São Bernardo - René Guénon
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São Bernardo
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Entre as grandes figuras da Idade Média há poucas cujo estudo seja mais
apropriado do que a de São Bernardo para dissipar certos preconceitos caros ao
espírito moderno. Efetivamente, haverá algo mais desconcertante, para esse
espírito, do que ver um puro contemplativo, que sempre quis ser assim e
continuar a sê-lo, chamado a desempenhar um papel preponderante na
condução dos negócios da Igreja e do Estado, e triunfando muitas vezes onde
tinha fracassado toda a prudência dos políticos e dos diplomatas de profissão?
Haverá algo mais surpreendente, e mesmo mais paradoxal, de acordo com a
maneira vulgar de julgar as coisas, do que um místico que só sente desdém por
aquilo que ele chama «as argúcias de Platão e sutilezas de Aristóteles» e, que,
todavia, vence sem dificuldade os mais sutis dialéticos do seu tempo? Toda a
vida de São Bernardo poderia parecer destinada a mostrar, através de um
exemplo fulgurante, que existem, para resolver os problemas de ordem
intelectual e mesmo de ordem prática, meios totalmente diferentes daqueles
que se tornou hábito, desde há muito tempo, considerar como os únicos
eficazes, sem dúvida porque eles são os únicos ao alcance de uma sabedoria
puramente humana, que nem sequer é a sombra da verdadeira sabedoria. Essa
vida aparece, assim, de qualquer modo, como uma refutação antecipada destes
erros, aparentemente opostos, mas realmente solidários, que são o
Nacionalismo e o Pragmatismo; e, ao mesmo tempo, confunde e derruba, para
quem as examina imparcialmente, todas as idéias preconcebidas dos
historiadores «cientistas» que consideram, com Renan, que «a negação do
sobrenatural constitui a própria essência da crítica», o que nós admitimos, aliás,
de bom grado, mas porque vemos nessa incompatibilidade o contrário do que
eles vêem nela: a condenação da própria «crítica», e não a do sobrenatural. Na
verdade, que lições poderiam, na nossa época, ser mais proveitosas do que
essas?
Bernardo nasceu em 1090, em Fontaines-lès-Dijon; os seus pais pertenciam à
alta nobreza de Borgonha, e se apontamos esse fato é porque nos parece que
alguns traços da sua vida e da sua doutrina, de que falaremos seguidamente,
podem, até certo ponto, estar ligados a essa origem. Não queremos, somente,
dizer que é possível explicar desse modo o ardor por vezes belicoso do seu zelo
ou a violência que ele pôs muitas vezes nas polêmicas para que foi arrastado, e
que era, aliás, meramente superficial, porque a bondade e a doçura constituíam,
incontestavelmente, o fundo do seu caráter. Pretendemos, sobretudo, aludir às
suas relações com as instituições e o ideal da Cavalaria, aos quais, de resto, se
deve sempre dar grande importância se se quiser compreender os
acontecimentos e o próprio espírito da Idade Média.
Foi por volta dos seus vinte anos que Bernardo concebeu o projeto de se retirar
do mundo; e em pouco tempo conseguiu fazer com que a sua visão fosse
partilhada por todos os seus irmãos, alguns dos seus próximos, e um certo
número dos seus amigos. Neste primeiro apostolado, a sua força de persuasão
era tal, apesar da sua juventude, que brevemente «ele se tornou, diz o seu
biógrafo, o terror das mães e das esposas; os amigos temiam vê-lo abordar os
seus amigos». Há já aí qualquer coisa de extraordinário, e seria seguramente
insuficiente invocar o poder do «gênio», no sentido profano desta palavra, para
explicar uma influência semelhante. Não será melhor reconhecer aí a ação da
graça divina que, penetrando de qualquer modo toda a pessoa do apóstolo e
irradiando exteriormente pela sua superabundância, se comunicava através
dele como por um canal, de acordo com a comparação que ele próprio utilizará,
mais tarde, aplicando-a à Santa Virgem, e que se pode também, restringindo
mais ou menos o seu alcance, aplicar a todos os santos?
