Aula 06 - Missao Integral e Acao Profetica - Jonathan Menezes
Aula 06 - Missao Integral e Acao Profetica - Jonathan Menezes
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o de fazer uma breve avaliao crtica da questo do engajamento (social, poltico, cultural, histrico) da igreja evanglica brasileira. Sei da amplitude desse assunto, e no pretendo esgot-lo aqui. Apenas quero olhar um pouco para a atuao ou no dos evanglicos no contexto brasileiro e ento apontar algumas pistas ou desafios para que a igreja esteja cada vez mais engajada (comprometida, envolvida) com essa realidade. Para tanto, minha reflexo est embebida da influncia do evangelicalismo integral, advindo do movimento de Lausanne, que por sua vez nos remete ao Congresso realizado em Lausanne, Sua, em 1974. Deste congresso saiu um documento que ficou conhecido como Pacto de Lausanne, e posteriormente veio embasar o conceito e a prxis da teologia da misso integral na Amrica Latina. Ao longo desta exposio, farei uso de parte do contedo deste pacto para o que aqui nos interessa, mostrando, tambm, sua atualidade e relevncia. Engajamento? Onde e quando mesmo? Ao tratar de engajamento, no posso abster-me de falar do que esta palavra significa hoje, seja na igreja, seja fora dela. No tenho dvidas que se trata de um termo fora de moda, e aqui no estou sendo pejorativo. Vivemos em uma sociedade ps-industrial, ps-histrica, ps-moderna, consumista e globalizada, onde quase no h mais agenda para a luta pelos interesses coletivos. Pelo contrrio, se exalta cada vez mais a primazia dos interesses privados: do indivduo, de sua tribo, de seu gueto, de sua confraria. A palavra de ordem da sociedade de consumo conforto, e o grito de guerra a nova msica do Jota Quest: e se quiser saber pra onde eu vou, pra onde tenha sol, pra l que eu vou2. O conforto uma das grandes ambies do ser humano, um verdadeiro lema de vida. Caminhamos em busca de uma espcie de paraso perdido, como se Ado e Eva tivessem se arrependido de conhecer o lado sombrio da existncia tendo, porm, de se contentar em trabalhar pra sobreviver s custas de seu prprio suor, em saber que todo prazer relativo a esta vida efmero e que nada mais ser como no passado, quando predominavam a inocncia e a despretensiosidade. bvio que o conforto bom, isso ningum pode negar. Contudo, h pelo menos dois enganos comuns referentes palavra conforto.
1 Palestra proferida originalmente no Congresso Micro-Regional da ABU Londrina, realizado em 18 de Novembro de 2006, na UNIFIL, Londrina, PR. 2 Jota Quest. O Sol. CD: At onde vai. Epic, 2005.
2 O primeiro deles diz respeito nsia humana por um lugar confortvel no mundo. Constantemente nos prendemos a tentativas, quase sempre mal-sucedidas (salvo engano), de evitar a realidade, de enxergar situaes cotidianas como elas so e acontecem, de saber que nosso mundo est repleto de dores, as quais comeam, tantas vezes, dentro de nossos seguros lares, com nossas famlias e seus dilemas, at chegar na sociedade como um todo. Violncia, guerra, desemprego, misria, gente mendigando pelas ruas, morte... Quem, hoje, est disposto a encarar todas estas e outras conjunturas? Nosso pecado maior talvez seja o da indiferena. Estamos sempre evitando situaes que possam nos causar aquele tipo de desconforto insuportvel, aquele que incomoda nosso mago egocntrico. H um outro engano, talvez ainda mais nocivo, que gostaria de mencionar: a busca por um lugar confortvel ao lado de Deus. Nosso comprometimento com Deus (o deus-pio dos anseios humanos) est permeado por um ligeiro utilitarismo, seja proposital ou no. Amar ou se submeter a ele, h muito tempo, deixou de ser uma questo de entrega pessoal, passando a ser um condicionante circunstancial, isto , s amo ou sigo a Deus enquanto ele me for til ou conveniente. Assim, as expectativas geradas esto de acordo com a concepo de que, ao lado de Deus, sempre encontraremos conforto e favor em todas as situaes. Isto uma grande falcia, posto que com Deus (ou sem Deus) a vida no s feita de ganho e refrigrio, mas tambm de perdas, descontentamentos