Desiderio Murcho-Ensinar A Filosofar
Desiderio Murcho-Ensinar A Filosofar
Desiderio Murcho-Ensinar A Filosofar
Desidrio Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
No contexto escolar e universitrio em que nos encontramos, os professores de filosofia esto institucionalmente obrigados a avaliar os alunos. Contudo, a filosofia,
pela sua prpria natureza, compatvel com a avaliao? A primeira parte deste artigo
esclarece sob que pressupostos se rejeita a avaliao, ainda que estejamos institucionalmente obrigados a simul-la, e sob que pressupostos a avaliao parte integrante do ensino da filosofia.
A segunda parte do artigo apresenta uma concepo do ensino e da avaliao
da filosofia que leva a srio a idia de ensinar a filosofar, sendo a avaliao rigorosa
uma parte prpria deste processo e no uma mera formalidade institucional. Esta
segunda parte tem um carter mais orientador das prticas dos professores, ao passo
que a primeira fornece um enquadramento que se deseja esclarecedor.
te de uma escola de medicina, cuja profisso ser mais tarde fortemente regulamentada pelo estado. A fundao da primeira universidade europia propriamente dita,
dedicada a vrias reas, ocorreu em Bolonha, no sc. XI. As universidades de Paris e
Oxford, fundadas no sc. XII, mantinham algo da tradio grega de independncia
relativamente ao estado: eram associaes de professores e estudantes, tendo a liberdade de fazer o que julgavam adequado. J a Universidade de Npoles, assim como a de Toulouse, ambas fundadas no sc. XIII, apontam na direo do controlo estatal do ensino: a primeira foi fundada pelo imperador Frederico Segundo, respondendo por isso autoridade imperial, e a segunda foi fundada por decreto papal.
A estatizao padronizou o ensino, incluindo mtodos, bibliografias, desenhos
curriculares e avaliaes, sendo neste contexto que devemos inserir alguns debates
atuais sobre o que queremos que seja a universidade ou a escola. Quando Wolff ironiza, tendo em mente as universidades norte-americanas, que estas
foram fundadas devido a todo o tipo de razes: para preservar uma f ancestral, para fazer proslitos de uma nova f, para formar trabalhadores especializados, para elevar os padres de diferentes profisses, para expandir as fronteiras do conhecimento e at para educar os jovens (Wolff 1969: 1),
est propositadamente a deixar para o fim aquilo que partida poderia parecer que
seria a razo de ser das universidades. Wolff apresenta ento, com a mesma ironia
que o caracteriza, quatro concepes de universidade:
1. Santurio de erudio, para investigar e ensinar a investigar assuntos desinteressantes para a maior parte da populao, como a matemtica pura, a biologia molecular
ou a metafsica da modalidade;
2. Escola profissional, para dar formao aos futuros profissionais das mais diversas
reas, da farmcia hotelaria, passando pelo turismo e pela computao;
3. Servio social, para mudar a sociedade, tornando-a mais igualitria;
4. Linha de montagem de cidados, para que as pessoas fiquem todas iguais e a pensar
o mesmo, participando cada vez mais no que no querem de modo algum participar:
a vida pblica.
A existncia de ensino privado no foge da padronizao estatal porque mesmo este fortemente regulamentado pelo estado.
1
to das sociedades humanas e do mundo natural. Acontece que este ensino, por ser
assistemtico e inexplcito, no tem qualquer ligao a uma avaliao sistemtica e
explcita, precisamente devido sua natureza. No avaliamos sistemtica e explicitamente os nossos filhos quando lhes ensinamos a andar de bicicleta, por exemplo,
por duas razes: primeiro, porque a prpria bicicleta e a gravidade que o avalia,
digamos, fazendo-o cair at ele conseguir andar bem de bicicleta; segundo, porque o
conhecimento em causa no tem o grau de complexidade e sofisticao que exija sistematicidade e explicitao do ensino, o que por sua vez significa que tambm no
exige avaliao sistemtica nem explcita. Note-se que a ausncia de complexidade
e sofisticao que faz a diferena, e no o fato de, como no caso de andar de bicicleta,
se tratar principalmente de um conhecimento prtico (saber-fazer), e no tanto de
um conhecimento terico (saber-que). Se o nosso filho for aprender piano, apesar de
este ser um ensino que envolve uma fortssima componente de saber-fazer, a nossa
expectativa agora de um ensino explcito e sistemtico e de uma concomitante avaliao. Quando a complexidade ou sofisticao do que queremos aprender ou ensinar
muito elevada, o ensino no seio da vida inadequado. Todavia, quando se concebe a filosofia como cultura geral, razovel rejeitar a avaliao sistemtica e explcita
desde que se rejeite, tambm, o seu ensino institucional.
