Os Personagens Picaros de Ariano Suassuna
Os Personagens Picaros de Ariano Suassuna
Os Personagens Picaros de Ariano Suassuna
Itabaiana
2010
KELLY REGINA DA SILVA
Itabaiana
2010
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................4
2 O CÔMICO NO TEATRO...................................................................................................6
2.1 COMICIDADE ....................................................................................................................6
2.2 DE GIL A ARIANO.............................................................................................................8
2.3 ARIANO SUASSUNA E A INFLUÊNCIA VICENTINA................................................10
3 PERSONAGEM PÍCARO..................................................................................................12
3.1 PERSONAGEM TEATRAL..............................................................................................12
3.2 O PÍCARO.........................................................................................................................14
4 ANÁLISE..............................................................................................................................16
4.1 PERSONAGEM JOÃO GRILO E SUAS AÇÕES PICARESCAS...................................16
4.2 CAROBA E SUAS PICARDIAS ......................................................................................20
4.3 SEMELHANÇAS PICARESCAS ENTRE JOÃO GRILO E CAROBA .........................24
O SANTO E A PORCA:........................................................................................................26
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................31
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1 INTRODUÇÃO
O autor começou a produzir seus trabalhos e suas obras em 1957, com a peça
Uma mulher vestida de sol. Em suas criações seguintes inicia seus trabalhos com o cômico
em o Auto da Compadecida, O santo e a porca, O casamento suspeitoso, A farsa da boa
preguiça e os romances A pedra do Reino e A pena e a lei. Na elaboração de seus textos
Ariano Suassuna associa temas medievais considerados eruditos a assuntos recorrentes e
marcantes, encontradas na oralidade nordestina.
Além desse novo estilo utilizado em suas de peças teatrais, Ariano cria a arte
armorial que abrange todo o meio artístico, recorrendo a outros variados tipos de arte como
xilogravuras, música de pífanos e rabeca. Ariano defende a importância do movimento para a
formação de uma identidade coletiva regional e nacional, e, para isso, estabelece uma relação
de ideais e pontos de vista entre a arte erudita mundial e arte popular regional.
Dessa forma, Ariano constrói suas obras dentro das perspectivas do Movimento
Armorial, buscando retomar as tendências medievais, com o intuito de criar uma arte erudita a
partir da cultura popular nordestina, estabelecendo assim, um paralelo entre as tradições da
Idade Média e a literatura de oral.
De tal modo, adentrando o universo de Suassuna, o presente trabalho busca fazer
um estudo das obras, Auto da Compadecida e O santo e a porca, do teatrólogo, professor e
poeta, ao analisar os personagens pícaros e suas ações picarescas, além do conjunto de
elementos que enfatizam e ampliam a idéia do personagem pícaro. Nesse sentido, valendo-se
5
2 O CÔMICO NO TEATRO
2.1 COMICIDADE
defeitos dos indivíduos das classes baixas, propondo, desta forma, uma visão crítica da
realidade popular, ao contrário do trágico que representa a aristocracia e os homens da alta
sociedade.
Verena Alberti, ao resumir o cômico, diz que “a comédia é uma arte poética que
representa as ações humanas baixas, ou mais especificamente os personagens em ação piores
do que nós” (ALBERTI, 1999, p.49). Sendo assim, a comédia usa ações cotidianas, que estão
fora dos padrões das classes elevadas, para apresentar uma realidade com irreverência e
ironia, causando impacto nos valores específicos das classes mais ricas.
A comédia, para expressar uma opinião ou idéia, utiliza o riso como uma das
formas de se ver o mundo. Para Bakhtin, o riso
tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelas
quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre
o homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de
forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que sério
(BAKHTIN, 2008: p.57).
estabelecer uma ponte entre a Tradição, que presa entre as paredes dos
Conservatórios e das Universidades tendia a se fossilizar e se tornar “peça de
museu”, e o Popular, a arte produzida em condições materiais, não-oficiais, com
finalidade lúdica, cerimonial ou de integração comunitária (TAVARES, 2007,
p.107).
