Raimundo Lulio - O Livro Das B

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Livro das Bestas

Raimundo Lúlio
Instituto Raimundo Lúlio

Livro das Bestas


Raimundo Lúlio [1232/33- 1316]

Traduzido do Catalão por Cláudio Giordano,


revisão técnica de Esteve Jaulent;
editado em papel pela
Editora Giordano em co-edição com a Loyola.

Versão para eBook


eBooksBrasil.com

Fonte Digital
http: / / w w w.ramonllull.net / portal.html

© 2000 Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência


“Raimundo Lúlio“
(Ramon Llull)
[email protected]

ÍNDICE

Prefácio
Esteve Jaulent

Introdução
Capítulo I
Da Eleição do Rei
Capítulo II
Do Conselho do Rei
Capítulo III
Da Traição Que Da. Raposa Armou Contra o Rei
Capítulo IV
De Como Da. Raposa se Tornou Porteira da Câmara Real
Capítulo V
Dos Mensageiros Que o Leão Enviou ao Reino dos Homens
Capítulo VI
Do Combate do Leopardo e da Onça
Capítulo VII
Da Morte de Da. Raposa
Notas

Peço perdão aos editores desta maravilha escrita


por ter invertido a ordem da mesma.
O prefácio ou introdução está tão maravilhosamente escrito e explicativo
que temo quebrar o suspense e os efeitos originais
àqueles que tomam esta obra pela primeira vez.
Bom,
com as desculpas pedidas,
vamos nos deliciar neste exercício de inteligência
que esta bem à frente de nossos narizes.
[email protected]

LIVRO DAS BESTAS

Raimundo Lúlio

O LIVRO DAS BESTAS

Começa aqui o livro sétimo, a respeito das bestas.

Despedindo-se do filósofo, pôs-se Félix [1] a caminhar por um vale


repleto de árvores e fontes. Tendo-o cruzado, encontrou dois homens de
cabelos e barba longos, vestidos mui pobremente. Saudou-os e foi por eles
saudado.
- Belos senhores, disse-lhes Félix, de onde vindes e a que Ordem
pertenceis? Porque, pelas vossas vestes, bem parece que entrastes em
alguma Ordem.
- Senhor, responderam-lhe os dois homens, estamos vindo de terras
distantes e atravessamos uma planície próxima daqui, onde um bando de
animais selvagens tenta escolher seu rei. Pertencemos à "Ordem dos
Apóstolos", [2] representando nossas vestes e nossa pobreza a conduta que
tinham os Apóstolos enquanto estiveram neste mundo.
Admirou-se muito Félix de os dois homens terem ingressado em
Ordem tão elevada como aquela dos Apóstolos e disse-lhes estas palavras:
- A Ordem dos Apóstolos é a mais nobre de todas as Ordens e quem
nela professa não deve temer a morte, e sim mostrar o caminho da salvação
aos infiéis que estão no erro, bem como dar aos cristãos testemunho de vida
santa, tanto pelas obras como pelas prédicas: pois, o homem que esteja em
tal Ordem não pode deixar de pregar e fazer todas as boas obras ao seu
alcance.
Estas e muitas outras palavras disse Félix aos dois homens que se
diziam da Ordem dos Apóstolos.
- Senhor, retorquiram eles, não somos dignos de levar a mesma vida
perfeita dos Apóstolos; todavia, procuramos representar a imagem de sua
conversão, através de nossas vestes, de nossa pobreza e da peregrinação
que fazemos pelo mundo, indo de país em país. Temos esperança de que Deus
há de enviar ao mundo homens de vida santa, professos da Ordem dos
Apóstolos, os quais, donos de ciência e da boa palavra, saberão pregar e
converter os infiéis, com a ajuda de Deus; haverão também de dar bom
exemplo aos cristãos pela sua vida e palavras santas. Para que Deus se mova
de piedade e os cristãos desejem o surgimento desses homens, procuramos
representar a imagem dos Apóstolos.
Agradou-se bastante Félix do que lhe disseram os dois homens e
tendo com eles chorado copiosamente, acrescentou estas palavras:
- Ah, Senhor Deus, Jesus Cristo! Onde estão o fervor santo e a
devoção que costumavam existir nos Apóstolos, os quais para Vos amar e
conhecer não temiam nem os sofrimentos nem a morte? Bom Senhor Deus,
oxalá seja do vosso agrado a chegada breve dos tempos em que se torne real
a vida santa que estes homens com sua imagem representam.
Dito isso, Félix recomendou a Deus os santos homens e se dirigiu
para o local onde os animais selvagens procuravam escolher seu rei.

Capítulo I
DA ELEIÇÃO DO REI

Numa linda planície regada de águas alegres reuniram-se muitas


feras ansiosas de eleger seu rei. Pelo acordo da maioria, o Leão seria o rei;
entretanto, firmemente contrário a essa escolha, dizia o Boi:
- Senhores, à nobreza do rei convém a beleza corporal; ele deve ser
grande, humilde e não causar danos a seu povo. O Leão não é um animal
grande, nem vive de ervas: ao contrário, come animais. Sua palavra e voz nos
fazem tremer de pavor quando urra. É minha opinião que deveis escolher o
Cavalo como rei, pois é um animal grande, bonito e humilde; além disso, é
ligeiro, sem orgulho aparente e não come carne.
O que o Boi disse agradou sobremaneira ao Cervo, ao Cabrito e ao
Carneiro, assim como aos demais animais herbívoros.
Da. Raposa, [3] porém, apressou-se em se pronunciar diante de todos,
dizendo:
- Senhores, ao criar o mundo, Deus não o fez com a intenção de que
o homem fosse conhecido e amado; ao contrário, criou-o para que Ele próprio
fosse conhecido e amado pelo homem. E segundo esse entendimento, quis
Deus que o homem fosse servido pelos animais, apesar de que esse mesmo
homem se alimente de carne e de ervas. Não deveis, senhores, ter em conta
a opinião do Boi, que odeia o Leão pelo fato de este se alimentar de carne;
deveis antes seguir a regra e disposição que Deus instituiu nas criaturas.
[4]
O Boi, por sua vez, com seus companheiros, reagiu às palavras de
Da. Raposa, que alegou que o Boi defendia fosse o Cavalo feito rei por ser
herbívoro.
O Boi e seus companheiros estavam bem intencionados ao escolhê-lo,
caso contrário não haveriam de pregar que se fizesse rei ao Cavalo que,
como eles, se alimenta também de ervas. Não deviam acreditar em Da.
Raposa que preferia, dizia o Boi, fosse o Leão feito rei não por sua nobreza,
mas porque ela vivia dos restos deixados pelo Leão, uma vez alimentado com
as vítimas de suas caçadas.
Tantas foram as palavras de uma e outra parte, que a corte se
perturbou, interrompendo-se a eleição. O Urso, o Leopardo e a Onça, que
esperavam ser eleitos, pediram que se prolongasse a sessão o tempo
necessário para que se determinasse o animal mais digno de ser rei. Da.
Raposa, adivinhando que os três alongavam a eleição na esperança de um
deles vir a ser rei, disse o seguinte diante de todos:
- Procedia-se numa igreja catedral a eleição de um bispo, estando o
capítulo dividido porque os cônegos queriam que se fizesse bispo ao
sacristão daquela igreja, homem mui sábio nas letras e rico de virtudes. O
arcediago e o mestre do coro também pensavam eleger-se bispo, opondo-se
ambos à escolha do sacristão.
Aceitavam mesmo que se fizesse bispo um cônego de belo porte e sem
nenhuma ciência, além de fraco de caráter e luxurioso. O capítulo inteiro
estava atônito com o que diziam o arcediago e o mestre do coro. Tomando
então a palavra assim falou um dos cônegos:
- Se o Leão se torna rei e o Urso, a Onça e o Leopardo se opõem a
sua eleição, serão para sempre malquistos pelo rei. Se, porém, o Cavalo se
torna rei, e o Leão lhe faz alguma ofensa, como poderá ele se vingar não
sendo animal tão forte quanto o Leão?
[5]
Compreendendo o exemplo citado por Da. Raposa e temerosíssimos
do Leão, o Urso, a Onça e o Leopardo concordaram com sua escolha e
quiseram que o Leão se tornasse rei. Graças assim à forca do Urso e às
demais feras carnívoras, e a despeito dos animais herbívoros, elegeu-se rei
ao Leão, que logo permitiu a todos os animais carnívoros que comessem e
vivessem dos animais herbívoros.
Certo dia, estava o rei no parlamento tratando da organização da
corte. Durante todo o dia, até a noitinha, o rei e seus barões estiveram
reunidos, sem nada comer nem beber. Terminada a sessão, o Leão e seus
companheiros estavam famintos. Perguntou o Leão ao Lobo e à Raposa o que
poderiam comer. Responderam-lhe que era tarde para que pudessem
procurar alimento, mas que havia perto dali uma vitela, filha do Boi, e um
potrinho, filho do Cavalo, de que poderiam se alimentar à vontade. Enviou-os
lá o Leão e fazendo vir a vitela e o potrinho, todos os comeram. Enfureceu-
se o Boi com a morte da filha, o mesmo ocorrendo com o Cavalo. Juntos
foram ter com o homem para se porem a seu serviço e para que ele os
vingasse da ofensa que lhes fizera seu soberano. Tão logo se apresentaram
ao homem para servi-lo, este montou no Cavalo e levou o Boi a arar.
Aconteceu um dia de o Boi e o Cavalo se encontrarem e um
perguntou ao outro sobre a condição de cada um. Disse o Cavalo que
trabalhava demasiado, servindo a seu senhor, que o cavalgava o dia inteiro,
fazia-o correr para cima e para baixo, e o mantinha preso dia e noite.
Desejava muito livrar-se da servidão a seu amo e de bom grado voltaria a
submeter-se ao Leão. Mas, sendo este carnívoro, e tendo ele próprio obtido
algum voto na eleição do rei, hesitou voltar à terra onde reinava o Leão,
preferindo trabalhar sob o jugo do homem, que não comia carne de Cavalo, a
pôr-se ao lado do Leão, comedor de Cavalo.
Terminando o Cavalo de expor sua situação, disse-lhe o Boi que
trabalhava muito o dia todo arando, e que o amo não o deixava comer do
trigo produzido pela terra que ele arava. Quando terminava e lhe era
retirado o arado, só lhe restava servir-se das ervas que as ovelhas e as
cabras tinham pastado. Duramente reclamava o Boi de seu senhor e o Cavalo
o confortava o quanto estava ao seu alcance.
Enquanto os dois animais assim falavam, aproximou-se um
açougueiro a ver se o Boi estava gordo, pois o seu dono decidira vendê-lo. O
Boi contou então ao Cavalo que o seu amo o queria vender, fazê-lo matar e
ser comido pelos homens. Respondeu-lhe o Cavalo que o amo lhe
recompensava mal os serviços que dele recebera. Por longo tempo o Cavalo e
o Boi choraram; por fim, o Cavalo aconselhou o Boi a fugir e voltar ao seu
país, pois, era preferível estar sujeito ao trabalho e perigo de morte do que
a um senhor ingrato.

Capítulo II
DO CONSELHO DO REI

Eleito rei, o Leão pronunciou belo discurso diante de seu povo,


nestes termos:
- Senhores, é vossa vontade que eu seja rei. Sabeis todos que o
ofício de rei é muito perigoso e mui penoso. Perigoso porque, devido aos
pecados do rei, muitas vezes envia Deus à terra fome, doenças, guerras e a
morte; outro tanto ele faz devido aos pecados do povo. Assim, reinar é coisa
perigosa para o rei, e de igual modo o é para todo o seu povo. E porque é mui
penoso ao rei tanto governar a si como ao seu povo, peço a todos vós que me
deis conselheiros capazes de me ajudar e aconselhar, de sorte a serem a
salvação minha e de meu povo. Peço-vos também sejam eles homens sábios e
leais, dignos de se tornarem conselheiros e companheiros do rei.
As palavras pronunciadas pelo rei agradaram bastante aos barões e
ao povo, considerando-se todos satisfeitos com a eleição dele. Decidiu-se
que o Urso, o Leopardo, a Onça, a Serpente e o Lobo seriam conselheiros do
rei; os escolhidos juraram perante a corte dar-lhe conselhos leais em tudo
que pudessem.
Aborrecidíssima por não ser escolhida como conselheira do rei, Da.
Raposa fez o seguinte discurso diante da corte:
- Pelo que encontramos no Evangelho, Jesus Cristo, rei do céu e da
terra, quis ter a amizade e a companhia dos homens simples e humildes. Por
isso escolheu os Apóstolos, homens simples e pobres, mostrando assim que
lhes louvava a virtude, embora pudessem ser ainda mais humildes. Para vossa
instrução, pois, digo que, a meu ver, o rei deveria ter em seu Conselho
animais simples e humildes, que não se orgulhassem nem de seu poder nem
de sua linhagem, nem quisessem igualar-se a ele, tornando-se desse modo
exemplo de esperança e humildade aos animais simples e herbívoros.
Pareceu correto ao Elefante, ao Javali, ao Carneiro, ao Bode e aos
demais animais herbívoros o que dizia Da. Raposa. E juntos recomendaram ao
rei incluir como conselheira Da. Raposa, que falava bem e tinha grande
sabedoria. Esta, por sua vez, aconselhou como de bom alvitre que o Elefante,
o Javali, o Bode e o Carneiro também fizessem parte do Conselho do Rei.
Preocupação enorme tomou conta do Urso, do Leopardo e da Onça
ao saberem que Da. Raposa faria parte do conselho real: tinham pavor de que
ela, com sua eloqüência e habilidade, pudesse sujeitá-los à ira do rei,
principalmente porque, mais que todos ou outros animais, aconselhara ela a
sua eleição.
- Senhor, disse o Leopardo ao rei, existe em vossa corte o Galo, que
é uma bela figura e sábio; além de saber impor-se como senhor de muitas
galinhas.
Ao alvorecer, solta um canto claríssimo e belo, o que o torna muito mais
indicado para vosso conselheiro do que Da. Raposa.
O Elefante acrescentou de seu lado que seria salutar fizesse o Galo
parte do conselho do rei, pois haveria de mostrar como governar e ter a
rainha submissa, sem mencionar que, ao alvorecer, o despertaria para rezar
a Deus. Digna também de ser conselheira era Da. Raposa, animal sábio e
conhecedor de muitas coisas.
Finalmente, o Leopardo opinou que não convinha integrassem o
conselho do rei duas pessoas que, por natureza, se queriam mal, pois sua
animosidade acabaria perturbando aquele conselho.
Tomando por sua vez a palavra, disse Da. Raposa que era muito
apropriado houvesse no conselho real animais grandes e vistosos como o
Elefante, o Javali, o Bode, o Carneiro e o Cervo, porque a bela aparência fica
bem na presença do rei.
Decidiu o rei que Da. Raposa e seus companheiros integrassem a
corte e seu conselho. Estaria tudo acabado, não fosse o Leopardo sair
secretamente com estas palavras ao ouvido do rei:
- Senhor, certo conde estava em guerra com um rei, e não sendo tão
poderoso quanto este, valeu-se da sagacidade para combatê-lo. Assim é que
em segredo deu esse conde bons presentes ao secretário do rei, em troca
de saber todas as estratégias que o rei empregaria contra ele. Com isso, o
secretário tolheu a força do rei, que não conseguia dar fim à guerra contra o
conde.
Terminada a fala do Leopardo e tendo compreendido a alusão, o
Leão disse que o Galo faria parte de sua corte, mas recusou a participação
de Da. Raposa, para que ela não desse conhecimento das estratégias do rei e
de seus companheiros ao Elefante e aos animais herbívoros.

