Re Vista
Re Vista
4
Quadrimestral
v.2 - Junho 2009
REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC).
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COORDENAÇÃO
Inês Virgínia Prado Soares
Sandra Akemi Shimada Kishi
CONSELHO EDITORIAL
Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro
Adriana Zawada Mello Marcelo Buzaglo Dantas
Blanca Lozano Cutanda Marcus Orione Gonçalves Correia
Bruno Campos Silva Nelson Nery Junior
Carlos Alberto de Salles Oscar Vilhena
Christian Courtis Paulo Affonso Leme Machado
Daniel Sarmento Rebecca Purdom
Evanson Chege Kamau Renata Porto Adri
Everson Paulo Fogolari Sérgio Salomão Shecaira
Fabiana Saenz Solange Teles da Silva
Flávia Piovesan Tullio Scovazzi
Geisa de Assis Rodrigues Uendel Ugatti
Gerd Winter Virgílio Afonso da Silva
João Bosco Araújo Fontes Jr. Walter Claudius Rothenburg
Joaquim Herrera Flores
José Roberto Pimenta Oliveira EDITORAÇÃO
John Bernhard Kleba Darcy Rudimar Varella
Juliana Santilli Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro
Quadrimestral
ISSN 1983-1811
1. Direito 2. IEDC
C.D.U.: 340
Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278
www.iedc.org.br www.habiliseditora.com.br
SUMÁRIO 5
COLABORADORES
7
MEIO AMBIENTE E CULTURA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO – ALGUMAS
DIGRESSÕES E REFLEXÕES
Bruno Campos Silva
17
DERECHOS HUMANOS Y DIGNIDAD:
FUNDAMENTOS DE LA PROTECCIÓN DE
LAS DIVERSAS IDENTIDADES
CULTURALES
David José Geraldes Falcão
31
NÃO HÁ DIREITO FUNDAMENTAL
À IMPUNIDADE – ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A
POSSIBILIDADE DAS PRORROGAÇÕES
DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS
Douglas Fischer
39
EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
Ewerton Teixeira Bueno
45
UMA ABORDAGEM JURÍDICA DA
DITADURA BRASILEIRA
Gabriela Freire Kühl de Godoy
55
ACESSO A DOCUMENTAÇÃO
GOVERNAMENTAL E DIREITO À
MEMÓRIA E VERDADE: ANÁLISE DO
PROJETO DE LEI
Inês Virgínia Prado Soares
63 171
A POLUIÇÃO VISUAL: FORMAS DE
ENFRENTAMENTO PELAS CIDADES A LEI 11.794/2008 – A CRUELDADE
Ivan Carneiro Castanheiro CONTRA OS ANIMAIS
Paulo Affonso Leme Machado
79
CIDADANIA E DIREITO AO TRABALHO
Ivam Gerage Amorim
Discussão
97 175
SEGURANÇA ALIMENTAR NA ERA
FLORESTAS E JARDINS
BIOTECNOLÓGICA
João Carlos de Carvalho Rocha Fernanda Alves Vieira
109 177
CRIMINALIDADE DO PODER, POLÍCIA E
TUTELA PENAL DAS ATIVIDADES
IMPUNIDADE
NUCLEARES NO ÂMBITO DO ESTADO
SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO Paulo Queiroz
BRASILEIRO
José Renato Martins
179
135 COLÓQUIO “LA EVOLUCIÓN DE
DIREITO AO AMBIENTE SADIO: LA ORGANIZACIÓN POLÍTICO-
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E CONSTITUCIONAL DE AMÉRICA DEL SUR”
INTERNACIONAL Marcelo Figueiredo
Juliana Santilli
151
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
Resenha
PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO 203
PÚBLICA:O DEVER DE INFORMAR E O
LES THINK TANKS: CERVEAUX DE
DIREITO DE PROTEÇÃO À IMAGEM E
LA GUERRE DES IDÉES, DE STEPHEN
À INTIMIDADE À LUZ DA TEORIA DOS
BOUCHER E MARTINE ROYO
PAPÉIS SOCIAIS
Pedro Guimarães Pires
Luis Manuel Fonseca Pires
165
205
A INTERPRETAÇÃO DA LEI COMO A
INTERPRETAÇÃO DO CIDADÃO COMUM NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
Maria Garcia
E isso, com certeza, atinge diretamente apenas um texto autoritário, como tantos outros
nossa Federação, nossa Soberania! que marcaram a nossa experiência constitucio-
Não estamos aqui, querendo colidir opinião nal. Foi, também, uma grande frustração insti-
com exímios conhecedores de nossa língua ofi- tucional, como assinalou Waldemar Ferreira em
cial (v.g., o ilustre Prof. Dr. Evanildo Bechara), palavras que, possivelmente, terão sido as mais
mas apenas fomentar salutar debate jurídico a adequadas para traduzir o que aconteceu com
respeito de temática importantíssima ao fortale- o estado de poder da ditadura Vargas, palavras
cimento do Estado Democrático de Direito. que, por isso mesmo, merecem transcrição, ainda
que extensa: ‘Desenhou-se complexamente o
mecanismo do que se batizou – de Estado Novo.
4. Algumas digressões e reflexões Não puderam os seus artífices, por isso mesmo,
em relação à transição de nossa pô-lo em funcionamento. Não passou a carta de
1937 de engodo, destinado, pura e simplesmente,
justiça no Estado Democrático de
a disfarçar regime ditatorial em toda a amplitude
Direito do conceito. Destituída de sinceridade, aquela
carta teve existência apenas no papel. Eis por-
Cumpre colacionarmos bela passagem eri-
que o seu organismo político nunca se armou.
gida pelo ilustre Prof. Celso Lafer, em dezembro
Tudo quanto nela se planejou foi mera fantasia.
de 1981, quando da elaboração do posfácio da
Não passou de cometimento demasiadamente
grandiosa obra “A condição humana”, de Hannah
longo para que se pudesse haver como simples
Arendt: “Em The Human Condition Hannah
tentativa; mas caracterizou-se como documento
Arendt apresenta uma das mais brilhantes e
inapto, tardiamente desfeito, posto que inicial-
originais análises da natureza, do mecanismo,
mente malogrado, para que se pudesse haver
da complexidade, do «pathos» e do significado
como Constituição, que assim indevidamente
da ação. Esta análise está a serviço da esperança
se qualificou. (...).
de democracia, que é a sua mensagem maior,
pois, neste livro, Hannah Arendt mostra como Não chegou a carta de 1937, em verdade, a
ação, palavra e liberdade não são coisas dadas, adquirir foros constitucionais. Não os alcançou
mas requerem, para surgirem, a construção e a por faltar-lhe o alento que somente lhe poderia ter
manutenção do espaço público. A liberdade é vindo de ter sido elaborada pelo povo brasileiro.
um «a fortiori» da auto-revelação humana no Não resultou da observância e aprimoramento
seio de uma comunidade política no qual existe dos princípios constitucionais pelos quais ele
espaço público. A vocação da liberdade, que as- sempre se orientou e se regeu. Não surgiu dele,
segura o espaço público, exige, por isso mesmo, exprimindo-lhe as aspirações e sentimentos ní-
coragem para expôr o ser em público – coragem tida e tradicionalmente democráticos.
que nunca faltou a Hannah Arendt e sem a qual Pelo contrário, ela se desfechou sobre ou
também não se constrói democracia. Esta é a contra ele.
sua lição: uma lição de criatividade intelectual e Não ganhou corpo porque, já se disse,
coragem política, das mais oportunas na presente e em reiterar nada se perde, ele não chegou a
conjuntura brasileira.”6 homologá-la com o seu voto, expresso em ple-
Para algumas importantes digressões (nos biscito procrastinado e nunca realizado: ela lhe
idos das imposições autoritárias), lançamos foi imposta pelas forças armadas, ou com o seu
mão da preciosa obra dos ilustres Profs. Gilmar assentimento silencioso de cúmplices’”.7
Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Em continuação às nossas digressões (em
Paulo Gustavo Gonet Branco: “Vista na perspec- relação à Constituição de 1946 – pós-Estado
tiva do tempo, a Constituição de 1937 não foi Novo), para após delinearmos algumas reflexões,
6
Hannah Arendt, A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer, 10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007,
p. 352.
importante, ainda, utilizarmos o escorreito po- qualquer expediente autoritário, razão por que a
sicionamento dos precitados constitucionalistas: aprovação do estado de sítio fora reservada, com
“(...) Debruçando-se, igualmente, sobre o seu exclusividade, ao Congresso Nacional, compos-
texto, outra não é a conclusão a que chegou Mi- to, novamente, pela Câmara dos Deputados e
guel Reale, para quem a Constituição de 1946, pelo Senado Federal. No que toca ao Legisla-
conquanto mereça louvores pelos seus acertos tivo e ao Judiciário, espezinhados sob a Carta
– e. g., a melhor distribuição das competências de 1937, o texto democrático de 1946 buscou
entre a União, os Estados e os Municípios, a devolver-lhes a dignidade, pelo respeito às suas
fixação de diretrizes gerais de ordem econômi- tradicionais prerrogativas e uma equilibrada
ca ou educacional, e o significativo avanço em partilha do poder político, apesar da opinião em
delinear, além dos direitos políticos, também os contrário dos que entendem que esse modelo
direitos sociais -, nem por isso há de ser poupada acabou desequilibrando a balança em favor do
de críticas quanto ao que ele chamou de quatro Legislativo e gerando, mais tarde, fricções que
graves equívocos daquele documento político, a colaboraram para a erosão daquela lei fundamen-
saber: a) o enfraquecimento do Executivo, dei- tal. A criação de partidos políticos, em princípio,
xado à mercê do Legislativo; b) o fortalecimento foi declarada livre, vedando-se, no entanto, a
do Legislativo, mas num quadro normativo organização, o registro e o funcionamento de
anacronicamente reduzido às figuras da lei cons- partidos ou associações cujo programa ou ação
titucional e da lei ordinária; c) a criação de óbices contrariasse o regime democrático, baseado na
à intervenção do Estado no domínio econômico, pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos
o que era incompatível co a sociedade industrial fundamentais do homem”.9
emergente; e, por fim, d) a adoção do pluralismo Nestes breves rascunhos de nossa história,
partidário, sem limitações nem cautelas, o que não titubeamos em fazer referência ao impor-
levou ao surgimento da ‘política estadual’ e à tante estudo do insigne Prof. Marcelo Neves:
criação de ‘partidos nacionais’ de fachada, cujas “(...) Estabelecido que a constitucionalização
siglas escondiam meras federações de clientelas simbólica como alopoiese do sistema jurídico é
ou de facções legais”.8 um problema típico do Estado periférico, cabe,
E, ainda, citando pensamentos dos mes- por fim, uma breve referência exemplificativa ao
tres Paulo Bonavides e Paes de Andrade: “(...) caso brasileiro. Em trabalho anterior já propus
Julgando-a, favoravelmente, no entanto, Paulo uma interpretação da experiência constitucional
Bonavides e Paes de Andrade destacam, desde brasileira como círculo vicioso entre instrumen-
logo, que a Constituição de 1946 recuperou com talismo e nominalismo constitucional. Não é este
decisão o princípio federativo, que praticamente o local para uma nova abordagem interpretativa
desaparecera sob a Carta de 1937, com a entrega do desenvolvimento constitucional brasileiro.
do governo dos Estados a prepostos do poder Aqui interessa considerar, em traços gerais,
central. No plano das liberdades, em geral, ob- como apoio empírico da argumentação prece-
servam que aquela Carta declarou, solenemente, dente, a função hipertroficamente simbólica das
inviolável a liberdade de consciência e de crença, ‘Constituições nominalistas’ brasileiras de 1824,
assim como livre o exercício de cultos religiosos, 1934, 1946 e 1988. Conforme já afirmei no item
ressalvados os que fossem contrários à ordem anterior de maneira genérica, não se nega, com
pública e aos bons costumes. Mais, ainda, deixou isso, que as ‘Constituições instrumentalistas’
assente que as liberdades e garantias indivi- de 1937, e 1967/1969 tenham exercido funções
duais, de resto declaradas mais amplas do que simbólicas: a primeira, p. ex., através da declara-
as constantes, exemplificativamente, no corpo ção dos direitos sociais, que atingia apenas uma
da Constituição, não poderiam ser cerceadas por pequena parcela da população; os documentos
7
Curso de direito constitucional. 2ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 172.
8
Idem, p. 173.
9
Idem, p. 174.
suposto’) dos respectivos valores normativos tarde – da norma como um modelo ordenador
constitucionais. Nessas condições não se constrói materialmente caracterizado e estruturado. Nor-
nem se amplia a cidadania (art. 1º, inciso II) nos matividade designa a qualidade dinâmica de uma
termos do princípio constitucional da igualdade norma assim compreendida, tanto de ordenar à
(art. 5º, caput), antes se desenvolvem relações realidade que lhe subjaz – normatividade concre-
concretas de ‘subcidadania’ e ‘sobrecidadania’ ta – quanto de ser condicionada e estruturada por
em face do texto constitucional”.14 essa realidade – normatividade materialmente
E arremata com a acuidade que lhe é pe- determinada. Com isso a pergunta pela relação
culiar: “Os problemas de heterorreferência são entre direito e realidade já está dinamizada no
inseparáveis das questões concernentes à auto- enfoque teórico e a concretização prática é con-
referência do sistema jurídico ao nível constitu- cebida como processo real de decisão”.16
cional (cf. item 3 deste capítulo). O bloqueio per- As precitadas digressões e reflexões re-
manente e generalizado do código ‘lícito/ilícito’ tratam a inconteste justiça transitória em nosso
pelos códigos ‘ter/não-ter (economia) e ‘poder/ Estado Democrático de Direito.
não-poder’ (política) implica uma prática jurídi- Importante destacar que a verdade e me-
co-política estatal caracterizada pela ilegalidade. mória afiguram-se imprescindíveis ao resgate,
Quanto à constitucionalidade, as dificuldades não e, ao mesmo tempo, à afirmação de direitos
se referem apenas à incompatibilidade de certos constitucionais que, em certo momento, foram
atos normativos dos órgãos superiores do Estado indevidamente coarctados, na época do AI-5 (AI
com dispositivos constitucionais, como, p. ex., – Ato Institucional), tanto assim, que o próprio
no caso do uso abusivo das medidas provisórias Supremo Tribunal Federal (STF) teceu relevan-
pelo Chefe do Executivo; o problema não se tes comentários incisivos em relação à época do
restringe à ‘constitucionalidade do direito’, mas regime ditatorial.17
reside antes na ‘juridicidade da Constituição’,
ou seja, na (escassa) normatividade jurídica do A memória e a verdade são necessárias à
texto constitucional”.15 manutenção de toda uma reação efetiva para mu-
danças estruturais em nosso Estado de Direito.
Em introdução à relevante obra do mestre
Prof. Friedrich Müller, destaca o ilustre Prof. Tais digressões importam em revolver fatos
Peter Naumann: “(...) Deve-se chamar a atenção históricos embutidos na memória de todo cida-
ao fato de que estrutura da norma designa como dão brasileiro, que, presenciou, diante do AI-5, a
conceito operacional o nexo entre as partes con- suspensão de direitos constitucionalizados (v.g.,
ceituais integrantes de uma norma (programa da habeas corpus) e prisões indevidas.
norma – âmbito da norma) e não, e.g., as relações Agora, para tecermos importantes digres-
entre os pontos de referência da teoria tradicional sões e reflexões, convém trazer à baila repor-
do direito (como ser e dever ser, suporte fático e tagem de Tamis Parron: “A ditadura terminou
conseqüência jurídica norma e conjunto de fatos). há 20 anos e parece ser uma página virada da
Os elementos estruturais mencionados atuam história brasileira. Parece, mas não é. O regime
conjuntamente no trabalho efetivo dos juristas militar botou o país de pernas para o alto, tanto
de um modo ao qual se atribuía normatividade. no bom quanto no mau sentido, e provocou
Normatividade não significa aqui nenhuma força mudanças de fôlego que ainda hoje fazem toda
normativa do fático, tampouco a vigência de um diferença no nosso dia-a-dia. Parou no conges-
texto jurídico ou de uma norma jurídica. Ela tionamento? Lembre que foram os militares que
pressupõe a concepção – a ser explicitada mais consolidaram o modelo de transporte baseado
14
A constitucionalização simbólica. 2ª Ed., São Paulo: Martins Forense, 2007, p. 184.
15
Idem, p. 184-185.
16
Teoria estruturante do direito; tradução Peter Naumann, Eurides Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 15.
17
Notícias STF, Sexta-feira, 16 de Janeiro de 2009. “O impacto do AI-5 no Brasil no Supremo“, www.stf.jus.br. Verificar importante obra da ilustre
Profa. Maria Fernanda Salcedo Repolês Quem deve ser o guardião da constituição? Do poder moderador ao Supremo Tribunal Federal. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2008.
no carro, iniciado por Juscelino Kubitschek. mentira em relação a sua atuação nas fileiras das
Ligou a televisão e ficou orgulhoso da qualidade tropas SS da Alemanha nazista por um lado (uma
de técnica da produção brasileira? Atente para vez que ele foi visto durante vários anos como
o impulso que os governos autoritários deram a ‘consciência da Nação alemã, tão maior foi a
para o setor. Fica indignado cada vez que o decepção de seus leitores e admiradores há dois
presidente Lula assina uma Medida Provisória? anos – dentre os quais figura também o autor) e o
Não esqueça que as MPs são o velho decreto-lei trato dos Estados Unidos da América para com a
militar repaginado. cultura indígena outrora destruída por outro lado,
É difícil apontar uma área da vida brasileira teremos então o seguinte resultado: a verdade é
que não tenha sofrido influência dos governos um tema da humanidade e ao mesmo tempo um
militares. Afinal, foram 21 anos de poder exer- tema de toda e qualquer pessoa na totalidade de
cido com mão pesada. Em alguns setores, no sua precária existência individual. Assim, a ver-
entanto, as pegadas do período estão mais claras. dade permanece um tema para todas as ciências
Dívida externa, política de terras, distribuição de – sobretudo para uma ciência da cultura com-
renda, indústria automobilística e produção de preendida como uma teoria constitucional com
energia são bons exemplos disso. ‘weltbürgerlicher Absicht’ (intuito cosmopolita),
Todo balanço da ditadura acaba sendo pela qual o autor luta desde 1982”.20
negativo – afinal, foram anos de repressão e vio- Assim, em reflexão às bem laçadas pala-
lência, em que a vontade dos governados contou vras do mestre alemão, tanto a memória como a
menos que a dos governantes. Mas o tempo já verdade permanecem latentes no âmago de cada
permite separar o joio do trigo, admitindo ações cidadão brasileiro.
positivas em algumas frentes.
É tarefa delicada. No campo minado das
paixões que o período desperta, defensores e 5. Conclusão
críticos até hoje trocam farpas. Mas se os gover-
Em arremate ao exposto, sem memória e
nos militares lançaram os fundamentos da pós-
verdade, todo cidadão brasileiro por mais ignaro
graduação brasileira, de outro lado estimularam
que seja, carregará dentro de si um verdadeiro
a criação indiscriminada de cursos privados. Se
e, ao mesmo tempo, inconcebível “Estado de
geraram condições para o crescimento, deixaram
Exceção”.21
de distribuir rendas”.18
Tal constatação poderá trazer abalos irre-
Isso implica afirmar que tanto o meio
mediáveis ao meio ambiente e à cultura de nosso
ambiente como a cultura foram diretamente
país, enfim, ao próprio Estado Democrático de
conspurcados pelo regime militar.
Direito.
Na realidade, precisamos refletir em como
Memória e Verdade, título da presente co-
operacionalizar (rectius: concretizar) os diversos
letânea traduz importante temática, ainda, pouco
princípios e preceitos erigidos em nossa Consti-
explorada pelos juristas da atualidade.
tuição, sob pena de relegarmos a oblívio o Estado
Democrático de Direito.19 Portanto, é uma honra compartilhar de mais
um momento histórico em nosso país. Muito
Em sua primorosa obra, destaca o mestre
obrigado a todos!
Prof. Peter Häberle: “(...) Ao rememorarmos o
recente reconhecimento feito pelo consagrado
poeta alemão Günter Grass de uma vida em
18
“A cara e a coroa”. Ditadura no Brasil – tudo sobre o regime militar de 1964 a 1985– especial 40 anos do AI-5. Aventuras na História – tiragem
reeditada, 2008, p. 77.
19
Ver importante digressão e reflexão do mestre Prof. Peter Häberle, em sua primorosa obra “Os problemas da verdade no estado constitucional –
Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat”. Tradução de Urbano Carvelli. Porto Alegre: Safe, 2008, p. 99-103.
20
Idem, p. 12-13.
21
Ver relevante obra de Giorgio Agaben, in Estado de exceção; tradução de Iraci D. Poleti. 2ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2007 (Estado de sítio).
1. Introdución
*Licenciado em Direito; Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca; Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca;
professor de Direito da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal); Coordenador da licenciatura em So-
licitadoria e da pós-graduação em Solicitadoria de Execução da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Castelo Branco (Portugal).
1
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en Persona y Derecho, nº 38, 1998, p. 120.
2
Esta formulación se encuentra en su obra Política:Cfr.Aristóteles, Política, I, 2, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid,
Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 4.
3
Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton
University Press, 1994, pp. 32-33.
4
Para Aristóteles “la razón por la cual el hombre, es, más que una abeja o cualquier animal gregario, un animal social es evidente: la naturaleza,
(...), no hace nada en vano, y el hombre es el único animal que tiene palabra” y añade que “(...) la palabra es para manifestar lo conveniente y lo
dañoso, lo justo y lo injusto (...)”- Cfr. Aristóteles, Política, edición bilingüe y traducción de J. Marías y M. Araujo, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 4.
5
Cfr. Charles Taylor, Sourses of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p. 36.
6
Cfr. Immanuel Kant, Fundamentación de la Metafísica de las Costumbres, edición de Luis Martínez de Velasco, 11ª ed., Madrid, Espasa-Calpe,
1995, p. 104.
condicional, hay que, a su vez, respetar el grupo medidas en el sentido de protegerlos y, al mismo
social en el cual se integra, una vez que, es en tiempo se instituyen organismos internacionales
el seno de ese grupo social donde el hombre se con el intento de reaccionar a los atentados contra
realiza. “En el momento en que el hombre es esos mismos derechos.
concebido como ‘ser de cultura’, (...), animal Este movimiento de toma de conciencia
social por naturaleza, el respeto del individuo de la importancia que representa el respeto por
no puede dejar de abarcar el respeto de la cultura la dignidad humana, ha adquirido su momento
que le constituye”7. principal al final de la segunda Guerra Mundial.
El hombre, como hemos visto, debe ser La humanidad trataba de iniciar una nueva era, en
respetado de forma incondicional. Pero, otra que la convivencia entre pueblos se basase en el
cuestión surge: ¿Cuál es el fundamento de ese respeto de la dignidad. Por lo tanto procedían los
deber de respeto incondicional? Estados en la Conferencia de San Francisco de
Antes de aportar nuestra posición en cuanto 1945, al aprobar la resolución de “preservar a las
al asunto clave de este ensayo, es ineludible generaciones venideras del flagelo de la guerra
contestar a esta pregunta, una vez que, en su con- (...), a refirmar la fe en los derechos fundamen-
testación reside la base de la argumentación, que tales del hombre, en la dignidad y el valor de la
a su vez, nos permitirá obtener una repuesta a la persona humana, en la igualdad de derechos de
pregunta principal, la de sí deben las identidades hombres y mujeres (...)”.
culturales ser protegidas. Sin embargo, en los tiempos que corren
El fundamento de ese deber incondicional es evidente la paradoja alrededor de la idea de
de respeto del hombre es su dignidad. O en otras dignidad humana. Mucho se recurre a ella y,
palabras la dignidad se traduce en la legitimidad al mismo tiempo, se atenta mucho contra esa
del hombre para exigir un respeto incondicional dignidad. Por ello creemos que el gran reto
de su persona. para este inicio de siglo es el de instrumentar
Resulta pertinente dedicar una atención procedimientos eficaces para una protección
especial a la problemática de la dignidad huma- de los derechos humanos. Por lo tanto, como
na. Problemática en el sentido de que se discute subraya Norberto Bobbio “no se trata tanto de
mucho, por un lado, si se puede hablar de una saber cuáles y cuántos son estos derechos, cuál
dignidad humana universal o, si se trata de una es su naturaleza y su fundamento, si son derechos
expresión conceptualmente interpretable y, por naturales o históricos, absolutos o relativos, sino
lo tanto, relativa. Y, por otro lado, si constituye, cuál es el modo más seguro para garantizarlos,
de hecho, el fundamento de los derechos hu- para impedir que, a pesar de las declaraciones
manos. solemnes, sean continuamente violados”8.
No obstante, sin las referidas declaraciones
o pactos solemnes, sería muy difícil desarrollar
1.2. Sobre la dignidad humana
una conciencia de respeto hacia la dignidad hu-
En los últimos años el sentido de concien- mana. La Declaración Universal de los Derechos
cia de respeto hacia la dignidad de la persona del Hombre, constituye un marco imprescindible
humana ha adquirido un relieve importante. en la historia contemporánea en este sentido. Su
Prueba de tal relieve, es la multiplicación de de- texto alude a una dignidad humana de carácter
claraciones, conferencias, pactos que reconocen universal9. Ha sido el culminar de un largo pro-
los derechos básicos de la persona y que crean ceso de luchas, no siempre pacíficas, reivindica-
7
Cfr. Emilio Lamo de Espinosa, “Fronteras Culturales”, en Culturas, Estados, Ciudadanos. Una aproximación al multiculturalismo en Europa,
Madrid, Alianza, 1995, p. 42.
8
Cfr. Norberto Bobbio, “Presente y Porvenir de los Derechos Humanos”, en Anuario de Derechos Humanos, nº1, Madrid, 1981, p. 9.
9
“Considerando que el reconocimiento de la dignidad inherente a todos los miembros de la familia humana y de sus derechos iguales e inalienables
constituye el fundamento de la libertad, de la justicia y de la paz en el mundo”; “Todos los seres humanos nacen libres y iguales en dignidad y en
derechos”, en la Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución
217-A (III) de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del artículo 1.
ciones, sufrimientos y que, a su vez, ha robado situaciones concretas, y aún más indiscutibles,
la vida a muchos seres humanos. podemos enumerar un sinfín de escenarios que
Actualmente, y como antes nunca, se complementan nuestra idea. Por ejemplo, en el
reclaman y exigen valores como la libertad y mundo musulmán las mujeres siguen siendo
la igualdad, el derecho a la vida, entre muchos víctimas de legislaciones de otras épocas. Son, a
otros10. Todas estas exigencias tienen un funda- su vez, consideradas ciudadanas de segunda clase
mento casi exclusivo en la dignidad de la perso- donde, aparte de otros, les privan del derecho de
na. Vivimos en una época en la que la apoteosis voto (aunque, por ejemplo, en Kuwait voten).
verbal y documental de la dignidad humana es Otros ejemplos como el de los Laogai11 en China
una realidad, ya que no su praxis. o el de los genocidios sufridos por los bosnios de
Los ataques teóricos a los derechos huma- exYugoslavia y por los tutsis de Rwanda que, a
nos han sido perpetrados, fundamentalmente, su vez, han conducido a la creación del Tribunal
por diversas doctrinas filosóficas, de las cuales Penal Internacional y del Tribunal Penal para
destacan, por su mayor vehemencia, el exis- Rwanda12, ilustran bien algunas de las innume-
tencialismo, el estructuralismo, o las doctrinas rables faltas de respeto por la dignidad humana.
relativistas. El existencialismo sostiene que el En opinión de Robert Spaemann, los
hombre es un ser para la muerte, un condenado ataques a la dignidad humana en el mundo con-
a la libertad, y por lo tanto un absurdo; a su vez, temporáneo, resultan de la configuración de la
los estructuralistas declaran que la muerte del propia civilización, que a pesar de sus progresos
hombre es ineludible y se acerca ; los relativistas presenta “una poderosa tendencia a la completa
sostienen que a diferentes culturas conciernen di- eliminación de la idea misma de dignidad”13. La
versas formas de concebir la naturaleza humana búsqueda de la verdad exige siempre esfuerzo
y de proporcionarle una tutela adecuada. Por lo y compromiso. Y, resulta más fácil y cómodo
tanto, no existirían principios valorativos o una el abandono de cualquier responsabilidad que
moral crítica universales y válidos para todas implique esa búsqueda. La manera de pensar
las culturas pues a distintas culturas conciernen actual está corrompida por la idea de lo prác-
distintas formas de concebir valores morales. tico. Mientras siga este panorama “el abolengo
En lo que concierne a los ataques, en térmi- radical de todos y cada uno de los componentes
nos prácticos llevados a cabo contra la dignidad de nuestra estirpe seguirá viéndose sometido a
humana, podemos decir que se registran muchos las ambigüedades de un comportamiento que, a
y muy evidentes. Echando una simple mirada a la par, ensalza y envilece”14.
las normas de países considerados desarrollados, Acabamos de referir, obviamente, los as-
constatamos que existen normas que legitiman, pectos más perversos y negativos de la realidad
por ejemplo, la pena de muerte. En cuanto a contemporánea. Realidad donde, a pesar de todo,
10
“La efemérides de 1948 se encuentra cortejada y sostenida por todo un cúmulo de manifestaciones y acontecimientos: movimientos en defensa de
la igualdad mujer-varón y de todo el tipo de minorías; promoción pública de los disminuidos físicos y mentales; declaración de los derechos de la
mujer, del niño, de la familia y del joven, con sus respectivos años internacionales..., y un nutridísimo etecétera, que resultaría casi interminable”.
Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p. 16.
11
Laogai significa reforma a través del trabajo. En China la idea de rehabilitación esta siempre presente. La rehabilitación mental del individuo recluso
constituye uno de los fundamentos de su política de encarcelamiento. Las prisiones son muchas veces campos de trabajo forzado, los Laogai. Desde
su creación en la China maoísta de los años 50, se estima que por lo menos 50 millones de chinos hayan sido condenados a vivir en esos campos.
Actualmente, se calcula que 6 a 8 millones de personas, incluso mujeres y niños, aún sufren en los Laogai. Las informaciones sobre este sistema
de prisión son muy escasas, las autoridades niegan su existencia, los únicos datos disponibles son los testimonios de exreclusos.
12
En 1993 y 1994 la ONU ha creado, respectivamente el Tribunal Penal Internacional y el Tribunal Penal para el Rwanda. El primero con sede en
Haya, y el segundo en Arusha, Tanzania, Kigali, la capital del Rwanda y Nairobi. El reto del TPI seria el de juzgar los crímenes cometidos en
exYugoslavia desde 1991. A su vez, el TPR tenía el reto de juzgar los crímenes perpetrados en el Rwanda durante el año de 1994. Con todo, la
eficacia de estos tribunales, ha sido contestada desde su creación. En primer lugar, porque los Estados son desresponsablizados de la obligación
de buscar, prender y juzgar en sus tribunales internos a los autores de los crímenes. El segundo motivo deriva del hecho de que los Estados no
presten a los tribunales internacionales auxilio material y financiero suficiente. En el TPR los procesos apenas han sido iniciados en Diciembre de
1996. En Julio de 1997, el TPI había realizado 76 acusaciones, al paso que el TPR había hecho lo mismo.
13
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 30.
14
Cfr. Tomás Melendo & Lourdes Millán-Puelles, Dignidad: ¿Una Palabra Vacía?, Navarra, EUNSA, 1996, p.26.
existen paralelamente referencias positivas del tatorios contra ese algo especialmente valioso
respeto y enaltecimiento de la dignidad humana, característico de la humanidad”16.
como también hemos planteado. Aunque se puedan encontrar alusiones a la
A lo largo de estas últimas líneas, nos idea de dignidad humana en los pensamientos
hemos referido reiteradamente al término dig- antiguo y medieval17, es Kant el que ha conceptu-
nidad. Resulta, a su vez, imprescindible, en este ado, por primera vez de forma rigurosa, la idea de
contexto, aclarar su concepto y fundamento. dignidad. Sin embargo, antes de avanzar con los
análisis de las aportaciones Kantianas y de otros
1.2.1 Sobre el concepto y el fundamento de autores con bastante relevancia, procedemos a
la dignidad una explicación de los distintos significados que
la idea de dignidad puede asumir y que pueden
No resulta fácil conceptuar y fundamentar,
plantear algunos problemas.
exhaustivamente, la idea de dignidad a través de
una simple definición, pues, “ante los intentos de Dignidad representa un término vago, una
definición, la doctrina no tiene el menor recelo vez que resulta difícil determinar su alcance, o
en confesar que el término se le escapa, que las sea, determinar cuales son los límites de la pro-
formulaciones generales son insatisfactorias, tección, como es por ejemplo el caso de no poder
que la dignidad es una noción con un cuerpo establecerse con rigor a partir de qué duración
semántico relativamente poco preciso”15. una pena de privación de la libertad constituye un
Lo que pretendemos en este subapartado atentado contra la dignidad. Este hecho, al cual
es intentar analizar el significado de la idea de se añade una pluralidad de interpretaciones que
dignidad y demostrar la conexión que existe entre se han dado a la idea de dignidad, contribuye al
la misma y los derechos humanos, o sea, que es un escepticismo de muchos autores sobre una
a través del respeto de los derechos básicos del posibilidad de encontrar un denominador común,
individuo que se traduce la mejor manera de un consenso que pueda tener un papel importante
respetar las exigencias de la dignidad. en Derecho e incluso de convertirle en una ex-
Realizaremos un balance de aportaciones presión destituida de contenido18. Por ejemplo,
de algunos destacados autores sobre lo que es la muchas veces se utiliza la palabra dignidad no
dignidad y cuál es su razón de ser, terminando solo para seres humanos; cuando se afirma que
con nuestra propia postura sobre lo que puede determinada postura política ha atentado contra
significar dignidad. la dignidad de determinado Estado; o, cuando
se habla de la dignidad de la profesión de juez.
En una primera acepción, la idea de
dignidad, nos remite casi inmediatamente a la En determinados casos, “se recurre a la idea
existencia de algo valioso intrínseco a todos los de dignidad para destacar la existencia en esas
seres humanos que no entra en el campo de lo distintas realidades de una propiedad valiosa que
disponible por parte de otras personas o por los merece algún tipo de protección pues contribuye
poderes públicos y, como explica Amuchastegui, a dotarles de sentido”19.
“permite calificar como inhumanos- y lógica- En realidad, nuestra opinión es que la idea
mente inmorales- los comportamientos aten- de dignidad desempeña un papel fundamental
15
Cfr. Jesús González Pérez, La Dignidad de la Persona, Madrid, Civitas, 1986, p.111.
16
Cfr. Jesús González Amuchastegui, Autonomía, Dignidad y Ciudadanía: Una Teoría de los Derechos Humanos, Valencia, Tirant lo Blanch, 2004,
p. 417.
17
En el pensamiento estoico, estaba presente la idea de dignidad. Se caracterizaba como un ideal al cual los seres humanos se podían acercar siem-
pre que usasen sus capacidades racionales en su vida. En el pensamiento cristiano medieval, en Tomás de Aquino, se destaca la idea de dignidad
en especial como la capacidad de los seres humanos de conocer y seguir las leyes divinas naturales y universales. Para profundizar este asunto
Cfr. Gregorio Peces-Barba, La Dignidad de la Persona desde la Filosofía del Derecho, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas,
Madrid, Dykinson, 2002.
18
Semejante razonamiento presenta Eusebio Fernández García cuando afirma que “(...) la frecuencia en el uso del concepto dignidad humana o dig-
nidad de la persona y la contundencia de los argumentos que la utilizan va acompañada de una patente imprecisión, hasta el punto de que se corre
el riesgo de convertirla en una expresión casi vacía de contenido”. Cfr. Eusebio Fernández García, Dignidad Humana y Ciudadanía Cosmopolita,
en Instituto de Derechos Humanos “Bartolomé de las Casas”, nº 21, Madrid, Dykinson, 2001, pp. 18 y 19.
19
Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 420.
en el campo de la moral y del derecho o, por lo fines todo tiene o bien un precio o bien una
menos lo debería desempeñar en el caso de este dignidad. Aquello que tiene un precio puede
último. Con el objetivo de aligerar la tendencia ser sustituido por algo equivalente; en cambio,
escéptica actual en cuanto al significado del tér- lo que se encuentra por encima de todo precio
mino “dignidad” y, además de intentar demostrar y, por tanto, no admite nada equivalente, eso
que puede existir un denominador común en lo tiene una dignidad. Aquello que se refiere a las
que concierne a esta idea, hemos recurrido a inclinaciones y necesidades del hombre tiene un
los planteamientos de Gewirth20 que, a su vez, precio de mercado; aquello que, sin suponer una
procede a la quiebra del concepto de dignidad en necesidad, se conforma a cierto gusto, es decir, a
dos. El primero empírico y el segundo intrínseco una satisfacción producida por el simple juego,
y absoluto. En cuanto al primero, se refiere a cua- sin fin alguno, de nuestras facultades, tiene un
lidades tales como la compostura, el respeto o la precio de afecto; pero aquello que constituye la
confianza, características en las que se manifiesta condición para que algo sea fin en sí mismo, eso
la personalidad de determinado individuo. En no tiene meramente un valor relativo o preciso,
esta acepción dignidad no es más que un rasgo sino un valor interno, esto es, dignidad”22. De
relativo y circunstancial y puede o no estar pre- la definición Kantiana, deducimos que toda la
sente en la persona. En suma, no constituye una persona humana es merecedora de respeto in-
característica universal del individuo. Por otro condicional y consideración, una vez que ostenta
lado, en cuanto al segundo concepto, dignidad un valor interno, la dignidad, que la torna única
será aquella característica intrínseca al individuo e insustituible, constituyendo la condición para
y, a su vez, absoluta, y refleja una igualdad entre que el hombre sea fin en sí mismo. O, con otras
todas las personas. Gewirth define la segunda palabras, el hombre es un fin en sí mismo porque
acepción de dignidad como un determinado posee una dignidad. Añadiendo a esta afirmación
valor perteneciente a todos los humanos como la segunda fórmula del imperativo categórico
tales de una forma igual, estando constituido por Kantiano, que dice, “Obra de tal modo que uses
determinados aspectos intrínsecamente valiosos a la humanidad tanto en tu persona como en la
de los seres humanos, y se presenta como “un persona de cualquier otro siempre a la vez como
fin, nunca meramente como medio”23, obtene-
rasgo necesario –no contingente- de todos los
mos un refuerzo de la idea de que toda persona
seres humanos, permanente e inalterable, no
es merecedora de respeto. O sea, siendo el ser
transitorio ni intercambiable”21.
humano el fin, ningún otro fin puede legitimar un
Hecha esta breve distinción, pasamos a tratamiento a un ser humano incompatible con
continuación al análisis de un conjunto de de- esa misma naturaleza de fin que todos poseemos.
finiciones del termino dignidad proporcionado El ser humano es siempre sujeto y nunca objeto.
por distintos autores. Empezamos por Kant, que Así, Kant afirma que “(...) en el orden de los fi-
como hemos señalado anteriormente, ha sido el nes, el hombre (y con él todo ser racional) es fin
primer autor en conceptuar de forma rigurosa en sí mismo, es decir no puede nunca ser utilizado
dignidad. sólo como medio por alguien (ni aun por Dios),
sin al mismo tiempo ser fin; que, por tanto, la
humanidad, en nuestra persona, tiene que sernos
1.2.1.1. La dignidad según Kant sagrada, es cosa que sigue ahora de suyo, porque
Kant en su obra Fundamentación de la el hombre es el sujeto de la ley moral, por con-
Metafísica de las Costumbres, define digni- siguiente, también de lo que es en sí santo, de lo
dad de la siguiente forma: “En el reino de los que permite llamar santo a todo lo que esté de
20
Cfr. Alan Gewirth, “Human Dignity as the Basis of Rights”, en Michael J. Meyer y William A. Parent (eds.), The Constitution of Rights. Human
Dignity and American Values, Ithaca and London, Cornell University Press, 1992, pp. 11 y 12.
21
Ibidem, p. 12.
22
Cfr. Immanuel Kant, op. cit., p. 112.
23
Ibidem, p. 104.
acuerdo con ello. Pues esta ley moral se funda lítica de la dignidad igualitaria se basa en la idea
en la autonomía de su voluntad libre (...)”24. En de que todos los seres humanos son igualmente
esta citación se plasman las aportaciones básicas dignos de respeto (...) lo que se destaca como
del significado kantiano de dignidad. En primer valioso es un potencial humano universal, una
lugar, la vinculación del carácter del ser humano capacidad que todos los seres humanos compar-
como fin en sí mismo con su racionalidad. En ten. (...) Este potencial (...) es lo que asegura que
segundo lugar, la conexión entre la sacralidad de toda persona merece respeto. Más aún, nuestro
los seres humanos con su condición de sujetos sentido de la importancia de tal potencialidad
morales con autonomía y capaces de imponerse tiene un alcance tan vasto que llegamos a exten-
restricciones morales. der esta protección incluso a personas que por
Por otro lado, los seres humanos, sean cua- alguna circunstancia son incapaces de realizar su
les sean sus actos, nunca pierden su capacidad de potencial de modo normal-por ejemplo, personas
actuación moral, siendo que no se puede juzgar discapacitadas o en coma-”27. En la aportación
a las personas solamente por sus actos. Como kantiana y en la de Taylor, constatamos que el
explica Kant25 existe el sujeto moral y el sujeto denominador común reside en el hecho de que
empírico que no coinciden exhaustivamente el el ser humano posee una cualidad que le hace
uno con el otro, no que sean dos sujetos distin- merecedor de respeto. Kant la define como “un
tos, pero que el sujeto moral es el sujeto en su valor interno”, mientras que Taylor hace alusión
rectitud. O sea, el sujeto moral no debe quedar a un “potencial humano universal”.
reducido a sus expresiones empíricas; como ex- Para Martínez-Pujalte, “la dignidad huma-
plica con claridad Javier Muguerza, ni siquiera al na radica en la capacidad de entender y de querer,
peor criminal se le podría reducir a sus conductas y, en consecuencia, de conocer la moralidad de
evidentes, una vez que éstas no posibilitan una los actos y de actuar moralmente”28.
percepción de las motivaciones y intenciones La cualidad de seres inteligentes y dotados
más ocultas, hecho que constituye una fuerte de voluntad es, ineludiblemente, aquella que nos
razón para seguir considerándole sujeto moral, distingue de los demás seres no humanos. Esa
fin en sí mismo26. cualidad se traduce en la capacidad de juzgar y
Concluyendo, Kant reconoce en todos los proceder moralmente y, a su vez, “siendo ésta la
seres humanos la presencia de algo intrínseco diferencia esencial entre el hombre y los seres
y valioso, que no tiene precio, en definitiva de no humanos, debe ser también el motivo de la
una dignidad, hecho que constituye la condición peculiar dignidad humana”29. Sin embargo, el
para que todo ser humano sea un fin y nunca un profesor Pujalte, siguiendo las enseñanzas de
medio. Jesús Ballesteros30, sostiene que al fundamentar
la dignidad humana apenas en el carácter de
autoconsciencia y libertad del hombre, se puede
1.2.1.2 La dignidad humana (aportaciones correr el riesgo de exclusión de miembros de la
relevantes) familia humana que no tengan tales característi-
En una línea de razonamiento semejante a cas31. Para salvaguardar este problema, Martínez-
la kantiana, Charles Taylor sostiene que “La po- Pujalte32, recurre al concepto de “potencialidad”
24
Cfr. Immanuel Kant, Crítica de la Razón Práctica, Trad. de Emilio Miñana y Villagrasa y Manuel García Morente, Madrid, Espasa-Calpe, 1975,
p. 184.
25
Ibidem, pp. 126 y 127.
26
Cfr. Javier Muguerza, “La alternativa del Disenso. En torno a la Fundamentación Ética de los Derechos Humanos” en Javier Muguerza y otros, El
Fundamento de los Derechos Humanos, Madrid, Debate, 1989, p. 49.
27
Cfr. Charles Taylor, “The Politics of Recognition”, en A. Gutmann, Multiculturalism. Examining the Politics of Recognition, Princeton, Princeton
University Press, 1994, pp. 41 y 42.
28
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.
29
Ibidem.
30
Cfr.Jesús Ballesteros, “Derechos Humanos: ontología versus reduccionismos”, en Persona y Derecho, nº 9, 1982.
empleado por Conklin 33. Para Conklin “la de cobre en el sistema nervioso; y así sucesiva-
humanidad común a todas las personas es su mente. Algunas de estas condiciones pueden ser
potencialidad”, una vez que, “cada persona es tratadas y el daño de las capacidades racionales
una potencialidad abierta en el proceso de llegar ser evitado; otras, hasta este momento, escapan
a ser”34. Concluye Martínez-Pujalte que la digni- a nuestro desarrollo médico, como el síndrome
dad humana tiene su fundamento en la “potencia- de Down (mongolismo). Acerca de éste último
lidad de ser autoconsciente y libre”, siendo que hay una gran cantidad de falsa información;
“el atributo que basta para identificar al hombre muchas de las víctimas de este síndrome pueden
concreto como portador de tal dignidad no es desarrollar sus capacidades racionales más allá
la presencia real y efectiva de las capacidades de lo que en otros tiempos pudiera hacerlo un
o habilidades correspondientes a un desarrollo enfermo no tratado. Pero en cualquier caso no
psicológico normal, sino la potencialidad, en descubriremos ningún tratamiento si adoptamos
definitiva a todo hombre, incluso si todavía no ha la política de abortar niños diagnosticados antes
nacido o si por razones fisiológicas se halla pri- de nacer con síndrome de Down, o envenenán-
vado fácticamente de tales habilidades”35. Para dolos o dejándolos morir de hambre después de
comprender perfectamente lo que significa “po- nacer, política adoptada por muchos doctores
tencialidad” y, a su vez, constatar que pertenece ingleses. La imposibilidad de alterar la cons-
a todos los hombres, no debemos “confundir titución genética responsable del defecto no es
las habilidades características con la racionali- relevante; otros defectos genéticos igualmente
dad radical de la que aquellas surgen, lo cual el inalterables son bastante compatibles con un
doctor Anthony Kenny ha caracterizado como el completo desarrollo intelectual si se adopta el
poder de adquirir poderes. Es esta racionalidad régimen adecuado”36.
radical lo esencial en el hombre y no creo que Para Robert Spaemann, la dignidad huma-
haya ningún motivo para negar su presencia en na es siempre “la expresión de un descansar-en-
ningún tipo de animal humano. Este poder de sí-mismo, de una independencia interior, y no
adquirir poderes racionales, por supuesto, puede como una compensación de debilidad, (...), como
ser impedido por factores fisiológicos; pero aun una expresión de fuerza, (...). Sólo el animal
cuando estas circunstancias que impiden sean fuerte nos parece poseedor de dignidad, pero sólo
innatas no tenemos ningún derecho a concluir cuando no se ha apoderado de él la voracidad.
la ausencia de racionalidad esencial. El creti- Y también sólo aquel animal que no se caracte-
nismo debido al funcionamiento defectuoso de riza fisonómicamente por una orientación hacia
la glándula tiroides por mucho tiempo supuso la mera supervivencia”37. Según Spaemann la
imbecilidad irremediable. Existen otras condi- dignidad constituye un bastarse a sí mismo. Sin
ciones semejantes, una incapacidad congénita embargo, una dignidad que sea fundamentada en
para metabolizar fenilananina que diagnosticada una supremacía de los miembros de nuestra espe-
fácilmente puede ser tratada adoptando una dieta cie, no nos distinguirá de los demás seres vivos,
libre de esta sustancia; un error congénito en el una vez que estos también se consideran fines en
metabolismo del cobre que no se haya descubier- sí mismos. “No necesita ninguna demostración
to puede conducir a una concentración venosa el hecho de que algo es para sí mismo su propio
31
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 92.
32
Cfr. Ibidem.
33
Cfr. William E. Conklin, In Defense of Fundamental Rights, Alphen, Sijthoff & Noordhoff, 1979.
34
Cfr. William E. Conklin, op. cit., p. 199, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en op. cit.,
p. 91.
35
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos como Derechos Inalienables”, en Jesús Ballesteros, Derechos Humanos: Concepto,
Fundamentos, Sujetos, Madrid, Tecnos, 1992, p. 93.
36
Cfr. Peter Geach, “El hombre es “animal racional”: acerca de una definición”, Ponencia presentada a las XXV Reuniones Filosóficas organizadas por
la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Navarra, Pamplona, 1988, p. 6, en Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Los Derechos Humanos
como Derechos Inalienables”, en op. cit., pp. 92 y 93.
37
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en Persona y Derecho, nº19, 1988, p. 18.
y último fin y que no puede ser convertido por y personales. Las primeras son expresión de una
otro en un mero medio para un fin totalmente responsabilidad que determinados individuos
extraño. El ratón es también un fin último para tienen ante los demás, constituyen una dignidad
sí mismo, pero esto no es así para el gato. Y que específica. “Hay una dignidad del funcionario,
un hombre pagaría cualquier precio para vivir no del juez, del profesor, del maestro”41. En este
es para el león ningún motivo para dejarle con caso concreto la dignidad se puede perder. Por
vida. Todos los intentos de entender únicamente otro lado, las disconformidades personales
de este modo el carácter de fin en sí mismo del tienen como fundamento el diferente grado de
hombre-que el hombre es la realidad terrena moralidad de los seres humanos. El hombre “(...)
más alta para el hombre, el fin más alto para sí cuanto más entregado a su deseo o fijado en sus
mismo- no aciertan con el concepto específico intereses, cuanto menos distanciado esté de sí
de dignidad humana”38. El hombre es un fin en mismo, tanto menos dignidad posee”42.
sí mismo y no apenas un valor para sí mismo. Y,
Después de esta reunión de significativas
solamente desde este punto se puede conferir al
aportaciones acerca del concepto de dignidad,
concepto de dignidad una dimensión ontológica.
parece claro que la más importante ha sido la
La cuestión que surge es la siguiente: ¿”dónde
kantiana. Todas las otras han seguido su línea de
reside entonces la distinción de principio entre el
razonamiento añadiendo, a su vez, un apéndice
carácter de fin en sí mismo de todo lo que es y el
u otro.
carácter específico de fin en sí mismo que señala-
mos como dignidad humana inviolable?”39. Para concluir, es imprescindible hacer un
resumen de las partes más significativas de lo
La distinción, como explica Spaemann,
reside en el hecho de que únicamente los seres que se ha dicho, a través del cual intentaremos
humanos poseen la capacidad de comprender que el concepto de dignidad quede, a pesar de
las relaciones teleológicas en las cuales están su complejidad, aclarado.
externamente implicados. O con otras palabras, Kant en Fundamentación de la Metafísica
el hombre tiene la capacidad de no encerrarse de las Costumbres escribió que la dignidad
solamente en su propio ser. “El hombre no remite humana es un valor interno. Una cualidad que
necesariamente todo el entorno a sí mismo, al torna a la persona única e insustituible siendo, a
propio deseo; puede también caer en la cuenta su vez, lo que constituye la condición para que la
de que él mismo es también entorno para otros. persona sea fin en sí misma y, por lo tanto mere-
Precisamente en esta relativización del propio yo cedora de un respeto incondicional. Para Charles
finito, de los propios deseos, intereses y objeti- Taylor la dignidad es producto de un potencial
vos, se dilata la persona y se hace algo absoluto. humano universal compartido por toda la familia
Se hace inconmensurable. Puede ponerse a sí humana. Y es con base en este potencial que todo
mismo en servicio de algo distinto de sí, hasta el el hombre merece ser respetado. En semejante
sacrificio del mismo”40. El ser humano es un fin línea de razonamiento, Martínez-Pujalte sostiene
en sí mismo absoluto, pues está dotado de una que la clave para comprender el concepto de
moralidad potencial y, como tal, le corresponde dignidad reside precisamente en su fundamento.
la dignidad humana. Martínez-Pujalte, para fundamentar la dignidad
Sin embargo, la afirmación de que todos los añadió a las características (racionalidad y vo-
hombres comparten una dignidad, no significa luntad), que distinguen a los humanos de los no
que todos compartan el mismo grado de digni- humanos y que les permite juzgar moralmente, el
dad. O sea, hay disconformidades. Spaemann término potencialidad (la posibilidad de venir a
clasifica estas disconformidades en constitutivas ser autoconsciente y autónomo), salvaguardando
38
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 20.
