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A redescoberta da espiritualidade um dos sinais do nos so
tempo. Sinal de protesto, de cansao e de espe rana.
Prot esto contra a pr pr ia declar ao de "autonomia" do ser humano. Cansao de um mat er ialismo que tornou a vida mais seca . E espe rana de um encontro mais significativo co m Deu s, con sigo mesmo e co m o outro. Es ta espiritualidade dos nossos dias caminha em vrias dir ees, da pirmid e ao guru oriental. Cabe igreja , como encarnao e atalaia do evangelho, apontar para um caminho confivel nessa busca por sentido e significado na . vida. Esse caminho, como veremos neste impressionant e livro, intitul ado O Caminho do Corao, nos leva em dir eo Trindade Pai, Filho e Esprito Sant o e ao nosso pr prio cor ao . Bem- aventurados so os que se colocam no caminho desta espiritua lidade da Trindade, que acaba sendo a espiri tualidade do corao. Pro Valdir Steuernagel Ricardo Barbosa de Sousa o CAMINHO no "." CORAAO Ricardl Barblla 111 Sllla o CAMINHO DO "", CORAAO Todos os direitos reservados. Copyright 2004 da Encontro Publicaes. Titulo O Carrlinho do Corao Autor Ricardo Barbosa de Sousa Coordenao Editorial e diagralnao Sandro Bier Reviso Silda Silva Steuernagel Capa Isaac 'Var-zizn Foto da Capa Reproduo de detalhe da obra "Drei Frauen in der Kirche" de Elke Walford, H'arrrbtrr-g'er- Kunsthalle, .Alerrrarrba. S725c Sousa, Ricardo Barbosa de. O Caminho do Corao: Ensaios sobre a Trindade e a Espiritualidade Crist I Ricardo Barbosa de Sousa. - Curitiba: Encontro, 2004. 205p.; 21 cm. ISBN 85-86936-01-4. 1. Espiritualidade. 2. Santssillla Trindade. I. Ttulo. C D D ~ 2 4 2 . 2 Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida aern o consentimento prvio, por escrito. 1 a edio: 1996 2 a edio: 1998 sa edio: 1999 4 a edio: 2002 5 a edio: 2004 ENCONTROPUBUCAES - Movimento Encontro - Caixa Postal 18120 80811-970 Curitiba, PR Tel.: (41) 352.5030 Fax: (41) 352.6962 e-rriail: [email protected] www.me.org.br/encontro I "1. 1 ',I'""fr"'." 111-1- Sumrio , PREFACIO ........................ 11 I NTRODUO............................................ 15 J: PARADIGMA DA ESPIRITUALIDADE (RISl 23 J: FIDELIDADE EINTEGRIDADE 24 , A DUVIDA ,'" " "' 25 A APOSTA ~ 27 O SENTIDO DA ESPIRITUALlDADE CRIST NA EXPERINCIA DE J 29 A DOUTRINA DA RETRIBUiO 33 "O ENCONTRO DE DUAS LIBERDADES" 41 SOMENTE DEUS 47 A TRINDADE EA ESPIRITUALIDADE 51 A FRAGMENTAO DATRINDADE EO DESAFIO DA UNIDADE DA IGREJA 53 TRINDADE ECONMICA ETRINDADE IMANENTE 56 A NATUREZA DO DEUS BBLICO 58 A TRINDADE NA TEOLOGIA DE RICARDO DE SO VCTOR 61 QUAIS AS IMPLICAES DA DOUTRINA DATRINDADE PARA A ESPIRITUALlDADE CRIST? 67 DOIS MODELOS DE ESPIRITUAlIDADE NA IGREJA CONTEMPORNEA EA PROPOSTA DE UMA ESPIRITUAlIDADE TRINITRIA 79 A TRINDADE, A OBEDINCIA EA LIBERDADE 86 A QUESTO SOCIAL EA DOUTRINA DATRINDADE 88 CONCLUSO o 91 9 AGRADECIMENTOS Todos ns sabemos que um livro nunca escrito por uma nica mo. Existem pessoas e comunidades por trs de cada palavra ou sentena. Quero aqui expressar minha gratido a todos aqueles que, de alguma forma, contriburam para que o contedo deste livro pudesse finalmente ser apresentado. Quero comear com meu amigo e professor Dr. James Houston, fundador e professor de espiritualidade do Regent College em Vancouver, Canad. Foi ele quem me acolheu e, por mais de um ano, me aj udou no apenas a conhecer os princpios da vida espiritual, como tambm a conhecer os caminhos da minha alma. Foi um mestre que alimentou tanto o meu intelecto como meu corao. Ensinou-me a orar e a resgatar do corao o lugar dos afetos. Foi um mestre em seu sentido mais completo, olhou para mim como pessoa, compreendeu meus temores e aj udou-me a encontrar o caminho para um relacionamento mais pessoal, ntimo e fraterno com Deus. Quero agradecer tambm a minha igreja, Igreja Presbiteriana do Planalto, que pastoreio desde 1982, quando foi organizada. Durante todos estes anos tornou-se o lugar de crescimento e aprendizado mais frtil, o campo onde as relaes de amor e amizade so construdas em meio s tenses e crises do pecado. nela que o contedo deste livro discutido e vivenciado com todas as alegrias e limitaes prprias de uma igreja que enfrenta os desafios da modernidade, e tambm nela que tenho redescoberto a alegria do pastoreio. uma comunidade 10 o Caminho do Corao paciente, capaz de conviver com as minhas limitaes e imperfeies, criando atravs da rotina da vida eclesistica o espao necessrio para a comunho e celebrao. Para com minha esposa, Maria Cristina, a Tininha, e os meus filhos Thiago e Arthur, carrego uma impagvel dvida de gratido. aqui dentro de casa, longe dos lugares e das responsabilidades que camuflam nosso verdadeiro ser, que posso me mostrar exatamente como sou e ter a certeza de ser amado. aqui que a espiritualidade crist vivida com toda a sua -intens idade e fraqueza. Sou profundamente grato minha esposa e filhos por me acolherem com carinho e ternura. Quero agora, particularmente, agradecer ao meu amigo Valdir Steuernagel por ter me dado o primeiro empurro para escrever este livro, quando leu um trabalho meu que foi apresentado numa consulta da Fraternidade Teolgica Latino-americana, e me incentivou a transform-lo em livro. Ao conselho da I P ~ frum de debates e idias que nos estimulam a pensar e caminhar. A Bete, Luiz Carlos e Rubem Amorese pelo incentivo e pelas contribuies dadas para o enriquecimento deste livro. A todos e muitos outros que de uma forma ou de outra trouxeram sua contribuio, meu muito obrigado. 11 PREFCIO Ao comemorar e prefaciar este primeiro livro do Rev. Ricardo Barbosa de Sousa, no posso evitar um sentimento retrospectivo. Lembro-me de 1987, quando lanvamos o primeiro livreto da srie "Teologia Prtica", na Editora Sio; J falvamos, ento, da "virada do milnio", sempre na perspectiva de ajudar a igreja brasileira a enfrent- la. Era assim, o nosso discurso: Que desafios enfrentar a Igreja do Senhor Jesus na virada do milnio? Ser possvel prever os problemas que defrontaremos? Poderemos preparar-nos para abord-los em seu nascedouro, quando as coisas ainda so mais fceis? Que tipo de hermenutica precisar desenvolver essa Igreja para que possa obter da Palavra de Deus uma palavra de resposta aos problemas da nossa sociedade, no nosso momento concreto e histrico? Como contextualizar seu ensino realidade existencial do homem comum de hoje? Como evitar que transformemos a nossa compreenso, o nosso mapeamento das verdades eternas da Bblia em uma teologia sistematizada, pronta, acabada, fossilizada e, portanto, intil? Como manter essa Palavra imutvel e inerrante sempre <la caminho", sempre desvelando- se; atualizada com os problemas emergentes, com os desafios das manifestaes de anti-vida do aqui e agora? Que pode a Igreja fazer para ser "sal e luz" nessa mesma sociedade? Como posso eu entender o que est acontecendo minha volta e me 12 o Caminho do Corao colocar a servio do Senhor Jesus - agora? Ento, qual a palavra do Senhor para a minha sociedade, quanto ao problema da educao, da delinqncia, da droga, da opresso do metr lotado, da facilidade do sexo livre, do descompromisso da amizade colorida, da tentao do "trem da alegria", da naturalidade do vdeo-cassete pornogrfico, da enganosa soluo da clnica de abortos, da devastao ecolgica, da dvida externa e tantos outros que tornam a vida do cidado comum em um inferno? Enfim, estar a Igreja do nosso tempo preparada para apresentar sua gerao respostas e propostas concretas, desafiadoras e redentivas? Mais ainda: estar preparada para encarnar um estilo de vida que demonstre, de forma insofismvel, a realidade, verdade, concretude e superioridade do projeto original de Deus para suas criaturas? Pois bem. O tempo passou e j estamos vivendo o Sculo XXI. No entanto, a preocupao continua a mesma: estaremos preparados para enfrentar o desafio do discipulado em nosso tempo? As perspectivas e diagnsticos mudaram um pouco, desde ento. Naquela poca, o grande desafio, conforme se pode depreender do texto acima, ainda era fortemente calcado em encontrar respostas para fatos e dilemas emergentes, resultantes do avano tecnolgico. Isso no mudou. Ao contrrio, agravou-se, e est mais presente do que nunca. Mas j somos capazes, de to fundo que entramos no furaco, de ver seu epicentro. Dizem que o ceitro do furaco calmo. Neste caso, mesmo. Uma calma inesperada, que pode ser confundida com muitas coisas. A calma do conforto tecnolgico; a calma da privacidade; a calma das indiferenas. Na verdade, o que podemos vislumbrar, do ponto em que estamos, que aqueles problemas que temamos no so to temveis assim. O que hoje nos assusta o que eles so capazes de fazer com a nossa alma. Ricardo nos alerta, de repente, que no havemos de temer tanto o desafio que o materialismo apresenta nossa f, mas o poder I, j .. - I, ~ I , I , ~ ,I . \ .." 13 esfacelador que a privatizao produz sobre a vida crist. No se trata tanto de defender o Cristianismo, num tempo em que ele se espalha como nunca em nosso continente, mas de entender como esse mesmo Cristianismo pode, paradoxalmente, transformar-se em sal sem sabor. nesse contexto que temos diante dos olhos um conjunto de textos absolutamente novos para a gerao dos anos 90. Textos que apontam para o caminho de resgate de relaes afetivas, seja entre as pessoas, sej a entre elas e Deus. Como que a dizer que sem uma correta relao com Deus no possvel relacionar-se corretamente com os irmos. Por outro lado, sem um relacionamento afetivo e amoroso com meu irmo, no podemos, absolutamente, dizer que conhecemos a Deus. Nessa dialtica, to bem apresentada pelo apstolo Joo, em sua primeira epstola, reside, todo o desafio do crente do limiar do terceiro milnio. E o desafio muito grave porque esse crente tem contra si todo o conforto e condies materiais que seu tempo lhe oferece, como convite ao isolamento e indiferena. Se podemos dizer que uma sociedade plural uma sociedade sob o imprio das diferenas, com as quais temos que aprender a conviver, ento podemos dizer, tambm, que o subproduto da pluralidade a privatizao da vida, marcada pelas indiferenas. Foi- se o tempo dos grandes projetos, das grandes bandeiras de luta ideolgica, dos campi universitrios em ebulio, dos ideais de vida e de morte. O jovem dos anos 90 acha graa das histrias de luta de seus pais cinqentes. Vivemos um tempo de pluralidade e privacidade: diferenas que geram indiferenas. Eu respeito para ser respeitado; aceito a diferena porque nada posso fazer sobre isso. Mas, por outro lado, tambm nada tenho a ver com isso. Cuido da minha vida. O homem moderno, por conseguinte, progressivamente s. rfo de pai, me e irmos. Nesse momento, Ricardo nos alerta para o grande