Capítulo III
DA TRAIÇÃO QUE DA. RAPOSA ARMOU CONTRA O REI
Muito se aborreceram Da. Raposa e seus companheiros por não
serem incluídos no conselho real. Desse momento em diante, concebeu ela em
seu ânimo a traição, desejando a morte do rei. Estas foram suas palavras ao
Elefante:
- A partir de agora haverá grande inimizade entre os animais
carnívoros e os herbívoros, pois o rei e seus conselheiros comem carne e vós
não tendes no Conselho nenhum animal da mesma natureza que a vossa e que
defenda os vossos interesses.
A resposta do Elefante foi que esperava da Serpente e do Galo que
defendessem seus direitos na corte do rei, por serem herbívoros. Retrucou
Da. Raposa contando que aconteceu de existir num país certo cristão que
tinha um sarraceno [6] em quem confiava cegamente e ao qual concedia
muitos favores. Por lhe ser contrário pela crença, o sarraceno não podia
estimá-lo: antes matutava a cada dia como matá-lo.
[7]
E acrescentou:
- Assim também, senhor Elefante, de linhagem diferente da vossa e
de vossos companheiros são a Serpente e o Galo que, embora não comam
carne, nem por isso deles podeis fiar-vos, devendo antes ter por certo que
estarão de acordo com tudo o que seja a vós todos prejudicial.
Preocupadíssimo com as palavras de Da. Raposa, pôs-se o Elefante a
refletir longamente nos males que lhe podiam advir e a seus companheiros da
eleição do rei e seus conselheiros. Entrementes, falou-lhe Da. Raposa que
não tivesse medo deles, e que se lhe aprouvesse ser rei, ela agiria de modo a
que isso ocorresse. O Elefante, porém, receou que Da. Raposa o traísse, pois,
segundo a natureza, devia ela preferir os animais carnívoros aos herbívoros.
Disse-lhe por isso ele:
- Aconteceu em certo país de um milhafre sair carregando uma
ratazana. Um eremita pediu a Deus fizesse a ratazana cair em seu colo. Em
resposta a suas preces Deus o atendeu e ele lhe rogou que transformasse a
ratazana numa linda donzela. Deus acatou-lhe novamente as orações e fez da
ratazana uma bela jovem.
- Filha, disse o eremita à jovem, queres o sol por marido?
- Não, senhor, pois as nuvens tolhem sua claridade.
Perguntou-lhe o eremita se queria a lua por marido; ela respondeu
que a lua não tinha claridade própria, mas a recebia do sol.
- Queres então, minha bela filha, as nuvens por marido?
Ela respondeu que não, porque o vento as carregava para onde
queria. Não quis também o vento por marido porque as montanhas impediam
seu movimento; nem quis as montanhas porque a estas os ratos roíam; nem
tampouco ao homem aceitou por marido porque matava os ratos. Pediu ela
afinal ao eremita que rogasse a Deus a tornasse em rata como era e lhe
desse um belo rato por marido.
Escutando esse exemplo, compreendeu Da. Raposa que o Elefante
suspeitava dela e temeu que a denunciasse. Teria de bom grado dito ao
Javali que fosse rei, da mesma forma que propusera ao Elefante. Mas, para
evitar que muitos soubessem de sua intenção, quis cuidar a todo preço que o
Elefante se tornasse rei. E assim falou:
- Em certo país um cavaleiro teve um lindo filho de uma mulher que
veio a falecer. O cavaleiro tomou outra mulher que odiava muito o garoto,
por outro lado extremosamente amado do pai. Ao completar o jovem vinte
anos, procurou a mulher um meio de levar o marido a expulsar o filho de sua
casa. Mentiu ao marido, dizendo que o jovem quisera abusar dela. O
cavaleiro, que tanto amava a mulher, acreditou imediatamente em tudo e
expulsou o filho de casa, ordenando-lhe não mais surgisse a sua frente.
Tomou-se de extrema cólera o jovem contra o pai, que sem razão o banira e
privara de todos os favores.
[8]
Serviu o exemplo para consolar em parte ao Elefante, que ficou na
esperança de tornar-se rei, como lhe dizia Da. Raposa. Perguntou-lhe, no
entanto, como haveria ela de fazer para que o rei morresse e ele viesse a
ser rei, sendo o Leão tão forte e rodeado de tão sábio Conselho, enquanto
ela era animal de pequeno porte e de apoucadíssima força. Respondeu-lhe
Da. Raposa com este exemplo:
- Deu-se num país que todos os animais concordaram em oferecer
diariamente um animal ao leão para que não se desse ao trabalho de caçar.
Com isso ele os deixava em paz. A cada dia os animais tiravam a sorte e o
sorteado entregava-se ao leão, que o devorava. Um dia a sorte recaiu sobre
uma lebre que, temerosa de morrer, retardou até o meio-dia a hora de ir ao
leão. Tomado de fome excessiva, irritou-se muito o leão com o enorme
atraso da lebre e lhe perguntou por que demorara tanto. Desculpando-se,
disse a lebre que havia perto dali um leão que se dizia rei daquele país e que
tentara apanhá-la. Furioso, e cuidando fosse verdade o que ouvia, pediu que
ela lhe mostrasse o leão. Saindo à frente do leão que a seguia, a lebre
chegou a uma grande reserva de água que formava uma bacia rodeada de
altos muros por todos os lados. Aproximando-se da água, as sombras da
lebre e do leão surgiram na superfície. Disse ela então:
- Senhor, eis na água o leão que deseja comer uma lebre!
Julgando o leão que sua sombra fosse outro leão, pulou dentro
d'água e atracou-se em combate com ele: acabou morrendo na água, graças à
astúcia da lebre.
Tendo ouvido o exemplo, o Elefante contou, por sua vez, este outro
a Da. Raposa:
- Certo rei tinha dois jovens que cuidavam de sua pessoa. Estando
um dia em seu trono diante de grande número de altos barões e cavaleiros,
um dos jovens sentado na sua frente viu uma pulga no manto de seda branca
que o rei usava. Pediu-lhe o jovem licença para aproximar-se, a fim de
apanhar a pulga.
Deu o rei licença ao jovem de aproximar-se e pegar a pulga. Quis vê-la
o rei e, mostrando-a aos cavaleiros, disse que era de espantar que um animal
tão pequeno ousasse aproximar-se do rei. E mandou fossem dados cem
besantes [9] ao jovem. Invejoso de seu companheiro, o outro jovem pôs no
dia seguinte um grande piolho no manto do rei, a quem repetiu as mesmas
palavras do companheiro.
O jovem mostrou o piolho ao rei que, esquivando-se bruscamente, disse
que ele merecia a morte por não lhe ter protegido as vestes contra os
piolhos; e ordenou que lhe aplicassem cem golpes de açoite.
Compreendeu Da. Raposa que o Elefante tinha medo de tornar-se
rei [10] e, perplexa de que em pessoa tão imensa como ele pudesse caber
tanto medo, disse:
- Conta-se que a Serpente, valendo-se de Eva que não passava de
simples mulher, fez recair a ira de Deus sobre Adão e todos os seus
descendentes. Ora, se a Serpente, com a ajuda de Eva, armou tamanha
maldade, bem se pode esperar que eu, com minha inteligência e manha,
consiga fazer que o rei seja vítima da ira de seu povo.
No momento em que Da. Raposa lhe contou o exemplo de Eva, o
Elefante decidiu trair o rei e disse a ela que tão logo desse morte ao rei, de
bom grado tomaria o lugar dele. Respondeu-lhe Da. Raposa que agiria para
que o rei morresse. Então o Elefante lhe prometeu presentes valiosos e
grandes honras, se conseguisse fazê-lo rei.