3 PERSONAGEM PÍCARO
O teatro, gênero marcado pela arte de encenar, tem como meta dar mais emoção a
história a ser contada. O personagem ou o grupo de personagens é o principal elemento para o
desenvolvimento de uma história encenada, uma vez que representa ações humanas
freqüentes no cotidiano das pessoas, procurando exprimir questões relacionadas ao
subconsciente, ao psicológico. Dessa maneira, desperta o raciocínio, o sentimento e a emoção
do público durante as encenações de uma obra.
Segundo Antônio Cândido, “tanto romance como teatro falam do homem, mas o
teatro o faz através do próprio homem, na presença viva e carnal do ator” (CANDIDO, 1976,
p.84). Assim sendo, na peça teatral, o personagem torna-se o elemento principal da obra, pois
trabalha a ação e tenta mostrar com maior vivacidade a história e o enredo. Em toda a peça
teatral destacam-se em um eixo principal os personagens, pois mostram o enredo com
diversas ações e situações, modificadas pelas características próprias do ator, e assim os atores
dão novos rumos e novas interpretações ao enredo da história.
De acordo com Beth Brait, a teoria desenvolvida por Aristóteles em sua poética
apresenta “dois pontos essenciais dos personagens: um ponto define o personagem como
reflexo da pessoa humana, outro concebe o personagem como construção baseada em leis
particulares pré-existentes no texto” (ARISTÓTELES apud BRAIT, 1985, p.29).
O personagem de uma peça pode representar as condições humanas em uma
sociedade, favorecendo a identificação do público com a obra. O primeiro ponto da essência
do personagem expressa o essencial para a construção do personagem, já o segundo mostra os
aspectos exteriores influenciando e/ou modificando o personagem dentro da obra, como, por
exemplo, os personagens secundários e a situação social.
Pode-se observar que esses dois pontos se completam, estabelecendo bases para a
criação do personagem, que é entendido como reflexo do humano, criado a partir de leis pré-
existentes tanto na sociedade real, quanto na ficção.
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3.2 O PÍCARO
Observa-se que o personagem pícaro prevê suas ações e calcula como deve
acontecer toda a ação. Desenvolve todo o conhecimento para planejar truques e artimanhas.
Com sua esperteza é que o personagem pícaro demonstra sua maneira de enfrentar e escapar
as dificuldades da vida.
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conduzir uma figura central através de uma sucessão de cenas, introduzir um grande
número de personagens e assim erigir um quadro da sociedade. Há um quase exato
paralelo seu na ficção contemporânea: a estória periódica do jovem que começa em
pobres circunstâncias e sobe verticalmente através de todas as classes sociais ate
alcançar o ápice (MUIR, 1975, p.15).
Observa-se que o personagem pícaro procura não trabalhar muito, mas conseguir
ganhar o máximo que puder com pouca atividade. Assim, o pícaro configura uma caricatura
que representa o exagero na preguiça e na vagabundagem. A fim de conseguir chegar ao ápice
social, o pícaro, no seu percurso dentro da história, torna-se engraçado pelas suas ações muito
bem planejadas, e pelo modo como aborda as situações e desenrola os fatos.
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4 ANÁLISE
PALHAÇO
Grande voz
Auto da compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para o exercício da moralidade (SUASSUNA, 2005,
p.15).
CHICÓ
Deixe de ser vingativo que você se desgraça! Qualquer dia você inda se mete numa
embrulhada séria!
JOÃO GRILO
E o que é que tem isso? Você pensa que eu tenho medo? Só assim é que posso me
divertir. Sou louco por uma embrulhada (SUASSUNA, 2005, p.27-28).
Chicó adverte João, prevendo que ele pode se desgraçar, tornar-se mais infeliz,
devido a seus atos inconseqüentes. No entanto, o personagem quer saber apenas de diversão,
como é observado na fala “Só assim é que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada”
(SUASSUNA, 2005, p. 28). Nota-se que ele gosta de levar a vida à sorte, entrando em
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confusões e tirando proveito delas. Contudo João Grilo sabe e conhece o âmbito social em
que se encontra por isso:
CHICÓ
Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do Major Antônio de Moraes?
JOÃO GRILO
Era o único jeito do padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do Major que
se pelá. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”, agora “Não
vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!” (SUASSUNA, 2005, p.24).
traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade que leva a mentira, a dissimulação,
ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’” (CANDIDO, 1970).