e consternaes. lgico que, em variadas circunstncias encontradas na Bblia, Deus mantm as promessas de que, ao seu lado, encontraremos conforto no enfrentamento de nossas angstias. Todavia esta segurana no nos exime da dor, apenas a alivia e d a ela renovada esperana; no nos livra das idiossincrasias e inconstncias do mundo, mas nos ensina a enfrent-las com discernimento, entendendo que fazem parte da vida, afinal o sol nasce pra todos, s no sabe quem no quer, diria o poeta Renato Russo. O mundo est em constante distrbio, e assim permanecer. Portanto, no h lugar suficientemente confortvel no mundo real, a no ser que optemos pela alienao, pelo pio, ao invs de aprofundarmo-nos na realidade, progredindo espiritualmente, porm, com os psno-cho. Vivemos nada mais que o resultado de um momento histrico, que atinge a vida toda e a sociedade em seus mais diversos setores. Quase no se fala mais em revoluo, em transformar o mundo, em gerar incmodo ou desinstalar as pessoas de seus lugares de comodidade, pelo menos no tanto quanto se falava e agia-se h pelo menos vinte anos atrs. Muito pelo contrrio. A apatia tem extrapolado seus limites e a ambio por esse lugar de conforto tem sido a grande iluso plantada na mente do ser ps-moderno.
3 A juventude e a religiosidade do eu (self-religion) No vemos mais aquele brilho nos olhos de nossa juventude, nem a conscincia da realidade, vitalidade e luta que marcou toda uma gerao na dcada de 80, por exemplo, a chamada gerao perdida. Uma gerao que foi s ruas, brigando por um Brasil mais justo e igualitrio, por uma universidade melhor, mais aberta e inclusiva. E fico me perguntando, se aquela gerao que ainda tinha motivao para brigar por seus direitos e que acreditava em mudanas pde ser considerada perdida, o que se pode dizer desta, que, em geral, tem se demonstrado sem esperana, alienada, marcada pelo individualismo e o esprito de incerteza de nosso tempo? Outra pergunta que podemos nos fazer : at que ponto nossa juventude evanglica tambm no tem imergido nessa mar ps-moderna de hedonismo, consumismo, lipoaspirao e desconexo com a histria? Ser que no temos sido to propagadores dessa desplugao geral quanto aos valores de comprometimento e solidariedade para com o outro, ao adotarmos indiscriminadamente a novas formas de religiosidade do eu que por a se tem difundido? Parece-me que uma resposta contundente est nas palavras de Marcelo Gualberto: Os jovens evanglicos de hoje nasceram e cresceram sob um tipo de ditadura musical no institucional que praticamente excluiu da agenda e da liturgia a Palavra, estabelecendo infindveis perodos de louvor no raro, liderados por pessoas absolutamente despreparadas ou no vocacionadas. O microfone passou das mos dos pregadores para as mos dos msicos e cantores. Estes, por sua vez, incentivaram a juventude a mandar beijinhos pra Jesus, orar de madrugada porque a fila menor, sentar no colo do Pai e puxar sua barba, ter um romance com Deus, correr na casa do Pai e desenvolver uma espiritualidade utilitarista, pela qual o servo passa a ser o senhor que determina e toma posse da beno, que considera uma obrigao divina3. Gualberto ainda oferece algumas pistas sobre que jovem surgiu na igreja evanglica como fruto desse tipo de espiritualidade. Trs caractersticas so apontadas4: 1) Juventude religiosa no discurso, mas incrdula na prtica. Nossas igrejas esto cheias de jovens cujo discurso no combina com a prtica (isso quando tem discurso). crescente o nmero de jovens, mas tambm crescente o nmero dos que engrossam a fila dos sem-religio. 2) Juventude conectada, mas imatura. uma juventude conectada com as transformaes no famigerado mundo gospel, porm imatura espiritualmente por falta de interesse no estudo sistemtico da Palavra. bem-informada, mas com uma pobre formao teolgica. 3) Juventude sarada e talentosa, mas cansada e indisponvel. Embora faa parte dessa gerao sade, fitness, que adora corpos bem-cuidados, est cansada por inmeros compromissos, e por isso mais propensa busca por um evangelho Light, e a viver apenas o cosmtico da f.