Capítulo IV
DE COMO DA. RAPOSA SE TORNOU PORTEIRA DA CÂMARA REAL

Deu-se ordem na corte do rei para que se fizesse camareiro ao


Gato e porteiro ao Cão. O Gato tornou-se camareiro porque devorava os
ratos que destruíam os tecidos e porque se parecia fisicamente com o rei. O
Cão se fez porteiro porque farejava de longe, latia e advertia o rei daqueles
que vinham a ele.
Estando os dois em seus cargos, saiu Da. Raposa em busca do Boi e do
Cavalo, que haviam deixado a corte do rei; pelo caminho encontrou o Boi que
voltava à corte. Da. Raposa e o Boi se reencontraram numa linda planície e
saudaram-se mui amavelmente, contando-lhe o Boi sua situação, isto é, como
fora espontaneamente ao homem, como este o mantivera por longo tempo em
servidão e, afinal, como quis vendê-lo a um açougueiro que pretendia matá-lo.
Da. Raposa, por sua vez, relatou-lhe a situação da corte, conforme se expôs
acima.
- Senhor Boi, perguntou Da. Raposa, qual é a vossa vontade?
Respondeu o Boi que voltava à corte do rei, fugindo do homem que
pretendera vendê-lo e fazê-lo morrer. Ao que disse Da. Raposa estas
palavras:
- Havia em certo reino um rei de maus costumes e um conselho
perverso. Devido à maldade deles, o reino todo padecia aflição e a cólera de
Deus, porque era incalculável o mal que o rei e seu conselho causavam ao
povo daquele país. Tanto tempo durou esse mal que o povo não o pôde mais
suportar e desejou a morte do rei e de seu conselho, por causa de sua vida
má e de seus maus exemplos.
Pelo que contou Da. Raposa, compreendeu o Boi que o rei e seu
conselho eram maus e hesitou em viver sob um regime perverso. Disse o
seguinte a Da. Raposa:
- Em certa cidade havia um bispo indigno de seu estado e cuja
malícia, desonestidade e mau exemplo dado a seu capítulo e ao povo da
cidade provocavam muito dano, perdendo-se boa parte do bem que gozaria
aquela cidade, se o bispo tivesse obedecido à regra e à doutrina que Jesus
Cristo deu aos Apóstolos e seus sucessores. Ora, um dia o bispo praticou
grande injúria e em seguida foi cantar a Missa. Um cônego julgou tão
abominável a falta do bispo que, deixando a cidade, foi participar da vida dos
pastores nos bosques. E dizia que preferia estar entre os pastores que
protegem as ovelhas dos lobos a viver com o pastor que mata suas ovelhas e
as dá ao lobo. Tendo contado esse exemplo, o Boi confiou a Da. Raposa que
sairia de vez daquele país, pois não queria submeter-se nem ao rei nem ao
seu Conselho, que governavam tão perversamente.
- Senhor Boi - disse Da. Raposa - já ouvistes a pergunta que um
eremita fez a seu rei?
- Que pergunta foi essa? - indagou o Boi.
- Numa elevada montanha - começou Da. Raposa - vivia um eremita,
homem de vida santa, que todos os dias ouvia muitas queixas a respeito do
rei daquele país. O rei era um homem pecador e de mau governo, e as
pessoas reclamavam muito dele ao eremita. Extremamente descontente com
a conduta perversa do rei, o santo homem decidiu devotar-se a induzi-lo ao
bom caminho. Desceu de sua ermida e veio para a bela cidade onde morava o
rei.
- Senhor - perguntou o bom homem ao rei - o que vos parece seja
mais agradável a Deus neste mundo: uma vida de eremita ou uma vida de rei
que rege com justiça o seu povo?
Refletiu longamente o soberano sobre a pergunta, antes de
responder; por fim, disse que a vida de um rei dedicado às boas obras é um
bem maior do que a vida de eremita.
- Senhor - tornou o eremita - muito me alegra vossa resposta,
segundo a qual torna-se evidente que um rei perverso causa mais dano que
todo o bem que qualquer eremita possa praticar em sua ermida. Eis por que
desci de meu retiro e vim a vós propondo permanecer longo tempo convosco
até que vós e vosso reino estejam no bom caminho. Dir-vos-ei as palavras de
Deus que vos levem ao amor a Deus e a conhecê-lo e temê-lo.
Por muito tempo permaneceu o eremita na corte, pregando as boas
palavras divinas que levaram finalmente o rei ao caminho reto e todo o seu
povo foi bem governado.
Depois de contar esse exemplo, assim falou Da. Raposa ao Boi:
- Senhor Boi, sois um animal que lembra um eremita; se vos agradar,
darei um conselho capaz de induzir o rei, meu e vosso soberano, ao bom
caminho.
E do que fizerdes há de resultar uma enormidade de bem.
Prometeu-lhe o Boi fazer todo o bem ao seu alcance, se com isso o
rei e seu povo voltassem à conduta correta. Então Da. Raposa aconselhou o
Boi que ficasse num prado viçoso, próximo de onde viviam o rei e seus
barões, e aí comesse e descansasse o suficiente para adquirir uma bela
aparência e poder mugir com vigor.
- Tão logo estejais recuperado e forte, senhor Boi, havereis de
mugir o mais vigorosamente que puderdes, três vezes ao dia e três vezes à
noite. Entrementes, falarei ao rei a respeito de vossa situação.
O Boi acolheu o conselho de Da. Raposa, que retornou à corte do rei.
Já bastante repousado e fortalecido, o Boi começou a mugir
fortemente. Ao ouvir seus mugidos, Da. Raposa apresentou-se ao rei e ficou
diante dele enquanto o Boi mugia. Tão apavorado estava o rei com os mugidos
que não conseguia deixar de tremer, envergonhado à frente dos barões pelo
receio de passar por poltrão.
Vendo o pavor do rei e não percebendo nenhum de seus barões o
motivo, Da. Raposa se aproximou do rei. O Galo cantou e o Cão latiu porque
ela se achegou ao rei. Este se agradou de tê-la perto e perguntou-lhe se
sabia a que animal pertencia aquela voz, pois, pela aparência, tinha ele a
impressão de que se tratava de alguém enorme e forte.
- Senhor, falou Da. Raposa, um jogral pendurou seu tambor numa
árvore do vale e o vento balançava esse tambor, jogando-o contra os galhos.
As batidas do tambor contra a árvore arrancavam dele um forte lamento que
repercutia por todo o vale. Um macaco habitante do vale, ouvindo o som,
chegou até o tambor; pela força da voz, ele julgou estivesse o tambor
carregado de manteiga ou de outra coisa boa de se comer. Quebrou-o,
achando-o vazio de todo. De igual modo, senhor (acrescentou ela ao Leão),
podeis pensar que essa voz que escutais é de um animal vazio, sem a força
que a voz aparenta. Sede forte e corajoso, que não fica bem a um rei
apavorar-se, sobretudo com algo que não sabe o que é.
Enquanto estas coisas dizia Da. Raposa ao rei, o Boi berrava e
urrava fortemente e de tal maneira que a região toda onde se encontrava o
Leão ressoou, fazendo-o estremecer junto com os companheiros. Não
conseguiu o rei esconder os sinais de pavor, dizendo que se a força daquele
animal tivesse o tamanho de sua voz, ele agia mal em permanecer naquele
local. Mais uma vez mugiu o Boi e mais uma vez estremeceu o Leão e os de
seu conselho. Da. Raposa não manifestou nenhum medo; pelo contrário,
manteve-se alegre à frente do rei que, assim como os demais animais, se
espantou muito de não vê-la aterrorizada. E o rei disse a Da. Raposa estas
palavras:
- Raposa, como se explica que não tenhas medo dessa voz tão
grande e estranha? Bem vês que eu, tão poderoso, o Urso, o Leopardo e os
outros animais, que são mais fortes do que tu, se apavoram com essa voz.
- Em resposta ao rei, Da. Raposa disse estas palavras:
- Um corvo fazia seu ninho num rochedo e a cada ano uma enorme
serpente comia-lhe os filhotes. O corvo ficava furiosíssimo com a serpente,
mas não ousava atacá-la, por não ser tão poderoso que a pudesse vencer pela
força das armas. Faltando-lhe, pois, a força, decidiu servir-se da astúcia
contra a serpente. Aconteceu certo dia de a filha do rei ir brincar com suas
amiguinhas num pomar, pendurando seu diadema de ouro, prata e pedras
preciosas no ramo de uma árvore. O corvo apanhou o diadema e atravessou
os céus com ele, enquanto uma multidão de homens o seguia para ver onde
ele poria o diadema, de que tanto gostava a filha do rei e que chorava
copiosamente ao vê-lo carregado. O corvo largou o diadema onde se achava a
serpente, e vindo os homens apanhá-lo, viram-na e a mataram. Assim, com a
ajuda dos outros e pela esperteza e malícia, vingou-se o corvo da serpente.
[11]
- Quanto a mim, acrescentou Da. Raposa ao Leão, tenho tanta
esperteza e malícia que se não pudesse vencer pela força das armas o animal
que tem essa voz tão poderosa e terrível, haveria de valer-me da esperteza
e malícia, de tal modo que lhe daria dura morte.
Ao exemplo de Da. Raposa, a Serpente que fazia parte dos
conselheiros do rei, opôs o seguinte:
- Vivia num lago uma garça há muito acostumada a pescar. A garça
começou a envelhecer e devido à velhice a caça muitas vezes lhe escapava.
Procurou ela então recorrer à esperteza e à astúcia, mas com isso acabou
encontrando a própria morte.
Pedindo-lhe o Leão que contasse a maneira pela qual a garça se
causara a morte, prosseguiu a Serpente:
- Essa garça, senhor rei, passou um dia até o anoitecer na beira do
lago, triste, sem decidir-se a pescar. Espantado com a garça que não pescava
como era seu costume, um caranguejo perguntou-lhe por que estava tão
pensativa. Chorando, respondeu-lhe ela que tinha grande pena dos peixes
daquele lago, dos quais há tanto tempo vivia e lamentava-lhes profundamente
a infelicidade e morte, pois dois pescadores pescavam noutro lago e
decidiram que, tão logo terminassem, viriam para aquele.
- Esses pescadores, dizia ela, são mestres na arte de pescar e
nenhum peixe escapa deles: apanharão todos os peixes deste lago.
Ouvindo tais palavras, assustou-se o caranguejo e foi prevenir os
peixes do lago que, reunindo-se vieram à garça pedir-lhe conselho.
Só existe uma solução: que eu vos leve a todos, um por um, para um
lago distante uma légua daqui. Nele há muito caniço e abundância de lodo, o
que impedirá os pescadores de fazer-lhes mal.
Tiveram os peixes por boa a solução e assim, todos os dias, a garça
apanhava quantos peixes desejava e, fingindo leva-los ao lago, pousava numa
colina, comia-os, voltando depois para pegar outros. Nisso ela se ocupou
durante longo tempo, vivendo sem ter o trabalho de pescar. Um dia, pediu o
caranguejo que ela o transportasse para o outro lago. A garça estendeu o
pescoço e o caranguejo agarrou-se a ele com suas duas mãos. Enquanto a
garça voava, tendo preso ao pescoço o caranguejo, este se espantava de não