Nota-se que o personagem João Grilo surpreende pela sua liberdade nas atitudes,
palavras e declarações com os outros personagens, com a finalidade instalar, na peça o humor
e o cômico nas cenas, que resultam em uma sátira velada aos tipos sociais, revelados pelo
personagem. Sabendo das armações de João Grilo, observamos agora a preparação para o
golpe do gato que ‘descomia’ dinheiro no qual enganou a patroa.
CHICÓ
Se a mulher do padeiro descobrir que você tirou a bexiga do cachorro antes do
enterro...
JOÃO GRILO
Que é que tem isso? Eu estava precisando dela pra um negócio que estou planejando
e a necessidade desculpa tudo. O cachorro já estava morto, não precisava mais dela,
eu tirei, porque estava precisando! Ela não tem nada a reclamar.
[...]
JOÃO GRILO
Você ainda não viu nada! Eu ter tirado a bexiga do cachorro não quer dizer coisa
nenhuma. Danado é o gato que arranjei pra tomar lugar do morto (SUASSUNA,
2005, p.70-71).
Observe a despreocupação de João Grilo para fazer sua armação, uma vez que já tinha
arquitetado e planejado nos mínimos detalhes o golpe. Nota-se a esperteza do personagem,
sua audácia, além da ausência de escrúpulos moras ao enfrentar os patrões e inventar um fato
falacioso.
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A peça teatral, O santo e a porca, também voltada a temas nordestinos, foi escrita
em 1957 e publicada em 1964. No entanto, ao contrário do Auto da Compadecida, é montada
de maneira diferente por tratar de assuntos voltados à avareza e a união amorosa. A partir das
situações colocadas, o leitor é conduzido a outras observações de relevo social, como por
exemplo, a exploração trabalhista e a esperteza do explorado que darão amplitude às relações
existentes.
O enredo de O santo e a porca se passa no interior de Pernambuco, na miserável
casa de Euricão Árabe, um homem avarento, muito conhecido na região. Além dele,
participam do enredo Margarida, Dona Benona, Eudoro, Pinhão, Dodó e Caroba. O enredo
resume-se ao seguinte: Eudoro Vicente, fazendeiro rico da região, manda uma carta a Euricão
avisando que quer seu bem mais precioso. Devido sua avareza, Euricão compreende que seu
bem mais precioso é a porca cheia de dinheiro, herdada dos avôs. Assim acaba por deduzir
que Eudoro vai pedir-lhe dinheiro emprestado. No entanto, o interesse real de Eudoro era a
mão de Margarida, filha de Euricão, como se observa na passagem:
DODÓ — Não está vendo que é impossível, meu bem? Quando seu pai me viu pela
última vez, eu era um menino. E com esta corcova, essa roupa, essa barba... Não é
Possível de jeito nenhum!
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MARGARIDA — Mas o seu? Ele vai chegar e vai reconhecê-lo. Não seria melhor
dizer tudo?
DODÓ — Mas dizer tudo como, meu bem? Não tenho um tostão meu, meu pai é
contra a idéia de eu me casar sem estudar, seu pai só deixa você casar com um
homem rico... O que é que eu posso fazer contra este inferno?
MARGARIDA — Talvez se seu pai soubesse que a noiva sou eu, permitisse o
casamento e lhe desse terra para você trabalhar. Ele gostou tanto de mim quando
estive lá!
DODÓ — E eu mais ainda, tanto assim que abandonei meu estudo e vim me meter
nesse armazém por sua causa (SUASSUNA, 2008, p.43 – 44).
EUDORO — O que foi que ele quis dizer? Quando disse que começou a precisar de
Santo Antônio?
BENONA — Foi quando a mulher dele nos deixou. Você ainda se lembra dela?
EUDORO — Como havia de não me lembrar? Foi desde aquele dia que você me
deixou. Por que foi aquilo, Benona? Eu nunca pude me conformar com aquele
silêncio, de repente, sem uma explicação!
BENONA — Eu era muito moça, Eudoro. Eurico não me deixava sair para lugar
nenhum, eu não conhecia o mundo, não conhecia você direito, nada! Bem, naquela
noite em sua casa... Você sabe o que foi, fiquei com medo de você.