A segunda concepo de filosofia que rejeita uma avaliao explcita e sistemtica a existencialista ou inicitica. Deste ponto de vista, a filosofia uma espcie
de religio sem divindades, e o seu fito dar-nos conforto espiritual auto-ajuda
filosfica, digamos refletindo sobre a condio humana. O ensino inicitico
apropriado a esta concepo de filosofia, caracterizando-se este por no ser explcito
nem sistemtico, mas antes algo que vai sendo transmitido ao longo de uma vida, em
contato espiritual com o mestre. deste ponto de vista que se afirma por vezes que
Aristteles foi discpulo de Plato, um pouco como Pedro o foi de Jesus, em vez de se
afirmar apenas que estudou com Plato o que historicamente mais prximo da
verdade, pois no se encontra nos escritos de Aristteles sinais de que tivesse uma
relao inicitica com Plato, nem uma concepo inicitica da filosofia. A expresso
lapidar deste tipo de ensino a perspicaz passagem de LeGuin 1968 em que o jovem
Ged, ansioso por comear a sua aprendizagem com o mestre, lhe pergunta, depois de
vrios dias de uma caminhada em silncio, quando comea o ensino; o mestre responde-lhe misteriosamente que j comeou. A idia que as coisas mais banais
como a pesca, por exemplo, ou a matemtica podem ser aprendidas com um dado
grau de explicitao, mas as mais profundas tm de estar envolvidas no mistrio de
um ensino inexplcito e assistemtico. Evidentemente, a avaliao explcita e sistemtica no faz parte deste tipo de ensino.
Estas no so as nicas concepes de filosofia, contudo. Uma terceira concepo abraa o ensino explcito e sistemtico, e conseqentemente tambm a sua
avaliao, ao identificar a filosofia com a histria da filosofia. Assim, mesmo que a
filosofia em si seja insusceptvel de ensino explcito e sistemtico, e conseqentemente de avaliao, isso de somenos importncia porque nesta concepo no se
ensina a filosofar, nem se avalia tal coisa; ao invs, ensina-se apenas a compreender
as idias dos filsofos. Esta concepo da filosofia e do seu ensino elimina a inquietao de se encarar a filosofia como cultura geral ou como uma disciplina inicitica; a
dignidade epistmica do trabalho escolar de excelncia, sofisticado e complexo,
reafirmada, e a sua avaliao torna-se razoavelmente bvia: ao aluno cabe exibir a
competncia rigorosamente avalivel de descrever corretamente as idias dos filsofos. Esta concepo de ensino no avessa avaliao, e no precisa do subterfgio
da avaliao de fantasia, que consiste em fazer perguntas ao aluno que so variaes
de Acerca do que estudou, diga mais ou menos o que aprendeu. Pelo contrrio, podemos fazer perguntas muito precisas ao aluno que explique o argumento ontolgico de Anselmo, por exemplo e o seu trabalho ser rigorosamente avaliado, em
funo da sua preciso explicativa. Em contrapartida, o aluno tem mesmo de estudar
algo, ao invs de se limitar a falar dos seus estados de alma, ou de cultura geral.
uma alternativa a esta concepo do ensino da filosofia que alguns professores e estudantes procuram (cf. Armijos Palcios 2004a, 2004b), dando-se conta de
que h nela uma tenso desconfortvel: um professor que tivesse Descartes como
aluno, escrevendo este a primeira Meditao, por exemplo, teria de reprov-lo porque nesse texto o aluno no descreve as idias seja de quem for, mas antes filosofa
diretamente. uma dessas alternativas que apresentamos de seguida.