ver o lago para onde supunha que a garça o levava. Ao se aproximarem do
lugar onde ela costumava comer os peixes, o caranguejo viu as espinhas dos
peixes comidos por ela e deu-se conta do logro. Então pensou consigo
mesmo: "É bom que escapes desta traidora que te vai comer, enquanto tens
tempo". Então apertou fortemente o pescoço da garça, partindo-a e
fazendo-a tombar morta em terra. Ao voltar para seus companheiros, o
caranguejo contou a traição praticada pela garça e que acabara levando-a à
morte.
- Senhora, disse Da. Raposa, no tempo em que Deus expulsou Adão
do paraíso, amaldiçoou também a Serpente que aconselhara Eva a comer do
fruto que ele proibira a Adão. Desse tempo em diante tornaram-se as
serpentes venenosas e horríveis de se verem, advindo da Serpente todos os
males existentes no mundo.
Foi por isso que um homem sábio fez expulsar do conselho uma
serpente muito estimada do rei.
Ouvindo isso, pediu o Leão que Da. Raposa contasse esse exemplo.
- Senhor - começou ela - certo rei ouvira falar de um homem santo
que era de grande sabedoria e mandou procurá-lo. Esse homem santo veio ao
rei, que lhe pediu ficasse junto dele, aconselhando-o a como governar seu
reino e repreendendo-o pelos vícios que porventura visse nele. Ficou o bom
do homem ao lado do rei com a intenção de aconselhá-lo a praticar boas
obras e a afastar-se do mal. Um dia, o rei reuniu o Conselho para discutir um
grande acontecimento que teria lugar no reino. Ao seu lado achava-se
enorme serpente com a qual o rei se aconselhava mais freqüentemente do
que com os outros. Vendo a serpente, aquele homem santo perguntou ao rei o
que significava ser rei neste mundo. Ele respondeu:
- Pôs-se rei neste mundo para que ele represente a Deus, isto é,
para que pratique a justiça na terra e governe o povo que Deus lhe deu para
governar.
- Senhor, tornou o sábio, qual foi o animal que mais se opôs a Deus,
quando Ele criou o mundo?
Respondeu o rei que fora a serpente.
- Senhor rei, prosseguiu o sábio, segundo a vossa resposta, deveis
matar a serpente. Cometeis grande pecado tendo-a em vossa corte, porque
se representais, enquanto rei, a imagem de Deus, deveis odiar tudo o que
Deus odeia, principalmente aquilo que Ele mais odeia.
Às palavras do santo homem, o rei matou a serpente, sem que ela,
seja por arte seja por astúcia, pudesse evitá-lo.
Depois que Da. Raposa contou o exemplo, o Boi berrou e urrou tão
vigorosamente que toda a região estremeceu, e o Leão e todos os demais
tiveram grande medo; de tal sorte que Da. Raposa disse ao rei que se ele
quisesse, ela iria ter com o animal de voz tão estranha e daria um jeito de
trazê-lo para fazer-lhe companhia. Tanto ao Leão quanto aos outros animais
agradou que Da. Raposa fosse ter com o animal que berrava. Ela então pediu
que se conseguisse trazer aquele animal à corte, ficasse ele seguro e a salvo,
e que ninguém lhe causasse mal algum nem vilania. À frente de seu Conselho,
o rei concedeu a Da. Raposa tudo o que ela pediu.
Da. Raposa veio até a campina onde o Boi descansava e este muito
se agradou de vê-la chegar. Saudaram-se cortesmente e ela lhe contou tudo
o que acontecera desde que o deixara.
- Belo amigo - disse Da. Raposa - ireis pra junto do rei, e tendo uma
postura de humildade, dareis pelos gestos a impressão de grande sabedoria.
Quanto a mim, dir-lhe-ei que vos arrependestes profundamente durante o
tempo em que estivestes afastado de suas propriedades. Diante de todos
havereis de pedir perdão ao rei de terdes ido viver com o homem e
prometereis não mais submeter-vos a outro soberano. Meu belo amigo,
continuou ela, falai e comportai-vos diante do rei e de sua corte de tal sorte
que todos se agradem de vossas palavras e gestos. Finalmente, narrai ao rei
a situação dos homens, aconselhando-o a tornar-se amigo do rei deles.
O Boi e Da. Raposa vieram à corte. Vendo-os se aproximarem, o rei
e seus barões reconheceram o Boi e sentiram-se tolos por haverem tido
medo dele.
O rei ficou maravilhado de o Boi ter uma voz tão alta, forte e terrível.
Fazendo ao seu senhor a reverência que se deve a um rei e em resposta à
pergunta que este lhe fez, o Boi contou o que lhe acontecera enquanto
estivera a serviço do homem. Disse-lhe o rei o quanto se espantava de ver-
lhe mudada a voz, ao que o Boi retrucou que berrava por medo e contrição,
pois tinha-se na conta de culpado por haver deixado longamente o rei e sua
corte, em troca de outra soberania. O temor e a contrição estremeciam-lhe
a coragem, provocando-lhe a mudança da voz - o que era sinal de medo,
terror e pavor, saídos de um coração onde havia um ânimo temeroso e
arrependido. E pediu perdão ao rei, que lho concedeu diante de toda a corte,
enquanto lhe perguntava sobre a situação do rei dos homens. Em resposta,
falou o Boi que estava certa a Serpente ao dizer que o homem era o animal
pior e mais falso existente neste mundo. Ao que o Leão lhe pediu que
contasse porque a Serpente fizera tal afirmação contra o homem.
- Senhor, disse o Boi, aconteceu certa feita de um urso, um corvo,
um homem e uma serpente caírem num fosso. Por ali passou um santo homem,
que era eremita, olhou para o fosso e viu os quatro que dele não podiam sair.
Todos eles pediram ao santo homem que os tirasse dali, prometendo cada um
boa recompensa.
Assim, o eremita retirou do fosso o urso, o corvo, a serpente e, quando
foi para tirar o homem, disse-lhe a serpente que não o fizesse, caso
contrário seria mal-recompensado. Não dando crédito ao seu conselho, o
eremita retirou o homem do fosso.
O urso trouxe uma colmeia carregada de favos de mel ao santo
homem que, tendo-se servido deles à vontade, dirigiu-se a uma cidade onde
pretendia pregar.
À entrada da cidade, trouxe-lhe o corvo um diadema precioso,
pertencente à filha do rei e que ele tirara da cabeça dela. O eremita tomou
o diadema com grande satisfação, pois era muito valioso. Um homem andava
percorrendo aquela cidade aos gritos, dizendo que fosse quem fosse que
tivesse aquele diadema, que o devolvesse à filha do rei e, em troca, ele lhe
daria boa recompensa; mas se alguém o mantivesse escondido e fosse
descoberto, haveria de padecer grande castigo. O bom eremita veio até uma
rua onde morava o homem que ele retirara do fosso e que era ourives.
Confiou-lhe secretamente o diadema e o ourives o levou à corte, acusando o
santo homem, que foi preso, espancado e encarcerado. A serpente, salva do
fosso pelo santo homem, procurou a filha do rei que dormia e picou-lhe a
mão. Ela chorou e gritou vendo sua mão inchar de forma impressionante. O
rei ficou muito nervoso com a doença da filha, cuja mão inchara com o
veneno e mandou anunciar pela cidade que daria ricos presentes a qualquer
pessoa que lhe curasse a filha. Enquanto o rei dormia, aproximou-se a
serpente e disse-lhe ao ouvido que estava preso nos cárceres da corte um
homem capaz de com suas ervas curar-lhe a filha. Essas ervas dera-as a
serpente ao bom homem, instruindo-o para que as passasse sobre a mão da
filha do rei e pedisse ao rei que punisse o ourives que tão mal lhe retribuíra
o bem recebido. Tudo se passou segundo as instruções da serpente: o santo
homem foi solto e o rei aplicou a justiça contra o ourives.
O exemplo contado pelo Boi contra o homem foi de imenso
contentamento de todo o conselho e do Leão que lhe perguntou se, a seu ver,
ele devia ter medo do rei dos homens. Respondeu-lhe o Boi que era mui
perigoso ser inimigo do rei dos homens, porque nenhum animal é capaz de se
defender do homem mau, poderoso e sagaz.
Refletiu demoradamente o Leão sobre o quanto lhe contara o Boi,
dando-se Da. Raposa conta de que ele estava apavorado com o rei dos
homens. Por isso disse-lhe o seguinte:
- Senhor, o homem é o mais orgulhoso dos animais e aquele onde se
encontra mais avareza; assim, se for do agrado vosso e do vosso conselho,
seria bom que se enviassem mensageiros com jóias para presentear o rei dos
homens, manifestando-lhe a boa vontade de vossa parte com as jóias
enviadas. Com isso, o rei dos homens conceberia amor em seu ânimo para
estimar a vós e a vosso povo.
Ao rei e ao seu conselho pareceu bom o discurso de Da. Raposa.
Mas, opondo-se replicou o Galo:
- Em certo país, a força e a astúcia defrontaram-se diante do rei.
Dizia a força que ela, por natureza, era superior à astúcia; esta defendia o
contrário.
O rei, por sua vez, querendo saber qual das duas era superior à outra,
destinou-as ao combate, e a astúcia venceu a força. Por isso, senhor rei,
prosseguiu o Galo, se ficardes amigo do rei dos homens e lhe enviardes
mensageiros, ele também há de enviar os seus até vós, e estes saberão, em
vendo a vós e a vossos barões, que sem engenho nem arte não podereis
defender-vos contra o rei dos homens, que luta com engenho e arte, e com
isso domina todos os que se batem pela força, mas sem engenho nem arte.
Da. Raposa alegou, por sua vez, que Deus fez o que fez pelo poder,
sem artifício nem astúcia; convém, por isso que, de acordo com a natureza,
sejam mais poderosos no combate todos os que lutam com armas
semelhantes às de Deus.
O exemplo de Da. Raposa satisfez bastante ao Leão, que desejou, a
todo custo, enviar presentes e mensageiros ao rei dos homens. Perguntou
quais conselheiros e que jóias lhe aconselhava enviar ao rei dos homens.
Respondeu Da. Raposa que cabia ao Boi dar conselho, pois ele conhecia os
costumes dos homens e do que eles mais gostavam. Questionado pelo rei a
esse respeito, disse o Boi:
- Senhor rei: é próprio dos reis dos homens, quando enviam
mensageiros, remetê-los de entre os mais nobres do seu Conselho. Entre os
conselheiros mais nobres que tendes, parece-me que se contam a Onça e o
Leopardo. Doutra parte, o Gato parece-se convosco e o rei muito vos será
reconhecido se o enviardes a ele de presente, juntamente com o Cão, que é
caçador, e aos homens agrada muito o caçar.
Assim disse o Boi e assim fez o Leão: enviou a Onça e o Leopardo ao
rei como mensageiros e o Cão e o Gato como presentes. Tão logo partiram da
corte, o rei fez do Boi seu camareiro e Da. Raposa passou para o posto antes
ocupado pelo Cão.

