F. Chesnais - Um Novo Contexto Mundial

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Agncia Carta Maior 09 de Outubro de 2008

ECONOMIA ESPECIAL FRANOIS CHESNAIS

UM NOVO CONTEXTO MUNDIAL*


Nesta apresentao feita em 18 de Setembro em Buenos Aires, o economista marxista francs Franois Chesnais expe a forma como o capitalismo, na sua longa fase de expanso, tentou superar os seus limites imanentes. E como todas essas tentativas contriburam para criar agora uma crise muito maior. Comparvel de 1929, mas que ocorre num contexto totalmente novo.
Franois Chesnais** Esquerda. Net***

A tese que vou apresentar defende que no ano passado produziuse uma verdadeira ruptura, que deixa para trs uma longa fase de expanso da economia capitalista mundial; e que essa ruptura marca o incio de um processo de crise com caractersticas que so comparveis crise de 1929, ainda que venha a desenvolver-se num contexto muito diferente. A primeira coisa que preciso recordar que a crise de 1929 se desenvolveu como um processo: um processo que comeou em 1929, mas cujo ponto culminante se deu bastante depois, em 1933, e que logo abriu caminho a uma longa fase de recesso. Digo isto para sublinhar que, na minha opinio, estamos a viver as primeiras etapas, mas realmente as primeiras, primeirssimas etapas de um processo dessa amplitude e dessa temporalidade. E que o que nestes dias est acontecendo e tem como cenrio os mercados financeiros de Nova York, de Londres e de outros
Esta apresentao foi realizada no encontro organizado pela revista argentina Herramienta em 18 de Setembro de 2008. A transcrio e preparao para a sua publicao de Aldo Casas. ** Franois Chesnais economista, faz parte do Conselho Cientfico do ATTACFrana, diretor de Carr Rouge e membro do conselho consultivo da revista Herramienta, com a qual colabora assiduamente. *** Verso publicada no portal Esquerda. Net. Traduo para o portugus: Luis Leiria (Esquerda. Net)
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grandes centros bolsistas, somente um aspecto e talvez no seja o aspecto mais importante do que se deve interpretar como um processo histrico. Estamos diante de um desses momentos em que a crise vem exprimir os limites histricos do sistema capitalista. No se trata de alguma verso da teoria da crise final do capitalismo, ou algo do estilo. Do que sim se trata, na minha opinio, de entender que estamos confrontados com uma situao em que se exprimem estes limites histricos da produo capitalista. No quero parecer um pastor com a sua Bblia marxista, mas quero ler-vos uma passagem de O Capital:
O verdadeiro limite da produo capitalista o prprio capital; o fato de que, nela, so o capital e a sua prpria valorizao que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produo; o fato de que aqui a produo s produo para o capital e, inversamente, no so os meios de produo simples meios para ampliar cada vez mais a estrutura do processo de vida da sociedade dos produtores. Da que os limites dentro dos quais tem de mover-se a conservao e a valorizao do valor-capital, a qual descansa na expropriao e na depaupero das grandes massas de produtores, choquem constantemente com os mtodos de produo que o capital se v obrigado a empregar para conseguir os seus fins e que tendem para o aumento ilimitado da produo, para a produo pela prpria produo, para o desenvolvimento incondicional das foras produtivas do trabalho. O meio empregado desenvolvimento incondicional das foras sociais produtivas choca constantemente com o fim perseguido, que um fim limitado: a valorizao do capital existente. Por conseguinte, se o regime capitalista de produo constitui um meio histrico para desenvolver a capacidade produtiva material e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradio constante entre esta misso histrica e as condies sociais de produo prprias deste regime. 1

Bom, certamente que h algumas palavras que hoje j no utilizamos, como misso histrica Mas creio que o que vamos ver nos prximos anos vai dar-se precisamente na base de j ter sido criado em toda a sua plenitude esse mercado mundial intudo por Marx. Quer dizer, temos
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Karl MARX, El capital Mxico, FCE, 1973, Vol. III, pg. 248.

um mercado e uma situao mundial diferentes da de 1929, porque nessa altura pases como a China e a ndia eram ainda semi-coloniais, enquanto que agora j no tm esse carter; so grandes pases que, mais alm de terem um carter combinado que requer uma anlise cuidadosa, so agora participantes de pleno direito dentro de uma economia mundial nica, uma economia mundial unificada num grau desconhecido at esta etapa da histria. A citao pode ajudar-nos a entender o momento atual, e a crise que se iniciou precisamente neste marco de um s mundo.

