Fanfani - Culturas Jovens
Fanfani - Culturas Jovens
Fanfani - Culturas Jovens
Emilio Tenti Fanfani 1. Propsitos O que se oferece como educao escolar aos adolescentes e jovens da Amrica Latina? Em que medida, o que se oferece corresponde s condies de vida, necessidades e expectativas das novas geraes de latino-americanos? Para responder a estas perguntas gerais preciso levar em conta as grandes mudanas que caracterizam o desenvolvimento da educao bsica no nosso continente. Num primeiro momento, dois fenmenos saltam aos olhos. O primeiro deles a massificao. Os dados indicam que a escola para os adolescentes uma escola em expanso. Em muitos casos, este crescimento quantitativo no acompanhado por um aumento proporcional em recursos pblicos investidos no setor. Muitas vezes, teve-se que fazer mais com menos. muito provvel que a massificao tenha sido acompanhada de uma diminuio do gasto per capita, esticando ao mximo o rendimento de certas dimenses bsicas da oferta, tais como recursos humanos, infraestrutura fsica, equipamento didtico, etc. A escolarizao, segundo fenmeno a merecer maior destaque, "cria juventude", ou seja, contribui muito para a construo destes novos sujeitos sociais. Mas por outro lado, a massificao produz uma srie de transformaes nas instituies escolares. A velha escola secundria reservada s elites deve, hoje, responder demanda de novos contingentes de postulantes. E, por fora das circunstncias, as mudanas no podem acarretar prejuzos de qualidade. As instituies, como sistemas de regras e recursos que estruturam as prticas sociais e educativas, mudam de forma e significado. Os velhos dispositivos que regulavam a relao professor-aluno e a relao com o conhecimento, que garantiam a autoridade pedaggica e produziam uma ordem institucional, se corroem quando deixam de ser eficientes e significativas na vida dos atores envolvidos. Mas a massificao est acompanhada de uma mudana muito significativa na morfologia social dos alunos. No s os adolescentes e jovens que se escolarizam so mais, mas so diferentes. Por um lado, ingressam os que tradicionalmente eram excludos. Aos "herdeiros e bolsistas" se somam o grosso da populao, ou seja,
somam-se os filhos dos grupos sociais subordinados das reas urbanas primeiro e das rurais depois. Estes recm-chegados ao ensino mdio trazem consigo tudo o que eles so como classe e como cultura. Alm disso, os jovens e os adolescentes de hoje so diferentes dos primeiros "clientes" da educao escolar moderna. As grandes mudanas nos modos de produo, as mudanas na estrutura social e familiar, as transformaes no plano das instncias de produo e difuso de significados (a cultura) afetam profundamente os processos de construo das subjetividades. O poder do sistema educativo para formar pessoas, hoje, mais relativo e interligado do que nunca. Suas capacidades se medem no sistema de relaes que mantm com a famlia e as outras instncias que produzem e impem significaes, em especial os meios de comunicao de massa e o consumo (TEDESCO, J.C. 1995). Todas estas transformaes na demografia, na morfologia e na cultura das novas geraes pem em crise a oferta tradicional de educao escolar. Os sintomas mais evidentes e estridentes so a excluso e o fracasso escolar, o mal-estar, o conflito e a desordem, a violncia e as dificuldades de integrao nas instituies e, sobretudo, a ausncia de sentido da experincia escolar para uma poro significativa de adolescentes e jovens latino-americanos (em especial aqueles que provm de grupos sociais excludos e subordinados) que tm dificuldades para ingressar, progredir e se desenvolver em instituies que no foram feitas para eles. Tudo parece indicar que todos aqueles que "chegam tarde" escola (os adolescentes e jovens excludos) ingressam em uma instituio que no foi feita para eles e, que, portanto, no cumpre nenhuma funo em seus projetos de vida. Nas pginas seguintes, proponho-me a expor algumas reflexes que, espero, ajudem a definir os principais problemas que surgem quando duas culturas se enfrentam: a dos jovens e adolescentes e a que prpria da tradio escolar. Acreditamos que compreender, interpretar, explicar e analisar uma dimenso necessria a qualquer processo voltado a intervir, com alguma probabilidade de xito, no campo das polticas pblicas especficas. Em especial, interessam-nos aquelas que esto orientadas a garantir as melhores condies para facilitar o difcil processo de construo da subjetividade e a insero social das novas geraes de adolescentes e jovens latino-americanos tanto no campo da produo como da cidadania ativa. Em sntese, quando os excludos chegam ao ensino mdio, produz-se o conflito e o desencanto. Conflito, porque a universalizao e a escolarizao produzem novas
2
contradies (entre caractersticas objetivas e subjetivas, expectativas, preferncias, atitudes, comportamentos, etc.), alm de problemas entre a demanda e as caractersticas da oferta (inadequao institucional e empobrecimento da oferta escolar). Desencanto e frustrao, porque quando chegam ao ensino mdio os pobres se deparam com o que j no existe: correspondncia entre escolaridade, obteno do diploma e os esperados resultados materiais (postos de trabalho) e simblicos (prestgio e reconhecimento social), porque chegam tarde e chegam, na verdade, a outro destino. Obtm um objeto que tem outro sentido e outro valor inter-relacionado, como o caso de todos os objetos sociais.
