma oposta ao da narrativa ps-moderna. Na narrativa memorialista o
mais experiente adota uma postura vencedora.
Na narrativa memorialista, o narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto
personagem menos experiente, extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental
(no sentido que lhe empresta Flaubert em educao sentimental) a possibilidade de um
bom conselho em cima dos equvocos cometidos por ele mesmo quando jovem. Essa
narrativa trata de um processo de amadurecimento que se d de forma retilnea. J
o narrador da fico ps-moderna no quer enxergar a si ontem, mas quer observar o
seu ontem no hoje de um jovem. Ele delega a um outro, jovem hoje como ele foi jovem
ontem, a responsabilidade da ao que ele observa. A experincia ingnua e espontnea
de ontem do narrador continua a falar pela vivncia semelhante, mas diferente do jovem
que ele observa, e no atravs de um amadurecimento sbio de hoje.
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(...)
A literatura ps-moderna existe para falar da pobreza da experincia,
dissemos,
mas tambm da pobreza da palavra escrita enquanto processo de comunicao.
Trata, portanto, de um dilogo de surdos e mudos, j que o que realmente vale na
relao a dois estabelecida pelo olhar uma corrente de energia, vital (grifemos:
vital), silenciosa, prazerosa e secreta.
(...)
De maneira sutil, Benjamin toma paralelo o embelezamento da narrativa clssica
com outro embelezamento: o do homem no leito de morte. O mesmo movimento
que descreve o desaparecimento gradual da narrativa clssica serve tambm para
descrever a excluso da morte do mundo dos vivos hoje. A partir do sculo XIX, informanos Benjamin, evita-se o espetculo da morte. A exemplaridade que d autoridade
narrativa clssica, traduzida pela sabedoria do conselho, encontra a sua imagem
ideal no espetculo da morte humana. Ora, no momento da morte que o saber e a
sabedoria do homem e sobretudo sua existncia vivida e dessa substncia que
so feitas as histrias assumem pela primeira vez uma forma transmissvel. A morte
projeta um halo de autoridade a autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao
morrer que est na origem da narrativa clssica.
Morte e narrativa clssica cruzam caminho, abrindo espao para uma concepo
do devir humano em que a experincia da vida vivida fechada em sua totalidade,
e por isso que exemplar. nova gerao, aos ainda vivos, o exemplo global e
imvel da velha gerao. Ao jovem, o modelo e a possibilidade da cpia morta. Um
furioso iconoclasta oporia ao espetculo da morte um grito lancinante da vida vivida no
momento de viver. A exemplaridade do que incompleto. O toureiro na arena sendo
atingido pelo touro.
H no tenhamos dvida espetculo e espetculo, continua o jovem iconoclasta.
H um olhar camuflado na escrita sobre o narrador de Benjamin que merece ser revelado e
que se assemelha ao olhar que estamos descrevendo, s que os movimentos dos olhares
so inversos. O olhar no raciocnio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o
sofrimento, a lgrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrtico.
O olhar ps-moderno (em nada camuflado, apenas enigmtico) olha nos olhos
o sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas
as variantes do hedonismo dionisaco. O espetculo da vida hoje se contrape ao
espetculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma
experincia impossvel de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no
agora em mil possibilidades. Todos os caminhos o caminho. O corpo que olha prazeroso
(j dissemos), olha prazeroso um outro corpo prazeroso (acrescentemos) em ao.
Viver perigoso, j disse Guimares Rosa. H espetculo e espetculo, disse o
iconoclasta. No leito de morte, exuma-se tambm o perigo de viver. At mesmo o perigo
de morrer, porque ele j . Reina nica a imobilidade tranqila do homem no leito de
morte, reino das belles images, para retomar a expresso de Simone de Beauvoir diante
das gravuras fnebres dos livros de histria. Ao contrrio, no campo da vida exposta no
momento de viver o que conta para o olhar o movimento. Movimento de corpos que
se deslocam com sensualidade e imaginao, inventando aes silenciosas dentro do
precrio. Inventando o agora.
(...)
O olhar humano ps-moderno desejo e palavra que caminham pela imobilidade,
vontade que admira e se retrai intil, atrao por um corpo que, no entanto, se sente alheio
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Introduo aos
Estudos
Literrios
o lugar que foi o seu. Azeitona e vinho. essa ltima condio de prazer vicrio, ao
mesmo tempo pessoal e passvel de generalizao, que alimenta a vida cotidiana atual
e que EC dramatiza atravs do narrador que olha. Ao dramatiz-lo na forma em que
o faz, revela o que nele pode ser experincia autntica: a passividade prazerosa e o
imobilismo crtico. So essas as posturas fundamentais do homem contemporneo,
ainda e sempre mero espectador ou de aes vividas ou de aes ensaiadas e
representadas. Pelo olhar, homem atual e narrador oscilam entre o prazer e a crtica,
guardando sempre a postura de quem, mesmo tendo se subtrado ao, pensa e
sente, emociona-se com o que nele resta de corpo e/ou cabea.
O espetculo torna a ao representao. Dessa forma, ele retira do campo
semntico de ao o que existe de experincia, de vivncia, para emprestar-lhe
o significado exclusivo de imagem, concedendo a essa ao liberta da experincia
condio exemplar de um agora tonificante, embora desprovido de palavra. Luz, calor,
movimento transmisso em massa. A experincia do ver. Do observar. Se falta ao
representada o respaldo da experincia, esta, por sua vez, passa a ser vinculada ao
olhar. A experincia do olhar. O narrador que olha a contradio e a redeno da
palavra na poca da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra,
constituindo uma narrativa.
O espetculo torna a ao representao. Representao nas suas variantes
ldicas, como futebol, teatro, dana, msica popular, etc.; e tambm nas suas variantes
tcnicas, como cinema, televiso, palavra impressa etc. os personagens observados, at
ento chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representao
humana, exprimindo-se atravs de aes ensaiadas, produto de uma arte, a arte de
representar. Para falar das vrias facetas dessa arte que o narrador ps-moderno ele
mesmo detendo a arte da palavra escrita existe. Ele narra aes ensaiadas que existem
no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes permitido existir.