Capítulo V
DOS MENSAGEIROS QUE O LEÃO ENVIOU AO REI DOS HOMENS

O leão instruiu o Leopardo e a Onça sobre como deviam levar sua


mensagem com estas palavras:
- A sabedoria de um senhor traduz-se por mensageiros sábios, que
sejam bons oradores, bons conselheiros e bons conciliadores. A nobreza de
um senhor traduz-se por mensageiros que cumpram com honradez sua
missão, vistam-se bem e tenham uma comitiva bem-nutrida e equipada. Tanto
os mensageiros como a comitiva não cometerão atos de avareza, luxúria,
soberba, ira, nem de quaisquer outros vícios. Tudo isso e muito mais se
impõe aos mensageiros de um príncipe nobre, a fim de que sua missão caia no
agrado do príncipe e da corte aos quais são enviados.
Tendo o Leão instruído seus mensageiros quanto à maneira como
deviam falar ao rei dos homens e como deviam comportar-se, eles deixaram
a corte e viajaram longamente, percorrendo muitos e diferentes países.
Tanto andaram até que chegaram a uma cidade cujo rei possuía enorme
parlamento. À entrada da cidade surpreenderam mulheres desvairadas e de
bordel que diante deles pecavam com homens. Espantados com o que viam,
disse o Leopardo ao seu companheiro:
- Um burguês tinha por mulher uma senhora a quem muito amava.
Ele alugava a uma mulher desregrada uma casa próxima do lugar onde ele
morava. Sua mulher via freqüentemente entrarem homens desregrados na
casa da mulher desregrada e tomou-se de vontade de entregar-se à luxúria,
permanecendo por muito tempo nesse pecado. Um dia seu marido a
surpreendeu pecando com um homem. Furiosíssimo o burguês com a queda de
sua mulher, escutou dela estas palavras:
- Certa vez brigavam num prado dois bois selvagens, e em
decorrência dos duros golpes trocados, perdiam sangue da fronte, que se
derramava pela relva graciosa do solo onde se batiam. Uma raposa lambia
esse sangue. Sucedeu que num dos embates os bois tiveram entre si a raposa
e a feriram nos flancos.
Foi violento demais o golpe recebido e ela morreu. Mas antes teve
tempo de reconhecer que era culpada da própria morte.
- Senhor Leopardo, disse o Cão, é espantoso como os homens que
acreditam em Deus não se dão conta de que permitem a estas mulheres
desregradas pecar na presença das pessoas que entram e saem da cidade.
Ao que parece, o senhor desta cidade e seus habitantes são também
luxuriosos, usando despudoradamente da luxúria como o fazem os cães.
Enquanto dizia o Cão tais palavras, entraram na cidade e chegaram a
um albergue. Em seguida, o Cão e o Leopardo, com as jóias que traziam,
foram procurar o rei dos homens.
Muitos dias permaneceram os mensageiros naquela cidade, antes
que pudessem falar com o rei que, por causa de sua nobreza, tinha-se em
alta conta e não se deixava ver senão raramente. Aconteceu um dia de os
mensageiros ficarem esse dia todo à porta do rei, sem lhe poderem falar;
isso os deixou assaz descontentes dele e se agastaram de estar em sua
corte. Um homem ofendido, que lá estava também há muito tempo sem
conseguir falar com o rei, disse na presença dos mensageiros estas palavras:
- Deus, que é rei do céu e da terra e de tudo o que existe, é
humilde. Todas as vezes que um homem quer vê-lo ou falar-lhe, esse homem
pode avistá-lo e contar-lhe suas necessidades. É um rei sem porteiros que se
possam subornar com dinheiro, nem conselheiros que cometam malvadezas e
engodos por propina.
Não dá crédito a nenhum homem adulador; não nomeia meirinhos,
juízes, alcaides ou procuradores que sejam orgulhosos, vaidosos, avaros,
luxuriosos, injustos.
Bendito seja um rei como este e benditos sejam os que o amam, o
conhecem, o honram e o servem!
Diante das palavras desse homem, compreenderam os mensageiros
que o rei era um homem injusto, e a Onça disse ao Leopardo:
- Certo rei desejava dar sua filha por esposa a outro rei. Enviou
secretamente um cavaleiro ao país desse rei, a fim de informar-se sobre
suas condições.
O cavaleiro interrogou os camponeses e o povo quanto ao
comportamento do rei e todos lhe falaram mal dele. Um dia o cavaleiro
encontrou dois jograis voltando da corte do rei, que lhes dera dinheiro e
roupas. Perguntados pelo cavaleiro a respeito dos costumes do rei,
reponderam-lhe que ele era generoso, caçador e amante de mulheres; e
muitos outros elogios ainda fizeram do rei. Somando tais louvores e as
censuras do povo, concluiu o cavaleiro que o rei era pessoa má e de costumes
vis. E voltando ao seu senhor, contou-lhe o que ouvira sobre o rei: desistiu
então o soberano de entregar a filha a um rei de má conduta, que a isso não
lhe permitia a consciência.
Conseguiram afinal os mensageiros chegar à presença do rei e
deram-lhe os presentes enviados pelo Leão, juntamente com uma carta da
parte deste, onde se lia:
- Numa província serviam ao rei inúmeros e honrados barões, todos
homens mui poderosos. Para intimidá-los e assim manter a paz e a justiça em
seu reino, procurou o rei ficar muito amigo do imperador. Esse imperador
estimava-o bastante pela satisfação que lhe causava e por seus bons
costumes. Em vista disso, não ousavam os barões desobedecer a nada que
lhes ordenasse o rei e submetiam-se a ele: desse modo a paz reinava no país.
Mal ouvira o recado que o Leão lhe transmitiu e tendo aceito seus
presentes, deu o Gato a um trapeiro que estava por perto e o Cão a um
cavaleiro que gostava de caçar. Grande foi o descontentamento dos
mensageiros ao verem o Gato ser dado ao trapeiro, homem sem honra,
quando o Leão o enviara justamente por lhe ser parecido. Depois de
conversarem por bom tempo com o rei a respeito do que os trouxera ali, os
mensageiros voltaram para o albergue onde foi ter com eles o Cão, dizendo-
lhes estar descontentíssimo de ter sido dado pelo rei ao cavaleiro que o
obrigava a praticar a caça contra o povo miúdo do Leão. E não lhe parecia
certo agir contra o senhor a quem pertencera.
Certo dia, o rei dos homens reuniu imensa assembléia e convidou os
mensageiros. Numa sala esplêndida comiam o rei e a rainha, juntamente com
inúmeros cavaleiros e suas senhoras; diante deles comiam os mensageiros.
Durante a refeição, os jograis circulavam pela sala cantando, tocando e
recitando canções grosseiras e contrárias aos bons costumes. Louvavam o
que devia ser censurado e reprovavam o que devia ser louvado. E o rei e a
rainha e todos os demais riam-se e divertiam-se com a atitude dos jograis.
Em meio a essa diversão toda, eis que surge na sala um homem
pobremente vestido e de barba longa, que na presença de todos se põe a
dizer:
- Não se esqueçam os aqui presentes: rei, rainha, seus barões e
todos os demais grandes ou pequenos que nesta sala comem, que Deus criou
todos os alimentos que se encontram nestas mesas. E criou-os diferentes e
agradáveis ao paladar, fazendo-os vir de terras distantes, a fim de ficarem
a serviço do homem e este ao de Deus. Não creiam nem o rei nem a rainha
que Deus se esquece da desonestidade e do desregramento que ocorrem
nesta sala, onde ele está sendo desonrado: pois aqui ninguém recrimina o que
deve ser recriminado, nem louva o que deve ser louvado, nem dá graças a
Deus pela honra que neste mundo concedeu ao rei, à rainha e a todos os
outros.
Mal terminara o bom homem sua fala, um escudeiro sábio ajoelhou-
se diante do rei, pedindo lhe desse um emprego na corte, a fim de louvar o
que merecia louvor e censurar o que merecia censura. O rei não acolheu o
desejo do escudeiro, receoso de que ele lhe censurasse as faltas que se
acostumara a cometer e nas quais se deleitava. Queria permanecer assim
até o fim de seus dias, quando então se propunha fazer penitência dos seus
pecados.
No impasse de o escudeiro solicitar emprego e o rei recusar-lhe, o
meirinho da cidade veio até o rei e apresentou-lhe um homem que matara
muito injustamente um cavaleiro. O rei imediatamente o mandou à forca,
mas ele lhe dirigiu estas palavras:
- Senhor rei, é próprio de Deus perdoar quando o homem lhe pede
clemência. A vós que estais no lugar de Deus na terra, peço-vos perdão, e
para que Deus também vos perdoe, deveis perdoar-me.
Esta foi a resposta do rei:
- Deus é justo e misericordioso. Faz justiça se perdoa a quem não
comete falta de propósito, ou quando erra por acidente ou por aventura, e
arrependido pede perdão - então a misericórdia de Deus o perdoa. Mas a
justiça de Deus não estaria em harmonia com a misericórdia, se a
misericórdia divina perdoasse o homem que peca conscientemente, confiado
na esperança de pedir depois perdão. Como tu te propuseste matar o
cavaleiro e puseste depois em mim a esperança de que te perdoasse, por isso
não és digno de meu perdão.
Entenderam os mensageiros pelas palavras do rei que ele se
manifestava contra o que dissera o escudeiro e que não queria dar-lhe o
emprego solicitado.
Tendo o rei e os demais comido, saíram da sala e os mensageiros
voltaram ao seu albergue. E conversando diziam-se como era grande a
nobreza da corte, e como o rei seria poderoso em vassalos e riquezas, se
fosse um homem sábio e temente a Deus. À chegada dos dois ao albergue,
encontraram o hospedeiro que chorava copiosamente, manifestando grande
dor.
- Senhor hospedeiro, perguntaram-lhe, por que chorais? O que
tendes?
- Senhores mensageiros, respondeu ele, o rei convocou nesta cidade
uma enorme assembléia, reunindo gente oriunda de terras longínquas. São
imensas as despesas feitas pelo rei, o que o levou a arrecadar impostos
pesados nesta cidade. A mim custarão mil soldos, que terei de tomar
emprestados dos judeus.
- Mas senhor hospedeiro, disseram os mensageiros, o rei não tem
um tesouro?
O hospedeiro respondeu que não e que tomava empréstimo aos
vassalos. Fazia coletas sempre que convocava uma assembléia, o que
acontecia duas vezes ao ano. Desse modo arruinava o povo, pois nas
assembléias se faziam despesas enormes, e levava todo o reino à pobreza.
- Belo amigo, perguntou a Onça, para que servem as assembléias que
o rei convoca todos os anos?
O hospedeiro respondeu que para nada; ao contrário, resultavam em
grande prejuízo, pois as pessoas se empobreciam, e uma vez pobres,
praticavam muitos delitos e fraude e o rei passava a odiar seu povo; e tanto
dava e dispensava o rei às assembléias que não lhe bastava sua renda,
obrigando-o a tirar de uns para dar aos outros. E quando se esperava que o
rei diria coisas novas e trataria de algum fato importante, ele nada dizia.
Então, inteiramente decepcionados, deixavam-no com caçoadas e desprezo.
Ouvindo tais palavras a respeito do rei e dos homens desse país, os
mensageiros desprezaram-nos e o Leopardo disse ao hospedeiro:
- Que grande tristeza para este reino é não ter um senhor de bons
costumes que traga paz e justiça.
- Senhor, tornou o hospedeiro, ninguém é capaz de calcular o mal
provocado por um príncipe ruim: seja pelo mal que faz, seja pelo bem que
poderia fazer e não faz. E assim, de um príncipe ruim provém o mal de duas
maneiras. Este rei a quem fostes enviados confia demasiado na sua opinião e
tem um Conselho que é perverso, mau e composto de homens vis: cada um
tem a pretensão de ser mais rei que o próprio rei e juntos lhe consomem o
reino. O rei não dá atenção a isso, preocupando-se apenas em caçar, praticar
esportes, entregar-se à luxúria e vangloriar-se.
Depois de o rei ter dormido, vieram os mensageiros ao seu palácio,
mas não puderam entrar e falar com o rei senão depois de subornar os
porteiros.
Conduzidos à presença do soberano, este deu maior honra ao Leopardo
do que à Onça, dirigindo-lhe um olhar mais afável, e fazendo-o sentar-se
mais perto de si. A Onça, tomada de inveja, irritou-se contra o rei, pois lhe
parecia que este a devia honrar tanto ou mais do que ao Leopardo. Enquanto
atendia aos mensageiros, oito pró-homens, enviados por quatro cidades,
vieram a ele e se queixaram dos oficiais reais de suas cidades, homens
malvados e pecadores que devastavam o país. Esses oito pró-homens pediam
ao rei, em nome de todas as cidades, que lhes desse bons oficiais. O rei
remeteu-os ao seu Conselho, dizendo-lhes que este atenderia suas
reivindicações. Lá chegados, e exposta a razão de suas presenças, foram
duramente repreendidos pelo Conselho, porque deste faziam parte amigos
dos oficiais das quatro cidades, e era com endosso deles que os oficiais
praticavam o mal e com eles repartiam o dinheiro ganho desonestamente. E
sem nada conseguirem do rei os oito pró-homens retornaram a suas terras.
Disse então o Leopardo:
- Senhor rei, que desejais dizer ao meu soberano?
O rei dos homens respondeu-lhe que saudasse o rei e pedisse, de
sua parte, que lhe enviasse um urso robusto e um lobo, pois ele tinha um
javali fortíssimo que lhe agradaria pôr em combate com o urso mais forte
que encontrasse. Tinha também um cachorro caçador que gostaria de fazer
enfrentar o pior lobo que existisse na corte do Leão. Os dois mensageiros
despediram-se do rei e partiram descontentes de sua corte, pois, ali os
retivera por longo tempo sem nada lhes dar nem presente algum enviar a seu
soberano. Pelo contrário: pareceu-lhes que o rei dos homens pretendia
subjugar o Leão, soberano deles.
No caminho de volta a sua pátria, os mensageiros se encontraram
com os oito pró-homens que também voltavam irritadíssimos e
decepcionados com o rei e seu Conselho. Durante todo o tempo em que
juntos caminharam, falaram do que disseram o rei e o seu Conselho e de seu
comportamento, não poupando uns e outros palavras de crítica a todos eles.
Por fim o Leopardo perguntou aos pró-homens:
- Senhores, parece-vos que o rei seja culpado do prejuízo que
resulta do seu mau governo?
Um deles deu estas palavras como resposta:
- Havia em certa cidade um burguês nobre e riquíssimo que, ao
morrer, deixou tudo o que tinha ao filho. Muitas pessoas vieram ter com
esse filho: uns queriam arranjar-lhe esposa; outros recomendavam-lhe
entrar em uma ordem religiosa. O jovem acabou decidindo vender o quanto
possuía e construir um albergue e uma ponte. O albergue seria para acolher
os peregrinos que passavam pela cidade, vindos de além-mar; a ponte seria
para os peregrinos passarem por ela e não se afogarem na água, pois à
entrada da cidade havia um rio e muitos peregrinos que iam ou vinham de
Jerusalém nele se afogavam.
Tendo o filho do burguês construído o albergue e a ponte, sonhou
certa noite que ganharia méritos diante de Deus pelo bem que faria com
aquelas realizações.
Ouvindo tais palavras, compreendeu o Leopardo que o rei dos
homens haveria de padecer no inferno, de tão grandes que eram os prejuízos
para sempre causados pelos maus costumes que seu Conselho instaurava no
país. E disse que a pena reservada ao rei e ao seu Conselho era incalculável.
Acrescentou ainda a si mesmo que preferia ser um animal irracional -
embora nada restasse de si depois de morto - a ser um rei dos homens, em
quem houvesse tanta culpa quanto era o mal resultante da maldade do rei.
Os mensageiros e os pró-homens despediram-se e partiram
agradavelmente, levando a recomendação do Leopardo para que confiassem
em Deus, que em breve haveria de dar um soberano bom, com bom Conselho
e bons oficiais: não desesperassem de Deus, que não permitiriam que um
príncipe perverso vivesse longamente - e muito vivendo, muito mal causasse.
Logo depois que o Leão enviou seus mensageiros com presentes ao
rei dos homens, Da. Raposa, porteira do rei, disse-lhe que o Leopardo tinha
por esposa a mais bela fêmea do mundo. E tantos louvores teceu de Da.
Leoparda ao rei que este se enamorou dela e a tomou por mulher, a despeito
da rainha e de todo o seu Conselho. Grande temor o Conselho passou a ter de
Da. Raposa, ao vê-la induzir o rei a cometer falta tão grande contra sua
esposa e contra o Leopardo, que lhe era leal servidor.
- Meu belo amigo, [12] disse o Boi a Da. Raposa, receio muitíssimo
que o Leopardo vos mate, ao saber que induzistes o rei a forçar a sua
mulher. Tornou-lhe ela em resposta:
- Certa vez uma donzela cometeu uma traição contra a rainha a
quem servia. Todavia, essa donzela privava dos favores do rei, o que fazia a
rainha temê-la.
Assim, por recear o rei, a rainha não se vingava da donzela.
Voltaram os mensageiros e prestaram conta de sua missão. O
Leopardo dirigiu-se ao seu abrigo, onde esperava encontrar sua mulher, a
quem muito amava.
A Doninha e todos os outros que faziam parte de seu abrigo, abatidos
de grande tristeza à vista de seu senhor, contaram ao Leopardo a desonra
que lhe fizera o Leão, em submetendo à força sua esposa. Profundamente
irado contra o rei, perguntou o Leopardo à Doninha se sua mulher, ao tomá-la
o rei a seu serviço, fora irada ou de boa mente.
- Senhor, disse a Doninha, a Leoparda estava iradíssima com a
imposição do rei e chorou copiosamente, lamentando separar-se de vós, a
quem amava acima de todas as coisas.
Cresceu ainda mais a fúria do Leopardo, ao saber que sua esposa
fora posta à força a serviço do rei; se ela tivesse ido de boa mente, ele não
teria sofrido tanto. Nesse estado de ira, pôs-se o Leopardo a cogitar como
se vingaria do Leão, que tamanha traição lhe fizera.