39
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 22.
40
Ibidem.
41
Cfr. Robert Spaemann, “Sobre el Concepto de Dignidad Humana”, en op. cit., p. 23.
42
Ibidem.
de este modo a las personas que por determinada derecho humano. Sin embargo, es la razón de ser
razón no poseen tales características, confiriendo de lo que puede llamarse derechos humanos, que
al concepto de dignidad un carácter universal. deben ser vistos como un medio de actualización
Finalmente, Spaemann sostiene que la diferencia de la dignidad.
entre el carácter de fin en sí mismo de todo ser La dignidad, no es más que el criterio a
vivo y, el carácter específico de fin en sí mismo través del cual se atribuyen “(...) unos derechos
que se señala como dignidad humana reside en que, a título de derechos humanos, se asignan al
el hecho de que el ser humano posee una mora- hecho mismo de ser hombre, independientemen-
lidad potencial. te de cualidades tales como el rango social, la
Todas estas aportaciones nos permiten fuerza física, intelectual o moral, las virtudes y
avanzar con una definición de dignidad humana. talentos por los que los hombres difieren unos de
Dignidad humana será aquella cualidad que nos los otros, y la elevación de esos derechos al rango
hace merecedores de un respeto incondicional de principios fundamentales de la legislación y
y nos confiere el estatuto de fin en nosotros del orden social”45.
mismos en razón de nuestra racionalidad y El principio de la dignidad humana juega
voluntad potencial, que a su vez, nos permiten un papel determinante a la hora de fundamentar
actuar moralmente. todos los derechos humanos.
La deducción lógica que puede llevarse
a cabo del principio de la dignidad es simple
1.2.2 Dignidad: el fundamento de los derechos y, como afirma Amuchastegui, “es que todos y
humanos cada uno de los seres humanos son valiosos en
“Considerando que el reconocimiento de sí mismos, gozan de un carácter único, insusti-
la dignidad inherente a todos los miembros de tuible e incomparable, disfrutan de una dignidad
la familia humana y de sus derechos iguales que, como Kant decía, no tiene precio, pues no
tiene equivalente y no es susceptible de racional
e inalienables constituye el fundamento de la
intercambio. En esta idea han insistido todas las
libertad, de la justicia y de la paz en el mundo”
teorías de los derechos humanos, y todas aquellas
(…) y “Todos los seres humanos nacen libres y
concepciones morales de signo individualista
iguales en dignidad y en derechos”43: En estos
que hacen de la separabilidad e independencia
dos trechos de la Declaración Universal de los moral de las personas un elemento nuclear de
Derechos del Hombre se hace alusión a una las mismas”.46
dignidad humana universal. Los derechos del
La única forma de impedir que los indivi-
hombre son compartidos igualmente por toda la
duos sean tratados como medio es a través de la
familia humana, una vez que todos comparten
garantía de un conjunto de derechos, los derechos
una cualidad común, la dignidad. “Una funda-
humanos. La dignidad, implica un conjunto de
mentación típica, y bastante acertada, para los
atributos que confieren a todos los miembros
derechos humanos (...) es que tenemos derechos de la familia humana un estatuto especial que
porque como seres humanos tenemos lo que debe de ser garantizado, o sea, todos los seres
a veces se ha denominado como ‘la dignidad humanos tienen derecho a ser titulares de dere-
humana’ “44. chos humanos porque solamente así se pueden
El concepto de dignidad potencial, no indi- satisfacer las exigencias de la dignidad. O, como
ca inmediatamente un determinado y específico afirma Muguerza, el primer derecho humano al
43
Cfr. Declaración Universal de los Derechos del Hombre, adoptada y proclamada por la Asamblea General de la ONU en la resolución 217-A (III)
de 10 de Diciembre de 1948, respectivamente del preámbulo y del articulo 1.
44
Cfr. Juha-Pekka Rentto, “Crepúsculo en el Horizonte de Occidente ¿El ocaso de los Derechos Humanos Universales?”, en Persona y Derecho,
nº38, 1998, p. 173.
45
Cfr. E. Levinas, Entre Nous. Essais sur le penser-a-l´autre, Paris, Bernard Grasset, 1991. (Trad. de J., L., Pardo: Entre Nosotros. Ensayos para
pensar en el otro, Valencia, Pre-Textos, 2001, p. 243).
46
Cfr. Jesús González Amuchastegui, op. cit., p. 432.
la cual se conocen unos derechos que resultan de humanos conduce a que su concepto se vacía
exigencias para una vida digna es, como explica de un contenido racional. Como explica Roberto
John Finnis50, la razón práctica. Es con base en Andorno, para algunos autores, la clave para
el conocimiento de los bienes esenciales, que impedir esta inflación, reside en la exigencia del
se manifiestan determinantes en el desarrollo cumplimiento de requisitos formales. O sea, para
del ser humano como ser digno, que podemos que se establezca el tránsito de la pretensión al
comprender cuales son los derechos humanos derecho, es necesario que esa pretensión tenga
básicos. un determinado titular, un objeto preciso y po-
“La experiencia ética del bien supone algún sible, y sea imputable a una o más personas con
grado mínimo de conocimiento de la esencia obligación de respetarla54.
de las cosas con las que nos manejamos, y en A lo largo de las últimas páginas nos hemos
particular, de la esencia humana. De otro modo, apartado un poco del tema principal, el de si de-
ella estaría funcionando sobre la nada. Pero de ben las identidades culturales ser protegidas. Nos
cualquier manera, nos parece que la facultad hu- encontramos ahora en condiciones de regresar
mana que cumple el rol activo en el conocimiento a él con la pretensión de presentar una posición
de “lo justo” es el razonamiento práctico (que final. Pero no sin antes recapitular en qué punto
parte de un deber ser) y no el especulativo (que de la situación nos encontrábamos.
parte del ser)”51. Para conocer si algo es justo Hemos visto que la sociedad no es más que
hay que constatar si realiza un bien esencial de el resultado del carácter relacional del hombre y
la persona52. Los derechos humanos no son más de su capacidad dialógica y que esa capacidad
que la concreción de estos bienes. implicaba un vasto número de interlocutores.
En los tiempos que corren, tropezamos con A su vez, a través de esa sociedad el hombre
un problema real que consiste en la no-fijación podría obtener la realización de sus necesidades
de límites en el catálogo de los derechos huma- y, además, la realización de sus fines pasará por
nos, en su “inflación” que podría conducir a la una conexión con otros hombres en el seno de
destrucción del concepto mismo de derechos un determinado grupo social.
humanos. Confundiendo realidad con deseo, se Igualmente, subrayamos que la formación
crean derechos a partir de las pretensiones más de la identidad individual se alcanzaba, con
arbitrarias. “Detrás de esta inflación de preten- relación a los otros y a través de la ayuda de los
siones subjetivas se encuentra una confusión otros. El ser humano se desarrolla, por tanto, en
entre las nociones de deseo y de derecho. Se el seno de un determinado grupo social concreto,
pasa inadvertidamente del primero al segundo en el cual comparte determinados patrones cultu-
sin preguntarse antes si estamos frente a un rales, en él alcanzaba su realización. Pero, seguía
bien realmente debido en justicia a la persona. la pregunta: ¿Deben las identidades culturales
Pensemos, por ejemplo, en el “derecho al hijo”, ser protegidas?
a menudo invocado para reclamar un acceso
ilimitado a las técnicas de procreación artificial,
aún cuando éstas impliquen un alto sacrificio de 1.3. Posición adoptada
vidas embrionarias, o lleven a generar niños sin No ha sido en vano que nos hemos dedi-
padres biológicos conocidos”53. cado durante algunas líneas a conceptuar y a
Asimismo, la inclusión de las pretensiones fundamentar la dignidad humana. La contesta-
más arbitrarias en el catálogo de los derechos ción a la pregunta que titula este capítulo pasa
50
Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 59 y ss.
51
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en “Persona y Derecho”, nº 38, 1998, p. 43.
52
Cfr. John Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon Press, 1980, p. 36.
53
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p.45.
54
Cfr. Roberto Andorno, “Universalidad de los Derechos Humanos y Derecho Natural”, en op. cit., p. 46. A este mismo respecto, Andorno sugiere,
para un estudio más profundo de la cuestión, los autores: Jean Rivero, Les Libertés Publiques, Tome 1, Les Droits de l´Homme, Paris, PUF, 1995;
Guy Haarscher, Philosophie des Droits de l´Homme, Editions de l´Université de Bruxelles, 1993.
precisamente por la idea de dignidad tal como La protección de las identidades culturales
la hemos definido. surge como consecuencia de la exigencia de la
Asimismo, cabe decir lo siguiente: el dignidad de los hombres que las componen. Esto
hombre alcanza su realización en el seno de un es, no estamos en la presencia de un derecho de
determinado grupo cultural. Añadiendo a esta las propias culturas. Las culturas segregadas
aserción la idea primordial de dignidad humana, de los seres humanos no son nada más que
aquella según la cual el hombre es merecedor de abstracciones. “No existiría, por tanto, (...), un
un respeto incondicional, concluimos que ese deber ético o jurídico alguno de protección de
respeto incondicional del hombre se extiende a las tradiciones culturales, más que en la medida
la cultura donde este logra su realización55. La en que esas tradiciones son compartidas por los
afirmación de que el hombre es un ser digno y de miembros del grupo social (...). El deber ético
naturaleza social nos conduce a una conclusión: y jurídico surge tan sólo, en esta esfera, de la
las identidades culturales deben ser, en realidad, existencia de un derecho de los individuos que
protegidas, porque, si no fuera así, la propia dig- forman el grupo social a la protección de su iden-
nidad (esa cualidad que permite exigir un respeto tidad cultural; pero no es posible reivindicación
incondicional) del hombre quedaría dañada. alguna de esa tutela al margen del derecho que a
Después de constatar que la protección de ella ostentan los miembros del grupo”57.
las identidades culturales resulta una exigencia Para algunos autores el derecho a la protec-
de tutela de la dignidad humana, puede surgir ción de la identidad cultural es, en realidad, un
la cuestión de sí existe en la argumentación derecho individual y no colectivo. Los derechos
presentada una falacia naturalista. humanos -argumentan- únicamente pueden ser
La contestación es negativa. No se alega atribuidos a sujetos dotados de una potencialidad
que se deduzca un deber de respeto de las demás moral. Solamente el hombre dispone de esta
culturas, solo porque existen patrones culturales cualidad. Solamente éste es persona moral y
compartidos por diversos seres humanos56. En jurídica58. No parece tampoco correcto a muchos
realidad, lo que se pretende aclarar es que el ser hablar de derechos humanos colectivos cuyos
humano se realiza en el seno de su cultura, y que titulares sean grupos culturales. Si así fuera, sería
añadiendo a esta afirmación aquella exigencia como conferir una independencia a los propios
de respeto incondicional, en que precisamente grupos culturales, con relación a los individuos
consiste la dignidad, se deduce un derecho de que los constituyen59. La solución para una idó-
todo hombre a la protección de su cultura. nea protección de los grupos culturales no pasa
55
Cfr. nota 33.
56
En una línea semejante de razonamiento, el profesor Martínez-Pujalte sostiene, que a propósito de la afirmación de la protección de las identidades
culturales “No hay (...) falacia naturalista de índole alguna. La tesis formulada no consiste en afirmar que de la existencia de diferentes grupos
culturales, y de la pertenencia del ser humano a esos grupos, se infiera un deber de respeto a esas diversas culturas”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-
Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en “Persona y Derecho”,
nº 38, 1998, p. 125. A este propósito Juan José Sebreli, en una crítica al relativismo cultural, sostiene que “El relativismo cultural incurre en esta
falacia de deducir el juicio normativo del juicio fáctico, el deber ser del ser, al justificar toda norma ética, cualquiera que fuera, por el mero hecho
de ser aceptada por la mayoría de una comunidad. Si toda ética está justificada por formar parte de una identidad cultural, el error y la maldad no
tienen lugar, y parecería que los hombres hicieran siempre lo que debieran hacer”. Cfr. Juan José Sebreli, El Asedio a la Modernidad: Crítica del
Relativismo Cultural, Barcelona, Ariel, 1992, p. 71.
57
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en op. cit., pp. 126 y 127.
58
“Una crítica conceptual de los derechos colectivos tendría que demostrar que nadie que no sea un actor moral puede ostentar en realidad un
derecho”-Cfr. R. Baubok, “Justificaciones liberales para los derechos de los grupos étnicos”, en Fundamentos 1, volumen dedicado a “Soberanía
y Constitución”, Instituto de Estudios Parlamentarios Europeos, Oviedo, 1998, p. 173.
59
Sin embargo, como explica Martínez-Pujalte “Desde un punto de vista técnico-jurídico, resulta evidente que el ordenamiento necesita siempre de
un sujeto a quién asignar la titularidad e imputar el ejercicio de los derechos. Por ello cuando, para una mayor facilidad del tráfico, el ordenamiento
jurídico desea adscribir la titularidad a un ente colectivo (una asociación, vg.), lo personifica: es decir, trata a ese ente colectivo como si fuese una
persona, atribuyéndole subjetividad jurídica; y haciendo recaer sobre el ente colectivo como tal los efectos de las personas que integran los órganos
sociales, y que son quienes realmente ejercitan los derechos y obligaciones de la sociedad”. Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos
e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 129. La atribución de derechos a entidades
colectivas no pasa de una mera cuestión de funcionalidad de ordenamiento jurídico mismo. Sin embargo, y como queda claro en la enseñanza de
Pujalte, los reales titulares de los derechos son las personas que componen esas entidades colectivas. En última instancia, la atribución de derechos
a entes colectivos no es más que un “artificio” con el fin de facilitar el ejercicio de los derechos de sus miembros.
60
Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte, “Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”,
en op.cit., p. 130.
61
Para los defensores del relativismo existen tradiciones culturales que son incompatibles con los derechos del hombre, siendo, a su vez, más
importantes y superiores que cualquier condición humana. “Si se me ocurre reprocharle a un nacionalista serbio el genocidio cometido sobre los
bosnio-musulmanes, me contestará que, como occidental, no puedo comprender las insondables particularidades de la cosmovisión serbio-ortodoxa
(la cual, al parecer, legitima el exterminio de civiles indefensos, siempre que se trate de “perros turcos”), y que, al intentar imponerle mi concepción
de los derechos humanos, incurro en pecado de imperialismo cultural”-Cfr. Francisco J. Contreras Peláez, “Tres Versiones del Relativismo Ético-
Cultural”, en Persona y Derecho, nº38, 1998, p. 71.
62
A propósito del culturalismo, Martínez-Pujalte, advierte que “puede convertirse fácilmente en un caldo de cultivo de la intolerancia, y conducir a un
particularismo que excluya toda comunicación recíproca entre las diversas culturas, imposibilitando así una sociedad auténticamente intercultural,
es decir, una sociedad caracterizada por la convivencia e integración armónica entre las diferentes culturas”-Cfr. Antonio-Luis Martínez-Pujalte,
“Derechos Humanos e Identidad Cultural. Una Posible Conciliación entre Interculturalidad y Universalidad”, en op. cit., p. 133.
1
Procurador Regional da República na 4ª Região, professor de Processo Penal.
investigated, under penalty of incurring into the tico, tentar demonstrar o equívoco do raciocínio
so called hyperbolic monocular guarantism. do nobre jurista, tanto pelo prisma da (segundo
Keywords: Guarantee theory. Personal interests cremos) melhor interpretação da Constituição,
Fundamental rights. Right to impunity. Telepho- bem como dos reais precedentes anteriores do
ne interception. Supremo Tribunal Federal.
Já de algum tempo tem-se difundido no
âmbito jurídico que, na aplicação do Direito
Expressando sua opinião a respeito da
Penal e do Direito Processual Penal, devam ser
interpretação que os tribunais vêm dando à Lei
9.296/96 sobre a possibilidade ou não de reitera- observados ao máximo os direitos e garantias
das prorrogações de interceptações telefônicas, fundamentais do cidadão. Estamos de acordo
nobre advogado publicou recentemente artigo integralmente com tais premissas. Mas insisti-
(Boletim IBCCrim n. 194, janeiro de 2009) mos que há alguns equívocos nas premissas e
intitulado “½ calabresa, ½ garantia fundamen- conclusões que se têm tomado com fundamento
tal”. Em síntese, defendeu os seguintes pontos em ideais garantistas, incorrendo-se – não raras
de vista: a) a Lei 9.296 possui nítido caráter vezes – no que temos denominado de garantis-
garantista; b) por conta de decisão superveniente mo hiperbólico monocular, hipótese diversa do
do STF (nos autos de denúncia oferecida com sentido proposto por Luigi Ferrajoli.
base no Inquérito de competência originária Se é possível definir de forma bastante sin-
nº 2.424), perdeu o sentido elogio que tecera tética e inicial, a tese central do garantismo está
anteriormente noutro escrito à decisão profe- em que sejam observados rigidamente os direitos
rida no famoso e histórico (sic) julgamento do fundamentais (também os deveres fundamentais,
STJ (6ª Turma, por maioria) no HC nº 76.686 dizemos) estampados na Constituição 2. Normas
(09.09.2008), precedente no qual restou consig- de hierarquia inferior (e até em alterações cons-
nado de forma expressa que as interceptações titucionais) ou então interpretações judiciais não
telefônicas só podem ser efetuadas no prazo de podem solapar o que já está (e bem) delineado
15 dias prorrogável uma única vez por mais 15 constitucionalmente na seara dos direitos (e de-
dias; c) segundo compreendera, pela decisão do veres) fundamentais. Embora eles não estejam
STJ, pareciam sido colocados os “pingos nos única e topicamente ali, convém acentuar que o
i´s” (sic), afastando-se abusos frequentemente art. 5º da Constituição está inserto em capítulo
cometidos pelas autoridades perscecutórias; d) que trata “dos direitos e deveres individuais e
que incorreu em equívoco a Corte Suprema ao coletivos”. Assim, como forma de maximizar os
entender – contra legem – desnecessária a trans- fundamentos garantistas, a função do hermeneuta
crição de todas as escutas telefônicas, bastando está em buscar quais os valores e critérios que
se conceda à defesa cópia dos áudios; e) que possam limitar ou conformar constitucionalmen-
a lei foi feita para trinta dias, e não meses ou te o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
anos ininterruptos de interceptações; f) por fim, Não temos dúvidas: a Constituição Federal
que o evidente desconforto desmonstrado pelos brasileira é garantista e assenta seus pilares nos
ministros mais antigos e experientes (sic) da princípios ordenadores de um Estado Social e
Corte seja suavizado e as garantias fundamentais Democrático de Direito. Mas a teoria garantista
voltem a ter o tratamento que vinha lhe sendo não existe apenas para proteção de interesses
dispensado pelo Supremo Tribunal Federal em individuais. Como bem salienta José Luis Martí
seus últimos julgados. Mármol, “el paradigma constitucional incluye
Não há pretensão alguma de “colocar pin- asimismo, según Ferrajoli, los siguientes grupos
gos nos i´s”, mas, dentro de um panorama dialé- de derechos fundamentales: derechos políticos
2
Aliás, compreendido na íntegra há se ver que “derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los indivíduos frente
a su eventual agresión por parte de otros indivíduos y (sobre todo) por parte del poder estatal”. Gascón Abellán, Marina. La Teoria General del
Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.
Madrid: Editorial Trota, 2005, p.21.
Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê- pessoa do imputado e também a proteção dos
lo, em qualquer fase do processo (investigatório interesses coletivos 12.
ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula Assim, se todos os Poderes estão vincula-
garantista, na produção das leis (e também nas dos a esses paradigmas – como de fato estão -,
suas interpretações – e aqui há a contestação especialmente é o Poder Judiciário quem têm o
objetiva do nobre advogado) seus conteúdos dever de dar garantia também aos cidadãos (sem
materiais devem ser vinculados a princípios e va- descurar da necessária proteção social) diante
lores estampados nas Constituições dos Estados das eventuais violações que eles virem a sofrer.
Democráticos em que vigorem. É dizer: todos Exatamente por isso que Miguel Carbonell refere
os direitos fundamentais equivalem a vínculos que “en el modelo del Estado social los poderes
de substância, que, por sua vez, condicionam a públicos dejan de ser percibidos como enemigos
validez da essência das normas produzidas (e de los derechos fundamentales y comienzan a
também nas suas aplicações), expressando, ao tomar, por el contrario, el papel de promotores
mesmo tempo, os fins aos quais está orientado o de esos derechos, sobre todo de los de caracter
denominado Estado Constitucional de Direito 9. social”13.
Em sua construção, as garantias são verdadeiras
Deste modo, a sujeição do juiz à lei não
técnicas insertas no ordenamento que têm por
finalidade reduzir a distância estrutural entre a mais é - como sempre foi pelo prisma positi-
normatividade e a efetividade, possibilitando-se, vista tradicional - à letra da lei (ou mediante
assim, uma máxima eficácia dos direitos funda- sua interpretação meramente literal) de modo
mentais (todos os grupos de direitos fundamen- acrítico e incondicionado, senão uma sujeição à
tais) segundo determinado pela Constituição10. lei, desde que coerente com a Constituição vista
Para Ferrajoli, o sistema garantista tem pilares como um todo.
firmados sobre dez princípios fundamentais Em nossa compreensão (integral) dos pos-
que, ordenados, conectados e harmonizados tulados garantistas, o Estado deve levar em conta
sistemicamente, determinam as “regras do jogo que, na aplicação dos direitos fundamentais (in-
fundamental” de que se incumbe o Direito Penal dividuais e sociais), há a necessidade de garantir
e também o Direito Processual Penal11. também ao cidadão a eficiência e segurança,
Parece bastante simples constatar que a evitando-se a impunidade. O dever de garantir
Teoria do Garantismo se traduz em verdadeira a segurança não está em apenas evitar condutas
tutela daqueles valores ou direitos fundamentais criminosas que atinjam direitos fundamentais
cuja satisfação, mesmo contra os interesses da de terceiros, mas também na devida apuração
maioria, constitui o objetivo justificante do (com respeito aos direitos dos investigados ou
Direito Penal. Vale dizer: quer-se estabelecer processados) do ato ilícito, e, em sendo o caso,
uma imunidade – e não im(p)unidade - dos da punição do responsável.
cidadãos contra a arbitrariedade das proibições Vencidas as considerações prefaciais (mas
e das punições, a defesa dos fracos mediante essenciais, pensamos), adentremos no mérito da
regras do jogo iguais para todos, a dignidade da crítica traçada pelo trabalho ora contestado.
9
FERRAJOLI, Luigi.Derechos y Garantias,La ley Del más débil. 4ed.Madrid:Trotta, 2004, p. 152.
10
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias,La ley Del más débil.4 ed.Madrid: Trotta, 2004, p. 25.
11
FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 93. Nas palavras de Ferrajoli, “el modelo garantista
[…] presenta las diez condiciones, límites o prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el arbitrio o el error penal:
según este modelo, no se admite ninguna imposición de pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como delito, la
necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y
la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio
con la defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos “ FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed.
Madrid: Trotta, 2000, p. 103-4.
12
FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p.271.
13
CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del Garantismo: rasgos prin-
cipales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota,
2005, p.179.
Também imperativo constitucional (art. com el control de los recursos necesarios para la
144, caput, CF), o dever de garantir segurança realización de um derecho” 16.
não está em apenas evitar condutas criminosas Diante do exposto, não concordamos com
que atinjam direitos fundamentais de terceiros, a idéia da prevalência indiscriminada – pri-
mas também na devida apuração (com respeito
ma facie – somente de direitos fundamentais
aos direitos dos investigados ou processados)
individuais sobre os demais direitos, valores,
do ato ilícito, e, em sendo o caso, da punição
princípios e regras constitucionais, sem qualquer
do responsável. Neste diapasão, perfeitas nova-
mente as considerações de Miguel Carbonell ao sopesação e, sobretudo, diante de interpretação
assentar que “la obligación de proteger significa literal e gramatical. Se assim for, valorizando-se
que el Estado debe adoptar medidas destinadas e difundindo-se apenas e parcialmente a teoria
a evitar que otros agentes o sujetos violen los garantista – o que denominamos de garantismo
derechos sociales, lo que incluye mecanismos no hiperbólico monocular -, melhor deixar de lado a
solamente reactivos frente a las violaciones [...], proposta de ½ calabresa, ½ garantia fundamental
sino también esquemas de carácter preventivo e pedir desde já uma inteira com sabor único de
que eviten que agentes privados pudean hacerse impunidade.
16
Id. Ibidem., p. 194.
*
Técnico Administrativo e estagiário do Ministério Público Federal, além de acadêmico de direito da Universidade São Francisco.
da norma jurídica é a sintonia adequada entre as frente tal descompasso seria a discussão judicial
suas previsões genéricas, abstratas e impessoais desses direitos.
e o fato social que ela se propõe a normatizar, Com efeito, diversas ações judiciais foram
em outras palavras, há efetividade quando o juízo propostas com o fito atribuir os direitos sociais
hipotético dever ser se identifica com o ser da aos seus titulares - sobretudo o direito à saúde
realidade fática. Destarte, uma norma pode ser e à educação – mesmo assim, ainda prepondera
mais ou menos eficaz perante dada sociedade, no judiciário a carga acentuadamente política
mas não pode ser mais ou menos jurídica perante atribuída às normas de direitos sociais, enqua-
o direito. Ou determinada regra é norma jurídica, dradas entre as normas programáticas.
consequentemente, exigível; ou não, e, por isso,
Outro fator que, sem dúvida, contribui para
alheia ao ordenamento jurídico.
a ineficácia das normas de direitos sociais é, por
As normas que veiculam direito social não vezes, a ausência de leis infraconstitucionais que
fogem a essa regra e, apesar de topograficamente concretizem os preceitos constitucionais.
se localizarem no ápice do sistema jurídico – na
Em contrapartida, a vanguarda progres-
Constituição Federal - por uma série de fatores,
siva da doutrina considera que, nesses casos,
essas normas nem sempre conseguem atingir a
incumbe ao judiciário dar concretização a esses
sua plena efetividade. Não por acaso Pablo Verdú
“normas constitucionais incompletas”, porque o
afirmou “tanto é assim que se pode perceber nos
princípio inserido no artigo 5º, parágrafo 1º da
textos fundamentais sintomas de incongruência
Constituição Federal, considera que as normas
com a realidade social”2. Desse modo, grande
definidoras dos direitos e garantias sociais têm
é a importância de se aferir se os comandos
aplicação imediata. Neste passo, Fábio Kon-
emergentes das normas direitos sociais atingem
der Comparato preleciona que “apesar de seu
ou não os limites razoáveis de eficácia.
elevado grau de abstração, os princípios são
Observando efetividade dessas normas à normas jurídicas e não simples recomendações
luz da sociedade brasileira, concluímos que se programáticas, ou exortações políticas. Mais
por um lado a Constituição Federal prevê inúme- ainda trata-se de normas jurídicas de eficácia
ros direitos prestacionais, por outro lado, ainda plena e imediata, a dispensar a intermediação de
existe um grande hiato entre essas previsões le- regras concretizadoras. Provocado ou não pelas
gais e a realidade social dos seus destinatários. partes, o juiz está sempre autorizado a aplicar
Nesta quadra, é possível elencar certos diretamente um principio ao caso trazido ao seu
fatores preponderantes para a ineficácia dos julgamento, por forçado disposto no parágrafo
direitos sociais no Brasil. 1º do art. 5 da Constituição.”4.
Segundo José Reinaldo de Lima Lopes3 a Numa interpretação literal do alutido
sociedade brasileira, em seu desenvolvimento dispositivo constitucional é possível inferir que
normal, não foi capaz ainda de ver a con- as normas de direitos fundamentais devem ser
cretização dos direito sociais porque a nossa aplicadas imediatamente, irradiando os seus
tendência sempre fora a de compreender, en- efeitos nas situações subjetivas que normatizam,
quanto cidadãos, que os direitos sociais não são obrigando o Legislativo, Executivo e o Judici-
propriamente direitos e que, por isso, carecem ário, a desenvolverem meios, dentro de suas
de força social bastante para serem respeitados funções Constitucionais, para tornarem eficazes
naturalmente como as demais leis. Diante desse os direitos individuais e sociais fundamentais.
5
problema, propõe que a única possibilidade Pondera Juraci Mourão que apenas a forma de
1
Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, ed. Objetiva, 2001, p.1102.
2
Verdú, Pablo Lucas, A luta Pelo Estado de Direito. 2007. Rio de Janeiro., ed. Forense. p., 53.
3
José Reinaldo de Lima Lopes, A Efetividade dos Direitos Econômicos, Culturais e Sociais, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São
Paulo, ed. Método., p. 103-104
4
Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo, ed.
Método., p. 22.
realizar isso é que varia, inferindo, em síntese, vínculos de direitos subjetivos. Nessa esteira,
que pelo Legislativo a efetivação se dá pela boa parte da jurisprudência ainda considera que,
criação de leis que pormenorizem os preceitos diante da omissão do Legislativo, não é dado ao
constitucionais, pelo judiciário, a efetivação se o juiz, arvorando-se em legislador, criar o direito
dá caso a caso diante dos fatos levados ao co- novo para caso concreto, sob pena de violar o
nhecimento do juiz. princípio da independência dos poderes. O mes-
Recorrendo ao direito comparado, resgata- mo autor conclui que “a magistratura brasileira
mos julgado do em que o Tribunal Constitucional tem desprezado o desafio de preencher o fosso
Alemão consignou o entendimento de que: “O entre o sistema jurídico vigente e as condições
princípio do Estado social contém uma ordem reais da sociedade, em nome da “segurança
de conformação endereçada ao legislador (cf. jurídica” e de uma visão por vezes ingênua do
BverfGE 50, 57 [108]). Este o obriga a pro- equilíbrio entre os poderes autônomos.8”.
videnciar uma harmonização das contradições Neste sentido, já decidiu o Superior Tri-
sociais (cf. BverfGE 22, 108 [204]). Além disso, bunal de Justiça:
ele determina que o Estado ofereça assistência
“(..) inexiste direito certo se não ema-
social a indivíduos ou grupos que, em razão de
nado da lei ou da constituição. normas
suas circunstâncias pessoais de vida ou des-
meramente programaticas protegem um
vantagens sociais, se encontram impedidos de
alcançar o seu desenvolvimento pessoal ou social interesse geral, mas não conferem aos
(cf. BverfGE 45, 376 [387]). Como o legislador respectivos beneficiarios o poder de exi-
vai realizar essa tarefa é, na ausência de uma gir a sua satisfação antes que o legislador
concretização mais precisa do Estado social, cumpra o dever de complementa-las
[exclusivamente] de sua alçada (cf. BverfGE 1, com a legislação integrativa. no siste-
97 [105]; jurisprudência consolidada). ”
6 ma juridico-constitucional vigente, a
nenhum orgão publico ou autoridade e
Em verdade, ainda que não exista lei que
conferido o poder de realizar despesas
viabilize o gozo imediato desses direitos, é dever
sem a devida previsão orçamentaria.
do Estado através do Executivo ou Judiciário
recurso conhecido e provido e cassada a
procurar, dentro dos seus limites, sanar as omis-
segurança. decisão por maioria.”9
sões do Legislativo, tendo como premissa base o
princípio constitucional da máxima efetividade, Dessa postura jurisprudencial resulta
principio este, que orienta os aplicadores da Lei um grande entrave para a eficácia dos direitos
Maior para que interpretem as suas normas em sociais que, se aplicados com os mesmos mé-
ordem a otimizar-lhes a eficácia, sem alterar o todos utilizados para a interpretação dos direitos
seu conteúdo. individuais, - de origem manifestamente liberal -
Contudo, vale lembrar a advertência feita terão a sua aplicabilidade seriamente restringida.
por José Eduardo Faria de que o entendimento Com efeito, a estrutura liberal do Estado não é
que ainda hoje prevalece é que “sem a devida o ambiente mais adequado para que floresçam
regulamentação” por meio de uma lei comple- os direitos sociais10. Porquanto é fundamental
mentar, esses direitos e essas prerrogativas têm para a efetividade dos direitos sociais que o ju-
vigência formal, mas são materialmente inefi- diciário se desprenda das amarras do liberalismo
cazes7”, uma vez que não são capazes de gerar clássico, onde o juiz fora completamente alheio
5
Constituição e Democracia, Estudos em Homenagem ao Professor J.J. Gomes Canotilho, editora Malheiros, A Administração da justiça e o Estado
Social, São Paulo, 1ºedição, 2006, p. 390.
6
Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Coletânea original: Jügen Schwabe, Organização e introdução:
Leonardo Martins, publicação: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., 2005, Montevideo, Uruguay, p. 835.
7
Faria, José Eduardo Faria, Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1ºedição, São Paulo, 2005., p 99.
8
Nas palavras de José Reinaldo de Lima Lopes “basta dizer que os novos direitos sociais só podem ser adequadamente compreendidos a partir de
uma perspectiva social e pública, não individual e nem mesmo corporativista” José Eduardo Faria, ob., p. 111.
9
Pesp 57614 / RS
10
Pablo Verdú. Ob. Cit., p.59.
às questões sociais. Urge, neste momento, uma Ressalte-se, ainda, que no Estado De-
mudança radical na postura adotada pelo Poder mocrático de Direito o dever de proteção do
Judiciário em prol da prevalência do Estado ordenamento jurídico cabe a todos indistinta-
Social Democrático de Direito instituído com o mente, sobretudo num país onde vige, ao lado
advento da Constituição Federal de 1988. Não do concentrado, o controle difuso de constitucio-
sem razão, o professor Juraci Mourão Lopes nalidade das leis, cabe precipuamente ao Poder
Filho afirma11 que a inadequação da postura Judiciário a proteção diuturna da Constituição
processual do juiz à Constituição é a mais danosa Federal. Canotilho aduz que: “o juiz participa
ofensa e a mais degradante incongruência que na política porque desempenha um papel consi-
pode se dar dentro de um sistema jurídico, pois derado adequado para assumir a cumplicidade
representa um velado e constante flagelo à norma de partilhar os valores e interesses dos grupos e
constitucional. É preciso haver uma consciência indivíduos que, perante ele, revindicam direitos
institucional e de cada membro isoladamente e posições prestacionais negados ou bloqueados
quanto ao seu papel na sociedade e no Estado. pelos decisores políticos-representativos13”
Muitas vezes, ideologias reinantes por força do Destarte, no Estado Democrático de Di-
labor de forças sociais que não comungam das reito, cumpre ao Estado-Juiz impor obrigações
mesmas aspirações da Constituição obnubilam a de fazer ao Estado-Administração quando este
visão do órgão de justiça sobre sua própria figura, omitir-se em cumprir os seus deveres constitu-
frutificando um desalinhamento entre Judiciário, cionais. Em casos análogos, o juiz não estará
Constituição e sociedade. indo além de suas funções jurisdicionais, mas
No entanto, essa mudança de visão não tão somente levando a efeito o seu mister cons-
ocorre sem obstáculos, sobretudo porque a titucional, aplicando o direito ao caso concre-
Constituição de 1988 é uma Constituição plural to14. Fábio Konder Comparato aduz, de forma
que defende valores às vezes antagônicos. A brilhante, que: “é incabível alegar que, em tais
professora Fayga Silveira Bedê, pondera que situações, Judiciário nada tem a fazer, pois os
“esse antagonismo estrutural que se verifica no direitos sociais só se concretizam mediante a
bojo da Constituição é também fruto da própria implementação de políticas públicas, que entram
evolução que vem sendo perpetrada a partir da na competência exclusiva do Poder Executivo.
superação do velho paradigma liberal em prol A alegação é descabida, porque o que o titular
de um projeto superior, de caráter humanizante, do direito social violado pede ao juiz, não é
emancipatório e dignificante da pessoa humana, obviamente a implementação de um programa
que é o Estado Social do bem-estar preconização de ação governamental, mas sim a satisfação
pela Constituição Federal de 1988. É bom que se de um interesse próprio da parte, fundado em
diga que neste mote não há qualquer contradição. direito fundamental. E isto o Judiciário não pode
Com efeito, o simples reconhecimento de que o se recusar a dar ao jurisdicionado, sob pena de
modelo econômico adotado traduz certo grau denegação de justiça15.
de hibridismo, resultado direto de sua natureza Felizmente já temos sinais, embora tími-
compromissária, não desautoriza a inferência de dos, de uma mudança na postura jurisprudencial.
que a Constituição Federal de 1988 assumiu, em O Ministro Celso Melo reconheceu que, se por
suas linhas gerais, uma postura ideológica defina, um lado não é atribuição do Poder Judiciário
que guarda consonância com o Estado Social – a formulação e a implementação de políticas
ao qual deve subsumir o Estado de Direito12”. públicas, “tal incumbência, no entanto, embora
11
Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, editora Malheiros, 1º edição, São Paulo, 2005., p.367.
12
Limite do Imponderável ou Direitos Sociais como Limites ao Poder Reformador, Ob. cit., p. 111.
13
Canotilho, José Joaquim Gomes, Estudos Sobre os Direitos Fundamentais, ed. Revista dos Tribunais, 1º edição brasileira, 2º edição portuguesa,
São Paulo, 2008, Ob., cit.,p. 268.
14
Já asseverou José Afonso da Silva: (..) “as normas programáticas condicionam a atividade discricionária da Administração, bem como a atividade
jurisdicional“. Eficácia das Normas Constitucionais. P. 175.
15
Fábio Konder Comparato, O Papel do Juiz na Efetivação dos Direitos Humanos, Direitos Humanos Visões Contemporâneas, 2001, São Paulo,
ed. Método., , cit., p. 25.
Luiz Roberto Barroso, O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas, 8ºedição, ed. Renovar., p. 84.
17
apply the Law in a politics outlook where it foram nomeados diretamente pelo Presidente da
remains ignored. The verdict brought to light República, depois de escolhidos pelo Ministro
legal means as the state’s strict liability, which da Justiça do governo militar, o que demonstra
were still effective at that time, being its use a preocupação do governo da época em que as
completely possible. decisões lhes fossem favoráveis. Apenas por
From that point, one brief analysis based volta de 1973 passaram a ocorrer novamente
on the Constitutional law and the Criminal law concursos para juízes federais.
leads to the conclusion that, back to that days, Nesse contexto, em 25 de outubro de 1978,
crimes such as torture, murder and sexual crimes quando se completavam exatos três anos da mor-
were completely reprehensible and punishable te do jornalista Vladimir Herzog, o juiz Márcio
from the legal point of view, even under the José de Moraes assinou uma sentença única na
effectiveness of the Institutional Acts, and that vida política do país, evidenciando a possibili-
the interpretation given to the Amnesty Law is dade de independência do Poder Judiciário e o
extremely doubtful. Finally, it is highlighted dever que este tem de aplicar o Direito, inclusive
the importance of the society and the jurists in para fazer com que a Administração Pública res-
the process concerning the transition justice, ponda pelos seus atos. Aliás, é essa justamente a
allowing the knowledge of the truth and the função de tripartição dos poderes proposta por
recognition of the mistakes in order to prevent Montesquieu, qual seja, a de que, por meio de
that such shameful and everlasting marks as of um sistema de freios e contrapesos, haja harmo-
the Dictatorship would come back to stain the nia entre Executivo, Legislativo e Judiciário de
history of Brazil. maneira que nenhum dos Poderes ultrapasse a
Keywords: Dictatorship; Herzog; Brazil; Law; sua representatividade pública e usurpe o Poder
jurists; Amnesty Law; truth. na defesa de interesses particulares.
Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi
preso e veio a falecer no mesmo dia nas depen-
1) A função Poder Judiciário, como dências do DOI CODI (Destacamento de Opera-
Poder Independente, no processo ções de Informações do Centro de Operações de
de abertura política Defesa Interna- órgão encarregado de investigar
e obter confissões dos pretensos envolvidos no
O presente artigo objetiva ressaltar a im-
processo de dissidência política).
portância dos juristas, e, sobretudo do Direito,
no contexto político do período de transição O jornalista em tela foi procurado pelo DOI
marcado pelo fim da ditadura e a volta do re- CODI e comprometeu-se, para não ser preso
gime democrático. Dessa forma, se buscará instantaneamente, a comparecer no dia seguinte
demonstrar que exercer uma carreira jurídica não às dependências do referido órgão. Em razão
significa uma aplicação meramente mecanicista disso, na época, o governo insistiu na tese de
de normas jurídicas. Um verdadeiro jurista deve que Herzog teria se apresentado voluntariamente
estar apto a fazer interpretações sistemáticas e ao DOI CODI e ali teria se suicidado. A versão
principiológicas das normas, sob pena de tra- apresentada era totalmente absurda e não con-
zer conseqüências extremamente deletérias à seguiu ludibriar os mais próximos do falecido,
sociedade. ou mesmo a população.
O caso do jornalista Vladimir Herzog foi Ficou de tal maneira evidente que o jor-
emblemático no que se refere à missão do Poder nalista fora exterminado pelo dentro de um
Judiciário no contexto político, merecendo, por órgão governamental que o caso gerou grande
isso, abordagem mais detalhada. Primeiramente, divulgação e comoção popular. Uma semana
oportuno lembrar que em 1965, um ano após o após a morte de Herzog oito mil pessoas se
golpe militar de 1964, por meio do Ato Institu- concentraram na catedral da Sé em São Paulo
cional nº 2 os Juízes Federais de Primeiro Grau para um ato ecumênico, manifestação essa fun-
“habeas corpus” nos casos de crimes políticos, do Poder Estatal, uma vez que este, diferente-
contra a ordem nacional, a ordem econômica e mente dos particulares, só pode fazer o que a
social e a economia popular. lei permite).
Desta feita, resta claro que os atos insti- Logo, há uma necessidade de desfazer
tucionais, cujo mais autoritário foi o AI5, insti- a ideia de que as atrocidades cometidas pelos
tuíram uma série de limitações aos direitos e à agentes do governo durante o regime militar,
liberdade que os cidadãos tem em uma ordem de- pelo simples fato de estarem supostamente sob
mocrática. Contudo, a Constituição de 1967 não a anuência estatal, seriam atos legais.
foi totalmente revogada pelos atos institucionais, Nesse sentido, não há dúvidas de que todos
de maneira que plenamente possível a invocação os interrogatórios realizados por meio de tortura
de dispositivos da referida Carta Magna que não e crimes sexuais, assim como os homicídios
contrastassem com os posteriores, tais como o § oriundos desses meios inquisitivos, foram ile-
11 do artigo 150 : gais, mesmo na hipótese de se considerar que
tais condutas tenham sido eventualmente reali-
“ § 11 - Não haverá pena de morte, de
zadas a mando estatal, haja vista que não havia
prisão perpétua, de banimento, ou con-
previsão constitucional autorizando as condutas
fisco, salvo nos casos de guerra externa
supramencionadas.
psicológica adversa, ou revolucionária
ou subversiva nos termos que a lei de- Mesmo que assim não fosse, ou seja, su-
terminar. Esta disporá também, sobre o pondo para efeitos meramente argumentativos
perdimento de bens por danos causados que algum Ato Institucional tivesse previsto
ao Erário, ou no caso de enriquecimento expressamente a permissão de todo e qualquer
ilícito no exercício de cargo, função ou tipo de tortura, de tratamento cruel ou degradan-
emprego na Administração Pública, te, ainda assim, poder-se-ia sustentar, embora
nesse caso mais arduamente que no anterior, a
Direta ou Indireta.”
ilegalidade de tais condutas.
Portanto, como não havia nenhum dis- Isso porque precede à análise da legalidade
positivo expresso autorizando o assassinato, a a questão da legitimidade. O fato de os militares
tortura ou a práticas de crimes sexuais contra terem utilizado seu material bélico e poder de
os prisioneiros, mesmo que acusados de crimes influência, sobretudo pela manipulação da mídia,
políticos, claramente prevaleciam as disposi- para realizar o que foi por eles denominado de
ções do ordenamento jurídico anterior aos Atos revolução e por muitos chamado de golpe teria
Institucionais (sobretudo em relação aos limites o condão de lhe conferir a imputação de Poder
Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em
funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias
referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva
ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de
serviço.
§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o
respectivo prazo.
Art 8º - O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no
exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais
cabíveis.
Parágrafo único - Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição.
Art 9º - O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário
à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e do § 2º do art. 152 da Constituição.
Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus , nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a
economia popular.
Art 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares,
bem como os respectivos efeitos.
Art 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.
Constituinte Originário? Para aqueles que enten- aos torturados, posição em sentindo diverso é
derem ser a resposta negativa, nenhuma previ- plenamente defensável, inclusive por uma in-
são dos Atos Institucionais pode ser tida como terpretação simplesmente gramatical da lei de
legítima, haja vista que não foram seguidos os anistia, in verbis :
requisitos formais e materiais para o exercício Art. 1º É concedida anistia a todos
do Poder Constituinte Reformador. quantos, no período compreendido
Isto posto, elidem-se os argumentos de que entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
haveria impossibilidade de responsabilização dos agosto de 1979, cometeram crimes
agentes que cometeram torturas e homicídios políticos ou conexo com estes, crimes
durante a ditadura com a justificativa de que eleitorais, aos que tiveram seus direitos
tais atos estariam sob o manto da legalidade na políticos suspensos e aos servidores da
época, poderiam até estar sob o manto da gover- Administração Direta e Indireta, de
nabilidade, mas não da legalidade. fundações vinculadas ao poder público,
A hipótese de o próprio Estado ter acober- aos Servidores dos Poderes Legislativo e
tado, aprovado e até ordenado o cometimento Judiciário, aos Militares e aos dirigen-
de atos totalmente desumanos para defender tes e representantes sindicais, punidos
interesses políticos de maneira alguma poderia com fundamento em Atos Institucionais
sanar o vício da ilegalidade. O que poderia o e Complementares (vetado).
ocorrer, no máximo, é que o inferior alegasse
obediência hierárquica para não ser punido, na § 1º Consideram-se conexos, para
remota possibilidade de se considerar crível que efeito deste artigo, os crimes de qual-
os crimes cometidos na ditadura não fossem tidos quer natureza relacionados com crimes
como manifestamente ilegais. políticos ou praticados por motivação
política.
Contudo, os dirigentes do sistema de
justiça (Ministério Público e Poder Judiciário), Assim, a lei de Anistia estabelece anistia
mesmo entendendo serem ilegais todos os atos para os crimes políticos e para os crimes cone-
criminosos cometidos sob a égide da ditadura, xos2 aos políticos, ou seja, aqueles que tenham
não deram seguimento os processos com fulcro sido cometidos, basicamente, para facilitar ou
na Lei de Anistia, que, segundo a interpretação ocultar crimes políticos. Nesse sentido, plena-
da grande maioria dos doutrinadores e políticos mente defensável que os crimes de tortura e
seria recíproca, ou seja, tanto para aqueles que homicídio cometidos pelos agentes estatais não
torturaram e mataram quanto para os que foram seriam crimes conexos, haja vista não se subsu-
torturados e mortos em razão de uma ideologia mirem ao conceito de conexão nem poderem ser
política. considerados crimes praticados por motivação
política pelo simples fato de as vítimas serem
os dissidentes políticos à época, pois deve ser
3) Anistia no Estado Democrático analisada a conduta em si e não o sujeito passivo.
brasileiro O fato de as vítimas serem pessoas acusadas de
supostos crimes considerados políticos na época
Há que se considerar que, apesar de o da ditadura militar não pode conferir à tortura, ao
conceito de anistia ter se propagado como recí- homicídio e aos crimes sexuais a característica
proco e abrangente tanto aos torturadores quanto de crime político ou conexo a este.
2
Art.99 do Código Penal:
a) se, ocorridas duas ou mais infrações, tiverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou por várias pessoas em concurso,
embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
b) se, no mesmo caso, umas infrações tiverem sido praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em
relação a qualquer delas;
c) quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.
nas nas grandes cidades e em áreas prováveis de em razão do dano, tanto patrimonial quanto mo-
sepultamento dos militantes, em cumprimento ao ral e as mazelas causadas nas vítimas da ditadura,
Inciso II do artigo 4º da Lei nº 9.140/95, que a tanto profissionalmente quanto psiquicamente
criou : “envidar esforços para a localização dos são realmente vultosas, devendo o magistrado
corpos e de pessoas desaparecidas no caso de fixá-las de acordo com esses danos, sem se inti-
existência de indícios quanto ao local em que midar pelas críticas midiáticas descabidas.
possam estar depositados”.””.
O resgate da memória e da verdade (sendo
que esta pode ser, muitas vezes, reconhecida 5) Conclusão
pelos magistrados em suas sentenças) tem uma
função fundamental na justiça de transição por- A anistia pode até ter tido o efeito, naquele
que de importância inestimável para os familia- determinado momento político, de apagar do
res das vítimas, por uma questão incitamente de mundo jurídico as torturas, os assassinatos e os
dignidade humana, haja vista que o direito de se crimes sexuais cometidos durante o período da
conhecer e, principalmente, reconhecer o que de ditadura, mas não foi capaz de apagar da mente
fato ocorreu com seus familiares desaparecidos das vítimas, de seus familiares e da sociedade
no regime militar e de realizar para as vítimas um esse período da história. Talvez seja essa a maior
sepultamento digno está englobado no conceito falha daqueles que procuraram na anistia um
de “mínimo ético irredutível”, que não se pode sinônimo de esquecimento, esqueceram eles
negar aos cidadãos. próprios que esta é apenas um instituto jurídico
Contudo, não se pode restringir a importân- e não uma substância química.
cia do conhecimento da verdade aos familiares da Como consequencia, as marcas desse
vítima, a sociedade como um todo tem também período não serão e nem devem ser apagadas,
interesse em que os fatos sejam revelados, não até mesmo para que não se repitam as mesmas
somente porque maculam a história da nação atrocidades na história do nosso país. O que a
brasileira, como também porque com a verdade sociedade e os profissionais do Direito podem
há a garantia de não repetição. Nesse sentido, fazer, com máxima eficiência possível, é aplicar
plenamente defensável os recursos da tutela co- anestésicos que amenizem a ferida já formada,
letiva em busca de tais direitos, ampliando o rol que se expressam na justiça de transição-no
dos legitimado para a propositura das ações. conhecimento da verdade e na possibilidade
Quanto ao direito à reparação este deve de reparação, entendida esta no seu sentido
englobar tanto as vítimas que sobreviveram ao estrito (pecuniário), haja vista que a reparação
regime militar quanto os familiares de vítimas lato sensu, efetiva, de todo o mal causado, é
desaparecidas ou reconhecidamente assassina- impossível.
das. No primeiro caso a indenização é calculada Por fim, algo de muito positivo resta da
geralmente levando em conta o piso salarial da memória desses fatos que maculam a história do
categoria do anistiado e fazem uma projeção da Brasil, a aprendizagem. Magistrados, promoto-
evolução profissional que poderia ter alcançado res, juizes, advogados e população não podem
se não tivesse sido prejudicado durante o período aceitar que qualquer forma de desmando se
da ditadura. repita, de maneira que a reconstrução do Estado
O valor da indenização tem sido criticado Democrático de Direito deve ser guiada pela
com frequência na mídia, que vem inclusive apli- não aceitação de qualquer Poder Ilegítimo, não
cando a denominação “bolsa indenização”, mas sendo nunca enfadonho recordar a famosa frase
trata-se da aplicação da justiça comutativa, já de Winston Churchill: “Quem ignora a história
prevista por Aristóteles. A indenização deve ser está fadado a repeti-la”.