O narrador tpico de EC, pelas razes que vimos expondo, vai encontrar na
sociedade do espetculo (para usar o conceito de Guy Debord) campo frtil para as suas
investidas crticas. Por ela investido e contra ela se investe. No conto A lugar algum,
transcrio ipsis litteris do script de um programa de televiso, em que entrevistado um
jovem marginal, a realidade concreta do narrador grau zero. Subtraiu-se totalmente.
O narrador todos e qualquer um diante de um aparelho de televiso. Essa tambm
repitamos a condio do leitor, pois qualquer texto para todos e qualquer um.
Em A lugar algum, o narrador apenas aquele que reproduz. As coisas se
passam como se o narrador estivesse apertando o boto do canal de televiso para
o leitor. Eu estou olhando, olhe voc tambm para este programa, e no outro. Vale a
pena. Vale a pena porque assistimos aos ltimos resqucios de uma imagem que ainda
no ensaiada, onde a ao (o crime) respaldada pela experincia. A experincia
de um jovem marginal na sociedade do espetculo.
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Quem o autor?
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Introduo aos
Estudos
Literrios
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prontos, pois destinam-se ao olhar, conscincia e recriao dos leitores. Cada texto
constitui uma proposta de significao que no est inteiramente construda. A significao
se d no jogo de olhares entre o texto e seu destinatrio. Este ltimo um interlocutor
ativo no processo de significao, na medida em que participa do jogo intertextual tanto
quanto o autor. A intertextualidade se d tanto na produo como na recepo da grande
rede cultural de que todos participam. Filmes que retomam filmes, quadros que dialogam
com outros, propagandas que se utilizam do discurso artstico, poemas escritos com versos
alheios, romances que se apropriam de formas musicais, tudo isso so textos em dilogo
com outros textos: intertextualidade.
importante marcar a primazia de Bakhtin em relao a esses estudos, divulgados por Julia
Kristeva. dela o clssico conceito de intertextualidade: (...) todo texto se constri como mosaico de
citaes, todo texto absoro e transformao de um outro texto. (KRISTEVA, 1974, p. 64).
Por isso mesmo, Antoine Compagnon chama a ateno para o fato de que escrever,
pois, sempre reescrever, no difere de citar. A citao, graas confuso metonmica a
que preside, leitura e escrita, une o ato de leitura ao de escrita. Ler ou escrever realizar
um ato de citao. (COMPAGNON, 1996, p.31)
A intertextualidade, inerente linguagem, torna-se explcita em todas as produes
literrias que se valem do recurso da apropriao, colocando em xeque a prpria noo de
autoria. Referncias, aluses, epgrafes, parfrases, pardias ou pastiches so algumas
das formas de intertextualidade, de que lanam mo os escritores em seu dilogo com a
tradio. Drummond retoma Gonalves Dias. Adlia Prado retoma Drummond. Bandeira
retoma outros poemas de sua prpria autoria, Clarice idem. Um mesmo escritor pode
reler-se, utilizando-se de textos que ele mesmo escreveu, o que resulta numa espcie de
intratextualidade. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, retoma seu conhecido texto
No meio do caminho, para escrever Considerao do poema:
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, no importa.
Estes poetas so meus. De todo o orgulho,
de toda a preciso se incorporaram
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais lmpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me d sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakvski.
(ANDRADE, 1978, p. 75)
Embaralhando mais as fronteiras discursivas, a obra de Jorge Luiz Borges exemplo
de um discurso hbrido que associa o ficcional e o terico, evidenciando o papel da leitura na
composio dos textos. Tomemos como exemplo o conto Pierre Menard, autor do Quixote,
em que se prope o nvel mximo da apropriao: escrever, linha por linha, a obra alheia e,
mesmo assim, criar uma obra nova:
No queria compor outro Quixote o que fcil mas o Quixote. Intil
acrescer que nunca visionou qualquer transcrio mecnica do original; no se
propunha copi-lo. Sua admirvel ambio era produzir pginas que coincidissem
palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes.
(BORGES, 1995, p. 57)
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Introduo aos
Estudos
Literrios
Atividades
Complementares
Feita a leitura dos dois textos, o de Benjamin e o de Silviano, procure tecer reflexes
sobre o narrador benjaminiano e o narrador ps-moderno. Em que ponto eles se encontram
e em que se diferem?
Faa uma busca sobre o tema da intertextualidade na internet sobre o poema de
Gonalves Dias, Cano do Exlio. Voc ir descobrir intertextualidades inspiradoras.
Aproveite para tambm dar continuidade ao dilogo iniciado por tantos escritores...
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OS ESTUDOS CULTURAIS
Introduo aos Estudos Culturais
Repare como a coisa vem caminhando: ns vimos primeiro as noes que se pode ter
sobre a literatura, os primeiros pensadores a se jogarem na tarefa de estudo e reflexo do
literrio, os efeitos literrios, a questo dos gneros, algo sobre o narrador moderno, psmoderno, o autor, a intertextualidade que envolve qualquer obra e em cada movimento de
estudo e de dilogo fomos apontando teorias e formas de encarar a Teoria Literria.
Agora, te lanamos na arena dos Estudos Culturais, apenas mais uma vertente terica,
mas com o propsito de agregar antes de excluir qualquer experincia cultural. Isso no
significa dizer que o que se tem aqui seja um vale-tudo, mas uma proposta para se pensar a
literatura fora do espao reservado da prpria literatura. O lugar sacralizado e cannico cede
espao para outras possibilidades culturais que renovam o olhar e o passeio do literrio. A
seguir, trechos de um texto para nos apresentar melhor esse tal Estudos Culturais.
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Introduo aos
Estudos
Literrios
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brasileira: o antroplogo Darcy Ribeiro, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Glauber Rocha
e o crtico de arte Mrio Pedrosa. O longo e doloroso debate termina com intervenes
abruptas de Glauber. Devido s divergncias de opinio, conclui que o debate no pode
ser publicado. Segundo a transcrio, todo mundo [na sala do apartamento] protesta,
grita, reclama da posio de Glauber. Glauber continua a silenciar a fala dos demais.