Capítulo VI
DO COMBATE DO LEOPARDO E DA ONÇA

O Leopardo veio para a corte do rei; vendo-o, disse Da. Raposa


secretamente ao rei estas palavras:
- Senhor, por causa de vossa união com a Leoparda, caí na ira do
Leopardo. Se vós não me honrardes na frente dele e não vos agradardes de
ter-me mais perto de vós que nenhum outro, receio que o Leopardo me
matará.
Daí em diante o Leão colocou Da. Raposa em seu Conselho,
mantendo-a perto de si; com isso o Leopardo não ousava agredi-la nem matá-
la. Por conselho dela, o Leão nomeou porteiro ao Pavão, que tem bom olfato.
O Conselho e os demais barões presentes aborreceram-se da honra que o rei
prestava a Da. Raposa.
Particularmente contrariado ficou o Leopardo, quando lhe contaram
que fora ela a causa da união do rei com sua esposa.
O Leopardo veio à presença do rei e de muitos honrados barões, em
cuja presença acusou o rei de traição por lhe haver traidoramente tomado a
mulher; e que se houvesse na corte algum barão que desejasse lavar o rei
dessa traição, ele o enfrentaria e o levaria a proclamar a traição do rei. E
para armar o desafio, lançou sua prenda ao rei. Enfureceu-se o Leão com o
Leopardo que, à frente de todo o povo, o acusara de traição, envergonhando-
o imensamente.
Disse o rei a seus barões:
- Quem de vós quer lutar contra o Leopardo que me acusa de
traição? - Todos os barões se calaram até que Da. Raposa disse estas
palavras:
- Traição é coisa que muito aborrece a Deus, e grande desonra traz
a todo o povo ver seu soberano acusado de traidor. Assim como o Leopardo
causa grande desonra a seu senhor e com isso se põe em perigo de morte, da
mesma forma faz grande honra a seu rei todo o barão que o queira limpar de
traição e que, para fazê-lo se lance em combate, recebendo depois grande
recompensa.
Pela grande desonra que o rei padecia ao ser acusado de traição
pelo Leopardo, e porque a Onça irritara-se contra este que fora mais
honrado do que ela pelo rei dos homens - a Onça decidiu combatê-lo e limpar
o rei da traição. Todavia, doía-lhe a consciência, pois sabia que o rei
perpetrara perfídia e engano contra o Leopardo, que lealmente o servira
durante toda a vida.
Para o campo de batalha foram o Leopardo e a Onça, clamando o
povo:
- Agora aparecerá o vencedor, a verdade ou a mentira!
O Galo perguntou à Serpente quem lhe parecia que havia de vencer
o combate; ao que ela respondeu:
- Decidiu-se o combate para que a verdade confunda e destrua a
falsidade. Deus é a verdade. Todo aquele que sustenta a falsidade luta
contra Deus e contra a verdade.
Estas palavras, ditas sigilosamente ao Galo pela Serpente,
chegaram ao Leopardo e à Onça; grande consolo delas tirou o Leopardo; já a
Onça, abatida de escrúpulos e tristeza, teve medo de que os pecados do rei
se tornassem causa de sua desonra e morte.
[13]
O combate arrastou-se por todo aquele dia, até a hora das
completas.
[14]
A Onça defendia-se furiosamente do Leopardo, a quem teria vencido e
morto, se não a atormentassem os remorsos. Quanto ao Leopardo,
sustentavam-no a verdade e o ódio contra o rei, animando-o quando pensava
desfalecer; tão forte sentia-se, confiado de sua boa razão, [15] que dava
mostras de que nada poderia vencê-lo. Por fim, venceu ele a Onça,
obrigando-a a dizer diante de toda a corte que o rei, seu senhor, era falso e
traidor. O combate deixou o rei extremamente confuso e envergonhado. O
Leopardo matou a Onça, e todo o povo se envergonhou com a desonra de seu
senhor.
Tamanha foi a vergonha e o embaraço do Leão à frente de seu povo
e tomou-se de tanto ódio contra o Leopardo que a tal ponto o desonrara, que
se não pôde conter e diante de todos matou o Leopardo, já exausto e
incapaz de defender-se. Sentiram-se todos os presentes enganados com o
crime cometido pelo rei, e cada um passou a desejar submeter-se a outro
soberano, pois é coisa muitíssimo perigosa a um povo sujeitar-se a um rei
injusto, colérico e traidor.
O rei passou toda a noite em grande ira e aflição. Na manhã
seguinte, reuniu seu Conselho e pediu que o instruíssem sobre o que o rei dos
homens lhe mandara pedir, isto é, que lhe fossem enviados um urso e um
lobo.
- Senhor, disse a Serpente, que era o mais sábio de seus
conselheiros, há em vossas terras muitos ursos e muitos lobos. Dentre eles
podeis escolher à vontade aqueles que quiserdes enviar.
Da. Raposa, por sua vez, disse que o rei dos homens é o mais nobre e
poderoso de quantos soberanos existem neste mundo. E acrescentou:
- Por isso é mister, senhor, que lhe envieis o lobo e o urso mais
sábios e fortes que tenhais, pois do contrário havereis de correr o risco da
censura e da ameaça.
Perguntou-lhe o rei quais eram o urso e o lobo mais fortes e sábios
de seu reino; ao que respondeu Da. Raposa dizendo que com certeza o Urso e
o Lobo de seu Conselho eram os mais sábios e fortes de todo o reino.
Achou bom o rei que se enviassem o Urso e o Lobo de seu Conselho.
Nem um nem outro quiseram esquivar-se, porque amavam a honra e temiam,
em se esquivando, fossem tachados de covardes. Acrescentou Da. Raposa ao
rei que, da mesma forma que estava enviando ao rei dos homens as criaturas
mais nobres de todo o reino, assim também convinha enviar o mais sábio
mensageiro da corte para acompanhar o presente do Urso e do Lobo. Anuiu o
rei e confiou à Serpente essa missão.
Antes de deixar a corte como mensageira, a Serpente disse o
seguinte:
- Certa vez uma raposa encontrou em meio à bela campina um monte
de vísceras em que havia um anzol deixado por um pescador, a fim de
apanhá-la, caso comesse as vísceras. Vendo-as, não as quis tocar a raposa,
dizendo:
- Estas vísceras não estão aqui neste prado sem alguma intenção de
provocar sofrimento e perigo.
O Leão depois que pecou e matou o Leopardo não teve mais tanta
lucidez e argúcia como antes, [16] e não alcançou o sentido das palavras
pronunciadas pela Serpente. Por isso pediu a ela que lhas explicasse.
Respondeu a Serpente que desde que o Boi e Da. Raposa vieram para a sua
corte, esta não ficou mais sem sofrimentos e tribulações. Desse modo, a
honra que o Leão fizera ao Boi e a Da. Raposa tinha o preço do sofrimento e
tribulações do rei e de sua corte.
Ouvindo o Boi que a Serpente o acusara perante o rei, defendeu-se
diante dele e da corte. Disse que de modo algum fora malévolo em relação ao
rei, nem lhe parecia que devesse agir contra ele ou sua corte, pois o rei o
honrava; e sendo presa de bom paladar ao rei, e este não o querendo comer,
cabia-lhe guardar e preservar toda a honra do rei. E desculpando-se por
todos os meios, disse o Boi que Da. Raposa o aconselhara a berrar três vezes
à noite e três vezes ao dia, vindo depois à corte para tratar com o rei em
seu proveito.
A tal ponto se desculpou o Boi junto ao rei que desagradou a Da.
Raposa, levando-a a conceber rancor contra ele no coração. Veio então um
dia de muita neve e intenso frio, deixando o Leão e os de sua corte sem
comida e famintos. Perguntada sobre o que poderiam comer, Da. Raposa
respondeu que não sabia, mas que ia ver com o Pavão se ele sentia a presença
nas proximidades de algum animal que o rei e seus companheiros pudessem
comer. O Pavão, que tinha muito medo de Da. Raposa, assustou-se de vê-la
aproximar-se. Disse-lhe ela que se o Leão lhe perguntasse se ele percebia
algum animal bom de ser comido pelo rei, respondesse que não, mas que
sentia cheirar mal o bafo do Boi, sintoma certo de que ele morreria em
breve de doença. Por temor de Da. Raposa e porque o Boi comia o trigo que
lhe servia de alimento, consentiu o Pavão na morte do Boi, dizendo ao Leão o
que Da. Raposa recomendara.
Assim, perguntando o Leão o que ele poderia comer, respondeu-lhe
o Pavão que não sabia, mas que sentia haveria o Boi de morrer brevemente,
pelo que podia perceber de seu bafo corrompido. Deu ao Leão vontade de
comer o Boi, mas pesou-lhe a consciência de matá-lo, pois, confiando nele, o
Boi lhe prometera lealdade e há muito tempo o servia. Vendo que o rei
hesitava em comer o Boi, Da. Raposa aproximou-se, perguntando-lhe por que
não o comia, já que o Boi em breve morreria de doença, como bem o sabia o
Pavão, e principalmente sendo vontade de Deus que o rei satisfizesse suas
necessidades, recorrendo a seus súditos, quando não houvesse outra
maneira. A resposta do Leão a Da. Raposa foi que por coisa nenhuma trairia a
palavra prometida ao Boi.
- Senhor, tornou Da. Raposa, comereis o Boi se eu o fizer dizer que
vós o comais e se ele vos desobrigar da palavra dada?
O Leão disse que sim.
Da. Raposa foi ter então com um Corvo, que estava faminto, e disse-
lhe o seguinte:
- O Leão tem fome e eu darei um jeito para que ele mate o Boi que,
sendo animal gordo e imenso, bastará a todos. Se o Leão disser diante de ti
que está com fome, tu te ofereces a ele, dizendo-lhe que te coma. Mas ele
não te comerá, pois eu te escusarei junto dele e ele ouvirá meu conselho,
pois tudo o que lhe digo faz; e em me oferecendo eu ao rei para que me
coma, digas que não sou boa para ser comida e que minha carne não é
saudável.
Tendo assim instruído o Corvo, foi Da. Raposa ao Boi e disse-lhe que
o rei desejava comê-lo, levado pela palavra do Pavão que achava do bafo do
Boi que este em breve morreria de doença. Assustadíssimo, aludiu o Boi que
era legítima a réplica do camponês ao cavaleiro. Perguntando-lhe Da. Raposa
como é que isso se dera, contou o Boi:
- Desejoso de honras, um camponês rico deu sua filha por esposa a
um cavaleiro que lhe cobiçava a riqueza. As honras tornaram-se riqueza, mas
a riqueza não teve força para tornar honrado o camponês. Quanto ao
cavaleiro, suas honras conseguiram-lhe a riqueza do camponês, de tal sorte
que este ficou pobre e sem honras, e o cavaleiro rico e honrado. Disse então
o camponês ao cavaleiro que a intimidade entre camponês e cavaleiro resulta
em pobreza e tribulações para o primeiro e em honras para o segundo. E
concluiu:
- Daí por que da intimidade do boi com o leão resulta a morte do boi
e a satisfação do leão.
Da. Raposa, dizendo ao Boi que o Leão lhe prometera fidelidade e
nada de traição, aconselhou-o a oferecer-se ao Leão para comê-lo, se fosse
necessário.
O Leão haveria de ficar-lhe mui agradecido e em reconhecimento de
sua generosidade e pela dívida de gratidão contraída, não lhe faria mal
nenhum.
- E não se esqueça, rematou ela, que o ajudarei de tal maneira que o
Leão não possa causar-lhe nem vileza nem injustiça.
Feitas todas estas recomendações, Da. Raposa mais o Boi e o Corvo
se apresentaram ao Leão. Aproximando-se deste, o Corvo disse que sabia de
sua fome e pediu-lhe que o comesse. Da. Raposa interferiu em favor dele,
dizendo que sua carne não era comida adequada a um rei. E dito isso,
ofereceu-se ao rei para que a comesse, pois nada mais tinha a dar-lhe além
de si própria. O Corvo se apressou em dizer que a carne de Da. Raposa não
prestava como comida.
Então o Boi, usando palavras semelhantes, ofereceu-se ao Leão,
dizendo-lhe que o comesse, porque ele era grande e gordo e sua carne, boa
de ser comida.
Assim o Leão matou o Boi e dele comeram à vontade o rei, Da. Raposa e
o Corvo.
Morto o Boi, o Leão perguntou ao Galo e a Da. Raposa quem seria seu
camareiro. O Galo quis falar primeiro, mas Da. Raposa lançou-lhe um olhar
tão irado que ele hesitou responder antes dela. Voltando-se para o rei,
disse-lhe Da. Raposa que o Coelho tinha um semblante gracioso, e sendo
animal humilde, ficaria bem nas funções exercidas antes pelo Gato e pelo
Boi. O Leão pediu a opinião do Galo que, não ousando contrariar Da. Raposa, a
quem muito temia, aconselhou-o a seguir a opinião dela. O Leão nomeou o
Coelho camareiro e Da. Raposa passou a ter enorme poder na corte, pois o
Galo, o Pavão e o Coelho a temiam; o Leão, por sua vez, dava crédito a tudo o
que ela lhe dizia.
Um dia o Leão precisou resolver um caso complicado ocorrido no
reino e buscou o conselho do Galo e de Da. Raposa. O Galo respondeu que não
se sentia à altura de aconselhar o rei em caso de tamanha monta sem o
auxílio dos companheiros. E recomendou ao rei que ampliasse o Conselho, pois
não condizia com sua honra de soberano ter o Conselho diminuído, coisa que
acontecera depois da partida da Serpente, do Leopardo, da Onça e do Lobo.
O rei houve por bem designar conselheiros, e assim teria feito se Da. Raposa
não dissesse o seguinte:
- Vivia num país certo homem a quem Deus facultara tanto
conhecimento que entendia tudo o que diziam os animais e os pássaros. Dera-
lhe Deus esse conhecimento com uma condição, a saber: que nada do que
ouvisse e entendesse dito pelos animais ou pássaros contasse a ninguém, pois
no dia em que o fizesse, morreria.
Esse homem tinha um pomar onde um boi puxava água de uma nora e um
burro carregava o esterco para adubar o pomar. Num fim de dia em que o
boi estava extenuado, o burro aconselhou-o a não comer a cevada, a fim de
que na manhã seguinte o homem não o levasse a tirar água e assim
descansaria. Acatando o conselho do burro, nessa noite o boi não comeu
cevada. Supondo que o boi estivesse doente, o hortelão levou o burro em seu
lugar para puxar a água. E assim o fez o burro, a duras penas, durante todo o
dia. Ao anoitecer, retornou ao estábulo onde encontrou o boi, descansando
deitado. Chorando diante dele, disse-lhe o burro:
- O dono, julgando que estás doente, quer vender-te a um
açougueiro; por isso, antes que te mande matar, é bom que voltes ao teu
trabalho e percas esse aspecto doente.
Disse o burro essas palavras ao boi, a fim de que o hortelão não o
levasse mais a puxar água, que lhe era bem mais penoso que transportar o
esterco.
Com medo de morrer, apressou-se o boi em comer cevada naquela
noite, demonstrando estar curado. O dono do boi e do burro entendeu a
conversa dos dois e pôs-se a rir diante da mulher, que quis saber do marido
por que ria; ele, porém, não lhe quis contar. Disse então a mulher que ela não
comeria nem beberia, deixando-se morrer, caso ele não lho revelasse.
Durante um dia e uma noite jejuou a malvada da mulher, que não queria nem
comer nem beber. O marido que a amava muito, decidiu enfim contar-lhe e
fez seu testamento; depois disso, preparou-se para contar à mulher porque
ele tinha rido. Mas ele ouviu o que o cão disse ao galo, e a resposta deste ao
cão.
- Como foi isso? - indagou o Leão a Da. Raposa.
Da. Raposa contou ao Leão que enquanto o homem fazia seu
testamento, o galo cantou, sendo repreendido pelo cão por estar cantando
quando seu patrão iria morrer. Espantadíssimo o galo de ser repreendido por
cantar, escutou do cão como seu dono iria morrer de boa mente para que sua
mulher vivesse. Retrucou o galo que bom era ele morresse, pois não passava
de um pobre coitado que sequer sabia ser o senhor de uma mulher. E tendo
assim falado, chamou suas dez galinhas, reunindo-as todas num canto e
fazendo delas o que queria. Isso fez para que o cão entendesse que se devia
consolar da morte de seu amo. Os dois se consolaram da morte do amo: o
galo cantou e o cão se alegrou.
- Companheiro, disse o cão ao galo, se tivesses uma mulher tão
leviana como a de meu amo, que lhe farias, se acaso te pusesse à porta da
morte, como aconteceu a meu amo?
Respondeu o galo que se estivesse no lugar do amo, cortaria cinco
galhos de uma romanzeira do pomar e daria uma surra tão forte na mulher,
até que todos os galhos se quebrassem e ela se decidisse a comer e a beber;
ou então a deixaria morrer de fome e sede.
O homem, que havia compreendido as palavras trocadas pelo galo e
o cão, levantou-se e seguiu o conselho do galo: sua mulher, depois de bem
surrada, comeu e bebeu e fez tudo que seu marido quis.
[17]
Tendo contado o exemplo precedente, Da. Raposa disse que o Galo
era tão sábio que seria capaz de aconselhar em todas as situações, não
valendo a pena o rei ampliar o seu conselho; sobretudo porque numa multidão
de conselheiros surge uma imensa variedade de intenções, opiniões e
vontades - variedade essa que muitas vezes leva o Conselho do príncipe à
perturbação.
Calando-se Da. Raposa, o Galo disse:
- Um papagaio estava numa árvore com um corvo; ao pé da árvore,
um macaco pusera lenha sobre um vaga-lume, julgando fosse brasa, e
soprava sobre a lenha, esperando fazer fogo com que se aquecesse. Gritava
o papagaio ao macaco que aquilo não era brasa e sim um vaga-lume. O corvo
disse ao papagaio que deixasse de querer castigar ou ensinar alguém que não
recebe nem conselho nem correção. Repetidas vezes tornou o papagaio a
dizer ao macaco que se tratava de um vaga-lume, e não, como ele supunha, de
uma brasa. E a cada vez repreendia o corvo ao papagaio por querer
endireitar o que por natureza é torto. O papagaio desceu da árvore e
aproximou-se do macaco, a fim de fazê-lo compreender melhor o que lhe
vinha explicando; tão perto chegou o papagaio do macaco que este o pegou e
matou.
Ao ouvir esse exemplo contado pelo Galo, julgou o rei que era
endereçado a si e assumiu um ar furioso contra o Galo, demonstrando seu
descontentamento.
Da. Raposa apanhou então o Galo, matou-o e o comeu diante do rei.
Da. Raposa ficou sendo a única conselheira do rei, o Coelho seu
camareiro e o Pavão, porteiro; exultando de felicidade, ela fazia do rei o que
bem queria. No meio de toda essa felicidade, lembrou-se ela [18] da traição
que tramara contra o rei, prometendo ao Elefante fazê-lo rei, depois de dar
cabo do Leão. Se dependesse dela, de bom grado continuaria nessa boa
situação, mas temia que o Elefante a denunciasse. Por isso, decidiu buscar a
morte do rei e dar ao Elefante o que lhe prometera.
Capítulo VII
DA MORTE DE DA. RAPOSA

