Sobre Quignard
Sobre Quignard
Sobre Quignard
Pouco lido no Brasil, o escritor francs Pascal Quignard tem uma obra variada que passa pela fico e pelo que chama de Pequenos tratados, em que a fico no se separa da reflexo ensastica1. Escritor erudito, revisita a literatura clssica, principalmente a literatura romana do sculo II, produzindo tambm textos ficcionais e tericos sobre as artes plsticas e a msica. Sobre ele, afirma Chantal Lapeyre-Desmaison, estudiosa de sua obra:
O escritor manifesta um gosto marcado por certos perodos, certas culturas, a Antigidade romana, mas tambm a sia medieval, o sculo XVII francs, por exemplo. Nada permite, em princpio, dizer de forma evidente qual seria o trao de unio entre essas diferentes pocas, esses diferentes lugares. Sob a aparncia do descontnuo, qual seria o fio?*
Podemos dizer, todavia, que a msica e o silncio esto presentes em toda a sua obra, sendo um desses autores cuja vida est to ligada ao ato de escrever, que podemos falar de uma vida escrita com a ponta do silncio e da msica. Ele prprio msico, em seu ouvido musical enlaam-se escrita, silncio e dor. Passar pelo silncio e fazer dele sua vida, por esse ponto a que o escritor sempre volta, ir a um limite da memria, lugar inaugural de um saber que perpassa sua obra: o saber do perdido, a volta aos lugares inspitos do vazio, para viver com a despossesso, a partir da aprendizagem da incompletude, da no-totalizao, que ele atravessa com o impacto de uma escrita, a dele, que tambm o testemunho de algo que existe para alm do burburinho e do vozerio desse sculo dos excessos que aponta para o sucesso ilusrio da totalizao.
1 Alm dos Petits traits, publicados em dois volumes pela Folio, so exemplos desse tipo de ensaio: La leon de musique, Le nom sur le bout de la langue, Une gne technique lgard des fragments, La haine de la musique e Rhtorique spculative. Em 2002, foi publicada pela Grasset a trilogia Dernier royaume: Les ombre errantes, Sur le jadis e Abmes.
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* (Quignard, Pascal. Le nom sur le bout de la langue. Paris: Gallimard, 1993: 28)
Reitera-se na escrita de Quignard a prevalncia de algo que se perdeu e que se refaz em seu texto, por meio de um processo de reescrever o perdido sob outras formas. O sentido agudo da perda se torna uma inscrio em sua memria, algo que ele tenta sem cessar recuperar, mas de que resta apenas um trao. Saber da impossibilidade de reconquistar o passado, da falta estrutural da linguagem que a torna incapaz de recuperar o perdido, e que aponta para o fracasso de tudo dizer, torna possvel, por outro lado, que o escritor afirme, paradoxalmente, que se falta uma estrela guia, preciso seguir fielmente a estrela ausente da linguagem*. O primeiro livro que li desse escritor-poeta foi Le nom sur le bout de la langue, que se estrutura de forma heterognea, com uma primeira parte que funciona como uma espcie de vestbulo do livro, seguida do relato de uma estranha histria sada do folclore da Islndia. Em seguida, lem-se textos que falam da vida do escritor e sua experincia com o mundo mtico, relido por ele de forma pessoal e lrica. A primeira histria fala de um nome, um nome especial, que no pode ser esquecido, pois condio da realizao do amor. O estranho senhor Heidebic de Hell oferece a Colbrune, jovem apaixonada por Jeune, o alfaiate, uma forma de conquistar seu amor. O mais importante seria o desafio que lhe faz de no esquecer seu nome: Heidebic de Hell, em cujo cerne se ouve a palavra inferno, talvez para dizer que o esquecimento o inferno, que a falha da memria que o sujeito passa a vida tentando corrigir. Rasura na memria, pois algo se esqueceu, mas continua presente, ressoando como um sofrimento a que falta a palavra ou o nome possvel para diz-lo, para ancorlo. Este gesto seria a possibilidade de dar ncora angstia, acolhendo a dor no assoalho da escrita. Esquecer o nome de Heidebic de Hell entregar-se a ele, o Senhor do cu e da morte, a quem Colbrune, definhando de amor, recorrera em sua prece, na vspera. No esquea meu nome, diz ele, apresentando-lhe seu desafio, o preo do amor*. Este conto seguido, no livro, pelo relato de um acontecimento da infncia do autor: um instante rpido, algo vivido em um timo, mas que passa pelos olhos e o ouvido: a me que tenta se lembrar de uma palavra e fica muda, esttica como uma esttua. Para ele, uma criana sensvel, essa a experincia da Medusa: nesse momento, afirma, ele viu a Medusa. Medusa ou