Acrescenta: Eu, por exemplo, comecei a discordar do Darcy [Ribeiro] a partir de certo
momento, mas eu no discordarei publicamente [grifo nosso] do Darcy... A moderadora
do debate no percebe a dimenso da rachadura aberta pela discordncia no privado que
no podia se tornar pblica e reage com o cola-tudo das boas intenes: o problema
que voc [Glauber] est querendo impor um pensamento, quer ganhar uma discusso e
no isso que importa aqui. Glauber termina a conversa amistosa com duas declaraes
contundentes. A primeira a de que no h condies no Brasil de se fazer um debate
amplo e aberto e a segunda, esse debate j era.
Nos anos seguintes, o debate amplo e aberto no apareceria nos relatos de vida
dos ex-combatentes, no se daria pela linguagem conceptual da histria e da sociologia,
no seria obra de polticos bem ou mal intencionados. Esse debate amplo e aberto se
passaria no campo da arte, considerando-se esta no mais como manifestao exclusiva
das belles lettres, mas como fenmeno multicultural que estava servindo para criar novas
e plurais identidades sociais. Caiam por terra tanto a imagem falsa de um Brasil-nao
integrado, imposta pelos militares atravs do controle da mdia eletrnica, quanto a
coeso fraterna das esquerdas, conquistada nas trincheiras. A arte abandonava o palco
privilegiado do livro para se dar no cotidiano da Vida. Esse novo esprito estaria embutido
na plataforma poltica do Partido dos Trabalhadores, PT, idealizado em 1978.
Voltando ao artigo de Heloisa Buarque, percebe-se que ela, ao ler o livro Retrato
de poca (um estudo sobre a poesia marginal da dcada de 70), detecta um certo
mal-estar dos intelectuais em relao sua prtica acadmica cuja sada estava sendo
desenhada pela proliferao de estudos recentes (reunindo-se a uma expressiva faixa
da reflexo universitria jovem) no registro da perspectiva antropolgica. Os setores
emergentes da produo intelectual, acrescenta ela, explicita[va]m certas restries ao
que chamam os aspectos ortodoxos da sociologia clssica e da sociologia marxista.
Segundo Helosa, a chave da operao metodolgica apresentada no livro est no
modo como o antroplogo Carlos Alberto d o mesmo tratamento hermenutico tanto
ao material oriundo das entrevistas concedidas pelos jovens poetas marginais, quanto
ao poema de um deles. O texto do poema passa a funcionar como um depoimento
informativo e a pesquisa de campo analisada como texto. O paladar metodolgico
dos jovens antroplogos no distingue a plebia entrevista do prncipe poema.
Essa grosseira inverso no tratamento metodolgico de textos to dspares -aparentemente inocente porque conseqncia da falta de boas maneiras dum jovem
antroplogo -- desestabilizaria de maneira definitiva a concepo de Literatura, tal
como era configurada pelos tericos dominantes no cenrio das Faculdades de Letras
nacionais e estrangeiras. Conclui Helosa: Carlos Alberto parece colocar em suspenso
a literatura como discurso especfico.
Esvaziar o discurso potico da sua especificidade, liber-lo do seu componente elevado
e atemporal, desprezando os jogos clssicos da ambigidade que o diferenciava dos outros
discursos, enfim, equipar-lo qualitativamente ao dilogo provocativo sobre o cotidiano,
com o fim duma entrevista passageira, tudo isso corresponde ao gesto metodolgico de
apreender o poema no que ele apresenta de mais efmero. Ou seja, na sua transitividade,
na sua comunicabilidade com o prximo que o deseja para torn-lo seu. (...)
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Introduo aos
Estudos
Literrios
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encaminha para a negociao pelas trocas culturais entre negros, brancos e ndios, com
vistas a um Brasil que seria representado no mais como unidade, mas miscigenado,
multicultural, porque no h como negar a dinmica dos contatos culturais, das trocas,
etc. Nesse sentido, uma das grandes questes colocadas por Patrulhas Ideolgicas a
da democratizao do Brasil aps um longo perodo de autoritarismo militar --acaba por
ter uma resposta desconcertante para a esquerda, tambm autoritria, mas naquele
momento em plena crise de autocrtica: Veja, por exemplo, a noo de Democracia. Se
voc chegar num Candombl, onde voc, pra falar com a Me de Santo, tem de botar
o joelho no cho e beijar a mo dela e pedir licena, voc vai falar em Democracia!?
Dana tudo. Os grupos tnicos excludos do processo civilizatrio ocidental passam a
exigir alteraes significativas no que dado como representativo da tradio erudita
brasileira ou no que dado como a mais alta conquista da humanidade, a democracia
representativa. Exigem autonomia cultural. (...)
As atitudes extemporneas expressas no citado depoimento de Llia Gonzales
abrem o leque das expectativas universitrias para outros campos e objetos de estudo
durante os trs anos (1979 a 1981) a que estamos nos referindo. As Faculdades de
Letras -- formadoras de literatos natos, segundo a expresso brejeira de Heloisa, e
dedicadas tradicionalmente ao estudo da cultura duma minoria, no caso a letrada, que
se manifesta e dialoga pelo livro, -- so despertadas para a cultura da maioria.
So despertadas pela avassaladora presena da msica comercial-popular no
cotidiano brasileiro. Por estar informada e formada pelo Estruturalismo francs e pelos
tericos da Escola de Frankfurt, o despertar da minoria letrada no foi pacfico.
surpreendente, por exemplo, que a primeira crtica severa grande diviso (the Great
Divide, segundo a expresso j clssica de Andreas Huyssen) entre o erudito e o
popular com o conseqente rebaixamento deste, tenha partido de um jovem intelectual
com formao na Universidade de So Paulo, o professor de Letras e msico Jos
Miguel Wisnik. Mais surpreendente, ainda, que dele tenha partido a primeira leitura
simptica e favorvel do cantor Roberto Carlos, ainda que, para tal tarefa, o crtico tenha
de se travestir pela fala da sua mulher, caindo literalmente numa gender trap.