Um novo tipo de crise


Na minha opinio, nesta nova etapa, a crise vai desenvolver-se de tal modo que as primeiras e realmente brutais manifestaes da crise climtica mundial vo combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos numa fase em que se coloca realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas relaes nas quais se incluem tambm os acontecimentos blicos, mas o mais importante que, mesmo excluindo a exploso de uma guerra de grande amplitude que, no presente momento, s podia ser uma guerra atmica, estamos confrontados com um novo tipo de crise, com uma combinao desta crise econmica, que comeou, com uma situao na qual a natureza, tratada sem a menor contemplao e atacada pelo homem no marco do capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto uma coisa quase excluda das nossas discusses, mas que vai impor-se como um fato central. Por exemplo, muito recentemente, lendo o trabalho de um socilogo francs, fiquei a saber que os glaciares andinos dos quais flui a gua com que se abastecem La Paz e El Alto esto esgotados em mais de 80%, e estima-se que dentro de 15 anos La Paz e El Alto no vo ter gua e, no entanto, isto algo que nunca foi tratado, nunca se discutiu um fato de tamanha magnitude que pode fazer com que a luta de classes na Bolvia, tal como a conhecemos, mude substancialmente por exemplo fazendo com que a tal controversa mudana da capital para Sucre se imponha como uma coisa natural, porque acabou a gua em La Paz.

Estamos entrando num perodo desse tipo e o problema que quase no se fala disso, enquanto que nos ambientes revolucionrios continuam a discutir-se coisas que neste momento so mincias, questes completamente mesquinhas em comparao com os desafios que temos pela frente.

Limites imanentes do capitalismo


Para continuar com a questo dos limites do capitalismo, quero chamar a ateno para uma citao de Marx, imediatamente anterior j citada: A produo capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas s pode super-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais fora. 2 Esta indicao introduz-nos a anlise e a discusso dos meios a que se recorreu, durante os ltimos 30 anos, para superar os limites imanentes do capital. Esses meios foram, em primeiro lugar, todo o processo de liberalizao das finanas, do comrcio e do investimento, todo o processo de destruio das relaes polticas surgidas na raiz da crise de 29 e dos anos 30, depois da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertao nacional Todas essas relaes, que exprimiam o domnio do capital mas representavam ao mesmo tempo formas de controle parcial do mesmo capital, foram destroadas e, por algum tempo, pareceu ao capital que com isto ficavam superados os limites postos sua atuao. A segunda forma que se escolheu para superar esses limites imanentes do capital foi recorrer, numa escala sem precedentes, criao de capital fictcio e de meios de crdito para ampliar uma procura insuficiente no centro do sistema. E a terceira forma, a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporao, enquanto elementos plenos do sistema capitalista mundial, da Unio Sovitica e seus satlites, e da China.

Idem.

S no marco das resultantes destes trs processos possvel captar a amplitude e a novidade da crise que se inicia. Liberalizao, mercado mundial, competio Comecemos por nos interrogar sobre o que significou a liberalizao e a desregulao levadas a cabo escala mundial, com a incorporao do antigo campo sovitico e a incorporao e a modificao das relaes de produo na China O processo de liberalizao e desregulao significou o desmantelamento dos poucos elementos reguladores que se tinham construdo no marco internacional ao sair da Segunda Guerra Mundial, para entrar num capitalismo totalmente desregulamentado. E no s desregulamentado, como tambm um capitalismo que criou realmente o mercado mundial no pleno sentido do termo, convertendo em realidade o que era em Marx uma intuio ou antecipao. Pode ser til precisar o conceito de mercado mundial e ir talvez mais alm da palavra mercado. Trata-se da criao de um espao livre de restries para as operaes do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espao como base e processo de centralizao de lucros escala verdadeiramente internacional. Esse espao aberto, no homogneo mas com uma reduo drstica de todos os obstculos mobilidade do capital, essa possibilidade para o capital de organizar escala universal o ciclo de valorizao, est acompanhado de uma situao que permite pr em competio entre si os trabalhadores de todos os pases. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exrcito industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integrao ou de repulso, nas formas estudadas por Marx. Este ento o marco geral de um processo de produo para a produo em condies em que a possibilidade de a humanidade e as massas do mundo acederem a essa produo totalmente limitada e, portanto, torna-se cada vez mais difcil o encerramento com xito do ciclo de valorizao do capital, para o capital no seu conjunto, e para cada capital em particular. E por isso se ampliam e se fazem mais determinantes no mercado mundial as leis cegas da competio. Os bancos centrais e os