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o nada so nomes do real, so nomes de algo to traumtico, que no se consegue simbolizar, no se consegue dizer: faltam palavras que, no entanto, multiplicam-se na impossvel tarefa de ir l, de novo, nessa cena. O nome ou a palavra faltante marca a escrita de Pascal Quignard, que afirma: assim como aquele que cai sob o olhar da Medusa transforma-se em pedra, aquele que cai sob o olhar da palavra que falta tem a aparncia de uma esttua*. Aquilo que falta o que causa o estupor, mas tambm o que torna imperativa a escrita, na procura da origem, da coisa literria, daquilo que est antes da palavra e antes de uma ruptura que marca o sujeito como uma ferida, mas propicia que da brote algo:
A mo que escreve , antes, uma mo que escava a linguagem que falta, que tateia em direo linguagem sobrevivente, que crispa, enerva-se, que, desde a ponta dos dedos, mendiga. Bout, debout so palavras recentes tiradas da lngua que os guerreiros francos empregavam quando invadiram a Glia. Bautan bouter, germinar. Sur le bout de la langue: algo germina sem florescer. Algo germina sem vir aos lbios daquele que espia no silncio. o broto da florao invisvel da lngua que permanece debout (em p) sobre a boca, aqum da mastigao, em suplncia ao sopro que a respirao utiliza para manter a vida. Aristteles dizia: A palavra um luxo sem o qual a vida possvel. Um boto brota sobre a boca, como brota sobre as rvores, ou sobre as roupas, ou sobre as faces. Os adolescentes tm razo quando acham feias as espinhas que os desfiguram: eles esto a ponto de perder o rosto para sempre. So os traos de um porvir, no qual a morte vem trazer o testemunho de sua germinao, o aparecimento da terra em que a sexualidade se faz tantica, isto , genital, como aquilo que brota, que esguicha antes de desfalecer em uma aparncia de morte. O rosto pessoal mais um si mesmo que um nome prprio, mesmo que esse rosto pessoal no mantenha mais a vida que a linguagem vem afirmar*.
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Idntica questo est presente nos textos que falam da msica e da voz do adolescente que perdeu o cristal da voz feminina, passando por uma mudana que um efeito da separao do universo materno. Essa perda traz a marca de uma castrao e provoca um sentimento de abandono e desespero, mais caracterstico dos homens que das mulheres. Quignard escolhe a palavra francesa mue para falar dessa mudana, o que pode querer dizer mudana na plumagem das aves, do plo ou da pele dos animais e mudana de timbre da voz humana na
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* (Quignard, Pascal. La haine de la musique. Paris: Gallimard, 1996: 199) * (Quignard, Pascal. Tous les matins du monde. Paris: Gallimard, 1991)
puberdade, como se a voz sofresse uma rachadura, uma ferida jamais curada. Assim, para o escritor, as vozes humanas so sonatas que se abrem sobre gritos*. possvel pensar no dio musica e da msica, marcada por essa falha impossvel de eliminar, cicatriz presente no prprio cerne de sua produo, para sempre fadada imperfeio. Criao humana, a msica sofre dos impasses da respirao e de seus ritmos, do sopro humano j presente na criana que nasce, trao de sua psych, de sua alma j rasurada. A expresso dio da msica expressa a que ponto a msica pode se tornar odiosa para aquele que mais a amou*. Esse tema volta na perda da voz de Marin Marais, no livro Tous les matins du monde*, que a histria de dois msicos, o aprendizado da msica e tudo o que concerne procura do som inaugural, auroral, que faz parte do percurso do msico, aquele que deve fugir dos rudos mundanos, das glrias, do poder, para conquistar o silncio e a solido inerentes sua arte. Desse livro se fez o filme homnimo Todas as manhs do mundo2, um filme que deve ser visto, ouvido e gravado na memria pela beleza dos dilogos, das msicas de Sainte-Colombe, de Marin Marais, de Lully e das imagens cuidadosamente construdas com base em telas do pintor Georges de La Tour. Tous les matins du monde tem como tema central um msico e sua enorme melancolia por uma perda sem remdio e sem esquecimento: a morte de sua amada, sua mulher, me de suas filhas. Assim comea o livro e essa uma das primeiras imagens do filme, nascidas do relato de Marin Marais, discpulo de Sainte-Colombe, que assim descreve seu mestre:
Na primavera de 1650, Madame de Sainte-Colombe morreu. Ela deixou duas filhas de dois e seis anos. Monsieur de Sainte-Colombe nunca se consolou da morte de sua esposa. Ele a amava. Foi nesta ocasio que ele escreveu O tmulo das lamrias*.
