O documento resume as principais ideias do livro "Mudar o Mundo sem Tomar o Poder" de John Holloway. O autor critica a visão de que a revolução deve se concentrar na tomada do poder político pelo Estado e propõe, em vez disso, mudar o mundo através de atividades que criem novas formas de vida fora do capital. Ele argumenta que o poder não é algo que pode ser apropriado, mas reside nas relações sociais fragmentadas. O autor defende que as lutas sociais devem deslocar-se para uma dimensão diferente do
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Sobre Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder de John Holloway
O documento resume as principais ideias do livro "Mudar o Mundo sem Tomar o Poder" de John Holloway. O autor critica a visão de que a revolução deve se concentrar na tomada do poder político pelo Estado e propõe, em vez disso, mudar o mundo através de atividades que criem novas formas de vida fora do capital. Ele argumenta que o poder não é algo que pode ser apropriado, mas reside nas relações sociais fragmentadas. O autor defende que as lutas sociais devem deslocar-se para uma dimensão diferente do
O documento resume as principais ideias do livro "Mudar o Mundo sem Tomar o Poder" de John Holloway. O autor critica a visão de que a revolução deve se concentrar na tomada do poder político pelo Estado e propõe, em vez disso, mudar o mundo através de atividades que criem novas formas de vida fora do capital. Ele argumenta que o poder não é algo que pode ser apropriado, mas reside nas relações sociais fragmentadas. O autor defende que as lutas sociais devem deslocar-se para uma dimensão diferente do
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Sobre Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder de John Holloway
O documento resume as principais ideias do livro "Mudar o Mundo sem Tomar o Poder" de John Holloway. O autor critica a visão de que a revolução deve se concentrar na tomada do poder político pelo Estado e propõe, em vez disso, mudar o mundo através de atividades que criem novas formas de vida fora do capital. Ele argumenta que o poder não é algo que pode ser apropriado, mas reside nas relações sociais fragmentadas. O autor defende que as lutas sociais devem deslocar-se para uma dimensão diferente do
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1
MUDAR O MUNDO SEM TOMAR O PODER, de John Holloway.
Ivo Tonet
1. As idias do autor A problemtica dessa obra gira ao redor da constatao, pelo autor, do fracasso de todas as revolues que se pretendiam socialistas. Segundo o autor, este fracasso se deveu ao fato de que os revolucionrios confundiram revoluo com tomada do poder, acreditando que, de posse desse poder, seriam capazes de realizar as transformaes socialistas. O autor considera que esse caminho inteiramente equivocado; que no se pode mudar o mundo atravs do Estado (p. 37); que impossvel mudar o poder atravs do poder. Diante disso, o que prope ele? Mudar o mundo sem tomar o poder, vale dizer, deixar de lado a questo do poder do Estado e concentrar a luta em atividades que no tenham como objetivo a tomada do poder, mas a estruturao de um novo modo de vida no mais regido pelo capital. Contudo, para o autor, esse equvoco dos revolucionrios no era apenas uma questo tpica. Tratava-se de um erro que resultou de toda uma concepo equivocada do prprio pensamento de Marx. De modo que ele tambm se prope a mostrar por onde passa o resgate do pensamento marxiano de modo a poder fazer a crtica dos caminhos tericos e prticos da esquerda e a fundamentar a sua proposta de mudar o mundo sem tomar o poder. Segundo o autor, os revolucionrios, na esteira da interpretao engelsiana do pensamento de Marx, entenderam que a realidade social era composta de dois momentos: a objetividade e a subjetividade. Contudo, no conseguiram integrar harmonicamente esses dois momentos; eles permanecem externos um ao outro e, alm do mais, a objetividade se constitui no plo inteiramente determinante dessa relao. A objetividade, por sua vez, regida por leis que independem da atividade humana, semelhantes s leis da natureza. Por isso mesmo, o evolver da realidade social um processo que independe, no fundo, das lutas sociais, pois resultado das leis que presidem essa prpria realidade. Da a idia da inevitabilidade do socialismo. Mesmo aqueles que, como Rosa Luxemburgo, enfatizavam a importncia da interveno da subjetividade, das lutas sociais, no conseguiram superar esse carter dicotmico da realidade. Apenas colocaram lado a lado duas sries correndo paralelas: a realidade objetiva, com suas leis frreas, e a realidade subjetiva, ou seja, as lutas sociais. Estas
Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. 2