3 GUALBERTO, Marcelo. Juventude evanglica: religiosa no discurso, mas incrdula na prtica. In: O melhor da espiritualidade brasileira. So Paulo: Mundo Cristo, 2005, p. 230-231. 4 Ibid, p. 232, 233.
4 difcil, mas temos de confessar e lamentar que nossos sonhos como igreja hoje no ultrapassam mais os devaneios de consumo da sociedade ps-industrial e selvaticamente capitalista em que vivemos. Que nossos anseios por mudana no passem mais por propostas fecundas de reforma social e poltica, atravs do engajamento nas estruturas scio-polticas e nos movimentos de base. Que a razo de ser de nossa criatividade e mente crists seja a de gerar e gerir estratgias de acomodao dos crentes e de crescimento da igreja (Robinson Cavalcanti diria inchao). Que nosso estilo de vida, que supostamente deveria ser semelhante ao do Mestre, seja to fechado em si mesmo, restringindo-se ao medocre tringulo da felicidade: casa-igreja-trabalho5. Bases bblico-teolgicas para o engajamento e a ao proftica Rogo-vos, pois, irmos, pelas misericrdias de Deus, que apresentei o vosso corpo por sacrifcio vivo, santo e agradvel a Deus, que o vosso culto racional. E no vos conformeis com este sculo, mas transformai-vos pela renovao da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradvel e perfeita vontade de Deus. (Rm 12.1-2) So Gregrio, o Grande, j diria: melhor arriscar-se a provocar um escndalo do que calar a verdade. Hoje, temos feito o inverso: calado a verdade para que o escndalo seja o menor possvel, e o esvaziamento de nossas igrejas seja uma possibilidade remota. Endossamos definitivamente a religio do self. um evangelho s avessas. Importa que o(a) crente saia da igreja feliz, de bem com a vida, satisfeito e quase que flutuando em espiritualidade, mesmo que isso no produza uma base slida para que ele(a) possa enfrentar os dilemas e adversidades do dia-a-dia com o discernimento e a lucidez do Esprito. No. O que acontece que os problemas se acumulam e permanecem l, na famlia, no trabalho, na vida cotidiana, e ser preciso mais uma dose de culto, de louvor, de xtase na veia do crente pra que ele possa suportar as presses externas contra as quais no tem sido educado na igreja a resistir com a fora e sabedoria do alto, mas com a droga dos cultes e louvorzes, da qual tanto prezamos e dependemos. uma igreja que perdeu o foco da misso e transformao do ser humano todo por meio da vivncia e proclamao do evangelho em sua integralidade. Os cristos reunidos em Lausanne fizeram a seguinte confidncia: Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa misso, em razo de nos termos conformado ao mundo ou por nos termos isolado demasiadamente6. Qual o impacto e atualidade dessa afirmao para a igreja evanglica hoje? Ser que temos sido menos conformados com este sculo que nossos irmos admitiram estar sendo em 74? O que, afinal, caracteriza essa conformao com o mundo? Agir em conformidade com o mundo assumir a sua forma. Uma igreja que se conforma aquela que absorve ou absorvida pelo estilo de vida preconizado pelo mundo e pelos seus sistemas. aquela que se curva aos seus ditames, cooperando para a propagao dos imperativos