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Em Pascal Quignard, a msica marca, destino de sua escrita, lugar de contnua ruminao sobre os mesmos temas: a solido, o silncio, a perda de um som, de uma palavra, de algo
O filme Todas as manhs do mundo, baseado na obra homnima de Pascal Quignard, foi dirigido por Alain Corneau e tem com intrpretes principais Grard Depardieu, Jean-Pierre Marielle, Anne Brochet, Guillaume Depardieu e Carole Richert. Pascal Quignard trabalhou na adaptao dos dilogos e no roteiro do filme que ganhou oito prmios do Csar 91, a maior premiao do cinema francs.
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nunca mais reencontrado. Talvez seja possvel afirmar que, antes da msica, haja o silncio e que esse silncio seja a ausncia de uma voz, de uma determinada voz, a voz materna. Monsieur de Sainte-Colombe, mudo de dor pela presena de uma ferida mortal na alma, tornou-se cada vez mais taciturno, fechou-se em casa e consagrou-se totalmente msica. A descrio desse homem se estende por vrias pginas do romance, construindo-se para o leitor a imagem de um personagem cujo trao mais forte era o silncio o silncio na msica; o silncio, condio da msica. Silncio e msica, na figura de SainteColombe; solido, silncio e msica, em toda a obra de Pascal Quignard, talvez mesmo em sua vida, e talvez por isso Chantal Lapeyre-Desmaison tenha intitulado um de seus livros sobre o autor Pascal Quignard le solitaire*. Impossvel separar sua obra de sua vida: lendo sobre uma, a leitura da outra se torna mais rica, mais clara, para o leitor e para o espectador do filme. Literatura e cinema so sistemas semiticos diferentes, sendo intil cobrar do segundo fidelidade em relao ao primeiro. uma tarefa tentadora, todavia, ir atrs das semelhanas e diferenas entre as duas produes e ver como a releitura que o filme se produz. Nesse caso especial, podemos afirmar que o escritor se rel a, na adaptao que faz de seu texto para o cinema, tendo trabalhado tambm em seu roteiro. A descrio literria de Sainte-Colombe se concretiza de forma surpreendente no ator Jean-Pierre Marielle, que o interpreta: a postura, a voz, o olhar dramatizam a solido quase selvagem envolvida pelo enorme silncio que a abriga, a conteno afetiva, a falta de palavras:
O carter do Senhor de Sainte-Colombe e sua pouca disposio para a linguagem estavam de acordo com seu extremo pudor e seu rosto permanecia inexpressivo e severo diante de qualquer sentimento. Apenas em suas composies seria possvel descobrir a complexidade e a delicadeza do mundo escondido sob essa fisionomia e por detrs dos gestos raros e rgidos*.
Imagem e msica, o filme Todas as manhs do mundo enlaa visibilidade e musicalidade, em uma medida diversa do livro, no qual falta essa dimenso em razo da prpria natureza da palavra impressa. No livro, entretanto, a msica ecoa para o leitor e sua ausncia material de certa forma tematiza a voz perdida, a busca de um som para sempre inaudvel, mas cuja audio, no filme, torna-se possvel em toda sua dramaticidade.