ltimas, contudo, por mais importncia que se lhes quisesse conceder, nada mais poderiam fazer do que apressar o parto do socialismo, que seria inevitvel. Alm disso, ao abandonar o conceito de fetichismo que, segundo ao autor, o conceito-chave do pensamento marxiano, os marxistas acabaram por ter o que ele chama de um conceito positivo de cincia, vale dizer, uma concepo de que o conhecimento a compreenso daquilo que como se apresenta na sua forma imediata. Dessa concepo equivocada de realidade social deriva a idia de que o marxismo o conhecimento objetivo, exato e correto das leis (objetivas) que regem o evolver social. Desaparece, assim, o carter de negatividade que, de acordo com o autor, caracterizaria a cincia feita por Marx. De todas essas concepes decorre, tambm, a ciso entre aqueles que sabem (que conhecem as leis objetivas da histria) e aqueles que no sabem. Obviamente, estes ltimos devem ser guiados pelos primeiros. Como os primeiros se encontram a servio do partido, nada mais justo que este seja o guia das massas ignaras e que as conduza no caminho da libertao. Mas, para libertar as massas preciso estar de posse do poder, donde a conquista do poder, que se concentra no Estado, tornar-se o objetivo central dos revolucionrios. Aquela concepo objetivista e fetichizada da realidade social leva os revolucionrios a verem o Estado como um instrumento, que poderia ser apropriado por qualquer classe, inclusive a classe trabalhadora, e colocado a seu servio. A posse desse instrumento permitiria, aos revolucionrios, realizarem as transformaes de carter socialista. Embora com diferenas, praticamente todos os grandes lderes revolucionrios pensavam dessa maneira. O autor cita explicitamente Lnin, Rosa, Trotski, Gramsci, Mo e Che Guevara. Segundo o autor, a crtica dessas idias equivocadas deve partir da idia marxiana de fetichismo. Fetichismo diz ele o termo que Marx utiliza para descrever a ruptura do fazer. o ncleo da discusso de Marx sobre o poder e fundamental para qualquer discusso em relao a mudar o mundo. (p. 71). E, ainda segundo ele, o que caracteriza o fetichismo a separao do fazer em relao ao feito (p. 73). E, mais: A ruptura do fazedor em relao ao feito a negao do poder-fazer do fazedor. O fazedor se converte em vtima. A atividade se converte em passividade, o fazer em sofrer. O fazer se volta contra o fazedor(p. 73). Dessa concepo do fetichismo largamente tratada pelo autor decorre que a questo central da revoluo no a tomada do poder poltico, j que este no um algo a ser apropriado, porm uma simples forma das relaes sociais, mas a busca do resgate da unidade entre o fazer e o feito, vale dizer, a instaurao de atividades que no impliquem o domnio do produto sobre o produtor. preciso, segundo o autor, negar a identidade (a idia 3
de que a aparncia fetichizada a verdadeira realidade). E uma dessas verdades instauradas pelo fetichismo a de que o poder algo de que qualquer um (classe) pode se apropriar para os seus prprios fins. Por isso mesmo, segundo ele, no se pode mudar o mundo atravs do poder poltico. Porque o poder no algo que uma pessoa ou instituio em particular possui. O poder reside mais na fragmentao das relaes sociais (p. 114). E, ainda: O Estado, ento, no o lugar de poder que parece ser. s um elemento no despedaamento das relaes sociais(p. 115). Concentrar a luta na tomada do poder , segundo o autor, colocar-se no mesmo campo do capital. O instrumentalismo ver o Estado como instrumento (I.T.) significa enfrentar o Estado em seus prprios termos, aceitando que nosso prprio mundo possa chegar a ser s depois da revoluo(p. 313). E mais: Lutar por meio do Estado v-lo implicado no processo ativo de derrotar-nos(p. 313). Descartada, portanto, a tomada do poder como objetivo da revoluo, preciso orientar a luta de modo diferente. O problema da luta diz ele deslocar-se para uma dimenso diferente da do capital, no comprometer-se com o capital em seus prprios termos, mas avanar para modos em que o capital nem sequer possa existir: romper a identidade, romper a homogeneizao do tempo(p. 312). Segundo ele, h inmeros exemplos de lutas que apontam nesse sentido. Diz ele: Existe uma imensa rea de atividade dirigida a transformar o mundo que no tem o Estado como centro e que no objetiva ganhar posies de poder. (p. 38). E, mais adiante, cita as municipalidades autnomas em Chiapas, os estudantes da Universidade Nacional Autnoma do Mxico, os estivadores de Liverpool, a onda de mobilizaes internacionais contra o poder do capital dinheiro, as lutas dos trabalhadores migrantes, a dos trabalhadores em todo o mundo contra a privatizao. (...) Existe todo um mundo de luta que no aponta de forma alguma para a conquista do poder, todo um mundo de luta contra o poder-sobre. (p. 230). 2. O contexto mais geral do livro O livro tem como contexto mais geral, por um lado, a falncia de todas as tentativas (tenham sido elas revolucionrias ou reformistas) de superar o capitalismo e construir uma sociedade socialista. Por outro lado, a extremamente complexa e difcil situao em que a humanidade se encontra, hoje, e a busca de alternativas de superao positiva do capitalismo. A crtica dos caminhos at agora tentados e a indicao de uma via radicalmente nova, que estaria sendo apontada por um conjunto de lutas sociais, tal , em resumo o contexto mais geral dessa obra. 4