2. Sentido e valor do ensino mdio no mundo de hoje No preciso abundar em argumentos para mostrar que o ensino mdio de hoje tem um significado diferente do que tinha no projeto original dos sistemas educativos ocidentais. No princpio, se tratava de uma ante-sala dos estudos universitrios e, como tal, estava reservada s aos herdeiros, ou seja, aos filhos das classes dominantes e a alguns pobres meritrios (os "bolsistas"). Hoje, o ensino mdio mais do que isso. Na verdade, outra coisa. Trata-se da ltima etapa da escolaridade obrigatria. Vale no s como etapa para os estudos superiores (valor que conserva), mas algo como o novo teto da escolaridade obrigatria que em todas partes tende a se prolongar at os 17 ou 18 anos da vida dos indivduos. Nas condies atuais, o chamado ensino mdio um ensino "final" para a maioria da populao e um momento de um processo de formao que tende a se prolongar, sobretudo, no arco de vida das pessoas (educao permanente). Esta nova racionalidade muda o sentido e afeta os velhos "modos de fazer as coisas nas instituies. No princpio, quando se tratava de formar elites, a lgica da seleo impregnava o fazer dos docentes e alunos. A carreira escolar era como uma corrida de obstculos; os mais capazes" de super-los chegavam ao final e adquiriam o direito de entrar na universidade (no princpio no tinha sentido uma "prova de ingresso" educao superior, a prova era a concluso do ensino mdio). A prtica sistemtica dos exames permitia distinguir os vitoriosos dos fracassados. O fracasso era um fenmeno habitual e esperado na experincia escolar. Os chamados eram sempre
3
mais que os eleitos e todos os "jogadores" (mestres, famlias, alunos) conheciam e participavam desta regra do jogo e aceitavam seus desenlaces. Quando o ensino mdio se converte em obrigatrio, todos estes dispositivos deixam de ter sentido e, se persistem em sua ao, so uma fonte de contradio e conflito. A recente experincia argentina de extenso da obrigatoriedade at o segundo ano da antiga secundria (passou da educao primria obrigatria de sete anos para a Educao Geral Bsica EGB de 9 anos) est produzindo grandes contradies entre os velhos mecanismos pedaggicos e disciplinares, as expectativas de docentes e alunos e as novas disposies legais e normativas4. Hoje, a permanncia dos adolescentes na escola j no algo aleatrio ou discricionrio. Nem os alunos, nem os pais, nem os agentes escolares esto em condies de determinar a incluso ou a excluso escolar. Todos os adolescentes devem estar na escola. Este o mandato da lei (a escolarizao, ao menos no nvel bsico, foi sempre um direito e uma obrigao). Hoje, a instituio perdeu a capacidade de impor regras que determinem a permanncia ou a evaso escolar. Todos devem ser includos. Esta disposio determina a demanda e afeta muito a oferta. Por outro lado, as famlias e os jovens devem saber que ir ou no ir escola, ao menos teoricamente, j no uma questo de escolha. E, quanto instncia responsvel de garantir o cumprimento da obrigatoriedade, ou seja, o Estado, este se v obrigado a ampliar a oferta escolar e a garantir as condies mnimas de "educabilidade" de todos. Da a tendncia a intervir atravs de programas de bolsas de estudos, subsdios e apoio aos jovens e suas famlias. Mas a mudana de sentido e a obrigatoriedade tambm determinam uma srie de transformaes nos dispositivos e processos institucionais. O exame e a avaliao j no podem mais cumprir uma funo seletiva, seno estritamente pedaggica, e os problemas de aprendizagem j no se resolvem pela via fcil e curta da repetncia e da excluso. O mesmo se pode dizer dos "problemas de conduta e disciplina". Entretanto, as adaptaes das instituies e as mentalidades no so simples efeitos automticos das transformaes estruturais e legais. Portanto, a contradio tende a transformar-se em conflito e o desajuste entre as predisposies e os marcos normativos tende a provocar o mal-estar. Por isso, a educao para os adolescentes e os jovens se converte no elo mais crtico das polticas educativas nacionais.