2. Competncias filosficas
Escreveu Kant:
O jovem que completou a sua instruo escolar habituou-se a aprender. Agora pensa que vai aprender filosofia. Mas isso impossvel, pois agora deve
aprender a filosofar. (Kant 1765: 2:306-7)
A idia de Kant que no se pode aprender filosofia do mesmo modo que se aprende
fsica, por exemplo, ou matemtica, porque nestes casos h resultados consensuais
substanciais.2 Em filosofia, pelo contrrio, quase no temos resultados desses (ainda
que tenhamos resultados no-substanciais e no-consensuais); mas temos muitos
problemas em aberto (alguns filsofos defendem que Deus existe, outros que no,
por exemplo). Tambm h problemas em aberto na fsica ou na matemtica; examinar esses problemas e tentar resolv-los o que faz um investigador ou pesquisador
propriamente dito.3 Acontece apenas que o corpo de resultados consensuais substanciais de tal modo vasto que os estudantes demoram vrios anos para os compreender, s depois disso estando aptos a enfrentar os problemas em aberto.4 Assim, o
contraste entre a filosofia e as outras reas uma questo de grau: h muitssimo
menos resultados consensuais substanciais em filosofia do que na matemtica ou na
fsica.
Kant considerava que s poderamos ensinar filosofia como quem ensina fsica ou matemtica se tivssemos em filosofia o gnero de resultados que temos nessas
outras reas. A fuga do ensino da filosofia propriamente dito para a histria geral da
filosofia precisamente uma resposta a esta dificuldade: no h em filosofia resulta-
Esta expresso (que no de Kant, mas antes uma interpretao razovel da passagem)
obtidos. Se no ensinarmos explicitamente os alunos a obter novos resultados, seja em que rea for, s
alguns deles acabaro por descobrir sozinhos como se faz tal coisa.
dos como nas outras reas, e por isso no podemos ensinar tal coisa, mas h certamente resultados consensuais substanciais em histria geral da filosofia.5
A resposta do prprio Kant a esta dificuldade parece razovel e aquela que
ser aqui desenvolvida: em vez de fugirmos do ensino da filosofia para o ensino da
histria geral da filosofia, apostamos num ensino apropriadamente filosfico da filosofia. Isso significa ensinar a filosofar: ensinar a fazer filosofia tal como os filsofos
fazem. como ensinar a pintar quadros em vez de ensinar histria da pintura.
Contudo, como se faz tal coisa? O prprio Kant d-nos uma boa pista:
Estaramos a trair a confiana com que o pblico nos brinda se, em vez de
alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado,
educando-os de modo a que venham a conseguir adquirir uma perspectiva
prpria mais amadurecida se, em vez disso, os enganssemos com uma filosofia alegadamente j completa e excogitada por outros para seu benefcio.
Tal coisa criaria a iluso de cincia. Esta iluso s aceite como artigo genuno em certos lugares e entre certas pessoas. Em todos os outros lugares, contudo, rejeitado como artigo de contrabando. O mtodo de instruo peculiar
da filosofia zettico, como alguns filsofos da antiguidade o exprimiram (de
). Por outras palavras, o mtodo da filosofia a investigao.6 [] Por
exemplo, o autor filosfico no qual baseamos a nossa instruo no deve ser
encarado como o paradigma do juzo. Deve ao invs ser encarado como a ocasio para que formemos o nosso prprio juzo sobre ele e, na verdade, contra
ele. O que o aluno realmente procura proficincia no mtodo de refletir e fazer inferncias por si. (Kant 1765: 2:307; itlicos no original)
Deste ponto de vista, ensinar a filosofar como ensinar a nadar ou a pintar ou como ensinar a fazer fsica, ao invs de ensinar a entender os resultados obtidos nessa
rea do conhecimento. O que est aqui em causa um contraste importante entre o
saber-que (conhecimento de fatos ou proposicional) e o saber-fazer (domnio de
competncias). O contraste bvio: saber andar de bicicleta ou saber nadar, por
exemplo, um saber-fazer, e no um saber-que. Por mais que uma pessoa tenha um
A diferena entre histria da filosofia e filosofia explicada em Murcho 2008; Scruton 2001
e Murcho 2002 explicam a diferena entre histria da filosofia e histria das idias. Quando uso a
expresso histria geral da filosofia tenho em mente uma atividade que parcialmente histria da
filosofia mas que dominada pela histria das idias.
6 Kant usa o termo forschend, que significa procurar.
res, pois somos pagos para ensinar filosofia e no para fingir que ensinamos filosofia
ensinando outra coisa inventada nas escolas parecida com a filosofia, mas que no
filosofia. Qualquer professor de filosofia que reprovasse Descartes, caso o tivesse como aluno, s porque este no obedece aos formalismos escolares, escolheu a profisso errada porque incapaz de reconhecer um trabalho de qualidade quando o v.