desafio que esse tempo representa para a identidade da igreja. Vamos, aos poucos, perdendo nossa capacidade de relacionamento verdadeiro, honesto, sincero; nossas alianas se fragilizam sob o peso das ressalvas privatizadoras. Nosso Deus se torna distante e "discreto". Numa palavra, um deus light. Baixos teores de religiosidade, o que nos resta. Como reflexo horizontal, vai-se a proximidade, vai-se o calor, 14 o Caminho do Corao vai-se a afetividade, a emoo, a profundidade. Vai-se a vida interior. Vai-se, com isso, toda a possibilidade de verdadeira comunho. Como recuperar esse cerne do evangelho? Como recuperar a profundidade de vida contida na capacidade de desenvolver relacionamentos amoro.sos, profundos, duradouros, estveis e significantes, com Deus e com os irmos? Como evitar que nossa vida se transforme em mais um subproduto sinttico e padronizado, da sociedade-supermercado em que nos transformamos? justamente a que Ricardo pretende trabalhar. Ele nos prope, a ns, igreja do terceiro milnio, um mergulho nas profundidades abissais de nossos mais secretos anseios de vida e de Deus. E nos oferece, ao resgatar valores das tradies crists mais antigas, caminhos para chegar l. Rubem. AInorese I' I I. I. jl ;;1 I 11111, - - ~ \ , ~ 'I 15 INTRODUO , Recentemente li um artigo sobre um telogo protestante que decidiu passar trs meses num mosteiro Trapista. Aps este perodo, ele descreve o impacto dessa experincia com estas palavras: "Eu sou um telogo, passei minha vida lendo, ensinando, pensando e escrevendo sobre Deus. Mas preciso ser honesto - eu nunca experimentei de fato Deus... Eu no tenho conscincia do que realmente significa a 'presena de Deus'."! possvel que algum dedique toda a sua vida ao estudo e ao conhecimento de Deus, lendo, pensando, escrevendo e ensinando, e no tenha nenhuma experincia real com Deus? Nenhum sentimento da presena de Deus? possvel que um cristo tenha experincias carismticas com Deus e mesmo assim no tenha nenhuma relao pessoal com Ele? Talvez, para muitos, a resposta a estas perguntas seria simplesmente dizer que tal pessoa no experimentou de fato a converso. Adquiriu conhecimento, vivenciou experincias, mas no nasceu de novo, no se converteu. Em parte creio que tal resposta, muito comum entre ns, responde a pergunta, mas deixa ainda um grande vazio quando se trata de pessoas que experimentaram uma converso real, vivenciaram experincias sinceras, e que no entanto, diante de situaes novas e dramticas, descobrem que no conhecem Deus, ou que seu conhecimento e experincias, no mnimo, no 1. Citado por MAAS, Robin e O'DONNELL, Gabriel, no livro Spiritual Traditions for the Contemporary Church, Abingdon Press. p.l I. 16 o Caminho do Corao respondem aos dilemas vividos. As respostas a essas perguntas que envolvem cristos sinceros e honestos esto no centro da nossa reflexo sobre o dilema espiritual que afeta no s a telogos e professores de Bblia, mas tambm leigos, numa dimenso ampla e profunda. O que significa o conhecimento de Deus na nossa experincia pessoal e comunitria? Que papel a teologia desempenha neste conhecimento? Na minha experincia, tanto pessoal como pastoral, tenho observado que nem sempre a informao (conhecimento cognitivo) ou mesmo a ao (experincia religiosa) determina um encontro pessoal com Deus. Hoje, mais do que em qualquer outra poca, tenho observado que muitos cristos vivem o paradoxo de um ativismo religioso incomparvel e um vazio espiritual sem precedentes. Na verdade, o ativismo no outra coisa seno a mscara que cobre o vazio relaciona!. O que, ento, determina o nosso encontro com Deus? Ser que a converso implica automaticamente o estabelecimento de uma relao pessoal com Deus? Para entender este dilema, teremos de caminhar numa via de mo dupla. De um lado, temos nossos fundamentos bblicos e teolgicos, sem os quais nosso caminho perde seus limites e fronteiras. Por outro lado, temos que olhar para o nosso corao, a fonte de nossos afetos e devoes, que o lugar onde nascem nossas relaes ntimas e pessoais. Este encontro pessoal com Deus e o cultivo desta relao o tema central que envolve nossa f e toda a nossa teologia e, no entanto, ainda permanece para muitos cristos obscuro; nossa busca por respostas a este desejo latente na alma de todo ser humano tem levado muitos a percorrerem caminhos que, conquanto corretos na sua proposta, nem sempre levam aonde de fato desejamos ir. O relacionamento pessoal e ntimo com Deus o assunto mais elementar e ao mesmo tempo o mais profundo e misterioso na nossa vida espiritual. Este o tema que pretendemos tratar aqui. Sei que inmeros livros j foram escritos sobre o assunto, e que possivelmente muitos devem estar perguntando o que algum poderia acrescentar de novo. Na verdade, no pretendo apresentar nada de novo, muito pelo contrrio, minha inteno resgatar um pouco da nossa histria, daquilo que j foi dito sobre um tema to antigo quanto a prpria f; recuperar algumas de nossas tradies espirituais que muito I, I, I I, I , 17 contriburam para o relacionamento do homem com Deus, e tentar criar algumas pontes entre o passado e o presente. Nossa abordagem procurar tambm considerar a realidade da espiritualidade evanglica, a forma como vem sendo vivenciada pela igreja, e as influncias que o mundo moderno exerce sobre ela. A crise que hoje vivemos, no apenas no Brasil mas em todo o mundo ocidental, , a meu ver, o resultado da falncia de uma civilizao cientfica e tecnocrtica, que fracassou ao desconsiderar a dimenso espiritual e relacional do ser humano. Em parte, essa crise que vivemos tem suas razes nos afetos. As transformaes que a civilizao moderna vem experimentando nestes ltimos anos tem provocado mudanas, muitas vezes no percebidas por ns, e que afetam profundamente nossas estruturas comunitrias e relacionais. A competitividade instalou-se no homem moderno como um vrus para o qual ainda no se descobriu nenhum antdoto. Pelo contrrio, ele vem sendo alimentado pelo individualismo e o consumismo que se tornaram o passaporte para a realizao do homem. Este fenmeno vem atingindo tambm a comunidade crist na forma de um novo modelo de espiritualidade que desagrega e compromete o sentido de ser igreja. Muitas igrejas vivem hoje um clima de intensa competitividade que as leva a uma permanente busca de modelos litrgicos alternativos, como se fossem "grifes" disputando ,- seu espao no mercado religioso. E preciso inovar para competir, para manter-se no mercado. Recentemente ouvi de um amigo envolvido no mercado de msica religiosa sobre o interesse das grandes indstrias fonogrficas na fatia do mercado evanglico. Algumas j pensam em contratar diretores exclusivos para atender a esta demanda. Por um lado, fico contente com a insero da msica evanglica no mercado secular como forma de testumunho do amor de Deus; mas, por outro, fico preocupado com o esprito empresarial neste mercado. Esse mesmo amigo disse que as indstrias fonogrficas planejam com mais de um ano de antecedncia qual dever ser o tipo de msica que dominar o mercado. Isto quer dizer que num escritrio qualquer, alguns executivos (muitos deles nem sequer cristos), com dados e pesquisas nas mos, decidiro o que os cristos iro gostar ou no nos prximos anos; e faremos isto pensando que uma "obra do Esprito". Isto em parte 18 () Caminho do Corao ilustra o poder com que o esprito moderno afeta a igreja e sua espiritualidade. o mercado quem decide a agenda da igreja., A religio vem se transformando em mais um item na prateleira do vasto mercado de consumo, vem sendo reduzida a uma experincia individual, utilitria e desconectada no apenas da tica e da moral, mas tambm da alma e do corao do homem. A influncia que estes novos hbitos e comportamentos trazem sobre ns, nossos relacionamentos e, particularmente, sobre nossa espiritualidade, incalculvel. Hoje, a pessoa vale muito mais pelo que possui e pode oferecer do que por quem ; e a busca pelo ter exige uma opo pelo poder, pela independncia, pela autonomia. A partir do momento em que o ter define o ser, estabelecemos uma nova base para o significado da pessoa; e isto compromete todo o universo relacional, inclusive o espiritual. O individualismo, associado com os outros fenmenos do mundo moderno, traz um dos maiores desafios espiritualidade crist que jamais temos visto. o desafio do encontro, da relao, da descoberta do outro no pelo que tem ou representa, mas por quem . Penetrar neste mistrio que envolve nossas relaes pessoais ir exigir de ns uma postura crtica em relao ao que acontece ao nosso redor e em buscar os caminhos que nos integrem novamente numa relao que seja afetiva, ntima e pessoal. O fato que presenciamos hoje a constatao de que o testemunho daquele telogo que passou trs meses num mosteiro vem se tranformando numa realidade em quase todo o mundo protestante. Talvez a grande dificuldade que todos temos de reconhecer que no conseguimos nos ver fora do ativismo religioso em que estamos inseridos, o qual desenvolve um papel alienante. O ativismo nos aliena das relaes pessoais, criando um mundo onde o fazer determina o significado do ser. Relacionamo-nos com o nosso trabalho e tudo o que gira em torno dele. Tornamo-nos dependentes da agitao dos nossos cultos e programas religiosos que no reservam tempo nem oportunidade para um encontro com nossa prpria alma, com nosso corao. No nos conhecemos mais, no sabemos quem sorrios, apenas o que sabemos fazer. Quando algum cristo moderno arrisca-se a passar trs meses num mosteiro Trapista (os Trapas dedicam-se ao silncio, , I , I 19 meditao e orao), o convvio com o silncio lhe traz revelaes sobre si mesmo, as quais nunca teria no meio da agitao e fervor dos cultos. Esta revelao fundamental para a construo de sua espiritualidade. Sabemos muito sobre Deus, teologia, misso, tica, moral, louvor, mas nossa experincia pessoal e afetiva com Deus excessivamente pobre. Tal pobreza limitada no apenas pela falta de conhecimento bblico e das influncias do mundo moderno sobre nossa f, mas tambm pela ausncia de uma experincia real de amor e aceitao que muitos de ns jamais tivemos na vida. H pouco tempo, conversando com um amigo sobre nossa experincia afetiva com Deus, ouvi dele a seguinte resposta: "Eu no posso dizer que amo a Deus. Na verdade, no sei o que significa amor, nunca tive uma experincia real de amor, no sei o que isto significa." Foi uma resposta honesta e corajosa. O que est em jogo nesta afirmao no o conhecimento cognitivo de Deus, nem mesmo a segurana quanto salvao; mas o lugar do corao e afeto na relao pessoal com Deus. O conflito apresentado pelo meu amigo revela algo mais profundo, uma limitao afetiva que normalmente substituda por atividades ou experincias