FICO, Carlos, Que história é esta? O Regime Sarmento, Daniel, Direitos Fundamentais e rela-
Militar no Brasil (1964-1985), O golpe militar de ções privadas, 2 ª edição, Editora Lumen Juris,
1964; repressão; o milagre econômico; a Aber- Rio de Janeiro, 2006
tura e o fim do regime, Editora Saraiva, 1999.
ACESSO A DOCUMENTAÇÃO
GOVERNAMENTAL E DIREITO À MEMÓRIA E
VERDADE: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI
*Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Presidente do Instituto de
Estudos Direito e Cidadania – IEDC e coordenadora da Revista Internacional de Direito e Cidadania-REID (www.iedc.org.br/reid). Pesquisadora
em nível de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
dispostos no projeto de lei encaminhado pelo ação dos grupos formadores da sociedade brasi-
presidente da República em maio de 2009, que leira. No inciso em comento, não há menção a se
visa regulamentar o acesso às informações, ainda a documentação deve estar sistematizada ou de
sem número na Câmara. que modo deve ser feita tal organização, já que
tal detalhamento é matéria infraconstitucional.
Por isso, a proteção dos documentos, sob
2. Noções gerais sobre o art. 216 o enfoque patrimonial, pode se dar de modo in-
§ 2° da Constituição e a Lei de dividual ou em conjunto. Agrupados (de forma
Arquivos organizada), os documentos compõem o patri-
mônio documental brasileiro. Para Marcos Paulo
Um dos objetivos do projeto de lei em de Souza Miranda, o”patrimônio documental é
análise é regulamentar o acesso a informações formado por documentos que constituem acervo
contidas na documentação governamental, a e fonte de comprovação de fatos históricos e
qual, segundo a Constituição, deve ser gerida memoráveis. Materializado sob diversas for-
pelo Poder Público (art. 216 § 2°) nos termos mas e sobre diferentes bases, constitui muitas
da lei. Assim, sobre a gestão e acesso aos docu- vezes o principal acervo dos arquivos públicos e
mentos governamentais de valor cultural, além privados.”1 No mesmo sentido, demonstrando a
das normas, instrumentos e princípios aplicáveis importância do tratamento dos documentos como
aos bens culturais em geral, cabe atentar que a bens ou suportes de bens culturais, na visão de
documentação pública é sempre gerida pelos historiadora, Maria Thétis Nunes diz que :
órgãos do Estado.
“Como o historiador chega aos fatos his-
Na ótica de patrimônio cultural, a primeira tóricos? Por meio de livros, exemplifica-
consequência da inserção da documentação go- dos nas crônicas publicadas, geralmente
vernamental no artigo 216 da Constituição é sua retratos da época em que foram escritas
vinculação aos princípios e instrumentos prote- (para a História do Brasil tiveram gran-
tivos dos bens culturais. Portanto, embora nem de importância não só as legadas por
toda a documentação governamental se enquadre cronistas portugueses, como de outras
na concepção constitucional de bem cultural inte- nacionalidades – franceses, holandeses,
grante do patrimônio cultural brasileiro (indicado alemães, entre outros). Segue-se os
nos incisos do art. 216), sua importância para a jornais e os documentos escritos. Para
efetividade do direito fundamental ao patrimônio a História do Brasil colonial, os docu-
cultural está fixada pela sua previsão do § 2° do mentos escritos têm importância básica,
art. 216. Assim, como suporte de outros bens considerando-se que, aqui, a imprensa
que integram o patrimônio cultural ou mesmo só surgiria em 1808, com a chegada da
como ingrediente que possibilita a formação dos Corte portuguesa fugindo das tropas
valores de referência cultural, a documentação francesas. Daí a grande importância,
governamental se equipara aos bens culturais para nós, dos arquivos.
para aplicação de instrumentos e mecanismos
protetivos, especialmente o inventário. Reúnem-se os fatos para isso. Vai-se
O inciso IV do art. 216 arrola os docu- aos Arquivos, estes sótãos dos fatos.
mentos como categoria dos bens culturais que Aí, basta baixar-nos para os recolher.
pode integrar o patrimônio cultural brasileiro. Cestadas cheias. Pousam-se em cima
A indicação constitucional é de preservação dos da mesa. Faz-se o que fazem as crianças
documentos, públicos ou privados, destinados às quando brincam com ‘cubos’ e trabalha-
manifestações artístico-culturais, quando estes mos para eles... O jogo está acabado, a
forem relevantes para a memória, identidade e história está feita. Assim via os docu-
1
Marcos Paulo S. Miranda, Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro, Del Rey, 2006, p. 67.
imprescindível. O Decreto n° 4.553/2002 prevê, Esta lei declarou que o “acesso aos do-
inclusive, que os documentos considerados ultra- cumentos públicos classificados no mais alto
secretos podem ficar inacessíveis inicialmente grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo
por 30 anos, sendo este período prorrogável por e prorrogação previstos no § 2° do art. 23 da Lei
uma vez6. Além do mencionado Decreto, foi edi- 8.159/91” (art. 2°, caput). No § 2° do art. 6° da
tada a Lei 11.111/05, que será tratada a seguir. aludida lei fica revelada a afronta ao processo
democrático brasileiro e às bases de transparên-
cia do poder e de visibilidade da gestão pública.
4. A Lei 11.111/05 e o acesso aos Este artigo dispõe verbis: “Antes de expirada
documentos governamentais a prorrogação do prazo de que trata o caput
produzidos na ditadura deste artigo, a autoridade competente para a
Embora os documentos governamentais classificação do documento no mais alto grau
de valor histórico (ou cultural) já estivessem de sigilo poderá provocar, de modo justificado,
abrangidos no inciso IV do art. 216, que os a manifestação da Comissão de Averiguação e
arrola como bens culturais brasileiros, a Cons- Análise de Informações Sigilosas para que avalie
tituição destacou a necessidade de que ampliar se o acesso ao documento ameaçará a soberania,
a tutela para toda documentação governamental, a integridade territorial nacional ou as relações
num entendimento implícito de que o acesso e internacionais do País, caso em que a Comissão
a produção de conhecimento dos documentos poderá manter a permanência da ressalva ao
utilizados ou produzidos pelo Poder Público são acesso do documento pelo tempo que estipular.”
essenciais para a formação e consolidação da Certamente esses dispositivos não guardam
cidadania cultural. Assim, a tutela sob o enfoque sintonia com a Constituição e com os valores do
patrimonial dos documentos governamentais foi regime democrático. Sem prejuízo da ADI 4077,
afirmada pelo § 2° do art. 216, que dispõe que que questiona a constitucionalidade de artigos
“cabem à administração pública, na forma da tanto dessa lei como da Lei 8.159/91, cabe à
lei, a gestão da documentação governamental
sociedade questionar judicialmente e de forma
e as providências para franquear sua consulta a
difusa a impossibilidade de acesso à documen-
quem dela necessitar”.
tação de interesse público, quando legislação for
Além dos dispositivos que versam acer- colocada como obstáculo.
ca dos documentos como bens culturais e da
competência comum dos entes federativos em
protegê-lo, o texto constitucional seguiu o con- 5. As restrições de acesso à
ceito de transparência já positivado como um dos informação do Projeto de Lei
princípios que regem a administração pública7 e
realçou o direito fundamental previsto no art. 5°, 5.1. Alguns aspectos do Projeto de lei
inc. XXXIII, que estabelece: “todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações do seu Em maio de 2009, foi encaminhado projeto
interesse particular, ou do interesse coletivo ou de lei que visa regulamentar o acesso às infor-
geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob mações, ainda sem número na Câmara. Porém,
pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas antes de abordar a gestão dos documentos go-
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da vernamentais sob a perspectiva do patrimônio
sociedade e do Estado.” Com a finalidade de cultural, é necessário atentar que a publicidade
regulamentar a parte final do disposto desse é um dos princípios regentes da conduta dos
dispositivo constitucional, foi editada a Lei agentes públicos no exercício de sua função e
11.111/05. traço característico da democracia.
6
Art. 7°, incs. I a IV e § único
7
Art. 37 caput,da Constituição.
8 Como destaca Boris Fausto: A distinção entre arquivos públicos e privados, entre o que deve ser guardado ou não, o que deve ser coberto pelo
sigilo, a questão do prazo de abertura da documentação etc., coloca-se de maneira muito peculiar, com relação ao historiador. Não se trata de negar
a necessidade de se estabelecerem prazos, de se conferir um caráter confidencial a certos documentos. Mas os historiador, como é compreensível,
gostaria de que valesse o acesso imediato, sem restrições, pois os limites são inimigos do métier do historiador (Comentário ao texto de Celso
Lafer - O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público: o
acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 51/52).
9 Celso Lafer. O público e o privado: suas configurações contemporâneas para a temática dos arquivos. Documentos Privados de Interesse Público:
o acesso em questão. Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 34/35.
A POLUIÇÃO VISUAL:
FORMAS DE ENFRENTAMENTO
PELAS CIDADES
1
O Autor é 2º Promotor de Justiça de Americana, Mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP e Coordenador da Área de Habitação e Ur-
banismo, do C.A.O. Cível e de Tutela Coletiva, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
3º prevê que a saúde tem como fatores determi- b) afetem as condições estéticas ou sanitá-
nantes, dentre outros, a alimentação, a moradia, o rias do meio ambiente;
saneamento básico, o trabalho, o meio ambiente,
c) lancem matérias ou energia em desacor-
dizendo respeito à saúde as ações que visem
do com os padrões ambientais estabele-
“garantir às pessoas e à coletividade condições
cidos;” (grifos nossos)
de bem-estar físico, mental e social”.
A paisagem pode ser tida, em determinados A paisagem urbana é conceituada por José
casos, como integrante do patrimônio cultural Afonso da Silva como sendo “a roupagem com
brasileiro, conforme previsto no artigo 216, que as cidades se apresentam a seus habitantes
inciso V, da Carta Magna. Para Álvaro Luiz e visitantes”. Dentre as suas funções, está a de
Valery Mirra “O que se procura preservar em equilibrar a carga neurótica que a vida urbana
uma paisagem, normalmente, é acima de tudo despeja sobre as pessoas que nela vivem, con-
a harmonia entre os diversos elementos que a vivem e sobrevivem.7
compõem e não propriamente cada um desses Para Issao Minami e João Lopes Guimarães
elementos individualmente considerados” 5. Júnior, a poluição visual é resultado de descon-
Quando se fala em paisagem urbana refere- formidades e efeito da deterioração dos espaços
se não somente a conjuntos urbanos e sítios de da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios
valor histórico, paisagístico, arqueológico, já publicitários em determinados locais ou quando
protegidos pelo art. 216 da CF, como patrimônio o campo visual do cidadão se encontra de tal
cultural brasileiro, mas se quer abranger qualquer maneira que a sua percepção dos espaços da
porção da cidade por mais comum e simples que cidade é impedida ou dificultada.8
seja, a qual também compõe o meio ambiente Ocorre a poluição visual a partir do mo-
artificial6 ou construído, como normalmente é mento em que o meio não consegue mais digerir
referido o meio ambiente urbano. os elementos causadores das transformações em
O artigo 3º da Lei nº. 6.938/81 preceitua curso, dissipando as características naturais ori-
que para os fins previstos naquela legislação ginais. “No caso, o meio é a visão, os elementos
deve-se entender por: causadores são as imagens, e as características
iniciais, seriam a capacidade do meio de trans-
“I - meio ambiente, o conjunto de condições,
mitir mensagens”.9
leis, influências e interações de ordem
física, química e biológica, que permite, A degradação ambiental ocorrida com a po-
abriga e rege a vida em todas as suas luição visual “é fruto da violação estética de um
formas; padrão paisagístico médio a ser aferido em cada
caso, seja afetando uma paisagem naturalmente
II - degradação da qualidade ambiental, a
bela, ou portadora de outro predicado relevante,
alteração adversa das características do
ou alterando uma paisagem urbana de maneira
meio ambiente;
desarmônica e agressiva”10
III - poluição, a degradação da qualidade Ainda vale menção a Convenção Européia
ambiental resultante de atividades que da Paisagem (European Landscape Convention),
direta ou indiretamente: a qual entrou em vigor no dia 1º de março de
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o 2.004. Foi o primeiro tratado internacional dire-
bem-estar da população; cionado, unicamente, para a proteção, conserva-
5
A Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente, São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, p. 31-32, 2002.
6
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 49.
7
Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p. 273-274.
8
A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003
9
VARGAS, Heliana Comim; MENDES, Camila Faccioni. Poluição visual e paisagem urbana: quem lucra com o caos? Disponível em: <http://www.
estadao.com.br/ext/eleicoes/artigos/comin3.htm> Caderno eleições 2000.Acesso 19 out. 2002.
10
MONTEIRO, Manoel Sérgio da Rocha. Paisagem e Poluição Visual. Disponível em http://www.mp.sp.gov.br/caouma/caouma.htm. Acesso em:
08 abr. 2003
ção, gerenciamento e valorização das paisagens. backligh, frontlight, painel digital ou eletrônico,
O âmbito de sua aplicação é todo o território dos o triedro, fachadas muros e cartazes.
Estados membros, abrangendo espaços naturais, Como explica Bianca M. Bilton Signorini
urbanos, terrestres, aquáticos e marítimos. Tal Antacli14:
Convenção demonstra a preocupação das nações
européias não só com as paisagens excepcio- “No Brasil a palavra outdoor é mais
nais mas com as paisagens da vida cotidiana e comumente conhecida pelo anúncio de
também paisagens degradadas. É um exemplo grandes dimensões, constituído de pai-
por reconhecer a importância da paisagem na nel de 9 (nove) metros de comprimento
qualidade de vida dos homens.11 por 3 (três) de altura no qual são afixa-
dos, através de material especial, 16, 32
Na convenção estão previstas as seguintes
ou 64 folhas (4,40 x 2,90 m; 8,80 x 2,90
bases ou conceituações12:
m; 8,80 x 5,80m) que juntas formam a
a) Reconhecimento jurídico da paisagem mensagem.
como um componente essencial do am-
biente humano, expressão de diversidade ...
do seu patrimônio comum, cultural e O totem é uma estrutura que sustenta o
natural e base sua identidade; logotipo do estabelecimento industrial
b) Estabelecimento de políticas de proteção, e geralmente possui iluminação interna
gestão e ordenamento da paisagem atra- ou externa.
vés da adoção de medidas específicas;
O backlight é um tipo de painel lumino-
c) definição de poluição como sendo: “[...]
so constituído por uma caixa de chapa
degradação ofensiva à visualidade re-
galvanizada, com lona translúcida na
sultante ou de acúmulo de instalações ou
parte frontal, pintada do lado avesso.
equipamento técnico (torres, cartazes de
Confunde-se durante o dia com os ou-
propaganda, anúncios ou qualquer outro
tdoors de papel, mas à noite, ligado auto-
material publicitário) ou da presença de
maticamente por uma célula fotelétrica
plantação de árvores, zona florestal ou
que se acende ao escurecer e iluminado
projetos construtivos inadequados ou mal
por lâmpadas que produzem a sensação
localizados.”
de relevo, parece um gigantesco slide
A expressão sadia qualidade de vida, projetado no espaço.
segundo Liliana Allodi Rossit, engloba duplo
aspecto da tutela ambiental: a qualidade do O frontlight é painel de dimensão variá-
meio ambiente (aspecto imediato) e outro que é vel que conta com lâmpadas que ilumi-
a saúde, o bem-estar e a segurança da população nam a mensagem frontalmente.
(aspecto mediato), que se vêm sintetizando na
expressão qualidade de vida.13 O painel digital ou eletrônico é pratica-
mente um televisor gigante que transmi-
te seqüência de animações e comerciais
Principais fontes de poluição visual controlada por computador.
Podem ser citadas como fontes de poluição O triedro tem dimensão variável e como
visual as mídias conhecidas como outdoor, totem, o próprio nome diz, dispõe de diversos
11
ANTACLI, Bianca M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 64.
12
ibidem, fls. 71-72.
13
ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo: Ed. Ltr, 2001, p. 36, “apud” ANTACLI, Bianca
M. Bilton Signorini, op. cit., fl. 35.
14
Aspectos jurídicos da poluição visual. Dissertação (Mestrado em Direito Difusos e Coletivos). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2.004, fl. 201-202.
triedros em linha. Eles giram ao mesmo no centro e nos bairros mais antigos da
tempo, permitindo a visualização de três cidade.”
mensagens em seqüência.
Ainda merece menção, como fonte de
Além dessas fontes mencionadas, Ignez poluição visual, as denominadas Estações
Conceição Ninni Ramos15 descreve outras fon- Rádio-Base (ERB´s), que devido à proliferação
tes de poluição, tais como: folhetos, folhetins desordenada, fruto do aumento no número de
e folders distribuídos por empresas nos faróis; linhas em decorrência da expansão do sistema
muros eternizados com anúncios de shows e de telefonia móvel, acabam sendo destaques
eventos sobrepostos (apostos em viadutos, pi- negativos na paisagem urbana. A solução seria
lastras e postes); bancas de jornal abarrotadas de o compartilhamento de suas estruturas de uma
publicidade; barracas dos camelôs (exibição de torre, que abrigaria antenas de diversas operado-
faixas e cartazes dos produtos à venda); os “pu- ras de telefonia celular, bem como a denominada
xadinhos”, que já se incorporaram à paisagem mimetização (camuflagem) das estruturas e
das quadras comerciais (bares, restaurantes e antenas das ERB´s.
boates), tomando calçadas e áreas verdes. Tam-
bém se refere aos veículos e engarrafamentos nas
ruas e avenidas da cidade como manifestação de Poluição visual: abrangência,
poluição visual. Sobre o assunto, com maestria, gradatividade, características,
leciona a ilustre autora: causas e consequências
“Há cerca de 10 milhões de anúncios
espalhados pelas ruas de São Paulo, A poluição visual atinge espaços habitados
dos quais, estima-se, somente 100.000 pelo homem, sendo por este produzida. Atinge
sejam cadastrados e 55.000 licenciados. tanto a zona rural como a urbana. Nas áreas
A pé ou de carro, é impossível fugir do urbanas, em geral, esse tipo de poluição acaba
desconforto visual que toma de assalto por comprometer a função social das cidades,
os que transitam na maior cidade da prevista no artigo 182 da Constituição Federal,
América do Sul. O suceder de placas, bem como o bem-estar da população.
painéis, cartazes, cavaletes, faixas, ban- Nas grandes cidades, onde o mercado
ners, infláveis, balões, totens, outdoors, consumidor é maior, mais competitivo e dinâ-
backlights, frontlights, painéis eletrôni- mico, existe uma concentração de anúncios em
cos e painéis televisivos de alta defini- algumas áreas da cidade, com loteamento do
ção, além de causar agressões visuais espaço público pelo próprio Poder Público para
e físicas aos “espectadores”, retiram a
fins publicitários. Em geral essa publicidade é de
possibilidade dos referenciais arquitetô-
baixo preço ou há ausência de cobrança pelo uso
nicos da paisagem urbana, transgridem
da paisagem, sem adequada diferenciação quanto
regras básicas de segurança, aniquilam
à maior ou menor visibilidade do local onde
as feições dos prédios, obstruindo aber-
anúncio publicitário está sendo veiculado.
turas de insolação e ventilação, deixam
a população sem referencial de espaço, Apesar da característica da gradatividade
de estética, de paisagem e de harmonia, no comprometimento da paisagem urbana, de-
dificultando a absorção das informações vido ao paulatino crescimento das cidades e da
úteis e necessárias para o deslocamento. atividade econômica, ela acaba por comprometer
... Mas talvez a consequência mais fu- as presentes e futuras gerações, devendo ser
nesta da poluição visual em São Paulo sempre controlada e, se necessário combatida, a
seja a descaracterização do conjunto fim de se evitar as consequências maléficas, ao
arquitetônico, especialmente observada longo deste trabalho várias vezes mencionadas.
15
Poluição Visual. Disponível em: http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65 . Acesso 8 mai. 2002
23
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional, 2º ed., São Paulo: Malheiros, p. 12.
24
Op. cit., p. 127.
25
ibidem, p. 127.
26
Meio Ambiente e poluição. Disponível em < http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em 20 de abr. 2009.
27
Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009
28
Santos, Fabiano Pereira dos. Meio Ambiente e poluição. Disponível em <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 20 abr. 2009
Também restou penalmente tipificada a al- em que regula as formas de publicidade. Nesse
teração de aspecto ou estrutura de edificação (ar- sentido cabe observar que a publicidade agressiva
tigo 63 da Lei 9.605/98), a pichação/grafitagem não respeita autonomia dos contratantes fracos,
ou conspurcação de edificação ou monumento sendo necessária a valorização da informação e
urbano (artigo 65), exigindo-se, sempre, o dolo. da confiança despertada do consumidor.
Vale anotar que embora se tratem de delitos O Código de Defesa do Consumidor ainda
de menor potencial ofensivo, para a transação e/ traz dispositivos vedando publicidade enganosa
ou suspensão do processo há necessidade de re- e/ou abusiva (artigo 37), determinando que ela
paração do dano (art. 27 e 28 da Lei nº. 9.099/95). deva ser de fácil identificação (artigo 36) e não
Portanto, mesmo a lei de crimes ambientais pode induzir o consumidor a comportar-se de
tem função não apenas preventiva da paisagem maneira prejudicial ou perigosa à sua saúde
urbana, mas também reparadora. ou segurança (artigo 68). Nesse diapasão, vale
O Decreto-Lei 25/37, o qual organiza a lembrar, com Jose Afonso da Silva, que a pu-
proteção do patrimônio estético e artístico na- blicidade, dependendo de suas características
cional, em seu artigo 1º, § 2º, equipara a bens visuais, pode provocar distração nos motoristas
do patrimônio histórico e artístico nacional a (outdoors, faixas, cartazes, fachadas de néon,
serem tombados os monumentos naturais, sítios painéis eletrônicos), com comprometimento da
e paisagens aqueles dotados de feição notável, visualização ou distração em relação ao traçado
pela natureza ou pela indústria humana, os da via ou da sinalização de trânsito. Portanto, há
quais devem ser conservados e protegidos. No possibilidade de proibição de publicidade em de-
artigo 18 é exigida autorização do Serviço do terminados locais, ante suas peculiaridades.29
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para
Nesse mesmo sentido, o Código de Trânsito
colocação de anúncios ou cartazes na vizinhança
Brasileiro (Lei nº. 9.503/98), em seu artigo 81,
da coisa tombada.
proíbe a colocação, em vias públicas ou em imó-
A Lei nº. 9.504/97, a qual dispõe sobre veis, de luzes, publicidade, inscrições, vegetação
as eleições, em seu artigo 37, com o objetivo e mobiliário que possa gerar confusão, interferir
de tutelar a estética urbana durante as eleições, na visibilidade da sinalização, ocasionado com-
preceitua que “Nos bens cujo uso dependa de
prometimento da segurança do trânsito. Tal di-
cessão ou permissão do Poder Público, ou que
ploma legal ainda proíbe fixar sobre sinalização
a ele pertençam, e nos de uso comum, inclusive
de trânsito e respectivos suportes (ou em ambos),
postes de iluminação pública e sinalização de
qualquer tipo de publicidade (artigo 82 do CTB),
tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas
como inscrições, legendas e símbolos que não se
de ônibus e outros equipamentos urbanos, é
relacionem com a mensagem de sinalização.
vedada a veiculação de propaganda de qualquer
natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta, O objetivo do código, como bem anota
fixação de placas, estandartes, faixas e asseme- Celso Antônio Pacheco Fiorillo, é limitar a
lhados”. Entretanto, foi permitida a propaganda liberdade em prol da estética visual, visando à
política em bens particulares (artigo 37, § 2º). sadia qualidade de vida.30
O Código Eleitoral, no artigo 243, inciso VIII, A Constituição do Estado de São Paulo
veda a propaganda que prejudique a higiene ou prevê como área de proteção permanente as pai-
estética urbana ou que esteja em desacordo com sagens notáveis (artigo 197, V) e classifica como
posturas municipais ou qualquer outra restrição patrimônio cultural, portadores de referências à
de direitos. identidade, “os conjuntos urbanos e sítios de
A Lei nº. 8.078/90 (Código de Defesa do valor histórico, paisagístico, artístico, arqueo-
Consumidor - CDC) também contém dispositi- lógico, paleontológico, ecológico e científico”
vos relacionados à paisagem urbana, na medida (artigo 260, IV).
29
Direito Urbanístico Brasileiro, p. 182.
30
Op. cit, p. 136.
teses autorizadas estão no artigo 13), que pelas IX - não prejudicar a visualização de bens
mesmas razões do parágrafo anterior a seguir de valor cultural.”
são descritas:
Quanto às vedações de anúncios, as regras
“Art. 8º. Todo anúncio deverá observar, são as seguintes:
dentre outras, as seguintes normas:
“Art. 9º. É proibida a instalação de anún-
I - oferecer condições de segurança ao cios em:
público;
I - leitos dos rios e cursos d’água, reser-
II - ser mantido em bom estado de con- vatórios, lagos e represas, conforme
servação, no que tange a estabilidade, legislação específica;
resistência dos materiais e aspecto
II - vias, parques, praças e outros logra-
visual;
douros públicos, salvo os anúncios de
III - receber tratamento final adequado em cooperação entre o Poder Público e a
todas as suas superfícies, inclusive na iniciativa privada, a serem definidos
sua estrutura; por legislação específica, bem como
IV - atender as normas técnicas pertinen- as placas e unidades identificadoras
tes à segurança e estabilidade de seus definidas no § 6º do art. 22 desta lei;
elementos; III - imóveis situados nas zonas de uso
V - atender as normas técnicas emitidas estritamente residenciais, salvo os
pela Associação Brasileira de Normas anúncios indicativos nos imóveis regu-
Técnicas - ABNT, pertinentes às dis- lares e que já possuíam a devida licença
tâncias das redes de distribuição de de funcionamento anteriormente à Lei
energia elétrica, ou a parecer técnico nº. 13.430, de 13 de setembro de 2002;
emitido pelo órgão público estadual ou IV - postes de iluminação pública ou de
empresa responsável pela distribuição rede de telefonia, inclusive cabines e
de energia elétrica; telefones públicos, conforme autori-
VI - respeitar a vegetação arbórea sig- zação específica, exceção feita ao mo-
nificativa definida por normas espe- biliário urbano nos pontos permitidos
cíficas constantes do Plano Diretor pela Prefeitura;
Estratégico; V - torres ou postes de transmissão de
VII - não prejudicar a visibilidade de si- energia elétrica;
nalização de trânsito ou outro sinal de VI - nos dutos de gás e de abastecimento
comunicação institucional, destinado de água, hidrantes, torres d’água e
à orientação do público, bem como a outros similares;
numeração imobiliária e a denomina-
VII - faixas ou placas acopladas à sinali-
ção dos logradouros;
zação de trânsito;
VIII - não provocar reflexo, brilho ou
VIII - obras públicas de arte, tais como
intensidade de luz que possa ocasionar
pontes, passarelas, viadutos e túneis,
ofuscamento, prejudicar a visão dos
ainda que de domínio estadual e fe-
motoristas, interferir na operação ou
deral;
sinalização de trânsito ou, ainda, causar
insegurança ao trânsito de veículos IX - bens de uso comum do povo a uma
e pedestres, quando com dispositivo distância inferior a 30,00m (trinta
elétrico ou com película de alta refle- metros) de obras públicas de arte, tais
xividade; como túneis, passarelas, pontes e via-
dutos, bem como de seus respectivos bem como fez prevalecer a função social da
acessos; propriedade e da cidade (artigo 170, III, e 182,
“caput”, respectivamente, da Carta Magna), não
X - nos muros, paredes e empenas cegas
invadindo competência legislativa do Estado e da
de lotes públicos ou privados, edifica-
União para legislar sobre publicidade no âmbito
dos ou não;
da relação de consumo (artigo 22, inciso XIX e
XI - nas árvores de qualquer porte; artigo incisos 24, V, VII e VIII, da CF). No sen-
tido da constitucionalidade da Lei nº 14.223/06
XII - nos veículos automotores, moto-
podem ser mencionados os seguintes acórdãos:
cicletas, bicicletas e similares e nos
“trailers” ou carretas engatados ou JULGAMENTO “EXTRA PETITA” - A
desengatados de veículos automotores, SENTENÇA JULGOU A AÇÃO DENTRO
excetuados aqueles utilizados para DO PEDIDO – NÃO HÁ QUE SE FALAR
transporte de carga.” EM NULIDADE. LEI DOS ANÚNCIOS - LEI
MUNICIPAL NQ 14.223, DE 26/9/2006, QUE
O artigo 23 prevê a responsabilização DISPÕE SOBRE A ORDENAÇÃO DOS ELE-
solidária do anúncio pelo possuidor e proprie- MENTOS QUE COMPÕEM A PAISAGEM
tário do imóvel onde aquele estiver instalado, o URBANA NO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO
mesmo ocorrendo com a empresa instaladora. DE SÃO PAULO É MATÉRIA DE NATUREZA
A Comissão de Proteção da Paisagem Urba- AMBIENTAL E TEM COMO FINALIDADE
na (CPPU) será a principal responsável pelo ADEQUAR A FUNÇÃO DA PROPRIEDADE
acompanhamento da legislação paulistana sobre EM FUNÇÃO DA PAISAGEM URBANA,
anúncios (artigo 35), bem como quanto às novas RELACIONADA COM O USO COMUM DO
tecnologias e meios de veiculação de anúncios POVO.
(artigo 47), sendo o licenciamento de respon- INCONSTITUCIONALIDADE - A LEI
sabilidade das subprefeituras (artigo 36). No NÃO É INCONSTITUCIONAL, POIS O MU-
artigo 39 e seguintes estão previstas as infrações NICÍPIO NÃO USURPOU A COMPETÊN-
e penalidades. CIA CONSTITUCIONAL CONFERIDA À
Os mobiliários urbanos estão conceituados UNIÃO, UMA VEZ QUE A CITADA NORMA
no artigo 22 da Lei 14.223/06, com diretrizes de LEGAL NÃO DIZ RESPEITO AO ÂMBITO
instalação no artigo 23, sendo que a publicida- ECONÔMICO DA PUBLICIDADE OU PRO-
de nos mesmos será regulada em lei específica PAGANDA, MAS SIM AO QUE SE REFERE
(artigo 21). Como regra geral, o artigo 18 prevê AO MEIO AMBIENTE, ARQUITETURA E
que “Fica proibida, no âmbito do Município de URBANISMO, POSSUINDO O MUNICÍPIO
São Paulo, a colocação de anúncio publicitário COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA
nos imóveis públicos e privados, edificados ou LEGISLAR SOBRE TAIS MATÉRIAS.
não”. São permitidos aqueles elencados no artigo LIVRE INICIATIVA - A LEI NÃO VEDA
19, com finalidade cultural, educativa, eleitoral O EXERCÍCIO DE PROFISSÃO E/OU ATIVI-
e imobiliária. DADE, DESDE QUE OBEDEÇA A LEI.
Como se percebe dos dispositivos trans- DIREITO DE PROPRIEDADE - DEVE
critos e mencionados nos parágrafos anteriores, OBEDECER AO PRINCÍPIO CONSTITUCIO-
a Lei Municipal nº. 14.223/06, que vedou o NAL DA FUNÇÃO SOCIAL.
anúncio publicitário em locais públicos e pri- PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDA-
vados, visando proteção da paisagem urbana DE E RAZOABILIDADE - A LEI TEM POR
(meio ambiente artificial ou estético) e do meio FINALIDADE ORDENAR O ESPAÇO PÚBLI-
ambiente cultural (patrimônio histórico) tratou CO E REGULÁ-LO NO QUE DIZ RESPEITO
de regulamentar, dentro do interesse local (artigo - PAISAGEM URBANA - CONTROLE DE
30, incisos I, II, VIII e IX, da CF), questão am- POLUIÇÃO VISUAL - NÃO SE VISLUMBRA
biental e urbanística (artigo 225 e 182 da CF), QUALQUER EXCESSO.
Considerando que o artigo 23, inciso VI, participação de profissionais de diversos ramos
da Constituição Federal atribui à União, Estados, (comissão multidisciplinar), da população e dos
Distrito Federal e Municípios competência co- comerciantes locais, para somente depois disso
mum para “proteger o meio ambiente e combater se elaborar projetos de leis seguindo, em linhas
a poluição em qualquer de suas formas”, bem gerais, as conclusões dessas audiências (visa-se
como deve proteger as paisagens naturais notá- eliminar, ao máximo, o grau de subjetividade e
veis (artigo 23, III), o município poderá combater o autoritarismo dos agentes públicos).
e punir a poluição visual utilizando-se, na medida Sendo função do Poder Público zelar pelos
de suas competências, todo o arcabouço legis- interesses da maioria com relação aos da mino-
lativo que mencionamos em capítulo próprio. ria em questões privadas, às quais geralmente
Quando não for de sua atribuição a aplicação cede em razão da pressão de grupos influentes
de determinado diploma legal deverá instar o e atuantes no espaço da cidade, a conclusão
ente federativo competente a agir, enviando-lhe é a de que o Poder Público tem sido omisso.
representação devidamente instruída com as Importante ferramenta para o combate às omis-
provas dos fatos ilícitos denunciados. sões dolosas e culposas quanto à fiscalização e
É papel da municipalidade disciplinar e combate aos danos ambientais à paisagem urbana
fiscalizar adequadamente, diga-se com o rigor é a utilização das punições previstas na Lei de
que a situação específica mereça, a afixação de Improbidade Administrativa, que poderá ser
anúncios publicitários em locais como: vias de utilizada nas ações civis públicas movidas pelo
tráfego de elevado fluxo; monumentos públi- Ministério Público na defesa do meio ambiente
cos, bens e locais tombados e suas adjacências; artificial e natural.
pontes, viadutos e passarelas; árvores das vias Pensando ter demonstrado, com as limi-
públicas; postes, torres ou qualquer estrutura tações da singeleza inicialmente proposta, as
destinada a suportar redes aéreas dos meios de principais causas da poluição visual, seus efei-
comunicação e de energia elétrica; cemitérios; tos e formas de enfrentamento, especialmente
proximidades de semáforos, sempre que possam pelos municípios, que detém poder fiscalizador
confundir visão ou interpretação, tudo em con- concorrente com os demais entes federativos e
formidade com o Plano Diretor das cidades e o competência legislativa concorrente em virtude
Código de Obras. do interesse eminentemente local, resta aos
Também não pode ser olvidada, pelo Poder membros e servidores do Poder Público Mu-
Público, a preparação das gerações futuras para nicipal lançarem mão do instrumental jurídico
lidar com o problema da paisagem visual (com aqui mencionado e, se necessário, criar outros
atitudes preventivas como educação e repressi- para implementarem a efetiva defesa do meio
vas), com a colaboração, ainda que compulsória, ambiental cultural e artificial.
dos meios de comunicação de massas, dos edu- Nesse diapasão, vale transcrever as
cadores, dos intelectuais, das universidades etc. valiosas observações de Ignez Conceição Ninni
Também deverá o Poder Público municipal Ramos e de José Afonso da Silva, na ordem a
buscar algum grau de consenso em relação à seguir transcritas:
beleza de elementos naturais31 em geral (vegeta- Não há legislação no mundo que possa
ção, céu, lagos, rios e praias) e até de elementos compensar a falta de vontade política.
artificiais (monumentos, prédios históricos com Enquanto a poluição visual for tratada
características marcantes de determinado estilo e como a paciente que ainda não inspira
fachadas visualmente desobstruídas), através de cuidados, a paisagem urbana continua-
audiências públicas por bairros ou regiões, com rá sofrendo de doença terminal. Retar-
31
MINAMI, Issao; GUIMARÃES, João Lopes Júnior. A importância da Paisagem. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/
bases/texto094.asp>. Acesso em: 09 mai. 2003
dar o tratamento poderá inviabilizar a na ambiental, que lancem mão do seu poder de
cura32 petição e/ou dos instrumentos jurídicos dispo-
níveis, promovendo as ações administrativas
“Uma cidade não é um ambiente de cabíveis, representações e/ou recomendações
negócios, um simples mercado onde até à(s) autoridade(s) competente(s), para que sejam
a paisagem é objeto de interesses eco- tomadas as medidas apropriadas em prol da
nômicos lucrativos, mas é, sobretudo, paisagem urbana, propiciando melhores con-
um ambiente de vida humana, no qual dições de saúde e de bem-estar aos habitantes
se projetam valores espirituais perenes,
das cidades, que segundo o IBGE são cerca de
que revelam às gerações porvindouras
82% da população brasileira. Diante dessa pro-
a sua memória”.33
vocação, a continuidade da omissão por parte
Assim, espera-se de todos os operadores da(s) Autoridade(s) poderá caracterizar ato de
do Direito e dos agentes públicos, especial- improbidade administrativa (artigo 11, incisos I
mente aqueles atuantes na área urbanística e e II, da Lei nº 8.429/92).
32
RAMOS, Ignez Conceição Nini. Poluição Visual. Disponível em <http://www.redeambiente.org.br/Opiniao.asp?artigo=65>. Acesso em: 09 mai.
2003
33
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p 274
* Advogado. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Ambiental pela
UNIMEP/ Piracicaba. Estagiário no Anderson, Coe & King, LLP Attorneys at Law em Baltimore (Maryland), Estados Unidos.
da atuação estatal: uma vez que a norma sobre cidadania visa garantir o direito de participação política de todos os cidadãos, será um mecanismo
de controle de atuação do Estado. Por fim, a natureza de cláusula pétrea do direito fundamental ‘a cidadania, em função de sua natureza de direito
fundamental individual, está prevista no art. 60, parágrafo 4o, IV, o que impede sua revogação normativa. Com efeito, levando-se em consideração
nossa realidade constitucional, uma melhor classificação partiria de critérios do sujeito titular de direitos: individuais (direitos que possuem como
titular pessoas físicas ou jurídicas); coletivos (direitos que têm como titular grupo determinado de pessoas unidas por uma relação jurídica básica);
sociais (titular pessoa física em situação de desigualdade social); e difusos (direitos indivisíveis cujo titular é grupo indeterminado de pessoas). No
caso da cidadania, fala-se em cidadania individual no caso de impetração de ação popular, por exemplo; e de cidadania enquanto direito coletivo
no caso do sufrágio. LOPES (2007). p., 28-32.
5
OLIVEIRA (1952). p., 11. No liame que vincula estas temáticas acima descritas, nasceu no direito industrial (em matéria de acidentes de trabalho,
frente a influência de Bismarck),a noção de ‘risco profissional’. Nesse sentido, não se tratava de estabelecer a culpa do patrão ou do empregado,
mas de comprovar o acidente. A lei, desta forma, regularia a indenização ao preço alçado. Da mesma maneira, apareceu na mesma época na França
(entre civilistas reputados, tais como SALEILLES e JOSSERAND, a doutrina da responsabilidade objetiva, que independe da culpabilidade. No
Direito Penal, nas mesmas condições, surge a teoria da defesa social. PRINS(1912). p., 63-64.
6
CEZARINO JR. Vol. 2. (1957). p., 24. O mesmo autor, em seu volume 1o, apresenta os motivos que o condicionam a entender o conceito de Direito
Social como sendo um qualificativo melhor para a definição da Disciplina que alguns entendem por Direito do Trabalho.
7
A Faculdade de Direito da USP, pela Lei Paulista n. 3023/37, em seu artigo 7o, batizava de Legislação Social sua disciplina jurídica. Pela Lei
Federal n. 2724 de 1956, as demais Faculdades de Direito do País denominavam de Legislação do Trabalho as disciplinas cuja concepção fora
antes suprimida pela expressão sinônima de Direito Laboral, mudada posteriormente para Direito do Trabalho, sendo que o Direito Industrial seria
estudado com o Direito Comercial, como antes já ocorria na Faculdade de São Paulo. A Constituição de 1946, no artigo 5o, XV, letra ‘a’, fala em
Direito do Trabalho; enquanto o artigo 157 emprega a denominação de Legislação do Trabalho. O decreto- lei n. 1237/39, que instituiu a Justiça
do Trabalho, em seu artigo 1o, se referia a Legislação Social, e em seu artigo 94 falava de Direito Social. O artigo 693, ‘a’ da CLT, ao tempo,
dispunha de um Direito Social. Esta denominação também é adotada por Evaristo de Moraes Filho. Com isso, o debate recai sobre a evolução da
própria disciplina: direito industrial, direito operário, direito corporativo ou corporativo-sindical, legislação social, do trabalho ou social-trabalhista,
direito social, direito do trabalho, além de um possível direito econômico e profissional. FILHO, E. de M. p., 157 a 228. In: CEZARINO JR. Op.
Cit..Vol. 1o. p., 11-15.
8
WATERHOUSE (1989). p., 196.
9
LEITE (1997). p., 22-25.
10
CARVALHO (2001).p., 219-222.
titucionalidade de suas palavras. De qualquer trabalho fora incluído no rol dos direitos sociais.
maneira, assim dizia o texto: Ademais, o valor dado ao trabalho foi colocado
como fundamento do Estado Democrático (art.
“O Homem é o problema da sociedade
1o, IV), em igualdade de importância com os
brasileira: sem salário, analfabeto, sem
demais fundamentos do Estado Democrático de
saúde, sem casa, portanto sem cidadania.
Direito, tais como a cidadania; a soberania; a
A Constituição luta contra os bolsões
dignidade da pessoa humana; a livre iniciativa
de miséria que envergonham o país.
e o pluralismo político.15 Assim, a Constituição
Diferentemente das sete constituições
Federal apresenta um aspecto econômico e outro
anteriores, começa com o homem. Gra-
social, sendo que o valor trabalho aparece como
ficamente testemunha a primazia do
fundamento e base da Ordem Social e Econômi-
homem, que foi escrita para o homem,
ca, e permeia toda a Constituição.16
que o homem é seu fim e sua esperança.
É a constituição cidadã. Cidadão é o De toda maneira, o tema ‘trabalho’ é muito
que ganha, come, sabe, mora, pode se mais complexo do que nos propomos a estudar
curar. (...)”14 nesse trabalho. Mas devemos nos atentar também
para outras manifestações que a problemática
Nestes termos, notemos que a noção dos pode apresentar. Assim:
direitos sociais integram o conceito de cidadania “Não obstante, fica claro que a maioria
na Constituição Federal de 1988, corroborando destas demandas ainda não foi satisfeita. Se a
com o anteriormente mencionado e com o que crescente sensibilidade de largas parcelas da
dispõe acerca da temática que agora discorremos. força de trabalho para a utilidade negativa do
No Brasil, a palavra ‘trabalho’ nem sempre trabalho assalariado coincidir com a percepção
foi tida como um ‘valor social’, conforme dis- de um declínio no valor de uso de seus produtos,
põe o atual artigo 1o, inciso IV da CF/88, mas pode-se esperar uma perda crescente na rele-
transformou-se ao longo dos tempos, vinculan- vância subjetiva do trabalho assalariado ou uma
do-se com diversos princípios constitucionais aceitação decrescente de suas condições físicas,
e irradiando-se por toda a Constituição. Na psicológicas e institucionais. É sintomático
CF/88, o ‘primado do trabalho’ figura-se como desta possibilidade o fato de que a tradicional
princípio constitucional. Tal princípio é a base reivindicação sindical por um efetivo “direito
da Ordem Social. ao trabalho” - uma demanda que atualmente já
E nesta perspectiva, os direitos sociais possui um pronunciado tom utópico - seja criti-
correspondem à luta pela igualdade, manifesta- cada como insuficiente, e, portanto, refraseada
da por esforços conjuntos do homem na busca numa demanda pelo “direito ao trabalho útil e
17
por melhores condições. Tanto assim o é que o significativo””
14
http://www.tc.df.gov.br/contaspublicas/ice5/contas/2007/Arq03i_Apresentacao_004-016.pdf
15
SANTOS (2003). p., 83-84.
16
O Artigo 170, assegura que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humanoe na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VIII - busca do pleno emprego“. Ademais: o
trabalho é requisito para configuração da função social da propriedade (Art. 186, III); e para a configuração da usucapião (Art. 191), ambos da
CF/88. O trabalho também se constitui como requisito para a emancipação. No Artigo 193 da CF/88, “A ordem social tem como baseo primado do
trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. O Artigo 195, I, ‘a’, dispõe que “A seguridade social será financiada por toda a socieda-
de, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, e das seguintes contribuições sociais: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho (...). O Artigo 203 da CF/88 estabelece
que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição `a seguridade social, e tem por objetivos: III)
- a promoção da integração ao mercado de trabalho. No Artigo 205, da CF/88: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho“. O Artigo 214 assegura que “A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando
`a articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e `a integração das ações do Poder Público que conduzam `a: IV) formação
para o trabalho. Grifo nosso.
17
MUECKENBERGER, U. (s/d), “Zur Problematik eines Rechts auf Arbeit”, in Arbeitsprozess, Vergesellschaftung, Sozialverfassung. Bremen.
Apud: OFFE, Claus. Trabalho: categoria- chave da sociologia? shttp://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_10/rbcs10_01. Acesso em:
17/11/2008.
18
Diversos autores dos tempos antigos traziam o trabalho num sentido de esforço, cansaço, pena, castigo e expiação. Na Índia e no Egito pré-cristão
já se encontravam menções ao trabalho como expurgação. Na Grécia antiga também não se deu de maneira diversa. O cidadão romano não fazia,
mas ordenava aos escravos ou estrangeiros para que o fizessem. Com o surgimento do cristianismo, podemos pensar Jesus e seu Pai como a repre-
sentação do trabalho, encontrada em diversas passagens. Por volta de 1748, Montesquieu proclamava que ‘um homem não é pobre pelo fato de nada
possuir, mas sim porque não trabalhe” Mesma linha encontramos o posicionamento de Locke. Com estas mudanças no perfil, o trabalho seria assim
(não mais um castigo), mas a causa da riqueza, da prosperidade do homem e, na ótica que pretende encontrar êxito no patrimônio, na relação de
propriedade. Em 1819, Charles Fourier começava a proclamar assuntos de interesse dos trabalhadores. Na Franca, em Lion, recordamos de frases
como’viver livre trabalhando ou morrer combatendo’. O cantão suíço de Valud, em 1830, erigiu a posição de garantia legal do direito ao trabalho e,
em 1845, quando o Parlamento radical ascendeu ao poder, o parlamentar Druey logrou do Conselho do Cantão a aprovação do dispositivo. Três anos
mais tarde, a França, em trabalho de elaboração constitucional, não admitiu a inclusão do preceito do direito ao trabalho no texto constitucional. A
própria Suíça não conseguiu elevar o direito ao trabalho ao status de constitucional, quando o projeto de Emenda Constitucional proposto por Émile
Frey foi rejeitado por 75% do eleitorado. Com isso, cabe registrar o conteúdo de norma programática do direito ao trabalho, quando da criação do
Seguro Social obrigatório na Alemanha de Bismarck. Na Carta del Lavoro de abril de 1927, o trabalho, em qualquer de suas formas, era um dever
social e, somente sob este titulo deveria ser tutelado pelo Estado. Em março de 1938, nas vésperas da 2a Grande Guerra e durante a Guerra Civil
Espanhola, na mesma linha fascista, o Fuero del Trabajo assegurava que todos os espanhóis tem direito ao trabalho. A partir de meados de 1945,
o Brasil, a Itália e diversas outras Constituições incluem o direito ao trabalho em nível Constitucional. AMORIM E SOUZA (1985). p., 13-16.
19
BARASSI (1949). p., 4-5. Paolo Biscaretti di Ruffia (Diritto Costituzionale), estudando a Constituição Italiana de 1.947, afirma a respeito do
direito ao trabalho que o art. 4o.o reconhece, ainda que com um caráter essencialmente programático, no parágrafo 1o. “A República reconhece a
todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornam efetivo este direito”. E no parágrafo 2o estabelece o dever do trabalho.
Além disso, é oportuno integrar o artigo 4o. com o significativo enunciado do parágrafo 1o. do artigo 1o. da Constituição, que reza: “A Itália é
uma República Democrática fundada sobre o trabalho”. A Constituição Soviética, nesta linha, enumera o direito ao trabalho, mas não devemos
olvidar que o valor aí predominante é o espírito comunitário e que os deveres enumerados têm conseqüências práticas muito definidas, sendo
sintomático que o dever de trabalhar, como serviço à comunidade, apareça dezoito anos antes do direito ao trabalho. LIMA, Fernando Machado
da Silva. Direito ao Trabalho. http://www.profpito.com/direitoaotrabalho.html. Acesso em: 12/11/2008.
20
SÜSSEKIND sugeriu a seguinte redação do primeiro inciso: I) direito ao trabalho, mediante política de pleno emprego”. Quanto aos outros dois,
fundiriam -se num só. SÜSSEKIND. Op. Cit. 57-58. Nesta linha, observamos o direito ao trabalho como um princípio constitucional.
21
O Artigo 6° da CF/88, dispõe que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção ‘a maternidade e ‘a infância, a assistência aos desamparados.
22
A Lei 10257/2001, por sua vez, dispõe em seu artigo 2o que: “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I)garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o
direito ‘a terra urbana, ‘a moradia, ao saneamento ambiental, ‘a infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer,
para as presentes e futuras gerações”. Ainda nessa linha legislativa, no tocante ao direito ao trabalho, pensemos no seguinte: direito ao trabalho
dos indivíduos portadores de deficiências e dos indivíduos soropositivos; na Lei 9956/00 e Lei 9799/99 que proíbe as bombas de auto-serviço nos
postos de gasolina; no PL 4244/04 que busca uma regulamentação dos profissionais do sexo; Decreto-Lei 3688/41, em seu art. 59, que dispõe
sobre a contravenção de vadiagem.
23
SANTOS. Op. Cit. p., 90-93.
24
A Constituição da Guatemala de 1945 coloca, em seu artigo 55, que “ o trabalho é um direito do indivíduo e uma obrigação social. A ociosidade
é punível”. A Constituição italiana, comentando PERSOLESI, diz que o dever de trabalhar é um dever de natureza moral e política, pois não é
acompanhada de uma sanção. MENEZES. Op. Cit. p., 56.