3. Trs problemas na escolarizao massiva dos adolescentes e jovens. Para organizar a discusso proponho discutir estes novos desafios da escolarizao generalizada das novas geraes em trs eixos problemticos. O primeiro tem a ver com o tema da identidade e cultura dos adolescentes; o segundo, com o eixo poltico da modificao dos equilbrios de poder entre as geraes; e o terceiro remete ao tema do sentido da experincia escolar para os adolescentes e jovens. O fio condutor que une estas trs linhas de reflexo relaciona-se, como bvio, com o tema da relao entre condies de vida e cultura da populao, a escolarizao e a cultura prpria das instituies escolares. Neste caso, h um quarto excludo e precisamente o da excluso social que atinge muito os adolescentes e jovens latino-americanos. A extrema desigualdade na distribuio das oportunidades de vida faz com que, para muitos deles, a escolarizao, em si mesma, seja uma experincia literalmente impossvel, algo que escapa completamente a seu projeto de vida. Esta determinao material no ser tratada explicitamente neste trabalho, mas permanecer como pano de fundo determinante tanto das configuraes culturais como dos sentidos, identidades e trajetrias escolares das novas geraes de latino-americanos5.
3.1.Identidade e cultura dos adolescentes e jovens A adolescncia e a juventude so construes sociais. Em outras palavras, so "classes de idades" que, apesar de possurem uma base material biolgica, tm tambm diversas representaes histricas relativamente arbitrrias. Na realidade, o que "existe", com uma realidade quase igual a dos objetos fsicos, um contnuo de idade. a sociedade que produz determinados "cortes" e "rupturas" no fluxo do tempo. Sabemos que existem crianas e adolescentes, adolescentes e jovens, mas essas fronteiras que marcam os limites no tm uma sinalizao material ou objetiva. Os limites sociais so sempre imprecisos e variveis. Mas em certos casos preciso reduzir essa impreciso e fixar limites estritos, homogneos e fceis de identificar. Este o tipo de limite que se expressa na lei e nos dispositivos normativos. A maioridade, por exemplo, est claramente estabelecida nos cdigos e nas leis de todas as sociedades.
5
No so limites definitivos, podem variar. Mas so, sim, limites precisos. A incorporao ao sistema educativo formal no arbitrria. Ingressa-se na escola a partir de uma idade determinada. Mas quando se trata da adolescncia e da juventude, sabemos, somente, que os limites existem, mas no estamos em condies de dizer quando comeam e quando terminam6. Nem todos os que tm a mesma idade participam da mesma "classe de idade", j que nem todos os coetneos compartilham as mesmas caractersticas e experincias vitais (formar famlia, trabalhar, ter independncia econmica, estudar, etc.)7. Por outro lado, a prpria experincia escolar contribuiu para a criao da juventude como uma construo social, ou seja, como um tempo de vida colocado entre a infncia e a condio de adulto, um tempo de preparao e de espera. Por isso, podese dizer que nem sempre existiu "juventude" e "adolescncia". A posio na estrutura de distribuio de bens materiais e simblicos da sociedade est determinando diversas formas de viver a experincia jovem ou adolescente, portanto no um estado pelo qual necessariamente passam todos os indivduos de uma sociedade. Em muitos casos, at a prpria experincia da infncia um "privilgio" que se nega a muitas crianas que vivem em condies de pobreza extrema, tanto no campo como nas grandes cidades do continente. Mas aqui, mais que o debate terico, por mais rico e interessante que seja, interessa-nos saber quais so as caractersticas distintivas dos adolescentes e jovens em relao s crianas como objeto de classificao escolar. A velha escola primria foi pensada e desenhada para as crianas e o ensino mdio, pese seus esforos de adaptao, tende a reproduzir os mecanismos e estilos prprios da educao infantil. Em outras palavras, em muitos casos, tende-se a tratar os adolescentes como se fossem crianas. Este um fator que no poucas vezes contribui para explicar o mal-estar e o fracasso escolar no ensino mdio. Segundo Dubet e Martuccelli (1998), mais alm das significativas determinaes de gnero, classe social, etnia, habitat, etc., um aluno do ensino mdio diferente de um aluno da escola primria. Podem-se apontar as seguintes particularidades que, apesar de observadas na Frana, so, em certa medida, vlidas no contexto escolar urbano da Amrica Latina:
a) Diversidade das "esferas de justia". Enquanto o mundo da infncia e da escola est organizado em torno de uma grande "unidade normativa", que rege tanto o mbito escolar como o familiar, o mundo do "colegial" est regido pela percepo de que existem diversos mbitos de justia. Uma regra se aplica no recreio, outra entre os amigos, outra no colgio, outra diferente no mbito familiar. Enquanto a criana mimada na famlia espera o mesmo tratamento na escola, o adolescente percebe que existem espaos distintos, com regras distintas. Um exemplo: os resultados escolares diferentes no devem engendrar tratamentos diferentes. Enquanto no ensino fundamental os que so bons em conduta tambm tendem a ser premiados em notas e sanes escolares, esta prtica se torna injusta no ensino mdio. Neste mbito, as notas escolares tendem a diferenciar-se das notas de comportamento (conduta). b) Princpio de reciprocidade. Enquanto na escola a criana tende a representar a autoridade, e o professor, algo natural e indiscutvel, o adolescente percebe que as instituies (o colgio, e tambm a famlia) constituem mundos complexos, onde existe uma diversidade de atores com interesses e "capacidades" diferentes. A "onipotncia" do professor tende a ser substituda pela viso mais complexa e poltica das relaes e do jogo (as alianas, as estratgias, o uso do tempo, etc). O princpio de reciprocidade significa que a relao professor-aluno no unidirecional (o professor tem todo o poder e faz o que quer, enquanto o aluno s tem que obedecer). O adolescente tende a considerar que o respeito, por exemplo, deve ser uma atitude recproca e no s uma obrigao dele com seus professores8. c) A emergncia de estratgias escolares. A criana na escola percebe que s basta ser aplicado e obedecer s regras e a seus superiores (os pais e os professores) para ter xito na escola. Em compensao, no colgio os adolescentes percebem que "ser estudante" exige algo alm do que seguir certos automatismos. Ao contrrio, o adolescente percebe que para ter xito preciso desenvolver uma estratgia, ou seja, requer fazer uso do clculo, definir objetivos e escolher meios adequados para alcanlos, desenvolver a ao no eixo do tempo, saber esperar, etc. d) Desenvolvimento de uma subjetividade no escolar. Enquanto as crianas na escola vivem uma "continuidade relativa", seu estatuto de criana e seu estatuto de
7
aluno, os adolescentes no colgio vivem a experincia de uma tenso entre o aluno e o adolescente. Com a adolescncia, escrevem Dubet e Martuccelli forma-se um si mesmo no escolar, uma subjetividade e uma vida coletiva independentes da escola, que afetam vida escolar. Veremos mais adiante que nem todos os adolescentes conseguem articular de forma satisfatria estes dois espaos de vida. Mais alm destas particularidades genricas, os adolescentes e jovens so portadores de uma cultura social feita de conhecimentos, valores, atitudes, predisposies que no coincidem necessariamente com a cultura escolar e, em particular, com o currculo do programa que a instituio se prope a desenvolver. Houve um tempo em que o mundo da vida cotidiana se mantinha "fora" e "distante" da cultura escolar. Os saberes legtimos, esses que a escola pretende incorporar nos alunos, so saberes "consolidados" e de certo modo "distantes" do cotidiano e da contemporaneidade. Esta distncia tinha uma razo de ser no momento constitutivo da escola e do estado moderno. A escola tinha uma misso civilizatria, tinha uma funo de reeducao (como se dizia na poca). Em muitos casos a distncia entre a cultura espontaneamente incorporada pelas crianas e a cultura que se queria inculcar era extrema, por isso a escola tinha uma funo missionria. A primeira pedagogia era uma tecnologia de converso, por isso a densidade, a variedade e a integridade de suas tecnologias (ao extremo, o ideal era a pedagogia do interno). Hoje, impossvel separar o mundo da vida do mundo da escola. Os adolescentes trazem consigo sua linguagem e sua cultura. A escola perdeu o monoplio de inculcar significaes e estas, a seu tempo, tendem diversificao e fragmentao. No entanto, em muitas ocasies, as instituies escolares tendem ao solipsismo e a negar a existncia de outras linguagens e saberes e outros modos de apropriao distintos daqueles consagrados nos programas e nas disposies escolares. Enquanto o programa escolar tem ainda as marcas do momento fundador (homogeneidade, sistematizao, continuidade, coerncia, ordem e seqncia nicas, etc.) as novas geraes so portadoras de culturas diversas, fragmentadas, abertas, flexveis, mveis, instveis, etc. A experincia escolar se converte a mido em uma fronteira onde se encontram e se enfrentam diversos universos culturais. Esta oposio estrutural fonte de conflito e desordem; fenmenos que terminam, s vezes, por neutralizar qualquer efeito da instituio escolar sobre a conformao da subjetividade dos adolescentes e dos jovens. preciso ressaltar que a
contradio e o conflito entre cultura escolar e cultura social mais provvel no caso dos jovens das classes sociais econmica e culturalmente dominadas. Nestas condies, provvel que surjam tenses entre a integrao dos adolescentes aos "grupos de iguais" e sua integrao s normas escolares. Quando a distncia entre a cultura social incorporada pelos jovens e a cultura escolar curricular grande (e este o caso mais freqente, quando se trata dos filhos das classes sociais dominadas), o conflito um fenmeno muito provvel na experincia escolar. Desde a clssica investigao de J. S. Coleman, em 1961, se conhece a oposio entre a subcultura adolescente e as normas escolares, que em muitos casos faz com que se preferira a primeira segunda. O conflito e o predomnio da "atrao e o prestgio" no grupo de pares sobre o prestgio e os prmios prprios da atividade escolar no mais que uma das situaes provveis. A harmonizao e "negociao" entre