Estamos nos referindo ao artigo O minuto e o milnio ou Por favor, professor,
uma dcada de cada vez, captulo do livro Anos 70 - 1. Msica popular . A m vontade
para com a msica popular em Adorno grande, comea por afirmar Jos Miguel.
Em seguida, constata que ela conseqncia de dois fatores que acabam por nos
diferenciar dos europeus, optando o crtico brasileiro pela desconstruo do pensamento
adorniano. Em primeiro lugar, diz Jos Miguel, para Adorno, o uso musical a escuta
estrutural estrita e consciente de uma pea, a percepo da progresso das formas
atravs da histria da arte e atravs da construo duma determinada obra. Em
segundo lugar, observa, ainda, o equilbrio entre a msica erudita e a popular, num
pas como a Alemanha, faz a balana cair espetacularmente para o lado da tradio
erudita, porque a msica popular raramente penetrada pelos setores mais criadores
da cultura, vivendo numa espcie de marasmo kitsch e digestivo [...].
Jos Miguel contrape ao soturno quadro erudito europeu um cintilante cenrio
brasileiro, marcado por uma potica carnavalizante, onde entram [...] elementos de
lirismo, de crtica e de humor: a tradio do carnaval, a festa, o non-sense, a malandragem,
a embriaguez da dana, e a sbita consagrao do momento fugidio que brota das
histrias do desejo que todas as canes no chegam pra contar. Nesse sentido e entre
ns, h que primeiro constatar -- levando-se em considerao o pressuposto bsico
levantado por Antonio Candido para configurar a formao da literatura brasileira -que a msica erudita nunca chegou a formar um sistema onde autores, obras e pblico
63
Introduo aos
Estudos
Literrios
popular e adveio do uso ritual, mgico, o uso interessado da festa popular, o cantode-trabalho, em suma, a msica como um instrumento ambiental articulado com outras
prticas sociais, a religio, o trabalho e a festa. (...)
Atravs da interveno dum professor de Letras que a crtica cultural brasileira
comea a ser despertada para a complexidade espantosa do fenmeno da msica
popular. O seu modo de produo se d num meio em que as foras mais contraditrias
e chocantes da nossa realidade social se encontram sem se repudiarem mutuamente. Em
lugar de separar e isolar vivncias e experincias, em lugar de introjetar o rebaixamento
cultural que lhe imposto para se afirmar pelo ressentimento dos excludos, a msica
popular passa a ser o espao nobre, onde se articulam, so avaliadas e interpretadas
as contradies scio-econmicas e culturais do pas, dando-nos, portanto o seu mais fiel
retrato. No trnsito entre as foras opostas e contraditrias, Jos Miguel aposta em trs
oposies que, por no o serem, acabam por integrar os elementos dspares da realidade
brasileira no caldeiro social em que se cozinha a msica popular-comercial: embora
mantenha um cordo de ligao com a cultura popular no-letrada, desprende-se dela
para entrar no mercado e na cidade; b) embora deixe-se penetrar pela poesia culta, no
segue a lgica evolutiva da cultura literria, nem filia-se a seus padres de filtragem; c)
embora se reproduza dentro do contexto da indstria cultural, no se reduz s regras
da estandardizao. Em suma, no funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos
sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles.
A msica popular no Brasil uma espcie de hbito, uma espcie de habitat, algo
que completa o lugar de morar, o lugar de trabalhar, e por isso que, no tocante s
dcada de 60 e 70, h que pensar o oculto mais bvio: tanto o estrondoso sucesso
comercial de Roberto Carlos, quanto a simpatia despertada pela sua fora estranha
em figuras do porte de Caetano Veloso. O crtico pergunta: que tipo de fora o sustm
no ar por tanto tempo? Por que ele? O crtico se sente incapaz de pensar o paradoxo
do oculto mais bvio. Ser que isso tarefa para mim?, deve ter perguntado a si antes
de dar continuidade ao artigo. Jos Miguel cai na armadilha do gnero (gender trap),
incapaz de responder questo que formulada pelo encadeamento orgnico do
seu raciocnio analtico. Eis que pede ajuda sua mulher [sic] para que responda e
escreva sobre Roberto Carlos. A profundidade da escuta de Roberto Carlos s pode
ser captada por ouvidos femininos. Vale a pena transcrever o transcrito, deixando o
leitor jogar algum alpiste interpretativo no interior da armadilha para que se evidenciem
ainda mais as trapaas que o falocentrismo pode pregar:
Ela disse: voz poderosa, suave, louca, ele [Roberto Carlos] realiza melhor do
que ningum o desejo de um canto espontneo, arranca matria viva de si e entra
em detalhes, coisas mal acabadas, clulas emocionais primitivas, momentos quase
secretos de todo mundo (como as frases decoradas que a gente prepara para lanar
ao outro na hora de partir e que no chega a dizer nem a confessar), uma qualidade
romntica, ingnua e vigorosa, que unifica a sem-gracice, o pattico, a doura, o lirismo
64
que h em todos, e fica forte, quase indestrutvel, pois soma anseios, iluses, ideais
que tambm pairam por a, mais alm, estranho realidade cotidiana de muitos.
Dando continuidade leitura reabilitada do melhor da msica popular-comercial
brasileira, o crtico diz que poderia complementar o seu trabalho, ratificando a liderana
que veio sendo concedida por justo mrito a Caetano Veloso. O intrprete torna-se, ao
mesmo tempo, lugar de ver a produo dos contemporneos e lugar onde ela pode ser
vista e analisada. Caetano irnico por cair na armadilha de gnero que ele prprio
estabelece no processo de produo das suas canes; Caetano romntico pela
recusa em cair na armadilha de gnero, j que se transforma em ouvinte e intrprete
de Roberto Carlos. Para falar um pouco mais de Caetano a partir de Roberto Carlos
preciso assumir a fala rebaixada da mulher.