Em alguns nveis de ensino, com alunos de 15-16 anos, razovel usar sistematicamente o
termo teoria apesar de em muitos casos no se tratar de teorias num sentido mais rigoroso do termo. Uma teoria um conjunto articulado de proposies que descrevem ou explicam um dado aspecto
fsica, poder parecer que esta cincia acerca do conceito de velocidade, por exemplo; ao invs, o
conceito de velocidade cuidadosa e explicitamente definido em fsica porque desejamos compreender o fenmeno real da velocidade, e no porque queiramos compreender o conceito de velocidade.
Do mesmo modo, em filosofia queremos esclarecer e explicitar o conceito de justia, por exemplo, mas
o nosso interesse no o conceito mas as sociedades justas.
comum falar de argumentos quando na verdade se trata apenas de raciocnios. Um raciocnio um conjunto de proposies em que algum visa concluir uma delas com base nas outras; um
9
10
11
Resposta adequada: Sim, dado que um problema conceitual. No h maneira emprica adequada de descobrir se o fato de as pessoas religiosas serem
mais felizes, caso seja um fato, nos d uma boa razo para sermos religiosos; a
maneira adequada de responder a este problema a reflexo filosfica noemprica.
Este terceiro problema contrasta com o problema filosfico de saber o que uma sociedade justa, ou quais so as caractersticas fundamentais de uma tal sociedade.
Uma vez mais, trata-se de ter a competncia para distinguir problemas filosficos de
problemas no-filosficos.
Vejamos agora algumas competncias filosficas mais sofisticadas, respeitantes ainda aos problemas filosficos:
Pergunta: Formule o problema da referncia dos nomes prprios
Resposta adequada: O problema da referncia dos nomes prprios o seguinte: por meio de que processo um mero som ou marca num papel consegue
referir uma pessoa que morreu h mais de 2500 anos, por exemplo, e com a
qual nunca tivemos qualquer contato, como o caso de Scrates? O problema no determinar qual o referente de Scrates, uma vez que este nome
refere trivialmente Scrates, mas antes qual o processo que permite a referncia.
12
Como se v, apesar da sofisticao envolvida na resposta, esta pode ser bastante curta.11
Identificar corretamente um problema filosfico e formul-lo corretamente
so competncias diferentes. Identificar um problema filosfico apenas, perante
um pequeno texto, por exemplo, ser capaz de dizer qual o problema filosfico em
causa. Formular um problema filosfico ser capaz de enunci-lo corretamente, como fizemos acima. Um aluno com competncia para ver que num dado texto est em
causa o problema do livre-arbtrio, por exemplo, pode ser incapaz de formular bem
esse mesmo problema.
Por sua vez, explicar um problema filosfico ir alm da sua formulao:
desenvolver adequadamente os vrios aspectos que caracterizam o problema em causa, o que exige mais espao, at porque exige um esclarecimento dos conceitos filosficos envolvidos. Finalmente, discutir um problema filosfico ir alm da sua explicao e inclui uma explorao e explicao das principais respostas ao problema, e
das dificuldades que tais respostas enfrentam.
Vejamos outro exemplo:
Pergunta: Explique qual a diferena entre o problema lgico do mal e o
problema indicirio do mal.
Resposta adequada: Ser a existncia da divindade testa logicamente
compatvel com a existncia do mal? Este o problema lgico do mal. J o
problema indicirio do mal o seguinte: a existncia de mal um indcio de
que a divindade testa no existe? No primeiro caso um problema de compatibilidade lgica entre a existncia da divindade testa e o mal; no segundo caso no um problema de compatibilidade lgica, mas antes de probabilidade
e confirmao: trata-se de perguntar se a existncia do mal confirma ou no a
inexistncia da divindade testa.
11
No ensino mdio uma boa idia dar aos alunos folhas de prova j com os lugares adequa-
dos para que eles respondam, o que lhes d a saber claramente que no se espera mais de trs linhas
de resposta, por exemplo, ou que se espera um maior desenvolvimento (meia pgina, por exemplo).
13
A passagem citada de Kant termina com a afirmao de que as idias do autor que
estudamos no devem ser aceites passivamente. Esta afirmao, bvia para quem
encara a filosofia como uma disciplina crtica, constantemente contrariada naquelas escolas que a transformam no estudo passivo das opinies das autoridades, no
estando o estudante autorizado a avali-las criticamente. Ora, do ponto de vista do
ensino filosfico da filosofia, queremos ensinar a explicar detalhadamente e a discutir proficientemente as idias dos filsofos, e no apenas ensinar a compreend-las.