EUDORO — Mas Benona, foi só por causa daquilo? E você, por tão pouco, estragar
nosso casamento! Se eu soubesse, teria vindo e falado de tal maneira, que você me
perdoaria e teria talvez casado comigo.
EUDORO — E você não me dar uma explicação, me deixar no engano de que era
algum empecilho de sua parte, mesmo! (SUASSUNA, 2008, p.114 - 116).
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Agora, é assim, Santo Antônio, meu velho, "bom almoço, boa janta, boa ceia e bom
café". Mas ali onde diz "da roseira eu quero o galho, do craveiro eu quero o pé",
agora é assim: "da porquinha eu quero as tripas, quero pá, cabeça e pé". Sou o
homem mais rico do mundo, Santo Antônio, trate de me agradar de hoje em diante.
Não há como um dia atrás do outro e uma noite no meio. O velho Engole-Cobra, de
tanto engolir cobra, terminou achando uma que o engolisse. Ra, ra! Plantou o
roçadinho dele, mas quem arrancou o milho foi Pinhão.
PINHÃO — (Trancando rapidamente a porta.) Calma lá, Seu Dodó! Deve ser Seu
Dodó! Seu Dodó o quê? Deve ser Dodó, Dodó Boca-da-Noite! Agora é assim!
Espere lá, Dodó Boca-da-Noite! É melhor guardar o saco! (Beija a Porca e esconde-
a no socavão.) (SUASSUNA, 2008, p.121).
MARGARIDA — Não suporto mais essas agonias de jeito nenhum. Que jantar mais
angustiado! De vez em quando Tia Benona dizia uma frase perigosa, papai outra...
Eu via a hora de se descobrir tudo. Será que esta história vai dar certo, Caroba?
CAROBA — O casamento de Seu Eudoro com Dona Benona dando, o resto vem na
esteira, o seu com Seu Dodó, e até o meu com o moleque do Pinhão.
CAROBA — Gosto, Dona Margarida! Agora, por que, não sei, porque aquilo é
safado que fede! Mas hoje ele vai me pagar o novo e o velho. A senhora trouxe o
vestido?
MARGARIDA — Depois não diga que não avisei, está ouvindo? Passe bem,
Caroba. Espero que tudo dê certo, tanto no meu interesse como no seu.
CAROBA — O negócio começa a caminhar. Mas, meu Deus, a confusão vai ser a
maior do mundo. O vestido, aqui. (Esconde o vestido que recebeu de
MARGARIDA.) Falta alguma coisa, meu Deus! Ah, sim, a vítima! Dona Benona!
Crote, crote, crote! Dona Benona! (SUASSUNA, 2008, p.117 – 118).
Em troca da sua ajuda exige das outras personagens favorecimentos que incluíam
desde uma comissão, o casamento com Pinhão, como também “uma terrinha”, para
construção de sua casa. Suas ações são bem arquitetadas e planejadas, demonstrando assim,
sua independência para a resolução de todas as confusões existentes no enredo.
Dessa forma observa-se que Caroba também possui características pícaras, uma
vez que no enredo da peça ela é um tipo de personagem inferior que realiza suas ações
desleais, aventureiras, materialistas e apresenta caráter duvidoso, pois nas iniciativas dos seus
planos é arquiteta e planeja de maneira precisa.
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A personagem Caroba contém traços mais simples do que João Grilo, mas os
artifícios utilizados por eles para a resolução dos conflitos são bastante similares. Caroba
apresenta características mais amigáveis e, aparentemente, é mais confiável do que João
Grilo, pois todos a procuram, na confiança da resolução de seus problemas.
EURICÃO — Ai, ai! Ainda não tenho os vinte contos e já querem me roubar! Não
dou, não dou de jeito nenhum.
Diferentemente de João Grilo que não inspira confiança aos demais personagens,
em o Auto da Compadecida:
SEVERINO
Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra,
mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez.
JOÃO GRILO
Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer.
SEVERINO
Eu só acredito vendo.
JOÃO GRILO
Pois não. Queira Vossa Excelência me ceder seu punhal.
SEVERINO
Olhe lá!
JOÃO GRILO
Não tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para seu lado,
queime.