que nos iludem e mudam o centro da nossa espiritualidade. Este tipo de conflito pode muito bem representar a realidade de muitos cristos hoje, em escala e nvel variados. O fato que as experincias negativas que carregamos da nossa infncia, as feridas relacionais construdas ao longo da nossa vida, as carncias emocionais e afetivas que todos temos e que esto presentes no nosso mundo interior, determinam nossas relaes tanto com os homens como com Deus. Se olharmos para nossa vida de orao, poderemos constatar sem muita dificuldade o que eu falo. Para muitos de ns a orao o aspecto da vida crist em que sempre nos encontramos em falta. Mas, mesmo assim, o cultivo da orao apenas como uma amizade com Deus, pelo simples prazer de estar em sua presena e gozar sua companhia, uma experincia um tanto rara para muitos cristos, simplesmente porque no sabemos o que significa amizade. relativamente raro encontrar algum que tenha tido uma verdadeira experincia de amizade. Minha igreja razoavelmente pequena, e sempre considerei que seu ponto forte fosse a amizade e os 20 o Caminho do Cor-ao relacionamentos pessoais. No entanto, no bem assim. Recentemente fizemos uma pesquisa em que pudemos constatar que muitos ali sentem-se solitrios. Esto freqentemente juntos, temos muitos programas de convvio, mas o cultivo de amizades ntimas e profundas no to comum quanto me parecia ser. Isto revela a fragilidade da nossa amizade com Deus." Quando vejo pessoas orando, fazendo afirmaes do tipo "eu ordeno", "eu reivindico" ou mesmo "eu exijo", fico pensando que tipo de amizade esto construindo com Deus; ou que imagem de Deus estas pessoas tm em mente quando oram. A lgica, a razo, a cincia e at mesmo a experincia no determinam "a priori" um encontro pessoal com Deus. Podemos ser mestres em divindade, doutores em teologia, lderes carismticos, e ainda assim chegar mesma concluso de vazio espiritual experimentado por muitos cristos ao longo da histria. Este livro a coletnea de cinco ensaios sobre a espiritualidade que escrevi para diferentes situaes. Dois deles j foram publicados, ambos pela Comunicarte.A Redescoberta do Pai saiu no livro que registra as palestras apresentadas no Congresso da AEVB. O outro saiu na forma de livreto sob o ttulo Comunho pela Con.ifisso. Ambos sofreram neste livro algumas mudanas e acrscimos. Os outros trs so apresentados aqui pela primeira vez. Todos eles abordam o mesmo tema da espiritualidade crist. Na verdade, estes cinco textos constituem, na minha opinio, um caminho para a reflexo e a construo tanto da experincia espiritual como de sua teologia. O primeiro captulo trata da experincia vivida por J, que constitui-se num paradigma para nossa experincia espiritual e humana. J representa um modelo de encontro com Deus que, de certa forma, define a natureza do nosso encontro e relao com Ele. O segundo uma tentativa de abordar o tema da Trindade na perspectiva de sua contribuio para a vida espiritual. Para muitos cristos modernos a Trindade praticamente nada tem a contribuir com as situaes que envolvem nosso dia-a-dia, pois trata-se de um tema complexo, abstrato e sem qualquer relevncia para a espiritualidade. Procurarei mostrar no apenas sua relevncia, mas tambm sua centralidade para o 2. Ver o livro Orar com Deus, de HOUSTON, .L, que aborda a orao como uma amizade com nf'IIS llllf' tr-an sfor-rna o C:lr:ltpr hurnano. ARRA Pr-ess. So Paulo. 1994. 21 cristianismo. Oterceiro captulo aborda a contribuio dos pais do deserto e do movimento monstico para a espiritualidade contempornea. Infelizmente, para muitos evanglicos, o cristianismo deu um salto do primeiro sculo para osculo dezesseis, etudo quanto aconteceu neste perodo que envolve os sculos II a XV nada tem a contribuir para a f crist. No entanto, um dos perodos mais frteis da espiritualidade crist encontra-se na contribuio dos pais do . ~ deserto que, com sinceridade e integridade de corao, buscavam um encontro verdadeiro com Deus. Oquarto captulo trata do resgate da centralidade do Pai na espiritualidade do Filho. Diante da orfandade alienante que o homem moderno enfrenta, sem dvida a redescoberta do Pai na vida do Filho representa um dos grandes desafios espiritualidade emisso da igreja. Por fim abordarei oesquecido tema da confisso como caminho para a amizade, comunho e liberdade. Minha esperana que a meditao nestes temas produza despertamento para oresgate da dimenso relacional da teologia e da vida crist. 'Amar aDeus eao prximo como ans mesmos" constitui, nas palavras de Jesus, toda alei e os profetas. Ricardo Barbosa de Sousa Braslia, dezembro de 1995 11 23 ~ JO: PARADIGMA DA ESPIRITUALIDADE CRIST Eu oro para que Deus abra os nossos olhos e nos permita ver os tesouros escondidos que Ele nos concede nos sofrimentos dos quais o mundo s pensa emfugir. Joo de vila . I' . I .' I, II 24 o Caminho do Corao o livro de J narra uma das experincias espirit uais mais dramticas jamais vividas por um ser humano. Entender o relato de J, na perspectiva da espiritualidade crist, constitui-se, sem dvida alguma, numa das mais ricas e profundas percepes das crises da alma humana na busca por significado e realizao. A crise de J tem sido explorada quase sempre no contexto do sofrimento humano. As anlises que fazemos da sua experincia procuram evocar sua pacincia e despojamento diante de uma das mais humilhantes provas por que algum j passou. No entanto, a temtica do livro de J mais abrangente. De fato, abrange o problema do sofrimento, do mal, mas, sobretudo, da relao do hornern com Deus em meio s complexidades da vida. sobre esta relao que iremos nos deter ao refletir sobre a vida e os dilemas de J. Como que temos construdo nosso relacionamento com Deus? Com que bases estabelece:mos nosso encontro com Ele? Estas questes esto no centro da nossa reflexo sobre a espiritualidade crist. O sofrimento de J, sem dvida alguma, ajuda-nos a entender o lugar de Deus na nossa experincia espiritual. neste sentido que J -nos apresentado como um paradigma da espiritualidade humana e crist. Ele mostra tanto a fragilidade das nossas pretenses e teologias, que nem sempre respondem as questes mais profundas da alma, como tambm revela-nos um Deus que no se enquadra nos esquemas teolgicos e doutrinrios que construmos. Despir-nos das nossas pretenses teolgicas e encontrar-nos com o Deus livre e soberano o caminho que J nos prope. io. FIDELIDADE E J apresentado e confirmado por Deus como um homem "ntegro, reto, temente a Deus e que se desvia do mal" (J 1.8). Veja bem que esta declarao do prprio Deus no deixa a menor dvida quanto converso e integridade de J. Portanto, no estamos aqui falando de algum que no tenha tido um encontro com Deus, que no era convertido. comum no mundo religioso, particularmente o evanglico, justificar o sofrimento e reaes como as de J como sendo respostas de algum que no conhece a Deus, ou que, no mnimo, no confia nele. Foi assim que seus amigos reagiram ao seu drama. l: Paradigma da Espiritualidade Crist 25 J, no entanto, um homem ntegro e temente a Deus. Este o testemunho de Deus sobre ele. o prprio Deus quem atesta sua idoneidade e integridade. Se o prprio Deus nos assegura a integridade, temor e retido de J , o que mais poderia faltar para completar sua devoo e espiritualidade? Seria possvel haver algum mais ntimo e temente a Deus do que J? No seria o testemunho de Deus mais do que suficiente para atestar que ali estava um homem que havia alcanado a graa da aprovao divina? No seria a vida de J - que, como pai, freqentemente santificava seus filhos, oferecendo holocaustos com receio de que tivessem cometido pecado contra Deus; que, como homem, era respeitado e honrado pela sua integridade e retido; que era prspero e gozava de sade, alegria e paz com toda a sua famlia; e que procurava andar com Deus a ponto de o prprio Deus afirmar que no havia ningum na terra semelhante a ele - um exemplo de espiritualidade, devoo e piedade sem precedentes? Tudo nos leva a crer que sim. J era o orgulho de Deus. Foi a pessoa que Deus escolheu entre todos os habitantes da terra para chamar a ateno de Satans quanto sua integridade, retido e temor. Era um exemplo de espiritualidade e devoo. No havia ningum igual a ele. J nico sob o olhar de Deus, que o chama de "meu servo". Este o perfil do nosso personagem. bom que fique claro que nossa reflexo sobre a espiritualidade crist passa primeiro por este perfil. Como j foi dito, no estamos diante de nenhum hipcrita, mas sim de um homem que teme a Deus e se desvia do mal. Um homem que todos ns gostaramos de ter como amigo, pai ou irmo. A DVIDA Mas, diante dessa apresentao, Satans, em tom irnico, lana uma dvida quanto afirmao de Deus sobre a integridade de J. A dvida : '<Porventura J6 debalde teme a Deus?" (J 1.9). Ser que as motivaes que o levam a ser o que Deus afirma ser so puras? Ser que todo este temor, integridade e pureza no seriam um bom negcio para ele? Afinal, Deus o tem abenoado, protegido, cercado sua casa com prosperidade, sade e tudo quanto um homem precisa para ser feliz e, naturalmente, responder com fidelidade e lealdade a Deus. Enfim, para o diabo, a integridade de J era apenas um bom negcio. 