Trs canes escreveu Caetano para Roberto Carlos: Como 2 e 2, Muito romntico
e Fora estranha. Canes, segundo Jos Miguel, que refletem sobre o ato de cantar e
em que, como no caso de Flaubert e Madame Bovary mencionados por Huyssen, todos
os recursos de despersonalizao e de identificao, de alteridade, so utilizados pelo
compositor/intrprete: minha voz me difere e me identifica; noutras palavras, sou ningum
que sou eu que um outro. Caetano injetou reflexo critica ao romantismo rebaixado/
enaltecido de Roberto Carlos. Pela ironia (como escapar dela nesse jogo de espelhos?),
ele acentuou a tenso entre o sentimento romntico e a mediao da mercadoria. (...)
Talvez seja correto afirmar que a memria histrica no Brasil uma planta tropical,
pouco resistente e muito sensvel s mudanas no panorama scio-econmico e poltico
internacional. Uma planta menos resistente e mais sensvel do que, por exemplo, as
nascidas na Argentina, terra natal de Funes, o memorioso. A passagem do luto para a
democratizao, alicerada pela desmemria dos radicais da atualidade, foi dada por
passadas largas que uns, e muitos julgam at hoje, precipitadas e prematuras. Para eles,
a anistia no Brasil, concedida a todos e qualquer um por decreto-lei, no deixou que o pas
acertasse contas com o seu passado recente e negro. Desde ento, sem planos para o
futuro, estamos mancando da perna esquerda, porque o passado ainda no foi devidamente
exorcizado. Nesse sentido, e dentro do pessimismo inerente velha gerao marxista, a
aposta na democratizao, feita pelos artistas e universitrios entre os anos de 1979 e 1981,
abriu o sinal verde para o surgimento nas esquerdas de uma cultura adversria. (...)
inegvel que os resultados obtidos pelas passadas largas, precipitadas e
prematuras, dadas principalmente pelos jovens artistas e universitrios, redundaram
em questionamentos fundamentais da estrutura social, poltica e econmica brasileira.
Ao encorajar o ex-guerrilheiro a se transformar de um dia para o outro num cidado,
os desmemoriados ajudavam a desmontar no cotidiano das ruas o regime de exceo,
chegando a ser indispensveis na articulao das presses populares pelas diretas
j. Ao redimensionarem o passado recente, tambm redirecionaram o gesto punitivo
para a formao cultural do Brasil, estabelecendo estratgias de busca e afirmao
de identidade para a maioria da populao, que vinha sendo marginalizada desde a
Colnia. Ao questionarem o intelectual pelo vis da sua formao pelas esquerdas
dos anos 50, induziram-no autocrtica e tornaram possvel a transio da postura
carismtica e herica dos salvadores da ptria para o trabalho silencioso e dedicado
de mediador junto s classes populares. Ao acatarem a televiso e a msica popular,
com suas regras discutveis e eficientes de popularizao dos ideais democrticos,
conseguiram motivar os desmotivados estudantes, tambm desmemoriados, a irem
para as ruas e lutar a favor do impeachment do presidente Collor.
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67
Introduo aos
Estudos
Literrios
lhe dizer um Gil mais lcido.). Assim sendo, o poema s pode ser para ela literatura pura:
me l toda como literatura pura, diz o poema.
Por isso que Mary no entende as referncias diretas. So estas que rompem
o processo de mitificao do literrio pelo literrio, rompem o crculo vicioso, corroendo-o,
instaurando a possibilidade, na leitura, de uma comunho [...].
(SANTIAGO, 2002, p. 69, 71)
Salientamos que a leitura no deve ser considerada, no entanto, um jogo de vale-tudo.
A interpretao tem um carter subjetivo, mas devemos, enquanto professores de literatura,
identificar desvios muito acentuados do sentido do texto lido. Pois sabemos que um texto
tem diversas significaes, afinal, se assim no fosse, uma narrativa escrita no sculo XVIII
no teria interlocutores em outras pocas e, atravs deles, no poderiam ser atualizadas.
O que enfatizamos, entretanto, so as limitaes que o estabelecimento de um nico modo
de leitura ou uma nica forma de interpretao pode causar no leitor.
Um outro crtico latino-americano, o argentino Ricardo Piglia falou, em entrevista
com Mnica Lpez Ocn, sobre o carter subjetivo da leitura e o deslocamento da noo
de inteno ou mesmo leitura melhor. Ao ser perguntado sobre as leituras feitas sobre ele
e seus livros e as possveis lacunas nessas interpretaes, o escritor responde:
Como eu gostaria que meus livros fossem lidos? Tal qual eles so lidos. Nada mais
que isso. Por que o escritor teria que intervir para afirmar ou retificar o que se diz sobre sua
obra? Cada um pode ler o que quiser num texto. H bastante represso na sociedade. Claro
que existem esteretipos, leituras cristalizadas que passam de um crtico a outro: poderamos
pensar que essa a leitura de uma poca. Um escritor no tem nada a dizer sobre isso.
Depois que algum escreveu um livro, o que mais pode dizer sobre ele? Na realidade, tudo
o que pode dizer o que escreve no prximo livro. (PIGLIA, 1994, p. 67)
Ao tratarem sobre o lugar do leitor na produo de sentidos e a necessidade de dar a
voz ao outro, os escritores latino-americanos enfocados parecem sinalizar para a importncia
de ampliar o espao de discusso para outras vozes. Incluem-se, entre essas, a de autores que
sempre estiveram fora do retrato e crticos que, leitores de tericos de outras naes, demandam
seus espaos na cena crtica cultural contempornea, como intrpretes locais e globais.
O Cnone
Durante todo este tempo, alguns nomes foram lanados neste material sem que se
questionasse o porqu deles estarem aqui em detrimento de tantos outros. A resposta
simples: eles compem o acervo de escritores ou obras ns escolhemos (s vezes at
inconscientemente) devido ao fato deles fazerem parte do nosso repertrio de estudo, de
vida. claro que cada um tem um repertrio variado, por isso a variedade de vozes que
aparecem durante a nossa escrita que cita outros textos de outros autores que, por sua vez,
citam tantos outros autores. Ao longo da vida, nos deparamos com obras que so tidas como
sendo obras clssicas. Mas, o que seria um clssico? De onde vem essa palavra?