5 CAVALCANTI, Robinson. A Utopia Possvel. Viosa, MG: Ultimato, 1997, p. 22. 6 PACTO DE LAUSANNE, artigo 1.
5 que tm impregnado as mentes de homens e mulheres no sculo XXI, tais como o consumismo e o individualismo. Conformismo, segundo Cavalcanti, um ajuste s estruturas existentes de forma acrtica, passiva, preguiosa, ablica7. Por outro lado, poderamos falar de uma igreja que rejeite esse ajuste, por se afastar demasiadamente dos valores mundanos. Mas no deixa de ser conformada, medida que se compromete mais com a manuteno de suas estruturas e, conseqentemente, no abre espao para a solidariedade, alteridade e transformao tanto no pensar como no agir. Uma igreja conformada , no linguajar de Robinson Cavalcanti, uma comunidade do reino que perdeu o reino. A igreja o novo Israel que substitui o velho Israel. Falhar a igreja em antecipar os sinais do reino que j veio a partir de Cristo? Ter razo um certo pensador quando diz que o reino poder vir por meio da igreja, sem ela ou, at, contra ela?. S Deus sabe. O fato que, em sua Palavra, ele nos insta a que sejamos inconformados com o presente sculo. Quem so as pessoas inconformadas? De acordo com Cavalcanti, inconformados so aqueles que se recusam a tomar a forma, que emburram diante das formas, sua forma outra; elas so inconformadas, negam-se a tomar a forma8. Um dos desafios de uma igreja engajada e militante o inconformismo. tambm uma das maneiras de atestao de que o reino j veio, como outra vez diz Cavalcanti: O reino ainda atestado pela nossa inconformao, nossa rejeio e atitude crtica em relao ao estado de coisas contrrio ao modelo de Deus: o anti-reino das trevas e nossa transformao, de ns prprios e de nossos relacionamentos, pela renovao de nossa mente, que sintoniza a mente de Cristo e agora consegue ver alm da mera letra9. Quero aqui sugerir pelo menos mais trs desafios agenda da igreja evanglica brasileira, vivncia de uma f engajada na e atravs da igreja. 1. Uma igreja presente no mundo, encarnada e aberta para o dilogo Que estrago fez o neoplatonismo em nossa igreja, desencarnando-a, desencarnando a nossa mensagem, reduzindo-a a uma ginstica cerebral e a um inconseqente exerccio mstico10. Com isso, Cavalcanti afirma que uma corrente filosfica chamada dualismo, a qual pressupe a diviso entre corpo e alma, sagrado e profano, mundo terrestre e espiritual, tomou conta do pensamento e estilo de vida desenvolvido na igreja crist nos ltimos tempos. Prova disso est na idia, ainda corrente no meio evanglico, de que existem lugares mais sagrados que outros, ou at mesmo prticas que configuram uma consagrao, visto que privilegiam a elevao da alma ou esprito em detrimento da matria, em si, m. Durante muito tempo, ser cristo significou (e em alguns contextos ainda significa) viver
7 CAVALCANTI, Robinson. Igreja, um lugar de transformao e liberdade. Rio de Janeiro: GW, 2005, p. 19. 8 Ibid. 9 CAVALCANTI, Robinson. A Utopia Possvel. Viosa, MG: Ultimato, 1997, p. 119. 10 Idem, p. 120.
6 uma vida extremamente regrada e obediente, conforme os dogmas e a reta doutrina da igreja. A identidade crist (evanglica), assim, uma identidade fixa, inflexvel, baseada num tradicionalismo engessado e estril. Essa concepo ainda sobrevive, e resultado tambm da influncia do fundamentalismo norte-americano que pra c foi exportado. O que predomina nesse modelo o isolacionismo, isto , a ausncia do mundo. Mundo, para ns evanglicos, tudo aquilo que jaz no maligno e nada se pode fazer por ele. H uma patente confuso aqui entre ser e estar no mundo. O mundo que jaz no maligno no a criao de Deus, mas todos os sistemas que se afastam do modelo de Deus 11. Em sua orao sacerdotal (Joo 17), Jesus afirma que nem ele, nem tampouco seus discpulos so do mundo (no sentido de provir, pertencer). Provimos do e pertencemos ao Pai e ao Reino dos Cus. Porm, a verdade que nos desafia que, assim como o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo, como expresso inequvoca de seu grande amor pelo mundo, o mesmo Jesus agora nos envia ao mundo como embaixadores de uma revoluo silenciosa que deve ser produzida pela encarnao desse amor no mundo. Dessarte, uma igreja engajada aquela que se faz presente no mundo a fim de transform-lo, se juntando a ele como expresso do sim de Deus ao mundo (David Bosch), endossando a profunda amabilidade divina por toda a criao. Conforme o Pacto de Lausanne, a nossa presena no mundo indispensvel evangelizao, e o mesmo se d com aquele tipo de dilogo cujo propsito ouvir com sensibilidade, a fim de compreender12. Uma outra expresso desse engajamento est no confronto e negao das realidades de morte que no mundo imperam, como outra vez recorda o Pacto: a mensagem de salvao implica tambm uma mensagem de juzo sobre toda forma de alienao, de opresso e de discriminao, e no devemos ter medo de denunciar o mal e a injustia onde quer que existam13. A igreja hoje chamada a lutar contra a morte, a resistir s foras de morte. Essa tarefa comea por afastar as vozes da morte, que dizem: isto no dar certo; O Brasil no tem jeito; Por que trabalhar quando tudo o que edificamos pode ser destrudo por outros?; Lutar pra qu, militncia coisa do passado; Por que realizar mais um encontro, escrever mais um livro ou gastar tempo debatendo quando a realidade no quer ser transformada?. Em oposio s vozes discursivas que nos rodeiam, precisamos aplicar a resistncia da voz crist, que deve ser uma ressonncia da voz do Esprito de Deus. De acordo com Henri Nouwen, resistncia significa dizer no para todas as foras de morte onde quer que elas possam estar e, como corolrio, dizer um claro sim a tudo o que representa a vida, sob qualquer forma em que possamos encontrar14.