Não temos aqui que voltar a traçar a história do cisma em todos os seus
pormenores: os cardeais, divididos em duas facções rivais, tinham eleito
sucessivamente Inocêncio II e Anacleto II; o primeiro, obrigado a fugir de
Roma, não desesperou dos seus direitos e fez deles apelo à Igreja universal. A
França foi a primeira a responder; no concilio convocado pelo rei em Etampes,
Bernardo apareceu, diz o seu biógrafo, «como um verdadeiro enviado de Deus»
no meio dos bispos e dos senhores reunidos; todos seguiram o seu conselho
acerca da questão submetida ao seu exame e reconhecerem a validade da
eleição de Inocêncio II. Este se encontrava,então, em solo francês e foi na abadia
de Cluny que Suger lhe anunciou a decisão do concilio; percorreu depois as
principais dioceses e foi por toda a parte acolhido com entusiasmo; este
movimento iria arrastar consigo a adesão de quase toda a Cristandade. O abade
de Claraval dirigiu-se ao rei de Inglaterra e triunfou prontamente das suas
hesitações; talvez tenha também tido uma parte pelo menos indireta no
reconhecimento de Inocêncio II por parte do rei Lotário e do clero alemão. Foi
seguidamente à Aquitania para combater a influência do bispo Gérard
d'Angoulême, partidário de Anacleto II; mas somente no decorrer de uma
se¬gunda viagem a esta região, em 1135, é que conseguiu destruir o cisma,
operando a conversão do conde de Poitiers. Entretanto, teve que ir a Itália,
chamado por Inocêncio II que tinha ali regressado com o apoio de Lotário, mas
que fora detido por dificuldades imprevistas, devidas à hostilidade de Pisa e de
Gênova; era necessário encontrar um entendimento entre as duas cidades rivais
e fazê-las aceitá-lo; Bernardo foi encarregado dessa difícil missão e levou-a a
cabo com o mais extraordinário êxito. Inocêncio pôde finalmente entrar em
Roma, mas Anacleto permaneceu entrincheirado em São Pedro, que foi
impossível tomar; Lotário, coroado imperador em São João de Latrão, em breve
se retirou com o seu exército; após a sua partida, o anti-papa retomou a
ofensiva e o pontífice legítimo teve que fugir novamente e refugiar-se em Pisa.
Desde o começo do ano de 1136, Bernardo teve que abandonar ainda uma vez a
sua solidão para vir, de acordo com os desejos do Papa, reunir-se na Itália ao
exército alemão, comandado pelo duque Henrique da Baviera, genro do
imperador. Tinha havido um desentendimento entre este e Inocêncio II:
Henrique, pouco cioso dos direitos da Igreja, mostrava em todas as
circunstâncias que só se preocupava com os interesses do Estado. Desse modo,
o abade de Claraval teve muito que fazer para restabelecer a concórdia entre os
dois poderes e conciliar as suas pretensões rivais, nomeadamente em certas
questões de investiduras, em que parece ter desempenhado constantemente o
papel de moderador. Lotário, que tinha tomado o comando do exército,
submeteu toda a Itália meridional; mas cometeu o erro de repelir as propostas
de paz do rei da Sicília, que não tardou em vingar-se, pondo tudo a ferro e fogo.
Bernardo, então, não hesitou em apresentar-se no campo de Rogério, que
acolheu muito mal as suas palavras de paz, e a quem ele predisse uma derrota
que efetivamente se produziu; depois, seguindo-o, juntou-se a ele em Salerno e
esforçou-se por afastá-lo do cisma em que a ambição o tinha lançado. Rogério
consentiu em ouvir os partidários de Inocêncio e de Anacleto, mas, sempre
parecendo conduzir o inquérito com imparcialidade, procurava apenas ganhar
tempo e recusou-se a tomar uma decisão; pelo menos, este debate teve como
resultado levar à conversão um dos principais autores do cisma, o cardeal
Pedro de Pisa, que Bernardo levou consigo até junto de Inocêncio II. Essa
conversão causou um golpe terrível na causa do anti-Papa; Bernardo soube
aproveitar-se desse fato, e na própria cidade de Roma, graças às suas palavras
ardentes e convictas, em poucos dias conseguiu afastar do partido de Anacleto
a maior parte dos dissidentes. Isso passou-se em 1137, perto da época das festas
de Natal; um mês depois, Anacleto morria subitamente. Alguns dos cardeais
mais comprometidos no Cisma elegeram novo anti-Papa com o nome de Vítor
IV; mas a sua resistência não podia durar muito tempo e, no dia da oitava de
Pentecostes, todos apresentaram a sua submissão; na semana seguinte, o abade
de Claraval retomava o caminho de regresso ao seu mosteiro.