governos podem proclamar que vo pr-se de acordo entre si e colaborar para impedir a crise, mas no creio que se possa introduzir a cooperao no espao mundial convertido em cenrio de uma tremenda competio entre capitais. E agora, a competio entre capitais vai muito mais alm das relaes entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os sectores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. Porque sob formas particulares e inclusive muito parasitrias, no marco mundial deram-se processos de centralizao do capital por fora do marco tradicional dos centros imperialistas: em relao com eles, mas em condies que tambm introduzem algo totalmente novo no marco mundial. Durante os ltimos 15 anos, e em particular durante a ltima etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de integrar-se como scios de pleno direito nos oligoplios mundiais. Tanto na ndia como na China constituram-se verdadeiros e fortes grupos econmicos capitalistas. E, no plano financeiro, como expresso do rentismo e do parasitismo puro, os chamados Fundos Soberanos converteram-se em importantes pontos de centralizao do capital sob a forma de dinheiro, que no so meros satlites dos Estados Unidos, tm estratgias e dinmicas prprias e modificam de muitas maneiras as relaes geopolticas dos pontos-chave em que a vida do capital se faz e far. Por isso, outro elemento a ter em conta que esta crise tem como outra de suas dimenses a de marcar o fim da etapa em que os Estados Unidos podiam atuar como potncia mundial sem comparao Na minha opinio, samos do momento que analisava Mszros no seu livro de 2001, e os Estados Unidos vo ser submetidos a uma prova: num prazo muito curto, todas as suas relaes mundiais modificaram-se e tero, no melhor dos casos, de renegociar e reordenar todas as suas relaes com base no fato de que tm de partilhar o poder. E isto, evidentemente, algo que nunca aconteceu de forma pacfica na histria do capital

Ento, primeiro elemento: um dos mtodos escolhidos pelo capital para superar os seus limites transformou-se em fonte de novas tenses, conflitos e contradies, indicando que uma nova etapa histrica vai abrir caminho atravs desta crise.

Criao descontrolada de capital fictcio


O segundo meio utilizado para superar os limites do capital das economias centrais foi que todas elas recorreram criao de formas totalmente artificiais de ampliao da procura efectiva, as quais, somandose a outras formas de criao de capital fictcio, geraram as condies para a crise financeira que se desenvolve hoje. No artigo que os companheiros de Herramienta tiveram a gentileza de traduzir para o espanhol e publicar, 3 abordei com alguma profundidade esta questo do capital fictcio e as novas formas que se deram dentro do prprio processo de acumulao do capital fictcio. Para Marx, o capital fictcio a acumulao de ttulos que so sombra de investimentos j feitos mas que, como ttulos de bnus e de aes, aparecem com o aspecto de capital aos seus detentores. No o so para o sistema como um todo, para o processo de acumulao, mas so-no sim para os seus detentores e, em condies normais de fechamento de processos de valorizao do capital, rendem aos seus detentores dividendos e juros. Mas o seu carter fictcio revela-se em situaes de crise. Quando ocorrem crises de sobreproduo, falncia de empresas, etc. , descobre-se que esse capital no existia Por isso tambm pode ler-se s vezes nos jornais que tal ou qual quantidade de capital desapareceu nalgum tropeo bolsista: essas quantias nunca tinham existido como capital propriamente dito, apesar de, para os detentores dessas aes, representarem ttulos que davam direito a dividendos e juros, a receber lucros

El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera , en Herramienta N 37, marzo 2008.

Evidentemente, um dos grandes problemas de hoje que, em muitssimos pases, os sistemas de aposentadoria esto baseados em capital fictcio, com pretenses de participao nos resultados de uma produo capitalista que pode desaparecer em momentos de crise. Toda a etapa de liberalizao e de globalizao financeira dos anos 80 e 90 esteve baseada em acumulao de capital fictcio, sobretudo em mos de fundos de investimento, fundos de penses, fundos financeiros E a grande novidade desde finais ou meados dos anos 90 e ao largo dos anos 2000 foi, nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha em particular, o impulso extraordinrio que se deu criao de capital fictcio na forma de crdito. De crdito a empresas, mas tambm e sobretudo de crditos s famlias, crdito ao consumo e sobretudo crditos hipotecrios. E isso fez dar um salto na massa de capital fictcio criado, dando origem a formas ainda mais agudas de vulnerabilidade e de fragilidade, inclusive diante de choques menores, inclusive diante de episdios absolutamente previsveis. Por exemplo, com base em tudo estudado anteriormente, sabia-se que um boom imobilirio acaba; que inexoravelmente chega um momento em que, por processos muito bem estudados, termina; e, se pode at ser relativamente compreensvel que no mercado de aes existisse a iluso de que no havia limites para a alta no preo das aces, com base em toda a histria anterior sabia-se que isso no podia ocorrer no setor imobilirio: quando se trata de edifcios e de casas inevitvel que chegue o momento em que o boom acaba. Mas colocaram-se em tal situao de dependncia, que esse acontecimento completamente normal e previsvel transformou-se numa crise tremenda. Porque a tudo o que j disse, juntou-se o fato de que durante os dois ltimos anos os emprstimos eram feitos a famlias que no tinham a menor possibilidade de pagar. Alm disso, tudo isso se combinou com as novas tcnicas financeiras, permitindo-se assim que os bancos vendessem bnus em condies tais que ningum podia saber exatamente o que estava a comprar at a exploso dos subprime em 2007.