ambos os universos culturais, dadas certas condies sociais e institucionais, tambm um desenlace provvel desta tenso estrutural. As manifestaes deste tipo de conflito so bem conhecidas e adquirem formas particulares em cada contexto nacional. Na Frana, comum que os rapazes e as moas do ensino mdio tenham que optar entre duas figuras tpicas: a do "bufo" ou a do "palhao". Enquanto a primeira representa o tipo ideal do aluno que opta por cumprir com as regras da escola, a segunda se aplica aos que as desafiam e preferem ser os primeiros no grupo" (os mais valorizados, reconhecidos, populares, etc.) custa de serem "os ltimos" na lista de mritos especificamente escolares (notas, conduta, etc.). Os filhos dos grupos subordinados, em muitos casos, optam por esta estratgia, na medida em que lhes mais difcil competir com xito no jogo escolar. O campo no qual se encena a construo da subjetividade est dominado por trs atores bsicos: a famlia, os meios de produo e difuso de sentido e as instituies escolares. Mas a famlia perdeu fora e capacidade de estruturar as personalidades das novas geraes. A famlia que a escola ainda espera e quer no a famlia das novas geraes. A incorporao da mulher ao mercado de trabalho, a modificao do equilbrio de poder entre os sexos e a diviso do trabalho na famlia, sua desinstitucionalizao e a questo social contempornea tm modificado profundamente o papel da famlia como construtora de subjetividade. No existe um currculo social (ou seja, familiar, miditico e escolar) nico e coerente e a escola no tem mais alternativa alm de prestar ateno ao fato de que no possui uma posio de monoplio neste campo to complexo (se que alguma vez
9
teve). A simples tomada de conscincia desta complexidade contribuiria para redefinir e redimensionar de forma crtica e criativa a margem de manobra e a eficcia prpria das instituies escolares na formao das novas geraes.
3.2. Um novo equilbrio de poder entre as geraes Outro fator que vem pr em crise os velhos dispositivos que organizavam a vida das instituies escolares para adolescentes e jovens origina-se nas mudanas dos equilbrios de poder entre as crianas, os jovens e os adultos. A idade sempre foi um princpio estruturador das relaes de dominao em todas as sociedades, e durante a segunda metade do sculo XIX, quando se assentaram as bases das instituies educativas capitalistas, a relao de poder entre as geraes era muito mais assimtrica que atualmente. O mundo dos adultos (os pais, os mestres, os diretores, os "bedis", etc.) praticamente monopolizava o poder nas instituies. Os alunos tinham mais deveres e responsabilidades que direitos e capacidades. Os regulamentos e dispositivos disciplinares dos estabelecimentos escolares constituam uma objetivao do poder onipotente que tinham os adultos sobre as novas geraes. Por uma srie de razes estruturais, que se desdobram no tempo ao longo da histria, o equilbrio de poder entre as geraes sofreu mudanas substanciais (ELTAS, N. 1999). Na atualidade, ainda que as relaes intergeracionais continuem sendo assimtricas, pendendo para o lado dos adultos, esta assimetria se modificou profundamente em benefcio das novas geraes. Hoje, as crianas e adolescentes so considerados como sujeitos de direito. No s tm deveres e responsabilidades vis vis dos adultos, como se reconhece neles capacidades e direitos. A incorporao praticamente universal da Conveno Internacional dos Direitos da Criana (ainda falta uma assinatura significativa, a dos EUA) um indicador do grau de institucionalizao alcanado por estas novas relaes intergeracionais de poder. As instituies educativas tm que tomar nota desta realidade e transformar seus dispositivos, em especial aqueles que regem as relaes de autoridade entre
10
professores, diretores e alunos, as que organizam a ordem e a disciplina e aquelas que estruturam os processos de tomada de deciso. Dever reconhecer que os adolescentes e jovens tm direitos especficos ( identidade, a expressar suas opinies, a aceder informao, a participar na definio e aplicao de regras que organizam a convivncia, a participar na tomada de decises, etc.) e ter que desenhar os mecanismos institucionais que garantam seu exerccio (regulamentos, participao em colegiados, recursos financeiros, de tempo, lugar e competncias etc.). O reconhecimento dos direitos dos adolescentes unido eroso das instituies escolares (produto da massificao com subfinanciamento e da perda do monoplio no campo das agncias de imposio de significados) est na origem da crise de autoridade pedaggica, como um efeito da instituio. Nas condies atuais, os agentes pedaggicos (professores, diretores, especialistas, etc.) no garantem a escuta, o respeito e o reconhecimento dos jovens. Mas a autoridade pedaggica, entendida como reconhecimento e legitimidade, continua sendo uma condio estrutural necessria da eficcia de toda ao pedaggica. O problema que hoje o professor tem que construir sua prpria legitimidade entre os jovens e adolescentes. Para isso deve recorrer a outras tcnicas e dispositivos de seduo. Trabalhar com adolescentes requer um novo profissionalismo que requer definio e construo.