68
O termo clssico surgiu derivado do adjetivo latino classicus, que indicava o cidado
pertencente s classes mais elevadas de Roma. No sculo II d.C. um certo Aulo Gelio
(Noctes Atticae) utilizou-o para designar o escritor que por suas qualidades literrias poderia
ser considerado modelar em seu ofcio: Classicus scriptor, non proletarius. Durante o
Renascimento, o termo clssico reapareceria, seja em textos latinos, seja nas lnguas
vernculas, referindo-se tanto a autores greco-latinos quanto a autores modernos da prpria
poca, considerados modelos de linguagem literria na lngua verncula. No sculo XVIII - o
termo se estenderia aos autores que aceitavam os cnones da retrica greco-latina: ordem clareza - medida - equilbrio - decoro - harmonia e bom gosto. Tornou-se, pois, a base de uma
esttica essencialmente normativa. Assim, clssico, indicando modelo exemplar, cristalizouse como tradio, como cnone gramatical e semntico, como relicrio do idioma e como
um conjunto de regras imutveis, isto , universais e atemporais. No plano da mensagem,
o que valia para caracterizar um clssico era a sua dimenso edificante, seus componentes
morais e a sua capacidade de apresentar as paixes humanas de forma decorosa.
No sculo XIX, a grande rebelio romntica comeou a destruir a rigidez conservadora
que envolvia a idia de uma obra clssica. Victor Hugo mandou as regras s favas, abrindo
um caminho mais liberto para a criao literria. Contudo, foram as vanguardas das primeiras
dcadas do sculo XX - especialmente Futurismo e Dadaismo - que levaram a ruptura com
o classicismo s ultimas conseqncias, propondo, a exemplo de Marinetti, a destruio de
bibliotecas, museus e tudo aquilo que representasse o peso vetusto da tradio.
Passado o furor das vanguardas, o que ficou? No plano do senso comum, clssico,
hoje, indica uma obra artstica superior, definitiva e que, por seus vrios elementos estticoideolgicos, aproxima-se daquilo que (de forma mais ou menos nebulosa) chamaramos de
perfeio. Porm esta obra no tem mais o sentido normativo que possua no passado
j que sua beleza lhe irredutivelmente prpria. Verdade que, nas escolas, a reverncia
exagerada aos clssicos - sobretudo aos da Antigidade - veio at a dcada de 1960, a ponto
de muitos de ns, professores, termos sido torturados, nas aulas de lngua portuguesa, com
a anlise sinttica de Os Lusadas. As sucessivas mudanas culturais, ocorridas no Ocidente,
especialmente a partir dos anos de 1960, quebraram toda e qualquer idia de obra modelar
e instauraram um conceito mais amplo e flexvel do que seria um clssico.
Esquematicamente poderamos apontar alguns traos definidores do que hoje se
considera um texto clssico:
1. So obras que ultrapassam o seu tempo, persistindo de alguma maneira na memria
coletiva e sendo atualizada por sucessivas leituras, no transcurso da histria.
2. Apresentam paixes humanas de maneira intensa, original e mltipla. So paixes
universais (ou pelo menos ocidentais) e tm um grau de maior ou menor flexibilidade em
relao historicidade concreta.
3. So obras que registram e simultaneamente inventam a complexidade de seu
tempo. De maneira explcita ou implcita desvelam a historicidade concreta, as idias e os
sentimentos de uma poca determinada. H uma tendncia geral: quanto mais explcita for
a revelao histrica, menor o resultado esttico. Na verdade, o esprito da poca deve estar
introjetado na experincia dos indivduos.
4. So obras que criam formas de expresso inusitadas, originais e de grande
repercusso na prpria histria literria. H clssicos que interessam em especial (ou talvez
unicamente) ao mundo literrio, como, por exemplo, o Ulisses, de Joyce.
5. So obras de reconhecido valor histrico ou documental, mesmo no alcanando
a universalidade inconteste. Nesta linha situam-se aquelas obras que so clssicas
apenas na dimenso da histria literria de um pas, como, por exemplo, a obra de Jos
de Alencar, ou apenas de uma regio, como por exemplo as obras de Cyro Martins ou
Aureliano de Figueiredo Pinto.
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70
O escritor deixa seu leitor livre para se posicionar, falar, escolher, decidir o que far
parte da estante designada aos seus clssicos. uma postura extremamente aberta e
conciliadora: no impe hegemonicamente seu ponto de vista, ao perceber a quantidade
de obras em contato com o leitor.
E Calvino fecha seu texto dizendo:
Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clssicos
servem para entender quem somos e aonde chegamos(...)
Depois, deveria reescrev-lo ainda mais uma vez para que no se pense que os
clssicos devem ser lidos porque servem para qualquer coisa. A nica razo que se pode
apresentar que ler os clssicos melhor do que no ler os clssicos.
E se algum objetar que no vale a pena tanto esforo, citarei Cioran (no um clssico, pelo
menos por enquanto, mas um pensador contemporneo que s agora comea a ser traduzido
na Itlia): enquanto era preparada a cicuta, Scrates estava aprendendo uma ria com a flauta.
Para que lhe servir?, perguntaram-lhe. Para aprender esta ria antes de morrer.
Para ler o texto na ntegra, consulte o site:
http://www.lumiarte.com/luardeoutono/calvino.html
71
Introduo aos
Estudos
Literrios
Olha a passarinhada
Onde?
Passou.
CHARLES
A literatura marginal escrita nos anos 70 est balizada por duas mortes: a de
Torquato Neto (e vivo tranqilamente todas as horas do fim), que marca o melanclico
incio, e a de Ana Cristina Csar (Estou muito concentrada no meu pnico), que chama
a ateno para o gran finale de sua gerao.
Avaliada por muitos como o surto da biotnica vitalidade contra a ditadura militar
instalada no Pas, seus poetas praticavam quase sempre um ritual mrbido em torno
dos grandes mortos da contracultura - Jimi Hendrix e Janis Joplin, entre outros - e uma
intensa (auto) flagelao, presente desde o confessado uso de drogas at o desprezo
paradoxal pela cultura, sobretudo a literria.