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SEVERINO
ao Cangaceiro
Aponte o rifle pra esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo!
(SUASSUNA, 2005, p.103).
CHICÓ
Não estou entendendo nada.
JOÃO GRILO
Pois vai entender daqui a pouco. Vou entrar também no testamento do cachorro.
CHICÓ
Como, João?
JOÃO GRILO
Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho e dinheiro?
CHICÓ
Disse.
JOÃO GRILO
Pois vou vender a ela, pra tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso que
descome dinheiro! (SUASSUNA, 2005, p.72 – 75).
EURICÃO – ...Ah, isso aí ele tem que reconhecer, minha filha é o patrimônio que
possuo. Hei de casá-la com um homem rico e ela há de amparar a velhice do
paizinho dela. Eudoro, com todo o dinheiro que tem, não tem uma filha como a
minha!
CAROBA – E o senhor, com a filha que tem, não tem uma riqueza como a dele!
Observe que ela afronta o patrão, mas não tem tanta firmeza em assumir sua fala.
Logo se recompõe, como se nada tivesse acontecido. Por ser um personagem feminino,
Caroba apresenta características mais sutis, ao contrário, de João Grilo que critica, fala o que
pensa e o que acha, sem medo das conseqüências.
Caroba e João Grilo apresentam autonomia durante suas ações nas obras, pois
suas peripécias são criadas e projetadas sem nenhuma preocupação e medo das conseqüências
que possam vir. Ambos sempre vivem pela sorte, um dos aspectos marcantes dos personagens
pícaros. Essa independência pode ser vista quando eles prometem resolver tudo, como pode
ser observado em:
O santo e a porca:
BENONA — Mas não desapareça para muito longe não, está ouvindo, Caroba?
CAROBA — Estou, Dona Benona, eu fico por perto. Se precisar, grite, que eu
venho. Entre, se embeleze, trate Seu Eudoro com carinho e deixe o resto que eu
garanto.
JOÃO GRILO
É isso que é preciso combinar com você. A mulher vem já para cá, cumprir o
testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora. Você vá lá e enfie essas pratas de dez
tostões no desgraçado do gato, entendeu?
CHICÓ
Entendi.
JOÃO GRILO
Quando eu gritar por você, venha, me entregue o gato e deixe o resto por minha
conta (SUASSUNA, 2005, p.73).
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João Grilo e Caroba são aventureiros e astutos, pois conhecem e sabem tirar
proveito das situações. Para conseguir seus lucros, estes pícaros reconhecem seu lugar no
enredo, e, em seguida, os espaços dos demais personagens. A partir disso avaliam as
qualidades e defeitos de todos para, assim, planejar, arquitetar e aplicar seus golpes.
Pode-se perceber a exploração do trabalho sofrida por ambas as personagens.
Caroba empregada de Euricão, não recebe nenhuma remuneração pelo seu trabalho. Ganha
apenas casa e comida. Assim, o patrão aproveita-se do empregado, revelando a realidade
nordestina para aqueles que são desfavorecidos:
DODÓ — Isso é um louco! Você não imagina até onde vai a avareza dele. Desde
que estou aqui, só se comeu à noite uma vez. E ele exige que a gente pague a
refeição, porque acha que mais de uma refeição por dia é luxo!
PINHÃO — Aí é que quero saber como! Ela me disse que desde que chegou aqui
ainda não recebeu um tostão!
DODÓ — O golpe dele é esse! Deu o primeiro jantar, cobrou o preço. Caroba não
pôde pagar porque não tinha recebido o ordenado. Agora, quando Caroba cobra o
ordenado, ele diz que ela primeiro pague o jantar. Como Caroba não tem o dinheiro,
não paga. Assim, por conta do jantar que ele dá cada mês, economiza o salário dos
empregados (SUASSUNA, 2008, p.89).
JOÃO GRILO
Ô homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela deixou
você? Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do
inferno? Pensam que são o Cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me
pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima
de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava pr’o cachorro. Até
carne passada na manteiga tinha. Pra mim nada, João Grilo que se danasse. Um dia
eu me vingo! (SUASSUNA, 2005, p.27).