3.3. O problema do sentido da escola Os professores no podem dar por descontada sua autoridade, mas tm que constru-la de forma cotidiana. E os alunos devem dar um sentido experincia escolar. Nas condies do desenvolvimento atual, este no automtico, como em outras etapas do desenvolvimento escolar. Quando os que freqentavam o ensino mdio eram os "herdeiros e os bolsistas", ou seja, os filhos das classes dominantes e os pobres meritrios, tanto a autoridade pedaggica como o sentido da escola eram dados da realidade. Hoje, para qu ir escola (a escola que temos, entenda-se) uma questo que a maioria dos jovens e adolescentes se faz diariamente.
11
bvio que aqueles incapazes de dar uma resposta satisfatria a esta pergunta tm poucas razes para persistir na carreira escolar. Quais so as respostas possveis e quais so as condies sociais que as determinam? Elas so trs: a) A obrigao como sentido. Freqenta-se o ensino mdio porque sim, porque no h outro jeito, porque no se pode no ir, porque existe um sistema de conteno familiar que, pese ao vazio da experincia escolar e ao mal-estar e padecimento que pode vir a produzir, no ir escola no uma alternativa objetivamente possvel para certos adolescentes e jovens. b) A razo instrumental. Deve-se estudar por uma razo puramente instrumental. Alguns adolescentes assumem a lgica do adiamento de benefcios presentes com o fim de benefcios maiores no futuro. Se, hoje, esforo-me nos estudos (que em si mesmos no tm maior sentido), amanh serei algum na vida, poderei ingressar universidade, poderei conseguir um bom emprego, receberei melhor trato, etc. c) O amor ao conhecimento. Este sentimento emergente tem a ver com a paixo, com a entrega incondicional ao saber ou a um campo do saber. Esta imerso no jogo, esta espcie de illusio uma energia extremamente poderosa que, segundo uma representao bastante difundida, se constitui em um recurso maior para o xito na carreira escolar. Estas trs disposies idealtpicas no esto aleatoriamente distribudas na populao, mas so o produto de um conjunto de fatores inter-relacionados. Entre eles, cabe mencionar os fatores culturais e o lugar que ocupam os indivduos na estrutura social. A relao gratuita, desinteressada e "passional" com o conhecimento e a cultura em geral (a arte, as cincias, etc.) mais provvel entre as classes mais liberadas das urgncias e presses relacionadas com a sobrevivncia. As classes mdias, cujo capital econmico, social e cultural lhes permite aspirar ascenso social, esto objetivamente mais predispostas a desenvolver uma lgica instrumental e a sacrificar-se no presente com o fim de conseguir melhores recompensas no futuro. Esta disposio ao sacrifcio e ao esforo sistemtico altamente valorizada no mbito escolar ("perseveras e
12
triunfars") e se associa com os melhores rendimentos, tanto em termos de aprendizagem como de conduta escolar9. Os setores sociais excludos dos princpios sociais mais valorizados no esto em condies objetivas de desenvolver uma atitude estratgica entre as novas geraes. Quando objetivamente "no se tem futuro", porque mesmo o presente incerto e se vive em situaes limite, a simples idia de se sacrificar e se esforar para obter recompensas diferidas para o futuro, aparece como algo absurdo e literalmente impensvel. Quando este o caso, as condies de "educabilidade" dos jovens se encontram seriamente comprometidas.