Da. Raposa não se esqueceu de procurar a morte do rei, mas


esqueceu-se da honra que este lhe fizera, situando-a acima de todos os
barões da corte.
Um dia, ela disse ao Elefante que chegara a hora de o rei morrer,
principalmente porque tudo estava adequado para isso, uma vez que não
havia na corte outro conselheiro além dela. O Elefante refletiu
demoradamente nas palavras de Da. Raposa e teve escrúpulos em consentir
na morte do rei. Por outro lado, temia desobedecer a ela, que podia
denunciá-lo e causar-lhe a morte. Finalmente, decidiu não se associar a Da.
Raposa, pois doía-lhe a consciência em dar morte ao rei. Não deixava
também de recear que se ele se tornasse rei, ela haveria de traí-lo, assim
como traía ao Leão. Preferiu então o Elefante pôr em risco a vida a incidir
em traição contra seu rei natural. Tais considerações levaram-no a dizer de
si para si que, do mesmo modo que Da. Raposa queria pela astúcia levar o rei
à morte, assim também ele usaria de astúcia para que o rei fizesse Da.
Raposa perecer.
- Pois, argumentava ele, se no corpo de Da. Raposa cabem traição,
astúcia e habilidade, quanto mais no meu que é tão grande deve caber
lealdade, sabedoria e astúcia.
- Em que estais a pensar, Senhor Elefante? - disse-lhe Da. Raposa.
Por que não vos preocupais em tornar-vos rei antes que a Serpente,
tremendamente sábia e esperta, retorne de sua missão?
Então concebeu e se dispôs o Elefante a esperar a Serpente, antes
de tentar qualquer coisa contra Da. Raposa e que estudaria com a Serpente
como o rei mataria Da. Raposa. Esta, vendo que o Elefante negligenciava seu
plano, receou que a Serpente voltasse e que o Elefante a denunciasse; por
isso pediu ao Elefante que se apressasse, do contrário ela [19] conduziria o
caso de um modo que ele nem podia imaginar.
Assustadíssimo com a astúcia de Da. Raposa, o Elefante quis saber
em que condições ela desejava ficar com ele, uma vez feito rei. Respondeu
ela que desejava ficar com ele nas mesmas condições em que estava com o
rei, ou seja, ser sua única conselheira, tendo o Coelho como camareiro e o
Pavão como porteiro.
Depois de ouvir as condições de Da. Raposa, perguntou-lhe o Elefante
de que maneira haveria o rei de morrer.
Ela expôs com estas palavras a maneira como imaginara a morte do
rei:
- O Javali, graças a seu porte grave e força, julga-se igual ao rei.
Direi a ele que se proteja do rei, que deseja matá-lo. Ao rei direi que tenha
tento do Javali, que almeja ser rei, e o induzirei a matá-lo. Quando o Javali
estiver morto, o rei há de estar cansado da batalha travada. Então, Senhor
Elefante, podereis facilmente matar o rei e ficar reinando em seu lugar.
Pela maneira planejada por Da. Raposa, compreendeu o Elefante que
ela o enganava. Disse-lhe então:
- Sem testemunhas, toda promessa é vã. Parece-me, pois, salutar
que tenhais testemunhas da promessa que desejais que vos faça, a saber:
que sejais minha única conselheira, que o Coelho seja meu camareiro e o
Pavão meu porteiro. Caso contrário, se eu negar o que vos prometi e não
tiverdes testemunhas, não podereis provar. E se porventura me torno rei,
não me sentirei talvez mais obrigado a vos honrar do que o faço agora que
não sou rei e vós sois conselheira do rei.
Da. Raposa refletiu longamente no que dizia o Elefante e teve medo
de que sua traição fosse descoberta pelas testemunhas. Vendo a
preocupação dela, [20] disse-lhe o Elefante que as melhores testemunhas
que ela podia ter eram o Coelho e o Pavão, que tinham medo dela e se
agradariam de ser seus servidores.
Nem devia ela temer que eles viessem a denunciá-la de qualquer
segredo. Da. Raposa achou bom o conselho que lhe dava o Elefante, o qual, na
presença do Coelho e do Pavão fez sua promessa a Da. Raposa. O Coelho e o
Pavão, por sua vez, prometeram ao Elefante e a Da. Raposa guardar segredo.
Em seguida, o Elefante aconselhou Da. Raposa que dissesse primeiro ao
Javali que o rei desejava matá-lo; depois, que o dissesse ao rei. Procurou
então Da. Raposa primeiro o Javali, e enquanto falava com ele, o Elefante foi
ter com o rei e contou-lhe tudo o que com ela planejara. Pedindo perdão ao
rei por ter pensado em traí-lo, assegurou-lhe estar arrependido e preferir
ser um súdito leal a um rei traidor.
Disse o Leão:
- Como posso certificar-me de que o que dizeis, Elefante, é
verdadeiro?
Respondeu-lhe o Elefante que ele podia reconhecê-lo no fato de Da.
Raposa tanto ter maquinado que não restava no Conselho real outro animal
além dela; e ao Coelho, que por natureza a temia, o mesmo acontecendo com
o Pavão - trouxera a ambos para o palácio.
- Vede, senhor Leão, esta outra evidência que vos dou: Da. Raposa
foi ter com o Javali, dizendo-lhe que vós o quereis matar; outro tanto fará
convosco, falando que o Javali quer matar-vos e vos aconselhará a mostrar
um semblante orgulhoso, a fim de que o Javali tome como verdadeiro o
quanto Da. Raposa lhe disse.
A estas palavras, o Elefante acrescentou que o Coelho e o Pavão
haviam concordado com a morte do rei. Este se espantou muitíssimo de que
Da. Raposa, a quem concedera tantas honras, pudesse engendrar contra ele
engano e traição. E disse:
- De meu pai ouvi que meu avô, rei de imensas terras, quis rebaixar
os barões aos quais pertencem as honras, e exaltar os animais vis, aos quais
honras não convêm. Entre estes se achava o Macaco, que foi cumulado de
honras. Esse Macaco, por se parecer com o homem, desejava ser rei, e em
troca das honras,concebeu a traição do meu avô.
- Senhor, observou o Elefante, numa taça pequena não cabe muito
vinho e numa pessoa de baixa índole não se acumula muita honra nem muita
lealdade.
Por isso convém que liquideis Da. Raposa e formeis um bom Conselho,
exercendo livremente vossa soberania, sem submeter a uma pessoa pérfida
a nobreza que Deus vos concedeu pelo nascimento e pelo cargo.
Em seguida o Elefante foi ter com o Javali, já instruído por Da.
Raposa, e disse-lhe que sabia o que ela tramara. O Javali surpreendeu-se de
o Elefante estar ciente e este lhe contou tudo. Enquanto os dois
conversavam, Da. Raposa foi ao Leão e lhe disse que o Javali pretendia matá-
lo. Isso bastou para que o Leão percebesse que ela o queria trair. O rei
reuniu a sua volta inúmeros barões, estando entre eles o Elefante, Da.
Raposa, o Coelho e o Pavão.
Diante de todos, o Leão mandou que o Coelho e o Pavão lhe dissessem a
verdade sobre o testemunho que haviam prometido fazer a Da. Raposa, após
a morte dele. O medo do Coelho e do Pavão foi enorme [21] e muito maior
ainda o de Da. Raposa, que dirigiu ao rei estas palavras:
- Senhor rei, para provar se vossos barões são íntegros e leais, eu
disse ao Elefante e ao Javali o que viestes saber. Quanto ao Coelho e ao
Pavão, asseguro-vos que nunca lhes falei o de que me acusa o Elefante.
Da. Raposa estava confiante de que o Coelho e o Pavão, que a
temiam tanto, não ousariam acusá-la ao rei nem revelariam nada.
Às palavras de Da. Raposa, o rei lançou um olhar terrível ao Coelho e
ao Pavão, dando um urro fortíssimo, a fim de que a natureza de sua alta
soberania exercesse maior influência na consciência deles do que o medo que
sentiam de Da. Raposa. E tendo urrado assim forte, disse com ar furioso ao
Coelho e ao Pavão que contassem a verdade. Os dois não puderam conter-se
e disseram a verdade ao rei. Então o próprio rei matou Da. Raposa.
Depois da morte de Da. Raposa, a corte real ficou em paz. O rei
incluiu o Elefante, o Javali e outros barões honrados em seu Conselho e dele
expulsou o Coelho e o Pavão.
Termina aqui o Livro das Bestas que Félix levou a um rei para que
ele, olhando o que fazem os animais, visse como deve reinar e guardar-se dos
maus conselhos e dos homens falsos.

NOTAS

[1] - Livro das Bestas, "Estrutura do texto". Lúlio, muito provavelmente,


entre 1289 e 1294, inseriu o Livro das Bestas no Livro das Maravilhas do
Mundo, do qual constitui a sua sétima parte.

[2] - A Ordem dos Apóstolos foi fundada em 1260 por Guerau Segarelli.
Posteriormente, devido a diversos erros doutrinais, desvirtuou-se, evoluiu para
um quietismo imoral e, finalmente, o Papa Honório IV a condenou em 11 de
março de 1286. Por isso, devemos atribuir a primeira redação do Livro das
Bestas a um tempo anterior a essa data. Em obras posteriores, Lúlio censurará
asperamente a Ordem dos Apóstolos.

[3] - No Livro das Bestas, Lúlio emprega o termo francês renart, ou ranart,
para designar a raposa, apesar de que no catalão da época já se dispunha do
termo volp, derivado do latim vulpe. Estranhamente, Lúlio usará esse termo
sempre no feminino, quando no francês é masculino. Em diversas ocasiões,
sem deixar de antepor o designativo feminino. Na (Dona) a Renart, Lúlio
acompanhará esta palavra de adjetivos no masculino. Haveria alguma
intencionalidade nisso? Acreditamos que sim, pois quase nada escapava ao
espírito observador de Lúlio, que escrevia tudo com um propósito bem
determinado.

[4] - A Raposa comete dois enganos: primeiro, é contra o que o Boi e seus
companheiros querem - que o Cavalo seja o rei - por julgar mal a intenção do
Boi; segundo, para defender o seu interesse - que o rei seja o Leão - usa em
favor de si mesma argumentos religiosos, que nessa ocasião ficavam fora de
lugar.
Além disso, o argumento é falacioso, pois se Deus quis que o homem
fosse servido pelos animais, não foi porque o homem se alimentasse deles.

[5] - Diante do argumento da força, o Urso, a Onça e o Leopardo,


temerosos, cedem. Entretanto, o surpreendente desta passagem é a argüição
do cônego retornar à ficção animal. É este um dos contrapassos de que antes
se falou (cf.p.27). O leitor deverá lembrar-se então de que é precisamente Da.
Raposa quem está pondo o exemplo da eleição do Bispo, e o faz livremente - e
como se vê pelo resultado alcançado, com êxito - para conseguir seus
interesses.

[6] - Árabes que dominaram a Espanha, a Sicília e a África e que seguiam


a religião fundada por Maomé.

[7] - Parece tratar-se de um episódio autobiográfico. Lúlio aprendeu o


árabe com um muçulmano que tentou matá-lo depois.

[8] - O exemplo deu a entender ao Elefante que, uma vez morto o rei, os
conselheiros carnívoros expulsariam da corte real todos os animais herbívoros.
Daí a conveniência de o Elefante tornar-se rei.

[9] - Moeda bizantina antiga de ouro e prata.

[10] - O Elefante ainda não confia na astúcia nem na falsidade como


meios para destronar o rei.

[11] - Lúlio, com este exemplo, diz-nos que no coração do oprimido nasce
sempre uma ira, saudável e boa, toda vez que os poderosos agem injustamente
e com crueldade. Este sentimento de ira aguça o engenho de tal sorte que, não
poucas vezes, o pequeno, apesar de sua debilidade, chega a vencer o grande.
(Veja-se
Fermín de Urmeneta, "Ägustinismo y Lulismo" Augustinus, V, 1960, p.
548.)

[12] - Cf. nota 3.

[13] - No Livro dos Mil Provérbios, Lúlio dirá que "a verdade não teme; a
mentira ou falsidade não são corajosas".

[14] - Já entrada a noite.

[15] - Pautar-se pela razão faz o Leopardo sentir-se forte.

[16] - Cf. supra, p.27, "A Síndrome do Leão adúltero".

[17] - Veja-se o Apêndice.

[18] - Ele, no original, referindo-se a Da. Raposa. Veja-se nota 3.

[19] - Ele, no original, referindo-se a Da. Raposa. Veja-se nota 3.

[20] - "Vendo Da. Raposa preocupado" , no original. Veja-se nota 3.

[21] - Um sentimento mau, neste caso o medo da Raposa, dominava o


Coelho e o Pavão, impedindo-os de manifestar a verdade. O gênio imaginativo
e fecundo de Lúlio mostra, assim, de modo claro e definitivo, como seria
impossível a uma sociedade reconhecer a verdade - e por conseguinte, crescer
em conhecimento e evoluir - se esta não impregnar a conduta das pessoas.
Somente pouco depois, quando o urro do Leão propicie a troca, no Coelho e no
Pavão, do sentimento mau por outro bom, o medo de mentir, é que a verdade
triunfará e, dando-se a conhecer, poderá servir como guia e regra da boa
administração da sociedade.