25
Assim, bem- estar e justiça sociais não seriam princípios, mas diretrizes (objetivos) que a CF/88 quer ver atingidos com a implementação dos
direitos sociais, o que somente ocorreria com o trabalho. O primado do trabalho, conjugado com os objetivos da Ordem Social, dá o desfecho ‘a
questão social, na forma desejada pelo Constituinte de 1988, respeitando a dignidade humana. Com efeito, seriam esses objetivos as diretrizes
para o legislador infraconstitucional e o intérprete da lei. Por fim, o conceito de justiça social se observa como um dos objetivos da ordem social,
já mencionando o Preâmbulo acerca dessa questão. Não menos importante, são alguns dispositivos constitucionais que apontam para o conceito
de justiça social: o artigo 1o, no Título I, dos Princípios Fundamentais; o artigo 3o que enumera os fundamentos da República; o artigo 4o no
âmbito de suas relações internacionais; o Título II, Capítulo I, que enumera o rol dos direitos individuais e coletivos; o artigo 6o e 7o da CF/88 e
ainda os artigos que trata da Ordem Econômica e Financeira (arts. 170-192). Por sua vez, a efetivação dos direitos sociais teria seu modus operandi
estabelecido constitucionalmente por meio de seu desenvolvimento (fundado na solidariedade social) para se chegar ‘a justiça social. SANTOS.
Op.Cit. p., 92-94; 127-137.
26
Na perspectiva internacional do direito ao trabalho, vide: Artigo 6.º, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Artigo
1o da Convenção 122 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); Artigo 1o da Carta Social Européia; Pacto dos Direitos Civis e Políticos;
a Convenção sobre os Direitos das Crianças; a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migratórios e
seus Familiares; o Pacto de São José da Costa Rica e diversos outros que expressamente tratam do direito ao trabalho.
27
SÜSSEKIND. Op. Cit. p., 59. Para o autor, o ideal seria se a Constituição dispusesse de um artigo que tratasse especificamente dos princípios,
para todos” (Item III), visando acabar com o ao cidadão não trabalhar. Neste sentido, recor-
desemprego e o sub-emprego, e a “dar a cada demos de algumas Constituições mencionadas
trabalhador uma ocupação na qual ele tenha a anteriormente, que inclui o trabalho como um
satisfação de utilizar, plenamente, sua habilidade ‘dever social’ ou ‘obrigação social’.31
e seus conhecimentos e de contribuir para o bem Noutra perspectiva, temos a definição de
geral” (Item III, b). E sobre o prisma constitu- direito ao trabalho, onde:
cional, o direito ao trabalho se dirige para todas
“Le devoir de travailler et le droit d’obtenir
as pessoas (especialmente ao Estado), possuindo un emploi proclamés par le préambule cons-
caráter jurídico público e obrigando o Estado titutionnel fondent en fait le droit `a l’emploi,
a preocupar-se, na medida do possível, com a l’emploi étant le travail saise dans sa durée. Il ne
criação de novas oportunidades de trabalho.27 s’agit pas, selon le Conseil constitutionnel, d’un
Com fundamento neste artigo da Declara- droit subjectif ‘il appartient `a la loi de poser des
ção dos Direitos Humanos, o direito ao trabalho régles propres `a assurer au mieux le droit pour
apresenta quatro aspectos diversos, sendo eles chacun d’obtenir emploi’. La recherche du plein
o direito ao trabalho em si; à livre escolha do emploi correspond donc `a un ‘droit collectif’’, `a
emprego; condições justas e favoráveis; e pro- une “mission constitutionnelle de service public”.
teção contra o desemprego.28 Assim, o direito Dans un rapport sur les ‘politiques de l’emploi
humano ao trabalho concebido como direito dans une économie mondialisée (...)”.32
subjetivo, não pode ser interpretado como um Na doutrina espanhola, o direito ao trabalho
direito a determinado posto de trabalho, o que aparece como conseqüência de um dever social.
seria incompatível com o regime democrático de Mas se existe o dever de trabalhar, há que ter
direito. Relaciona-se sim, com um direito a pos- um direito de trabalhar, necessário para poder
suir oportunidades de emprego. Sendo assim, o cumprir esse dever. Sendo assim, o direito ao
Estado só poderia dispor de um posto de trabalho trabalho é uma necessidade social, mas é tam-
para cada indivíduo em um sistema econômico bém, dentro das relações sociais, uma expressão
totalitário e de direção centralizada.29 de justiça. Responde a um reconhecimento de
Com efeito, direito ao trabalho e pleno em- uma necessidade sentida universalmente. Na
prego são conceitos relacionados entre si, sendo doutrina constitucional, vincula-se com as rea-
o direito ao trabalho uma referência à aquisição lizações práticas dos planos Beveridge e Zipfel,
ou conservação de uma ocupação remunerada que tendem a converter o direito ao trabalho na
por parte dos que possuem capacidade de tra- política de pleno emprego.33
balho. Assim, reforça no âmbito do emprego De qualquer maneira, o direito ao trabalho,
o direito à não discriminação, e proporciona ainda num sentido constitucional, se dirige à tota-
apoio constitucional às normas de fomento ao lidade das pessoas e, principalmente, ao Estado,
trabalho.30 possuindo caráter jurídico público e obrigando
O texto argentino, ao abordar do direito o Estado a preocupar-se (dentro do possível)
ao trabalho, se mostra mais como um direito com a criação das oportunidades de trabalho.34
(que uma obrigação), de tal forma que é lícito Sendo assim, direito ao trabalho, que também é
outro das normas programáticas, e outros das normas de eficácia plena e imediata. Estas últimas configurariam diretos subjetivos do trabalhador,
passíveis de serem assegurados pelo Poder Judiciário. Idem. p., 68. Ver ainda: SIMONSEN (1948).
28
SANTOS. Op. Cit. p., 88. No que concerne estas normas internacionais, não é demais lembrarmos que a Parte XIII do Tratado de Versalhes, que
consignou em partes alguns desses direitos, foi posteriormente ratificada e ampliada na Declaração da Filadélfia, na Carta das Nações Unidas e na
Declaração dos Direitos Humanos, como também em outras editadas posteriormente.
29
ARANGO (2001). p., 151-152.
30
VALVERDE; MURCIA; GUTIERREZ (1998). p., 147.
31
GRONDA. [s.d] p., 64.
32
BONNECHERE. (1997) p., 19.
33
A Carta da Nação Argentina de 1947, previa o direito de trabalhar, onde: “O trabalho é o meio indispensável para satisfazer as necessidades
espirituais e materiais do indivíduo e da comunidade, a causa de todas as conquistas da civilização e o fundamento da prosperidade geral; daí
que o direito de trabalhar deve ser protegido pela sociedade, considerando-o com a dignidade que merece e prevendo-se ocupação a quem dele
necessite”. TALLERIA (1952) p., 81-88.
entendido como o direito a trabalhar, são atribu- de Constituição Social ou do Trabalho, baseou-se
tos constitutivos da pessoa humana, sendo ainda em dois pilares: a) a idéia da Constituição como
um dos fundamentos da ordem social, sendo que instrumento normativo, pois cuida da matéria
deriva deste fato uma obrigação em se combater econômica, que determina a relação capital/tra-
a desocupação, que exige a intervenção do Esta- balho; b) a idéia de que o trabalho é tido como
do e uma cooperação econômica, ainda que no expressão maior da dinâmica do homem em sua
plano internacional.35 convivência sociopolítica. A absorção de tais
conceitos e de sua prática constitucional, deter-
minou que matérias pertinentes ‘a ordem social
4) O Direito ao Trabalho como um e econômica fossem integrados nos preceitos
direito fundamental constitucionais de diversos Estados.37
Com efeito, a dimensão social do constitu-
Partindo-se da evolução do constituciona- cionalismo advém do século XX, com a decor-
lismo e da conseqüente positivação dos direitos rência da Constituição Mexicana (proclamando
humanos, o tema acaba por vincular-se aos com pioneirismo alguns direitos concernentes
direitos fundamentais. aos trabalhadores); a de Weimar e com a Revo-
Coube à Constituição mexicana abrigar, lução Russa e sua declaração de direitos.38
pela primeira 36 vez numa normatização es- Assim, se pensarmos o conceito de ci-
pecífica, a matéria pertinente ‘a ordem social dadania partindo-se da ótica brasileira de seu
e econômica, que acabou por influenciar o desenvolvimento, devemos entendê-la como
constitucionalismo do século XX. Dela partiu diretamente relacionado ao estudo histórico da
a elaboração concebida doutrinariamente como evolução constitucional, em que pese a atual
Constituição Social e Econômica. A noção de positivação dos direitos sociais, econômicos e
Constituição Econômica, associada com a noção culturais.39
34
AMORIM E SOUZA. Op. Cit. p., 17. Não podemos encarar o direito ao trabalho apenas como uma representação do combate ao desemprego,
pois isto representa uma visão parcial do problema. Assim, não se torna justo nem razoável que a sociedade responda, a cada passo, pelo insucesso
(ainda que ocasional) da empresa, quando não é essa comunidade a imediata destinatária do lucro; e não se deve, mesmo, cogitar de impor ao
Estado tal ônus, porque é evidente que o Estado também é a comunidade. Idem. p., 21-22.
35
RUBINSTEIN (1984). p., 15-16. Numa perspectiva diversa, há quem considere o direito ao trabalho como um atentado contra as noções de
justiça. Sendo assim, o direito ao trabalho seria um meio e uma conseqüência, constituindo-se como uma utopia do comunismo. Para FERRAN, o
direito ao trabalho como um atributo daqueles que pensem ser tal direito como uma ajuda aos desvalidos e como um ato humanitário, por virtude
de uma assistência pública, figura uma grande e flagrante injustiça, sendo tal realização um absurdo e uma impossível formula dentro de qualquer
outra fórmula que comunistas e socialistas tenham proposto. Prova disso e de ‘ter chamado o direito ao trabalho de direito de assistência, irmão
gêmeo e precursor do direito ao trabalho’,são os debates que tomam forma em relação ao assunto. Manifestando-se veemente contrario ao direito
ao trabalho, FERRAN denomina o direito ao trabalho como sendo um direito de trabalhar com os frutos provenientes da propriedade alheia, o que
considera como uma forma vergonhosa de comunismo. Sendo assim, o direito ao trabalho é uma injustiça, entendido também falsamente como
um direito. FERREN (1812). p., 43-59.
36
A primeira Constituição que inseriu direitos importantes para os trabalhadores foi a Suíça (1874), posteriormente emendada em 1896. A Consti-
tuição Francesa de 1848 já previa o direito ao trabalho, mas teve curtíssima duração. E embora a Declaração de Direitos da França de 1793 não
cogitasse direitos sociais específicos para o trabalhador, foi a Constituição mexicana de 1917 a que efetivamente armou significativo quadro de
direitos sociais do trabalhador, posteriormente repetidos por muitos dos países da América Latina. Para a Constitucionalização dos direitos sociais,
os passos mais relevantes foram o Tratado de Versalhes e a Constituição de Weimar (que consagrou a denominada democracia social, mesmo que
‘democracia’ fosse compreendida pouco mais tarde). No Brasil, depois da Revolução de 30 todas as Constituições brasileiras dispuseram sobre
direitos dos trabalhadores. Assim, os direitos devem ser assegurados pelo Estado a fim de se dar eficácia imediata para as normas consagradoras
de direito público subjetivo ao trabalhador. SÜSSEKIND. Op. Cit p., 14-16; 34-35.
37
ROCHA (2001). p., 16-17. Uma das matrizes fundamentais encampadas pelo Constituinte, é o decidido engajamento do Estado brasileiro em um
compromisso de realização de democracia social, indicados nos ‘fundamentos’ da República (tais como cidadania e dignidade da pessoa humana),
e sobretudo nos ‘objetivos fundamentais’, bem como na enunciação da idéia de governo da atividade econômica, ou seja, a ‘valorização do trabalho
humano’ a fim de se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, em conformidade aos princípios, dentre os quais
o da ‘redução das desigualdades sociais e regionais’ e a ‘busca do pleno emprego’. MELLO (2001) p., 35-37. Para DALLARI, a Constituição pro-
curou assegurar o uso e a defesa dos direitos fundamentais, estabelecendo dispositivos importantes (tais como os parágrafos do artigo 5oda CF/88),
observada a questão da aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais na Constituição. DALLARI (2001) p., 62-63.
38
No sentido do proletariado como uma força política, o autor trabalha com os marcos da declaração solene de direitos sociais, ao lado dos direitos
individuais. Assim, são marcos da declaração solene de direitos: a Proclamação das Quatro Liberdades, de Roosevelt (1941); a Declaração das
Nações Unidas (Washington, 1942); as conclusões da Conferência de Moscou (1943); as conclusões da Conferência de Dumbarton Oaks (1944);
as conclusões da Conferência de São Francisco (1945); e finalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Ademais, a dimensão
‘social’ da democracia marcou o primeiro salto na conceituação dos ‘direitos humanos’ e no significado prático da ‘cidadania’. HERKENHOFF
(2004). p., 47-49. Idem. p., 42.
Nesta linha do direito ao trabalho como função do fundamento que se denota a este dever,
parte integrante dos direitos humanos, tem-se porque se trata de um direito natural derivado de
que tal direito se encontra enraizado no próprio outros direitos naturais primários.41
direito de viver, pois a pessoa humana ser inteli- Ainda no que se refere aos longos debates
gente, livre e responsável, se realiza mediante o doutrinários em relação ao tema, pertinentes são
trabalho. Sendo assim, o direito ao trabalho é um as palavras de SASTRE-IBARRECHE sobre
direito próprio da pessoa humana, pois permite a todo o desenvolvimento em relação ao tema.
pessoa humana desenvolver-se em todas as suas Para o autor, tal direito ao trabalho manifesta-
dimensões. E em sua vinculação com o Estado, se como primeiro direito social historicamente
não cabe ao Estado procurar diretamente trabalho
reivindicado e de elemento em torno do qual
para todos os desocupados conforme entendem
se desencadeia um importante debate entre o
alguns, porque se obrigará ao Estado a procu-
pensamento liberal e socialista.42
rar obrigatoriamente trabalho a seus membros
com uma ingerência absoluta, o que somente No tocante aos direitos fundamentais,
seria possível com um Estado totalitário, que é temos que são eles construções integradas ao
contrário a liberdade, eis que a pessoa humana patrimônio comum da humanidade, resultantes
dependeria completamente do Estado.40 do processo de constitucionalização (iniciado no
Apresentada algumas considerações sobre final do século XVIII) dos denominados direitos
os diversos entendimentos acerca do direito ao naturais do homem, passando a ser objeto de
trabalho, existe autores que entendem a temáti- reconhecimento também, na seara internacional,
ca como um direito natural. Ou ainda, entende representado sobretudo com a Declaração Uni-
o tema como sendo um principio geral de que versal dos Direitos Humanos, de 1948.43
o trabalho não é apenas um dever como uma Conforme GOMES, o direito ao trabalho
afirmação teológica e filosófica. Sendo assim, o é um direito social fundamental. E enquanto tal,
direito ao trabalho trata-se de um direito natural embora diretamente relacionado com o princípio
como conseqüência de um dever que está em da dignidade da pessoa humana, não se pode
39
Devemos pensar com isso nas Constituições outorgadas (de 1824, 1937 e 1967) e nas promulgadas (de 1891, 1934, 1946 e na atual, de 1988), o que
inclui o desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro que acabou por culminar nas normas de proteção e valorização do trabalho, incluindo
os avanços e retrocessos em relação a cidadania. Idem. p., 63-107.
40
Dentro desta ótica, a missão do Estado enquanto guardião do bem comum é o de estabelecer instituições favoráveis ao desenvolvimento da coletividade,
fomentando a criação de fontes de trabalho e impulsionando as que já existam, organizando a sociedade de maneira mais propicia para o trabalho.
Com isso, o autor apresentaros precedentes de tais debates através do informe redigido por Beveridge. SOBREVILLA (1960). p., 53-64.
41
Com efeito, o direito natural ao trabalho apóia sua derivação em outros direitos naturais, tais como o direito a conservação da vida, o direito ao
acesso a propriedade e o direito a instituição da família. Trata-se de assim de um direito à existência e um direito ao domínio. Em resumo, o direito
ao trabalho fundamenta sua naturalidade em ser o trabalho uma integração vital do homem e da natureza, do criador e da criatura, do espírito e
suas potencias. Por isso que, em uma sistemática dos direitos naturais,
o direito natural ao trabalho deve ser situado depois do direito a vida, do direito a propriedade, ao matrimonio, a família e a sucessão, que se apóiam
em ordem ontológicas e anteriores a humanidade. MUÑUZ (1962). p., 24-30.
42
Assim, SASTRE-IBARRECHE situa o direito ao trabalho a partir do último terço do século XVIII, coincidindo com a troca fundamental que se
produze na concepção e valorização do trabalho. John Locke, com efeito, formula uma das primeiras reivindicações modernas em relação ao tema,
enquanto principio do valor e da propriedade. No mesmo século, tais idéias são retomadas por Montesquieu e Rousseau. Dado que a relação de
conflito entre o direito ao trabalho e a liberdade de trabalhar consistira, com efeito, a primeira das confrontações entre liberais e socialistas, convém
destacar que embriões do instrumento normativo ao direito ao trabalho recai sobre o Edito de Turgot de 1776 e da Lei Chapelier, de 1791. Sobre
tais precedentes, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, assinalou pontos de referencia em relação aos direitos fundamen-
tais. A partir de tal momento, o direito ao trabalho se reconhece enquanto extremamente importante a partir de 1848. Nesta questão, se constitui
enquanto extensão destes debates o que Fichte utiliza de argumentos parecidos com os colocados por Locke e pelos revolucionários franceses do
século XVIII, para deduzir sobre a base de um direito a propriedade privada que sustenta a propriedade adquirida pelo trabalho, a existência de um
direito ao trabalho e de um direito de assistência, nos moldes de que tratou Hegel. Ademais, nomes como o de Fourier, Considerant, Proudhon e
Blanc resultam como chaves para o tema em questão. Fourier tem sido considerado o precursor do direito ao trabalho. A argumentação do discípulo
de Fourier, Considerant, recorre novamente a idéia de necessária legitimação da propriedade privada pelo trabalho, vendo ainda uma espécie de
reconhecimento de indenização para os proprietários de terra. Em contrario, Proudhon pensa o direito ao trabalho como uma serie de defeitos a fim
de justificar uma posição contraria a seu reconhecimento, qualificando como indigno condenar o trabalhador para sempre ao trabalho. Em resumo,
tanto socialistas como republicanos moderados coincidem em colocar o direito a vida como principio que legitima os direitos sociais, ainda que
entendam diferentemente a forma de compreensão da vida e do trabalho. SASTRE-IBARRECHE. (1996) p., 23-32.
43
SARLET (1999). p., 129-130. Os direitos humanos e os direitos fundamentais compartilham de uma fundamentalidade (ao menos no aspecto
material), pois ambos se referem ao reconhecimento e proteção de certos valores e bens jurídicos, além de reivindicações essenciais aos seres
humanos em geral ou de determinado Estado. Assim, a denominação de direitos fundamentais sociais encontra sua razão na circunstância, comum
aos direitos sociais de defesa e aos direitos sociais prestacionais, de que todos consideram o ser humano na sua concreta situação na ordem social,
reduzir a dignidade humana ‘a noção de trabalho jetivamente, não existindo um critério pelo qual
sob a pena de se considerar menos digna a pessoa se opere tal limitação. Mas recordemo-nos que
que não trabalha.44 Não obstante, é o direito ao o artigo 193 da CF/88 estabelece que o trabalho
trabalho um direito fundamental, pois através é a base da ordem social. No que se refere ‘as
dele que se vai obter a seguridade social e, com contingências (art. 201, CF) revela-nos que todas
isto, o direito ‘a saúde, previdência, etc.45 elas estão relacionadas ‘a capacidade laborativa
dos que vivem do próprio trabalho (ou de fami-
liares ou dependentes). Nesse sentido, exercer
5) Direito (Fundamental) ao o trabalho é um critério básico de admissão ao
Trabalho (Digno)46 sistema previdenciário. Também, a remuneração
auferida em contraprestação ao trabalho, dá ao
A Doutrina Social da Igreja, desde a trabalhador condição econômica de participar
Encíclica Rerum Novarum contribuiu para a do custeio das prestações que irão protegê-lo.49
compreensão dos direitos sociais. Tal Encíclica
Sendo assim, o valor trabalho vincula-se
valorizou o trabalho e o homem. Quarenta anos
com as demais dimensões dos direitos sociais.
depois, com a Encíclica Quadragésimo Anno
O trabalho permite a superação de algumas con-
(1931), Pio XI demonstrou a preocupação da
tingências sociais. Sua não superação envolve
Igreja com a questão social. A questão social des-
ações positivas assistenciais do Estado para
crita na primeira das Encíclicas retrata a história
ensejar uma condição de vida digna aos que não
dos direitos sociais como a luta contra a miséria
trabalham.
do operariado. Por sua vez, na comemoração dos
noventa anos da Encíclica, o Papa João Paulo II Por outro lado, o Estado deve promover
editou a Carta Encíclica Laborem Exercens, que políticas que assegurem o pleno emprego e a
trata do trabalho humano. E neste linha, com o liberdade de escolha de um trabalho digno (nesta
trabalho é que se concretizaria a dignidade da perspectiva poderíamos relevar muitas das leis
pessoa humana.47 que protegem a saúde e segurança do trabalha-
Com efeito, a Doutrina Social da Igreja dor, e não um posto de trabalho em si). Sendo
aponta o trabalho nos sentidos objetivo (em que a assim, lembremo-nos que a possibilidade de um
submissão da terra se dá no trabalho e mediante o seguro-desemprego reconhece a impossibilidade
trabalho do homem), e subjetivo, pois é enquanto fática em não se garantir um posto de trabalho
pessoa que o homem é sujeito do trabalho, con- para todos os cidadãos.
ferindo uma dignidade ao trabalho. A finalidade Ademais, o trabalho também auxilia no
do trabalho é a dignidade humana, pois somente sustento das políticas de seguridade social. As-
por meio do trabalho é que se pode efetivar sua sim, o valor trabalho permeia toda a estrutura da
realização como pessoa e contribuir com o pro- ‘Constituição Cidadã’, recaindo sobre o princípio
gresso dos demais integrantes do grupo social.48 da dignidade da pessoa humana.
No âmbito do direito positivo, da previdên- Enquanto tal, deve-se assegurar uma condi-
cia social por exemplo, a proteção é limitada sub- ção de vida digna aos trabalhadores e nos locais
objetivando a garantia de uma igualdade e liberdade material, por meio de prestações materiais e normativas, e por meio de proteção e manutenção
do equilíbrio de forças no âmbito das relações de trabalho. Idem. p., 139; 149. Há que observar ainda o caráter necessariamente relativo da proibição
de retrocesso nos direitos sociais, ilustrado, dentre outros aspectos, pela irredutibilidade salarial. Ver: SARLET (2006) p., 291-335.
44
GOMES (2008). p., 61. No que concerne a dignidade da pessoa humana enquanto um valor e um conceito constitucional, ver densa obra de:
BARTOLOMEI (1987).
45
MELLO, Celso de. A Proteção dos Direitos Humanos Sociais nas Nações Unidas. In.: GOMES. Op. Cit. p., 67.
46
Numa perspectiva filosófica do direito fundamental ao trabalho digno, vide: DELGADO (2006).
47
SANTOS. Op. Cit. 84-87.
48
Idem. p., 86-87. Existe o entendimento de que o conceito de trabalho fora incorporada ao Direito Social brasileiro, na Constituição de 1937, com
base na Doutrina de Leão XIII. Quanto ao assunto, ver: ASHCAR [s.d]. p., 48.
49
O critério essencial de filiação prévia ao sistema previdenciário consiste no exercício do trabalho. Tal sistema visa atender duas necessidades:
a) conservação e criação de condições favoráveis para o trabalho e; b) a viabilidade econômica do sistema, já que se presume que o trabalhador
pode contribuir. Por outro lado, uma filiação facultativa implica numa exceção, pois visa proteger o trabalhador e seus dependentes. O trabalho,
de trabalho. A Constituição por exemplo, seguin- mesma ótica, uma vez que apenas norma vigente
do diretrizes internacionais, prevê a existência será eficaz por ser aplicável e na medida de sua
de um meio ambiente do trabalho50. aplicabilidade.
Não obstante, a Constituição do Estado Destarte, a problemática recai sobre as
de São Paulo prevê a possibilidade de se inter- maneiras de interpretação do conteúdo e natureza
romper as atividades, sem prejuízo dos salários, das normas constitucionais (o que incide sobre
quando os trabalhadores estiverem em condi- a efetividade e aplicabilidade, ou eficácia), e
ções de risco nos locais de trabalho.51 Não por de outra maneira, também pode ser analisada
mera coincidência, o artigo 3o da Lei 8080/90 partindo-se de algumas técnicas positivação dos
aponta o trabalho (dentre outros) como fator direitos econômicos, sociais e culturais.
determinante e condicionante da saúde.52 Ao Em recente obra, CANOTILHO aponta
referir a promoção, recuperação e proteção da para as técnicas de positivação constitucional
saúde, a Constituição adota o conceito amplo dos direitos econômicos, sociais e culturais
de saúde, “reconhecendo não só a perspectiva de sustentando que as técnicas de positivação des-
pretensão a um corpo e uma mente sem doenças, ses direitos a prestações constitui uma ‘eleição
como também a condições de vida e a um meio racional’ de ‘enunciados semânticos’ ou ‘ditos
ambiente equilibrado”53. E dentro do conceito constitucionais’, sendo ela feita tanto por cons-
de meio ambiente, insere-se o conceito de meio tituintes espanhóis como portugueses.54
ambiente do trabalho.
Nesta perspectiva, observamos que as
maiores críticas que incidem sobre o debate
6) Eficácia e Aplicabilidade do acerca do conteúdo normativo constitucional
referem-se, mesmo que por via reflexa, sobre as
Direito ao Trabalho
técnicas de positivação e natureza das normas
Primeiramente, cumpre ressaltar que efi- da Constituição.55
cácia e aplicabilidade são fenômenos conexos, Ao tratar do problema dos Direitos Funda-
sendo a eficácia encarada como uma potencia- mentais Sociais na CF/88, MORO observa que o
lidade (possibilidade em se gerar efeitos jurídi- Constituinte fez a opção no sentido de outorgar
cos), e a aplicabilidade, por sua vez, vincula-se aos direitos sociais o caráter de fundamentais, se-
com a realizabilidade, razão pela qual eficácia e guindo tendência no plano internacional, como se
aplicabilidade podem ser vistas dentro de uma vê no Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais
assim, resulta importante para a superação das contingências sociais, ao menosalgumas delas. A manutenção dos mínimos de condições de vida
ao trabalhador é o que se busca cumprir com o sistema previdenciário, em contraposição ao mecanismo assistencial de garantias a quaisquer
cidadãos. PULINO (2001). p., 36-50.
50
A doutrina classifica o meio ambiente previsto no artigo 225 da CF/88 como sendo: natural, artificial, cultural e do trabalho, conforme o conjunto
de regras e normas que integram toda a dogmática jurídica. Sendo assim, dentro desta compreensão do meio ambiente nele incluímos o do trabalho.
Lembremos, neste sentido, ainda que ede maneira breve, o seguinte: Art. 7o, inc. XXII CF/88, no tocante aos direitos dos trabalhadores; Art. 200,
CF/88. “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (...) VIII) colaborar na proteção do meio ambiente, nele
compreendido o do trabalho.“ Nesta linha, recordemo-nos também da Convenção de n. 148 da OIT, que dispõe do meio ambiente do trabalho, e
diversas outras Convenções da OIT que visa proteger a saúde e dar mais segurança ao trabalhador. Mas numa ótica da legislação brasileira, devemos
levar em consideração também as inúmeras normas regulamentadoras (NR), instruções normativas e demais garantias de melhores condições de
saúde e segurança no meio ambiente do trabalho, expressamente contidas e dispostas em legislação infraconstitucional, muitas delas acessíveis no
site do Ministério do Trabalho, ou ainda os artigos constantes da CLT sobre a proteção do trabalhador.Sobre esta questão, notemos que o legislador
outorgou ao Ministério do Trabalho (conforme orientação do Art. 200 da CLT), a regulamentação das questões concernentes à segurança e saúde
do trabalhador, havendo com isso 32 normas regulamentadoras neste sentido.
51
Trata-se da denominada ‘greve ambiental’. Assim, prevê o Artigo 229, parágrafo 2º, da Constituição Paulista que: “Em condições de risco grave
ou iminente no local de trabalho, será lícito ao empregado interromper suas atividades, sem prejuízo de quaisquer direitos, até a eliminação do
risco”.
52
Acerca da saúde, temos o Artigo 3o da Lei 8080/90, que: “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros (...), o meio
ambiente, o trabalho, (...)”.
53
WEICHERT (2004). p., 124.
54
A positivação se daria das seguintes formas: a) sob a forma de normas programáticas definidoras de fins e tarefas do Estado, de conteúdo social;
b) na qualidade de normas de organização, atributivas de competências para a emanação de medidas para esses planos; c)através da consagração
constitucional de garantias institucionais, tal como se dá na saúde por exemplo; e d) positivação dos direitos sociais como direitos subjetivos
públicos, ou seja, como direitos inerentes a existência do cidadão. CANOTILHO (2008). p., 37-38.
No mais, os direitos sociais não podem ser teriam a estrutura característica dos princípios.
protegidos como pretensões justiciáveis, ou seja, Não obstante, existe ainda entendimentos que
como demandas cuja satisfação possa ser exigida interpretam os direitos fundamentais (inclusive
perante órgão competente. Nesta linha, recorda os direitos sociais) como regras.64
o que ALEXY denomina de ‘justiciabilidade Partindo do debate de ALEXY acerca
deficiente’. Estes direitos, por sua vez, possuem da distinção entre regras e princípios, RAMÍ-
um conteúdo geral que não pode (na maioria das REZ aponta que (frente ao debate acerca da
vezes), se deduzir pretensões jurídicas concretas aplicabilidade das normas constitucionais), a
(tarefa via Legislativo).63 indeterminação do conteúdo de muitos dos di-
Buscando superar alguns dos debates reitos fundamentais (assim como a necessidade
brevemente expostos, o autor parte de que não de ponderação) atuam como fundamentos para
há nada nos direitos sociais que os impeça de determinar que as normas de direito fundamen-
considerá-los fonte de deveres tanto para os tal têm caráter de princípio. No caso de direitos
poderes públicos como para os particulares (ci- prestacionais em sentido estrito (ou direitos
dadãos). Nesse sentido, acredita que a opinião sociais), o caráter principal das normas que
dominante em torno da questão é a que considera constituem as disposições fundamentais adquire
que as normas constitucionais que recolhem ou maior notoriedade.65 Destarte, dentre as normas
enunciam direitos fundamentais em geral (e qui- constitucionais, podem algumas possuir plena e
çá os direitos sociais prestacionais, em especial), imediata eficácia; e outras devem ser discipli-
e CANARIS, em certo sentido, por outro). A identificação do destinatário, assim, se vincula com a existência (ou não) de uma relação jurídica
base. No caso de uma relação jurídica abstrata, não haverá um direito subjetivo de demandar em juízo; e o destinatário jurídico implícito será
sempre o Estado quanto ao seu dever de guardar este direito fundamental. Neste aspecto, defende o autor um caráter alimentar do salário, com
isso passível de uma prisão civil. GOMES. Op. Cit. p., 147-170. Para CLEVE, as correntes brasileiras que pensam sobre o tema demonstram que
ao Estado cabe um duplo papel, abster-se (por um lado), e por outro agir para promover as iniciativas dirigidas ‘a promoção de tais direitos, bem
como os pressupostos para seu exercício. Nestes termos, o direito ao trabalho fora incluído no título adequado, constituindo-se portanto como um
direito fundamental e não meras normas programa. Sendo assim, ao tratar dos direitos de defesa e dos direitos prestacionais, observa-se que estes
incidem sobre os parágrafos do artigo 5o da Constituição Federal de 1988. Ademais, vincula-se o artigo 6o com os direitos fundamentais em suas
dimensões objetiva e subjetiva e, ainda, numa normativa constitucional no campo da autonomia privada (eficácia horizontal dos direitos funda-
mentais). Encontram-se ainda no artigo 6o da CF/88 direitos prestacionais originários (aplicáveis mesmo sem norma regulamentadora) e direitos
prestacionais derivados. Nestas análises, se faz importante as ressalvas acerca do mínimo existencial em relação aos direitos sociais e acerca da
proibição de retrocesso social e reserva do possível. CLEVE (2003). p., 17-29.
63
RAMIREZ (2000). Este tema se converteu numa dogmática constitucional alemã do pós guerra, num importante setor em que FORSTHOFF en-
cabeçava, sustentando a não constitucionalização dos direitos sociais. Nesta linha, o Estado de Direito e Estado Social não são compatíveis (num
plano constitucional), pois não se pode estender a Constituição do Estado de Direito até a garantia de previsão de existência, vez que a ‘Consti-
tuição não é um supermercado onde se possam satisfazer todos os desejos’. Com isso, os direitos sociais não seriam tipos de formulações aptos
para fundamentar direitos e deveres concretos. Assim, direitos sociais, como o direito ao trabalho, não se podem captar em uma norma abstrata
suscetível de interpretação. FERRAJOLI, por sua vez, sustenta que o Estado Social de Direito não tem conseguido introduzir mecanismos capazes
de assegurar uma satisfação dos direitos sociais. CASCAJO, prosseguindo, coloca a necessidade em se superar a tese de que a incompatibilidade
de aplicação imediata dos direitos sociais constitucionais vem de sua própria indeterminação (época de Weimar). Com efeito, PRIETO contribui
para a superação do positivismo teórico que considerava a impossibilidade em se falar em verdadeiras normas, onde falta um suposto fato ou uma
conseqüência jurídica perfeitamente delimitada. Assim, as normas materiais da Constituição seriam em geral esquemáticas, abstratas, indetermi-
nadas e elásticas, mas não por isso significaria (ou representaria) alguma dificuldade em seu caráter vinculante. BOCKENFORDE, sustenta que
embora os direitos sociais não desfrutem de aplicabilidade imediata e possibilidade de ser justiciável, não significa que seriam simples proposições
pragmáticas. Deles derivam deveres jurídicos- objetivos, se podendo extrair um componente jurídico- subjetivo. Idem.
64
RAMÍREZ. Op. Cit.
65
Partindo de uma perspectiva da Constituição Espanhola, RAMÍREZ sustenta não ser possível a derivação de regras com um conteúdo definitivo por
três razões: a) a indeterminação e ambigüidade das normas jusfundamentais que regulam constitucionalmente o direito ao trabalho: que partindo de
SASTRE- IBARRECHE, apresenta o caráter difuso do conceito, sendo que os elementos que compõe a estrutura do direito ao trabalho (sujeito ativo
e passivo; objeto e garantias de efetividade) ficam afetados pela difusão conceitual. Nessa linha, PRIETO menciona que haveria uma modalidade
de direitos prestacionais denominados de “direitos propriamente ditos” que apresentam a fisionomia de direitos, tal como o direito ao trabalho.
Estes ‘direitos propriamente ditos’ não seriam princípios abertos, mas regras que, ainda que imprecisas, permitiriam fundar pretensões concretas
via interpretação. Ao destacar SASTRE- IBARRECHE, aponta o direito ao trabalho como uma medida de fomento de emprego e ideal de que cada
pessoa possa garantir e gozar de um trabalho adequado e seguro. Em torno da idéia de regulação e interpretação dos direitos fundamentais gira a
teoria defendida por RODRIGUEZ- TOUBES. Mas acerca deste primeiro item, adverte o autor que ponto de vista similar nos conduziria à uma
concepção absolutista em demasia e rigorista dos direitos sociais e, em geral, dos direitos fundamentais. b) outra razão é a impossibilidade fática
e jurídica do cumprimento do conteúdo máximo, cujo debate recai na distinção de ALEXY de conteúdo máximo e mínimo dos direitos sociais
fundamentais, podendo-se também aplicar ao direito ao trabalho. Assim, o direito ao trabalho não atribui a seus titulares a habilitação constitucional
de obter a qualquer momento um posto de trabalho adequado, pois: 1) nem o Estado e nem o sistema econômico compreendem o número suficiente
de postos de trabalho para assegurar emprego para todos; e 2) num plano normativo, esta temática nos conduziria ‘a uma colisão entre direitos
sociais e direitos de liberdade. Tais teses conduzem PECES- BARBA a considerar que o direito ao trabalho (entendido como o direito de reclamar
nadas por lei ordinária. Mas ambas devem ser Constituição, que só vai ser preservada onde os
iluminadas por princípios consagrados, os quais direitos sociais e individuais também são preser-
representam os fundamentos básicos para a reali- vados, sem ceder a pressões de natureza fática
zação dos postulados da justiça social e da ordem e de contingência. Assim, uma vez localizados
econômica. A esses princípios cabe o comando os direitos sociais e colocados como direitos
da integração das normas enunciadas, previstas fundamentais, a dinâmica de interpretação será
ou possibilitadas ao sistema constitucional.66 aquela que tem por escopo a unidade político-
Para CANOTILHO, tratar-se-ia de “uma constitucional dentro desse sistema.70
obrigação não- relacional, no sentido de que As normas de direitos fundamentais são,
haveria, em face deste direito, um dever não- assim, valores que devem guiar a interpretação
relacional do Estado, uma obrigação ‘prima face’ da Constituição. Desse modo, os enunciados do
garantida por normas não vinculantes”.67 É ainda
artigo 6o da CF/88 possuem densidade normativa
um direito social fundamental. Um complexo de
vinculado ao princípio da dignidade da pessoa
posições jusfundamentais, regras e princípios,
humana, constituindo-se como valores basilares
que podem funcionar autonomamente.68 Assim,
do Estado Social e Democrático de Direito e,
exceto algumas especificações, apenas cabe qua-
portanto cláusulas pétreas, cuja abolição acaba-
lificar como princípios (no sentido de mandatos
de otimização) e não como regras, as normas que ria por destruir a própria identidade da ordem
protegem o direito ao trabalho.69 Mas o problema constitucional.71
básico que se observa é o de força normativa da
um posto de trabalho) não pode ser positivado pelo fato de não ser, realmente, direito. c) por fim, uma última razão recai sobre o caráter reflexo do
conteúdo das posições subjetivas prestacionais do direito ao trabalho, em que parte da doutrina e jurisprudência defendem que o conteúdo prestacional
realizável do direito ao trabalho teria um caráter débil ou diluído. Com isso, o direito ao trabalho seria (em partes) a realização do pleno emprego
e sua política. Tais princípios seriam entendidos como mandato de otimização. RAMÍREZ então apresenta duas possibilidades de se inscrever o
direito ao trabalho normas com a estrutura de regras: 1) naquilo que ALEXY denomina de direitos sociais mínimos e; 2) o fato de que o direito
dos presos ‘a um trabalho remunerado está protegido como regra e não como mandato de otimização (artigo 25, II da Constituição Espanhola).
Neste sentido, apenas os presos são legitimados a propor e reclamar ante a jurisdição ordinária tal pretensão, sendo aspecto um autêntico direito
subjetivo, e constituindo-se como uma norma de princípio (mandato de otimização) e não como uma regra. Idem.
66
Auto- executável ou mesmo programática, qualquer princípio constitucional é um mandamento vinculante em suas relações concretas. Válido é
mencionar ainda que o artigo 157 da Constituição de 1967, relativamente aos princípios, dispôs que a ordem econômica, com o fim de realizar a
justiça social, se baseava em princípios, dentre os quais o da “valorização do trabalho humano como condição da dignidade humana” (inc. II); e
da “harmonia e solidariedade entre os fatores de produção” (inc. IV). Este texto foi parcialmente modificado pela Emenda Constitucional de 1969,
prescrevendo em seu artigo 160, que a ordem econômica e social teria por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base
nos princípios mencionados anteriormente, acrescido de um sexto inciso, que previa como princípio a “expansão das oportunidades de emprego
produtivo”. Nesta linha, os princípios relativos `a ordem econômica e social, em virtude dos quais a liberdade de iniciativa (cujos freios são as
exigências da função social da propriedade e a necessidade de valorização do trabalho em defesa da dignidade humana), fundamentam: a intervenção
básica do Estado nas relações de trabalho, legitimada pelo princípio da proteção; e pelo princípio consagrado desde o Tratado de Versalhes, onde
o trabalho não pode ser considerado artigo de comércio. SÜSSEKIND, A. Op. Cit. p., 45-51.
67
CANOTILHO. (2008) p., 94.
68
GOMES. Op. Cit. p., 95. Assim, corrobora com a teoria desenvolvida por Alexy, que (após análise da estrutura deôntica das normas) conclui que
elas encerram num feixe de posições jusfundamentais. Com isso, pretendeu demonstrar que um mesmo dispositivo normativo pode gerar normas
diversas (com estrutura deôntica de direitos prestacionais e direitos de defesa), em consonância com os casos concretos. Tais normas, no entanto,
investem o titular numa gama de posições jusfundamentais, de modo que ele pode assumir uma exigência ou uma abstenção do Estado, no sentido
de que deveria o Estado fornecer condições materiais para que tal direito fosse exercido. OLSEN (2008). p., 57.
69
RAMIREZ. Op. Cit.
70
CORREIA toma como base o estudo da segurança social. Nesta linha, a interpretação deve-se fazer via perspectiva onde os direitos sociais são
fundamentais. Portanto, ao lado dos direitos individuais fundamentais existem os direitos fundamentais sociais, e a estes aplicam-se a metodologia
de dicção e interpretação do direito, que é aplicável aos primeiros, no sentido de uma maximização de resultados. CORREIA. p., 263-264; 268.
No tocante ao artigo 6o da CF/88, o que se está fazendo é positivando um direito fundamental como subjetivo. Mas não é pelo fato de referir-se a
um direito ao trabalho que se pode extrair a conseqüência de que o particular possa reclamar judicialmente um emprego. SARLET(2007). p., 320.
71
Partindo-se dos direitos fundamentais enquanto normas programáticas, as normas de direitos sociais do artigo 6o da CF/88 são tidas como aquelas
cujo objetivo visado é o propiciamento aos indivíduos de redução de desigualdade social e efetiva liberdade material, em prol da justiça social.
A norma jurídica possui caráter prescritivo, embora o legislador utilize uma linguagem descritiva. Sendo assim, o referido artigo está indicando
que há uma série de bens jurídicos a serem tutelados. E estas normas programáticas possuem natureza principiológica, vez que, ao instituírem
estes bens, proclamam um ideal de coisas a ser atingido. Dos efeitos reconhecidos ‘as normas programáticas, conseqüência da sua dimensão
objetiva, resume-se da seguinte maneira: têm elas função de princípios; constituem sentido teleológico; irradiam efeitos para as relações privadas;
condicionam as demais normas constitucionais e infraconstitucionais; atuam como parâmetro do direito objetivo; geram dever de proteção do
Estado com relação aos bens jurídicos por elas tutelados; necessidade de organizações e procedimentos; devido sua natureza principiológica,
constituem-se como mandados de otimização. E dessa irradiação, surge direitos subjetivos para os particulares (uns perante os outros), e ações
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SEGURANÇA ALIMENTAR NA
ERA BIOTECNOLÓGICA
1. Introdução
*
Procurador Regional da República na 4a. Região, Mestre em Direito pela PUC/RS, autor do livro Direito ambiental e transgênicos: princípios
fundamentais da biossegurança (2008).
cuanto a los alimentos a fin de llevar una vida Considerados os parâmetros definidos pelo
activa y sana”2. National Research Council (EUA), aqui registra-
Não obstante o aspecto positivo das defini- dos apenas para fins ilustrativos, recomenda-se
ções transcritas em por em relevo a questão do uma ingestão diária de 2.900 calorias para ho-
acesso permanente e universal, o problema da se- mens entre 19 a 50 anos e de 2.200 calorias para
gurança alimentar não se encontra simplesmente mulheres no mesmo intervalo etário. Admitido
na quantidade, mas em especial, na qualidade que o número de homens e mulheres na popu-
dos alimentos postos à disposição. É importan- lação é aproximado, o consumo calórico médio
te considerar, em complemento, que uma vida entre adultos é de 2.550 calorias/dia. À exceção
saudável e ativa deve abarcar o atendimento de dos adolescentes do sexo masculino entre 15 e
outras necessidades com destaque aquelas que 18 anos, cujo consumo recomendado é de 3.000
abragem o mínimo existencial nas áreas de saú- calorias/dia, e dos homens jovens,nenhum outro
de, educação, vestuário e habitação. Assim, o grupo fica acima daquela média.4
acesso à alimentação, para ser efetivo, não deve Dados da FAO (Organização das Nações
prejudicar nem comprometer o acesso aos de- Unidas para Agricultura e Alimentação), referen-
mais direitos que definem as condições materiais tes as diversas regiões do planeta, indicam que
essenciais para a vida com dignidade. o consumo calórico diário é assim distribuído:
Diversos aspectos devem ser considerados mais de 3.500 cal./dia na América do Norte e
ao situarmos o direito ao alimento na perspectiva Europa Ocidental; 3.010 cal./dia no oeste da
mais ampla do direito ao desenvolvimento, entre Ásia e norte da África; 2.690 cal./dia na América
as quais: sobrevivência, bem-estar, identidade, Latina e Caribe; 2.600 cal./dia no leste da Ásia;
2.220 cal./dia no sul da Ásia e 2.100 cal./dia na
liberdade, produção, distribuição, natureza,
África subsaariana.5
estrutura e cultura3. A luta contra a fome é, em
primeiro plano, uma luta pela sobrevivência. Mas É claro que essa distribuição não tem em
a questão da fome não é efetivamente resolvida conta diversas outras variáveis, como o clima, a
sem que se assegure o acesso das populações aos maior ou menor dependência das circunstâncias
alimentos, respeitando as opções, as formas de naturais (precipitação de chuvas, ventos, etc.)
produção e consumo, os hábitos, preferências e na economia local, e as necessidades indivi-
preceitos de cada grupo humano em relação aos dualizadas de consumo, seja por maior uso da
alimentos. Não se trata de garantir apenas uma energia muscular (trabalhadores braçais) ou por
quantidade diária de calorias e nutrientes ou deficiência metabólica (algumas populações são
de descobrir o Big Mac universal que saciará mais sujeitas a doenças como anemia e diabetes).
a todos. E ainda que o quantum mínimo de calorias esteja
suprimido, podem haver sérias deficiências desta
ou daquela vitamina ou mineral.
3. O problema da fome Evidente que tanto a subnutrição quanto
a fome, entendida como o estado crônico de
A fome não é um fenômeno exclusiva- carência alimentar que leva a morte, coletiva ou
mente biológico. Entretanto, para compreendê- endêmica, atentam contra o direito humano à se-
la cumpre analisar o que a fome não é. E aqui gurança alimentar. De acordo com a Declaração
perquirimos inicialmente sobre a desnutrição e de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial,
outras disfunções no consumo de alimentos. oitocentos milhões de pessoas ao redor do
2
Plan de Acción de la Cumbre Mundial sobre la Alimentación, documento firmado pela Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em
Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf.
http://www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38.
3
GALTUNG, Johan. Direitos humanos - uma nova perspectiva, pp. 180-183.
4
Apud WILLIAMS, Sue Rodwell. Fundamentos de Nutrição e Dietoterapia, p. 242, tabela 12.2. e p. 258, tabela 13.1.
5
CONWAY, Gordon. Ob. cit., p. 24.
mundo, e em particular nos países em desenvol- Creta. Dela se originou a cornucópia, ou Corno
vimento, não dispõem de alimentos suficientes da Abundância. Narra o mito que um dia Zeus
para satisfazer suas necessidades nutricionais bá- estava brincando com a cabra quando quebrou
sicas6. Confirmando esses dados, o relatório The o seu chifre. Para compensá-la, Zeus conferiu
state of food and agriculture 2003-2004, da FAO a esse corno o poder de se encher com todos
(Food and Agriculture Organization), produzido os frutos que fossem desejados. A cornucópia
oito anos após a Declaração de Roma, indica a tornou-se, assim, símbolo da abundância e da
existência de 842 milhões de subnutridos no fertilidade ilimitada, que só pode ser obtida por
mundo, sendo 798 milhões em países em desen- dom divino9.
volvimento, 34 milhões em países em transição Separado do mito grego por milênios, o
e 10 milhões em países desenvolvidos. A África país da Cocanha reflete a mesma simbologia
subsaariana e a Ásia respondem por 703 milhões dessa feita em um universo medieval. Com al-
do total. O percentual de indivíduos subnutridos gumas variações, a Cocanha é apresentada como
em relação à população mundial é de 17%, contra uma terra fantástica, na qual doces nascem em
a taxa de 28% de duas décadas atrás.7 árvores, caldas jorram de nascentes, pombos e
É justamente naquelas situações de fome faisões devidamente assados voam pelo ar, vales
endêmica ou epidêmica que o ser humano é mais são formados por manteiga derretida e vulcões
vilipendiado em sua dignidade e auto-estima, lançam sopa quente das entranhas da terra10.
alcançando graus extremos de exclusão social. A imagem de uma fonte infinita de recur-
O faminto torna-se um ser invisível na sociedade sos, obtidos pelo mero desejo, vale dizer, pela
em que vive. Por ser a fome um tema cercado de representação mental, é muito enraizada em uma
tabus, a sociedade não a reconhece como uma humanidade para a qual a prática agrícola sempre
questão sua, e, por essa via, nega reconhecimento foi uma atividade incerta. Mas a abundância
ao próprio faminto. Essa negação da humanidade não é atributo para qualquer um. Seu atributo
ao faminto, associada ao stress fisiológico da vem diretamente de Zeus, pai dos deuses e dos
fome, leva muitas vêzes a atitudes extremas e homens. E, por ser um objeto único em todo o
inesperadas de agressividade. Muitas vezes a Mundo, só pode ser encontrado entre as ninfas
quem tem fome resta como identidade final ser de Creta, com as quais vive Amaltéia11. Ou em
classificado como louco ou insano.8 um país fantástico cuja localização permanece
desconhecida.
As questões envolvendo o problema da
4. Angústia da abundância: abundância seguem essencialmente as mesmas
Amaltéia no país da Cocanha desde os tempos mitológicos: quem confere
abundância e quem dela se beneficia. A abundân-
A incerteza da colheita, os ciclos do clima, cia existe e pode ser usufruída, desde que se tenha
a precariedade dos silos,o esgotamento do solo, titularidade e acesso a ela. A abundância, para ser
todos os fatores que levam à escassez fizeram a percebida, deve conviver com a carência, ou má
espécie humana a criar narrativas fantásticas que fortuna, daqueles que dela são despossuídos.
expressam seu desejo e sua angústia em torno A idéia de abundância corresponde atual-
da abundância de alimentos. Amaltéia é a cabra mente tanto a uma produção de alimentos acima
mitológica que amamentou o pequeno Zeus em das necessidades de consumo como a produção
6
A Declaração for firmada ao término da Conferência Mundial sobre Alimentação, realizada em Roma, entre 13-17 de novembro de 1996. Cf. http://
www.fao.org/docrep/003/w3613s/w361s00.thm. Acesso on line em 20/02/04, às 17:38.
7
Documento em formato PDF disponível on line no sítio http://www.fao.org/docrep/006/Y5160E/Y5160E00.HTM, acessado em 10 de fevereiro
de 2005, p. 109.
8
REBELLO, Lêda Maria Vargas. Loucuras da fome. Cadernos de Saúde Pública, 14(3), 643-646.
9
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. I, p. 262-264.