4. Caractersticas de uma boa escola para os jovens Dadas as condies em que se desenvolve a escolarizao dos adolescentes e jovens latino-americanos, preciso perguntar-se quais poderiam ser as caractersticas que distinguem uma escola adequada a suas condies de vida, expectativas e direitos. Mais que uma resposta, prefiro enunciar uma lista de caractersticas que em princpio aparecem como desejveis e necessrias, sem por isso pretender esgotar o tema, que, por sua complexidade, requer anlise e reflexes mais especializadas. Mas guisa de proposta, enumero aqui, as seguintes: a) Uma instituio aberta que valoriza e considera os interesses, expectativas, e conhecimentos dos jovens. b) Uma escola que favorece e d lugar ao protagonismo dos jovens e na qual os direitos da adolescncia se expressam em instituies e prticas (de participao, expresso, comunicao, etc.) e no s se enunciam nos programas e contedos escolares. c) Uma instituio que no se limita a ensinar, mas que se prope a motivar, interessar, mobilizar e desenvolver conhecimentos significativos na vida das pessoas. d) Uma instituio que se interessa pelos adolescentes e jovens como pessoas totais que se desempenham em diversos campos sociais (a famlia, o bairro, o esporte,
13
etc.) e no s pelos alunos aprendizes de determinadas disciplinas (a matemtica, a lngua, a geografia, etc.). e) Uma instituio flexvel em tempos, seqncias, metodologias, modelos de avaliao, sistemas de convivncia, etc e que leva em conta a diversidade da condio adolescente e juvenil (de gnero, cultura, social, tnica, religiosa, territorial, etc.). f) Uma instituio que forma pessoas e cidados e no "expertos", ou seja, que desenvolve competncias e conhecimentos transdisciplinares, teis para a vida e no esquemas abstratos e conhecimentos que s tm valor na escola10. g) Uma instituio que atende a todas as dimenses do desenvolvimento humano: fsica, afetiva e cognitiva. Uma instituio na qual os jovens aprendem a aprender com prazer e que integra o desenvolvimento da sensibilidade, a tica, a identidade e o conhecimento tcnico-racional. h) Uma instituio que acompanha e facilita a construo de um projeto de vida para os jovens. Para isso dever desenvolver uma "pedagogia da presena" caracterizada pelo compromisso, a abertura e a reciprocidade do mundo adulto para com os adolescentes e os jovens (GOMEZ DA COSTA A.C. 1997 e 2000 ). i) Uma instituio que desenvolve o sentido de pertinncia e com a qual os jovens "se identificam.
5. Quatro perigos provveis a controlar Mas as melhores intenes podem conduzir aos piores resultados, caso no se tenha em conta que todo paradigma de interveno incuba efeitos perversos que demandam conhecimento para que possam ser controlados. Entre eles, e para terminar, quero mencionar os seguintes:
14
a) A condescendncia. Que aconselha inventar escolas para jovens pobres, contribuindo assim fragmentao social da escola e fortalecendo a reproduo escolar das desigualdades sociais e vice-versa. Ser preciso estar atento e controlar as boas intenes que convidam a concentrar-se nos pobres e a oferecer educao pobre para os jovens pobres. b) O negativismo. preciso evitar a associao da adolescncia e da juventude s situaes indesejveis, de periculosidade social (delinqncia, enfermidade, drogas, gravidez, violncia, etc.), em sntese, pura negatividade, que s induz interveno preventiva. Para isso, preciso no esquecer que a juventude a idade em que a criatividade, a esperana, o desinteresse, a entrega e a generosidade, tm mais probabilidade de ocorrer. c) A demagogia juvenil e adolescente, que consiste em oferecer compreenso, conteno afetiva, respeito cultura jovem, etc., sem desenvolver conhecimentos e atitudes complexas e necessrias para a insero social e poltica dos jovens no mundo adulto. Algumas verses do populiculturismo (a valorizao voluntarista ou oportunista "das culturas dos jovens") acompanham e legitimam muitas vezes a excluso em relao aos valores mais valiosos e complexos da cultura "adulta" e universal. d) O facilitrio. Este consiste, basicamente, na espcie de reproduo escolar do modo de aprendizagem e de relao com a cultura que desenvolvem os meios de comunicao de massa e de produo e circulao de culturas juvenis de massa (pedagogia do zapping, a espetacularizao, o prazer imediato, o desprezo pela complexidade, o esforo e o trabalho escolar, a disciplina, o carter acumulativo do desenvolvimento da cultura, etc.). Em sntese, provvel que a escola para os adolescentes seja uma construo, na medida em que a prpria adolescncia uma idade "nova" e em plena transformao. E como "todos os adolescentes no so iguais", dever-se- pensar em formas institucionais suficientemente diversificadas e flexveis para dar respostas adequadas s mltiplas condies de vida e expectativas das novas geraes. Talvez, uma das chaves do xito seja compreender que uma escola para os adolescentes dever ser tambm uma escola
15
dos adolescentes, isto , uma instituio onde as novas geraes no sejam simples populaes alvo, e sim protagonistas ativos e "com direitos".