11 Ibidem. 12 PACTO DE LAUSANNE, art 4. 13 Idem, art 5. 14 NOUWEN, Henri J. M. Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justia. So Paulo: Loyola, 2001, p. 65.
7 2. Uma igreja educada teologicamente, ntegra politicamente e proftica ativamente A salvao que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A f sem obras morta15. Apesar dessa conscincia dos lderes reunidos em Lausanne, bem como o esforo posterior da ala evangelical da igreja latinoamericana em divulgar sua misso integral, vimos poucos avanos em termos de aceitao dessa teologia entre a imensa maioria dos evanglicos no Brasil, por diversos fatores que aqui no vale nomear. Aps anos e anos de resistncia da ala fundamentalista-conservadora da igreja quanto ao seu engajamento na poltica, tambm da luta inglria dos cristos progressistas instando a que acordssemos para a necessidade urgente de assumirmos nosso papel como cidados tambm daqui e no somente do reino e a levantarmos nossas vozes contra as injustias que imperam e nosso pas, chegamos em 2006, diria eu, com um saldo negativo. No me refiro apenas ao desinteresse geral das pessoas pela poltica ou por projetos que englobem o coletivo. O fato que marca a participao dos evanglicos na poltica hoje que ainda persistem mentalidades e posturas antigas, aliadas ao conformismo generalizado e visvel apatia dos cristos tipicamente ps-modernos. O folclore evanglico vigente na sociedade civil dos mais plurais e deturpa os princpios do Evangelho. So deputados evanglicos com malas cheias de dinheiro provenientes sabe-se l de onde; a idia do crente no se mete em poltica ainda como sinal de uma convalescente alienao dos evanglicos; a ideologia do irmo s vota em irmo corroborando aos malefcios do curralismo eleitoral evanglico e a antiga busca por representatividade e beneficiamento prprio. Embora existam iniciativas relevantes de vozes dissonantes da maioria no meio evanglico, tem-nos causado pesar e vergonha, o fato de que a poltica, um dos meios de participao na sociedade civil, no tem sido aproveitada para aplicao ao bem comum, mas como trampolim de projetos pessoais e corporativistas que, na maioria dos casos, atendem s ambies de poder de lderes mal-intencionados e totalmente despreparados para exercer os cargos para os quais foram eleitos. Robinson Cavalcanti escreveu h anos atrs que, Grosso modo, estamos trocando a alienao por uma presena conservadora, reacionria, comprometida, clientelista e fisiolgica. Lotes de votos esto sendo negociados em troca de lotes de terrenos, telhas, tijolos e empregos. Polticos evanglicos tm apoiado teses as mais danosas aos interesses do bem comum do povo brasileiro. Em vez de sermos parte da soluo, estamos reforando os problemas16. O envolvimento com as estruturas de poder requer, acima de tudo, o exerccio da tica crist e um carter que se molda ao de Cristo. No bastam boas intenes no sentido de ajudar a igreja ou aos irmos da f, nem uma cristalizao da moral individual, mas uma atitude proftica e um