A poesia que resultou dos anos loucos o retrato bem-acabado dessa inanio
intelectual. Argumenta-se, hoje, que a represso no permitiria coisa diferente. Trata-se,
contudo, de uma idia primria: a poesia de Garcia Lorca seria legvel em nossos dias,
caso sucumbisse em qualidade ditadura franquista, e detonasse poemas-piadas e
impresses instantneas, como as que compuseram o lugar-comum da poesia marginal?
Qualquer ditadura ficaria agradecida com o nvel de contestao dos livrinhos vendidos
de mo em mo, de reduzidssimo poder de fogo.
A prtica potica da gerao 70, alm disso, um elogio ao anacronismo: a maioria
dos poemas, seja pela tcnica, seja pelo tratamento dispensado ao tema, configura
uma imitao detalhada da poesia que se escreveu nos primeiros anos do Modernismo
brasileiro (1920 a 1930). Os poemas de Oswald de Andrade, por exemplo, podem ser
facilmente confundidos com as anotaes dos poetas marginais. Chacal, em Papo
de ndio, chega ao extremo de repetir a frmula da Antropofagia:
veiu uns mi de saia preta
cheiu di caixinha e p branco
qui eles disserum qui chamava aucri.
a eles falarum e ns fechamu a cara.
depois eles arrepetirum e ns fechamu o
corpo.
a eles insistirum e ns comeu eles.
Quando Heloisa Buarque de Hollanda publicou Impresses de Viagem (1980),
no desconfiava que seria eleita madrinha dos marginais. Era uma tarefa espinhosa.
Deve ser por tudo isso que, retornando de outra viagem, impressionou-se e pediu mais
competncia nova gerao. Seu livro uma leitura bem articulada do engajamento
poltico da dcada de 60 e da disperso da gerao 70, dois momentos que estuda com
igual simpatia. acusado freqentemente de ser provinciano, por se limitar aos grupos
72
do Rio de Janeiro. Envolvendo-se com teorias que pertencem quase sempre a Benjamin
e a Lukcs, Heloisa desloca a discusso acerca do literrio para o plano da produo
intelectual, tentando desfazer o suposto equvoco entre oposio e opo alternativa.
Ao que parece, deu preferncia a um projeto mais globalizante: O texto, a produo do
livro e a prpria vida desburocratizada dos novos poetas sugerem, de maneiras muito
parecidas, o descompromisso como resposta ordem do sistema. No entanto, torna-se
dificlimo contemplar fora subversiva na prtica declarada da ignorncia: a defesa do
carter da momentaneidade, da experincia artesanal e do binmio arte/vida pode muito
bem condenar uma literatura, ainda que seus escritores no se incomodem com crticas
qualidade literria. Nem poderiam: o que eles fizeram foi causar tdio pela vereda
florida da falta de intenes. O sucesso de suas teses, no entanto, abriu campo para
outros estudos, como o do melhor documentado (mas preso aos rigores acadmicos)
trabalho de Carlos Alberto Pereira, Retrato de poca (1981), amplamente centrado na
poesia e com curiosos depoimentos do way of life marginal.
Porm, a simpatia generalizada comeou pouco a pouco a declinar, e muitas vezes
pelas palavras de antigos companheiros de viagem. Paulo Leminski, cujo depoimento
insuspeito, participou aqui e ali com alguns poemas tpicos, mas define com rigor a
produo intelectual da poca. Em entrevista ao Correio das Artes (8-7-84), de Joo
Pessoa, declarou: A chamada poesia marginal dos anos 70 uma poesia, em grande
parte ignorante, infanto-juvenil, tecnicamente inferior aos seus antecessores. Incultos,
como faz supor Leminski, leram rpida e confusamente alguma coisa de Nietzsche e
os almanaques contraculturais de Herbert Marcuse e Wilhelm Reich, salpicando toda
essa salada sexual de zen-budismo e, entenda quem puder, misticismo coloquial.
Se dependesse dos prprios malditos, o que escreveram jamais seria considerado
poesia. Assim pensa Cacaso de seu livro Segunda Classe: uma coisa inteiramente
informal, um negcio meio repentista assim. A gente estava era curtindo, a verdade
essa. Francisco Alvim, por sua vez, tinha um desprezo consciente pelo que escrevia.
Acerca de seu livro Passatempo, disse: Ele se escreveu. No me interessa inclusive a
qualidade dele; eu acho que uma resposta, uma coisa que eu escrevi na minha vida.
igualmente curioso observar uma vertente que gostava de agredir o conhecimento
livresco em troca de um outro que, como se supunha, aprendia-se nas ruas. Escreveu
Charles: A sabedoria t mais na rua que/ nos livros em geral/ (essa a batida mas
batendo que faz render)/ bom falar bobage e jogar pelada/ um exerccio contra a
genialidade. Eles conseguiram! O prprio Charles, por exemplo, escreveu poemas
que no poderiam ser mais lcidos e que retratam bem o que acontecia na rua:
HORA ILUMINADA
mastigando uma pra
de bobera
s trs em ponto.
Por mais que o poema Suspiro, de Francisco Alvim, se resuma ao verso A vida
um adeuzinho, quem ser capaz de decor-lo? Por mais que Chacal insista em
procurar na beira de um calipso neurtico / um orfeu fudido, ele s encontrar algo
bem pior, ou seja, um poeta que escreveu versos como doce dulce d-se dcil.
Naquela dcada, contudo, a poesia estava sendo salva pela estria salutar de
Adlia Prado, pela laboriosa anarquia de Roberto Piva, e ainda por Antnio Carlos
Sacchin e Armando Freitas Filho. So nomes pinados de um profundssimo
caldeiro de poetas que entornou bons e maus versos. Jos Paulo Paes, que cultivou
73
Introduo aos
Estudos
Literrios
ainda, alguns nomes que no permitiram fazer da dcada um imenso deserto cujas
areias terminam onde comeam as de Ipanema. Do osis plantado por alguns bons
livros, que dissiparam as fumaas das dunas baratas, ressalte-se que os anos 70
serviram para consolidar a literatura escrita por mulheres como Olga Savary, Miriam
Fraga, Hilda Hilst e Las Correa de Arajo, entre outras.