26 o Caminho do Corao A dvida que Satans lana no em relao a J e sua integridade, temor e retido, mas sobre suas motivaes, expectativas e interesses em ser to leal e temente a Deus. Para Satans, a experincia religiosa do homem no pode ser explicada sem que haja um interesse, um desejo de recompensa oculto nas suas motivaes. O ponto decisivo da dvida de Satans : pode o homem adorar e servir a Deus por nada? Desinteressadamente? Sem nenhuma recompensa? Simplesmente porque Deus Deus? possvel haver entre Deus e o homem um encontro onde somente o amor e o afeto so as nicas motivaesi'" Satans desconfia que no. Para ele, o homem sempre se aproxima de Deus por causa das vantagens que esta relao lhe proporciona e, uma vez tiradas as vantagens, no lhe sobraria mais nenhuma motivao para buscar a Deus. O utilitarismo o carro-chefe das relaes humanas, e no seria diferente para com Deus e o mundo espiritual. Satans acredita que existem outros motivos ocultos por detrs da piedade de J. Esses motivos secretos, muitas vezes ocultos at para ns mesmos, demonstram a verdadeira inteno do nosso interesse por Deus. O que aconteceria se J perdesse sua riqueza e honra? Ser que continuaria temendo a Deus e amando-o apesar da misria e da doena? Satans pensa que no. Esta mesma dvida, com toda certeza, paira tambm sobre ns. Os motivos que nos levam a buscar a Deus, seu poder e misericrdia, nem sempre nascem do desejo puro e sincero de am-lo e servi-lo desinteressadamente. As recompensas que acompanham os apelos que recebemos, na maioria das vezes, falam mais alto do que nosso amor e afeto. Dificilmente nos veramos completamente livres das sedues das recompensas; elas, de uma forma ou de outra, estaro sempre presentes nas nossas motivaes mais secretas. Buscar um encontro com Deus onde apenas o amor desinteressado levado em conta, contudo, conduz-nos a um relacionamento espiritual mui to mais profundo, ntimo e pessoal. A dvida est lanada. E, convenhamos, no se trata de uma dvida simples de resolver. uma dvida de natureza moral que toca o que h de mais ntimo e pessoal no homem. Uma dvida que lana suspeitas 3. o livro de GUTIRREZ, Gustavo: Falar de Deus a Partir do Sofrimento do Inocente traz uma excelente abordagem sobre o dilema vivido por J. O ponto central est no princpio da retribuio e da gratuidade da graa de Deus. Outro livro que ajuda a compreender o dilema de J : O Deus Indisponioel; de Karl Heinem. J: Paradigma da Espiritualiclade Crist 27 sobre realidades sobre as quais nem mesmo ns temos pleno conhecimento e domnio, e cuja forma de tratar e resolver envolve um processo de desnudamento das nossas motivaes e sentimentos mais secretos. To secretos que nem mesmo ns, com todo o conhecimento que supomos ter sobre ns mesmos, podemos afirmar que conhecemos com clareza os motivos dos nossos afetos. A APOSTA Satans prope ento uma aposta para tirar a limpo sua dvida. A sugesto que apresenta que Deus lhe d a permisso de tirar aquelas vantagens e estmulos externos que levam J a ser to temente e justo, para ver se, no final, ele continua adorando a Deus ou se passa a blasfem-lo. Acaso no o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? a obra de suas mos abenoaste, e os seus bens se multiplicaram na terra. Estende, porm, a tua mo, e toca-lhe em tudo quanto tem, e vers se no blasfema contra ti na tuaface! Disse o Senhor a Satans: Eis que tudo quanto ele tem est em teu poder; somente contra ele no estendas a tua mo. E Satans saiu da presena do Senhor. (J 1.10-12) Vale a pena enfatizar mais uma vez que Satans no est negando a piedade e integridade de J. No este o ponto central. O que Satans desconfia da motivao, dos interesses ocultos. Ele quer ver se possvel para o homem buscar a Deus e ador-lo sem nenhuma expectativa de recompensa. Para ele todos so iguais. No existe relao humana que seja motivada apenas pelo afeto desinteressado. Deus aceita a aposta e permite que Satans toque em J, que tire dele os "motivos" do seu temor e devoo, que desnude o corao e a alma de J e mostre as verdadeiras intenes do seu corao. E, numa sucesso de catstrofes, J perde tudo, encontra-se s, sem nenhum estmulo, nada que pudesse exteriormente justificar seu temor e fidelidade. Ao ver seus animais, servos, propriedades, filhos e filhas sendo assassinados e destrudos pelo fogo e vendavais, J v-se completamente s, sem nada que possa, ainda que acanhadamente, lembrar os momentos de fartura e abundncia com que Deus I. 28 o Caminho do Corao generosamente o cobria. Tudo aquilo que poderia motiv-lo a servir a Deus com devoo e fidelidade agora so apenas cinzas e escombros. J recebe a notcia da morte de seus filhos e filhas e da perda de suas propriedades. Mas, mesmo diante deste quadro desolador, diz o texto que J no pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma. Ele afirma, num gesto de extrema piedade e devoo: "Nu sa do ventre de minha me, e nu voltarei; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor" (J 1.21). J continua mostrando seu temor a Deus, reconhecendo que a trajetria humana, tanto no comeo COlTlO no fim, revela a grandeza de Deus e a limitao humana. Humildemente ele demonstra que seu temor a Deus maior do que os bens que possui. At aqui Deus est ganhando a aposta. Num segundo encontro entre Satans e Deus, este atesta mais uma vez a integridade de J, afirmando a Satans: "Ele conserva a sua integridade embora me incitasses contra ele, para o consumir sem causa" (J 2.sb). No entanto, Satans insiste, desafiando Deus mais uma vez. O que havia acontecido a J, segundo Satans, no era suficiente. Diz ele: "Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dar pela sua vida. Estende, porm, a tua mo, toca-lhe nos ossos e na carne, e vers se no blasfema contra ti na tua face!" (J 2.4, 5). Agora o inimigo pretende ir um pouco mais alm. Ele acha que pela vida possvel algum abrir mo dos seus bens e entes queridos e ainda assim continuar temendo a Deus. Ele tinha algo muito mais valioso que seus bens e famlia para negociar com Deus: sua vida e sade. Satans prope tocar-lhe na carne e nos ossos. Ele ainda tinha a sade como um grande trunfo dentro da manga. Era preciso deix-lo sem nada, sem nenhuma recompensa ou estmulo que o levasse, interesseiramente, a buscar a Deus. Deus autoriza Satans: Disse o Senhor a Satans: "Eis que ele est em teu poder; mas poupa-lhe a vida" (J 2.6). J fica doente, tomado de chagas, desde a planta dos ps at ao alto da cabea. A imagem desoladora. No sobrou nada. Nem bens, nem famlia, nem sade. J um pobre coitado, doente e s. Diante deste estado, o que vemos agora o silncio. J no fala nada. Recolhe-se silenciosamente diante dessa terrvel realidade. Este o quadro pintado nos dois primeiros captulos do livro de J. A aposta est feita. Deus coloca sobre a mesa todas as suas l: Paradigma da Espiritualidade Crist 29 cartas. Se J falhar e Satans ganhar a aposta, fica provado que ningum adora a Deus sem motivo algum, apenas pelo amor e desejo de ador-lo. Com isto, Satans no apenas joga por terra todo ~ o propsito de Deus em relacionar-se com o homem, como cria um meio para justificar sua prpria queda. Satans poderia tranqilamente argumentar dizendo que ningum, inclusive ele, consegue responder ao amor de Deus. O que est em jogo no apenas a integridade de J, mas uma relao. a relao livre, pessoal, afetiva e desinteressada entre o homem e Deus que est em jogo. Se J falhar, fica evidente que o homem no ama a Deus simplesmente porque Deus Deus, mas que o homem o ama pelos dividendos que isto lhe rende. J inocente. Deus sabe e ns tambm sabemos. As aflies e sofrimentos pelos quais ele passa no nascem de algum castigo merecido, nem obedecem lei de causa-e-efeito. O motivo do seu sofrimento e privao resultado apenas de uma aposta entre Deus e Satans. Isto, de certa forma, agrava ainda mais o quadro. J no sabe por que est sofrendo. Quando um pai disciplina seu filho, procura sempre explicar o motivo. Mesmo que a disciplina no seja justa, o filho sempre sabe por que est sendo disciplinado. Seria uma enorme covardia e desrespeito disciplinar algum sem que se explique o motivo, a razo de tal atitude. No caso de J no h razo nem motivo para tal sofrimento. Nenhum motivo que J pudesse conhecer. Em virtude da aposta, alm do sofrimento em si, Deus se cala. No responde ao clamor de J, que busca uma razo que justifique tamanha desgraa. J, alm de perder tudo quanto tinha, sofre tambm com o silncio de Deus. o SENTIDO DA ESPIRITUALIDADE CRIST NA EXPERINCIA DE J ,- E aqui que encontramos a chave para compreender o significado da espiritualidade crist. O relacionamento entre o homem e Deus encontra-se no centro deste drama vivido por J, que representa um paradigma da espiritualidade crist. No centro da desconfiana e aposta de Satans, encontramos o lugar do corao na experincia espiritual. Ao penetrar neste mundo de sofrimento e privao, J deparou-se com uma realidade que nunca havia percebido antes: a realidade do seu corao e dos seus afetos. O sofrimento gerou um esvaziamento tanto 30 'j"l IIII .;. 1'll Ijlll o Caminho do Corao de si mesmo quanto das coisas que simbolizavam a presena e a graa de Deus. O quadro que temos de J desolador. Assentado sobre os escombros do que restou dos seus bens, coberto de tumores malignos, desde a planta do p at o alto da cabea, raspando com um caco as feridas que o consumiam, J viu-se completamente vazio. No havia mais nada que lembrasse a abundncia de "bnos" que fizeram dele um homem feliz. neste momento de vazio que descobrimos a verdade oculta no nosso corao, as motivaes que Satans tanto desconfia serem ntegras ou no. Era exatamente isto que Satans queria descobrir, pois desconfiava que nada existe no corao do homem a no ser interesses mesquinhos e egostas, como era o seu prprio. Charles de Focauld, numa de suas cartas, escreveu dizendo que: O homem precisa entrar no desertopara receber a graa de Deus. l que afastamos tudo aquilo que no Deus. A alma necessita penetrar neste silncio.: na solitude, neste encontro solitrio com Deus... que Deus revela-se a si mesmo em nossa alma e que podemos nos entregar inteiramente a Ele.' o sofrimento de J levou-o a penetrar nesse silncio, nesse encontro solitrio com Deus. Ali os segredos do seu corao seriam revelados, suas motivaes mais secretas desmascaradas e, por fim, se revelaria se seu amor e afeto por Deus eram puros e desinteressados ou no. A espiritualidade crist uma espiritualidade do corao. O sbio escreve: "Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu corao, porque dele procedem as fontes da vida" (Pv 4.23). Vivemos numa sociedade onde desde cedo aprendemos a guardar nossa auto-imagem, nosso "status" social, nosso intelecto, nossas conquistas pessoais, nosso espao de realizao, mas no o nosso corao. do "corao que procedem as fontes da vida", diz o sbio. Para muitos cristos, a vida espiritual definida pelo conhecimento que temos de Deus atravs da Bblia elou das experincias espirituais que acumulamos ao longo da nossa vida crist. No entanto, o centro da nossa espiritualidade est nos nossos afetos, que nascem do corao. Quando o Senhor Jesus 4. HUSTN, James. The Hungry Soul. A Lion Book, xford, England, 1993, p. )73. [: Paradigma da Espiritualidade Crist 31 chamou o apstolo Pedro para o pastorado no lhe perguntou o quanto conhecia sobre Deus, nem mesmo sobre as experincias espirituais que tinha tido, mas se ele o amava. Era o afeto de Pedro que interessava a Jesus. Isto no significa que o conhecimento ou a experincia so irrelevantes; mas se estes no so traduzidos em afetos, se no atingem o corao, transformam-nos em presas fceis para as apostas do diabo. 