Assim, no que respeita a qualquer teoria filosfica, queremos desenvolver competncias que nos permitam responder adequadamente a perguntas centrais como as seguintes:
Por exemplo: um argumento dedutivo vlido se, e s se, for impossvel que tenha premissas verdadeiras e concluso falsa. Como evidente, no h muitas definies bem-sucedidas como
12
esta fora do campo da lgica (e mesmo esta definio, apesar de comum nos livros de lgica, est subtilmente errada; cf. Murcho 2012a).
14
13
mas que no o , ser incompatvel com o rigor: a associao aleatria de palavras ou idias.
14 comum defender a importncia das estratgias motivadoras no ensino, sobretudo nos nveis pr-universitrios. Apesar de ser evidente que as matrias devem ser apresentadas aos estudantes
de modo estimulante, preciso no ter tanta nsia em torn-las apelativas que deixem de ser o que
realmente so, afastando os estudantes mais talentosos que, expostos filosofia tal como esta realmente , ficariam apaixonados.
15
lngua portuguesa. Todavia, algumas competncias instrumentais s podem ser ensinadas em filosofia: so competncias filosficas, mas instrumentais. Vejamos os seguintes contrastes:
Competncias instrumentais
Competncias finais
16
Contudo, nenhum exame adequado de crena poder ter lugar enquanto no se distinguir
crena em geral de crena religiosa.
15
17
teoria de um dado filsofo e, ao contrrio da primeira, no consensual. Por exemplo, uma definio geral ou transversal de bem ltimo a seguinte:
Um bem ltimo se e s se for valorizado por si mesmo, o que contrasta com
o bem instrumental, que algo valorizado em funo de outra coisa. Assim, o
dinheiro um bem instrumental se for valorizado devido ao que podemos
comprar com ele, ao passo que a felicidade ser um bem ltimo se a valorizarmos por si mesma e no em funo de outra coisa.
citamente algo, e como se distingue isso da mera caracterizao. No sentido rigoroso do termo, uma
anlise de A uma definio analtica de A em termos do definiens D, de tal modo que A D seja
uma afirmao analtica. Isto significa que as definies meramente extensionais, apesar de comuns
em filosofia, e importantes, no so, a rigor, anlises. Cf. Murcho 2006a.
18
um ser humano mas no seja um animal racional, ou algo que seja um animal racional mas no seja um ser humano. Este caso muito simples e no tem relevncia filosfica. Mas pode servir para praticar o exerccio da procura de contra-exemplos e
ilustrar tal atividade perante o estudante. A mesma competncia ser ento usada
para discutir a definio filosfica interessante de conhecimento como crena verdadeira justificada, por exemplo os contra-exemplos sero casos de conhecimento
que no sejam crenas verdadeiras justificadas, o que mais difcil de encontrar, ou
casos de crenas verdadeiras justificadas que no sejam conhecimento, o que mais
fcil de encontrar.
ta s inferncias cuja validade depende apenas da sua forma lgica d ateno a outros aspectos importantes para a qualidade do raciocnio que no a validade. Cf. Murcho 2006b.
19
exigem uma interpretao filosfica. Para um exemplo deste tipo de trabalho, anda que a um nvel
elementar, veja-se Murcho e Merlussi 2011.
20
SC. Mas quem usa e o que ele usa so coisas diferentes, no?
ALC. Que queres dizer?
SC. Por exemplo, no verdade que um sapateiro usa diversas ferramentas?
ALC. Sim.
SC. E quem faz os cortes e usa as ferramentas muito diferente daquilo
que se usa ao fazer os cortes, no?
ALC. Claro.
SC. E, do mesmo modo, o que o harpista usa ao tocar harpa ser diferente
do prprio harpista?
ALC. Sim.
SC. Pois bem! Era isto que eu perguntava h pouco: se quem usa e o que
ele usa so sempre, na tua opinio, duas coisas diferentes.
ALC. So coisas diferentes.
SC. Que dizer ento do sapateiro? Ele faz cortes s com as ferramentas, ou
tambm com as mos?
ALC. Tambm com as mos.
SC. Portanto, ele usa tambm as mos?
ALC. Sim.
SC. E ele usa tambm os olhos, ao fazer sapatos?
ALC. Sim.
SC. E j admitimos que quem usa e o que ele usa so coisas diferentes?
ALC. Sim.
SC. Ento o sapateiro e o harpista so diferentes das mos e olhos que eles
usam no seu trabalho?