10
MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionários de lugares imaginários, p. 110 e 123.
11
Amaltéia também designa, conforme a narrativa, uma das ninfas de Creta.
da metade década de 1990 que as técnicas de pelo homem possuem variantes transgênicas), os
transgenia passam a merecer uma discussão argumentos favoráveis e contrários aos OGMs
mais ampla em diversos setores da sociedade, são apresentados com particular intensidade.
além de mobilizarem imensos recursos de grupos Comparecem a esse debate, além de diversas
internacionais, inclusive das poderosas indústrias questões ambientais, fatores de comércio interna-
da farmoquímica e de agrotóxicos. A época em cional que não podem ser olvidados, na medida
que vivemos foi adequadamente denominada de em que os Estados Unidos detém dois terços das
Século da Biotecnologia, porque pela primeira áreas agrícolas cultivadas com OGMs em todo
vez o homem domina uma conquista tecnológica o planeta, e a Argentina responde por cerca de
fora da civilização do fogo, caracterizada por vinte e dois porcento desse total19. Por paradoxal
uma economia geradora de emissões, e passa a que possa parecer, a biotecnologia pode levar ao
adquirir a capacidade de alterar a constituição fim da própria agricultura como a conhecemos,
de cada ser vivo, conforme os seus interesses substituídas por cultivos em ambientes total-
e necessidades. Neste sentido, o domínio da mente construídos, a denominada agricultura
energia nuclear foi a última e mais contundente indoor20, totalmente controlada pelas grandes
conquista da pirotecnologia antes da expansão corporações e dependente de um único recurso
da biotecnologia17. natural: a energia solar.
Qualquer ser vivo, animal ou vegetal, ma- Sempre quando se fala em tentativas de me-
cro ou microscópico pode ter a sua seqüência lhorar a dieta tradicional de populações pobres, o
genética alterada por meio de técnica de enge- único caso cujo relato se repete como um man-
nharia genética. Vale dizer, microorganismos tra, é o arroz dourado, cujos direitos de patente
(bactérias, vírus, etc.), vegetais, animais (domés- pertencem a empresa Syngenta. Trata-se de um
ticos ou não) ou mesmo hominídeos, podem vir tipo de arroz que possui betacaroteno, de modo
a dar origem a OGMs. Outro passo, ainda mais a se constituir em fonte de vitamina A para seus
ousado no campo da engenharia genética, é o consumidores. Não apenas ajudaria a combater
anunciado propósito de construção de um ser a fome na Ásia como multiplicaria por quatro
vivo totalmente sintético18. o volume de exportação dos mercados daquele
A finalidade do OGM dependerá das carac- continente21. Esse arroz ainda não se encontra
terísticas para as quais foi concebido e da técnica disponível para plantio, mas é o grande argumen-
adotada. Tanto é possível acrescentar um gene to manejado pela indústria de biotecnologia para
ou uma seqüência de genes no organismo quanto apresentar o lado humanitário dos organismos
subtrair um gene defeituoso. A alteração gené- GM. Tendo em vista evitar a alteração no modo
tica terapêutica não é o foco aqui apresentado, de plantio tradicional do arroz, especialmente em
mas antes a possibilidade de criação de novos zonas rurais da Ásia, seus criadores pretendem
organismos, vale dizer, novas formas de vida, cruzá-lo com variedades tradicionais.
mediante a adição de genes de um ser em indi- Ocorre que até agora não foi possível con-
víduo de outra espécie, gerando um organismo tornar problemas intrínsecos ao arroz dourado,
antes não existente para a biologia. como produção constante e invariável e resis-
Especialmente no que diz respeito a plantas tência a pragas. Sua introdução e miscigenação
transgênicas (os principais cereais cultivados com espécies nativas, pode suprir a avitaminose
17
RIFKIN, Jeremy. The Biotech Century, p. 36.
18
O governo norte-americano destinou uma verba de três milhões de dólares para o desenvolvimento de uma bactéria sintética, cf. noticiado em
“Venter quer refazer bactéria com US$ 3 mi”, Folha de São Paulo, 22/11/2002, p. A15.
19
De acordo com o relatório “Let de facts speak for themselves”, produzido pela American Soybean Association, juntamente com outras oito enti-
dades agrícolas norte americanas, em setembro de 2002. Conferir em especial os dados da p. 15. Os principais produtores de grãos transgênicos,
de acordo com o relatório, são EUA, Argentina, Canadá e China, esta última com 3% da produção mundial. Seguem-se África do Sul, Austrália,
México, Bulgária, Uruguai, Romênia, Espanha, Indonésia e Alemanha, além da Índia, que iniciou o cultimo de milho BT em 2002.
20
RIFKIN, Jeremy. Ob. cit., p. 240, nota 29.
21
ANDERSON, Kym e outros. Genetically Modified Rice Adoption: Implications for Welfare and Poverty Alleviation (August 19, 2004). Disponível
no sítio http://ssrn.com/abstract=625257.
22
LACEY, Hugh. A controvérsia sobre os transgênicos: questões científicas e éticas, p. 100-109.
23
CROSBY, Alfred . Ecological Imperialism - the biological expansion of Europe: 900:1900, p. 71.
24
Para uma síntese dos argumentos favoráveis: BjØrn Lomborg, O ambientalista cético, pp. 411-417. Também o relatório da American Soybean
Association elenca 19 supostos factóides apresentados contra o emprego de OGMs na agricultura.
25
6 a 8% de ocorrência de alergias em crianças, conforme relatório Genetically modified plants for food use and human health - an update, publicado
em fevereiro de 2002, pela Royal Society, p. 7.
26
Quando um ou mais genes produzem efeitos fenotípicos diversos, diz-se que sua expressão é pleiotrópica. Para um levantamento mais detalhado
dos impactos ambientais das plantas geneticamente modificadas, ver de Miguel Pedro Guerra e outros: Impactos ambientais das plantas trans-
gênicas, pp. 30-41.
27
HALFORD, Nigel G. Genetically modified crops, p. 41-45. Cf. tb. LACEY, Hugh. Ob. cit., p. 96.
28
Vandana Shiva alerta para o fato de que nos trópicos as variedades de plantas cultivadas e de ervas daninhas se hibridizam livremente há séculos.
Essa interação genética natural, quando em contato com variedades GM resistentes a agrotóxicos, facilita a transmissão da mesma característica
para as ervas daninhas, e explica muitos dos casos em que a alegada vantagem do organismo GM é anulada, causando o incremento nas aplicações
de agrotóxicos (Monoculturas da mente, p. 137).
29
HIRATA, Mário Hiroyuki e MANCINI FILHO, Jorge (coord.). Manual de biossegurança, p. 260261. Também são citados no mesmo trabalho
casos suspeitos com batatas, ervilhas, milho e soja GM, essa última com a inclusão de seqüência protéica da castanha-do-pará. Importante ressaltar
que para cada commodity agrícola de maior valor há diversos tipos de variações geneticamente modificadas. Assim, não é exato dizer que “chuchu
GM” faz mal para a saúde ou para o meio ambiente, mas que o “chuchu GM do tipo tal” apresenta tal ou qual toxina ou efeito adverso.
tendo em vista o manejo da resistência a insetos, órica do economista indiano Amartya Sen, cuja
firmou acordo com as empresas de biotecnologia influência sobre o Banco Mundial e o sistema de
americana que condiciona o cultivo de milho BT organismos internacionais da ONU é notória. No
ao plantio de pelo menos de 20% de variedades ensaio Poverty and Famines (1981), aquele autor
convencionais, percentual que chega a 50% nos sustenta que em situações de escassez de alimen-
Estados sulistas30. No mesmo ano, a FDA (Food tos enquanto alguns grupos, aqueles socialmente
and Drugs Agency) diante de uma plantação de mais frágeis, estão sujeitos a situações de priva-
soja convencional cultivada sobre área de ante- ção absoluta, outros grupos parecem não sentir
rior plantação experimental de milho transgênico qualquer efeito da escassez e que nada indica
para produção de medicamentos, com a conse- que o consumo de alimentos de grupos distintos
quente contaminação genética do novo cultivo, deva variar na mesma direção, não obstante a
teve que proibir o uso da soja colhida em toda a ocorrência de escassez32. Sen analisa grandes
cadeia alimentar humana ou animal31. episódios de fome ocorridos em Bengala33, Eti-
Ainda que não haja impacto negativo para ópia34, Sahel35, Bangladesh36, e Irlanda37, para
o ambiente e a saúde no plantio de determinado concluir que é a forma de organização política da
OGM, haverá um maior custo econômico para sociedade o fator predominante para a prevenção
o agricultor, devido ao regime de patentes e a das situações de fome coletiva38.
vinculação com uma única corporação, sem Aqui no Brasil também são as regiões com
vantagens nutricionais que possam ser eviden- maior índice de exclusão social aquelas sujeitas
ciadas. a episódios graves de fome. Cabe relembrar o
mapeamento produzido por Josué de Castro
7. Segurança alimentar como em sua Geografia da fome, quando tratou da
liberdade ocorrência do problema no território nacional.
Segundo aquele autor, o Brasil possui cinco áreas
Recapitulando, a segurança alimentar vem alimentares, divididas em três categorias: fome
sendo definida a partir de dois critérios distintos: endêmica, fome epidêmica e área de subnutrição.
o da acessibilidade, que enfatiza a capacidade A fome endêmica abrange a Amazônia e o Nor-
física e econômica de se ter acesso aos alimentos, deste açucareiro. No estudo efetuado pelo autor
e o da disponibilidade, que enfatiza a capacidade há duas áreas de subnutrição: a primeira inclui
de manter estoques de alimentos e abastecer o Centro-Oeste, os estados de Tocantins e Minas
as populações carentes em tempos de crise. O Gerais; a segunda abrange os demais estados do
critério predominante hoje, tanto no âmbito do sudeste e a região sul do Brasil39.
Banco Mundial quanto na FAO, é o da segurança O principal conceito com o qual Sen vai
alimentar mediante a criação e manutenção de abordar a questão da pobreza e da fome é o de
condições de acesso da população aos nutrientes entitlement. No seu ensaio dedicado ao estudo
necessários para a sua sobrevivência e bem-estar. da fome, Sen resume a perspectiva pela qual
Para a consolidação dessa perspectiva aborda o problema: “The entitlement approach
inovadora em muito contribuiu a produção te- to starvation and famines concentrates on the
30
Transgênicos nos EUA. Valor Econômico, 20/11/2002, p. B12.
31
“Antigo plantio alterado afeta geração seguinte”. Folha de São Paulo, 20/11/2002, p. A14.
32
Poverty and famines - An essay on entitlement and deprivation, pp. 43-44. Em Desenvolvimento como liberdade, capítulos 7 e 9, o autor repete os
argumentos e exemplos históricos daquele ensaio. Não se pode desconsiderar, quanto a rápida repercussão do ensaio nos meios técnicos especiali-
zados na década de 1980, a formulação matemática da tese sustentada pelo autor, contida nos seus apêndices de A a C, pp. 167-194.
33
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 52 e segs.
34
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 86 e segs.
35
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 113 e segs. O Sahel é a área de transição entre o deserto do Saara e a floresta equatorial ao sul. Entre os países que o
36
integram destacam-se o Senegal, a Mauritânia, o Mali, o Burkina Faso, o Níger, a parte norte da Nigéria, o Chade e o Sudão.
37
SEN, Amartya. Ob. cit., p. 131 e segs.
38
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 199-205.
39
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 208-219.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome, p. 37.
ability of people to command food through the fornecimento de uma nova geração de OGM,
legal means available in the society, including repetindo estratégia bem sucedida em outra
the use of production possibilities, trade opportu- atividade de ponta, a informática.
nities, entitlements vis-à-vis the state, and other
methods of acquiring food”40.
O conceito de entitlement não pode ser 8. Conclusão
resumido a sua dimensão jurídica, econômica
ou política, justamente porque é agregador, em Do que foi exposto até agora, o que se
um único termo, de capacidades que tradicional- pode dizer sobre a capacidade da biotecnologia,
mente são abordadas de forma estanques pelo mediante a produção de alimentos geneticamente
direito, economia, ciência política e sociologia, e modificados, vir a contribuir decisivamente para
que são necessárias para dimensionar o conjunto o combate à fome no mundo, reduzindo a cifra
capacitário de uma pessoa (ou seja, de pacotes de oitocentos milhões de famintos a um número
de bens, mercadorias e funcionamentos que pode menos doído?
adquirir)41. Antes de mais nada, é preciso evitar a ten-
Mas não estar sujeito as privações da fome tação de falar sobre quimeras, neste caso, sobre
não é apenas uma questão de capacidade de os superalimentos inexistentes. Não há até agora
produzir ou adquirir alimentos, a partir de uma nenhum alimento geneticamente modificado que
adequada disposição jurídica, política e econômi- represente uma contribuição altamente inovadora
ca das estruturas básicas da sociedade. O próprio em termos de nutrientes. No estado atual da tec-
Sen sustenta, com muita propriedade, que existe nologia, o mercado é dominado por organismos
uma liberdade de não ter fome. O senso comum que: a) são resistentes a um determinado tipo
reconhecer que não ter fome aumenta a esfera de agrotóxico, produzido pela mesma empresa
de bem-estar da pessoa, mas não é tão óbvio que detentora da patente do OGM, caso da tecnologia
aumente a sua esfera de liberdade. Sen retorna a round up; b) emitem uma toxina que equivale a
Isaiah Berlin para argumentar que se ser livre é produção do agrotóxico na própria planta, casa
ter liberdade se viver como se deseja, então estar da tecnologia Bt.
livre da fome amplia esse espaço de escolha42. Mas há pesquisas para o desenvolvimento
Como ninguém escolheria viver com fome, a de espécimes resistentes a secas ou que neces-
fome é apenas um severo limitador das diversas sitam de menor volume de água para irrigação
formas possíveis de vida social. Portanto, conclui e portanto, guardam um interesse ao tema. A
o autor, “a noção de liberdade como poder efeti- pesquisa em biotecnologia está apenas iniciando
vo para realizar o que se escolheria é uma parte e deve prosseguir, observados os mais estritos
importante da idéia geral de liberdade”43. parâmetros técnicos de biossegurança.
O estado atual da agricultura biotecno- Entretanto a produção em larga escala de
lógica parece indicar um caminho oposto ao alimentos geneticamente modificados deve aten-
apontado pelo modelo de Sen, já que a sua prática tar, para cada tipo de organismo desenvolvido, a
coloca o agricultor na dependência de uma úni- seus impactos, positivos e negativos, quanto ao
ca grande corporação, quanto ao fornecimento meio ambiente, diversidade biológica, práticas
de sementes, agrotóxicos, assistência técnica e agrícolas, valores culturais e estruturas sociais.
pagamento de royalties. Em caso de problemas O argumento de que os alimentos transgê-
como declínio de produtividade e surgimento nicos podem reduzir a fome no mundo parece
de novas pragas, a empresa responderá com o repetir o modelo de segurança alimentar pela
40 SEN, Amartya. Poverty and famines, p. 45.
41 Cf. sobre entitlement: Desigualdade reexaminada, glossário, p. 235; Desenvolvimento como liberdade, nota do tradutor, pp. 53-54; Poverty and
famines, pp. 1-8, 44-51 e apêndice A (no qual é apresentada uma explicação econométrica do conceito).
42 Desigualdade reexaminada, pp. 115-116.
43 Idem, p. 118.
44
Em interessante paralelo, Gordon Conway ao comentar os efeitos econômicos da Revolução Verde (décadas de 1960-1970), registra que não obstante
tenha havido produção de alimentos mais baratos e aumento da renda da terra, a introdução da mecanização tendeu a corroer esses benefícios, até
mesmo acarretando perda da renda real e aumento da fome. Ob. cit., p. 112.
in accordance with the need for environmental a cada dia, novas técnicas nucleares, que são
sustainability of economic development nation- desenvolvidas nos diversos campos da atividade
ally. Therefore, it is essential for complete legal humana, possibilitando, dessa forma, a execu-
regulations on the subject, and in particular, a ção de tarefas impossíveis de serem realizadas
legal-criminal treatment of nuclear activities in pelos meios convencionais. A descoberta dos
modern society, providing, on the one hand, the radioisótopos ou isótopos radioativos, estimulou,
development of a technology that is dedicated devido à propriedade de emitirem radiações,
to the welfare of men, your dignity and the pesquisas em diversas áreas como a medicina,
environment, and on the other hand, it will be a indústria (particularmente a farmacêutica) e a
use only as ultima ratio for doesn’t involve a agricultura.
violation of the principles that are fundamental Atualmente, não se consegue cogitar sobre
to the own preservation of the social state and a possibilidade de se viver sem a energia nu-
democratic of law. clear. Ocorre que os benefícios trazidos por ela
Keywords: Nuclear activities. Social state são muito grandes e a cada dia são descobertos
Democratic state of law. empregos diferentes dos radioisótopos nas mais
diversas áreas do saber.
No campo da pesquisa, existe uma técnica
1. Considerações iniciais sobre as especial conhecida como a técnica dos traçado-
atividades nucleares res, pois tendo em vista que as radiações emitidas
por radioisótopos podem atravessar a matéria e,
Consideram-se atividades nucleares todas dependendo da energia que os mesmos possuam,
aquelas que liberam, de forma direta ou indireta, detectá-las onde estiverem por meio de aparelhos
radiação ionizante extraída de átomos existentes apropriados, chamados detectores de radiação,
na natureza. o deslocamento de um radioisótopo pode ser
Nos dias de hoje, sabe-se que a energia acompanhado e seu percurso, traçado. Logo,
nuclear não se restringe à produção de energia recebe o nome de traçador radioativo. Assim,
elétrica e que a descoberta dos radioisótopos “esses radioisótopos podem ser usados para de-
estimulou sua aplicação no ensino, em especial, terminar a quantidade de uma única substância
a física nuclear, a biologia, a nutrição, a radio- numa mistura”.(4)
farmácia e a ecologia, bem como pesquisa em Outra técnica curiosa é a denominada
diversas áreas, como a medicina, a odontologia, a datação, que consiste em um “processo de de-
agricultura, a indústria, etc. Porém, para que isso terminação da idade de um objeto pela medida
ocorresse, a humanidade teve que passar por um da atividade de um nuclídeo”.(5) Por intermédio
período obscuro durante sua evolução. desse processo é possível precisar a idade de
Infelizmente, o mundo inteirou-se da pos- fósseis e rochas, encontrando-se dados sobre a
sibilidade do uso da energia nuclear através das evolução do planeta e, por conseguinte, estudar
bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e a própria evolução humana.
Nagasaki, em 1945 (dias 6 e 9 de agosto). Logo, A utilização da energia nuclear na área mé-
sua primeira aplicação foi bélica e dificilmente dica é de suma importância. Exemplo típico é o
deixará a humanidade se esquecer dessa possi- seu uso na radioterapia.(6) Nesse caso, a radiação
bilidade. Tais bombas, denominadas A, sucede- atinge com maior facilidade, as células doentes
ram as ditas bombas B e, depois, as bombas H, do que as sadias, avaliando-se a radiação e sua
que lograram estabelecer o que foi cunhado de incidência sobre tecidos vivos do organismo do
“equilíbrio do terror”.(3) ser humano.(7)
Verifica-se que a utilização pacífica da A medicina nuclear é uma especialidade
energia nuclear – que, como já foi frisado não se na qual se utilizam os radioisótopos, tanto em
restringe à produção de energia elétrica – gera, diagnósticos como em terapias, e com o uso de
diverso do permitido em lei. Pena: reclusão, de sua operação sem a necessária autorização. Pena:
quatro a dez anos”. reclusão, de dois a seis anos”.
Esse tipo penal “visa a assegurar o mo- Nesse caso, o crime é próprio e só pode
nopólio da União nessa atividade, bem como ser cometido por aquelas pessoas que tenham
a impedir a utilização irregular do material determinada qualificação, ou seja, nos termos
nuclear pelos órgãos oficiais”,(31) lembrando legais, o responsável pela instalação nuclear. A
que a União não possui mais o monopólio dos Lei utilizou o termo “responsável” e não “ope-
radioisótopos de “meia-vida” igual ou inferior rador”. Nos termos de seu artigo 1º, inciso I, da
a duas horas, cuja produção, comercialização e Lei nº 6.453/77, entende-se por “’operador’,
utilização são autorizadas para a pesquisa e usos a pessoa jurídica devidamente autorizada para
médicos, agrícolas e industriais (Constituição operar instalação nuclear”. Logo, a norma em
Federal, artigos 21, inciso XXIII, alíneas b e c, e questão destina-se ao diretor da empresa ou
177, inciso V, conforme Emenda Constitucional instituição operadora da instalação nuclear, pois
n. 49/2006), tutelando-se, pois, o poder de polícia a responsabilidade é pessoal.(32)
da Administração Pública de modo que o Poder Apesar de regularmente instalado, o orga-
Público controle a atividade nuclear. nismo depende sempre, para funcionar, de autori-
Nos termos da definição legal constante zação da CNEN, sendo que “instalação nuclear”
da Lei ora estudada (inciso IV, do artigo 1º), também é um conceito legal e consiste em: a) um
“material nuclear” deve ser entendido como “o reator nuclear, salvo o utilizado como fonte de
combustível nuclear e os produtos ou rejeitos energia em meio de transporte, para a propulsão
radioativos”. Combustível nuclear é todo aquele ou outros fins; b) uma fábrica que utilize com-
capaz de produzir energia mediante processo bustível nuclear para a produção de materiais
auto-sustentado de fissão nuclear (inciso II) e nucleares ou na qual se faça o tratamento desses
produtos ou rejeitos radioativos são os materiais materiais, incluídas as instalações de reprocessa-
radioativos obtidos durante o processo de produ- mento de combustível nuclear irradiado; e c) um
ção ou utilização de combustíveis nucleares, ou local de armazenamento de materiais nucleares,
cuja radioatividade se tenha originado da expo- exceto aqueles usados ocasionalmente durante o
sição às irradiações inerentes a tal processo, com transporte.(33)
exceção dos radioisótopos que já alcançaram o Mais uma vez, a lei enfatiza a preocupação
estágio final de elaboração e podem ser utilizados de que o projeto nuclear não seja levado a efeito à
para fins científicos, médicos, agrícolas, comer- revelia do governo,(34) tutelando, assim, o poder
ciais ou industriais (inciso III). de polícia da Administração Pública.
Sendo assim, as condutas previstas na Interessante a informação de Walter Tolen-
norma – produzir, processar, fornecer ou usar – tino Álvares quanto ao processo de concessão
somente podem ser praticadas mediante autoriza- de licença, analisando as legislações do Brasil e
ção específica de órgão do Poder Público, no caso dos EUA: “Pela legislação brasileira o processo
a CNEN, que, por sua vez, autoriza unicamente a é inteiramente administrativo, fechado, de sorte
pessoas e organismos preparados para o desem- que, todo o poder decisório decorre do órgão
penho dessas atividades. Na verdade, a expressão federal competente, como conseqüência [...], de
“sem a necessária autorização” indica a presença que sendo no Brasil um monopólio da União,
do elemento normativo do tipo, relacionado com somente a ela cabe decisão pelos seus órgãos, a
a antijuridicidade. Logo, a concretização da quem outorgar a autorização para a construção de
figura típica depende de o agente não ter obtido reatores. [...] Nos Estados Unidos [...] a relação
a referida autorização legal. se desenvolve nos quadros do que se pode desig-
b) Operação irregular. nar por indústria sob regulamentação”.(35)
No artigo 21 está previsto o seguinte delito: Conforme entende Lincoln Magalhães da
“permitir o responsável pela instalação nuclear Rocha, “o uso do átomo em desacordo com as
influindo diretamente na medida do injusto que possa causar degradação ambiental, isto é,
penal. “alteração adversa das características do meio
A dúvida que surge nesse ponto é se o le- ambiente”.(82)
gislador agiu corretamente ao inserir, na Lei nº Aqui, também com o propósito de tutelar
9.605/98, um dispositivo tratando especialmente o meio ambiente como um todo, o legislador
das atividades nucleares e radioativas, quando tipificou a conduta do agente que mantém, em
existe lei específica sobre o tema, no caso, a Lei desconformidade com a legislação pertinente,
nº 6.453/77. Esse assunto será objeto de análise, estabelecimento potencialmente poluidor, seja
em separado, no próximo tópico.(81) na ausência de licença ou autorização, seja com
Por derradeiro, a lei previu expressamente, a inobservância do conteúdo desses atos admi-
no parágrafo 3º, do artigo 56, da Lei nº 9.605/98, nistrativos. Relacionam-se, então, às instalações
a punição do delito a título de culpa. Então, o nucleares ou radioativas.(83)
crime pode ser cometido por negligência, impru- No entanto, urge que se faça uma correção:
dência ou imperícia, quer o objeto seja substância a primeira parte do artigo 60 faz referência aos
tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao “órgãos ambientais competentes”. Ocorre que
meio ambiente, e o ato se dê em descordo com a CNEN, órgão responsável pela concessão de
normas administrativas, quer se trate de aban- licença ou autorização no âmbito da energia
dono ou utilização em desacordo com a norma nuclear, não é órgão ambiental, como requer o
específica, bem como em se tratando de material dispositivo em análise. De outro lado, o IBAMA
nuclear ou radioativo; porém, neste caso, sem o – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
aumento de pena determinado pelo parágrafo 2º Recursos Naturais Renováveis, que é órgão am-
da Lei em questão. biental, deve apenas manter entendimentos com
d) Artigo 60 da Lei nº 9.605/98. a CNEN para: “a) informar-se permanentemente
O tipo penal constante do artigo 60 com relação às instalações nucleares, unidades
apresenta os seguintes elementos: “Construir, de transporte e respectivos roteiros, a fim de
reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, delimitar as áreas passíveis de serem afetadas;
em qualquer parte do território nacional, esta- e b) estabelecer normas de prevenção e proteção
belecimentos, obras ou serviços potencialmente ambiental referentes ao uso da energia nuclear”
poluidores, sem licença ou autorização dos ór- (artigo 11, inciso III, alíneas a e b, do Decreto
gãos ambientais competentes, ou contrariando nº 2.210/97), sendo que em momento algum há
as normas legais e regulamentares pertinentes. previsão no sentido de que aquele órgão pode
Pena: detenção, de um a seis meses, ou multa, conceder licença ou autorização, tratando-se de
ou ambas as penas cumulativamente”. instalações nucleares ou radioativas.
Inicialmente é válido registrar que o li- Já, a segunda parte do artigo 60 pode ser
cenciamento e a revisão de atividade efetiva aplicada conforme sua redação, porquanto o
ou potencialmente poluidora constituem instru- IBAMA pode estabelecer normas de prevenção
mentos da Política Nacional do Meio Ambiente e proteção ambientais referentes à energia nu-
(Lei nº 6.938/81, artigo 9º, inciso IV). Tamanha clear (artigo 11, inciso III, alínea b, do Decreto
é a relevância de tais atividades que a lei esta- nº 2.210/97), ocasião em que as normas legais
beleceu, para sua instalação, a obrigatoriedade ou regulamentares podem ser contrariadas. De
de prévio licenciamento, independentemente de qualquer forma, “é imperioso frisar que tendo em
outras licenças exigíveis (hipóteses do artigo 10 vista as dificuldades provenientes das particula-
da referida Lei). ridades das instalações nucleares, tormentosa é
Quanto as definições que importam à a aplicação do art. 60”.(84)
construção desse tipo penal, deve-se entender, Pune-se, portanto, a prática das ações de-
por obra, a construção ou a edificação e, por monstradas nos núcleos do tipo, sem que haja
serviço potencialmente poluidor, a atividade licença administrativa corretamente expedida.
Ademais, todas as atividades para as quais a lei O tipo penal em tela está voltado ao ato
ou as normas regulamentares exigem licença ou de concessão irregular de licença, autorização
autorização são potencialmente poluidoras. Na ou permissão, seja na forma dolosa (caput), ou
verdade, “trata-se de presunção que acompanha mesmo na forma culposa (parágrafo único). E
a exigência de prévia permissão, concessão, como seu antecedente, esse tipo define um cri-
autorização ou licença administrativa”.(85) me funcional, para cuja tipificação exige-se do
e) Artigo 66 da Lei nº 9.605/98. agente (funcionário público) capacidade especial
consistente no exercício de função pública.
Visando conceder maior eficácia aos tipos
penais ambientais, previstos na Lei nº 9.605/98, Trata-se de um tipo abrangente, pois não
o legislador também protegeu a administração atinge só atividades, obras ou serviços relaciona-
ambiental ao elevar determinadas condutas à dos aos radioisótopos, mas apresenta uma “forma
categoria de fatos delituosos, mas sempre com redacional tautológica”, haja vista que o legisla-
o objetivo principal de tutelar o meio ambiente. dor tipifica a conduta de conceder autorização às
Nesse sentido, o início se deu com a criação do atividades que dependem de autorização, e “cabe
artigo 66, cuja redação é a seguinte: “Fazer o dar autorização para atividades que dependam de
funcionário público afirmação falsa ou enganosa, autorização...” .(89)
omitir a verdade, sonegar informações ou dados g) Artigo 68 da Lei nº 9.605/98.
técnico-científicos em procedimentos de auto- Nos termos do disposto no artigo 68 da Lei
rização ou de licenciamento ambiental. Pena: ora estudada, configura crime contra o meio am-
reclusão, de um a três anos, e multa”. biente, particularmente contra a administração
Primeiramente, constata-se que o delito ambiental: “deixar, aquele que tiver o dever legal
em questão é voltado ao funcionário público, ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação
de conformidade com seu conceito para efeitos de relevante interesse ambiental. Pena: detenção
penais, previsto no Código Penal brasileiro(86) de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se
para o qual há o dever de exercer as funções o crime é culposo, a pena é de três meses a um
corretamente como serviço público, ou seja, de ano, sem prejuízo da multa”.
interesse geral, de acordo com o legalmente pre- Em razão da técnica redacional emprega-
visto (princípios da legalidade e eficiência).(87) da na sua construção, críticas doutrinárias não
Também é importante salientar que as faltam ao referido artigo, especialmente no que
informações ou os dados técnico-científicos aos diz respeito à “obrigação de relevante interesse
quais o legislador fez referência são da maior ambiental”(90), não havendo definição do que
importância nos procedimentos administrativos essa expressão deseja significar.
de autorização(88) ou licenciamento ambiental. Convém esclarecer que, diante do exposto
É certo, porém, que são os especialistas da área nesse dispositivo, comete o delito o agente que
que farão a análise e dirão se o projeto é compa- descumprir a obrigação de relevante interesse
tível com a proteção do meio ambiente. ambiental prevista em contrato.(91) Observa-se,
f) Artigo 67 da Lei nº 9.605/98. portanto, que o legislador preferiu lançar mão do
Com os mesmos objetivos e seguindo a direito penal imediatamente, de forma que “as
mesma linha de tutela penal, prevê o artigo 67: esferas cível e administrativa são ‘esquecidas’,
“Conceder o funcionário público licença, autori- ou melhor, ignoradas”.(92)
zação ou permissão em desacordo com as normas Por exemplo: a Norma CNEN-NE-1.28,
ambientais, para as atividades, obras ou serviços de 11/10/1999, estabelece os requisitos exigidos
cuja realização depende de ato autorizativo do pela CNEN para a qualificação de uma entidade
Poder Público. Pena: detenção, de um a três anos, como Órgão de Supervisão Técnica Indepen-
e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a dente (OSTI) em área específica de atividades
pena é de três meses a um ano de detenção, sem em usinas núcleo-elétricas e demais instalações,
prejuízo da multa”. nucleares ou radioativas. Dessa forma, “a de-
sobediência às obrigações expressas na Norma a três anos. Parágrafo 2º. A pena é aumentada de
1-28 pelos integrantes, como pessoas físicas do um terço a dois terços, se há dano significativo
OSTI [...] tornam essas pessoas passíveis de ao meio ambiente, em decorrência do uso de
serem enquadrados no crime do art. 68 da Lei informação falsa, incompleta ou enganosa”.
nº 9.605/98”.(93) Com esse novo dispositivo, o legislador,
Há, ainda, previsão legal da forma culposa com o fito de tutelar o meio ambiente, busca
na modalidade negligência, “uma vez que é invi- punir os envolvidos na elaboração ou mesmo
ável alguém, por imprudência ou imperícia, não apresentação de estudo, laudo ou relatório
cumprir o dever legal ou contratual”.(94) técnico com conteúdo falso ou enganoso, por
h) Artigo 69 da Lei nº 9.605/98. conta do licenciamento ambiental, concessão
florestal ou outro procedimento administrativo
Também visando a tutela penal do meio
dessa natureza.
ambiente, o artigo em epígrafe prevê como crime
a conduta de: “Obstar ou dificultar a ação fisca- Sendo assim, tanto o agente público de
lizadora do Poder Público no trato de questões órgão ambiental, que elabore um laudo técnico,
ambientais. Pena: detenção, de um a três anos, como o empreendedor que apresente esse do-
e multa”. cumento, sendo o mesmo total ou parcialmente
falso, pode responder pelo delito. Exemplo disso
Tem-se igualmente aqui um tipo penal é o caso de quem elabora ou apresenta um laudo
aberto, pois de forma genérica criminaliza a técnico à CNEN para obter a licença de funcio-
conduta do agente que crie obstáculos à ação namento de instalação radioativa, onde se afirma,
fiscalizadora do Poder Público, lembrando que falsamente, que o local não apresenta riscos ao
a redação utiliza tal expressão (“Poder Público”) meio ambiente; incide, pois, no tipo. Também há
porque cabe aos entes federativos de todos os previsão culposa do crime, bem como de uma
níveis (federal, estadual e municipal, mais o majorante no caso de significativo dano ao meio
Distrito Federal) zelar pela proteção do meio ambiente por conta da utilização da informação
ambiente (Constituição Federal, artigos 23, falsa, incompleta ou enganosa.
inciso VI, e 24, inciso VI).
Também aqui surgem problemas quanto
De fato, incrimina-se a causa de emba- à descrição típica das condutas puníveis, pois
raço ou empecilho capazes de obstaculizar ou como avaliar se a falha ou omissão foram in-
dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público tencionais ou culposas? E o que se entende pela
de todas as esferas do Poder, tratando-se de expressão “dano significativo”, a que alude o
questões ambientais, como avaliação de danos, parágrafo 2º do artigo em comento?
determinação de prejuízos, inspeção de objetos
Sobre tais questões, Edis Milaré retrata a
ou locais, e outras dessa natureza.(95)
seguinte situação: “Suponha-se que o empreen-
i) Artigo 69-A da Lei nº 9.605/98. dedor contrate uma empresa de consultoria para
Derradeiramente, concluindo a tutela pe- a elaboração de um EIA-RIMA, com vistas à
nal infraconstitucional do meio ambiente, com obtenção de licenciamento ambiental para de-
a introdução deste novel tipo penal pela Lei terminado empreendimento ou atividade para a
nº 11.284/06, o legislador buscou criminalizar qual a legislação preveja a apresentação de tal
de forma mais grave a conduta do agente nos estudo. Suponha-se ainda que na análise de tal
casos da Lei nº 9.605/98. A redação do tipo é estudo, pela autoridade ambiental, seja cons-
esta: “Artigo 69-A. Elaborar ou apresentar, no tatado um erro ou uma informação dissonante
licenciamento, concessão florestal ou qualquer com a realidade. Ora, segundo os ditames do
outro procedimento administrativo, estudo, lau- dispositivo legal em apreço, a empresa de consul-
do ou relatório ambiental total ou parcialmente toria responderá pelo crime descrito nesse artigo
falso ou enganoso, inclusive por omissão. Pena: – pois elaborou o estudo reputado enganoso –,
reclusão, de três a seis anos, e multa. Parágrafo assim como o empreendedor que o apresenta às
1º. Se o crime é culposo. Pena: detenção, de um autoridades”.(96)
Ocorre que, no mais das vezes, o empre- Em um primeiro momento, ocorre que a
endedor não dispõe de conhecimento técnico conduta de “extrair” se faz presente nos dois
suficiente para analisar e avaliar o trabalho téc- dispositivos, a despeito de a Lei de Crimes Am-
nico apresentado – motivo pelo qual contratou bientais não utilizar o verbo, mas a atividade
um terceiro para fazê-lo – e, no entanto, haverá o (“extração”). Além disso, a expressão “recursos
risco de ele responder por um engano ou omissão minerais” apresenta uma abrangência maior
sem mesmo ter dado causa. em relação àquela que se refere ao “minério
Frise-se, por fim, que “a altíssima pena nuclear”, permitindo, então, que se faça um ni-
cominada ao crime pode inibir ainda mais a velamento de todos os minérios, seja o mesmo
disposição de peritos, expertos e profissionais de natureza nuclear ou não.(101) Para completar,
para aceitar trabalhos cujas conclusões, ainda a Lei nº 9.605/98 condiciona as condutas típicas
que técnica e cientificamente defensáveis, à inexistência de “autorização, permissão, con-
possam de algum modo não ser aceitas pelos cessão ou licença” ou, ainda, “em desacordo com
técnicos dos órgãos ambientais ou do Ministério a obtida”, como faz a Lei nº 6.453/77, quando
Público”,(97) ensejando uma ação penal. também restringe os comportamentos proibidos
à forma “ilegalmente”, que deve ser tomada no
Destarte, feita a análise global desses tipos
sentido lato, englobando a ausência de normas
penais aplicáveis, de uma forma ou de outra, às
regulamentares decorrentes dos referidos atos
atividades nucleares, passa-se agora às obser-
administrativos. Entende-se, em razão desses
vações e conclusões preliminares e necessárias
motivos, que o artigo 55 da Lei de Crimes Am-
sobre o assunto, as quais servirão de base para
bientais revogou parcialmente o artigo 24 da Lei
a sustentação da tese de que a legislação penal
das Atividades Nucleares.
em questão não funciona, além do que carece
de reformas. Quanto à outra parte da redação desse
dispositivo legal, as condutas de “beneficiar”
e “comercializar” foram revogadas pelas ações
3.4. Tomada de posição múltiplas contidas no tipo previsto no artigo 56
Inicialmente, deve-se questionar sobre a da Lei de Crimes Ambientais(102), muito mais
vigência dos tipos penais analisados. Apesar abrangentes em relação às primeiras.
das divergências doutrinárias existentes(98) – Entende-se, também, que esse mesmo
as quais poderiam inexistir, caso o legislador artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou os artigos
de 1998 tivesse mencionado expressamente, na 20, 22 e 25 da Lei nº 6.453/77, diante da grande
Lei nº 9.605, quais artigos foram revogados(99) extensão abarcada pelas condutas típicas nele
–, deve-se entender revogados tacitamente os descritas. Sendo assim, as ações nucleares de
artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei nº 6.453/77(100) “produzir, processar, fornecer ou usar” (artigo
pelos artigos 55 (parte do artigo 24) e 56 (parte 20); “possuir, adquirir, transferir, transportar,
do artigo 24 e os demais referidos); e, também, guardar ou trazer consigo” (artigo 22); e “expor-
o artigo 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, tar ou importar” (artigo 25), estão previstas, de
todos da Lei nº 9.605/98. um modo ou de outro(103), naquele dispositivo
O caput do artigo 55, da Lei nº 9.605/98, da Lei de Crimes Ambientais, o qual, assim como
trata da execução de três atividades, a saber: a os citados tipos penais da Lei das Atividades Nu-
“pesquisa”, a “lavra” e a “extração”, cujo objeto cleares, exige que a conduta se dê em desacordo
são os “recursos minerais”, desde que tal ação com a norma.
seja levada a efeito “sem a competente autori- Finalmente, houve a revogação do artigo
zação, permissão, concessão ou licença, ou em 15, da Lei nº 6.938/81, pelo artigo 54, da Lei nº
desacordo com a obtida”. Por sua vez, o artigo 9.605/98. Aquele dispositivo, previsto na Lei de
24 da Lei nº 6.453/77 estabelece três condutas Política Nacional do Meio Ambiente, trata do
típicas: “extrair”, “beneficiar” e “comercializar” crime de poluição, assim compreendido pelos tri-
minério nuclear de forma ilegal. bunais brasileiros: “Ação civil pública. Dano ao
meio ambiente. Poluidor indireto. I – O poluidor Contudo, dependendo da forma como fo-
que causa dano ao meio ambiente tem definição rem desenvolvidas as atividades nucleares, tais
legal e é aquele que proporciona, mesmo indi- bens jurídicos (vida, integridade física, patrimô-
retamente, degradação ambiental. E o poluidor nio, meio ambiente) podem ser afetados direta ou
é sujeito ao pagamento de indenização, além de indiretamente e de forma muito grave, o que pode
outras penalidades”.(104) implicar na sua destruição total e irreversível, os
Já, o segundo dispositivo mencionado, da quais, portanto, devem receber um tratamento
Lei de Crimes Ambientais, concedeu novo e adequado por parte da lei penal.
amplo tratamento à matéria, portanto, de maior Também no que se refere à amplitude de
abrangência que a anterior, o qual até então tutela penal por parte da Lei nº 6.453/77, há de
era a única referência expressa à poluição e ao se observar que a mesma só regula as instalações
enquadramento correto para todo crime da natu- nucleares; porém, ignora as instalações radioa-
reza em epígrafe, mas isso antes da aplicação da tivas, ou seja, a lei contempla a energia nuclear,
legislação criminal a partir de 1998.(105) mas não abarca a questão das radiações ionizan-
Sendo assim, conclui-se que permanecem tes, sendo que ambas têm potencial para afetar
em vigor os artigos 21, 23, 26 e 27 da Lei nº bens jurídicos dignos de tutela penal.
6.453/77, e artigos 54 a 56, 60, 66 a 69, e 69-A O segundo motivo para se refutar a atual
da Lei nº 9.605/98. legislação infraconstitucional penal é que a Lei
Embora estejam vigendo duas leis espe- de Crimes Ambientais não atende às especifici-
cíficas sobre o tema relacionado às atividades dades exigidas pelas atividades nucleares, diante
nucleares, em que pese a impossibilidade de da forma genérica com que trata a questão, apesar
consenso quanto aos tipos penais vigentes, de ter voltado atenção à tutela do meio ambiente,
partindo-se, contudo, da posição adotada em além da saúde humana, ordenação territorial e
relação a essa questão, o fato é que a legislação Adminstração Pública.
infraconstitucional penal existente no momento
Demonstrou-se, ainda, que a Lei nº
não serve para conferir uma adequada tutela
9.605/98 dispõe sobre crimes contra o meio am-
penal, seja no que diz respeito à Lei nº 6.453/77,
biente, priorizando a tutela desse bem jurídico e
ou mesmo em relação à Lei nº 9.605/98.
abordando os delitos relativos à energia nuclear
O primeiro motivo para tal afirmativa é que em apenas alguns dos seus dispositivos (previs-
a Lei das Atividades Nucleares (6.453/77) não tos nas Seções III e V do Capítulo V), contudo,
promove essa tutela específica de forma ampla,
de maneira genérica. De forma específica, tem-se
haja vista que apenas um tipo penal da Lei em
só o parágrafo 2º, do seu artigo 56, que trata da
tela teve como objetivo a proteção da vida, da
poluição radioativa. No entanto, a despeito de o
integridade física ou do patrimônio das pessoas.
legislador ter feito uma particular referência às
Além disso, ela não abarcou a segurança coletiva
atividades nucleares e radioativas nesse dispo-
e a proteção do meio ambiente.(106)
sitivo, ele não agiu corretamente.
Conforme já foi analisado, no que concerne
Ocorre que, nesse caso em particular, existe
aos delitos descritos nessa lei, verifica-se que os
mesmos não se referem ao meio ambiente, mas uma lei específica dispondo sobre as atividades
à segurança nacional, às instalações nucleares, dessa natureza (Lei nº 6.453/77), muito embora a
aos materiais nucleares e ao assecuramento do mesma não tenha tratado do assunto da maneira
controle das atividades nucleares pelo Poder devida, ou seja, de forma ampla, englobando
Público.(107) À época da elaboração da Lei nº como bens jurídicos a vida, a integridade física,
6.453/77, o legislador se preocupou mais com a o patrimônio, a segurança coletiva e o meio
restrição de condutas com capacidade de ofensa ambiente, e tutelando, além das instalações nu-
aos bens jurídicos diversos do meio ambiente, cleares, também as radioativas.
voltando-se às atividades desenvolvidas nas Finalmente, a terceira razão para se pre-
instalações nucleares(108). conizar uma reforma legislativa sobre o tema é
aquela relacionada à maneira como determinados buscando-se a sua compatibilidade com os prin-
bens jurídicos podem ser expostos à ofensa (ou cípios constitucionais tidos como fundamentais
afetados) pelas condutas que tomem por base as no estado social e democrático de direito, de
atividades nucleares em seu sentido amplo, tam- importância singular para a delimitação do
bém no tocante à existência de um bem jurídico direito de punir. Deve-se iniciar, na verdade,
principal, objeto da tutela, e sobre a forma como uma empreitada no sentido de apontar um novo
se dá a intervenção penal quando da ocorrência modelo de tutela penal das atividades nucleares
dos comportamentos proibidos. neste mesmo estado. Mas isto é assunto para ser
Verifica-se que em ambas as leis – 6.453/77 discutido em outra oportunidade.
e 9.605/98 – existem vários tipos que são cons-
truídos a partir de uma técnica legislativa que
opta pela utilização de elementos próprios do 4. Conclusões
chamado direito penal de risco, como os crimes
Entre os avanços técnicos e/ou científicos
de perigo abstrato e as normas penais em branco,
dos últimos tempos, poucos têm levantado tanta
buscando-se, com isso, a antecipação da tutela
polêmica na sociedade contemporânea quanto a
penal na medida em que tais elementos servem,
obtenção de energia derivada do processamento
respectivamente, de barreira de contenção para
atômico, genericamente denominada energia nu-
que delitos mais graves não ocorram, e como
clear ou atômica, a qual apresenta, inclusive, um
propiciadores de uma interdisciplinaridade entre
risco que pode desembocar em uma catástrofe
o direito e outras áreas do saber.
para a humanidade. Porém, as atividades nuclea-
Falhas e equívocos também estão presentes res envolvem não somente a utilização da energia
nos dois diplomas quanto às intervenções penais nuclear, mas também, o emprego das radiações
em cada hipótese. Comparando-se uma norma ionizantes em diversas áreas do conhecimennto,
com outra, percebe-se que o tratamento dado sendo, ambas, ao mesmo tempo, instrumentos
pela Lei nº 6.453/77 é muito rígido, ao passo fundamentais para o desenvolvimento da socie-
que a Lei nº 9.605/98 tratou a questão de forma dade e temas geradores de muita preocupação e
mais branda, o que pode conduzir à constatação tensão para os homens e o meio ambiente.
de que o legislador infraconstitucional descon- A energia nuclear e as radiações ionzantes
siderou a relação de proporcionalidade que deve têm aplicações variadas e importantes em um
haver entre a lesão (ou então, ameaça de lesão) considerável número de atividades humanas.
ao bem jurídico tutelado e a sanção imposta Há, entretanto, de se levar em conta que tais
nesses casos. atividades também implicam conseqüências
Diante de todo o exposto, conclui-se que boa e ruins ao ser humano e ao meio ambiente,
existe uma confusão legislativa em torno das se mal utilizadas ou direcionadas às práticas
leis que dispõem sobre as atividades nucleares lesivas. Em razão disso, as atividades nucleares
no direito brasileiro. Há de fato uma grande demandam uma regulamentação jurídica ampla
miscelânea legislativa no que diz respeito aos e consistente, a fim de permitir seu emprego de
objetivos perseguidos pelos legisladores de cada maneira séria e consciente voltado ao benefício
uma delas, além da utilização desordenada dos do homem e do meio ambiente.
elementos componentes da estrutura dos tipos Quanto a regulamentação jurídica das ati-
contidos nas mesmas, o que, por si só, exige um vidades nucleares no direito brasileiro, tem-se
novo tratamento jurídico-penal. uma tutela em diferentes níveis, com a regu-
Enfim, torna-se imperioso analisar se e lamentação constitucional e a regulamentação
até onde aqueles instrumentos podem ser úteis infraconstitucional, abarcando normas de direito
para a tutela penal das atividades nucleares, mas internacional, direito civil, administrativo e pe-
desde que se tenha em vista, de forma clara, quais nal. A regulamentação jurídico-penal, por seu
são os bens jurídicos que devem ser protegidos, turno, é levada a efeito, em princípio, por meio de
três leis especiais, a saber: a Lei n. 6.453/77 (Lei Biblioteca do Exército, 1979.
de Responsabilidade Criminal por Atos Lesivos
ADEODATO, João Maurício L. Ética, subdesen-
às Atividades Nucleares), a Lei n. 6.938/81 (Lei
volvimento e utilização de energia nuclear. In:
de Política Nacional do Meio Ambiente) e a Lei
Revista da Procuradoria Geral da República,
n. 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), cada São Paulo, n. 6, 1994.
qual com seus objetivos e especificidades.
No entanto, entende-se que a Lei n. ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito
6.453/77 – voltada particularmente às atividades da energia. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
nucleares – teve a maioria dos seus dispositivos ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental.
tacitamente revogados pela Lei n. 9.605/98 – di- 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
recionada às condutas atentatórias ao meio am-
ARANHA, Fábio. Neutrongrafia: técnica nuclear
biente –, a qual também teria revogado, ainda que
ajuda a combater drogas e terrorismo. Brasil
tacitamente, o único artigo da Lei n. 6.938/81 que
nuclear, Rio de Janeiro, ano 8, n. 23, Associação
poderia ter aplicação à matéria nuclear. A bem
Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), abr.-set.
da verdade, ocorre uma confusão legislativa no
2001.
direito pátrio em relação às condutas referentes
às atividades dessa natureza: a Lei n. 6.453/77 só BECHARA, Érika. Aspectos penais da Lei da
regula as instalações nucleares, ignorando as ins- Política Nacional do Meio Ambiente. In: Boletim
talações radioativas, ou seja, contempla a energia do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
nuclear, mas não abarca a questão das radiações São Paulo, n. 49, dez. 1996.
ionizantes, sendo que ambas têm potencial para BEDNARSKI, José Luiz. Lei 9.605/1998: equí-
afetar bens jurídicos dignos de tutela penal; já, a vocos do legislador. In: Boletim IBCCrim, São
Lei n. 9.605/98 dispõe sobre os crimes contra o Paulo, n. 68, 1998.
meio ambiente e prioriza a tutela do citado bem
jurídico, abordando os delitos relativos à energia BIASI, Renato de. A energia nuclear no Brasil.
nuclear em apenas alguns dos seus dispositivos Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979.
e, ainda assim, de forma genérica (especifica- CAMARGO, Adriano Costa de. Conservação
mente, trata apenas da poluição radioativa), os por irradiação. Disponível no site:http://www.
quais envolvem a ofensa ou exposição a perigo cena.usp.br/irradiacao/cons_irrad.html. Acesso
de outros bens jurídicos além do meio ambiente. em: 19/09/2007.
Por tais razões e, ainda, pela necessidade de se
CARVALHO, Joaquim Francisco de. O acordo
analisar os instrumentos que podem ser úteis à
nuclear Brasil-Alemanha. O Brasil nuclear: uma
tutela penal das atividades nucleares, deve-se
anatomia do desenvolvimento nuclear brasileiro.
proceder à construção legislativa de um novo
Porto Alegre: Tchê!, 1987.
modelo de tutela penal das atividades nucleares
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NUCLEAR, apud BIASI, Renato de. A energia nuclear no
(12) SAFFIOTI, Waldemar. Fundamentos de energia nuclear. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1979, p. 154.