15 PACTO DE LAUSANNE, art. 5. 16 CAVALCANTI, Robinson. A Utopia Possvel. Viosa, MG: Ultimato, 1997, p. 122-123.
8 inconformismo santo com as injustias que grassam nesses lugares. Precisamos de mais cobeligerncia (inclusive com no-cristos) em projetos de reflexo e ao que convirjam aos valores do reino, privilegiem o bem comum e a transformao integral da sociedade. Projetos que passem pela incluso dos mais pobres, a conscientizao dos mais abastados e sua mobilizao junto aos intelectuais e a elite esclarecida, por uma sociedade mais justa e fraterna, que combata a violncia e todas as formas de excluso e alienao. Parafraseando Cavalcanti, no podemos ficar presos ao pndulo que vai de uma santidade fora da cidadania at uma cidadania sem santidade17. Assim, toda a igreja convocada a ensinar todo o conselho de Deus ao ser humano todo, compartilhando com todos aqueles a quem chamamos prximo, das mais inusitadas formas e nos mais diferentes contextos, as boas novas e valores do reino de Deus. Esse talvez possa ser um bom resumo para aquilo que chamamos de misso integral da igreja. 3. Uma igreja com um corao ardente, cheio de misericrdia e compaixo aos feridos O chamado de Jesus sua igreja continua sendo o do engajamento. E, como se engajar significa envolver-se, botar a mo na massa, mexer com as sujeiras e podrides da sociedade em que vivemos mesmo que, com isso, venham a feder mais, ento esse chamado precisa ser temperado por uma paixo incondicional por Jesus e sua maneira de lidar com o ser humano, por um corao cheio de misericrdia, daqueles que tambm foram recebidos com misericrdia, e pela compaixo. Diz o texto de Mateus 9.36: Vendo ele as multides, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas, como ovelhas sem pastor. Quando olhamos para as multides nos dias de hoje, no da sacada do prdio, mas do plano em que elas esto, o que vemos? Que tipo de reao deveria ser provocada em nosso corao por aquilo que vemos? Afinal de contas, como definir as multides de nosso tempo, e mais, como o poder transformador do evangelho poder alcan-las? O texto de Mateus diz que Jesus andava por todas as partes, curando e ministrando a palavra, cumprindo o ministrio que a Ele fora designado pelo Pai. Jesus lidou com todo tipo de multido em seu ministrio: a multido dos que creram em sua mensagem; a multido dos afoitos para ver milagres, sinais e prodgios acontecendo; a multido dos religiosos enfurecidos com sua pregao revolucionria, cobras que aguardavam o momento certo para dar o bote; e a imensa multido dos pobres, doentes, malditos e excludos pela sociedade, a quem ningum prestava a ateno. Multides e mais multides, diferentes expectativas, propsitos, sonhos, necessidades, etc, mas com uma carncia bsica em comum: a de pastoreio para suas vidas. De algum que se compadecesse o suficiente, entendesse o bastante e fosse eficazmente capaz de cuidar, compreender
17 Idem, p. 123.
9 suas aflies e amar sem pedir nada em troca. Isso denota no apenas a falta do Supremo Pastor (Deus) na vida dessas pessoas, mas tambm de trabalhadores que, submissos ao chamado do Senhor da Seara, se dispusessem em ir colheita, doando seu tempo e cuidados para que ela seja uma boa colheita. Jesus olhou para as multides e teve compaixo delas. Compaixo diferente de d. D um sentimento de algum que est distante do outro e nada pode (ou quer) fazer a respeito da dor alheia (por isso desprezvel, uma piedade de fachada, egosmo disfarado). Compaixo, porm, literalmente significa padecer junto, sofrer junto, sentir a mesma paixo, se colocar na mesma dimenso, partilhar do lugar existencial em que o outro se encontra e estar suscetvel s contingncias desse lugar tanto quanto o outro est. Uma coisa saber que milhes de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. Outra vivenciar uma situao em que se est abaixo da linha de pobreza, parafraseando Csar M. Lopes18. Uma coisa ter conscincia do mix de confuso, alienao, competio, depresso e carncias que so vividas pelos jovens universitrios hoje. Outra bem diferente entrar no meio de tudo isso sem se julgar um estranho, aliengena ou pensar que nada daquilo tem a ver contigo. A compaixo, segundo Henri Nouwen, a via para a certeza de que somos cada vez mais ns mesmos, no quando somos diferentes dos outros, mas quando somos uma e a mesma coisa. Na verdade a principal questo espiritual no : Qual