Notas.
16
1. Documento apresentado no seminrio Escola Jovem: um novo olhar sobre o ensino mdio. Organizado pelo Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Mdia e Tecnolgica. Coordenao-Geral de Ensino Mdio. Braslia. de 7 a 9 de junho de 2000. 2. Socilogo, consultor do IIPE-UNESCO em Buenos Aires. Professor titular de sociologia da educao na Faculdade de Cincias Sociais da Universidade de Buenos Aires, Argentina. 3. Durante ltimo qinqnio do sculo passado, a matrcula no ensino mdio do Brasil cresceu 57%, "sendo o segmento do ensino que mais cresceu no perodo". Ao mesmo tempo, constata-se que este crescimento foi desordenado e "sem as condies fsicas adequadas, sem espaos prprios". Por isso segundo o Censo Escolar de 1998, 55% dos estudantes freqentam o turno da noite. (BERGER FILHO, R.L.. 1999). 4. Inclusive no caso da provncia de Buenos Aires, onde vive um tero da populao argentina, a obrigatoriedade se prolonga at o final da antiga secundrio, hoje, denominada Nivel Polimodal (trs anos depois da EGB). 5. Detrs das desigualdades e excluso esto as desigualdades e excluses sociais. Da a necessidade de imaginar e desenvolver estratgias de interveno integral em que o desenvolvimento da infncia e da adolescncia ocupe um lugar central. 6. Para uma construo terica das classes de idade ver Urresti M. Cambio de escenarios. Experiencia juvenil urbana y escuela. En: Tentini Fanfani, E. Una escuela para los adolescentes. Losada, Buenos Aires, 2000. 7. Podia-se perguntar o que tem em comum as 400.000 meninas brasileiras que trabalham no servio domstico com suas coetneas das classes mdia e alta que estudam, dispe de tempo livre, tm determinados nveis e qualidade de consumo cultural, etc.
17
8. Esta demanda se expressa claramente nesta declarao feita por jovens alunos de escolas pblicas do Rio de Janeiro: Se ele (o diretor) no me respeita, para que vou respeit-lo? Eu respeito quem me respeita, que me d respeito (...). Tem que haver a troca, se no houver a troca quebra o elo da corrente, no d. (Citado por Souza, Minayo M. C. de e outros 1999, p. 113). 9. Sobre o tema da disciplina e a convivncia nas instituies de ensino mdio, ver: Tenti Fanfani, E. Ms all de las amonestaciones. La produccin del orden democrtico en la instituiciones escolares. Buenos Aires, Cuadernos del Unicef, 1999. 10. Em outro lugar criticamos a tendncia organizao disciplinar do currculo da educao bsica e o predomnio da teoria, o esquematismo e a abstrao sem sentido no ensino escolar (TENTI FANFANI E. Pedagoga y cotidianidad. En: TENTI FANFANI E. 2000).
18
Bibliografia. BERGER FILHO, R. L. Enseanza Media: Los desafios de la inclusin. Documento apresentado pelo autor no Seminario "Cambios en la educacin secundaria. Anlisis de procesos europeos y latinoamericanos, organizado pelo IIPE - UNESCO em Buenos Aires, novembro de 1999. COLEMAN, J. S. The adolescent society. Nueva York, The Free Press. 1999 SOUZA MINAYO, M.C. de e outros. Fala, galera. Juventude, violncia e cidadania no Rio de Janeiro. Ro de Janeiro, Editora Garamond/UNESCO, 1999. ELIAS, N. La civilizacin de los padres. Bogot, Editorial Norma, 1999. GOMEZ DA COSTA, A.C. In: TENTI FANFANI. Una escuela para los adolescentes. Reflexiones y propuestas, Buenos Aires, Editorial Losada, 2000 JATM ETCTlEVERRY, G. La tragedia Educativa.. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 1999 TEDESCO J.C. El nuevo pacto educativo. Madrid, Anaya, 1995 TENTI FANFANI E. Ms all de Las amonestaciones. Cuadernos del Unicef, Buenos Aires, 1999 TENTI FANFANI E. Una escuela para los adolescentes. Reflexiones y propuestas. Editorial Losada. Buenos Aires. 2000
19
20