'Amar a Deus de todo o corao, alma e foras, e ao pr6ximo como a si mesmo" constitui, nas palavras de Jesus, o cumprimento da lei e dos profetas. Parafraseando, poderamos tambm dizer que o "amar a Deus com todo o corao, alma e foras" o cumprimento de todo o conhecimento e toda a experincia. este amor, que nasce do corao, que determina os segredos da espiritualidade. Era o amor de J6 para com Deus que estava em jogo. A aposta no envolveu seu conhecimento nem suas experincias. Satans no tinha dvida alguma quanto ao conhecimento que J6 tinha sobre Deus, nem quanto a suas experincias; mas duvidava do seu amor. Achava que, uma vez tiradas as suas experincias e at mesmo seu conhecimento (veremos mais adiante que J6, assim como seus amigos, era partidrio da doutrina da retribuio), no sobraria mais nada para oferecer a Deus, a no ser blasfmias e revolta. A vida espiritual aquela que nos leva a tirar do corao o que h de mais precioso e oferec-lo ao Senhor, a buscar nos compartimentos mais secretos da alma os sentimentos mais nobres e puros e dedic-los a servio da adorao. A partir do momento em que o homem for capaz de adorar e servir a Deus por nada, simplesmente porque este Deus e no porque o cobre de beneficios, a ele encontra o sentido maior da sua devoo, o centro da sua espiritualidade, o corao como fonte dos afetos mais puros e genunos da alma humana. J encontra-se agora sem nada. No tem famlia para o apoiar e renovar suas esperanas; no tem bens que lhe permitam viver confortavelmente seguro; a reputao e honra que adveio de tudo isto, da mesma forma desapareceu. Ele est s. No lhe resta mais nada para dizer que Deus est vivo, a no ser Deus mesmo. J no tem mais nenhum motivo para adorar e servir a Deus, a no ser o prprio Deus. E J ' ;'> agora, o. I .. ~ ~ i I ~ 01 32 o Caminho do Corao Sua esposa, ao contemplar o quadro desolador em que seu marido se encontrava, no teve outra reao seno a de dizer o bvio (pelo menos na tica de Satans): ''Ainda conservas a tua integridade? Amaldioa a Deus e morre" (J 2.9). Para ela, j no valia mais a pena ser ntegro. As vantagens acabaram. Deus deixou de ser til. Para que servir a Deus? Qual a finalidade da integridade? devia estar pensando ela. Mas, no seria esta exatamente a suspeita levantada pelo diabo no encontro que teve com o Senhor Deus? No foi ele quem disse que, uma vez tocando em J, e tirando tudo quanto motivava sua integridade, ele haveria de blasfemar contra Deus? De virar-lhe as costas? Pois bem, a esposa de J a primeira a confirmar a suspeita de Satans e contribuir para que J reaja exatamente como fora previsto na aposta. Aqui Satans ganha um ponto. A reao da mulher de J, analisada dentro do contexto da nossa formao religiosa evanglica, pode parecer uma grande insensatez. Cristo algum, gozando de perfeita sanidade mental e espiritual, jamais afirmaria tal absurdo. Mas, se formos sinceros e honestos, haveremos de concordar que sua reao no foi to absurda assim. Quantos cristos no tm abandonado a f por muito menos? E quantos no entram em crise existencial e espiritual em virtude das calamidades muito mais amenas por que passam? Quantos no esto neste exato momento perguntando "por que Deus permite isto ou aquilo?"? A verdade que a suspeita de Satans em relao a J aplica-se com muita propriedade maioria dos cristos. Para comprovar isto, basta prestar ateno nos testemunhos que ouvimos sobre as bnos de Deus na vida dos nossos irmos. Com rarssimas excees, as bnos de Deus, sempre dizem respeito a algum ganho, seja material ou espiritual (na maioria das vezes, este ganho material), que recebemos. Para muitos, o sinal da presena e da graa de Deus so os ganhos que temos, sem os quais nos sentimos rfos, completamente abandonados. J encontra-se assim, sem nada, absolutamente nada, para testemunhar a presena de Deus. No h famlia, bens, sade, nada. At mesmo Deus silencia. Diante deste vazio no h nenhuma outra sada a no ser amaldioar a Deus e depois dar um fim prpria existncia. Sua mulher porta-voz da grande maioria dos homens; s6 a condenam aqueles que nunca passaram por uma experincia semelhante. I: Paradigma da Espirtualidade Crist 33 A DOUTRINA DA RETRIBUiO Entram em cena seus amigos. Depois de sete dias de silncio solidrio, estes comeam uma investigao minuciosa sobre a vida de J, seu passado, procurando descobrir onde foi que ele errou. Esta investigao era fundamental para que J voltasse atrs em arrependimento e confisso, e recebesse de volta o que lhe fora tirado como punio pelo seu pecado. uma postura muito comum nos aconselhamentos. Se alguma coisa vai mal porque existe uma causa, um pecado no confessado, uma maldio feita no passado, alguma coisa que justifique os problemas e o sofrimento humano. No entanto, no contexto do sofrimento de J, sabemos que no havia nenhuma causa que justificasse tamanha dor. J era inocente. No no sentido de que no era um pecador, mas no sentido de que no havia nada que o responsabilizasse pelo seu sofrimento. O conselho dos amigos de J era que ele buscasse a Deus, confessasse seus pecados, porque assim, e somente assim, Deus iria abeno-lo com ddivas materiais, devolvendo-lhe o que lhe fora arrancado como punio pela sua falta. Os amigos de J construram uma teologia que, embora muito comum entre ns, descreve exatamente as suspeitas de Satans. uma teologia que leva o homem a buscar e servir a Deus pela recompensa que pode receber, e no pelo amor e afeto desinteressado que tem pelo Senhor. Podemos chamar esta teologia de "Teologia da Retribuio" ou de "Teologia da Barganha". Aqui se estabelece a relao utilitria a respeito da qual Satans havia lanado suas dvidas. Para os amigos de J, a lgica era bastante simples: Deus abenoa os justos e castiga os mpios. a lgica da causa-e-efeito. Para todo sofrimento existe uma causa que o justifique. A equao simples e bem conhecida de todos ns. Se o homem bom, justo, correto, Deus o recompensa abenoando-o com suas ddivas. Se somos infiis, injustos, perversos, ento Deus nos castiga retirando de ns suas ddivas. A concluso era bvia: J pecou. Restava agora saber qual era o seu pecado para que se arrependesse, confessasse para receber de volta o que Deus, em sua justia, lhe havia tirado. 'I "I' 11'""n ' olh ' I .., 34 o Caminho do Corao o que os amigos de J no sabiam que o sofrimento nem sempre obedece esta regra simples e lgica. No resta dvida de que Deus sabe os motivos do nosso sofrimento, mas o fato que nenI sempre - nos dado conhecer esses motivos. Na maioria das vezes, o sofrimento mostra-se como um grande mistrio. No caso de J, seu sofrimento jamais poderia ser explicado pelo raciocnio matemtico dos telogos. No havia, no seu caso, uma razo lgica que o justificasse. No entanto, para os amigos de J, uma vez tratando a causa desencadeadora do sofrimento, seria restabelecida a normalidade. Era este o raciocnio deles. Portanto, se J estava sofrendo, lgico que havia praticado alguma iniqidade. O sofrimento de J s podia ser explicado pela lgica da retribuio. No captulo 4, a partir do verso 7, Elifaz alerta J dizendo: "Lembra-te: acaso j pereceu algum inocente? e onde foram os retos destrudos? Segundo eu tenho visto, os que lavram a iniqidade e semeiam o mal, isso mesmo eles segam". Este o argumento de Elifaz e seus amigos. Baseados na experincia e sabedoria adquiridas, concluem que o inocente e o reto no podem ser destrudos, apenas os inquos que colhem o mal que semeiam. Mais frente, no verso 8 do captulo 5, o mesmo Elifaz prope: "Quanto a mim eu buscaria a Deus, e a ele entregaria a minha causa". A partir da, descreve o porqu de agir assim. Para ele, o homem deve buscar a Deus porque somente Deus capaz de livr-lo da sua desgraa. Ele no se preocupa em entender J na sua angstia. Seu interesse apenas faz-lo entrar no seu esquema de f. Est mais preocupado em provar que sua teologia correta, que a lgica do seu raciocnio justa, que a sabedoria adquirida verdadeira. O que os amigos no percebem que o conselho de submeter-se a Deus na esperana de recomear tudo novamente esconde ern si mesmo uma perigosa tentao. A suspeita de Satans encontra agora, nos amigos de J, fortes aliados. J, segundo eles, deveria partir para uma espiritualidade que buscasse a Deus, no por causa de Deus, mas por causa dele mesmo. Os amigos de J, a despeito de suas intenes sinceras, cometem o mesmo erro de muitos conselheiros. No esto interessados na verdade nem em J. Esto muito mais interessados em provar e sustentar seus esquemas teolgicos do que em buscar a verdade e compreender a dor e sofrimento do prximo. [: Paradigma da Espiritualidade Crist 35 No entanto, para J o problema no era to simples assim. Ele se considerava um inocente. No no sentido de no ser um pecador (isto ele sabia que era), mas de no reconhecer nada que tivesse feito .- que o levasse a merecer tamanho castigo. E um sofrimento semelhante ao de milhes de crianas que, mesmo sem terem feito nada de mais grave que outras crianas, so vtimas da maldade do mundo. J inocente. Seu sofrimento no foi determinado por algo que tenha feito. Deus mesmo afirma que Satans o havia incitado contra J para o "consumir sem causa" (2.3). N havia uma causa concreta, investigvel, para que os amigos pudessem descobrir e trazer J de volta s alegrias do passado. O conflito de J com seus amigos d-se basicamente por causa da intolerncia desumana dos seus discursos. A revolta de J motivada muito mais pelas justificaes dos seus amigos do que pela sua prpria dor. Ensinai-me e eu me calarei; dai-me a entender em que tenho errado. Oh! Como so persuasivas as palavras retas! Mas que o que repreende a vossa repreenso? Acaso pensais em reprovar as minhas palavras, ditas por um desesperado ao vento? At sobre o rfo lanareis sorte, e especulareis com o vosso amigo? Agora, pois, se sois servidos, olhai para mim, e vede que no minto na vossa cara. (J 6.24-28) J pede que seus amigos sejam mais misericordiosos com ele, que no considerem suas palavras como afirmaes dogmticas da verdade, mas a expresso do seu desespero. Que olhem mais para sua dor do que para suas declaraes. O conflito de J que ele tambm era partidrio da tese dos seus amigos. Ele fazia parte do mesmo esquema teolgico da retribuio. Durante os anos de sua vida prspera e saudvel este conceito do Deus da justa retribuio fora tambm partilhado por ele. Era assim que ele tambm via a Deus em sua relao com o homem. O grande dilema que enfrenta que a teologia que lhe serviu to bem por muitos anos agora no tem respostas para sua crise. E mais, o discurso dos amigos deixa-o irritado e indignado. Ele precisa de uma resposta que venha de Deus, e, por isto, passa a contender com Ele. J precisa provar a Deus que inocente. Esta necessidade nasce do fato de que ele ainda pensa que Deus age assim: pune o mpio e recompensa o justo. Portanto, I o j, I '0 I, I , j 'I 1i I 36 o Caminho do Corao urna vez provada a sua inocncia, Deus ir reparar o terrvel erro que cometeu. Esta contenda, muitas vezes vista pelos seus amigos como uma atitude blasfema, a porta de entrada para um novo relacionamento com Deus. J6 busca em Deus um juiz para sua causa.... Assim ele continua resistindo aos argumentos dos seus amigos, que insistem em preservar o mesmo discurso. Os argumentos dos amigos giram como uma