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(: 44)
Uma narrativa sobre a msica, uma narrativa sobre uma famlia de trs pessoas, um conjunto de trs violoncelos: um pai e suas filhas, um trio afinado que faz msica, sob a mestria do mestre-msico e sua dor. Percebe-se nesse conjunto de personagens e seus instrumentos uma lgica semitica, em que o violoncelo um instrumento musical carregado de grande carga simblica e densidade emocional, uma vez que tem a ver com a memria da mulher amada e do erotismo vivido com ela por esse marido silencioso, mesmo na alegria. E o violoncelo circula no texto, como circula entre as vrias mos, tocado de forma diversa pelos vrios dedos, abraado pelo msico como se abraa o corpo de uma mulher e o amor a ele perdido na morte: perda e msica de uma paixo que s fala por meio de suas formas e de seu tato. No que o silncio seja uma anterioridade necessria msica, mas , talvez possamos diz-lo, sua sombra, seu suplemento. E esse trio que uma famlia e uma orquestra ou, mais adequadamente, um conjunto matemtico, musical, acrescido de um quarto elemento que o descompleta, que o desestabiliza: o jovem msico Marin Marais. Esse jovem Marin Marais, que vem em busca da mestria de Sainte-Colombe, tambm ferido, como os membros dessa famlia, pela perda de uma voz, sua voz infantil, feminina, de cantor do coro de Saint-Germain-lAuxerrois. Como j mostrei ao me referir a La haine de la musique, Quignard fala da mudana de voz, que , para o homem, o acesso sexualidade e a perda da feminilidade da me, da voz materna que o habita visceralmente, na primeira fuso que se d na carne. Essa nostalgia que faz sofrer Marin Marais motivo persistente na obra de Pascal Quignard e sem dvida pode ser lido como repetio da experincia de castrao, angstia de castrao. Perder a voz da infncia equivale a uma ferida na garganta, ferida que tira a voz e arrebata a palavra. E, ento, o narrador de Tous les matins du monde revela que Marin Marais dissera a si mesmo que se vingaria da voz que o havia abandonado, que se tornaria um violoncelista renomado*. Mas Sainte-Colombe no acredita que Marais possa ser um msico, pois, para ele, ser msico uma coisa, e tocar msica, outra. Ser msico tem a ver com a radicalidade da solido, da no-submisso ao outro, seja este o rei ou toda sua corte. A conquista de uma insociabilidade, de uma liberdade que nada ser capaz de invadir ou perturbar, condio da cons-
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truo de um sujeito e seu desejo. Tal projeto se presentifica na obra de Quignard e em sua vida, configurando-se no como uma idiossincrasia digna de curiosidade, e sim como a prpria dignidade do trabalho criador: S perteno a mim mesmo, grita Sainte-Colombe ao representante do rei, que lhe oferece a fama e a riqueza da corte. Em Sainte-Colombe e Pascal Quignard, exibem-se a mesma necessidade crucial de solido e de liberdade, a mesma renncia ao mundo e seus apelos. Ento, no lugar dessa solido, por causa dela, foi possvel a Sainte-Colombe criar uma stima corda para o violoncelo, a fim de ter no instrumento todas as possibilidades da voz humana, da criana, da mulher, do homem, esta ltima, brise e tornada grave, quando a criana se torna um homem, encontrando-se assim o adolescente que perdeu a voz, o discpulo e o homem taciturno, seu mestre. Talvez a questo apresentada pelo livro seja esta: o que a msica, afinal? O mestre reconhece a destreza de seu discpulo com os instrumentos musicais, mas diz para ele: Voc nunca ser um msico, pois ser msico e tocar msica so coisas diferentes, e a msica no feita para agradar ao rei ou ao mundo. O livro a histria do mestre e seu discpulo que teve de descobrir a perda e as lgrimas para se tornar um msico. Isso o mestre no tem como ensinar, embora possa dar algo. E Sainte-Colombe lhe deu as lgrimas com sua obra Le tombeau des regrets O tmulo das lamrias. O que o romance silencia, pela prpria impossibilidade de a palavra fazer msica, ser s msica, o cinema exibe, fazendo ouvir a msica, a beleza extraordinria da msica dramtica, radical, contundente de Sainte-Colombe. Enquanto no romance a msica ecoa no silncio da letra impressa, no cinema ela se ouve em espetculo. Impossvel tecer comentrios de valor entre os dois cdigos, o literrio e o cinematogrfico, mas na tela Pascal Quignard, que trabalhou na adaptao cinematogrfica de seu livro, constri um espao de cor, brilho e sombra, semelhante ao que se pode admirar na pintura de Georges de La Tour, sobre o qual ele escreve La nuit et le silence. Neste livro, ele revela que:
[...] houve duas grandes candeias na nossa histria e elas se encontram no tempo: as lies das trevas da msica barroca, as candeias das telas de Georges de La Tour. Os ofcios das Trevas da Semana Santa constituam um rito no qual se apagavam uma a uma, durante o canto, as letras hebraicas que formavam o nome de Deus e, uma a
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uma, graas ao sopro de uma criana vestida de vermelho, as velas que a representavam na obscuridade da agonia*.