Agora esto desmontando este processo. Mas dentro dessa desmontagem, h processos de concentrao do capital financeiro. Quando o Bank Of America compra o Merrill Lynch, estamos diante de um processo de concentrao clssico. E vemos alm disso estes processos de estatizao das dvidas, que implicam na criao imediata de mais capital fictcio. O Federal Reserve dos Estados Unidos cria mais capital fictcio para manter a iluso de um valor do capital que est beira de desmoronar, com a perspectiva de ter, em algum momento dado, a possibilidade de aumentar fortemente a presso fiscal, mas na realidade no pode faz-lo porque isso significaria o congelamento do mercado interno e a acelerao da crise enquanto crise real. Assistimos, pois, a uma fuga para a frente que no resolve nada. Dentro desse processo existe tambm o avano dos Fundos Soberanos, que procuram modificar a repartio intercapitalista dos fluxos financeiros a favor dos sectores rentistas que acumularam estes fundos. E isto um fator de perturbao ainda maior no processo. Quero recordar, para terminar este ponto, que esse dficit comercial de cinco pontos do PIB o que confere aos Estados Unidos a particularidade desse lugar-chave para a concretizao do ciclo do capital no momento da realizao da mais-valia, para o processo capitalista no seu conjunto. Confrontados agora com uma quase inevitvel retrao econmica, coloca-se como a grande interrogao se, num curto prazo, a procura interna chinesa poder passar a ser o lugar que garanta esse momento de realizao da mais-valia que se dava nos Estados Unidos. A amplitude da interveno do Tesouro muito forte e conseguiu que a contrao da atividade nos EUA e a queda das importaes tenha sido at agora muito limitada. O problema saber quanto tempo se poder ter como nico mtodo de poltica econmica criar mais e mais liquidez Ser possvel que no haja limites criao de capital fictcio sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictcio j existente? Parece-me uma

hiptese demasiado otimista, e entre os prprios economistas norteamericanos, muitos duvidam.

Super-acumulao na China?
Para terminar, chegamos terceira maneira pela qual o capital superou os seus limites imanentes, que definitivamente a mais importante de todas e levanta as interrogaes mais interessantes. Refiro-me extenso, em particular para a China, de todo o sistema de relaes sociais de produo do capitalismo. Algo que Marx mencionou nalgum momento como possibilidade, mas que s se fez realidade durante os ltimos anos. E realizou-se em condies que multiplicam os fatores de crise. A acumulao do capital na China fez-se com base em processos internos, mas tambm com base em algo que est perfeitamente documentado, mas pouco comentado: a transferncia de uma parte importantssima do Setor II da economia, o setor da produo de meios de consumo, dos Estados Unidos para a China. E isto tem muito a ver com o grosso dos dficits norte-americanos (o dficit comercial e o fiscal), que s poderiam reverter-se por meio de uma reindustrializao dos Estados Unidos. Isto significa que se estabeleceram novas relaes entre os Estados Unidos e a China. J no so as relaes de uma potncia imperialista com um espao semicolonial. Os Estados Unidos criaram relaes de um novo tipo, que agora tm dificuldades de reconhecer e de assumir. Com base no supervit comercial, a China acumula milhes e milhes de dlares, que logo empresta aos Estados Unidos. Temos uma ilustrao das conseqncias que isto traz com a nacionalizao dessas duas entidades chamadas Fannie Mae e Freddy Mac: ao que parece, a banca da China tinha 15% dos fundos dessas duas entidades e comunicou ao governo americano que no aceitaria a sua desvalorizao. So relaes internacionais de tipo completamente novo. Mas que ocorre no seio da prpria China? a questo mais decisiva para a prxima etapa da crise. Na China deu-se internamente um