Certamente, no a primeira tentativa no sentido de criticar os caminhos das tentativas de mudar o mundo. Nesse esforo, muitos autores jogaram foram no s o caminho, mas tambm o objetivo a ser atingido, ou seja, o socialismo. No , de modo nenhum, o caso desse autor. Sua inteno a de fazer a crtica e apontar outro caminho que julga mais apropriado. Ao nosso ver, no entanto, independente das boas intenes do autor, essa obra um enorme equvoco. Apesar de tudo, parece-nos que ela tem vrios mritos, embora no os pretendidos pelo autor O primeiro desses mritos est expresso na primeira parte do ttulo do livro: mudar o mundo. Deixando de lado a segunda parte do ttulo, de louvar o intencional comprometimento do autor com a superao radical do capitalismo. Em um momento e que a imensa maioria dos intelectuais ou se coloca claramente contra essa possibilidade ou, quando muito, dirige seus esforos no sentido de uma humanizao desse sistema, louvvel o claro posicionamento do autor contra o capitalismo. O segundo mrito o de deixar claro que no se trata apenas de erros tpicos cometidos pelos revolucionrios, mas de que um problema muito mais profundo, que envolve, inclusive, uma discusso a respeito da natureza do pensamento de Marx e da interpretao que dele fizeram os revolucionrios. Essa interpretao teria tido uma forte incidncia nos caminhos por eles trilhados. Concordamos com o autor, embora entendamos que h problemas srios em sua prpria interpretao. Voltaremos a essa questo mais adiante. O terceiro mrito o de identificar, ao nosso ver corretamente, o erro imediato dos revolucionrios, ou seja, o fato de eles terem pautado suas aes na crena de que a mudana do mundo poderia ser feita atravs do poder. Tambm com isso concordamos plenamente, embora tambm aqui tenhamos enormes divergncias com o autor. Tambm voltaremos a essa questo mais adiante. Considerando que grande parte da esquerda ainda acredita, hoje, ser aquele o caminho embora afirme que ser atravs de reformas e no de revoluo (uma reforma revolucionria) o simples questionamento desse caminho j representa um grande avano. 3. Os equvocos do livro Certamente, h muitas questes de detalhe bastante discutveis ao longo dessa obra. No nosso objetivo situar a crtica nesse nvel. Pretendemos ater-nos a questes mais gerais e de fundo. 5
O primeiro grande equvoco refere-se ao prprio ponto de partida da crtica do autor. Como j vimos, segundo ele, o ponto de partida de Marx, esquecido pelos revolucionrios e, em geral, pelos intelectuais marxistas, a categoria do fetichismo. Esta categoria permitiria fazer a crtica da realidade capitalista e apontar os caminhos da sua superao. No h dvida de que a categoria do fetichismo fundamental no pensamento de Marx. E que ela contribui para conferir a esse pensamento uma caracterstica toda particular. Em conseqncia, o seu abandono no pode deixar de ter reflexos profundamente negativos tanto sobre a teoria como sobre a prtica. No se trata, portanto, de negar essa categoria nem de desmerecer a sua decisiva importncia. Trata-se de ver que ela no pode ser o ponto de partida. Percebe-se isso quando se v que a prpria compreenso e a crtica do fetichismo s podem ser levadas a termo aps sabermos o que uma realidade social no fetichizada. Ora, essa compreenso do que seja uma realidade social no fetichizada s pode ser obtida na medida em que apreendermos quais so os traos ontolgicos que demarcam o processo de tornar-se homem do homem. Os traos mais gerais e essenciais desse processo que permitiro compreender o que positivo e o que negativo nessa trajetria da autoconstruo humana. Por sua vez, esses traos mais gerais e essenciais s podem aparecer na medida em que se identificar a gnese ontolgica do ser social. Chegamos, aqui, questo fundamental; ao que nos parece ser, para Marx, o verdadeiro ponto de partida: o trabalho como fundamento ontolgico do ser social. , ao nosso ver, o caminho seguido por Marx e ele que permite fazer a crtica do processo de alienao que, alis, o prprio Marx que mostra em A Ideologia Alem muito mais amplo e antigo do que a sua forma especfica no capitalismo. Mas, esse ponto de partida o trabalho como fundamento ontolgico do ser social e todo o percurso realizado a partir dele, tm uma conseqncia importantssima. a partir dele que se pode apreender o processo de tornar-se homem do homem como uma totalidade em processo, um complexo de complexos em movimento e que se constroem em determinao recproca. Esse ponto de partida