O poema mais significativo dos anos 70 no foi escrito por nenhum poeta do
desbunde ou outro qualquer que tenha perdido o bonde, mas por um poeta exilado.
Com Poema Sujo (1977), Ferreira Gullar elevou a um s tempo a poesia engajada a
poesia memorialstica e as tcnicas mais modernas do verso.
Hoje, quase todos os poetas marginais j tm obra completa publicada - comparecendo
com uma poesia extremamente datada. Embora vulgar, o argumento de que o vazio
cultural dos anos 70 causou a apario de uma poesia oca precisa ser considerado, ao
menos por definir uma produo j envelhecida. A melhor contribuio daqueles poetas
depositou-se nas letras de msica popular e em roteiros para filmes ou programas de
televiso, formas que escapam pequenez das edies mimeografadas, embora caiam
no circuito outrora execrado. Waly Salomo exemplo de escritor que adaptou-se bem
s letras de msica, bastante superior sua prosa. De resto, sua formao cultural
bem mais sofisticada do que a de qualquer outro brincalho do circo das letras.
Ningum vive bem em tempos polticos difceis, ainda mais na companhia de
poemas intragveis. H coisas constrangedoras como esta:
Tenho pena dos pobres, dos aleijados, dos
velhos
Tenho pena do louco Neco Vicente
E da Lua sozinha no cu
que, embora assemelhe-se aos poetas da lavra
marginal, pertence a Jorge de Lima - com
uma ressalva, porm: quando a escreveu, ele
tinha apenas 9 anos de idade. Freud afirmava
que toda criana um perverso polimorfo e
deve estar certo, pois pelo menos em poesia as
infncias se confundem.
(Felipe Fortuna, poeta e ensasta. Ainda no tem gerao.)
Texto encontrado no Jornal do Brasil, Caderno B/Especial, 07 de setembro de 1986.
Este breve panorama sobre a literatura marginal no Brasil nos auxilia a continuar
pensando no movimento de abertura para outras ramificaes tericas que surgiam
constantemente nas comunidades letradas do pas e de algumas partes do mundo. O
movimento da poesia e da literatura marginal sonda possibilidades narrativas que nos anos
80 promoveram um boom da memria, que tem como marco o relato de Gabeira em O que
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75
Introduo aos
Estudos
Literrios
social, mas a intensidade dos discursos em que vivem, seu poder de grupo, de corporao.
Sua potncia de tambm poder escolher o que quer ser.
A literatura contempornea uma confirmao de que a vida no basta, por isso tantas
insinuaes e movimentos contra a mar. Por isso, tambm, narrar: para legar ao literrio
o rastro da existncia de cada um que a cada dia, no imbricado da literatura e da vida, vem
sendo lanado para dentro de universos irremediveis. Boa leitura sempre! E boa viagem!
Para saber mais, visite:
http://ferrez.blogspot.com/
http://www.eraodito.blogspot.com/
http://www.vivafavela.com.br/
Atividades
Complementares
Vimos muitas nomenclaturas e teorias durante nosso curso e agora gostaramos que
voc traasse um seguimento acerca desses assuntos na sua vida. Tome como ponto de
partida a noo que voc tinha do Literrio antes do curso e como voc pensa esse mesmo
universo artstico agora.
Relacione os conceitos aristotlicos de mimesis e catarse aos textos e teorias colocados
em cena durante o curso, que enfoquem, prioritariamente, vertentes discutidas sobre os Estudos
Culturais, para refletirmos como essas instncias literrias, atreladas reflexo humana por
sculos, pode se configurar no estudo e interpretao de textos contemporneos.
76
Glossrio 31
Alegoria- discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta a outra.
Podemos considerar alegoriaa toda concretizao, por meio de imagens, figuras e pessoas,
de idias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce,
dissimulao, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional.
Aluso toda referncia, direta ou indireta, propositada ou casual, a uma obra,
personagem, situao, etc., pertencente ao mundo literrio, artstico, mitolgico, etc.
Ambigidade que apresenta duas faces, dois ou mais sentidos. Plurissignificao.
Catarse efeito promovido pela liberao de emoes atravs da simpatia ou medo,
como, por exemplo, por ocasio de uma performance teatral; prprio do drama.
Conflito qualquer componente de uma histria (personagens, fatos, ambiente,
idias, emoes) que se ope a outro, criando uma tenso que organiza os fatos da histria
e prende a ateno do leitor.32
Crise do grego, deciso, julgamento; momento assinalado que numa pea de teatro
ou narrativa se processa o encontro decisivo das foras em conflito, que provoca as opes
definitivas e o eplogo irremedivel.
Drama- essencial e historicamente, a palavra vincula-se ao teatro, isto ,a arte
da representao.33
pica - palavra, narrativa, poema, recitao. Diz respeito epopia, e aos heris.
Fanopia consiste em projetar o objeto (fixo ou em movimento) na imaginao visual
Fico sinnimo de imaginao e inveno, encerra o prprio ncleo do conceito de
Literatura: Literatura fico por meio da palavra escrita. Entretanto, o vocbulo se emprega,
costumeira e restritivamente, para designar a prosa literria em geral, ou seja, a prosa de fico.
Logopia criao de palavras. Designa, de modo geral, a arte de combinar as
palavras a fim de sugerir a idia de beleza pela forma e pelo contedo.
Melopia consiste em produzir correlaes emocionais por intermdio do som
e do ritmo da fala.
Metfora transporte, translao; consiste no transportar para uma coisa o nome de
outra, ou do gnero para a espcie, ou da espcie para o gnero, ou da espcie de uma
para a espcie de outra, ou por analogia.34
31 - MOISS, Massaud. Dicionrio de Termos Literrios. So Paulo: Ed. Cultrix, 1974. Utilizado para a maior parte dos os termos
extrados deste glossrio.
32 - GANCHO, Cndida Vilares. Como analisar narrativas. So Paulo: tica, [S/d].p. 11.
33 - Para significado mais abrangente do termo, consultar pginas 161 a 163 do Dicionrio de Termos Literrios.
34 - Ibidem. p 323 a 333
77
Mimese imitao.35
Introduo aos
Estudos
Literrios
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Referncias
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