Petrópolis: Vozes, 1982, p. 151.
(30) Conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, denominam-se
(13) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR “crimes nucleares aquelas infrações penais, descritas em lei,
(CNEN). Aplicações da energia nuclear. Disponível no site: oriundas basicamente da utilização desse tipo de energia”
www.cnen.gov.br/ensino/apostila/aplica.pdf, p. 9. Acesso (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Os crimes nucleares. In:
em: 15/09/2007. Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA,
Salvador, n. 5, jan. 1996-dez. 1997, p. 306). Ainda, de
(14) Nesse sentido, conferir: CARVALHO, Joaquim Francisco
acordo com o autor, “A Lei nº 6.453/77 [...] define oito
de, op. cit., p. 51; SAFFIOTI, Waldemar, op. cit., p. 151;
crimes relacionados com o emprego e produção da energia
CNEN, op. cit., p. 10. No Brasil, a erradicação de certos nuclear” (id., p. 307), sendo que ”o escopo principal visa-
insetos mediante irradiação dos machos até a esterilização do com a tipificação dessas condutas foi o de assegurar a
tem sido efetuada na região de Piracicaba-SP, através do implantação da nova modalidade geradora de energia sem
Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA). A causar riscos ou danos para a população e para as relações
principal vantagem deste processo é que ele é mais barato, externas” (id., p. 308).
comparando-se à utilização de agrotóxicos. Nesse sentido: (31) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 293.
DANTAS, Vera. Técnicas nucleares na agricultura – Piraci-
(32) ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 5. ed. Rio
caba mira na exportação e acerta na mosca... da fruta. Brasil
de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 591.
Nuclear, Rio de Janeiro, ano 6, n. 19, Associação Brasileira
de Energia Nuclear – ABEN, abr.-jun. 1999, p. 8. (33) Lei nº 6.453/77: artigo 1º, inciso VI, letras a, b e c.
(15) INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY (34) ROCHA, Lincoln Magalhães da. Responsabilidade criminal
(IAEA). Use of irradiation as a quarantine treatment of food e civil pelos ilícitos da era nuclear. In: Revista de Informação
Legislativa, Brasília, Senado Federal, ano 22, n. 86, abr.-
and agricutural commodities, Viena, 1992, p. 66.
jun. 1985, p. 237.
(16) DIEHL, Johannes Friedrich. Safety of irradiated foods.
(35) ÁLVARES, Walter Tolentino. Curso de direito da energia.
New York: Marcel Dekker, 1995, p. 454. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 532.
(17) CAMARGO, Adriano Costa de. Conservação por irradia- (36) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 238.
ção. Disponível no site: http://www.cena.usp.br/irradiacao/
(37) Sobre a utilização da energia nuclear, para João Maurício L.
cons_irrad.html. Acesso em: 19/09/2007.
Adeodato há “três alternativas [...]: a tese do uso total (fins
(18) SIGURBJÖRNSSON, Björn; VOSE, Peter. Técnicas nucle- bélicos e pacíficos), a tese do uso apenas pacífico e a tese
ares para el desarrollo agrícola y alimentario: 1964 a 1994. da renúncia à utilização da energia nuclear em larga escala.
In: Boletín del OIEA, OIEA, Viena, n. 3, vol. 36, 1994, p. 43. Exclui-se aqui uma quarta e inusitada hipótese, a de utili-
(19) Id., ibid. zação da energia nuclear exclusivamente para fins bélicos”
(ADEODATO, João Maurício L. Ética, subdesenvolvimento
(20) A gamagrafia é a impressão de radiação gama em filme e utilização de energia nuclear. In: Revista da Procuradoria
fotográfico. Geral da República, São Paulo, n. 6, 1994, p. 68).
(21) COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR (38) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 239.
(CNEN), op. cit., p. 12. (39) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 294.
(22) COELHO, Aristides Pinto. Energia nuclear. Rio de Janeiro: (40) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295. Desse modo,
Compósita/Iarte, 1977, p. 333. conforme Paulo Roberto Lyrio Pimenta, “a configuração do
(23) ISHIGURO, Yuji. A energia nuclear para o Brasil. São delito exige que a matéria chegue ao conhecimento do desti-
Paulo: Makron Books, 2002, p. 95-97. natário” (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio, op. cit., p. 311).
(24) ARANHA, Fábio. Neutrongrafia: técnica nuclear ajuda a (41) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo:
combater drogas e terrorismo. Brasil nuclear, Rio de Janei- Revista dos Tribunais, 2005, p. 457.
ro, ano 8, n. 23, Associação Brasileira de Energia Nuclear (42) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 591.
(ABEN), abr.-set. 2001, p. 19. (43) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 295.
(25) Id., p. 21. (44) De fato, “[...] a lei não exige a prática de atos de comércio
(26) DORST, Jean. Antes que a natureza morra: por uma eco- para a configuração do delito” (PIMENTA, Paulo Roberto
logia política. Trad. Rita Buongermino. São Paulo: Edgard Lyrio, op. cit., p. 312).
Blücher/Universidade de São Paulo, 1973, p. 259. (45) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 241.
(27) Entendido como aquele modelo de estado que pretende (46) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592.
reunir, superando-os, os modelos de estado liberal e estado (47) Nesse ponto, surge um alerta: “O legislador fala também
social. em minério ‘de interesse para a energia nuclear’. Ora,
trata-se de um tipo muito aberto que retira à definição legal animal e vegetal” (TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. 1ª
aquela garantia que representa o princípio da legalidade. Região. Ap. Crim. n. 95.01.11586-0/PI. Relator Juiz Tou-
Não usou de boa técnica o legislador ao dimensionar de rinho Neto. 3. T. Unânime. Diário da Justiça 18/04/1996.
forma tão vaga o objeto da tutela penal. Tal modo de legislar p. 25.206).
ofende ao princípio do nullum crimen sine lege, pois dá (60) SIFUENTES, Mônica. Responsabilidade penal pela má
uma abertura demasiada ao critério subjetivo do julgador. utilização da água. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 623,
Quantos minérios podem interessar ao problema nuclear de 23 mar. 2005. Disponível no site: http://jus2.uol.com.br/
maneira indireta ou mesmo direta e não se alinharem entre doutrina/texto.asp?id=6506, p. 3. Acesso em: 01/11/2007.
os estritamente nucleares?” (ROCHA, Lincoln Magalhães
(61) Id., ibid. Lembra a autora ainda, que: “essa lei jamais teve
da, op. cit., p. 242).
efetividade, sendo poucos os casos levados aos tribunais”
(48) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 242. (id., ibid.).
(49) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 592. (62) BECHARA, Érika. Aspectos penais da Lei da Política Na-
(50) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 243. cional do Meio Ambiente. In: Boletim do Instituto Brasileiro
(51) MÉDICI, Sérgio de Oliveira, op. cit., p. 296. de Ciências Criminais, São Paulo, n. 49, dez. 1996, p. 11.
Conforme a autora: “A responsabilidade criminal por condu-
(52) ROCHA, Lincoln Magalhães da, op. cit., p. 244. tas lesivas ao meio ambiente, aliada à responsabilidade civil
(53) PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. São Paulo: e administrativa, que podem incidir cumulativamente sem
Revista dos Tribunais, 2005, p. 461. gerar bis in idem (art. 225, § 3º, CF), logra por desencorajar
(54) “Lei nº 7.170/83. Artigo 13. Comunicar, entregar ou as condutas causadoras de degradação e desequilíbrio do
permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo entorno, razão pela qual se destaca, providencialmente, como
estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, um importante e inafastável instrumento de preservação e
de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, proteção ambiental. Assim, resta-nos concluir que o art. 15
códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado bra- da Lei 6.938/81 tem um salutar papel a cumprir na defesa
sileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de do meio ambiente e da vida digna da coletividade. Acertou o
três a quinze anos. [...] Artigo 15. Praticar sabotagem contra legislador ao instituí-lo e acertará, ainda mais, o magistrado,
instalações militares, meios de comunicações, meios e vias ao aplicá-lo” (id., ibid.).
de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, (63) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney
barragem, depósitos e outras instalações congêneres. Pena: de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de. Crimes
reclusão, de três a dez anos. Parágrafo 1º. Se do fato resulta: ambientais e infrações administrativas ambientais. 2. ed.
a) lesão corporal grave, a pena aumenta-se até a metade; Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 282.
b) dano, destruição ou neutralização de meios de defesa (64) REALE JÚNIOR, Miguel. Meio ambiente e Direito penal
ou de segurança; paralisação, total ou parcial, de atividade brasileiro. In: Revista de Ciências Penais, São Paulo, ano
ou serviços públicos reputados essenciais para a defesa, a 2, n. 4, 2005, p. 75.
segurança ou a economia do País, a pena aumenta-se até o
dobro; c) morte, a pena aumenta-se até o triplo. Parágrafo (65) PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 418-419.
2º. Punem-se os atos preparatórios de sabotagem com a pena (66) MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 5. ed. São Paulo:
deste artigo reduzida de dois terços, se o fato não constitui Revista dos Tribunais, 2007, p. 950.
crime mais grave”. (67) RIBEIRO, Viviane Martins. Tutela penal nas atividades
(55) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 593. nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 190.
(56) Id., p. 593. (68) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950. De acordo com Miguel
(57) A denominada “biota” pode ser compreendida como o Reale Júnior: “Fica ao alvitre do intérprete, com efetiva lesão
“conjunto de seres vivos de um ecossistema; a fauna e a ao princípio da legalidade, dizer o que vem a ser ‘níveis
flora juntas; conjunto de componentes vivos (bióticos) de tais’, sem se ter qualquer parâmetro sequer na legislação
um ecossistema” (LIMA E SILVA, Pedro Paulo de et. al. regulamentar, à qual não se remete o tipo penal” (REALE
Dicionário brasileiro de ciências ambientais. Rio de Janeiro: JÚNIOR, Miguel, op. cit., p. 75). E acrescenta: “[...] com
Thex, 2002., p. 32). relação à fauna e à flora só é crime a ação da qual decorram
danos e danos elevados: mortandade de animais ou destrui-
(58) SILVA, Rodrigo Alves da. A responsabilidade penal por ção significativa da flora. Há manifesta imprecisão acerca
danos ao meio ambiente. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, do significado e limite do que deva ser considerado como
n. 61, jan. 2003. Disponível no site:http://jus2.uol.com.br/ mortandade, bem como referentemente ao que se caracteriza
doutrina/texto.asp?id=3630, p. 3. Acesso em: 01/11/2007. como significativa destruição da flora” (id., p. 75-76). Para
(59) “PENAL. PROCESSO PENAL. NOVA DEFINIÇÃO Luiz Regis Prado, “o termo em níveis tais exprime um certo
JURÍDICA. CPP, art. 383. DEFESA. MEIO AMBIENTE. quantum – suficiente –, elevado o bastante para resultar ou
POLUIÇÃO. O RIO PARNAÍBA. LEI Nº 6.938, DE 1981, poder resultar em lesão à saúde humana. Por destruição
ART.15. LEI Nº 7.804, DE 1989. I – Não é da classificação significativa da flora deve ser entendida aquela realizada de
do crime que o réu se defende e sim da imputação contida maneira expressiva, de gravidade considerável. Tratam-se de
na denúncia (CPP, art. 383). II – Comete o crime previsto corretivos típicos, excluindo-se do âmbito do injusto típico
no art. 15 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, alterado as condutas escassamente lesivas ou de pouca relevância
pela Lei nº 7.804, de 18 de julho de 1989, o proprietário de para o bem jurídico tutelado” (PRADO, Luiz Regis, op.
curtume que lança no rio matérias orgânicas putrefactas, ma- cit., p. 419). Paulo de Bessa Antunes também afirma que: “a
térias não-biodegradáveis, substâncias tóxicas, poluindo-o; morte de um animal, ou de quantidade diminuta de animais,
criando, assim, uma situação de perigo para a vida humana, não poderá ser considerada como típica, para as finalidades
do artigo que está sendo examinado. Igual raciocínio deve que “essa posição, contudo, não deve ser admitida, pois,
ser válido para a flora” (ANTUNES, Paulo de Bessa, op. da forma como está a redação desse artigo, ‘transferiu-se
cit., p. 511). Já Ivete Senise Ferreira frisa o seguinte: “Uma para o fiscal do meio ambiente (de órgão ambiental federal,
questão de grande relevância na estrutura do tipo penal am- estadual ou municipal) o poder de singularizar a norma penal
biental é o da sua amplitude ou indeterminação da conduta para transformar em crime uma conduta omissiva de uma
incriminada, caracterizando o chamado ‘tipo aberto’, que empresa ou pessoa física determinada que venha a deixar de
também pode levar à incerteza jurídica, beirando os limites adotar uma certa medida de precaução que aquela autoridade
da infringência ao princípio da legalidade” (FERREIRA, lhe exigiu. Há manifesto arbítrio para a autoridade adminis-
Ivete Senise. Tutela penal do patrimônio cultural. São Pau- trativa ambiental, que pode, por ato seu de caráter singular
lo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 94). E, a esse respeito, – dirigido a agente determinado – criar um tipo penal novo,
conclui Viviane Martins Ribeiro: “[...] o artigo discutido através de uma simples notificação fiscal ambiental’. Com
é, indubitavelmente, inconstitucional. A sua admissão em certeza, trata-se, mais uma vez, de um dispositivo inconsti-
nosso ordenamento jurídico é uma afronta aos princípios tucional. A sua amplitude permite a criação de tipos penais
basilares da Constituição Federal” (RIBEIRO, Viviane aleatoriamente por autoridades competentes, ofendendo,
Martins, op. cit., p. 191). Contrário a essas críticas, Paulo conseqüentemente, o princípio da legalidade” (RIBEIRO,
Affonso Leme Machado afirma, categoricamente: “Não é Viviane Martins, op. cit., p. 193-194, nota n. 84).
excessivo o espectro da locução – ‘qualquer natureza’ –, pois (74) VAZ, Paulo Afonso Brum; MENDES, Murilo. Meio
para a consumação do delito é preciso mais do que poluir: ambiente e mineração. In: FREITAS, Gilberto Passos de
é necessário poluir perigosamente ou causando dano”, (org.), op. cit., p. 251.
acrescentando ainda, que ele não entende “censurável o
emprego das locuções ‘de qualquer natureza’, ‘em níveis (75) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
tais’, pois todas essas expressões estão fortemente ligadas à Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 326.
possibilidade de causar perigo ou dano aos bens protegidos. (76) Pesquisa mineral é a execução dos trabalhos necessários
É um tipo penal aberto, que, entretanto, não gera arbítrio do à definição de jazida, sua avaliação e a determinação da
julgador, nem insegurança para o acusado” (MACHADO, exeqüibilidade do seu aproveitamento econômico (cf. artigo
Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. 14 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Lavra é o conjunto de ope-
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 717-718). rações coordenadas objetivando o aproveitamento industrial
(69) BEDNARSKI, José Luiz. Lei 9.605/1998: equívocos do da jazida (cf. artigo 36 do Decreto nº-Lei nº 227/67). Extra-
legislador. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 68, 1998, p. 4. ção é a atividade de aproveitamento de substâncias minerais
garimpáveis (cf. artigo 10 da Lei nº 7.805/89). Por sua vez,
(70) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 950. jazida é “toda massa individualizada de substância mineral
(71) Sobre a poluição atmosférica, explica Luiz Regis Prado ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da
que tal pode ser “entendida como a alteração do meio aé- terra e que tenha valor econômico” (artigo 4º do Decreto
reo em decorrência do lançamento de gases ou partículas nº-Lei nº 227/67).
poluentes (substâncias ácidas, tóxicas ou radioativas) –, em (77) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
tal concentração que determine ou obrigue a retirada (parcial Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 332.
ou total, definitiva ou momentânea) dos habitantes do local
atingido, ou que cause danos diretos e efetivos à sua saúde” (78) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental
(PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 421). Quanto à poluição ..., p. 726.
da água, lembra Gilberto Passos de Freitas que “as causas (79) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos
mais comuns da poluição da água são: os dejetos humanos e de. Crimes contra a natureza. 6. ed. São Paulo: Revista dos
industriais, os produtos químicos e radioativos” [(FREITAS, Tribunais, 2000, p. 189-190.
Gilberto Passos de. Do crime de poluição. In: FREITAS, (80) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 195.
Gilberto Passos de (org.). Direito ambiental em evolução.
(81) A respeito, Paulo Affonso Leme Machado diz que: “Não
2. ed. v. 1. Curitiba: Juruá, 2003, p. 143)].
foi feliz a Lei 9.605/98 ao inserir a questão nuclear em um
(72) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 722. pequeno parágrafo, semeando confusão ao tratar da matéria,
(73) MILARÉ, Édis, op. cit, p. 950; MACHADO, Paulo Affon- como abordando-a de forma insignificante. Os assuntos
so Leme, op. cit., p. 67; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. envolvendo a produção nuclear, em seus aspectos criminais,
cit., p. 29; MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Le droit na sua quase-totalidade, continuam regidos pelo Cap. III da
de l’environnement. 6. ed. Paris: Presses Universitaires de Lei 6.453/77” (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito
France, 2003, p. 14. A esse respeito, afirma Gilberto Passos ambiental ..., p. 728). Para Luiz Regis Prado: “Teria sido
de Freitas: “Um dos princípios basilares do Direito ambien- preferível a não inclusão da matéria nuclear no âmbito dos
tal é o da precaução. Muitos danos ao meio ambiente são delitos contra o ambiente de modo genérico. Na verdade,
irrecuperáveis, irreversíveis. Portanto, se a autoridade exigir os delitos relativos à energia nuclear, pela sua grande es-
que sejam adotadas medidas para evitar a ocorrência de um pecificidade e pela extrema gravidade que encerram, com
dano ambiental grave e irreversível, e o agente não obedece, atentados a bens jurídicos fundamentais como a vida, saúde
estará cometendo o crime” (FREITAS, Gilberto Passos de, pública, integridade corporal e ambiental, ficariam melhor se
op. cit., p. 150). Seguindo a tese da inconstitucionalidade alocados em lei específica, já que exigem também propor-
deste dispositivo, Viviane Martins Ribeiro, citando Marcelo cionalmente ao desvalor do ato e do resultado uma sanção
Leonardo (LEONARDO, Marcelo. Crimes ambientais e mais severa” (PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 429). Nicolao
os princípios da reserva legal e da taxatividade do tipo em Dino de Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e
Direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Flávio Dino de Castro e Costa registram que: “Embora de má
São Paulo, ano 10, n. 37, jan.-mar. 2002, p. 165), entende técnica [...], o artigo define um novo tratamento para todos
os tipos penais descritos no art. 56 e seu § 1º, inaugurando Édis, op. cit., p. 952). Luiz Regis Prado afirma se tratar de
um novo tratamento para toda conduta descrita que tenha uma “expressão por demais genérica” (PRADO, Luiz Re-
por objeto material radioativo ou nuclear” (COSTA NETO, gis, op. cit., p. 538). Vladimir Passos de Freitas e Gilberto
Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO Passos de Freitas alertam: “Trata-se de tipo penal aberto,
E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 337). Já Vladimir Pas- ou seja, cuja abrangência alcança uma grande quantidade
sos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas admitem: “Andou de situações fáticas. Esse fato, que é inquestionável, exige
certo o legislador ao estabelecer essa causa de aumento de prudência do Ministério Público e do Judiciário. É preciso
pena, considerando os riscos que derivam do emprego de que no caso concreto se examine o constrangimento de se
tais produtos” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, submeter cidadãos às agruras do processo penal, sem que
Gilberto Passos de, op. cit., p. 191). haja justa causa. Se não houver discernimento na apreciação
(82) Lei nº 6.938/81: artigo 3º, inciso II. dos fatos, as mais variadas atividades poderão, sob o critério
subjetivo do autor da denúncia, configurar esse crime, em
(83) Relativamente às instalações nucleares e radioativas, ob-
tese” (FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto
serva Viviane Martins Ribeiro que: “Cabe, porém, fazer a
Passos de, op. cit., p. 215-216). Já para Nicolao Dino de
ressalva de que esse dispositivo tem uma maior incidência
Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio
quanto às segundas – instalações radioativas – pelo simples
Dino de Castro e Costa “[...] este preceito consagra um tipo
fato de que não é fácil proceder à construção, reforma,
extremamente aberto que, se de um lado tem o inconveniente
ampliação, instalação ou funcionamento de instalações nu-
de fragilizar o princípio da segurança jurídica, por outro
cleares em razão de sua complexidade, ainda mais se se levar
possibilita uma atuação judicial mais eficaz no que se refere
em conta que elas dependem de aprovação do Congresso
à repressão às agressões ao meio ambiente [...] a sofisticação
Nacional” (RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 196).
do sistema de revisão de decisões judiciais – mormente na
(84) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 197. órbita criminal –, bem como a expressiva tradição jurispru-
(85) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de dencial de tutela da liberdade, devem funcionar como fatores
Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 345. tranqüilizadores para os mais receosos” (COSTA NETO,
(86) “Artigo 327. Considera-se funcionário público, para os Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de Barros; CASTRO
efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 371).
remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. (91) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei ..., p. 127.
Parágrafo 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce (92) RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 198.
cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem
(93) MACHADO, Paulo Affonso Leme, op. cit., p. 876.
trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou
conveniada para a execução de atividade típica da Admi- (94) FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos
nistração Pública [...]”. de, op. cit., p. 217.
(87) Artigo 37 da Constituição Federal: “A administração pú- (95) COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney de
blica direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p. 541.
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá (96) MILARÉ, Édis, op. cit., p. 953.
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
(97) Id., ibid.
publicidade e eficiência [...]”.
(98) De acordo com Viviane Martins Ribeiro: “Dos oito tipos
(88) Autorização administrativa é entendida como “o ato
legais inicialmente previstos no texto legislativo de 1977,
administrativo unilateral, discricionário e precário pelo
apenas quatro permanecem em vigor (arts. 21, 23, 26 e 27)”
qual a Administração faculta ao particular o uso de bem
(RIBEIRO, Viviane Martins, op. cit., p. 176-177). Vladimir
público (autorização de uso), ou a prestação de serviço
Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas acrescentam:
público (autorização de serviço público), ou o desempenho
“Pois bem: um exame perfunctório do art. 56 da Lei 9.605/98
de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse
leva à conclusão de que ele dá novo tratamento aos arts.
consentimento, seriam legalmente proibidos (autorização
20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 da Lei 6.453/77. Portanto, esses
como ato de polícia)” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
dispositivos foram revogados pela lei nova. Não, porém o
Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.
art. 27 [...]. Logo, só esse tipo penal remanesce na antiga
237). Para os conceitos de “permissão” e “licença” dessa
lei que define as atividades nucleares” (FREITAS, Vladimir
mesma autora, vide notas de n. 181 e n. 182.
Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 247).
(89) REALE JÚNIOR, Miguel. A lei de crimes ambientais. Para Nicolao Dino de Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho
In: Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 345, jan.-mar. e Flávio Dino Castro e Costa, “os tipos penais dos arts. 20,
1999, p. 127. 22 e parte do 25 da Lei nº 6.453/77 foram revogados pelo §
(90) Para Édis Milaré: “Trata-se [...] de um tipo extremamente 2º do art. 56 [...]. Igualmente, as condutas que correspondem
aberto, do qual é difícil (senão impossível) extrair situações a utilizar-se sem a devida atenção as normas de segurança,
definidas e precisas, em prejuízo dos valores da certeza e ou descarte de materiais radioativos ou nucleares que se
da segurança, essenciais à garantia dos direitos da pessoa encontravam previstas na Lei nº 6.455/77 foram substituí-
humana. O que vem a ser ‘relevante interesse ambiental’? das pelo tipo criado a partir da combinação dos §§ 1º e 2º”
Parece inevitável um componente de relatividade, ou mesmo (COSTA NETO, Nicolao Dino de; BELLO FILHO, Ney
de subjetividade, na apreciação desse interesse. A própria de Barros; CASTRO E COSTA, Flávio Dino de, op. cit., p.
diferença existente entre os vários ambientes – a principiar 337). Na opinião de Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado,
pela diferença entre os ambientes natural, cultural e artificial “o art. 55 da Lei 9.605/98 revogou o art. 24 da Lei 6.453/77
– sugere que o ‘relevante interesse’ tem aspectos e pesos e o art. 56 (§ 2º) da Lei 9.605/98 revogou os arts. 20, 22,
variados. Como estabelecer a figura do crime?” (MILARÉ, 24 e 25, permanecendo em vigor os arts. 21, 23 e 26 da
Lei 6.453/77” (PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Lei 9.605/98: ‘produzir, processar, fornecer ou usar material
Proteção penal do meio ambiente. São Paulo: Atlas, 2000, nuclear’ (art. 20); ‘transportar, guardar’ (art. 22) e ‘exportar,
p. 161). Guilherme de Souza Nucci admite que: “o art. 56 importar’ (art. 25). Entretanto, a lei nuclear contém compor-
abre espaço para a aplicação do preceituado nos artigos tamentos que a Lei 9.605/98 não previu: ‘possuir, adquirir,
20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77” (NUCCI, Guilherme de trazer consigo’ (art. 22) e ‘exportação e importação de
Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São minérios nucleares’ (art. 25)” (MACHADO, Paulo Affonso
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 561). Por fim, para Leme, op. cit., p. 727).
Luiz Regis Prado, o artigo 56 da Lei nº 9.605/98 revogou (104) ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 511.
implicitamente “os artigos 20, 22, 24 e 25 da Lei 6.453/77”
(105) Enquanto a ação prevista no artigo 15 da Lei nº 6.938/81
(PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 428 – nota de rodapé n.
se subsume só à exposição da incolumidade humana,
237), o artigo 55 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente o
animal ou vegetal a perigo, ou à elevação da situação de
artigo 24 da Lei 6.453/1977” (id., p. 453 – nota de rodapé n.
perigo existente por parte do poluidor, o artigo 54 da Lei
271) e o artigo 67 da Lei nº 9.605/98 “revogou tacitamente
nº 9.605/98 pune o fato de ele causar poluição de qualquer
o artigo 21 da Lei 6.453/1977” (id., p. 535 – nota de rodapé
natureza e que possa atingir, indistintamente, as espécies
n. 15). No mesmo sentido: MILARÉ, Édis, op. cit., p. 949
de elementos físicos ou biológicos componentes do meio
e 955; ANTUNES, Paulo de Bessa, op. cit., p. 512 e 514.
ambiente, observando-se, porém, que “não se pune toda
(99) De fato, percebe-se, de acordo com Alessandra Rapassi emissão de poluentes, mas somente aquela efetivamente
Mascarenhas Prado, que o legislador em questão falhou ao danosa ou perigosa para a saúde humana, ou a que provoque
não revogar expressamente os delitos, “descumprindo um a matança de animais ou destruição [...] significativa da flora.
dos objetivos da nova Lei, que era a sistematização da le- Exige-se então a real lesão ou o risco provável de dano à
gislação penal esparsa relativa ao meio ambiente” (PRADO, saúde humana, extermínio de exemplares da fauna local ou
Alessandra Rapassi Mascarenhas, op. cit., p. 161). destruição expressiva de parcela representativa do conjunto
(100) Qualquer tese relativa à revogação de dispositivos pre- de vegetais de determinada região” (PRADO, Luiz Regis,
vistos na Lei nº 6.453/77 por outros constantes da Lei nº op. cit., p. 418).
9.605/98, somente pode ter como suporte a revogação na (106) Para Viviane Martins Ribeiro: “Dentre os oito tipos pre-
sua forma tácita, diante da redação dos artigos em questão, vistos na Lei 6.453/77 – observando, porém, que não mais
pois não houve qualquer revogação expressa. Além disso, vigem todos os dispositivos desta lei –, apenas um deles
não há sequer um julgado a esse respeito no Poder Judiciário tutelou a vida, a integridade física e o patrimônio (art. 26).
brasileiro. Logo, a postura adotada neste trabalho quanto Nenhum deles protegeu o ambiente” (RIBEIRO, Viviane
ao tema da revogação de dispositivos penais atinentes às Martins, op. cit., p. 156-157). Paulo de Bessa Antunes
atividades nucleares caminha nesse sentido. acrescenta: “Qualquer ato ou omissão que implique dano
(101) Os chamados recursos minerais são compreendidos efetivo causado contra [...] o meio ambiente [...] deverá ser
como as “concentrações minerais na crosta terrestre cujas punido pela legislação penal comum” (ANTUNES, Paulo
características fazem com que sua extração seja ou possa de Bessa, op. cit., p. 590). Também no sentido de que essa
chegar a ser técnica e economicamente factível”, ao passo lei não tutelou o meio ambiente: FREITAS, Vladimir Passos
que o minério em si mesmo considerado constitui um de; FREITAS, Gilberto Passos de, op. cit., p. 191 e 246.
“mineral ou associação de minerais que podem, em condi- (107) Verifica-se, portanto, conforme Fernando Fragoso, que
ções favoráveis, serem trabalhados industrialmente para a “apenas uma das condutas incriminadas interessa direta-
extração de um ou mais metais”, os quais podem conter ou mente à tutela do meio ambiente: a exposição da vida, ou
não apresentar elementos nucleares como constituinte prin- da saúde ou do patrimônio a perigo por não observação das
cipal (PORTAL DE RECURSOS MINERAIS. Glossário. regras de segurança e proteção relativas à instalação nuclear
Disponível no site: http://www.prossiga.br/recursosmine- ou o uso, o transporte, a posse e a guarda de material nuclear
rais. Acesso em: 02/03/2008). Já a Comissão Nacional de (art. 26, Lei nº 6.453)” (FRAGOSO, Fernando. Os crimes
Energia Nuclear define minério como sendo todo “mineral contra o meio ambiente no Brasil. In: Revista Forense, Rio
ou associação de minerais do qual pode ser concentrado e de Janeiro, jan.-mar. 1992, v. 317, p. 112).
extraído, economicamente, um elemento químico ou um
(108) A esse propósito, são válidas as razões expostas por
bem mineral” [(COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA
Viviane Martins Ribeiro: “Em um primeiro momento, a
NUCLEAR (CNEN). Requisitos de segurança e proteção
preocupação restringia-se às atividades nucleares em si. Não
radiológica para instalações mínero-industriais. Norma
se cogitava sobre possíveis malefícios que a energia nuclear
CNEN-NN-4.01, de 06/01/2005)].
poderia proporcionar à saúde humana e ao meio ambiente.
(102) As ações nucleares previstas no caput do artigo 56 da Lei Mesmo porque esta noção de meio ambiente era, ainda,
nº 9.605/98 são: “Produzir, processar, embalar, importar, incipiente. A Conferência de Estocolmo [...], em 1972, e
exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, suas idéias apenas haviam sido lançadas, mas não assimi-
guardar, ter em depósito ou usar”. Já o seu parágrafo 1º ladas por todos os Estados. Ao contrário, enfatizavam-se os
se refere à conduta de abandonar ou utilizar o respectivo benefícios dessa energia e o que estes poderiam representar
objeto material do crime. ao desenvolvimento das nações, inclusive o da brasileira.
(103) S.m.j., não se deve analisar a questão, portanto, sob a A análise dos bens jurídicos tutelados pelas diversas figu-
perspectiva que o faz Paulo Affonso Leme Machado, que ras delitivas constantes da Lei 6.453/77 projeta todo esse
diz: “Os arts. 20 e 22 e parte do art. 25 da Lei 6.453/77 contexto no qual a sociedade vivia” (RIBEIRO, Viviane
incriminam os mesmos comportamentos que o art. 56 da Martins, op. cit., p. 154).
1
Promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela Univer-
sidade de Brasília e doutoranda pela PUC-PR. Autora do livro “Socioambientalismo e novos direitos” (Editora Peirópolis/ISA/IEB, 2005)
ABSTRACT: Through a critical analysis of the Européia de Direitos Humanos sobre questões
national and international jurisprudence, the text ambientais.
approaches the question of the right to the heal- Tais casos revelam as possibilidades de
thy environment as a human right and for which, utilização dos instrumentos e de toda estrutura
therefore, will have to be recognized instruments legal internacional em matéria de direitos huma-
to guarantee its protection. In this direction, a nos para promover os direitos ambientais, bem
sentence pronounced by the Supreme Federal como as suas limitações.
Court is mentioned in which it was recognized
the right to the healthy environment as one of the
human rights of third generation (or third dimen- 2. O Supremo Tribunal Federal e o
sion), whose nature would be metaindividual, reconhecimento do direito humano
diffuse and collective. In turn, a study regarding ao ambiente sadio.
some decisions proceeding from the American
Court and the European Court of Human Rights
is also made, amongst which it may highlighted, Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitu-
as important examples, the judgment of the Ame- cionalidade nº 3.540-1
rican Court of Human Rights that recognized the
Relator: Ministro Celso de Mello
right of the aboriginal peoples of Nicaragua to
its territory and natural resources, adopting the Requerente: Procurador-Geral da República
paradigm of the multiculturalism and the respect Requerido: Presidente da República
and protection of the aboriginals cultures, and the
challenges faced by the European Court of Rights Ementa: MEIO AMBIENTE - DIREI-
Human when deciding cases involving violations TO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRI-
of the right to a healthy environment, which still DADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA
analyzes this infraction only indirectly because QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE
the absence of express provision of the word in METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO
the European Convention for Protection of the DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NO-
Rights of the Men and the Public Freedoms. VÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA
Keywords: Healthy environment. Human rights. O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE
Jurisprudence. - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A
TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA
IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDA-
DE, CONFLITOS INTERGENERACIO-
1. Introdução NAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPE-
CIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225,
O presente artigo analisa casos paradigmá- § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO
ticos da jurisprudência nacional e internacional REGIME JURÍDICO A ELES PERTINEN-
acerca do direito humano ao ambiente sadio, TE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO
enfocando os principais marcos jurídicos pro- CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI
tetivos, tanto no âmbito nacional como interna- - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA
cional. Na primeira parte, destaca um acórdão DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POS-
do Supremo Tribunal Federal, em que o direito SIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO
humano ao ambiente sadio é expressamente PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS
reconhecido, e sua natureza coletiva e interge- LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU
neracional. É também consagrado o princípio do PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES
desenvolvimento sustentável, que deve orientar a NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PRO-
atividade econômica. Na segunda parte, o artigo TEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA,
aborda decisões das Cortes Inter-Americana e QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE
satisfaz as necessidades das gerações atuais sem O acesso aos bens ambientais, naturais e
comprometer a capacidade das gerações futuras culturais, deve ser eqüitativo9, e baseado nos
de satisfazer as suas próprias necessidades”. Tal princípios da inclusão e da justiça social. Outros
princípio passou a permear o texto constitucional princípios do Direito Ambiental, que orientam
e as leis ordinárias. todo o sistema normativo ambiental, nacional e
O acórdão reconhece ainda, com base no internacional, são:
texto constitucional, o princípio da eqüidade - O princípio da precaução, também chamado
intergeneracional, fundamentado no direito de princípio da prudência ou cautela: baseia-
intergeneracional – das presentes e das futuras se no Princípio 15 da Declaração do Rio de
gerações – ao ambiente sadio. Pela primeira vez, Janeiro, de 1992, segundo o qual: “quando
são assegurados direitos a gerações que ainda não houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis,
existem, e tais direitos restringem e condicionam a ausência de absoluta certeza científica não
a utilização e o consumo dos recursos naturais deve ser utilizada como razão para postergar
pelas presentes gerações, bem como as políticas medidas eficazes e economicamente viáveis
públicas a serem adotadas pelo Estado, que de- para prevenir a degradação ambiental”. É con-
verão considerar sempre a sustentabilidade dos sagrado também na Convenção da Diversidade
recursos naturais a longo prazo. Biológica e na Convenção-Quadro sobre mu-
A Constituição consagra ainda o princípio danças climáticas10, e no nosso ordenamento
da obrigatoriedade da intervenção do Poder constitucional, uma de suas expressões é a
Público, em seus diversos níveis e instâncias, obrigação de realização de estudo prévio de
impondo-se ao Poder Público a obrigação cons- impacto ambiental para atividades degradado-
titucional tanto de prevenir como de reparar ras do meio ambiente.
danos ambientais. O princípio da obrigatorie-
- O princípio da responsabilidade, expressamente
dade da intervenção estatal é complementado
consagrado no texto constitucional que, no
pelo princípio da participação democrática e da
artigo 225, parágrafo 3º, estabelece que “as
transparência na gestão dos recursos ambientais,
condutas e atividades consideradas lesivas ao
por meio da publicidade dos instrumentos de
avaliação de impacto ambiental e do licencia- meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
mento ambiental, da participação da sociedade físicas ou jurídicas, a sanções penais e admi-
civil em colegiados ambientais e em audiências nistrativas, independentemente da obrigação de
públicas e do efetivo controle social sobre as reparar os danos causados”. Trata-se da consa-
políticas públicas. O acesso à informação6 e à gração da responsabilidade administrativa, civil
educação ambiental7 são também reconhecidos e penal pelos danos causados ao meio ambiente.
como fundamentais à formação e à capacitação - O princípio do poluidor-pagador procura
para a participação consciente e eficaz na gestão internalizar os custos externos de deteriora-
socioambiental8. ção ambiental. Conforme destaca Derani 11,
6
A Lei nº 10.650, de 16/4/2003, dispõe sobre o acesso público aos dados e informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sisnama.
7
A Lei nº 9.795, de 27/4/1999, dispõe sobre a educação ambiental, instituindo a Política Nacional de Educação Ambiental. Entre os princípios básicos
da educação ambiental, estão o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo.
8
Veja-se, a respeito, o excelente trabalho de Rachel Biderman Furriela, intitulado Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente, São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2002. Veja-se, também, a dissertação de mestrado de Raul Silva Telles do Valle, sobre Sociedade civil e gestão ambiental
no Brasil: uma análise da implementação do direito à participação em nossa legislação. Departamento de Direito Econômico da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, 2002. Vide, também, nosso artigo, em parceria com Márcio Santilli, intitulado Meio ambiente e democracia:
participação social na gestão ambiental, In: LIMA, André (Org.). O Direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental
e Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.49-53 e AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do meio ambiente e participação
popular. Brasília: Ibama, 1998.
9
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 11. ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2003,
p.49-51.
10
Veja, a respeito, BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias. O princípio da precaução e sua aplicação comparada nos regimes
da diversidade biológica e de mudanças climáticas. Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, Revista de Direitos Difusos, Ano II, volume 12:
Bioética e biodiversidade, abril de 2002, p. 1587-1596.
11
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.162.
pela “aplicação desse princípio, impõe-se ao públicas ambientais devem ser transversais, ou
“sujeito econômico” (produtor, consumidor, seja, perpassar o conjunto das políticas públicas
transportador), que nessa relação pode causar capazes de influenciar o campo socioambiental13.
um problema ambiental, arcar com os custos da A questão ambiental permeia o texto constitucio-
diminuição ou afastamento do dano”. nal não apenas mediante referências explícitas
- O princípio da cooperação impõe uma política ao meio ambiente, como também por meio de
de cooperação entre os Estados e os diferentes dispositivos em que os valores ambientais es-
atores sociais, pois os danos ambientais não tão em “penumbra constitucional, passíveis de
respeitam fronteiras políticas e administrativas, descoberta”14.
e têm dimensões transfronteiriças. A coopera- Entre os princípios gerais da atividade eco-
ção entre os Estados para a proteção ambiental nômica, elencados no artigo 170 da Constituição,
implica uma soberania mais solidária. está a defesa do meio ambiente, ao lado da função
Verifica-se, no texto constitucional bra- social da propriedade, da livre concorrência, da
sileiro, uma clara influência de documentos defesa do consumidor e da redução das desi-
referenciais elaborados por instituições conser- gualdades regionais e sociais, entre outros. Da
vacionistas internacionais, fundamentados em mesma forma, o capítulo constitucional dedicado
estudos científicos, especialmente o documento à política agrícola e fundiária e à reforma agrária
“Estratégia mundial para a conservação” (World (artigo 184 e seguintes), estabelece que a função
Conservation Strategy), lançado em 1980 pela social é cumprida quando a propriedade rural
União Internacional para a Conservação da atende, simultaneamente, aos seguintes requi-
Natureza (UICN, cuja sigla em inglês é IUCN), sitos: utilização adequada dos recursos naturais
pelo Programa das Nações Unidas para o Meio disponíveis e preservação do meio ambiente,
Ambiente (Pnuma ou Unep, em inglês) e pelo aproveitamento racional e adequado, observân-
Fundo Mundial para a Natureza (World Wildlife cia das disposições que regulam as relações de
Fund – WWF, em inglês)12. Tal documento define trabalho e exploração que favoreça o bem-estar
os três principais objetivos da conservação, todos dos proprietários e dos trabalhadores. Trata-se,
eles incorporados ao texto constitucional: - ma- claramente, da consagração da função socioam-
nutenção dos processos ecológicos essenciais e biental da propriedade15.
dos sistemas de sustentação da vida; - preserva- O capítulo constitucional dedicado à políti-
ção da diversidade genética; - utilização susten- ca urbana (artigos 182 e 183) também consagra
tável das espécies e dos ecossistemas. o direito à cidade sustentável, ao estabelecer
A questão ambiental não é tratada apenas que a política de desenvolvimento urbano tem
no capítulo da Constituição especificamente por objetivo ordenar o desenvolvimento das
destinado ao meio ambiente, mas está presente funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
em diversos outros capítulos constitucionais de seus habitantes. A qualidade e o equilíbrio do
(economia, desenvolvimento agrário, etc.), ambiente urbano são também tutelados consti-
consagrando a orientação de que as políticas tucionalmente. Pela primeira vez na história,
12
As mesmas entidades lançaram, em 1991, um novo documento, intitulado Cuidando do planeta Terra, que dá seqüência à Estratégia e é dividido
em três partes: princípios da vida sustentável, ações adicionais para a vida sustentável e implementação e continuidade.
13
SANTILLI, Márcio. Transversalidade na corda bamba. Apresentação ao balanço de seis meses do governo Lula na área socioambiental, produzido
pelo Instituto Socioambiental, e disponível no seu site
na Internet: <www.socioambiental.org>.
14
Conforme MAGALHÃES Jr., Renato. Direitos e deveres ecológicos: efetividade constitucional e subsídios do Direito norte-americano. Tese de
doutoramento apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, 1990, p.126. Apud SILVA, José
Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 26.
15
Em relação à função socioambiental da propriedade, a sentença proferida pelo juiz José Godinho Filho, da 2ª. Vara da Justiça Federal de Tocantins,
estabelece um precedente importante. A decisão ainda não transitou em julgado, mas pode se tornar o primeiro caso do país de desapropriação
ambiental. Apesar de ter sido declarada produtiva, a Fazenda Bacaba, em Miranorte (TO), pode ser desapropriada para reforma agrária, por ter
descumprido a sua função socioambiental. 573,66 hectares da reserva legal foram transformados em pastagem, descumprindo a exigência de que
30% da propriedade sejam preservados. Segundo a sentença, “está patente que a Fazenda Bacaba vem sendo explorada economicamente ao arrepio
das normas legais de preservação do meio ambiente, levando à conclusão de que o dito imóvel não cumpre a sua função social.”
16
Outro precedente importante é a decisão proferida pelo ministro Carlos Britto, do STF, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
3378/DF, em 14/6/2006. A ADI ainda não foi julgada, porque, após o voto do referido ministro, pediu vista o ministro Marco Aurélio. (Andamento
processual em 25/6/06). A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, a fim de ver declarado inconstitucional o art. 36, caput e
parágrafos, da Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Tal dispositivo determina que, nos casos de licen-
ciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de
unidades de conservação do grupo de proteção integral (parques, estações ecológicas, reservas biológicas, etc.) O ministro Carlos Britto julgou
improcedente o pedido por considerar que o referido texto legal institui uma forma de compartilhamento de despesas entre o Poder Público e o
empreendedor, densificando o princípio do usuário-pagador, que impõe ao empreender a obrigação de responder pelas medidas de prevenção de
impactos ambientais que possam decorrer da implementação da atividade econômica.
17
INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (Ipam). Cartilha: perguntas e respostas sobre mudanças climáticas. Belém, Pará,
2002.
18
O Protocolo de Quioto já entrou em vigor. O Brasil ratificou o Protocolo de Quioto, ao contrário dos EUA.
19
Dez anos após a realização da ECO-92, as Nações Unidas realizaram em Johannesburgo, na África do Sul, de 26 de agosto a 4 de setembro de
2002, a Cúpula mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (mais conhecida como a Rio +10). Os seus resultados formais foram a Declaração de
Johannesburgo para o desenvolvimento sustentável e o Plano de implementação, contendo metas genéricas relacionadas ao acesso a água tratada,
saneamento, recuperação de estoques pesqueiros, gerenciamento de resíduos tóxicos e uso de fontes alternativas de energia. O sentimento geral das
organizações ambientalistas é de que não houve qualquer avanço em relação aos documentos assinados durante a ECO-92 e que o Plano de imple-
mentação é vago, contendo metas genéricas e ambíguas, e sem a previsão de cronogramas e compromissos globais efetivos para a implementação
dos acordos assinados durante a Cúpula da Terra (a ECO-92). Os grandes “vilões” apontados como responsáveis pelo fracasso das negociações
durante a Rio + 10 foram os países do grupo conhecido como JUSCANZ (Japão, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia).
seja examinada, eqüitativa e publicamente, num vida privada e familiar (“Qualquer pessoa tem
prazo razoável, por um tribunal independente e direito ao respeito da sua vida privada e familiar,
imparcial, estabelecido por lei”. A Corte enten- do seu domicílio e da sua correspondência”).
deu que houve violação de tal direito, e condenou Condenou ainda ao pagamento de uma indeni-
a Turquia a pagar, a cada peticionário, a quantia zação de 3 mil euros a cada peticionário.
de mil euros, a título de indenização.
3.3. Bladet Tromso e Stensaas X Noruega
3.2. Taskin e outros X Turquia (Data do (data do julgamento: 20/05/1999)
julgamento: 10/11/2004)
Bladet Tromso é o nome de um jornal
Dez pessoas que vivem nas proximidades norueguês, e Stensaas é o seu editor. O jornal
de uma mina de ouro situada na região de Ber- publicou uma entrevista com um funcionário
gama peticionaram à Corte Européia de Direitos encarregado da fiscalização da caça às focas,
Humanos em virtude de licenças de operação Lindberg, e o seu relatório oficial, que o governo
concedidas por autoridades locais. Os peticio- havia optado por não divulgar, ambos críticos da
nários alegaram que, em virtude das operações indústria, e, especialmente, de uma embarcação
da mina, eles estavam sofrendo os efeitos da denominada M/S Harmoni. A Noruega criou
degradação ambiental; mais especificamente, uma Comissão de Inquérito que concluiu que a
a poluição causada pelo uso de maquinaria e maior parte das alegações de Lindberg não es-
explosivos e pela movimentação de pessoas. tava provada, mas identificou diversas violações
A decisão do Ministério do Meio Ambiente de dos regulamentos de caça através das filmagens
conceder a licença para a prospecção de ouro de Lindberg, e recomendou alterações nos
para a empresa E.M. Eurogold Madencilik regulamentos e no treinamento dos caçadores.
(posteriormente nomeada Madencilik A.S.) foi A tripulação do M/S Harmoni moveu diversas
questionada perante as Cortes locais, devido ao ações judiciais por difamação, inclusive contra os
perigo representado pelo uso de cianeto na ex- peticionários, e obteve a condenação dos mesmos
tração de ouro, e os riscos de contaminação da ao pagamento de multas e indenizações.
água subterrânea, de destruição da fauna e flora
A Corte Européia entendeu que o Estado
e de danos para a saúde humana.
norueguês não poderia invocar as suas leis de
Os peticionários recorreram à Suprema difamação para restringir a divulgação de infor-
Corte Administrativa da Turquia, que avaliou mação ambiental. Entendeu que houve violação
os impactos ambientais, sociais e culturais das do art. 10 da Convenção Européia, que prevê o
atividades da mina de ouro, tal como descritas no direito à liberdade de expressão, inclusive de re-
relatório de impacto ambiental. A Corte turca en- ceber ou transmitir informações sem ingerência
tendeu que estavam comprovados os riscos para estatal. Segundo a decisão, o relatório divulgado
o ecossistema local e para a saúde humana repre- pelo jornal era oficial, e o papel da imprensa é
sentados pelo uso do cianeto e que a concessão contribuir para o debate público sobre temas de
da licença de operação não atendia ao interesse interesse legítimo.
público, e que as medidas de segurança adotadas
pela empresa não eram suficientes para eliminar
os riscos da atividade. Entretanto, a decisão da 3.4. Maria Guerra e outros X Itália (Data
Corte não foi cumprida pelas autoridades locais do julgamento: 19/02/1998)
dentro do período de tempo prescrito. Os peticionários viviam na cidade de Man-
A Corte Européia de Direitos Humanos fredonia, nas proximidades de uma fábrica de
entendeu que houve violação do art. 6º, par. 1º produtos químicos agrícolas. No seu ciclo produ-
(já transcrito acima), que prevê o direito a um tivo, a fábrica emitia grandes quantidades de gás
processo eqüitativo, e do art. 8º da Convenção inflamável, gerando graves riscos de explosões
Européia, que prevê o direito ao respeito pela e de liberação de substâncias altamente tóxicas.