Este resumo muito rápido basta-nos para ficarmos com uma idéia do que se
poderia chamar a atividade política de São Bernado, que, aliás, não parou aí: de
1140 a 1144 protestou contra a intromissão abusiva do rei Luís o Novo nas
eleições episcopais; seguidamente, interveio num grave conflito entre este
mesmo rei e o conde Thibault de Champagne; mas seria fastidioso alargarmo-
nos na citação destes acontecimentos. Em resumo, pode-se dizer que a conduta
de Bernardo foi sempre determinada pelas mesmas intenções: defender o
direito, combater a injustiça, e, talvez, acima de tudo, manter a unidade do
mundo cristão.
Foi essa mesma preocupação constante de unidade que o animou na sua luta
contra o cisma; foi ainda ela que o fez empreender, em 1145, uma viagem ao
Languadoc para fazer voltar à Igreja os heréticos neo-maniqueus que
começavam a espalhar-se por essa região. Parece que ele teve sempre presente
no pensamento estas palavras do Evangelho: «Que todos sejam um, como meu
Pai e eu somos um».
Todavia, o abade de Claraval não tinha só que lutar no domínio político, mas
também no domínio intelectual, em que os seus triunfos não foram menos
fulgurantes, visto que foram marcados pela condenação de dois eminentes
adversários: Abelardo e Gilbert de Ia Porrée. O primeiro tinha adquirido a
reputação de ser um dos mais hábeis dialéticos, graças aos seus ensinamentos e
aos seus escritos; chegava mesmo a abusar da dialética, porque em vez de ver o
que ela é na realidade, um simples meio para chegar ao conhecimento da
verdade, encarava-a quase como um fim em si mesmo, o que resultava,
naturalmente, numa espécie de verbalismo. Parece também que havia nele,
seja no método, seja no próprio fundo dos ideais, uma procura de originalidade
que a aproxima um pouco dos filósofos modernos; e numa época em que o
individualismo era quase desconhecido, este defeito não podia arriscar-se a
passar por uma qualidade, como acontece' nos nossos dias. Assim, em breve,
alguns se mostraram inquietos com estas novidades que tendiam a estabelecer
uma verdadeira confusão entre o domínio da razão e o da fé; não que Abelardo
fosse propriamente um racionalista, como por vezes se afirmou, porque não
houve racionalistas antes de Descartes; mas não soube distinguir entre o que era
do domínio da razão e o que lhe é superior, entre a Filosofia profana e a
sabedoria sagrada, entre o saber puramente humano e o conhecimento
transcendente — e essa foi a raiz de todos os seus erros. Não ia ele ao ponto de
sustentar que os filósofos e os dialéticos gozam habitualmente de uma
inspiração que seria comparável à inspiração sobrenatural dos profetas?
Se o objetivo imediato da cruzada não tinha sido alcançado deveria, por isso,
dizer-se que essa expedição tinha sido completamente inútil e que os esforços
de São Bernardo tinham redundado em pura perda? Não o cremos, apesar do
que poderiam pensar os historiadores que se agarram apenas às aparências
exteriores, porque havia nestes grandes momentos da Idade Média, que tinham
simultaneamente caráter político e religioso, razões mais profundas, das quais
uma, a única que que¬remos aqui indicar, era a de manter na Cristandade uma
viva consciência da sua unidade. A Cristandade era idêntica à civilização
ocidental, baseada então em bases essencialmente tradicionais, como toda a
civilização normal, e que iria alcançar o seu apogeu no séc. XIII; a perda deste
caráter tradicional devia necessariamente seguir-se à ruptura da própria
unidade da Cristandade. Essa ruptura, que foi efetuada no domínio religioso
pela Reforma, ocorreu no domínio político pela instauração das nacionalidades,
precedida pela destruição do regime feudal; e pode-se dizer, segundo este
último ponto de vista, que aquele que desferiu os primeiros golpes no
grandioso edifício da Cristandade medieval foi Filipe o Belo, o mesmo que, por
uma coincidência que não tem certamente nada de fortuito, destruiu a Ordem
do Templo, atacando por aí, diretamente, a própria obra de São Bernardo.