CAROBA — Será que vai, meu santo? Acho que vai dar bem. Com a luz assim,
com o cabelo ajeitado, estou uma Dona Margarida bem apreciável. E agora, meu
Deus? (Destranca a porta e escuta no quarto do velho.) Até já, Santo Antônio, e
veja lá o que pode fazer por nós. Não estou metendo o senhor em molecagem não!
Assim que Seu Eudoro entrar no quarto de Dona Benona, eu dou o alarma e ele se
compromete, a simples entrada no quarto basta. De modo leve isso em conta e trate
de me ajudar (Sai.) (SUASSUNA, 2008, p.120).
A personagem sempre dialoga com o santo e pede sua ajuda. Isso também
acontece com os demais personagens, principalmente com Seu Euricão, por ser devoto de
Santo Antônio:
EURICÃO — Eu? Deus me livre de ler essa maldita! Essa amaldiçoada! Ai a crise,
ai a carestia! Santo Antônio me proteja, meu Deus! Ai a crise, ai a carestia!
(SUASSUNA, 2008, p.34).
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A COMPADECIDA
E pra que foi que você me chamou, João?
JOÃO GRILO
É que esse filho de chocadeira quer levar a gente pra o inferno. Eu só podia me
pegar, mesmo com a senhora (SUASSUNA, 2005, p.146).
Percebe-se que João Grilo é persistente e não perde as esperanças. Ele clama por
Nossa Senhora para a sua defesa e salvação contra as acusações do diabo. Os demais
personagens, também mantém sua fé em seus santos católicos, mesmo apresentando vícios e
atos pecaminosos.
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5 COSIDERAÇÕES FINAIS
Ariano Suassuna une o humor e a crítica à sociedade na criação das suas obras.
Dentro delas apresenta personagem que tentam driblar os problemas e desigualdades sociais
vividas pela sociedade brasileira da região sertaneja que sofre com violência e miséria. Todas
as suas personagens foram criadas a partir da poesia popular brasileira, do cordel, unidas em
histórias populares do Nordeste.
Ariano criou peças teatrais, carregadas de humor e comicidade. Para o
desenvolvimento de suas peças tenta expor a desmoralização e os vícios da sociedade,
utilizando o cômico e o irreverente, como suas características principais. Para chegar nessa
fase de comicidade pode-se perceber que Ariano obteve influência do teatrólogo português
Gil Vicente, principalmente nas sátiras, como pode ser observado no fato dos dois
dramaturgos criticarem diversos setores da sociedade de maneira muito semelhante.
Um dos aspectos essenciais do teatro é o personagem. Os personagens teatrais
realizam um papel importante, pois, é através deles que a peça acontece, logo que são
responsáveis por dar vida ao enredo. Dentro das obras Auto da Compadecida e O santo e a
porca, os personagens utilizam a sátira para evidenciarem a exposição e as críticas feitas às
diversos grupos sociais, demonstrando que, influenciados por leis sociais pré-existentes em
um grupo, os personagens dessas obras acabam por refletir pessoas comuns. Devido a isso
apresentam valores e juízos a serem retratados nas peças, a fim de tentar socializar aspectos
éticos e morais.
Por fim, com a leitura comparativa dos textos Auto da compadecida e O santo e a
porca pode-se perceber que os dois personagens principais, João Grilo e Caroba, nessas obras,
respectivamente, possuem características semelhantes. Suas atitudes e seu modo de criar
situações trapaceiras, desleais, mentirosas se enquadram na temática picaresca. Com estes
personagens pícaros, Ariano traça um perfil dos sertanejos, que por seu sofrimento e
dificuldades, encontram no caminho picaresco uma possibilidade de sobrevivência, uma
tentativa de ascensão social, mesmo que restrita. Assim, concluímos que, na realidade,
existem diversos Joões Grilos que tentam safar-se das condições precárias e situações
incomodas que são obrigados a suportar em virtude de sua inferioridade social. Do mesmo
modo há várias Carobas que sofrem em casas alheias, exploradas pelos patrões de serviços
domésticos.
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REFERÊNCIAS
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Suassuna como “criador e criatura”. 2006. 194f. Dissertação (Mestrado em Antropologia)
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2006.
GUIDARINI, Mário. Auto da Compadecida: Intertextualidade e interdiscursividade. Revista
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