roda no ar, sem qualquer avano. Energia perdida de intelectuais que se agitam sem pr-se em movimento, incapazes de dar um passo frente, enlaando uma razo outra, com impulso puramente verbal. Para que replicam? dir J e com ele os inocentes e sofredores de todas as pocas da humanidade, se no tm nada a dizer? a pergunta a toda a teologia vazia do mistrio de Deus. A verdadeira blasfmia est em seu auto-suficiente falar, j que suas palavras encobrem e desfiguram. o rosto de um Deus que ama gratuita e livremente. Os amigos crem mais em sua teologia que no prprio Deus:" o que muitas vezes compromete a espiritualidade crist a pretenso de restringir-se todo o mistrio de Deus s explicaes espiritualizadas ou racionalizadas das nossas experincias crists e humanas. Muitos cristos sentem-se inseguros se no encontram respostas l6gicas e bem elaboradas para todas as questes da alma. Isto nos impede de penetrar no mistrio de Deus e conhec-lo no silncio da nossa insignificncia. O sofrimento, a dor, a morte, so experincias humanas que no podem ser explicadas simplesmente usando a frmula da causa e efeito. Ningum consolado na dor pela explicao lgica e racional do sofrimento. Por mais que esta explicao seja sensata e nasa do interesse sincero de ajudar e consolar, o sofrimento permanece corno uma dor inexplicvel. Lembro-me de um filme que assisti recentemente, Terra de Sombras", que trata do romance e casamento do autor e pensador cristo C. S. Lewis com uma americana que sofria de cncer. Logo aps a morte desta, num dos primeiros encontros do famoso escritor com seus amigos, ainda marcado pela dor da perda de um grande amor, um deles lhe pergunta o que poderia fazer para 5. GUTIRREZ, Gustavo. Falar de Deus - a partir do Sofrimento do Inocente. Editora Vozes, Petrpolis, RJ, 1986, p. 62, 63. I: Paradigma da Espiritualidade Crist 37 ajud-lo. Sua resposta simples e objetiva: 'Apenas no me diga que foi melhor assim". numa hora destas, quando nos vemos diante de dilemas como a morte, que percebemos o quanto nossa teologia limitada e o quanto somos pretensiosos na busca da compreenso dos mistrios da vida. Tudo o que J necessitava era do silncio solidrio dos seus amigos. Por outro lado, J percebia que a lgica dos amigos era consistente em alguns casos, mas no em todos. Ele pergunta: ' Como , pois, que vivem os perversos, envelhecem; e ainda se tornam mais poderosos? Seus filhos se estabelecem na sua presena; e os seus descendentes ante seus olhos. As suas casas tm paz, sem temor, e a vara de Deus no osfustiga. Oseu touro gera, e nofalha, suas novilhas tm a cria, e no abortam. Deixam correr suas crianas, como a um rebanho, e seus filhos saltam de alegria; cantam com tamboril e harpa, e alegram-se ao som da flauta. Passam eles os seus dias em prosperidade, e empaz descem sepultura. E so estes os que disseram a Deus: Retira-te de ns! No desejamos conhecer os teus caminhos. (J 21.7-14) J est contra-argumentando a tese dos seus amigos dizendo que, se Deus abenoa o justo com prosperidade e pune o mpio com a misria e sofrimento, pelo que ele pode observar nem sempre assimque acontece. Basta olhar nossa volta. H muito mpio que, a cada dia, quanto mais rouba e corrompe, mais rico e poderoso fica, e muito justo e honesto que perde o pouco que tem exatamente pela sua honestidade e justia. A prpria realidade dos fatos derruba a tese dos seus amigos. No mundo I' real a lgica da retribuio no funciona. E preciso encontrar outra teologia para responder a J. O princpio da retribuio pode ser aplicado em muitas situaes, mas definitivamente no cabe na situao de J6. Primeiro, porque n6s sabemos que a causa do seu sofrimento no pode ser explicada pela simples lgica de causa-e-efeito. Segundo, porque por detrs do seu dilema esconde-se uma realidade muito mais profunda, que envolve suas motivaes mais secretas. I lo; ~ , I I I . " , ~ 38 O Caminho do Corao No entanto, se J buscasse a Deus, confessando seu pecado apenas para receber de volta o que lhe foi tirado, acatando a sugesto dos seus amigos, daria a Satans o gosto da vitria. Estaria de fato buscando a Deus no por quem Deus , mas pelos beneficios que ele pode oferecer. Estaria buscando a Deus para gozar dos beneficios divinos e no simplesmente porque o ama e deseja servi-lo por nada. Estaria buscando a Deus por causa de si mesmo e no de Deus. Era esta a suspeita de Satans. Parece-me que a retribuio um conceito universalmente aceito como base para as relaes humanas; basta observar as relaes familiares, em que o princpio da troca uma constante desde muito cedo. Se somos obedientes e bondosos, ganhamos a recompensa; se desobedecemos, somos castigados. Se tiramos boas notas e somos aprovados, recebemos os prmios; mas se somos reprovados e fracassamos, sofremos as conseqncias e punies pelo nosso fracasso. Aprendemos a conquistar nossos direitos atravs deste mesmo princpio. Tanto no mundo pblico como no privado o homem sempre se comporta assim. a poltica do U dando que se recebe". No seria diferente no mundo espiritual. Para tanto bastaria olhar a forma como so feitos quase todos os tipos de apelos em nossas igrejas. Praticamente todos eles apelam para o mesmo princpio da retribuio. Se eu contribuir com fidelidade e participar fielmente das atividades da igreja, Deus me far prspero e me abenoar. Se for honesto, ntegro, correto, Deus haver de me abenoar e retribuir, geralmente com muito mais dividendos, para que o negcio seja de fato vantajoso. Os apelos quase sempre obedecem esta mesma lgica. Quando isto no d certo, torna- se necessrio investigar o passado, a fim de descobrir onde o processo foi interrompido. Se no descubro nada que justifique meu sofrimento, devo ento confessar a minha ignorncia e pedir que Deus me revele o pecado oculto. importante destacar que Deus tem prazer em abenoar seus filhos, em dar muito mais do que pedimos, e que o princpio da retribuio encontra sua base em muitos textos das Escrituras, como: "Aquilo que o homem semear isto tambm colher". A questo que envolve o dilema de J no o prazer de Deus em abenoar seus filhos, nem mesmo as inmeras promessas que encontramos na Bblia e que j: Paradigma da Espiritualidade Crist 39 afirmam o interesse de Deus em dar boas ddivas aos que o amam. O ponto central que envolve o dilema de J, nossa espiritualidade e a suspeita de Satans, se somos capazes de fazer tudo o que normalmente fazemos para Deus mesmo quando ele no nos recompensa com as bnos materiais e/ou espirituais. Sou capaz de contribuir generosamente, mesmo quando no recebo de Deus nenhuma recompensa pela minha generosidade e fidelidade? Sou capaz de amar a Deus e servi-lo com integridade e temor, mesmo quando estou passando pelo vale rido da minha alma? Sou capaz de orar, mesmo quando no ouo mais a sua voz? Este o ponto central que envolve a doutrina da retribuio. Que testemunho eu teria a dar sobre Deus, seu amor, graa, bondade e misericrdia, quando no h nada de concreto para contar ou afirmar? No h nenhum carro novo, nenhuma promoo no trabalho, nenhuma cura, nenhuma revelao, nada. Apenas Deus. Foi exatamente baseado neste princpio da retribuio que o diabo levantou sua suspeita, e para o qual tanto a esposa de J como seus amigos contriburam. A concluso foi simples: J6 pecou. Resta agora saber onde e quando, para que, mediante arrependimento e confisso, ele faa os reparos necessrios e volte a gozar os beneficios de outrora. No entanto ns sabemos e J desconfiava que o caminho no era bem este. Sabemos que o sofrimento de J no foi causado por nenhum pecado no confessado, nem mesmo por alguma maldio hereditria, mas por uma aposta entre Deus e Satans, na qual estava em jogo no apenas a integridade de J, mas todo o projeto divino." Se Satans ganhasse a aposta, ficaria provado que ningum ama de fato a Deus, e que todas as relaes que o homem tem com o Criador so utilitrias e interesseiras. Penso que o exemplo mais dramtico desta tentao encontrado na cruz. Ali, Jesus estava exposto no apenas vergonha e dor do sofrimento fsico, mas tambm a toda dor moral e espiritual. Podemos imaginar o Tentador, em meio solido do Calvrio, dizendo: "Onde esto os teus amigos? os discpulos? aqueles que foram curados? tua famlia? at teu Pai te abandonou. Amaldioa a Deus e morre". 6. AMRE5E, Rubem M. Meta-Histria. Comunicarte, Braslia, 1992. I . I i I II II i I d ,j , I 40 o Caminho do Corao Era sua ltima esperana. Se Jesus soltasse uma nica palavra de blasfmia, um murmrio, estaria caracterizada a suspeita de Satans. No entanto, Jesus, mesmo diante do silncio e abandono do Pai, e em meio s dores e agonias da cruz, num ltimo flego, extraindo de si as ltimas foras para expressar suas palavras derradeiras, diz: "Pai, nas tuas mos entrego o meu esprito", Com estas palavras, Satans percebe que a batalha foi perdida. Jesus continua amando e obedecendo ao Pai por nada. Seu afeto no estava condicionado a nenhuma regra retributiva, a nenhum favor ou bno. Ele amou o Pai at o fim, numa relao de devoo, afeto, submisso e obedincia, sem nenhuma busca por recompensa ou retribuio. O questionamento apresentado por Satans que possvel ter uma boa experincia crist e uma certa bagagem teolgica e, mesmo assim, no ter um encontro real, afetivo e pessoal com Deus. J representa a crise espiritual diagnosticada na motivao da alma humana. s vezes fico imaginando se Deus permitisse a Satans tirar todas as motivaes e estmulos externos da nossa devoo, tudo aquilo que hoje representa os motivos da nossa lealdade, integridade e louvor, se sobraria alguma coisa dentro de ns que, apesar de tudo, ainda nos levaria a amar a Deus e ador-lo simplesmente porque Ele Deus. No precisamos ir muito longe. Basta tirar de algumas igrejas as bandas e conjuntos musicais com seu louvor animado ao som do rock e outros ritmos empolgantes para ver se ainda sobraria algum desejo sincero de adorar e louvar a Deus com o mesmo entusiasmo e devoo. Se, por alguma razo qualquer, fssemos transferidos para uma pequena cidade do interior, onde a nica igreja que existe uma pequena congregao onde ainda se cantam os velhos hinos dos hinrios, acompanhados por um velho harmnio de pedaleira, tocado por uma velha senhora que de cada cinco acordes erra seis, ser que mesmo assim conseguiramos apresentar nossos louvores a Deus com alegria e exultao? Desconfio que muitos de ns encontraramos dificuldades para celebrar nosso culto a Deus. Se Deus decidir nos colocar numa situao como a de J, onde, alm de todo o sofr-i mento e dor experimentados por ele, tivssemos ainda que conviver com o silncio de Deus, penso que a f de muitos de ns no sobreviveria a tal situao. l: Paradigma da Espirtualidade Crist 41 "- "O ENCONTRO DE DUAS LIBERDADES" Uma