o teu contributo especfico?, mas: O que que tu tens em comum?. No o suplantar mas sim o servir que faz de ns pessoas mais humanas; no o demonstrarmos a ns mesmos que somos melhores que os outros, mas sim confessarmos que somos precisamente como os outros19. A impresso que tenho a de que perdemos a capacidade de chorar, lamentar e nos compadecer pela dor e a desgraa alheia. Todos os dias v-se nos noticirios um bocado de gente sofrendo pela violncia e excluso engendradas por um sistema que prope a liberdade, mas uma liberdade que apenas alguns gozam. Roubos, seqestros assassinatos, prises; gente sofrendo e fazendo sofrer por todos os lados, do banco do nibus ao carro importado: torturas, humilhaes e morte. E a gente? A gente ta vendo tudo, ta vendo a gente... querendo ou no, o que disse o cantor Gabriel O Pensador20. O problema, outra vez digo, est na indiferena e na apatia de todos ns, em acharmos que essas ocorrncias ao nosso redor no nos dizem respeito. Mas, se Salomo estava certo sobre a inevitabilidade de certos males nesta existncia sem sentido, o que inclui tanto mpios quanto justos, uma hora o raio poder atingir a qualquer um de ns. No h homem que no peque, assim como no h quem no sofra as conseqncias de seus atos ou de sua inoperncia. Quando formos
18 LOPES, Csar M. Mobilizando a igreja local para uma misso integral transformadora. In: BARRO & KOHL. Misso Integral Transformadora. Londrina: Descoberta, 2005, p. 152. 19 NOUWEN, Henri. Mosaicos do presente. Vida no Esprito. 3 ed. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 95-96. 20 Gabriel O Pensador. Palavras Repetidas. CD: Cavaleiro Andante. Epic, 2005.
10 abordados diretamente por um desses males, quem sabe acordemos para a realidade, abramos nossos olhos e vejamos, a partir de nosso prprio sofrimento, nosso Deus chorando pela dor e os gemidos de sua criao. Ento, as dores do mundo no podero ser esquecidas ou ignoradas, como diz Henri Nouwen: Nossa dor faz com que experienciemos o abismo de nossa prpria vida, no qual nada est estabelecido, claro ou bvio, mas tudo est constantemente passando e mudando. E, medida que sentimos a dor de nossas prprias perdas, nossos coraes, doendo, abrem nosso olho interno para um mundo no qual as perdas so sofridas muito alm de nosso prprio mundinho de famlia, de amigos e de colegas. o mundo de prisioneiros, refugiados, pacientes de aids, crianas famintas e os incontveis seres humanos que vivem em constante medo. Ento, a dor de nossos coraes chorosos conecta-se com os lamentos de uma humanidade que sofre. Ento, nosso luto torna-se maior que ns mesmos21. Concluso Ao concluir esta reflexo, lembro-me de um outro poeta, o cantor evanglico Joo Alexandre, quando afirma em uma de suas msicas que: Enquanto se canta e se dana de olhos fechados, tem gente morrendo de fome por todos os lados. O Deus que se canta nem sempre o Deus que se vive no, pois Deus se revela, se envolve, resolve e revive22. Precisamos conhecer melhor o Deus a quem dirigimos tantos sacrifcios de louvor e adorao. Adorao muito mais do que isso que se tem ensinado nos cultos (e agora at em escolas prprias pra isso). Por que? Porque a adorao inclui o cumprimento da misso; tem muito mais a ver com o ser de Deus e sua natureza operando em ns pelo Esprito, que com nosso desejo, sincero ou abominvel de barganhar com ele e de tentar agrad-lo. Todos os agrados e mimos que Deus poderia receber j foram dedicados por Jesus na cruz. Est consumado! Todo louvor, glria e adorao, da pra frente, devem ser produto da graa em e por meio de ns. Do contrrio, lembrando das palavras de Jesus, nossa justia em nada excede justia dos escribas e fariseus. Deus no precisa de sacrifcios! Ele disse: Misericrdia quero, no sacrifcio, o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos (Os 6.6). Ele no entra no jogo srdido das barganhas humanas. Ele quer menos ortodoxia (doutrina certa) e mais ortopraxia (prtica certa), na verdade, uma tem que ser resultado da outra; menos conscincia de um compromisso, e mais encarnao desse compromisso: com a justia, a paz, a liberdade, envolvendo-se, engajando-se. Se cantar o amor de Deus bom, melhor viver. Que ele nos encha de discernimento e coragem!
21 NOUWEN, Henri J. M. Com o corao em chamas. Aparecida, SP: Santurio, 2005, p. 21. 22 Joo Alexandre. Em nome da Justia. CD: O Melhor de Joo Alexandre. Koinonia Produes.