Em uma parte extraordinria do filme, em que se representa o ofcio das trevas, pode-se notar a presena da pintura de Georges de La Tour como um cenrio vivo, com a cor vermelha de suas velas acesas, sopradas por uma criana cantora do coro. A se enlaam, cromtica e musicalmente, temas que se desenvolvem discursiva e repetidamente na obra de Quignard: as luzes, as sombras, a msica, o silncio. Como leitores do livro e espectadores do filme, podemos notar que h uma singular relao entre a pgina branca e a tela brilhante de luz, pois entre as duas, em um espao virtual, intervalar, o silncio, a imagem e a msica se tornam paradoxalmente possveis, em um mesmo tempo, em uma outra lgica, em um outro compasso. Tal efeito s se revela possvel por meio de uma dissimetria potica, da qual s podemos falar valendo-nos de uma retrica especulativa, da qual fala Pascal Quignard em seus ensaios e que, parece-me, sustenta a toda sua obra. Viver no ngulo in angulo do mundo o que parece desejar Quignard em seu livro Les ombres errantes*. Em outro livro, Sur le jadis, da trilogia Dernier royaume, a palavra jadis remete ao tempo do outrora, fonte da escrita: outrora no tempo, aurora do tempo, tempo sem tempo, tempo uterino, aquele que vivemos antes de nascer. Esta uma das idias que o obsedam e habitam seu texto de forma intermitente, sem ser pura repetio, mas contnua busca de escrita, que vida para ele. o perdido que o avassala, que o faz desejar voltar ao mundo psquico anterior, no qual a me injeta na criana, infans, pela linguagem que planta nela, a lngua materna, la langue. Sobre a ateno pelas pequenas coisas, sons, rudos, restos de palavras ditas ou murmuradas, Pascal Quignard, aquele que escreveu a vida a partir do silncio da me e desejou um tempo antes do antes, do jadis, afirma:
Acontece que uma mesma seiva libera cada primavera. So as rvores e as flores. Acontece que ningum que goza velho. So os fantasmas e os abraos. Acontece, s vezes, que um suco que nunca secou fluidifica sem cessar o tom de uma frase, como a mcula de sangue persiste como poeira na chave do Barba-Azul. O gozo deixa traos. Deixa sapatos de cristal, anis muito apertados que no servem para ningum desse mundo*.
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Se esto certos aqueles que afirmam que a escrita feminina tem a delicadeza dos traos, dos fragmentos, dos ritmos e sons em surdina, talvez se sintam reforados em sua certeza pela afirmao, em tom de confisso, feita por Quignard: Uma mulher que no est mais aqui est perto de mim e dita calmamente este livro*. possvel dizer, sem reduzir e simplificar a obra de Quignard, que ela uma longa travessia sobre a escrita e o ato de escrever, na solido do silncio, com os sons e as cores da aurora, construindo-se como uma maneira de viver.
Experimentar pensando o que procura se dizer, antes mesmo de saber, , sem dvida, o movimento de escrever. Por um lado escrever com esse nome na ponta da lngua; de outro, com o todo da linguagem que foge sob os dedos. o que se chama queimar, na aurora da descoberta *.
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Finalmente, escrever escrever o perdido, o indizvel e a impossibilidade de captar e recuperar as coisas do outrora, a tentativa de recuperar o primeiro grito, no s as coisas em sua novidade, mas o momento do antes, a palavra aqum da linguagem, as coisas que brotam e que so fonte da linguagem. Ou, em outras palavras: a linguagem afetada pelo silncio o ninho. Como o visvel afetado pela obscuridade o sonho*.
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Ruth Silviano Brando Professora de Literatura na UFMG, mestre e doutora em Letras, com ps-Doutorado pela Universidade de Paris VIII. ensasta, autora, entre outros, de A mulher escrita, com Lcia Castello Branco (Lamparina, Rio de Janeiro), Mulher ao p da letra (UFMG, Belo Horizonte), Literatura e psicanlise (UFRS, Porto Alegre) e A vida escrita (7Letras/Faculdade de Letras/UFMG). autora tambm de um romance, de um livro de contos e de poesias. Seu ltimo livro um conto potico: Aporias de Astrion, publicado pela editora Lamparina. Traduziu O nascimento da poesia: Antonin Artaud, de Jean-Michel Rey, publicado pela Editora Autntica, Belo Horizonte.
Palavras-chave Pascal Quignard, silncio, falta, escrita Key words Pascal Quignard, silence, absence, writing Mots-cl Pascal Quignard, silence, manque, criture
Resumo
Leitura da obra de Pascal Quignard, partindo-se da noo de fracasso da linguagem, da palavra que falta, daquilo que aponta para o silncio, para um mutismo que corta a fala, para o aqum da linguagem, e que, no entanto, causa da escrita.
Abstract
This is an approach of the work of Pascal Quignard, taking into account the notion of failure of the language; the missing word; and somewhat pointing towards the silence, the mutism that halts the speech, and what lies before the language but, however, is the cause of the writing.
Rsum
Lecture de loeuvre de Pascal Quignard, qui part de la notion dchec du langage, du mot qui manque, de ce qui conduit vers le silence, vers le mutisme qui coupe la parole, vers len de du langage et qui, pourtant, est cause de lcriture.
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