questo que se coloca no corao desta experincia espiritual ,- de J a mudana radical da sua viso de Deus e de si mesmo. E aquilo que Gustavo Gutirrez chama de "encontro de duas liberdades". De um lado, embora J fosse um homem ntegro, reto e temente a Deus, conservava conceitos e percepes de Deus que comprometiam sua espiritualidade e devoo, bem como a imagem de Deus. De certa forma, todos ns temos nossos _conceitos de Deus formados a partir das nossas experincias e histrias de vida que determinam nossa leitura da Bblia. J tambm era assim. A teologia da retribuio, que agora tanto o prejudica, foi por um bom tempo a espinha dorsal das suas convices sobre Deus. Era preciso que estas imagens se desfizessem para que J pudesse, livremente, contemplar a Deus. Para que as imagens de J fossem quebradas, Deus, depois de um longo perodo de silncio, fala. J havia se debatido com Deus, inconformado com os conselhos dos seus amigos e com a certeza de sua inocncia, mas at aqui Deus no havia ainda se pronunciado. O que nos chama a ateno que a fala de Deus no toca diretamente no problema de J. Deus no responde suas perguntas em tom professoral, tratando de cada uma de suas dvidas. Deus nem mesmo o julga ou repreende pelos seus pecados. Deus no o justifica e nem o condena. J, por vrias vezes, pediu a Deus que lhe apontasse seus pecados. Queria confess-los, seguir o conselho dos amigos, para que tudo voltasse a ser como era. Agora, que Deus decide falar, no toca naquilo que mais afligiu 16: a causa da sua misria e dor. A primeira palavra de Deus a J o leva de volta ao princpio de tudo. Deus pergunta: Quem este que escurece os meus desgnios com palavras sem conhecimento? Cinge, pois, os teus lombos como homem, pois eu te perguntarei; e tu me fars saber. Onde estavas tu, quando eu lanava osfundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. Quem lhe ps as medidas, se que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel? Sobre que estofundadas as suas bases, ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? Ou quem encerrou o mar com portas, quando irrompeu da madre; quando eu lhe pus as nuvens por I, 42 o Caminho do Corao vestidura, e a escuridoporfraldas? quando eu lhe tracei limites e lhe pus ferrolhos e portas, e disse: At aqui virs, e no mais adiante, e aqui se quebrar o orgulho das tuas ondas. (J 38.2-11) o texto segue at o final do captulo 39, levantando perguntas para ver se J tinha mesmo o discernimento do que estava acontecendo. Onde ele estava quando tudo comeou? Quem ele para estabelecer a ordem do mundo e definir o agir de Deus? Na seqncia das perguntas, Deus insiste em mostrar a insensatez dos questionamentos de J e os mistrios dos propsitos divinos. J, como nenhum de ns, pode saber onde repousam as colunas do mundo. O surgimento do mundo permanece para o homem como um mistrio indecifrvel que nos convida ao silncio e meditao. Deus segue falando e perguntando a J aquilo que este no pode responder. O mundo no segue a mesma lgica que ele e seus amigos tentaram criar. Os amigos, e J tambm, pensavam que o mundo havia sidofiito para a utilidade imediata do ser humano e para a retribuio: prmio para o justo e castigo para o pecador. Esse para eles era ofundamento da obra de Deus, por isso sua ao na histria previsvel. A Deus investe com mpeto: Onde estava J quando ele assentava os pilares da criao?Se J "sabe tanto" - ... quer dizer, se capaz de discernir - que responda. J, que chegou tarde, depois de ele haver fechado com portas e ferrolhos o mar, no tem autoridade para dizer qual o fundamento do mundo. Deus, que soube deter a arrogncia do mar.fas: agora o mesmo com as descabidas pretenses de J e seus amigos, que tentam impor limites e barreiras a sua ao na histria. 7 Uma das caractersticas do ser humano sua incapacidade de lidar com o mistrio. Particularmente, o homem moderno, acostumado a viver num mundo cientfico que sempre lhe d todas as respostas, no aceita a possibilidade de no dominar o conhecimento das aes que o cerca. Nosso conflito no apenas com aquilo que no conhecemos, mas tambm comas incertezas que cercam nosso destino. A necessidade de domnio sobre as circunstncias e mistrios da vida nos leva ao pecado da domesticao de Deus. 7. GUTIRREZ, Gustavo. Op. Cito p. 117. [: Paradigma da Espiritualidade Crist 43 Deus, em todo o seu discurso, no acusa J de mentira e nem contradiz sua afirmao de que inocente. No entanto, para J, se ele inocente, algum deve ser o culpado pela sua desgraa. Esta era a sua lgica. Na tentativa de provar sua inocncia, ele se julga no direito de culpar Deus. O princpio simples: se ele inocente, Deus obviamente injusto por faz-lo passar por todo esse sofrimento imerecido. J encontra-se em xeque-mate. Ou ele assume o ser igual a Deus com sua pretenso de determinar o agir correto de Deus, ou se rende soberana e livre vontade do Criador. Deus procura se revelar a J como um Deus cujo agir no obedece nenhum critrio estabelecido pelo homem. Deus livre e soberano e suas aes obedecem s iniciativas gratuitas do seu amor. No o adoramos pela previsibilidade das suas aes que retribuem matematicamente o justo e o mpio. Ns o adoramos porque ele Deus e nada mais. Ao usar as figuras da natureza, Deus procura mostrar a J que a razo da criao no a retribuio, mas a expresso livre do seu amor gratuito. Quem despediu livre o jumento selvagem, e quem soltou as prises ao asno veloz, ao qual dei o ermo por casa, e a terra salgada por moradas? .. Acaso quer o boi selvagem servir-te? Ou passar ele a noite junto da lua manjedoura? Porventura podes prend-lo ao sulco com cordas? Ou gradar ele os vales aps ti? .. A avestruz bate alegre as asas; acaso, porm, tem asas e penas de bondade? Ela deixa os seus ovos na terra, e os aquenta no p, e se esquece de que algump os pode esmagar, ou de que podem pis-los os animais do campo. Trata com dureza os seus filhos, como se no fossem seus; embora seja em vo o seu trabalho, ela est tranqila, porque Deus lhe negou sabedoria, e no lhe deu entendimento; mas quando de um salto se levanta para correr, ri-se do cavalo e do cavaleiro... Ou pela tua inteligncia que voa o falco, estendendo as asas para o sul? Ou pelo teu mandato que se remonta a guia efax alto o seu ninho? (J 39.5, 6, 9, 10, 13-19, 26, 27) A liberdade que os animais gozam no campo demonstra e simboliza a impossibilidade da previso e manipulao das aes de Deus. A liberdade do jumento selvagem, que tem o campo como morada; I . I' I ' 44 o Caminho do Corao a rebeldia do boi selvagem, que resiste em servir ao homem e ser conduzido por cordas; o jeito desengonado da avestruz, que ao correr supera o cavalo com seu cavaleiro; o vo do falco e o ninho da guia... tudo demonstra a impossibilidade de o homem domesticar os atos de Deus. A questo apresentada no incio do livro sobre as motivaes do homem em adorar e servir a Deus encontra sua resposta nesta viso de um Deus livre e soberano, que no se deixa aprisionar por nenhum esquema teolgico, cujo agir no determinado por nenhuma lgica de causa-e-efeito, mas por seu amor gratuito e livre. Diante do exposto nos discursos de Deus, J cede: "Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mo na minha boca" (J 40.4). Ele no pode responder as perguntas de Deus. Diante da grandeza e soberania de Deus ele se cala. A sua pequenez leva-o a um estado de profunda humilhao e silncio. J sabia que no podia contender com Deus, mas agora o que encontramos no o J irado, revoltado, cheio de razes, mas um J humilde que se cala diante da grandeza do mistrio divino. Aqui ns temos o encontro destas "duas liberdades". Para aprendermos a adorar a Deus por nada, motivados apenas pelo seu amor gratuito, preciso reconhecermos de fato sua absoluta soberania e imprevisihilidade. Deus no se sujeita s nossas pretenses de, a partir da nossa justia, definir a sua. Se o nosso mundo funciona com base na justia retributiva, o mundo de Deus no funciona assim. Seu agir obedece apenas uma regra: seu amor livre e gratuito. A liberdade de Deus revela-se na gratuidade de seu amor que no se deixa encerrar num sistema de prmios e castigos prognosticveis. A liberdade de J alcana sua maturidade e plenitude ao encontrar sem intermedirios o Deus da sua esperana. A liberdade de Jav se manifesta ao reu ilar que, no fundamento do mundo, Ele colocou a gratuidade de seu amor e que s assim se compreende o sentido de sua justia. No encontro com a liberdade divina, a liberdade humanapenetra at ofundo de si mesma. 8 o encontro do homem com um Deus que no se deixa manipular pelas pretenses humanas leva-o ao encontro de sua prpria liberdade. 8. GUTIRREZ, Gustavo. Op. Cito p. 131. I: Paradigma da Espiritualidade Crist 45 A liberdade de encontrar-se com Deus sem querer enquadr-lo nos seus esquemas teolgicos e ideolgicos, de deixar que Deus seja apenas Deus e no um subproduto da nossa imaginao. somente quando deixo o outro livre para ser quem que me encontro tambm livre para am-lo sem as exigncias e expectativas retributivas. Ao perceber-se incapaz de determinar os desgnios de Deus, o homem lana-se com f confiante e amorosa nos braos do seu Criador. a que escraviza o ser humano a sua permanente pretenso de ser como Deus, e isto ele faz quando tenta determinar o agir de Deus como se fosse o prprio Deus. Toda vez que tentamos agir como se fssemos o prprio Deus, comprometemos para ns mesmos a liberdade divina e, conseqentemente, a nossa. E, numa relao com Deus, estabelecida nestas bases, tornamo-nos presas fceis de Satans, que no tem feito outra coisa seno querer ser o prprio Deus. Amar a Deus por nada, desinteressadamente, descreve o encontro das duas liberdades. De um lado temos Deus, soberano e gracioso; do outro, o homem, que aprende a am-lo sem condicion-lo aos seus interesses, que se deixa ser conduzido pelos caminhos e vales ainda no percorridos, espreita das surpresas que Deus lhe reserva. No somos mais donos do nosso destino. Aprendemos a entregar a Deus o controle da nossa vida para podermos ador-lo, sem exigir que seu agir seja determinado por ns. Esta a mesma liberdade que o salmista descreve no Salmo 131, que diz: Senhor, no soberbo o meu corao, nem altivo o meu olhar; no ando procura de grandes causas, nem de causas maravilhosas demais para mim. Pelo contrrio,jiz calar e sossegar a minha alma; como a criana desmamada se aquieta nos braos de sua me, como essa criana a minha alma para comigo. a sossego da alma o resultado de um corao sereno, que j no olha o mundo com altivez nem soberba, que no procura as coisas grandes e extraordinrias para afirmar-se ou projetar-se nelas, que se tornou capaz de calar e sossegar o corao como uma criana que j no depende dos seios de sua me. Esta criana, que j no precisa I I, I l '. 