ALC. Evidentemente.
SC. E o homem usa tambm todo o seu corpo?
ALC. Sem dvida.
SC. E ns dissemos que quem usa e o que ele usa so coisas diferentes?
ALC. Sim.
SC. Ento o homem diferente do seu prprio corpo?
ALC. Parece que sim.
Plato, Alcibades I, 129b-129e19
Apesar de muitssimo usado na antiguidade clssica como introduo filosofia, por razes
evidentes, este dilogo hoje em dia menos conhecido porque no sc. XVIII Schleiermacher ps a sua
19
autenticidade em causa; hoje em dia, contudo, muitos eruditos consideram-no uma obra genuna de
Plato.
21
22
O primeiro raciocnio complementar apia a premissa primeira do raciocnio principal; o segundo apia a segunda. Assim, o prprio Scrates quem procura sustentar
as duas premissas do seu raciocnio principal. Uma vez mais, temos de perguntar se
estes dois raciocnios so vlidos e se tm premissas verdadeiras ou plausveis.
O segundo raciocnio est bastante abreviado, mas adequadamente reconstrudo dar origem a uma validade dedutiva.20
Todavia, o primeiro destes raciocnios no dedutivo; um raciocnio com
base em exemplos, bastante vulnervel a contra-exemplos: se descobrimos algo que
no seja diferente do que usa, refutamos o argumento. Porque no um raciocnio
dedutivo, a lgica formal nada tem a dizer; mas s o nosso conhecimento da lgica,
formal e informal, permite saber sequer a diferena entre a validade dedutiva e a validade no-dedutiva; e na lgica informal estudamos vrios critrios de validade nodedutiva.
O que temos neste pequeno texto ento uma estrutura em rede muito comum: um raciocnio principal com duas premissas, e dois raciocnios complementares que defendem cada uma das duas premissas do raciocnio principal. Esta estrutura tpica do raciocnio complexo, que sempre o resultado da combinao de vrios
outros raciocnios (nem sempre mais simples).
O ponto mais fraco do raciocnio principal precisamente a primeira premissa: ser plausvel pensar que o que usa uma coisa sempre diferente do que usado?
Como vimos, Scrates usa um raciocnio com base em exemplos para defender esta
idia. Mas aqui que a ateno crtica do aluno deve incidir, perguntando-se se h
20
Algo como O sapateiro usa as mos e os olhos para fazer sapatos. Usar as mos e os olhos
usar o corpo. Se o sapateiro usa o corpo, o homem tambm usa o corpo. Logo, o homem usa o seu
prprio corpo.
23
contra-exemplos: algo que use uma coisa mas no seja diferente do que usado. Haver tal coisa?
Parece haver contra-exemplos. Uma planta usa as suas folhas e razes para se
alimentar e respirar, mas no diferente das suas folhas e razes: a planta constituda pelas folhas e razes. Alm disso, tambm um rio usa a gua, o seu leito e as suas
margens, num certo sentido, mas no parece diferente dessas coisas.
O relevante didaticamente, nestes exemplos, a discusso a que do lugar e o
exerccio que oferecem do que avaliar criticamente, mas com rigor, as idias dos
filsofos. Nem o contra-exemplo das plantas nem o do rio so a palavra final; antes
so, ambos, uma etapa importante da discusso. Por exemplo, uma resposta objeo da planta defender que as plantas no tm conscincia, pelo que s metaforicamente e sem muito rigor se diz que usam as suas folhas e razes.
Contudo, esta resposta enfrenta por sua vez uma objeo: se a idia afinal
que s quem tem conscincia e usa algo diferente do que usado, o raciocnio torna-se circular porque o que se pretende estabelecer precisamente que a conscincia
humana, a alma ou algo desse gnero, diferente do corpo. Se pressupomos que os
seres humanos tm tal coisa para provar que a tm, o raciocnio circular e como tal
irrelevante.
Uma rplica a esta objeo, por sua vez, insistir que o objetivo de Scrates
no estabelecer que os seres humanos tm conscincia, alma ou algo desse gnero,
mas antes que a conscincia que obviamente tm diferente dos seus corpos. Como
no est em causa provar que os seres humanos tm conscincia, mas antes que esta
no se identifica com os seus corpos, no circular pressupor que os seres humanos
tm conscincia (ainda que fosse circular pressupor que tm uma alma imaterial).
Neste ponto, talvez o estudante levante outra objeo diferente ao argumento
de Scrates, comparando-o com o raciocnio seguinte:
Quem usa uma coisa diferente do que usado.