Em 1976, uma explosão resultou no escapamento teria obrigações positivas de coletar e disseminar
de toneladas de substâncias altamente tóxicas e informações em algumas circunstâncias.
levou à hospitalização de 150 pessoas, devido
ao envenenamento com arsênico. O relatório de
3.5. López Ostra e outros X Espanha
um comitê de especialistas apontou que os equi- (Data do julgamento: 09/12/1994)
pamentos de tratamento de emissões da fábrica
eram inadequados e que a avaliação de impacto O peticionário e sua família sofreram
ambiental era incompleta. problemas de saúde em decorrência do barulho,
A Corte Européia entendeu que houve cheiro e fumaça provocados por uma estação de
violação do art. 8º da Convenção Européia, que tratamento de lixo situada nas proximidades de
prevê o direito ao respeito pela vida privada e sua casa, em Lorca. Esta cidade espanhola tem
familiar. Segundo a decisão da Corte, embora o uma grande concentração de indústrias de couro,
art. 8º vise, essencialmente, proteger os indiví- e uma das empresas mantinha uma estação de
duos da interferência arbitrária das autoridades tratamento de resíduos líquidos e sólidos, cons-
públicas, ele não se limita a obrigar o Estado truída com recursos públicos, a 12m da casa do
a se abster de realizar tal interferência, e não peticionário.
contém apenas uma obrigação negativa, mas A Corte Interamericana de Direitos Hu-
também obrigações positivas inerentes ao efetivo manos entendeu que houve violação do art. 8º
respeito pela vida privada e familiar. A decisão da Convenção Européia, que prevê o direito ao
da Corte reitera que a poluição ambiental grave respeito pela vida privada e familiar (“Qual-
pode afetar o bem estar dos indivíduos e a sua quer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
vida privada e familiar, e que os peticionários privada e familiar, do seu domicílio e da sua
tiveram que esperar até que cessasse a produção correspondência”), e condenou ao pagamento
de pesticidas, em 1994, para obter informações de uma indenização de 4 milhões de pesetas,
essenciais acerca dos riscos que eles e suas mais as custas processuais. A Corte Européia
famílias corriam se continuassem vivendo na decidiu quando uma ação judicial questionando
cidade de Manfredonia, particularmente exposta a legalidade da construção e operação da estação
a riscos no caso de acidente na fábrica. Assim, ainda não havia sido julgada perante a Suprema
o Estado não cumpriu a sua obrigação de asse- Corte espanhola.
gurar aos peticionários o direito ao respeito pela Segundo a decisão da Corte, a poluição
vida privada e familiar, o que viola o art. 8º da ambiental grave pode afetar o bem estar dos
Convenção Européia. O Estado foi condenado indivíduos e impedi-los de usufruir de seus lares
a pagar a cada peticionário 10 milhões de liras, de uma forma que afeta a sua vida privada e
a título de indenização. familiar, mesmo que não haja comprometimento
Entretanto, o principal fundamento da sério da saúde. A família do peticionário teve
demanda era o acesso à informação, e não a po- que suportar os incômodos provocados pela
luição em si. Os peticionários fundamentaram a estação por três anos, até mudar de casa. Eles se
sua demanda no art. 10 da Convenção Européia, mudaram quando se tornou claro que a situação
que prevê o direito à liberdade de expressão, já persistiria indefinidamente.
que o governo deixou de informar a população
sobre os riscos e medidas a serem adotadas no
3.6. Zanden X Suécia (data do julgamento:
caso de acidente. A decisão da Corte entendeu,
25/11/1993)
entretanto, que não houve violação do art. 10,
porque o direito à liberdade de expressão não Os peticionários viviam em uma proprie-
poderia ser interpretado como uma imposição, ao dade com um poço de água, adjacente a uma
Estado, de obrigações positivas de coletar e dis- área onde uma empresa (“Vafab”) mantinha
seminar informações. Oito dos 20 juízes enten- um depósito de lixo industrial. A água do poço
deram, em opiniões em separado, que o Estado foi contaminada por cianeto, proveniente do
depósito. As autoridades locais proibiram o uso e imediata com algum dos direitos humanos
da água do poço e forneceram água limpa por expressos, será muito difícil defender o caso
um tempo. Quando a empresa que mantinha o perante o sistema. Isto faz com o que o sistema
depósito pediu uma nova licença, os peticioná- internacional de defesa dos direitos humanos
rios argumentaram que os riscos de poluição da só seja eficaz para a defesa de certos direitos
água seriam suficientemente altos para justificar ambientais, e não todos. Os casos de poluição,
a obrigação da empresa de fornecer água limpa e por exemplo, têm maior chance de sucesso, em
própria para consumo. Entretanto, a licença foi virtude de suas evidentes conseqüências para a
concedida, e a demanda dos peticionários não saúde humana, do que as demandas relativas à
foi atendida, levando-os a tentar, sem sucesso, proteção de ecossistemas e espécies ameaçadas
obter a revisão judicial da decisão concessiva de extinção.
da licença. As Cortes Internacionais de direitos hu-
Os peticionários recorreram à Corte Eu- manos têm adaptado permanentemente a sua
ropéia de Direitos Humanos, sob o argumento jurisprudência, a fim de incorporar novos con-
de que a impossibilidade de conseguirem uma ceitos, interpretando e reinterpretando os direitos
revisão judicial da decisão que concedeu a licen- humanos. É fundamental incorporar os tratados
ça violava o direito a um processo eqüitativo, internacionais na área ambiental ao sistema de
previsto no art. 6º da Convenção Européia. A proteção, a fim de que o direito ao ambiente sadio
Corte entendeu que houve violação do art. 6º da possa ser diretamente invocado em demandas
Convenção Européia, e determinou o pagamento de vítimas da degradação ambiental. Isto daria
de uma indenização de 30 mil coroas suecas para maior força e plenitude ao próprio sistema de
cada peticionário. proteção aos direitos humanos, que fortaleceria
a proteção aos direitos ambientais, e conferiria
maior eficácia aos tratados ambientais, que ge-
4. Conclusão ralmente não prevêem o direito de petição e os
remédios adequados em casos de violações de
As decisões da Corte Européia elencadas suas normas.
acima mostram como os instrumentos de defesa Um dos principais trunfos do direito inter-
dos direitos humanos podem ser utilizados para nacional dos direitos humanos é o fato de que
promover e assegurar o direito ao ambiente permite que as vítimas tenham acesso direto às
sadio. Tais instrumentos podem ser úteis, princi- Cortes internacionais. Os indivíduos são sujeitos
palmente se considerarmos que não há Tribunais de direito e podem apresentar demandas envol-
internacionais na área ambiental (com exceção vendo violações de direitos humanos praticadas
de Tribunais estabelecidos por organizações não- por Estados perante as Cortes internacionais.
governamentais, como o Tribunal Internacional Entretanto, uma limitação do sistema, no tocante
da Água, sediado em Amsterdã, na Holanda), à proteção dos direitos ambientais, é justamente
e que as vítimas da degradação ambiental não o excessivo enfoque nos direitos individuais, em
podem recorrer a outras estruturas legais interna- detrimento dos direitos coletivos.
cionais além das Cortes que julgam as violações O direito ao ambiente sadio é essencial-
de direitos humanos. mente um direito coletivo, de que é titular toda
Quando recorrem às Cortes Internacionais a coletividade, e não apenas os indivíduos. Os
de direitos humanos, entretanto, as vítimas da danos ambientais assumem as mais complexas
degradação ambiental devem sempre invocar dimensões espaciais e ambientais. Vejamos o
outros direitos (proteção judicial, respeito à vida caso das mudanças climáticas provocadas pela
familiar e pessoal, etc.), expressamente previstos emissão de gases de efeito-estufa, por exemplo.
nos tratados internacionais de direitos humanos. Embora os principais emissores sejam os países
Se não é possível demonstrar que um caso de desenvolvidos, a previsão dos especialistas é
degradação ambiental tem uma vinculação direta de que os seus impactos se farão sentir mais
fortemente sobre os países e populações pobres, A decisão da Corte Européia, ao exigir que
principalmente aqueles que vivem da agricultura o risco ambiental seja “iminente”, desrespeitou
e da pesca. um princípio fundamental do Direito Ambiental:
Outro exemplo é o da poluição marítima o da precaução, segundo o qual: “quando houver
por derramamentos de óleo provocados por na- ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausên-
cia de absoluta certeza científica não deve ser
vios, por exemplo. A poluição pode se alastrar
utilizada como razão para postergar medidas efi-
pelo mar territorial de vários países, e impactar
cazes e economicamente viáveis para prevenir a
diversas comunidades, transcendendo as frontei-
degradação ambiental”. Tal princípio foi também
ras político-administrativas. Tais fronteiras são
frontalmente desrespeitado no posicionamento
artificiais, e os danos ambientais evidentemente do Comitê de Direitos Humanos das Nações
não as respeitam, assumindo dimensões trans- Unidas no caso Bordes, Taiura e Temeharo
fronteiriças e internacionais. X França25. Os peticionários, residentes da
Os danos ambientais têm também suas pró- Polinésia francesa, alegaram que a realização
prias dimensões temporais. O direito ao ambiente de testes nucleares nos atóis de Mururoa e Fan-
sadio é intergeneracional, e pertence não só às gataufa, no Pacífico Sul, pelo governo francês,
presentes como as futuras gerações. Os impactos representava uma ameaça ao seu direito à vida. O
ambientais são tanto atuais como futuros, alguns Comitê considerou o caso “inadmissível”, e que
até imprevisíveis. Restringir a legitimidade os peticionários não poderiam ser considerados
para acessar o sistema internacional de direitos “vítimas”, porque os riscos envolvidos com os
humanos a vítimas específicas e determinadas, testes nucleares eram altamente controvertidos
pessoal e diretamente afetadas pela degradação no meio científico. Os peticionários tentaram
ambiental, é extremamente limitante, quando se impor o ônus da prova ao governo francês, ale-
trata de direitos ambientais. gando que as autoridades francesas não tinham
sido capazes de demonstrar que os testes não
No caso Balmer-Schafroth e outros X Su- colocariam em risco a saúde da população que
íça , por exemplo, apresentado perante a Corte
24
vive no Pacífico Sul, ou o meio ambiente, por
Européia de Direitos Humanos, os peticioná- representar riscos à estrutura geológica dos atóis,
rios argumentaram que tinham o direito de ser mas a Corte não aceitou o argumento.
consultados acerca da renovação da licença de
Tais decisões só reforçam a necessidade de
operação concedida pelo governo suíço a uma que os tratados ambientais sejam incorporados
usina nuclear. A Corte entendeu que não houve ao sistema de proteção dos direitos ambientais, a
violação do art. 6º da Convenção (que prevê fim de que os princípios ambientais sejam efeti-
o direito a um processo eqüitativo) porque os vamente respeitados, pois expressam conquistas
peticionários não conseguiram demonstrar que de uma cidadania ambiental global.
a operação da usina os expunha a um risco
Para tanto, seria necessária uma aliança
“pessoal, sério, específico e iminente”. Trata-se mais próxima entre organizações ambientalis-
de interpretação claramente restritiva: os riscos tas e de direitos humanos. As primeiras tendem
representados por uma usina nuclear evidente- a priorizar, em suas agendas, os direitos civis
mente afetam não apenas os peticionários, mas e políticos, e a dar pouca atenção aos direitos
toda a coletividade, direta ou indiretamente. ambientais. Ainda são poucas as organizações de
Qualquer cidadão deveria ser parte legítima para defesa de direitos humanos que incluem a defesa
peticionar perante a Corte, e não apenas aqueles do meio ambiente entre os seus objetivos, igno-
pessoal e diretamente afetados. O direito coletivo rando que os direitos à vida, à saúde, à cultura,
pode ser exercido por qualquer cidadão, e a sua etc. não existem sem a garantia da integridade
defesa aproveita a toda a coletividade. dos recursos ambientais.
24
Data do julgamento: 26/08/1997.
25
Data do julgamento: 22/07/1996.
No Brasil, os movimentos sociais e am- ambiental tendem a pertencer aos setores mais
bientais da Amazônia, principalmente, têm vulneráveis da sociedade, que arcam com os
adquirido uma maior consciência da associação maiores ônus dos problemas ambientais.
entre desmatamento, grilagem de terras públicas Em um país pobre e com tantas desigual-
e violência contra trabalhadores rurais. Entre- dades sociais como o nosso, um novo paradigma
tanto, muitas organizações ambientalistas ainda de desenvolvimento deve promover não só a
tendem a enfocar principalmente a conservação sustentabilidade estritamente ambiental, como
de espécies, ecossistemas e processos ecológicos, também a sustentabilidade social – ou seja,
deixando de lado as conseqüências da degrada- deve contribuir para a redução da pobreza e das
ção ambiental para as populações humanas, e o desigualdades sociais e promover valores como
fato de que as principais vítimas da degradação justiça social e eqüidade.
O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA
PUBLICIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA:
O DEVER DE INFORMAR E O DIREITO DE
PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE
À LUZ DA TEORIA DOS PAPÉIS SOCIAIS.
*
Mestre e Doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP. Juiz de Direito em São Paulo.
democratic ideals declared by this Act. However, transmute-se em algoz do direito fundamental
the age of communication that definitely marks de proteção à imagem e à intimidade.
the beginning of the third millennium - and that Desde logo, portanto, convém destacarmos
defines the society of information and risk - can que o objeto deste estudo não será outro senão
only enhance the constitutional principle of analisarmos algumas referências que devem
protection without leaving unattended the image ser consideradas em busca da concretização
and privacy of the citizens. The intellection of do princípio constitucional da publicidade da
the principle of publicity and the solution of its Administração. Isto é, pretendemos propor a
collision with other rights depend on the good reflexão de alguns informes que contribuem à
definition of the three levels of individuality of lídima definição da ansiada transparência da
the being (intimacy, privacy and social relations), Administração Pública – com outros termos:
for which is essential to understand the theory como atender à publicidade a ser observada pelo
of social roles.
Poder Público sem a violação a outros direitos
Keywords: Principle of publicity of Public fundamentais, sobretudo o direito de proteção à
Administration. Image protection. Theory of imagem e à intimidade.
social roles.
Para isto anotaremos, com brevidade,
noções que são fundamentais para posterior-
mente trabalharmos com o nosso tema central.
Introdução.
Iniciaremos, então, com a consignação das pre-
O princípio constitucional da publicidade missas necessárias: algumas noções do princípio
da Administração Pública representa inequívoca constitucional da publicidade da Administração
conquista que cumpre – ao menos no plano hipo- Pública (I) e proporemos a adoção da teoria dos
tético – os anseios de um regime democrático que papéis sociais na seara das relações do Poder
deve primar e conduzir-se pela transparência. Público (II).
Mas neste início de terceiro milênio, em Por fim, cuidaremos do tema central deste
meio ao evolver da revolução dos meios de co- nosso estudo: os contornos e os limites do princí-
municação principiada nas últimas décadas do pio constitucional da publicidade da Administra-
século passado, acreditamos oportuno refletir ção Pública (III), o que pretendemos fazê-lo com
sobre a escorreita conformação que esta norma a consideração do dever de informar, corolário
jurídica – o princípio da publicidade – deve do princípio constitucional da publicidade (III.
externar. 1), e ainda do direito de proteção à imagem e à
Pois a escalada da tecnologia da comuni- intimidade (III. 2). Diante do conflito possível
cação tem proporcionado o que se convencionou que pode existir entre o princípio constitucional
denominar de sociedade da informação e do da publicidade da Administração Pública e o
risco1. direito de proteção à imagem e à intimidade – o
que caracteriza a contemporânea sociedade da
Em outras palavras, se a ordem constitu-
informação e do risco – formularemos algumas
cional da República Federativa do Brasil inau-
propostas de soluções possíveis, o que para
gurou com a Constituição Federal uma nova era
tanto laboraremos com alguns breves exemplos
que transpôs a obscuridade e o descaso com a
a ilustrar o tema.
informação e a transparência, por outro lado é
necessário não deixar que a norma assecuratória Iniciemos, então, o estudo.
desta conquista – o princípio da publicidade –
1
É o jurista português, José Eduardo Figueiredo Dias, quem utiliza esta expressão em invocação ao termo “sociedade do risco” do sociólogo ale-
mão Ulrich Beck (Direito à informação, protecção da intimidade e autoridades administrativas independentes, p. 615). Retornaremos ao tema,
explicando-o com mais vagar, no tópico III. 1.
É por meio das informações divulgadas formações uma situação na qual o administrado
e disponibilizadas que a sociedade controla o pretende obter, da polícia militar, informes sobre
cumprimento do mandato público, que se per- a quantidade de armas do batalhão, qual a estra-
mite a fiscalização do Poder Público e dos seus tégia adotada para a distribuição do policiamento
agentes, que se confere real sentido ao princípio pela cidade, quantos policiais encontram-se
fundamental de que todo o poder emana do em exercício durante os turnos da manhã e da
povo12 e, em razão disto, aqueles que exercem noite e outras informações mais que não devem
o poder atuam como servidores, isto é, exercem ser repassadas a qualquer interessado sob pena
uma função – um dever em nome, no caso, da de comprometer a segurança pública. Apenas
coletividade. investigações e requisições realizadas por ór-
De tal sorte, o princípio da publicidade gãos e Poderes competentes para tanto, como
apenas se cumpre se, como ensina Diógenes o Ministério Público e o Judiciário, ou mesmo
Gasparini13, a informação decorre de publicação solicitações feitas pelo Chefe do Executivo,
de órgão oficial, e não por notícia divulgada pela máxima autoridade hierárquica dentro do Exe-
imprensa, ainda que o programa ou a instituição cutivo, podem concretamente justificar o retorno
do dever de cumprir o princípio constitucional
mantenha alguma relação com o Governo, como
da publicidade, ou ao menos determinar que com
acontece com a Voz do Brasil transmitida por
eles seja compartilhada a informação sigilosa
rádio.
para que se avalie a sua pertinência.
Mas se o princípio constitucional da publi-
A exemplo disso lembramos a Lei 8.159/90
cidade, em última análise, é norma permeada no
que dispõe sobre a política nacional de arquivos
sistema constitucional, deve admitir, em regime
públicos e privados. Prescreve esta lei que é
de exceção, o seu afastamento para, em hipóteses
dever do Poder Público a gestão documental e
concretamente justificáveis, atender a outros 14
a proteção especial a documentos de arquivos ,
comandos igualmente previstos na Constituição
que todos têm o direito de receber dos órgãos
Federal. É o que dispõe o art. 5º, XXXIII, em sua
públicos informações, contidas em documentos
parte final ao conceber, ao menos hipoteticamen-
de arquivos, de seu interesse particular ou de in-
te, que o sigilo – que se contrapõe à publicidade
teresse coletivo ou geral, mas ressalvadas aquelas
– é admissível quando “(...) imprescindível à cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
segurança da sociedade e do Estado”. A exceção sociedade e do Estado, e ainda à inviolabilidade
reproduz-se em uma situação específica, igual- da intimidade, da vida privada, da honra e da
mente prevista no ordenamento constitucional, imagem das pessoas15. Em seu art. 23 prescreve
no art. 37, § 3º, II, ao se determinar que a lei que por Decreto serão fixadas as categorias de
ordinária deve disciplinar as formas de partici- sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos
pação do usuário na Administração Pública, e no públicos na classificação dos documentos, e em
tocante ao acesso a registros administrativos e seu § 2º que o acesso aos documentos sigilosos
demais informações sobre os atos de governo é referentes à segurança da sociedade e do Estado
necessário observar o inciso XXXIII do art. 5º, é restrito por um prazo máximo de trinta anos a
o que envolve, é claro, a possibilidade de sigilo. contar da data de sua produção, e que este prazo
A previsão constitucional é compreensí- pode ser prorrogado, por uma única vez, por
vel. Não há direito absoluto – sequer a vida, igual período, e que o acesso aos documentos
pois a legítima defesa e as hipóteses de aborto sigilosos referentes à honra e à imagem das
são exemplos disto. Portanto, é fácil considerar pessoas é restrito por um prazo máximo de cem
como exemplo de recusa legítima de prestar in- anos a contar da sua data de produção16.
12
Art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
13
Direito administrativo, p. 11.
14
Art. 1º.
15
Art. 4º.
16
§ 3º.
Esta lei confirma a nota de excepciona- as estatais devem sujeitar-se ao regime jurídico
lidade do sigilo, tanto quanto às razões que o próprio das empresas privadas, conforme dispõe
fundamentam (em síntese, a segurança pública o art. 173, § 1º, II da Constituição Federal.
e a proteção à imagem e à moral) quanto pelo Mas no que se refere às outras atividades
tempo a imperar a reserva de informação (pois o de suporte das estatais que exploram atividades
sigilo não pode ser indefinido). E mesmo durante econômicas, tal como acontece com a contrata-
o período de sigilo é expressamente prescrito o ção para a edificação de uma filial ou ampliação
que de outra forma não poderia ser – sob pena de ou reforma de unidades já existentes, ou a con-
inconstitucionalidade –: pode o Poder Judiciário, tratação de empregados e outras inúmeras ativi-
em qualquer instância, determinar a exibição re- dades do gênero, incide amplamente o princípio
servada de qualquer documento sigiloso, sempre constitucional da publicidade.
que indispensável à defesa de direito próprio ou Derradeira anotação de ordem geral é que
esclarecimento de situação pessoal da parte17. sendo a publicidade a regra, a sua violação, se
Outra referência ao sigilo advém da Lei não encontrar respaldo nas exceções vistas, pode
11.111/05. Dispõe esta norma que o acesso aos caracterizar, se houver dolo do agente público,
documentos públicos de interesse particular ou um ato de improbidade administrativa – previsto
de interesse coletivo ou geral é ressalvado ex- no art. 11, IV, da Lei 8.429/92.
clusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja
ou permaneça imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado18. Mas em seu art. 6o, ao se II – A teoria dos papéis sociais
reportar aos prazos de sigilo que acima reprodu- e o princípio constitucional da
zimos do art. 23 da Lei 8.159/91, é categórico ao publicidade da Administração
afirmar que os documentos classificados no mais
Pública.
alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público.
Resta-nos esclarecer, ainda, que esta norma Porque o tema do nosso estudo cuida de
– o princípio da publicidade – é aplicável, como confrontos possíveis entre interesses particulares
dispõe o caput do art. 37 da Constituição Federal, – o direito de proteção à imagem e à intimidade
a todos os Poderes, de todos os entes da fede- dos cidadãos – e interesses públicos – o dever de
ração, e em relação ao Executivo abrange ainda informar do Estado – é que nos parece de signi-
as pessoas da Administração indireta, como ficativa importância fazermos referência à teoria
as autarquias, fundações, empresas públicas e dos papéis sociais. A teoria dos papéis sociais
sociedades de economia mista. é informe que auxilia o intérprete a identificar
A única ressalva que deve ser feita diz res- qual a real necessidade subjetiva dos sujeitos
peito a estas duas últimas. As empresas públicas em conflito e, com isto, clareia os verdadeiros
e as sociedades de economia mista são criadas ou valores e fatos que devem ser perquiridos junto
para a prestação de um serviço público ou para a ao sistema jurídico.
exploração da atividade econômica, e neste últi- Podemos considerar, segundo a teoria a que
mo caso, e apenas em relação às informações que aludimos, que é possível identificar na sociedade
se referem à atividade-fim, como exemplo as que inúmeros “papéis sociais”. Vale dizer – como
tratam do bem de consumo produzido, de suas uma informação objetiva –, há infindáveis
técnicas de produção, comercialização etc, não núcleos de ações e comportamentos que são
é exigível a publicidade, pois nesta circunstância preenchidos, amiúde, por indivíduos.
17
Art. 24.
18
Art. 2º. É verdade que em seu § 2o o artigo 6º dispõe sobre a possibilidade de antes de expirada a prorrogação do prazo a autoridade competente
para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise
de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaça a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacio-
nais do País, casos em que a Comissão pode manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular. De todo modo,
a intensidade de justificativa deve ser mais acentuada, e as hipóteses para esta indefinida prorrogação reduzem-se ainda mais (apenas se houver
ameaça à soberania, à integridade territorial nacional ou às relações internacionais do País).
Tanto como uma personagem em sua vida conduta não é o homem autêntico, o ser humano
pessoal – como pai, marido, mulher, filha etc –, individual, mas um papel, uma personagem20.
ou na profissional – como médico, empresário, Percebe-se, nessa ordem de idéias, que
trabalhador braçal ou desempregado –, ou na so- o conceito de cada papel social é essencialmente
cial – como integrante de uma associação, como mutável – aliás, como o próprio Direito.
sócio de um clube, em participação de atividades
A propósito do tema, Luiz Antônio Rizza-
em praças e parques públicos etc –, como ainda
to Nunes, com muita propriedade, esclarece a
nas infinitas áreas de relacionamento – lazer,
respeito:
educação, trabalho, família etc. – que se inter-
comunicam e, ao mesmo tempo, representam Para essa teoria dos papéis sociais, o que
o palco de atuação destas personagens, há, no vale é o dado objetivo da escolha. Não
mundo fenomênico, estes núcleos de imagens se está – isso não importa para o papel
(personagens) e ações e comportamentos (áreas social – pensando na motivação que
de relacionamento). levou à escolha (...) nem na capacidade
Pela teoria dos papéis sociais, portanto, há ou condição da pessoa que escolheu (...)
diversos núcleos que enfeixam, em cada caso nem ainda nos interesses que geraram
concreto, considerando qual personagem que a seleção (...). O que vale é a seleção
se trata e em qual área de relacionamento se objetivamente operada”21.
encontra, características próprias e objetivas.
E prossegue o professor, pouco mais adian-
A esses papéis as pessoas aderem espon- te, ao remate oportuno:
taneamente.
O indivíduo é uma soma de papéis e
Não a um ou a outro exclusivamente, mas
por vezes esse indivíduo, enquanto ser
aos diversos e ao mesmo tempo tal como o ho-
real, confunde-se com os papéis que
mem que ao mesmo tempo em que é pai também
exerce. O indivíduo é simultaneamente
é um empresário e integrante da associação do
pai, filho, irmão, estudante, profissional,
bairro em que mora.
político, torcedor, etc. num composto
E é por isso que o ser humano deve a esses de papéis sociais. E nesse ponto podem
papéis amoldar-se, não transformá-los ao seu estar papéis sociais públicos e privados,
talante, à imagem que idealiza para si, mas ao nem sempre sendo fácil distinguir quan-
que a sociedade conhece e espera, pois isto é do o comportamento social real é de um
ínsito à condição de viver em sociedade. ou de outro22.
Luis Recaséns Siches afirma que o sujeito
pode viver três classes de modos de conduta: a) Consideraremos, ainda, que a intimidade é
propriamente individual; b) não individual (in- a esfera mais íntima da pessoa humana, revelada
terindividual); c) coletivo. Sob esta última é que por seus sentimentos mais circunscritos, intros-
o sujeito vive como “(...) titular de um ‘papel’ pectivos, e, circundando-a, há a privacidade,
ou de uma ‘função’ (...)”, algo “(...) ‘comum, afeita à vida no âmbito familiar e amistoso;
tipificado, anônimo, geral (...) como sujeito de e secundando estas duas, tendo-as em seu di-
um círculo ou grupo”19. âmetro, por tanto com maior largueza ainda,
E o mundo do direito – prossegue o autor – há o relacionamento público, que se refere à
pertence mesmo ao âmbito do modo e dos nexos interação social.
coletivos da vida humana. O direito, diz ele, é A maior ou menor proteção do ordena-
um conjunto de modos coletivos da existência mento jurídico a cada uma dessas esferas da
humana, logo, o sujeito dos modos coletivos de individualidade (intimidade, privacidade e re-
19
Introduccion al estudio del derecho, p. 32.
20
Op. cit., p. 34.
21
Comentários ao código de defesa do consumidor – Direito Material, p. 32.
22
Ibidem, p. 33.
algum foco de desenvolvimento de insetos que direito, sobretudo quando se trata – como é o caso
transmitam doenças graves como a dengue, do presente estudo – do conflito entre o dever de
o mesmo não pode ocorrer, diante do perigo informar – por parte da Administração Pública,
concreto, se o pretendente for o Poder Público, como consectário do princípio da publicidade – e
pois na relação que há com ele o papel social o direito de proteção à imagem e à intimidade
do indivíduo é de quem deve subordinar-se ao do administrado.
interesse geral de colaborar em exterminar o Retornaremos ao tema mais adiante (III.
desenvolvimento das causas de contágio. 3).
Quer-nos parecer que oportunas a estas
reflexões são as seguintes considerações do
administrativista argentino Héctor Jorge Escola III – Os contornos e os limites do
quando trata das ações que compõem a vida princípio constitucional da publici-
privada e que passam a afetar a ordem e a moral dade da Administração Pública.
públicas: “Na liberdade pessoal, assim conside-
rada, é possível distinguir a existência de duas Se existe o dever de transparência que
esferas ou modalidades: uma, que constitui a determina a divulgação de atos e fatos referen-
vida privada, a vida íntima de cada pessoa; tes à Administração Pública e aos seus agentes,
e outra, a liberdade comum, que é a qual até cumpre-nos compreender o sentido e o alcance
agora nós temos nos referido”25. A distinção é deste princípio – da publicidade – de modo a não
feita porque, nas lições do doutrinador, o que ele afligir, como dissemos alhures (I), outros direitos
denomina de “poder de polícia” não tem campo fundamentais.
ou legitimidade quando se trata da “esfera sa- A seguir, então, demarcaremos estes co-
grada da vida privada”, mas é possível se estas mandos normativos distintos – de um lado, o
ações transcendem para atingir a “liberdade princípio da publicidade e o dever de informar
comum”26. (III. 1), do outro, o direito de proteção à imagem
Note-se, noutro exemplo pautado no cha- e à intimidade (III. 2) –, para em seguida, com
mado “rodízio de veículos” da capital de São a consideração da teoria dos papéis sociais que
Paulo, que a despeito da impossibilidade de um vimos no tópico precedente (II), propormos
particular impingir a seu par que circule com o algumas soluções possíveis com a ilustração de
veículo dele em certo dia da semana, o Poder alguns casos práticos.
Público, por sua vez, tem a legitimidade de assim
agir e o destinatário deve suportar porque o seu
papel social de administrado (isto é, em relação III. 1 – O dever de informar: a sociedade da
com o Poder Público, o titular do interesse co- informação e do risco.
letivo) é diferente do papel social de um sujeito Como vimos (I), o princípio constitucional
titular de direitos privados em conflito com outro da publicidade (art. 37, caput) impõe à Admi-
sujeito também titular de interesses protegidos nistração Pública o dever de transparência que
pelo direito privado. implica o dever de informar, e a este princípio
Em suma, não desconsideramos nem dis- relacionam-se ainda outras normas como inte-
pensamos – ao contrário, deve ser o ponto de grantes de sua interpretação sistemática27. Mas a
partida do intérprete – toda a doutrina de Direito par desta análise de um princípio que compõe o
Administrativo sobre o regime jurídico adminis- regime jurídico administrativo convém lembrar
trativo e a função administrativa, mas sugerimos, outras normas constitucionais que regem, de um
de forma ancilar, a consideração da teoria dos modo geral, a liberdade da comunicação mesmo
papéis sociais em vista a auxiliar o aplicador do entre particulares. Recordamos os princípios da
25
Compendio de derecho administrativo, p. 895, v. II.
26
Ibidem, p. 896.
27
Art. 5º, XXXIII, primeira parte, XXXIV, b, XXXV e LXXII, a.
Pois afinal, como nos adverte Jesús Gon- publicidade, o dever de informar da Administra-
zalez Perez 35, a transparência da atividade ção Pública, com os direitos dos administrados
administrativa é um “dever de conteúdo plural” de verem preservadas a sua imagem e intimidade
porque tem duas vertentes: o dever de informar e – sobretudo porque, como exemplificamos no
o dever de calar. E este último – o dever de calar tópico anterior, a internet promove uma vigorosa
–, por sua vez, exterioriza-se por duas formas: o capacidade de divulgação, e porque a Adminis-
dever de segredo que trata de assuntos concretos tração Pública contém sítios oficiais (sites) a
aos quais se atribui o caráter de reservados (trata- potencializarem esta publicidade é preciso então
se de um dever específico) e o dever de sigilo definir o alcance legítimo do cumprimento do
que é o dever pessoal de discrição cuja finalida- dever de informar sem o comprometimento do
de é evitar causar danos desnecessários tanto à direito de proteção à imagem e à intimidade dos
Administração quanto aos cidadãos (trata-se de administrados.
um dever genérico de discrição). A estas indagações esperamos ao menos
Mas cuidaremos deste dever de calar, bosquejar, no tópico seguinte, algumas respostas
no próximo tópico, por outra perspectiva: com que sirvam de linhas condutoras à compatibili-
fundamento no direito de proteção à imagem e dade destas normas constitucionais.
à intimidade.
III. 3 – Casos práticos e soluções possíveis
III. 2 – O direito de proteção à imagem e à diante da teoria dos papéis sociais.
intimidade. José Eduardo Figueiredo Dias assinala
O direito de proteção à imagem e à inti- que
midade, de conhecida estatura constitucional36, A tarefa de harmonização pode igual-
representa, em palavras que tomamos de emprés- mente basear-se na afirmação de um
timo de José Eduardo Figueiredo Dias ao tratar conteúdo prima facie dos direitos funda-
da intimidade e da privacidade, “(...) um ‘direito mentais, que só em concreto podem ser
de personalidade’ que deve ser considerado exactamente determinados, apelando de
como densificação do ‘princípio da dignidade forma mais intensa para a necessidade
da pessoa humana”37. de recorrer à ponderação ao nível do
caso concreto para efectuar a restrição
E que deve ser cuidadosamente conside-
de um (ou dos dois) direito (s)39.
rado diante da prática cada vez mais comum da
Administração Pública de usar a internet como O que pretendemos propor, e o faremos
meio de efetivação do princípio da publicidade. nas próximas linhas, é o labor com a teoria dos
Pois como diz o autor referido38, o desenvolvi- papéis sociais para os casos concretos como
mento da informática, principalmente da internet um dos critérios a serem considerados para a
como “verdadeira auto-estrada da informação”, ponderação referida por este autor de modo a
com as facilidades de armazenamento, acesso alcançarmos a pretensão de correção na solução
e difusão de dados, conduz a proteção da pri- dos princípios em colisão – de um lado, o prin-
vacidade a uma nova perspectiva, a de que nos cípio da publicidade da Administração Pública,
encontramos em uma sociedade do risco e da e de outro o princípio de proteção à imagem e
informação. à intimidade.
A discussão que emerge, por conseguinte, Adotaremos, em última análise, a teoria
é a preocupação em equacionar o princípio da dos papéis sociais no procedimento de ponde-
35
Corrupción, ética y moral em las Administraciones Públicas, p. 93-94.
36
Art. 5o, V e X.
37 Op. cit., p. 628.
38 Op. cit., p. 632.
39 Op. cit., p. 628.
ração na colisão do princípio da publicidade e possível perceber que, de um modo geral, não
o dever de informar da Administração Pública podem os participantes de uma licitação, que
com o princípio de proteção à imagem e à inti- livremente decidiram aderir a um processo que
midade. deve pautar-se pelo princípio da publicidade,
Exemplifiquemos, inicialmente, com o reclamar da divulgação, pelos sítios oficiais
dever de licitar. É em razão do princípio da (páginas da internet), de que os seus dados da
publicidade junto à licitação que há o direito habilitação e a sua proposta estejam disponíveis
assegurado a qualquer interessado de participar ao acesso de qualquer administrado.
e fiscalizar os atos da licitação: por meio da O não-cumprimento do princípio de pro-
publicidade que se torna possível promover a teção à imagem e à intimidade do interessado
competição do maior número possível de pes- justifica-se pela necessidade do cumprimento
soas, o que efetiva materialmente o princípio da do princípio da publicidade, pois o administrado
igualdade, e ainda amplifica as possibilidades de que participa da licitação assume, ao ingressar
a Administração realizar a seleção e conseguinte no processo de licitação, o papel social de um
contratação mais eficiente às suas necessidades, interessado em substituir o Estado na execução
e quanto à fiscalização é ainda com a publicidade de uma tarefa, e por isto deve à sociedade prestar
dos atos que qualquer pessoa pode averiguar contas, tal como o Estado deve fazê-lo, o que é
se não ocorrem favoritismos e desvios, o que a comprovação definitiva de que o princípio da
contribui – este controle – para a efetivação do publicidade justifica, em razão do papel social
regime democrático40. ao qual adere o participante da licitação, o não-
Pois a teoria dos papéis sociais, ao ex- cumprimento da proteção à imagem e à intimi-
plicitar que o participante de uma licitação dade do participante.
apresenta-se, na relação com o Poder Público, É esperado, como papel social de con-
como uma personagem em interação pública correntes de uma licitação, que os documentos
com outros administrados (isto é, numa área de referentes à sua habilitação jurídica, qualificação
relacionamento que se sujeita aos interesses de técnica, qualificação econômico-financeira, re-
uma coletividade), a sua intimidade e privacida- gularidade fiscal41, que a sua proposta, mesmo
de submetem-se a constrições mais intensas do quando fundada na “melhor técnica” ou “técnica
que em outras relações jurídicas, outros papéis e preço”42, sejam informes disponibilizados, du-
sociais. rante o processo de licitação e em seus momentos
Com a teoria dos papéis sociais, a informar adequados, a qualquer sujeito que queira conhe-
e conduzir o procedimento de ponderação, é cer, pois a transparência é dever que impera no
40
Ainda que não haja a necessidade de expressa menção a este princípio constitucional para que o Poder Público cumpra com o dever de transpa-
rência, a lei de licitações e contratos administrativos é explícita ao reproduzi-lo, em seu art. 3º, caput, como um princípio básico a permear todo
o processo de licitação e o conseqüente momento da contratação com o vencedor. E torna a mencioná-lo em seu art. 4º ao assegurar a qualquer
cidadão o acompanhamento do processo de licitação, e no art. 15, § 2º, ao determinar a publicação trimestral dos preços registrados, no art. 16,
caput, ao prescrever o dever de dar-se publicidade mensalmente à relação de todas as compras feitas pela Administração, no art. 21, § 4º, ao
exigir nova publicação em caso de modificação do edital, no art. 34, § 1º, ao exigir a divulgação do registro cadastral e a sua disponibilidade a
quaisquer interessados, no art. 53, § 4º, ao explicitar que o edital deve ser “amplamente divulgado”, entre outros dispositivos. Claro que durante
as etapas do processo de licitação há momentos em que, pela natureza da própria atividade, é impossível franquear o acesso ou o acompanha-
mento concomitante dos interessados, como é o caso da averiguação dos documentos e o julgamento das propostas. Sem dúvida alguma os atos
anteriores e posteriores, como a abertura de envelopes e divulgação dos resultados com seus critérios e conclusões devem ser públicos, mas os
atos de avaliação de documentos e de julgamento e classificação das propostas demandam o isolamento dos integrantes da comissão responsável.
Igualmente, o princípio da publicidade não abrange o momento de apresentação das propostas, pois se as propostas fossem apresentadas já abertas
não se garantiria a igualdade entre os interessados uma vez que estaria em posição de vantagem quem conhecesse a proposta do outro concorrente
antes de apresentar a sua. Mas com o encerramento da fase de apresentação todos terão acesso às propostas de todos os interessados tão logo elas
sejam abertas e classificadas. É nestes termos, a propósito, que dispõe o art. 3º, § 3º, da Lei 8.666/93. Por isto, a violação do princípio do sigilo das
propostas – da fase de apresentação das propostas – não apenas pode invalidar toda a licitação como ainda tipificar os crimes previstos no art. 94
da própria lei de licitações e contratos administrativos e no art. 326 do Código Penal. Por último, convém registrarmos que as publicações devem
ser resumidas, nos termos dos arts. 21, § 3º, 38, II, 40, § 1º, 61, parágrafo único, todos da Lei 8.666/93, pois a publicação não se confunde com
a publicidade; a publicação resumida, portanto, não viola o princípio da publicidade porque o inteiro teor do edital deve ser disponibilizado na
repartição competente (o que assegura a plena publicidade), e com isto a divulgação (por meio da publicação) atinge o seu objetivo de promover
a publicidade ao se limitar a divulgar os aspectos essenciais do processo de licitação.
41
Art. 27 da Lei 8.666/93.
1. Constituição e lei
mais ampla for, do ponto de vista objetivo e me- Torna-se necessário, portanto, que os indi-
todológico, a interpretação constitucional, mais víduos respondam pelos seus atos integralmente,
amplo há de ser o círculo dos que dela devam na proporção da sua gravidade e com indenização
participar. civil dos danos causados — tal como a Consti-
A unidade da Constituição surge da con- tuição consagrou a indenização de dano moral;
jugação do processo e das funções de diferentes que as penas sejam cumpridas na sua inteireza;
intérpretes.” que as formalidades processuais não se sobrepo-
O caráter, sobretudo educativo, que a pena nham à satisfação dos direitos, à realização da
deve caracterizar, envolve toda a sociedade: Justiça, atentando-se para o cidadão comum ao
escapa dos autos, para repercutir positiva ou qual, igualmente, a decisão judicial é dirigida,
negativamente perante os cidadãos comuns, de de modo educativo e projetivo, repercutindo por
toda idade, de toda classe social. seu intermédio na sociedade, por inteiro.
*
Professor na Universidade Metodista de Piracicaba. Autor do livro Direito Ambiental Brasileiro (16. ed.). Professor Convidado na Universidade
Ecológica de Bucareste (Romênia) – 2008. Prêmio Internacional de Direito Ambiental “Elizabeth Haub” (1985).
study of environmental impact in order to make alheio. A Constituição Federal, ao impedir que
possible the application of the prevention and os animais sejam alvo de atos cruéis, supõe que
precaution principles and to prevent the cruelty esses animais tenham sua vida respeitada. O
against animals, since it would allow the analysis texto constitucional não disse expressamente
in a case by case basis, of the real necessity of que os animais têm direito à vida, mas é lógico
an animal to be sacrificed in the accomplishment interpretar que os animais a serem protegidos
of activities of education and scientific research. da crueldade devem estar vivos, e não mortos.
The law brought the creation of bodies to manage A preservação da vida do animal é uma tarefa
the activities in which animals are used, present- constitucional do Poder Público, não se podendo
ing however limitations in its structuration, as causar a sua morte, sem uma justificativa expli-
for example, to limit the representation of the citada e aceitável.
society in its composition, not considering the A Constituição Federal não proibiu que
possibility of receiving impartial decisions and a alimentação humana seja carnívora. Ao não
in tune with societys thoughts. proibir a alimentação carnívora faz-se uma
Keywords: Animals. Cruelty. Protection. pressuposição de que tal hábito seja ditado por
uma implícita necessidade. É um posicionamento
que tem sofrido críticas, mas o sistema vegeta-
riano não tem um acolhimento constitucional.
1. A Constituição Federal de 1988 e
Entretanto, mesmo os animais que são abatidos
a proteção da vida dos animais
para fins alimentícios, não podem ficar sujeitos
à crueldade.
Preceitua a Constituição Federal: § 1º Para
assegurar a efetividade desse direito, incumbe A questão que o exame da Lei n. 11.794/2008
ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a suscita é a da necessidade ou não de os animais
flora, vedadas na forma da lei, as práticas que serem utilizados para fins de ensino e para fins
coloquem em risco sua função ecológica, pro- de pesquisa.
voquem a extinção de espécies ou submetam os
animais à crueldade.
2. O crime do art. 32 da Lei
Os animais fazem parte da fauna e, portan-
to, incumbe ao Poder Público protegê-los (art.
9.605/1998
225, § 1º, VII). Essa proteção como dever geral
A Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998,
independe da legislação infra-constitucional.
especificamente o art. 32, prevê como crime:
Três tipos de práticas ficaram proibidas e essas “Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou
vedações terão sua maior eficácia “na forma da mutilar animais silvestres, domésticos ou domes-
lei”, ainda que a Constituição Federal já atue a ticados, nativos ou exóticos: pena: detenção, de 3
partir de seu próprio texto. (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º - incorre
A Constituição Federal determinou que nas mesmas penas quem realiza experiência do-
estão vedadas as práticas que submetam os ani- lorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para
mais à crueldade. O Supremo Tribunal Federal fins didáticos ou científicos, quando existirem
vem decidindo, com admirável coerência, pela recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada
proteção dos animais, em casos que se tornaram de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se ocorre
paradigmáticos, como a “farra do boi”, no Estado morte do animal.
de Santa Catarina e a decretação da inconstitu- A experiência em animal vivo que provo-
cionalidade de leis estaduais que permitiram que dor ou manifeste crueldade, nas atividades
rinhas de galos. de ensino e nas atividades científicas, é crime,
Uma das concepções sobre a crueldade quando existirem recursos alternativos. Assim,
mostra-a como a insensibilidade que enseja ter a obrigação legal é a de não ser cruel e nem
indiferença, ou até prazer, com o sofrimento provocar dor nos animais, mesmo no ensino e
competência comum da União, dos Estados, do Lei não fala se essas comissões fazem parte da
Distrito Federal e dos Municípios. própria estrutura da entidade – de pesquisa ou
A lei 11.974/2008 criou o Conselho Na- de ensino – que pretende fazer os experimentos
cional de Controle de Experimentação Animal ou as demonstrações. Daí se vê que em sendo
– CONCEA e as Comissões de Ética no Uso de possível que a Comissão integre a entidade
Animais – CEUAs. interessada, inexistente ou dificultada ficará sua
imparcialidade.
O art. 12 determina que “a criação ou a uti-
lização de animais para pesquisa ficam restritas, As Comissões de Ética do Uso de Animais
exclusivamente, às instituições credenciadas no – CEUAs serão integradas por I – médicos vete-
CONCEA”. A redação do artigo peca por dois rinários e biólogos; II – docentes e pesquisadores
equívocos: primeiro fala em criação de animais, na área específica e III – 1 (um) representante
quando na Lei não se tratou dessa matéria; segun- de sociedades protetoras de animais legalmente
do pretender dar uma característica exclusiva às estabelecidas no País, na forma do Regulamento
entidades credenciadas no Conselho Nacional de (art. 9º da Lei 11.794/2008). A composição foi
Controle de Experimentação Animal – só elas, prevista de forma astuciosa: os médicos veteriná-
com exclusividade de outras – poderão utilizar rios, os biólogos, os docentes e os pesquisadores
animais para pesquisa. Esse artigo 12 desco- não têm número estabelecido na Lei, mas para
nhece e marginaliza frontalmente o artigo 23 da a representação de uma parcela da sociedade
Constituição Federal. É preciso aclarar-se que civil – a sociedade protetora dos animais, já se
nem o Ministério da Ciência e Tecnologia e nem previu somente um voto na CEUAs. Assim, essa
o CONCEA detêm o monopólio administrativo sociedade protetora dos animais será sempre
da matéria atinente à criação e à utilização dos minoria perante os que forem integrantes da
animais para fins de ensino e de pesquisa. entidade interessada.
Quanto à competência legislativa sobre Não bastasse essa ausência de paridade
a matéria tratada na Lei n. 11.794/2008, tanto de setores dentro da Comissão de Ética – dado
sob o aspecto da proteção do meio ambiente, da importante na ciência da administração – fere-se
pesca, da caça, da fauna e da conservação da na- de morte a gestão democrática da Comissão de
tureza como com referência à educação, cultura Ética do Uso de Animais, pois “os membros das
e ensino a competência é concorrente, conforme CEUAs estão obrigados a resguardar o segredo
o art. 24 da Constituição Federal. Portanto, a industrial, sob pena de responsabilidade” (art.
matéria concernente ao uso dos animais não é 10º, §5º). Facilmente, tudo passará a ser carimba-
da competência privativa da União, podendo os do como segredo! É uma audácia acintosa desfi-
Estados legislar suplementarmente (art. 24, § 2º gurar uma Comissão que poderia tentar funcionar
da Constituição Federal). Os Estados poderão adequadamente, se tivesse possibilidade de ser
acrescentar exigências, instituir procedimento imparcial e de comunicar-se com a sociedade.
formal de prevenção do dano ambiental (animal),
criar também licenças ou autorizações e dar ou-
tras atribuições aos Comitês de Ética.
FLORESTAS E JARDINS
1
Advogada especialista em Direito Ambiental pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; Ex-consultora jurídica da SUPRAM - Supe-
rintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável TM/AP, ligada ao COPAM – Conselho de Política Ambiental do Estado
de Minas Gerais.
tender e preservar a vida, nas suas mais diversas as florestas nunca apresentam a necessidade
formas de expressão. Mas mesmo sem entender de jardinagem. A capacidade que temos de
seus segredos, uma coisa ninguém pode negar: interferir na ordem natural da vida e manipular
que neste contexto, de permitir que cada espécie as formas de expressão desta, ao nosso próprio
se desenvolva conforme sua função existencial, prazer, nos leva ao engano de que conseguimos
sem levar em conta as disputas mesquinhas de reproduzir melhor as expressões da vida, as
beleza ou riqueza, tão comuns nas seleções fei- florestas como no exemplo dos jardins, do que
tas pelos seres humanos, quando consideram as elas próprias, se desenvolvendo naturalmente.
outras formas de vida; o reino vegetal e o reino Nosso engodo, como seres humanos, revela-se
animal juntos numa floresta proclamam a força, muito claro nessa comparação das florestas e dos
a exuberância, a imponência e a magnitude da jardins. Em nossas próprias escolhas de jardins
vida. Uma floresta é capaz de suportar tem- não conseguimos atrair a força, a exuberância, a
pestades, ventos fortes e todo tipo de variação imponência e a magnitude que há numa floresta.
climática, sem perder seu alicerce; podendo até Daí o fato de virem os ventos, as chuvas e as
mesmo ser devastada, porém não destruída, pelo tempestades e os arrasarem, ou, simplesmente o
poder que possui de ser regenerada. próprio ciclo de crescimento natural das plantas
Já os nossos jardins são frágeis e sucessí- torna-se suficiente para colocar em desordem a
veis a qualquer variação climática, por mais sim- nossa pretensa ordem, precisando deste modo,
ples que seja, porque eles são o reflexo do nosso de jardineiros. Tudo isso porque tolhemos as
modo de querer controlar a vida e a manifestação espécies de se desenvolverem conforme a sua
das espécies conforme nossa própria seleção. própria função existencial e, por conseguinte,
Estabelecemos critérios que são julgados por desrespeitamos o tempo e a ordem natural dos
beleza e valoração econômica ao considerarmos fatores. Eliminamos então o que a natureza tem
o reino vegetal e animal. Selecionamos espécies de mais belo – a fortaleza que existe na preser-
para o nosso próprio prazer, porque agrada aos vação da sua biodiversidade, tornando-se riqueza
nossos olhos, porque medimos pela aparência natural, morada e refúgio do reino animal.
e não pela essência. Nossos jardins são nossas
escolhas pessoais das flores que mais gostamos, Colhemos, assim, o espetáculo de apenas
das plantas que mais nos agradam. Assim como parte da vida, mas não toda a vida, que está acima
também selecionamos os animais de que mais do controle humano. Nossos jardins transformam
simpatizamos. Por isso que, ao cultivá-los, pre- o poder e a fortaleza da biodiversidade em mera
cisamos de serviços de jardinagem. Porque eles contemplação para os olhos humanos, sem a
precisam ser podados, nossas gramas cortadas magnitude da expressão da vida, refletindo, ainda
e o espaço onde se situam precisa estar limpo, que involuntariamente, a soberba e a vaidade
demonstrando a nossa tendência de uniformi- humana.
zação, de controle do que está “em ordem”, Essa ilustração retrata também o modo
“limpo”, e do que não está; selecionando aquilo como tratamos o nosso semelhante, quando
que a natureza já disse que deve ser múltiplo, pautamos as nossas escolhas pela aparência. Vis-
diverso, desenvolvido e respeitado conforme lumbramos com esta atitude um mundo carente
sua própria espécie. de essência, de caráter e de vida. Vida plena, tão
Isso explica o fato dos nossos jardins presente e contemplada nas mais diversas formas
precisarem sempre de cuidados, enquanto que de expressão existencial na natureza!
CRIMINALIDADE DO PODER,
POLÍCIA E IMPUNIDADE
*
Professor (UniCEUB) e Procurador Regional da República.