46 () Caminho do Corao mais gritar pelo leite materno, encontra o descanso de sua prpria alma na rendio aos braos de sua me. Reconhecer em Deus o controle amoroso e gracioso de todas as coisas torna-nos livres para am-lo e descansar nossa alma nos seus braos. J rende-se completamente. Antes, sua preocupao em defender sua inocncia levou-o a olhar apenas para si e a lutar por aquilo que reconhecia ser o seu direito e a sua justia. Agora, depois de olhar para si e reconhecer sua pequenez diante da grandeza e soberania de Deus, e perceber que o agir de Deus no pode ser determinado por ele, mas pelo prprio Deus, que se revela como um ser absolutamente livre, J volta- se novamente para Deus e reconhece que no o conhecia de fato. Ento respondeu J ao Senhor: Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado. Quem aquele, como disseste, que sem conhecimento encobre o conselho?Na verdadefalei do que no entendia; cousas maravilhosas demais para mim, cousas que eu no conhecia. Escuta-me, pois, havias dito, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinars. Eu te conhecia s de ouvir, mas agora os meus olhos te vem. Por isso me abomino no p e na cinza. (J 42.1-6) Nesta ltima orao encontramos aquilo que deve caracterizar nossa vida espiritual. Primeiro, J reconhece a soberania de Deus em seus propsitos. "Bem sei que tudo podes...", Ele agora no contende mais com Deus, mas abandona-se em suas mos. No est mais preocupado em determinar o agir de Deus. Reconhece que o agir divino determinado pelos propsitos de Deus, que tudo pode. J pudera reconhecer em seu destino de sofrimento somente a ausncia de sentido. Faltava-lhe a compreenso com base em uma profunda experincia de Deus. Falou, por isso, "compalavras sem sentido" (38.2), falou insensatamente. Agora conhece a sabedoria de Deus, ao qual pode sem reservas confiar-se a si e as suas questes todas, ainda que continue o seu sofrimento a ser um enigma insoluel" 9. HEINEM, Karl. O Deus Indisponvel O Livro de J. Edies Paulinas, So Paulo, 1982, p. 129, 130. l: Paradigma da Espiritualidade Crist 47 Neste reconhecimento ele encontra satisfao, no porque seus problemas foram resolvidos ou porque sua dor tivesse sido explicada, mas na f e entrega a um Deus que maior que seus dilemas. Segundo, o conhecimento de Deus no apenas o resultado daquilo que ouvimos, mas tambm daquilo que vemos. Quando o homem tenta, pelo conhecimento, responder a todos os mistrios de Deus, acaba por dizer aquilo que no entende. Enquanto J se debateu procurando provar sua inocncia, colocando-se no centro da histria e das aes de Deus, usando sua teologia para compreender o mistrio dos propsitos divinos, perdeu-se na sua pr6pria nsia de controlar o agir de Deus. Foi somente quando ele cessou de falar e passou a ouvir a voz de Deus que comeou a compreender, no o sentido do seu sofrimento, mas o princpio do agir de Deus. Quando o homem se cala, Deus fala. Foi isto que J6 aprendeu. O silncio contemplativo o levou a OUVIr e ver aquilo que, enquanto falava, no era capaz de ver nem . OUVIr. A postura de J6 transformada. Ele reconhece a loucura das suas pretenses e agora procura ouvir. Percebeu que o que determina as aes de Deus no o que ele entende por justia, mas o amor gratuito de Deus. Foi na contemplao deste amor, gerada num momento de silncio e quietude, que ele pde ver a grandeza da bondade de Deus. l, que o conhecia s de ouvir, agora pode v-lo. Sua relao com Deus deixou de ser apenas cognitiva, para ser tambm contemplativa. SOMENTE DEUS o princpio da espiritualidade extrado da experincia de J constitui-se, sem dvida alguma, num grande desafio espiritualidade moderna. Num mundo onde vivemos sob a tirania do ter, onde a identidade do homem definida pelas funes e papis que representa, onde a competitividade determina o ritmo das relaes, no podemos esperar outro modelo de relacionamento com Deus que no seja o utilitrio. Os apelos que freqentemente ouvimos nos programas de televiso, nas campanhas evangelsticas e nos plpitos das igrejas (existem as excees, claro) quase que invariavelmente apontam para a mesma direo. Consagre-se, busque, contribua, faa isto ou aquilo, I; I I I' I I I ,. 48 o Cantinho do Cor-ao e Deus o recompensar com bnos muito mais abundantes do que o que voc pode entregar. Deus um bom negcio. a suspeita de Satans encontrando sua comprovao descarada- e vergonhosa. Por outro lado, esta espiritualidade que nasce do corao que capaz de perceber o amor e a graa de Deus nas situaes rnais crticas da vida, que abraa a cruz mesmo quando se sente completamente abandonado, encontra-se em baixa, dando a Satans aquele pequeno sabor de vitria. Mas pela graa de Deus podemos ainda encontrar aqueles que buscam a Deus por nada, que so capazes de reconhecer seu pecado e a graa imerecida de Deus, que sabem que Deus Senhor soberano e que o seu agir no se encontra limitado, nem pela nossa teologia e muito menos pelas nossas necessidades. Blaise Pascal (1623 - 1662), matemtico, fsico e pensador cristo francs, afligido por uma gravssima enfermidade j no final da sua vida, foi levado a refletir sobre o estado de sua alma e seu corao. Nos ltimos seis meses de vida, sofrendo intensas dores fisicas, ele vendeu tudo o que tinha, inclusive sua biblioteca, com exceo da sua Bblia, as obras de Agostinho e alguns livros pessoais, e mergulhou na leitura bblica, especialmente no Salmo 119, que normalrnerrtc o conduzia a um estado de contemplao e admirao que transcendia sua condio fsica. Da mesma forma que J, o sofrimento foi usado como um poderoso instrumento transformador do carter e, sobretudo, da viso e perspectiva do relacionamento com Deus. Nas suas oraes ele costumava dizer que gostaria de "sofrer como um cristo", querendo com isto dizer que no estava pedindo a Deus que o poupasse da dor, mas que pudesse "sentir a dor e a consolao de Deus juntas", e que tambm pudesse "glorificar a Deus em seus sofrimentos e nunca blasfem-lo". Em uma de suas oraes podemos sentir a centralidade de Deus em sua vida como a nica fonte de prazer e realizao: Concede-me, Deus, que em silncio eu possa adorar a maravilhosa providncia que colocas disposio da minha vida. Possa o teu cajado me confortar: Tendo eu vivido na amargura dos meus pecados enquanto tinha sade, possa eu agora provar a doura da tua graa atravs destas aflies que impuseste sobre mim. Mas eu confesso, meu Deus, que o meu corao to endurecido, to cheio de idias mundanas, preocupaes, ansiedades e apreenses, que nem a sade ou doena, I: Paradigma da Espiritualidade Crist 49 conversas, livros, nem mesmo tua Santa Escritura, nem o evangelho, nem os teus santos mistrios podemfazer alguma coisa para promover minha converso. Certamente a filantropia, jejuns, milagres, sacramentos, nem todos os esforos, nem mesmo todas estas coisas colocadas juntas podemfazer isto. Somente a grandeza maravilhosa da tua graa pode fazer isto... O Senhor sozinho criou minha alma, somente o Senhor pode recri-la. Somente tu, Senhor, podes cri-la segundo tua prpria imagem... Jesus Cristo, meu Salvador, a expressa imagem e carter da essncia divina, imagem e semelhana que eu desejo. 10 Ao perder todos os estmulos exteriores (havia perdido sua me quando tinha trs anos e o pai aos 28, no tinha casa, estava sem uma comunidade que o compreendesse e completamente doente), Pascal recorre a Deus somente. Nada seria suficiente para alimentar e nutrir seu corao e aliviar a dor da sua alma seno Deus e sua graa. Esta realidade ltima, este absoluto que torna tudo relativo, o princpio da espiritualidade crist e de toda a teologia. Conhecer a Deus encontr-lo no despojamento de tudo o que no Deus. Posso ilustrar isto com a experincia vivida por um amigo cristo que por mais de duas dcadas dedicou-se de corpo e alma no trabalho de uma grande empresa, servindo-lhe com total lealdade, defendendo- a como se fosse sua. Aps quase vinte e cinco anos de trabalho e dedicao foi despedido. Da noite para o dia sentiu-se como um homem abandonado, sem esperanas, com uma famlia para sustentar, contas a pagar, e tudo o que uma situao assim pode provocar. O mais surpreendente de tudo, porm, foi uma declarao sua em que reconhecia que a lealdade com que devotara toda a sua vida ao trabalho transformara a empresa num deus. Sua devoo, alegria, prazer e realizao estavam no trabalho e, mais especificamente, na empresa onde trabalhava. Ali ele sentia que era algum, era conhecido pelos colegas, sabia quem era e tinha seu valor reconhecido pelos seus superiores. Uma vez sem estes estmulos exteriores, sem o reconhecimento dos superiores, sem o apreo dos colegas e o "status" 10. PASCAL, Blaise. The Mind on Fire-e-An Anthology of the Wntings qf Blaise Pascal. Classics of Faith and Devotion. Multnomah Press, Portland, Oregon, 1989, p. 286. I < I 1 50 o Caminho do Corao que tudo isto lhe dava, sentiu-se s. Toda a sua identidade foi-se com seu trabalho. A razo da sua alegria, prazer e realizao j no existia mais. Ali, naquele exato momento, surgiu diante dele a oportunidade de conhecer melhor e mais pessoalmente a Deus no despojamento de tudo o que no era Deus. Ao refletir sobre J, confesso que tenho dvidas sobre nossa integridade e motivaes. Ainda h muito desta teologia da retribuio nas nossas motivaes espirituais, e muito o que aprender sobre a gratuidade da graa de Deus. J, sob vrios aspectos, representa a anttese da espiritualidade moderna. Para muitos cristos de hoje, a presena de Deus definida e assegurada a partir daquilo que recebemos como prova do nosso "status" de que somos filhos de Deus. Agimos como aquela criana insegura do afeto dos pais que, para demonstrar sua "segurana" afetiva, necessita prov-lo com presentes caros, viagens a Disney e outras exigncias prprias de uma relao frgil e insegura. So poucos aqueles que, apesar de no terem nada de concreto para apresentar como prova de sua filiao, sentem-se seguros apenas no fato de que so filhos de Deus porque I)eus, o Pai, decidiu adot-los. Refletir sobre a espiritualidade buscar as motivaes mais secretas do nosso relacionamento com Deus, e encontrar urna teologia ,- consistente com este relacionamento. E discernir o lugar de Deus no " corao e na experincia vivida por ns. E permitir ser conduzido ao deserto, lugar de solitude, de encontro com nossa alma, para que ali, destitudos de toda iluso e hipocrisia, sejamos confrontados com a " realidade do nosso carter. E discernir o nosso corao quando todos os outros estmulos exteriores e mesmo nossa teologia j no oferecem mais o motivo da nossa integridade e amizade com Deus. Quando tudo o que resta sou eu, com minha nudez, e Deus com sua glria e amor.