Os seres humanos usam a sua alma, conscincia e pensamentos.
Logo, os seres humanos so diferentes da sua alma, conscincia e pensamentos.
24
A objeo que se nada de errado existir no raciocnio original, algo tem de existir de
errado neste e no fcil ver qual ser a diferena relevante. Se no h diferena
relevante, que razo teremos para aceitar um mas rejeitar o outro?21
O que fizemos foi um breve exerccio de discusso filosfica, no qual vimos
como a dialtica do raciocnio filosfico surge muito naturalmente: um filsofo raciocina para sustentar uma idia; ns explicitamos o seu raciocnio e examinamo-lo detalhadamente; quando comeamos a discutir o raciocnio, encontramos respostas s
dificuldades, objees a essas respostas, rplicas a estas objees, etc., num movimento ziguezagueante a que por vezes se chama dialtica filosfica e cujo domnio
uma componente fundamental do saber-fazer filosfico.
Este exerccio de discusso uma aprendizagem. Alguns alunos faro objees
que no so adequadas, o que normal e se corrige no seio da prpria discusso. O
importante que se aprende a filosofar filosofando, e avalia-se o filosofar avaliando
as competncias filosficas evidenciadas pelos alunos no processo de filosofar. Para
isso, evidentemente, crucial que exijamos que os alunos filosofem. Se nos limitarmos a exigir que faam relatrios andinos do que leram e parfrases poticas dos
seus estados de alma, ou dos estados de alma dos filsofos, no temos maneira de
avaliar as suas competncias filosficas porque no lhes damos oportunidade de as
porem em prtica.
3. Concluso
Ensinar a filosofar exige uma viso muito clara da natureza da prpria filosofia, pois
s assim saberemos quais so os contedos e competncias prprias da rea. Partindo da, procuramos ento aqueles contedos e competncias mais elementares, de
acordo com o nvel de ensino e a maturidade cognitiva dos alunos. Avaliar competncias genuinamente filosficas implica rejeitar o formalismo institucional de avaliar o
mais fcil, ou avaliar s por avaliar, abraando antes a idia de que a avaliao parte prpria e inseparvel de aprender a filosofar.
A discusso proposta a ttulo exemplificativo; h outras vias de discusso que alguns estudantes querero explorar. Por exemplo, nenhum ser humano idntico a qualquer uma das partes do
21
seu corpo, tal como nenhum carro idntico a qualquer uma das suas peas; mas daqui no se conclui
corretamente que os seres humanos no so apenas a soma das suas partes, adequadamente organizadas, tal como acontece com um automvel. Esta discusso exige o domnio dos conceitos filosficos
de identidade numrica e de mereologia.
25
Ensinar a filosofar e avaliar os alunos no um mistrio arcano; uma questo de ter uma viso muito clara do que fazem realmente os filsofos. Precisamos de
conhecer a bibliografia atual, incluindo a melhor bibliografia introdutria; e precisamos de ter a experincia pessoal de fazer filosofia. Com estas bases, podemos fazer
filosofia modestamente e ensinar a faz-la; no preciso ser inovador, influente e
imortal: o importante ser competente e profissional.22
Leituras sugeridas
Bonjour & Baker 2008 apresenta vrios textos clssicos acompanhados de sugestes
de discusso e explicaes preciosas para o estudante. Rachels 2008 apresenta e discute de modo muitssimo simples vrias idias de vrias reas da filosofia, mas infelizmente a edio em portugus lusitana. Deste filsofo temos no Brasil, contudo,
uma introduo tica tambm muito simples e que ensina a filosofar (Rachels
2002).
Blackburn 1999 no est infelizmente disponvel no Brasil, mas uma das
mais estimulantes introdues filosofia, especificamente concebido para fazer pensar, semelhana do clssico Russell 1912 e do inexcedvel Nagel 1987. semelhana
destes trs livros, Murcho 2012b visa tambm estimular a reflexo autnoma do leitor.
Weston 2008 um auxiliar precioso para uma postura crtica perante qualquer texto, incluindo os que ns mesmos escrevemos; Martinich 1996 explica, com
vrios exemplos, como se escreve um ensaio crtico de filosofia (incluindo de histria
da filosofia). Almeida, Teixeira & Murcho 2013 visa ensinar a filosofar tendo como
pblico alunos portugueses de 14-15 anos. Murcho 2003 apresenta vrios aspectos
elementares da lgica relevantes para professores de filosofia do ensino mdio. Almeida 2009 um dicionrio de filosofia especificamente concebido para alunos do
ensino mdio.