No decurso de todas as suas viagens, São Bernardo apoiou constantemente a
sua pregação em numerosas curas milagrosas, que eram para as multidões
como que sinais visíveis da sua missão; estes fatos foram contados por
testemunhas oculares, mas ele referiu-se muito pouco a eles e contra vontade.
Talvez essa reserva lhe fosse imposta pela sua extrema modéstia; mas também
certamente atribuía a esses milagres apenas uma importância secundária,
considerando-os somente como uma concessão feita pela misericórdia divina à
fraqueza da fé na maior parte dos homens, de acordo com as palavras de Cristo:
«Felizes aqueles que acreditam sem terem visto». Essa atitude estaria de acordo
com o desdém que ele manifestava, em geral, por todos os meios exteriores e
sensíveis, tais como a pompa das cerimônias e a ornamentação das igrejas; foi
mesmo possível censurarem-no, com alguma aparência de verdade, por ter
manifestado desprezo pela arte religiosa. Os que formulam esta critica
esquecem, todavia, urna distinção necessária, a que ele próprio estabelece entre
o que chama arquitetura episcopal e arquitetura monástica: só esta última deve
ter a austeridade que ele preconiza; somente aos religiosos e aos que seguem o
caminho da perfeição ele proíbe o «culto dos ídolos», ou seja, das formas, acerca
das quais, pelo contrário, ele proclama a sua utilidade como meio de educação
para os simples e os imperfeitos. Se ele protestou contra os abusos das figuras
desprovidas de significado e tendo apenas valor ornamental, não podia querer,
como falsamente se afirmou, abolir o simbolismo da arte arquitetural, quando
ele próprio o utilizava freqüentemente nos seus sermões.
A doutrina de São Bernardo é essencialmente mística: queremos dizer que ele
encara sobretudo as coisas divinas sob o aspecto do amor, o que seria, aliás,
errado interpretar aqui num sentido simplesmente afetivo, como o fazem os
modernos psicólogos. Tal como muitos dos grandes místicos, ele foi
especialmente atraído pelo «Cântico dos Cânticos», que comentou em
numerosos sermões, formando uma série que prosseguiu através de quase toda
a sua carreira; e este comentário, que ficou por terminar, descreve todos os
graus do amor divino até à paz suprema que a alma alcança no êxtase. O estado
de êxtase, tal como ele o compreende e certamente alcançou, é uma espécie de
morte para as coisas deste mundo; com as imagens sensíveis todo o sentimento
natural desaparece, tudo é puro e espiritual na alma como no seu amor. Este
misticismo devia naturalmente refletir-se nos tratados dogmáticos de São
Bernardo; o título de um dos principais, «De diligendo Deo», mostra
efetivamente o lugar aí ocupado pelo amor; mas seria errado acreditar que isso
aconteça em detrimento da verdadeira intelectualidade. Se o abade de Claraval
quis sempre permanecer estranho às vãs sutilezas da escola é porque não tinha
qualquer necessidade dos laboriosos artifícios da dialética; resolvia de um só
golpe as questões mais árduas, nunca procedendo segundo uma longa série de
operações discursivas; aquilo que os filósofos se esforçam em alcançar através
de um desvio, e como que tateando, ele atingia-o imediatamente pela intuição
intelectual, sem a qual nenhuma metafísica real é possível, e fora da qual só se
pode colher uma sombra da verdade.
Um último traço da fisionomia de São Bernardo que é ainda necessário
assinalar é o lugar eminente ocupado na sua vida e nas suas obras pelo culto da
Santa Virgem e que deu lugar a um florescer de lendas que são talvez o seu
traço mais popular. Ele gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora,
tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte
graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro «cavaleiro
de Maria» e via-a realmente como a sua «dama» no sentido cavalheiresco desta
palavra. Se se aproximar este fato do papel que desempenha o amor na sua
doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas,
nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente
a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens
familiares. Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como
eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de
certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias,
o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o
poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na
natureza de um e de outro. Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois
caracteres eram os dos membros da «milícia de Deus» da Ordem do Templo;
eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo
que foi chamado o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver,
não sem alguma razão, o protótipo de Gallaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o
herói vitorioso da «demanda do Santo Graal».