processo de competio entre capitais, que se combinou com processos de competio entre sectores do aparelho poltico chins, e de competio para atrair empresas estrangeiras; tudo isso resultou num processo de criao de imensas capacidades de produo, alm de violentar a natureza numa escala enorme: na China concentra-se uma super-acumulao de capital que num momento dado se tornar insustentvel. Na Europa, evidente a tendncia a uma acelerao da destruio de capacidades produtivas e de postos de trabalho, para transferir-se para o nico paraso do mundo capitalista que a China. Considero que esta transferncia de capitais para a China significou uma reverso de processos anteriores de uma alta da composio orgnica do capital. A acumulao intensiva em meios de produo e intensiva e muito delapidadora da outra parte do capital constante, quer dizer, das matrias-primas. A macia criao de capacidades de produo no Setor I foi acompanhada por todos os mecanismos e o impulso que caracterizam o crescimento da China, mas o mercado final para sustentar toda essa produo o mercado mundial, e uma retrao deste colocar em evidncia essa super-acumulao do capital. Algum como Aglietta, que estudou isto especificamente, afirma que realmente h super-acumulao, h um processo acelerado de criao produtiva na China, um processo que, no momento em que terminar e tem de terminar a realizao de toda essa produo vai levantar problemas. Alm disso, a China realmente um lugar decisivo, porque at pequenas variaes na sua economia determinam a conjuntura de muitos outros pases no mundo. Foi suficiente que a procura chinesa por bens de investimento casse um pouco, para que a Alemanha perdesse exportaes e entrasse em recesso. As pequenas oscilaes na China tm repercusses fortssimas noutros lugares, como deveria ser evidente no caso da Argentina.

Para continuar a pensar e a discutir


E regresso ao que disse no incio. Ainda que sejam comparveis, as fases desta crise sero diferentes das de 29, porque naquela poca a crise de superproduo dos Estados Unidos verificou-se desde os primeiros momentos. Depois aprofundou-se, mas soube-se de imediato que se estava diante de uma crise de superpoduo. Agora, em contrapartida, esto adiando esse momento com diversas polticas, mas no vo poder faz-lo muito mais. Simultaneamente, e como ocorreu tambm na crise de 29 e nos anos 30, ainda que em condies e sob formas diferentes, a crise combinarse- com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganizao total da expresso das suas relaes de foras econmicas no marco mundial, marcando o momento no qual os Estados Unidos vero que a sua superioridade militar somente um elemento, e um elemento bastante subordinado, para renegociar as suas relaes com a China e outras partes do mundo. Ou vai chegar o momento no qual dar o salto para uma aventura militar de consequncia imprevisveis. Por tudo isto, concluo que vivemos muito mais que uma crise financeira, mesmo estando agora nessa fase. Estamos diante de uma crise muitssimo mais ampla. Ora bem, tenho a impresso, pelo tom das diferentes perguntas e observaes que me fizeram, que muitos so da opinio que estou a pintar um cenrio de tipo catastrofista, de desmoronamento do capitalismo Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catstrofe, mas j no do capitalismo, e sim de uma catstrofe da humanidade. De certa forma, se tomarmos em conta a crise climtica, possivelmente j existe algo assim A minha opinio (junto com Mszros, por exemplo, mas somos muito poucos os que damos importncia a isto) que estamos diante de um perigo iminente. O dramtico que, de momento, isto afeta diretamente populaes que no so levadas em conta: o que est ocorrendo no Haiti parece que no tem a menor importncia histrica; o que acontece em Bangladesh no tem peso mais alm da regio afetada; muito menos o que

acontece na Birmnia, porque o controle da Junta militar impede que ultrapasse as suas fronteiras. E o mesmo na China: discutem-se os ndices de crescimento, mas no as catstrofes ambientais, porque o aparelho repressivo controla as informaes sobre as mesmas. E o pior que essa opinio, que constantemente construda pelos meios de comunicao, est interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda. Tinha comeado a trabalhar e a escrever sobre tudo isto, mas com o comeo desta crise, de alguma forma tive de voltar a ocupar-me das finanas, ainda que no o faa com muito gosto, porque o essencial parece-me que se joga num plano diferente. Para terminar: o fato de que tudo isto ocorre depois desta fase to larga, sem paralelo na histria do capitalismo, de 50 anos de acumulao ininterrupta (salvo um pequenssima ruptura em 1974/1975), assim como tambm tudo o que os crculos capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais, aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise avance de maneira bastante lenta. Desde setembro do ano passado, o discurso dos crculos dominantes vem afirmando, uma e outra vez, que o pior j passou, quando o certo que, uma e outra vez, o pior estava por vir. Mas insisto no risco de minimizar a gravidade da situao, e sugiro que nas nossas anlises e na forma de abordar as coisas deveramos incorporar a possibilidade, no mnimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos tambm interiorizando esse discurso de que, definitivamente, no acontece nada

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