© 2000 Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência


“Raimundo Lúlio“
(Ramon Llull)
[email protected]

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__________________
Novembro 2000
Block quote end

Aqui está a introdução original desta edição.

Talvez a intenção inicial de Lúlio fosse escrever um manual para os


príncipes, que resumisse as qualidades que o governante deve possuir, e as
precauções que deve tomar, para exercer com sucesso o seu poder. As palavras
com que o livro termina permitem esta suposição: "Assim acaba o Livro das
Bestas que Félix levou ao rei para que ele, olhando o que fazem os animais,
visse como deve reinar e guardar- se dos maus conselhos e dos homens falsos."
Na realidade, O Livro das Bestas, um dos melhores textos de toda a
prosa catalã medieval, é uma crua e inteligente alegoria de valor universal sobre
a sociedade humana. Escrito antes de 1286, Lúlio posteriormente o inseriu no
Livro das Maravilhas do Mundo - do qual constitui a sua sétima parte – , uma
enciclopédica novela filosófica que narra as aventuras de Félix, um andarilho
cujo ofício era "maravilhar- se com as maravilhas do universo".
A obra apresenta uma aguda crítica da sociedade humana utilizando- se
dos animais como símbolos. A pesar das aparentes diferenças que obviamente
se dão entre as bestas - quadrúpedes irracionais -, o leitor dá- se conta de que, no
fundo, transpira um clima de chocante igualdade nas suas atitudes. As
diferenças que o texto vai apontando - os grupos dos herbívoros e dos
carnívoros, o poder do rei Leão, a astúcia da Raposa, etc. -, ganham força mais
pela versão do próprio texto que pelo que elas são em si. Ideologias, credos,
classes e funções sociais, portanto, não chegam a ter força suficiente para
estratificar a sociedade dos animais, símbolo da sociedade humana. O leitor
logo se dá conta de que as Bestas são uns pobres seres sujeitos às paixões mais
vis e, destarte, torna- se-lhe evidente que o livro que tem nas mãos trata, sim, de
uma realidade bem mais profunda, situada seguramente nos bastidores da vida
social, no coração do homem. A indigência humana emerge com toda a sua
força.
Lúlio foi um realista. Somente alguém que, como ele, tenha descido,
um a um, todos os degraus da miséria humana será capaz de falar-nos da
criatura humana com tanta verdade. "A pior besta que existe neste mundo, vejo
que é o homem, pois nenhuma outra mata- se a si própria; nem vejo, Senhor,
nenhuma outra que como o homem, mate tantas outras de sua mesma espécie,
nem mate, de maneiras diferentes, tantos animais, pássaros e peixes como ele.
Senhor, que outra besta é tão ruim quanto o homem?".
Servindo- se precisamente do simbolismo das bestas, Lúlio fará desfilar
perante o leitor a intriga, o ideologia, o adultério, a mentira, enfim, todas as
mazelas que amargam a sociedade dos homens quando estes, incoerentes com a
sua condição racional, deixam- se subjugar pela sensibilidade cega.
A narrativa começa com um breve prólogo no qual Félix, o herói do
romance Livro das Maravilhas do Mundo, é informado de que próximo ao
ponto onde se encontra terá lugar uma grande assembléia de animais selvagens,
desejosos de eleger o seu rei.
Após este episódio introdutório, o texto apresentará, em oito curtos
capítulos, as dificuldades que o rei Leão encontra no governo de um grupo de
animais.
Lúlio dedica o primeiro capítulo à eleição do rei e o segundo à escolha do
Conselho do Reino. Logo o leitor compreende que governar não é apenas uma
questão de credibilidade popular, como ainda não é uma questão vinculada à
origem da investidura.
Inicialmente, os carnívoros e os herbívoros distribuem- se em dois
grupos antagônicos que, muito embora se apresentem como portadores de
ideologias diferentes, têm uma clara origem visceral. É o fisiologismo, que tão
inteligentemente a astuta Raposa saberá manipular para obter seus mesquinhos
objetivos.
Surpreende ver como a traição impregna todos os movimentos desse
perigoso animal. No final, sempre por meios escusos conseguirá ser a porteira
da Câmara real, na época um alto cargo que conferia muito poder ao seu titular
pois, além de ter sob seu controle a agenda do rei, os porteiros eram também
seus cobradores, tendo autoridade para citar e até penhorar os bens dos
devedores do reino.
Uma embaixada do rei dos animais ao rei dos homens revela, com certa
amargura, mas de um modo mais direto, a natureza egoísta destes últimos. O
Leopardo, embaixador da comitiva, depois de ter-se estarrecido com as
arbitrariedades do rei dos homens, afirma de si mesmo que "preferia ser um
animal irracional - embora desse modo nada restasse de si depois de morto - a
ser um rei dos homens, com tanta culpa quanta seria o mal que se seguiria da
maldade do rei".
O adultério que o Leão comete com a Leoparda durante a ausência do
Leopardo tem como conseqüência um angustiante combate entre uma Onça, a
defender o rei, e o Leopardo, humilhado. Esta luta é outro simbolismo
universal, que se torna evidente no momento em que o Galo pergunta à
Serpente quem lhe parecia que havia de vencer o combate. Responde o Galo:
- Dicidiu- se o combate para que a verdade confunda e destrua a
falsidade. Deus é a verdade. Todo aquele que sustenta a falsidade luta contra
Deus e contra a verdade.
Lúlio fecha este episódio com uma conclusão que respeita a liberdade
humana e que, ao mesmo tempo, é de um realismo assustador.
Finalmente, após algumas outras peripécias, a paz volta ao reino dos
animais e a sua manutenção fica garantida mediante mudanças no Conselho do
reino.
A originalidade do texto consiste em que o autor vai construindo o fio
da narrativa com a ajuda de exemplos concatenados. Lúlio tirou alguns deles do
fabulário oriental, principalmente do Livro de Kalia e Dimna, mais conhecido
sob o nome de Fábulas de Pilpai (ou Bidpaí). Outros são fruto exclusivo da fértil
criatividade do próprio autor.
Em diversas passagens a ficção animal é parcialmente abandonada,
colocando Lúlio na boca dos animais exemplos da vida humana. Dessa forma, a
fábula animal inverte-se, e o leitor é obrigado a avançar ao contrapasso.
Como em todas as obras do mestre maiorquino, a inteligência do leitor
é continuamente posta à prova, dado que terá de realizar sozinho o trabalho de
extrair de cada exemplo particular a lição universal que encerra e que, ao fim
das contas, é o que construirá o fio medular da narrativa.
No Livro das Bestas, Lúlio não deixa de fazer algumas críticas à
sociedade humana e aponta soluções para certos temas, tipicamente lulianos,
que aparecem em muitas de suas obras.

A Síndrome do Leão adúltero e outras bestialidades. Talvez por ser sua


concepção da realidade mais grega do que latina, Lúlio prefere destacar o
aspecto dinâmico dos seres ao invés do estático. No seu pensamento, as coisas,
pelo seu ser, são antes algo que se realiza do que realidades cristalizadas.
O ser humano, por exemplo, alcançará a sua unidade ao longo da vida,
expandindo suas propriedades por meio das obras. Lúlio entende, porém, que
essa atividade apenas será verdadeiramente unificadora - e, portanto,
aperfeiçoadora do ser do homem - se consistir numa manifestação daquilo que
lhe é próprio: a razão.
Se o homem, em todas as suas ações, atua perseguindo o fim que a sua
razão lhe indica, caminhará para a felicidade, alcançará a unidade consigo
mesmo e, o que é a mesma coisa, realizará a sua plenitude racional.
Paulatinamente, verá reforçar- se a concordância entre seus movimentos mais
íntimos, e seu entendimento se tornará mais agudo e penetrante. O
amadurecimento humano, portanto, acarreta sempre um progresso da lucidez
mental. Ao contrário, quando as ações humanas se desviam do seu fim, trazem
consigo uma perda da lucidez natural.
Após o adultério, Lúlio conta-nos que o Leão começou a sentir
dificuldades para entender os conselhos dos seus assessores. "O Leão, depois
que pecou e matou o Leopardo não teve mais tanta lucidez e argúcia como
antes e já não alcançava o sentido das palavras pronunciadas pela Serpente. Por
isso pediu a ela que lhas explicasse". Se o Leão já começara a perder a
integridade interior - e, em conseqüência, a sua capacidade intelectual já iniciara
o processo de deterioração -, o leopardicídio, que fora também outro ato
irracional motivado por um excesso de sentimento mau ( "tomou- se de tanto
ódio... que se não pode conter", diz-nos o narrador), agravou por demais a
intoxicação de sua mente.
Parece-nos que a concepção luliana da lucidez, pelas perspectivas de
aplicação prática que apresenta, é um dos temas que mais deveria atrair os
estudiosos de sua obra, toda ela impregnada dessa doutrina que, além do mais,
nos parece profundamente experimentada pelo próprio Lúlio. Referindo- se a si
próprio, nos anos anteriores à sua conversão, conta- nos que "como água
barrenta, suja e envenenada, assim estão cheios de trevas meus pensamentos."
O homem reconquistará a sua lucidez mediante os hábitos bons, obras
racionais, fruto da liberdade humana. Os hábitos bons possibilitam a penetração
do racional na sensibilidade, acabando de vez com a indeterminação dos
sentimentos.

Os hábitos bons, alicerce da sociedade


Os hábitos bons - as virtudes -, diz Lúlio, evitariam que "fosse o curso
dos rios o que decidisse sobre os crimes que cometem os homens", referindo- se
às diferentes legislações que existem nas nações, e impediriam que o que é
"verdade neste lado dos Pirineus fosse um erro no outro lado".
A verdade, de fato, sem a companhia e a ajuda da virtude, é volátil.
Não tem força para impor- se. Na ausência da virtude, pois, a mentira vencerá
sempre.
"E assim, filho, a verdade sozinha não tem nenhum poder contra a
falsidade, ajudada por muitos vícios". Além do mais, a mentira disfarça-se de
verdade para triunfar, mas a verdade não pode disfarçar- se de mentira , o que
constitui para ela uma grande desvantagem.
A verdade, portanto, só encontrará espaço e se implantará na sociedade
se for ajudada pelos hábitos bons. E, mais importante ainda, sem a força e a
violência das virtudes, o homem nem sequer saberá distinguir a verdade da
mentira, e muito menos implantar a verdade na sociedade.
Dá-se, com efeito, uma interrelação pessoa- sociedade. A pessoa
constitui, sem dúvida alguma, a sociedade, mas, ao mesmo tempo, é nela
também que deve encontrar os elementos necessários para o próprio
amadurecimento. Ninguém nasce com todos os princípios e convicções de que
precisa para crescer e desenvolver- se. Será, pois, na sociedade que irá buscar
esses elementos; mas apenas poderá encontrá- los se alguém lá antes os deixou.
Não sendo assim, a sociedade virará empecilho, obstáculo para o
desenvolvimento pessoal e precisará ser reformada. Nisso consiste a substância
da interrelação mencionada. Deve existir sempre um compromisso entre cada
um de nós e a coletividade e é precisamente esse compromisso que nos
conduzirá à comum solidariedade. E passamos a ser parte de um povo apenas
pelos deveres que esse compromisso originou.
A ordem pública, portanto, forja-se na ordem interior. Lá onde se
aceitam e se assumem compromissos. O Jerônimo, do Retábulo de Sta. Joana
Carolina, de Osman Lins, amava realmente Joana, a filha de Totônia. "Desde
que vi sua filha, na procissão... Desculpe, afirma solene, mas daquela hora
imagino- a como esposa. Quero tanto protegê- la!" . Mas o pobre coitado tem
pouca substância. Carece de conteúdo. Mesmo querendo, não saberá plasmar
em atos essa proteção tão desejada, e espalhará à sua volta a miséria que
carrega.
As pessoas, como as coisas, têm valor apenas pelo conjunto de
qualidades que possuem. É por isso que as apreciamos. "Por ser Deus valor,
quer honra", disse o mestre catalão. E os valores que movem as comunidades
são as riquezas das pessoas que as integram. Ou as pobrezas.
Totônia, a futura sogra, sabe disso e responde: "Senhor Jerônimo,
desculpe que lhe diga: tenho visto poucos homens tão franzinos. Não digo no
corpo.
É por dentro. O senhor se engana, é ela que vai protegê- lo." Sem
substância, sem conteúdo, sem força interior nas pessoas, quais serão os valores
da comunidade?
A ignorância das coisas será sua fraqueza. E as pessoas poderão dizer,
como Totônia, que "os erros dos nossos filhos, são filhos dos nossos erros."
Todavia, se no interior das pessoas os conceitos dão sentido e
orientação aos afetos, as atitudes e os comportamentos necessariamente
acabarão plasmando nas instituições e nas estruturas sociais uma sábia
constelação de valores e um apropriado corpo de leis. Lúlio põe na boca do
eremita do Livro das Maravilhas a seguinte frase: " a pobreza espiritual é forma
que informa, regula e ordena a riqueza temporal". As leis que regulam e
orientam a economia de um país, devem provir de um ânimo convenientemente
preparado, de um afeto interior trabalhado e orientado pela reflexão, que Lúlio
chama de pobreza espiritual.
Portanto, a homologia que se dá entre a ordem pública e a privada no é
uma ordem qualquer. Deve ser regida por um critério de sabedoria.
Não é, pois, mera casualidade termine o Livro das Bestas com um
grande urro do Leão. É o único recurso que lhe resta para conhecer a verdade
do que lhe diz a Raposa. O urro forte do Leão, planejado e refletido por este,
simboliza o sentimento ou a paixão já regulados pela virtude, e tem o poder de
deslocar o medo que o Coelho e o Pavão sentiam diante da Raposa para o Leão;
isto é, tem o poder de endireitar o sentimento, produzindo afinal o triunfo da
verdade.

Esteve Jaulent

INTRODUÇÃO

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