22
Agradeo a leitura atenta e as sugestes de Luiz Helvcio Marques Segundo, Fbio Gai Pe-
reira, Vincius Santos, Matheus Silva, Vnia Mller, Lucas Miotto e Aires Almeida, que muito me ajudaram a escrever um texto menos mau. Este texto resultou de um seminrio de formao permanente
para professores de filosofia da rede pblica do ensino mdio, promovido pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, e ser integrado num livro a publicar em breve no mbito do projeto da Professora Dra. Priscilla Spinelli, a quem agradeo o convite que me foi dirigido e o acolhimento que me foi
dispensado.
26
Referncias
Almeida, A, Teixeira, C. e Murcho, D. 2013. 50 Lies de Filosofia: 10. ano. Lisboa:
Didctica Editora.
Almeida, A., dir. 2009. Dicionrio Escolar de Filosofia. Lisboa: Pltano, 2. ed.. Uma
verso anterior encontra-se em http://www.defnarede.com.
Armijos Palcios, G. 2004a. De Como Fazer Filosofia sem ser Grego, Estar Morto ou
ser Gnio. Gois: Editora da Universidade Federal de Gois.
Armijos Palcios, G. 2004b. Alheio Olhar. Gois: Editora da Universidade Federal de
Gois.
Blackburn, S. 1999. Pense: Uma Introduo Filosofia. Trad. A. Infante et al. Lisboa: Gradiva, 2001.
Bonjour, L. & Baker, A. 2008. Filosofia: Textos Fundamentais Comentados. Trad. A.
N. Klaudat et al. Porto Alegre: Artmed, 2010.
Kant, I. 1765. M. Immanuel Kants Announcement of the Programme of his Lectures
for the Winter Semester 1765-1766, in Theoretical Philosophy, 1755-1770, ed.
D. Walford e R. Merbote. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
LeGuin, U. K. 1968. A Wizard of Earthsea. Neptune, NJ: Parnassus Press.
Martinich, 1996. O Ensaio Filosfico: O Que , Como se Faz. Trad. A. U. Sobral. So
Paulo: Loyola, 2002.
Murcho, D. 2002. A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. Lisboa: Pltano.
Murcho, D. 2003. O Lugar da Lgica na Filosofia. Lisboa: Pltano Editora.
Murcho, D. 2006a. Definio. In Enciclopdia de Termos Lgico-Filosficos, org. J.
Branquinho et. al. So Paulo: Martins Fontes.
Murcho, D. 2006b. Lgica Informal. In Enciclopdia de Termos Lgico-Filosficos,
org. J. Branquinho et. al. So Paulo: Martins Fontes.
Murcho, D. 2008. A Natureza da Filosofia e o seu Ensino. Educao e Filosofia
22.44:79-99.
Murcho, D. 2012a. Metafsica. In Filosofia: Uma Introduo por Disciplinas, org.
P. Galvo. Lisboa: Edies 70.
Murcho, D. 2012b. Filosofia ao Vivo. Rio de Janeiro: Oficina Raquel.
Murcho, D. e Merlussi, P. 2011. A Frmula de Barcan. Fundamento 1.2: 127-157.
Nagel, T. 1987. Uma Breve Introduo Filosofia. Trad. S. Vieira. So Paulo: WMF
Martins Fontes, 2011.
27
Plato. Alcibiades I & II. Trad. W. R. M. Lamb. Harvard, MA: Harvard University
Press, 1927.
Rachels, J. 2008. Problemas da Filosofia. Trad. P. Galvo. Lisboa: Gradiva, 2009.
Rachels, J. 2011. Os Elementos da Filosofia Moral. Trad. D. J. V. Dutra. Porto Alegre: McGraw Hill Artmed, 2013.
Russell, B. 1912. Os Problemas da Filosofia. Trad. D. Murcho. Lisboa e So Paulo:
Edies 70, 2008.
Scruton, R. 2001. Uma Breve Histria da Filosofia Moderna. Trad. E. F. Alves. Rio
de Janeiro: Jos Olympio, 2008.
Weston, A. 2000. A Construo do Argumento. Trad. A. F. Rosas. So Paulo: WMF
Martins Fontes, 2009.
Wolff, R. P. 1969. The Ideal of the University. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1999, 2.a ed.
28