I) De 1964 a 1988:
Federal, de 1988, constitui, hoje, um documento O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX
de grande importância para o constitucionalismo grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de
em geral. corrupção e sem conseguir vencer a luta contra a
Sua estrutura difere das constituições pobreza. Um Estado da direita, do atraso social,
anteriores. Compreende nove títulos, que cui- da concentração de pobreza. Um Estado que
dam: (1) dos princípios fundamentais; (2) dos tomava dinheiro emprestado no exterior para
direitos e garantias fundamentais, segundo uma emprestar internamente, a juros baixos, para a
perspectiva moderna e abrangente dos direitos burguesia industrial e financeira brasileira. Esse
individuais e coletivos, dos direitos sociais dos Estado, portanto, que a classe dominante brasi-
trabalhadores, da nacionalidade, dos direitos leira agora abandona e do qual quer se livrar, foi
políticos e dos partidos políticos; (3) da organi- aquele que a serviu durante toda a sua existência.
zação do Estado, em que estrutura a federação Parece, então, equivocada a suposição de que a
com seus componentes; (4) da organização dos defesa desse Estado perverso, injusto e que não
poderes: Poder Legislativo, Poder Executivo e conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja
Poder Judiciário, com a manutenção do sistema uma opção avançada, progressista, e que o ali-
presidencialista, derrotado o parlamentarismo, nhamento com o discurso por sua desconstrução
seguindo-se um capítulo sobre as funções essen- seja a postura reacionária.
ciais à Justiça, com ministério público, advocacia As reformas econômicas brasileiras en-
pública (da União e dos Estados), advocacia volveram três transformações estruturais que se
privada e defensoria pública; (5) da defesa do complementam, mas não se confundem. Duas
Estado e das instituições democráticas, com delas foram precedidas de emendas à Consti-
mecanismos do estado de defesa, do estado de tuição, ao passo que a terceira se fez mediante
sítio e da segurança pública; (6) da tributação e a edição de legislação infraconstitucional e a
do orçamento; (7) da ordem econômica e finan- prática de atos administrativos2.
ceira; (8) da ordem social; (9) das disposições A primeira transformação substantiva da
gerais. Finalmente, vem o Ato das Disposições ordem econômica brasileira foi a extinção de
Transitórias. Esse conteúdo, distribui-se por 245 determinadas restrições ao capital estrangeiro.
artigos na parte permanente, e mais 73 artigos na A Emenda Constitucional número 6, de 15.08.95,
parte transitória, reunidos em capítulos, seções suprimiu o artigo 171 da Constituição, que trazia
e subseções” a conceituação de empresa brasileira de capital
nacional e admitia a outorga a elas de proteção,
benefícios especiais e preferências. A mesma
II) A reforma do Estado no Brasil emenda modificou a redação do art. 176, caput,
para permitir que a pesquisa e lavra de recursos
Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, minerais e o aproveitamento dos potenciais de
ao longo da década de 90, o tamanho e o papel energia elétrica sejam concedidos ou autorizados
do Estado passaram para o centro do debate ins- a empresas constituídas sob as leis brasileiras,
titucional. E a verdade é que o intervencionismo dispensada a exigência do controle do capital
estatal não resistiu à onda mundial de esvazia- nacional. Na mesma linha, a Emenda Consti-
mento do modelo no qual o Poder Público e as tucional número 07, de 15.08.95, modificou o
entidades por ele controladas atuavam como art.178, não mais exigindo que a navegação de
protagonistas do processo econômico. cabotagem e interior seja privativa de embar-
É a lição de Luís Roberto Barroso que ado- cações nacionais e a nacionalidade brasileira
tamos e passamos a transcrever por sua excelente dos armadores, proprietários e comandantes e,
sistematização do fenômeno das reformas. O mo- pelo menos, de dois terços dos tripulantes. Em
delo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira. seguida, foi promulgada a Emenda Constitu-
2
Segundo Barroso, Luís Roberto Temas de Direito Constitucional, Tomo II, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2003, página 274 e seguintes.
cional número 36, de 28.05.02, que permitiu a atividades econômicas como as que prestam
participação de estrangeiros em até trinta por serviços públicos e (b) a concessão de serviços
cento do capital das empresas jornalísticas e de públicos a empresas privadas. No plano federal
radiodifusão. inicialmente foram privatizadas empresas dos
A segunda linha de reformas que modifica- setores petroquímico, siderúrgico, metalúrgico
ram a feição da ordem econômica brasileira foi a e de fertilizantes, seguindo-se a privatização da
chamada flexibilização dos monopólios estatais. infra-estrutura, envolvendo a venda da empresa
A Emenda Constitucional número 5, de 15.08.95, com a concomitante outorga do serviço público,
alterou a redação do § 2º do art. 25, abrindo a como tem se passado com as empresas de energia
possibilidade de os Estados-membros conce- e telecomunicações e com rodovias e ferrovias.
derem às empresas privadas a exploração dos Acrescente-se, em desfecho do levanta-
serviços públicos locais de distribuição de gás mento aqui empreendido, que, além das Emendas
canalizado, que, anteriormente, só podiam ser de- Constitucionais números 05, 06, 07, 08 e 09,
legados a empresa sob controle acionário estatal. assim como na Lei nº 8.031/90, os últimos anos
O mesmo se passou com relação aos serviços de foram marcados por uma fecunda produção
telecomunicações e de radiodifusão sonora e de legislativa em temas econômicos, que inclui
sons e imagens. É que a Emenda Constitucional diferentes setores, como energia, telecomuni-
número 08, de 15.08.95, modificou o texto dos cações, criação de agências reguladoras, mo-
incisos XI e XII, que só admitiam a concessão dernização de portos, concessões e permissões,
a empresa estatal. E, na área do petróleo, a dentre outros.
Emenda Constitucional número 9, de 09.11.95, Afirma Barroso que a redução expressiva
rompeu, igualmente, com o monopólio estatal, das estruturas públicas de intervenção direta na
facultando à União Federal a contratação com ordem econômica não produziu um modelo que
empresas privadas de atividades relativas à pes- possa ser identificado com o de Estado mínimo.
quisa e lavra de jazidas de petróleo, gás natural Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação
e outros hidrocarbonetos fluídos , a refinação do estatal do campo empresarial para o domínio
petróleo nacional ou estrangeiro, a importação, da disciplina jurídica, com a ampliação de seu
exportação e transporte dos produtos e derivados papel na regulação e fiscalização dos serviços
básicos de petróleo. públicos e atividades econômicas. O Estado,
A terceira transformação econômica de re- portanto, não deixou de ser um agente econômico
levo- a denominada privatização- operou-se sem decisivo. Para demonstrar a tese, basta examinar
alteração do texto constitucional, com a edição a profusão de textos normativos editados nos
da Lei número 8.031, de 12.04.90, que instituiu últimos anos.
o Programa Nacional de Privatização, depois De fato, a mesma década de 90, na qual
substituída pela Lei número 9.491, de 9.09.97, foram conduzidas a flexibilização de monopó-
Entre os objetivos fundamentais do programa lios públicos e a abertura de setores ao capital
incluíram-se, nos termos do artigo 1º, incisos I e estrangeiro, foi cenário da criação de normas de
IV: (i) reordenar a posição estratégica do Estado proteção ao consumidor em geral e de consumi-
na economia, transferindo à iniciativa privada dores específicos, como os titulares de planos
atividades indevidamente exploradas pelo setor de saúde, os alunos de escolas particulares e os
público; (ii) contribuir para a modernização do clientes de instituições financeiras. Foi também
parque industrial do País, ampliando sua compe- nesse período que se introduziu no país uma
titividade e reforçando a capacidade empresarial política específica de proteção ao meio ambiente,
dos diversos setores da economia. limitativa da ação dos agentes econômicos, e se
O programa de desestatização tem sido estruturou um sistema de defesa e manutenção
levado a efeito por mecanismos como (a) aliena- das condições de livre concorrência que, embo-
ção, em leilão nas bolsas de valores, do controle ra longe do ideal, constituiu um considerável
de entidades estatais, tanto as que exploram avanço em relação ao modelo anterior. Nesse
que impõe nova disciplina ao uso da medida a hipótese de redução de sua representação.
provisória, ao limitar-lhe a reedição a uma só A grande desigualdade regional, dada a força
vez. A não deliberação sobre a MP, decorridos de São Paulo na Federação, dá peso político
quarenta e cinco dias de sua publicação, leva-a ao aos argumentos dos que defendem uma repre-
regime de urgência, sob o qual ficam “sobreesta- sentação, na Câmara, dos Estados menores e
das, até que se ultime a votação, todas as demais menos desenvolvidos, que não seja estritamente
deliberações legislativas da Casa em que estiver proporcional a suas populações. Considera-se
tramitando”. É o chamado “trancamento de pau- insuficiente a compensação federativa obtida no
ta”. Como mostra Santos, em vez de diminuir o Senado, que, por ser ele a “Câmara dos Estados”,
uso das MPs, passou-se a editar mais, e maior dá a todos eles o mesmo peso na representação,
número delas passou a ser rejeitado. independentemente de sua população5.
Por fim, em relação à composição da
“classe política”, são 513 deputados federais.
Em teoria, a Câmara de Deputados representaria b) Os partidos políticos6
o povo, cabendo ao Senado a representação dos O Brasil é uma federação com 26 estados
Estados. Não é bem assim, porém. Em primeiro e um Distrito Federal, com eleições diretas em
lugar, não há deputados nacionais, eleitos na cir- três níveis (federal, estadual e municipal). Tem
cunscrição do país como um todo, mas sim ban- eleições de dois em dois anos não totalmente
cadas estaduais de deputados federais, o que faz coincidentes, e as eleições municipais são de-
que estes também se vejam como representantes fasadas das eleições gerais. Para compreender
das unidades da Federação no plano nacional. o sistema partidário brasileiro atual, temos que
Em segundo lugar, mais importante, a buscar suas raízes no período pós- 1945. Nestes
representatividade popular da Câmara é em últimos quase 60 anos, o sistema partidário so-
parte invalidada por não se respeitar, na fixação freu dois “realinhamentos” forçados pelo regime
do tamanho das bancadas estaduais, a propor- militar, em 1965-1966 e em 1979-1980. Com o
cionalidade com o tamanho das populações retorno aos governos civis em 1985, o sistema
estaduais. Ao contrário, ao fixar um mínimo de partidário passou por uma grande expansão até
oito representantes por Estado, não importa quão 1993, quando se iniciou um certo “encolhimen-
reduzida sua população, e um máximo de setenta, to”. Mas, o sistema fragmentou-se de novo no
a Carta de 1988 apenas deu continuidade ao que final dos anos 90, com 18 partidos, elegendo
tem prevalecido em nossa história republicana. pelo menos um deputado em 1998 e 2002, e 21
Trata-se da desproporção entre representação e em 2006.
tamanho populacional das unidades da Federa- Diferentemente dos outros regimes milita-
ção e, consequentemente, a existência de pesos res no Cone Sul (Chile, Uruguai e Argentina), os
diferentes aos votos dos eleitores, contrária à generais – presidentes brasileiros não fecharam
regra democrática de “um homem, um voto”. o Congresso Nacional nem prescreveram os
Apesar de o problema estar muito claro no de- partidos políticos; mantiveram as eleições em
bate público sobre a matéria, basta compulsar intervalos regulares, embora com várias restri-
os Anais da Assembléia Nacional Constituinte ções autoritárias - num esforço para vender a
que elaborou a vigente Carta, para nos darmos imagem de uma “democracia relativa”. Assim,
conta de que a desproporcional distribuição de a transição (ou transação) para a democracia se
cadeiras entre os Estados passou a representar processou sem rupturas entre 1974 e 1985. Por
na prática, como que uma “cláusula pétrea” de essa razão, com a abertura do sistema partidário
nossa organização política. Os parlamentares e com a liberdade de organizar novos partidos
dos Estados sobre-representados não admitem (ou reorganizá-los), não ressurgiram os partidos
5
Conforme Cintra, Antonio Octávio e Lacombe, Marcelo Barroso “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política”,
Capítulo 6 da obra já citada, “Sistema Político Brasileiro”.. página 143 e seguintes.
6
Segundo Fleischer, David “Os Partidos Políticos”, Idem, página 303 e seguintes.
tradicionais do período anterior ao golpe militar baixas da América Latina. É é talvez especial-
de 1964- como reapareceram a Unión Cívica mente revelador observar que, no ano de 2002,
Radical e o Partido Justicialista na Argentina, a proporção de brasileiros que declaram não
os Blancos e Colorados no Uruguai e o Partido saber o que significa a democracia ou simples-
Democrata Cristão no Chile, com o fim dos seus mente não responderam à pergunta a respeito é
respectivos regimes militares. destacadamente mais alta que a dos nacionais
No período de 1945 a 1965, o Brasil chegou de todos os demais países latino-americanos,
a ter treze partidos representados no Congresso alcançando 63 por cento (em El Salvador, o
Nacional e dois médios e oito pequenos. Se con- segundo colocado, a proporção correspondente
siderarmos o período de 1980 a 1997, veremos não passa de 46 por cento).
um novo sistema partidário. Nos últimos cinco Tais constatações têm certamente a ver
anos do regime militar (1980-1985), manteve-se com a grande desigualdade social brasileira e
um pluripartidarismo moderado, com seis parti- seus reflexos nas deficiências educacionais do
dos e depois cinco. Com o retorno dos governos país, e pesquisas diversas mostram a clara cor-
civis (Sarney, 1985-1990; Collor, 1990-1982; relação positiva entre o apego à democracia (ou,
Itamar, 1992-1994; e F. H. Cardoso, 1995- 1998), em geral, a atenção e o interesse pela política e
modificou-se a legislação, o que facilitou a o ânimo participante e cívico) e a escolaridade
criação e o registro de legendas novas. Como ou a sofisticação intelectual geral dos eleitores.
conseqüência, em 1991, mais de quarenta par-
De qualquer forma, duas observações per-
tidos estavam registrados no Tribunal Superior
mitidas por outros dados merecem destaque por
Eleitoral (TSE), vinte dos quais representados
sua relevância. A primeira mostra o substrato
no Congresso. Com a nova Lei Orgânica dos
Partidos Políticos – LOPP, sancionada em agosto sociopsicológico com que aparentemente conti-
de 1995, anteciparam-se várias fusões entre 1993 nua a contar o populismo no Brasil, solapando
e 1996, com um certo encolhimento do sistema, a idéia de uma democracia capaz de operar
o que promoveu um pluralismo ligeiramente institucionalmente de forma estável: somente
mais moderado nas eleições de 1998 e 2002. entre os entrevistados de nível universitário não
Hoje temos aproximadamente 9 (nove) partidos se encontrava, nos dados em questão, a concor-
grandes e médios com projeção nacional. dância da ampla maioria com um item de claro
ânimo antiinstitucional, e mesmo autoritário,
Do ângulo do eleitorado, podemos acompa-
em que se desqualificavam os partidos políticos
nhar a análise de Reis7, para quem as estatísticas
e se afirmava que, em vez deles, o que o país
revelam o alheamento de grandes parcelas do
necessitava é “um grande movimento de uni-
eleitorado popular brasileiro perante a política
dade nacional dirigido por um homem honesto
e os assuntos públicos, alheamento este que se
e decidido”, abrindo assim uma margem para
liga com a tendência geral ao desapreço pela de-
mocracia. Pesquisas por amostragem realizadas líderes “fortes”.
em 2002 em 17 países latino-americanos pelo Esse tipo de mentalidade incrementa e
Latinobarômetro, instituição sediada em Santia- incentiva a adoção de programas assistencialis-
go do Chile, mostram o Brasil com o país com tas, como o implementado no governo Lula. O
menor proporção de respostas em que se aponta “bolsa família”, que atinge 11 milhões de pessoas
a democracia como preferível a qualquer outra (aproximadamente 40 milhões de eleitores),
espécie de regime (37 por cento). Não obstante serviu claramente como instrumento poderoso
certa recuperação relativamente a 2001, tam- de reeleição do Presidente, além dos resulta-
bém nas pesquisas de anos anteriores realizadas dos positivos obtidos no cenário econômico
pelo mesmo instituto as proporções brasileiras (baixa inflação, mais acesso ao crédito, menos
de apoio à democracia se situam entre as mais desemprego,etc).
7
Reis, Fábio Wanderley, “Dilemas da Democracia no Brasil”, São Paulo, Ob. Cit. Página 476 e seguintes.
Flávia Piovesan identifica três correntes Nas palavras de Luís Roberto Barroso
doutrinárias que buscam explicar os efeitos — no que é acompanhado por grande parte da
da decisão proferida no mandado de injunção. doutrina —, o provimento judicial, no mandado
Segundo essa autora, ao conceder o mandado de injunção, tem “natureza constitutiva, devendo
de injunção, caberia ao Poder Judiciário: (a) o juiz criar a norma regulamentadora para o caso
elaborar a norma regulamentadora faltante, concreto, com eficácia inter partes, e aplicá-la,
suprindo, deste modo, a omissão do legislador; atendendo, quando seja o caso, à pretensão vei-
ou (b) declarar inconstitucional a omissão e culada”.18 Assim, o mandado de injunção deveria
dar ciência ao órgão competente para a adoção ser entendido como uma ação constitucional
das providências necessárias à realização da voltada a tornar viável, no caso concreto, o
norma constitucional; ou (c) tornar viável, no exercício do direito previsto constitucionalmente
caso concreto, o exercício de direito, liberdade e que se encontra obstado por falta de norma
ou prerrogativa constitucional que se encontrar
regulamentadora.19
obstado por faltar norma regulamentadora.14
O art. 37 da Constituição Federal, ao tratar
Admitir que o Poder Judiciário, ao con-
das disposições gerais da administração pública,
ceder o mandado de injunção, elaboraria a
estabelece, em seu inciso VII, que o direito de
norma regulamentadora faltante, suprimindo a
omissão do legislador,15 afrontaria o princípio greve do servidor público civil será exercido nos
da separação dos poderes, previsto no art. 2º da termos e nos limites definidos em lei específica.
Constituição Federal. As decisões do Supremo Tribunal Federal,
Aceitar que o mandado de injunção se pres- há mais de uma década, caminhavam no sentido
taria, simplesmente, a declarar inconstitucional de interpretar o art. 37, VII, da Constituição,
a omissão e a dar ciência ao órgão omisso para como uma norma de eficácia limitada. Nossa Su-
adotar as providências necessárias à realização prema Corte vinha entendendo que o advento da
da norma constitucional, sem possibilidade de lei constituiria requisito de aplicabilidade do art.
imposição de sanção a este, significaria reco- 37, VII, da Constituição Federal. O direito públi-
nhecer a dois instrumentos constitucionais dis- co subjetivo de greve, outorgado aos servidores
tintos — o mandado de injunção e a ação direta civis, só se revelaria possível depois da edição
de inconstitucionalidade por omissão16 — os da lei especial reclamada pela Constituição. “A
mesmos efeitos.17 mera outorga constitucional do direito de greve
Ademais, concordar com a argumentação ao servidor público civil não basta[ria] — ante
de que o mandado de injunção é um instrumento a ausência de auto-aplicabilidade da norma
desprovido de força para viabilizar o exercício do constante do art. 37, VII, da Constituição — para
direito previsto na Constituição é o mesmo que justificar o seu imediato exercício.” (Mandado
negar a esse instrumento a natureza de ação cons- de Injunção 20-4/DF e, no mesmo sentido, MI
titucional, o que também não se pode admitir. 485-4/MT, 585-9/TO e 438/GO).
diretamente mediante ação de liquidação, dando-se como certos os fatos constitutivos do direito, limitada, portanto, a atividade judicial à fixação
do ‘quantum’ devido”.
14
PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, p. 148.
15
Essa é a posição, por exemplo, de GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades, p. 182-4. Esse autor afirma o seguinte: “Uma
solução intermediária seria a de se admitir que, procedente o pedido, o tribunal poderia determinar prazo para que a norma fosse elaborada sob pena
de, passado esse lapso temporal, ser devolvida ao Judiciário a atribuição de fazê-la. É certo que, passado o prazo, retornar-se-ia à segunda alternativa,
ou seja, o tribunal é que deveria fazer a norma. A solução adequada, portanto, parece a primeira, admitida a alternativa de, antes, ser dada a opor-
tunidade para que o poder competente elabore a norma. Se este não a fizer o Judiciário a fará para que possa ser exercido o direito constitucional”.
16
O art. 103, § 2º, da Constituição, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevê o seguinte: “§ 2º Declarada a inconstitu-
cionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
17
Nas palavras de Barroso, Luís Roberto (in: O controle da constitucionalidade no direito brasileiro
cit. p. 106), essa interpretação seria inadmissível porque aceitaria a existência de “dois remédios constitucionais para que seja dada ciência ao órgão
omisso do Poder Público, e nenhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional pleiteado”.
18
BARROSO, Luís Roberto. O controle da constitucionalidade no direito brasileiro cit. p. 104.
19
Esse é o entendimento, por exemplo, de PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial cit. p. 157 e segs.; TEMER, Michel. Elementos de direito consti-
tucional cit. p. 205; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo cit. p. 450 e também sempre foi o nosso entendimento, Cf.
Figueiredo, Marcelo “O mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão”, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991,(esgotado).
legal (art. 5º, LIV, CF),23 da autonomia dos parti- O artigo 17 da Constituição Federal de
dos políticos (art. 17, § 1º, CF, antes da Emenda 1988 prevê a liberdade de criação, fusão, incor-
52/2006),24 bem como da competência da União poração e extinção dos partidos, resguardadas:
para legislar sobre direito eleitoral (arts. 22, I, e (a) a soberania nacional; (b) o regime democrá-
48, caput, CF).25 tico; (c) o pluralismo partidário; (d) os direitos
Não havia, na ocasião, previsão constitu- fundamentais da pessoa; (e) funcionamento
cional que se ocupasse diretamente das coliga- parlamentar na forma da lei.
ções partidárias. O STF, por maioria de votos, Portanto, apesar de a Constituição reme-
não conheceu da ADIN, porque a Resolução do ter o funcionamento parlamentar à legislação
TSE seria um ato normativo secundário, de in- ordinário, não faz menção expressa à cláusula
terpretação da Constituição, que apenas poderia de barreira.
violá-la indiretamente. A Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos),
Como resposta às atitudes do Poder Ju- no art. 12, prevê que o “partido político funciona,
diciário (TSE e STF), o Congresso Nacional, nas Casas Legislativas, por intermédio de uma
em 2006, produziu a Emenda Constitucional nº bancada, que deve constituir suas lideranças de
52/2006, que alterou o art. 17, § 1º, permitindo acordo com o estatuto do partido, as disposições
expressamente a coligação sem necessidade de regimentais das respectivas Casas e as normas
respeitar a verticalização: “É assegurada aos desta Lei”. E o art. 13 da mesma lei estabelecia
partidos políticos autonomia para definir sua que o partido teria direito ao funcionamento
estrutura interna, organização e funcionamento parlamentar o partido que, em cada eleição para
e para adotar os critérios de escolha e o regime a Câmara dos Deputados tivesse obtido o apoio
de suas coligações eleitorais, sem obrigatorie- de, no mínimo, 5% dos votos apurados, não
dade de vinculação entre as candidaturas em computados os brancos e os nulos, distribuídos
âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, em, pelo menos, um terço dos Estados, com um
devendo seus estatutos estabelecer normas de mínimo de 2% do total de cada um deles.
disciplina e fidelidade partidária”. Na ocasião, somente 7 dos 26 partidos
políticos brasileiros teriam funcionamento
parlamentar, participando do rateio do saldo do
d) Cláusula de barreira fundo partidário e gozando de 80 minutos por
A cláusula de barreira, também conhecida ano de propaganda eleitoral gratuita em cadeias
como cláusula de exclusão ou de desempenho, nacional e estadual, por exemplo.
é a disposição normativa que nega a existência Em 2006, o PSC (Partido Social Cristão),
ou a representação parlamentar ao partido que um dos partidos que seriam excluídos do funcio-
não tenha alcançado um determinado número ou namento parlamentar em razão da cláusula de
percentual de votos numa eleição. barreira, ingressou com a ADIN 1.354.
Os objetivos de tal cláusula são os de coibir O Supremo Tribunal Federal julgou a cláu-
um número elevado de partidos, evitar o enfra- sula de barreira inconstitucional pelos seguintes
quecimento partidário, impedir as legendas de motivos: (a) seria o fim das minorias políticas
aluguel e evitar que se afete a governabilidade e a consagração do despotismo da maioria; (b)
23
24
“LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A redação do art. 17, § 1º, da CF, era a seguinte: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e
funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.” A Emenda Constitucional 52, de 2006 alterou
tal dispositivo, que passou a ter o seguinte teor: “§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização
e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as can-
didaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.”
25
O art. 22, inciso I, estabelece a competência da União para legislar sobre direito eleitoral: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. O caput do artigo 48 tem a seguinte
redação: “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e
52, dispor sobre todas as matérias de competência da União [...].”
26
Curso de direito constitucional positivo, p. 206.
O art. 2º do Código Civil de 2002 prevê em preservação de tal direito. Aliás, o art. 1º,
que a “personalidade civil da pessoa começa do III, da Constituição, também prevê que um dos
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde fundamentos da República Federativa do Brasil
a concepção, os direitos do nascituro”. Por sua é a dignidade da pessoa humana. E não parece
vez, a Parte Especial do Código Penal, decreta- digno exigir que uma mulher grávida, sabendo
da durante a ditadura getulista, pune a prática que dará à luz um natimorto, não possa ter a
do aborto provocado pela gestante ou com seu liberdade de optar pela interrupção da gravidez.
consentimento, bem como o aborto provocado Aliás, em países onde existem restrições
por terceiro, com ou sem a anuência dela. Já o legais à interrupção da gravidez, os abortos
art. 128 do Código Penal prevê que não se pune provocados têm sido apontados como uma das
o aborto praticado por médico se não há outro principais causas de mortalidade materna. Tais
meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez restrições levam mulheres de alta renda a clínicas
é resultante de estupro e o aborto é precedido de particulares, que utilizam técnicas modernas de
consentimento da gestante. interrupção da gravidez, ao passo que induzem
Nota-se que não há permissão legal ex- mulheres de baixa renda a recorrer a práticas de
pressa para a prática de aborto na hipótese de se alto risco à saúde, como procurar um “aborteiro”
constatar a má-formação do feto. Mas a jurispru- ou se automedicar com drogas abortivas de efi-
dência, apesar de alguma divergência, passou a cácia não comprovada e, muitas vezes, vendidas
admitir tal prática, nos últimos anos. em farmácias, sem prescrição médica.
Algumas decisões judiciais, realizando Contudo, houve casos, espalhados por vá-
uma interpretação evolutiva da norma jurídica, rios Estados da Federação brasileira, em que o
consideram que, por ocasião da promulgação do Judiciário não admitiu a interrupção da gravidez,
Código Penal, em 1940, não existiam os recursos mesmo constatada a inviabilidade de vida extra-
técnicos que atualmente permitem a detecção de uterina do feto.
anomalias fetais severas. Assim, não se poderia Em junho de 2004, a Confederação Na-
prever, naquela ocasião, a má-formação do feto cional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
entre as causas de exclusão de ilicitude do aborto. propôs, perante o Supremo Tribunal Federal,
Alguns juízes também passaram a fazer uma Argüição de Descumprimento de Preceito
uma interpretação extensiva do art. 128, I, do Có- Fundamental (ADFP) com o intuito de fazer
digo Penal, para admitir a exclusão da ilicitude do cessar a divergência de decisões judiciais sobre a
aborto não só quando realizado para salvar a vida possibilidade de gestantes de fetos anencefálicos
da gestante, mas quando se mostrar necessário (ausência total ou parcial do cérebro) interrom-
para preservar-lhe a saúde, inclusive psíquica. perem a gravidez.
Como decidiu o Tribunal de Justiça de São Em abril de 2005, o Supremo Tribunal
Paulo,27 se a lei admite o aborto para preservar os Federal admitiu, por 7 votos a 4, que a ADPF
sentimentos da mãe, no caso de gravidez resul- proposta pela CNTS sobre a descriminalização
tante de estupro — mesmo quando o feto é sadio do aborto nos casos de fetos anencefálicos é
e perfeito —, por maior razão deve-se autorizar a um meio hábil para solucionar a divergência de
interrupção da gravidez quando constatada uma jurisprudência, mas ainda não apreciou o mérito
grave má-formação fetal. Com isso, evita-se o da demanda.
sofrimento físico e psicológico não só da gestan-
te, mas também dos outros membros da família. V - Os Mecanismos de Defesa da
Ademais, o art. 5º, caput, da Constituição Constituição
Federal procura garantir a inviolabilidade do
direito à vida, mas, constatada a inviabilidade A Constituição brasileira de 1988 contém
de vida extra-uterina do feto, não há que se falar vários mecanismos para que suas normas pos-
27
Mandado de Segurança n. 329.564-3/3-00, rel. Des. David Haddad, j. 20.11.2000.
sam, quando violadas, serem o quanto possível “Muito embora os problemas que a nova Lei
restabelecidas. Tem no Poder Judiciário em geral, apresente, importa ressaltar que a argüição de
e no Supremo Tribunal Federal em particular, o descumprimento de preceito fundamental se
guardião de suas normas e valores28. coloca - enquanto direito de acesso à jurisdição
Em primeiro lugar, destaque-se o amplo constitucional - ao lado e como complemento do
leque de legitimados do artigo 103 para propor mandado de injunção, da ação de inconstitucio-
ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) nalidade por omissão e dos próprios mecanismos
ou ações declaratória de constitucionalidade, a de controle de constitucionalidade. Isto porque,
primeira, (por ação- positiva) ou (por omissão enquanto o mandado de injunção é remédio con-
–negativa), a saber: 1) O Presidente da Repú- tra a ineficácia de normas não regulamentadas,
blica, 2) a Mesa do Senado Federal, 3) a Mesa podendo/devendo o Poder Judiciário suprir, no
da Câmara dos Deputados; 4) A Mesa da As- caso concreto, o direito não realizado, a argüição
sembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa de descumprimento de preceito fundamental
do Distrito Federal; 5) o Governador de Estado objetiva compelir o Poder Público a abster-se
ou do Distrito Federal; 6) o Procurador Geral de realizar um ato abusivo e violador do Estado.
da República; 7) o Conselho Federal da Ordem No que se relaciona ao controle de cons-
dos Advogados do Brasil; 8) Partido Político titucionalidade stricto sensu, releva notar que
com representação no Congresso Nacional;9) a argüição de descumprimento de preceito
Confederação sindical ou entidade de classe de fundamental abrange a ambivalência própria do
âmbito nacional. sistema misto de controle de constitucionalidade
Dois são os sistemas de controle judicial vigorante no Brasil, isto é, ao mesmo tempo em
de constitucionalidade de leis e atos normativos que é uma ação autônoma (art.1,caput, da Lei
no Brasil. 9.882/90), é também mecanismo apto a provocar
incidentalmente a constitucionalidade de leis ou
Temos o sistema difuso (de origem norte-
atos normativos difusamente (art.1, parágrafo
americana) pelo qual qualquer juiz e qualquer
único, I).
Tribunal podem suspender a norma tida por
inconstitucional e o sistema concentrado (de Releva notar que a nova ação veio preen-
origem européia) segundo o qual o Supremo cher antiga lacuna existente em nosso ordena-
Tribunal Federal deve, objetivamente, controlar mento ao permitir que o STF examine a cons-
a constitucionalidade de leis e atos normativos titucionalidade de atos normativos anteriores
(via abstrata ou direta). à Constituição de 1988 (inconstitucionalidade
superveniente). Como se sabe, a partir do julga-
Há ainda a chamada ADPF - Argüição
mento das ADIns números 2 e 438,o STF passou
de Descumprimento de Preceito Fundamental,
a firmar posição no sentido de não aceitar ações
prevista no artigo 102, § 1º e na Lei 9.882/99
de inconstitucionalidade de leis anteriores à
tem por objeto na modalidade de ação autônoma,
Constituição. Agora, pelo disposto no inciso I do
evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,
parágrafo único do artigo 1 da nova Lei, também
resultante de ato do Poder Público.
os atos normativos anteriores à Constituição são
Até o momento o Supremo Tribunal não passíveis de declaração de inconstitucionalidade.
definiu o que entende por preceito fundamental. Também será possível que se intente argüição
Em algumas hipóteses, disseram o que não é pre- de descumprimento de preceito fundamental
ceito fundamental. A doutrina, entretanto, vem preventivamente. A ADPF terá por objeto evitar
apresentando adequados cenários de encaixe do ou reparar lesão. Ou seja, o sistema passa a ad-
novo instituto. mitir não somente a modalidade repressiva, mas
Lenio Luiz Streck, por exemplo, afirma: também a modalidade preventiva de controle
28
Sobre o tema, confira-se o nosso trabalho: Figueiredo, Marcelo, “Una visión del control de constitucionalidad en Brasil”, Revista Jurídica de
Castilla –La –Mancha, Toledo, número 41, Noviembre 2006, páginas 69 a 135.
de atos que possam colocar em xeque preceitos ciário não nulifica o ato, mas apenas verifica se
fundamentais da Constituição. estão presentes os pressupostos para a futura de-
De qualquer sorte, em face das peculia- cretação de intervenção pelo Chefe do Executivo.
ridades que revestem a ADPF, no seu caráter É possível a intervenção da União nos Es-
incidental, tudo está a indicar que a sede privi- tados e dos Estados nos Municípios desde que
legiada desta nova ação será mesmo o controle lei ou ato normativo, ou omissão, ou ato gover-
concentrado. É nessa direção que apontam as namental desrespeitem os princípios sensíveis
ações intentadas até este momento no STF, da Constituição (forma republicana, sistema
podendo ser arroladas alguma delas, como a representativo e regime democrático, direitos da
ADPF número 4, que buscava desconstituir a pessoa humana, autonomia municipal, prestação
Medida Provisória 2.019/2000, que fixou o valor de contas da administração pública; aplicação
do salário mínimo, ainda sem decisão; a ADPF do mínimo exigido da receita na manutenção do
número 1, ajuizada contra ato do Prefeito do ensino e da saúde).
Rio de Janeiro, por ter aposto veto parcial, de Finalmente ressalte-se que a Constituição
forma imotivada, a projeto de lei aprovado na Federal, mercê da Emenda Constitucional núme-
Câmara Municipal, elevando o valor do Imposto ro 45/2004, passou a prescrever a possibilidade
Predial e Territorial Urbano – IPTU, que não foi de o Supremo Tribunal Federal editar súmula
conhecida sob o argumento de que o veto não dotada de efeito vinculante em relação aos órgãos
se enquadra no conceito de ato do poder público do Judiciário e à Administração Pública, nas
de que fala a lei, e a ADPF número 3, proposta esferas federal, estadual e municipal.
pelo Governador do Ceará, contra ato do Tri-
O dispositivo constitucional, no entanto,
bunal de Justiça daquele Estado que deferira o
é claro ao indicar a reserva de matéria capaz
pagamento de gratificações em “cascata”, a qual
de abrigar a edição da súmula: apenas matéria
não foi conhecida sob o fundamento de que não
constitucional.
foi cumprido o esgotamento de todos os meios
aptos a solver o conflito”29.
Entendeu ainda o STF que a ADPF pode VI - Avanços e ameaças à
ser conhecida como Ação Direta de Inconstitu- Democracia
cionalidade.
O sistema político-constitucional brasi-
Portanto, além dos dois possíveis caminhos leiro avançou ao estabelecer, por meio de sua
para se controlar a constitucionalidade de leis e atual Constituição, que a República Federativa
atos normativos (sistema difuso e sistema con- do Brasil constitui-se em Estado Democrático
centrado), com suas variantes, positiva e negati-
de Direito30. Trata-se de um avanço porque de-
va, temos ainda a possibilidade da intervenção.
monstra a escolha pelo Poder Constituinte de um
A ADIN interventiva apresenta-se como caminho revolucionário para o Brasil, à época
um dos pressupostos para a decretação da in- ainda maculado pelo passado ditatorial. È que a
tervenção federal, ou estadual, pelos Chefes do configuração deste novo Estado não se resume à
Executivo, nas hipóteses previstas na Constitui- simples junção de termos (Estado Democrático
ção de 1988. + Estado de Direito = Estado Democrático de
Na ação direta de inconstitucionalidade Direito). Como afirma José Afonso da Silva,
interventiva, o Judiciário exerce, um controle “consiste, na verdade, na criação de um conceito
da ordem constitucional tendo em vista um caso novo, que leva em conta os conceitos dos ele-
concreto que lhe é submetido a análise. O Judi- mentos componentes, mas os supera na medida
29
Streck, Lênio Luiz, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”,2Edição, revista, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2004, página 817. IV – os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V
30
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. (...)”.
em que incorpora um componente revolucionário (lei nº 9.709/98), estes serão convocados por
de transformação do status quo”.31 decreto legislativo, por proposta de um terço, no
Atente-se para o fato de que na expressão mínimo, dos membros que compõem qualquer
“Estado Democrático de Direito”, o “demo- das Casas do Congresso Nacional. Se aprovado
crático” qualifica o Estado e não o Direito, o ato convocatório, o Presidente do Congresso
Nacional informará a Justiça Eleitoral, que deve-
diferentemente, por exemplo, da Constituição
rá fixar a data da consulta popular, tornar pública
portuguesa, que instaura o Estado de Direito
a cédula respectiva, expedir instruções para a
Democrático, com o “democrático” qualificando
realização do plebiscito ou referendo e assegurar
o Direito. Essa opção terminológica, que a prin-
a gratuidade nos meios de comunicação de massa
cípio soa como eventual, reflete, na verdade, a concessionários de serviço público, aos partidos
preocupação política em irradiar os princípios políticos e às frentes suprapartidárias organiza-
da democracia por toda a estrutura do Estado e das pela sociedade civil em torno da matéria em
da ordem jurídica.32 questão, para a divulgação de seus postulados
Nesse contexto, é possível depreender referentes ao tema sob consulta. Para aprovação
da Constituição Federal de 1988 os princípios ou rejeição do plebiscito ou referendo, exige-se o
norteadores da Democracia, os quais, de acordo quórum de maioria simples, devendo o resultado
com Dalmo de Abreu Dallari, consistem em três ser homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
pontos fundamentais: a supremacia da vontade A iniciativa popular, por sua vez, pode ser
popular, a preservação da liberdade e a igual- exercida pela apresentação à Câmara dos Depu-
dade de direitos33. tados de projeto de lei subscrito por, no mínimo,
A soberania popular é lembrada logo no um por cento do eleitorado nacional, distribuído
primeiro artigo da Constituição, a qual dispõe pelo menos por cinco Estados, com não menos
que “Todo o poder emana do povo, que o exerce de três décimos por cento dos eleitores de cada
um deles (art. 61, §2º, CF).
por meio de representantes eleitos ou diretamen-
te, nos termos desta Constituição”.34 Esta norma Outro requisito exigido para apreciação
retrata a democracia semi-direta, que alia a do projeto de lei de iniciativa popular é que seu
democracia representativa à democracia partici- objeto esteja circunscrito a um só assunto. Por
pativa. Nessa ótica, vale destacar os instrumentos outro lado, dispensam-se maiores formalidades,
uma vez que não poderá ser rejeitado por vício
de participação direta eleitos pelo Constituinte:
de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por
o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular,
seu órgão competente, providenciar a correção
consoante o artigo 14, incisos I, II e III, da CF.
de eventuais impropriedades de técnica legis-
O plebiscito consiste numa consulta prévia lativa ou de redação. Com isso, acertadamente,
ao ato legislativo ou administrativo, cabendo ao privilegia-se a legitimidade popular, liquidando-
povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe se obstáculos de ordem meramente técnica.
tenha sido submetido. O referendo, ao contrário, Apesar da enorme relevância desses meca-
é convocado posteriormente ao ato legislativo ou nismos de participação direta, são raras as hipó-
administrativo, de tal forma que a manifestação teses em que vemos sua utilização na democracia
popular consistirá na sua ratificação ou rejeição. brasileira. Basta constatar que durante os quase
Tais instrumentos devem ser utilizados quando vinte anos de vigência da atual Constituição,
estiverem em debate matérias de acentuada re- houve apenas um plebiscito, um referendo e
levância, de natureza constitucional, legislativa três projetos de lei de iniciativa popular que se
ou administrativa. converteram em lei.
De acordo com a legislação que regulamen- O plebiscito a que nos referimos foi rea-
ta o procedimento do plebiscito e do referendo lizado em sete de setembro de 1993, por deter-
31
Curso de Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 119.
32
Ibid.
33
Elementos de teoria geral do Estado. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 151.
tes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, acolham nominalmente em suas Constituições
observado o prazo fixado no parágrafo anterior, modelos institucionais – hauridos dos países
a manifestação de outros órgãos ou entidades. política, econômica e socialmente mais evolu-
Oportuna a manifestação do Ministro ídos – teoricamente aptos a desembocarem em
Gilmar Mendes sobre a figura do “amigo da resultados consonantes com os valores democrá-
corte”: “Evidente, assim, que essa fórmula pro- ticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus
cedimental constitui um excelente instrumento governantes (a) sejam investidos em decorrência
de informação para a Corte Suprema. Não há de eleições, mediante sufrágio universal, para
dúvida, outrossim, de que a participação de di- mandatos temporários; b) consagrem uma dis-
ferentes grupos em processos judiciais de grande tinção, quando menos material, entre as funções
significação para toda a sociedade cumpre uma legislativa, executiva e judicial; c) acolham, em
função de integração extremamente relevante tese, os princípios da legalidade e da independên-
no Estado de Direito. (...) Ao ter acesso a essa cia dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu
pluralidade de visões em permanente diálogo, arcabouço institucional consegue ultrapassar o
com este Supremo Tribunal Federal passa a caráter de simples fachada, de painel aparatoso,
muito distinto da realidade efetiva”.45
contar com os benefícios decorrentes dos sub-
sídios técnicos, implicações político-jurídicas e Com efeito, para realizar a democracia
elementos de repercussão econômica que possam substancial há apenas uma solução: produzir o
vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”.44 mínimo de cultura política indispensável ao Esta-
do Democrático de Direito. Nos dizeres de Ban-
De maneira geral, são esses os instrumentos
deira de Mello: “... as sociedades de incipiente
disponíveis à sociedade para o efetivo exercício
cultura política para poderem vir a se configurar
democrático, consagrando, assim, a Constituição
como Estados democráticos, demandariam mais
Federal como o grande avanço da democracia
do que apenas reproduzir em suas Constituições
no Brasil.
os traços especificadores de tal sistema de gover-
Contudo, não podemos olvidar as ameaças no. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar
que circundam o sistema político brasileiro. suas instituições básicas de maneira a prevenir
Como demonstrado, se por um lado há um leque ou dificultar os mecanismos correntes de seu des-
variado de mecanismos que buscam assegurar naturamento e, de outro – o que ainda seria mais
os princípios democráticos, por outro lado é importante – empenhar-se na transformação da
preocupante o afastamento do povo brasileiro realidade social buscando concorrer ativamente
do cenário político. Pode-se apontar, assim, para produzir aquele mínimo de cultura política
como grande ameaça à Democracia brasileira a indispensável à prática efetiva da democracia,
ausência de “cultura política” ao país. única forma de superar os entraves viscerais ao
Sem dúvida alguma, é a partir desse fa- seu normal funcionamento”.46
tor – a incipiente cultura política do país – que Surge, portanto, a seguinte questão: Como
tantas outras ameaças podem advir, como o produzir o mínimo de cultura política indispensá-
fortalecimento exacerbado do Poder Executivo. vel à prática efetiva da democracia? Ao contrário
Com isso, corre-se o sério risco de permanecer do que pode parecer, a resposta é conhecida de
em uma democracia formal, mero simulacro da todas. Com o mínimo de renda para desenvolver
democracia substancial. No dizeres de Celso uma vida digna, educação de qualidade e acesso
Antônio Bandeira de Mello, “Estados apenas amplo à cultura e à informação diversificada.
formalmente democráticos são os que, inobstante É que afirma Bandeira de Mello: “Uma vez
43
Ação declaratória de constitucionalidade.
44
Informativo do STF nº 406. ADI nº 2548.
45
Bandeira de Mello, Celso Antônio. A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In: Revista de Direito Administrativo. Nº 212. Rio de
Janeiro, Ed. Renovar, abr/jun. 1998, p. 58.
46
Ibid., p. 60.
que a democracia se assenta na proclamação e la expedición de una nueva resolveria los pro-
reconhecimento da soberania popular, é indis- blemas en forma mágica”.48
pensável ‘que os cidadãos tenham não só uma Não se pretende com isso postular a im-
consciência clara, interiorizada e reivindicativa possibilidade de reformas da Constituição. Ao
deste título jurídico político que se lhes afirma contrário, será esse mecanismo eficiente para
constitucionalmente reconhecido como direito adequar o sistema político-constitucional à rea-
inalienável, mas que disponham das condições lidade. Aliás, como afirma Carpizo, “... no existe
indispensáveis para poderem fazê-lo valer de ninguna institución ni norma que sea inmutable,
fato. Entre estas condições estão não apenas (a) no la puede Haber. El orden jurídico es, por na-
as de desfrutar de um padrão econômico-social turaleza, dinâmico, cambiante y debe colocarse
acima da mera subsistência (sem o que seria vã a la vanguardia de lãs ideas protectoras del ser
qualquer expectativa de que suas preocupações humano y de sus relaciones sociales”.49
transcendam as da mera rotina da sobrevivência
Contudo, deve-se ter em mente que a
imediata), mas também, as de efetivo acesso (b)
Constituição representa um sistema normativo,
è educação e cultura (para alcançarem ao menos
com todas suas normas interligadas e vinculadas
o nível de discernimento político traduzido em
umas às outras. Deverão permanecer intocáveis
consciência real de cidadania) e (c) à informação,
os princípios e dispositivos caracterizados pela
mediante o pluralismo de fontes diversificadas
imutabilidade - as cláusulas pétreas – sob pena
(para não serem facilmente manipuláveis pelos
de descaracterizar a Constituição e, conseqüen-
detentores dos veículos de comunicação de
massa)’”.47 temente, o sistema político-constitucional e a
Democracia. Nossa Constituição proíbe que seja
Assim, exige-se do Estado uma postura objeto de deliberação a proposta tendente a abolir
ativa, pois a ele cumpre possibilitar aos cida- i) a forma federativa de Estado, ii) o voto direto,
dãos condições mínimas para o exercício da secreto, universal e periódico, iii) a separação de
democracia. Ao levar em conta a Constituição Poderes e v) os direitos e garantias fundamentais,
Federal de 1988, é possível concluir que se trata
consoante artigo 60, §4º, da CF.
de uma boa Constituição. Necessário, contudo,
efetivá-la. Nesse contexto, são valiosas as con- Nessa esteira, qualquer mutação consti-
clusões de Jorge Carpizo, ao ponderar sobre a tucional apenas poderá ocorrer respeitados os
necessidade ou não de uma nova Constituição limites constitucionais impostos pelo Poder
no México: “No es correcto atribuir a la ley su- Constituinte. E nesse ponto residem nossas
prema los vícios y problemas de nuestra realidad preocupações. Tendo em vista a importância da
política, econômica, social e jurídica. Aquellos Constituição para o estabelecimento do Estado
han crecido precisamente por la inaplicación Democrático de Direito e os impactos sociais
de la norma y por la falta de respeto al Estado e legislativos acarretados por uma alteração
de derecho, tanto por parte de los gobernantes constitucional, afigura-nos insuficiente apenas a
como de los gobernados. Ni en México, ni em instância legislativa para aprovações de Emenda
ninguna parte del mundo, los problemas se su- à Constituição.
peran exclusivamente con el cambio de la ley, Considerando a consagração da “soberania
sino primordialmente com la aplicación de la popular” pelo Estado Democrático de Direi-
norma adecuada porque, em caso contrario, se to, parece-nos interessante proposta de Jorge
puede repetir la situación que nuestro país ya Carpizo, guardadas a particularidades de cada
vivió en el siglo XIX: la constante sustitución país (Brasil e México) de submeter a reforma
de Constituciones, al creerse ingenuamente que constitucional a referendo popular posterior.
47
Ibid, p. 60 e 61.
48
Concepto de democracia y sistema de gobierno em América Latina. México: Universidade Nacional Autônoma de México, Instituto de Investi-
gaciones Jurídicas, 2007, p. 130.
49
Ibid., p. 130.
Passamos a descrever os argumentos levantados poseen y los limites a esas facultades, así
pelo jurista: como las modalidades de su ejercicio.
“Mis argumentos son: 7) El titular del Poder Constituyente es el
mismo que el de la soberanía. En este
1) El procedimento de la reforma consti- sentido, Poder Constituyente, soberanía
tucional adquiriría mayor rigidez que el
y pueblo son términos intercambiales, y
que actualmente posee. Es por esta razón
la decisión sobre la Constitución y sus
que esta propuesta se relaciona con la de
reformas debe provenir precisamente
la existência de leyes constitucionales,
de ese titular, fuente última del poder y
orgânicas y reglamentarias, y los efectos
creador del orden jurídico.
erga omnes de lãs sentencias de ampa-
ro, respecto a la constitucionalidad de 8) Aunque existen antecedentes – como
normas generales, que fortalecerían la Francia em 1793 y Suiza em 1848 -,
interpretación constitucional de útlima es a partir de la terminación de que las
instancia. Constituciones nuevas y sus reformas
2) El Congresso de la Unión y las legisla- debe ser aprobadas por el pueblo a través
turas locales aprobarían un proyecto de de referendos, como ejercicio directo de
reformas. En este caso se constituirían su soberania”.50
en asamblea proyectista. La aprobación Em suma, deve-se prestigiar a soberania
en cada una de lãs Câmaras sería por popular como estabelecido na Constituição Fe-
mayoría absoluta, no calificada, de los deral, que não hesitou em explicitar que “todo
legisladores presentes, precisamente poder emana do povo”. Sem olvidar, contudo, a
porque se trata de un proyecto, y debido urgente e constante necessidade de propiciar o
a que la experiência demuestra que tan desenvolvimento da “cultura política” no país,
inconveniente es la flexibilidad como la
sem a qual será inócuo qualquer mecanismo que
regidez extrema de la Constitución.
objetive expandir os meios de participação direta
3) La participación de las legislaturas loca- da população.
les en el proyecto es una garantia para la
existência del próprio sistema federal.
4) La reforma constitucional sería más VII – Conclusões
meditada y ponderada por el Congresso
y las legislaturas locales al saber que la 1 - A Constituição de 1988 inaugurou uma nova
última palabra la dirán los votantes. era no constitucionalismo brasileiro rom-
5) Los votantes se beneficiarían de los pendo com o ciclo autoritário que dominou
argumentos favorables y en contra del o Brasil de 1964 (data da revolução militar
proyecto, lo que les auxiliaria a consi- que se implantou no país por mais de vinte
derar los méritos de aquél. anos), a meados da década de 80. Além disso,
6) Una Constitución o sus reformas úni- constitui, hoje, um documento de grande im-
camente deben ser aprobadas por la portância para o constitucionalismo em geral.
sociedad política en ejercicio directo de 2 – Após a Constituição de 1988 e, sobretudo,
su soberania. Los Congresos o Asam- ao longo da década de 90, o tamanho e o
bleas Constituyentes corresponden papel do Estado passaram para o centro do
únicamente a la sociedad política, al debate institucional. As reformas econômicas
pueblo, quien, al decidir la estructura brasileiras envolveram três transformações
político-social básica, está otorgando estruturais que se complementam, mas não
a sus representantes las facultades que se confundem. Duas delas foram precedidas
50
Ibid., p. 158 e 159.
*
Estudante de Direito da Universidade Federal de Sergipe.
Resenhas
· No máximo, 02 páginas;
· Margens direita e inferior com
espaçamento de 2,0 cm;
· Margens superior e esquerda com
espaçamento de 3,0 cm;
· Tamanho do papel é A4;
· Alinhamento justificado;
· Espaçamento duplo;
· Fonte Times New Roman 12 para o corpo
do texto;
· Espaço de 0,6 cm entre os parágrafos;
Imagens
Não há restrição para o uso de imagens. Pede-
se apenas que o articulista seja criterioso no
número de imagens a ser enviada. O material
enviado só será utilizado se as imagens tiverem
boa qualidade técnica e estética para a publi
-cação.