permite estabelecer que o trabalho (como sntese de prvia-ideao e causalidade; de subjetividade e objetividade) a matriz originria do ser social. E que a partir dele, e em decorrncia da necessidade de enfrentamento de problemas que no podem ser resolvidos diretamente no mbito do trabalho, que surgem todas as outras dimenses da realidade social. H, portanto, uma lgica essencial que preside todo o evolver do processo social, mesmo quando esse processo se manifesta sob a forma de fragmentao, de estilhaamento, de um aparente caos. Por mais complexo, contraditrio e aparentemente catico que seja esse processo (lembre-se do desmoronamento do sistema escravista), ele nunca deixa de ter o trabalho como sua matriz ontolgica, nem deixa, jamais, 6
de ser uma totalidade. Nem por isso h uma derivao mecnica (como entendia o marxismo vulgar) das diversas dimenses sociais a partir do trabalho. H apenas uma dependncia ontolgica e uma autonomia relativa. dessa descoberta da justa articulao entre subjetividade e objetividade a partir do trabalho que decorre toda a concepo marxiana acerca do ser social, inclusive do fetichismo. Ora, o desconhecimento desse fio condutor to bem desenvolvido por Lukcs a partir de Marx que leva o autor a afirmar que o trabalho j no o eixo da oposio ao capital. Para ele, essa luta j no tem, hoje, mais nenhum eixo. Ela simplesmente se encontra representada por todos os movimentos e lutas sociais que de alguma forma, mesmo que a mais indireta, se opem a algum aspecto do capitalismo. No o nico autor que, desconhecendo a articulao entre o trabalho em sentido ontolgico (como aquela necessidade eterna de transformao da natureza) e no sentido histrico-concreto (no caso do capitalismo, o trabalho abstrato) e perdido na aparncia das transformaes que a classe trabalhadora vem sofrendo ao longo das ltimas dcadas, afirma a no centralidade do trabalho na oposio ao capital, substituindo-o pelo povo em geral, pelos oprimidos, pela humanidade, pelos movimentos sociais. O resultado, independente da inteno do autor, sempre alguma forma de reformismo e/ou voluntarismo. exatamente o que evidenciam as lutas sociais, hoje. Descentradas do trabalho, nico que pode se opor radicalmente ao capital, seu grande leit-motiv se resume em construir um mundo cidado, o que a quintessncia do reformismo. Evidentemente, no se trata de desconsiderar a importncia das diversas formas de luta social. Trata-se, apenas, de enfatizar que, desnucleadas do trabalho, elas no podem adquirir um carter revolucionrio. Tambm no se trata, simplesmente, de reafirmar a centralidade do trabalho desconhecendo a importncia das lutas sociais e os gravssimos problemas referentes natureza atual da prpria classe trabalhadora. Trata-se de buscar a articulao entre esses dois momentos, sem deixar de afirmar que o trabalho continua a ser o eixo de toda a luta. H, porm, aqui, uma questo que deve ser realada. O que produz todas aquelas confuses acima apontadas, todas as dificuldades da ao prtica no so as idias errneas dos autores. a prpria forma concreta da realidade atual. So as prprias transformaes sofridas pelo mundo do trabalho, em especial pela classe trabalhadora, nas ltimas dcadas, que tornam difcil, se no impossvel no momento, a identificao clara da natureza dessa classe e, portanto, da sua ao prtica. Ora, se no h clareza quanto natureza atual da classe trabalhadora, o mnimo que se pode exigir uma atitude cautelosa de investigao desse 7
processo em curso e no, com tanta ligeireza, a imediata negao de sua centralidade na luta contra o capital. No o fato de a classe trabalhadora no estar empenhada na revoluo que lhe retira o carter potencialmente revolucionrio. Mesmo porque esse carter no lhe pertence por alguma essncia metafsica, mas se realiza pela articulao entre sua posio no processo de produo e seu envolvimento nas lutas concretas. No ignoramos que fcil afirmar que se deve articular todas as lutas sociais ao redor do eixo das lutas do trabalho. Acontece que realizar essa articulao, nesse momento histrico, est se revelando imensamente difcil, at pelos problemas que dizem respeito prpria natureza da classe trabalhadora. Entendemos, porm, que, exatamente por reconhecer essas enormes dificuldades, deveria haver mais cautela tanto nas anlises quanto nos caminhos a serem apontados. O segundo e enorme equvoco do autor, intimamente conexo com a questo anterior, o que se manifesta no prprio ttulo do livro: mudar o mundo sem tomar o poder. um fato que todas as tentativas de superar o capitalismo tomaram o caminho apontado pelo autor, ou seja, buscaram apoderar-se do poder para, por seu intermdio, realizar as mudanas que transformariam o sistema social. E tambm um fato que todas elas fracassaram. A concluso imediata, tirada pelo autor, nos parece inteiramente correta: no se pode mudar o mundo atravs do poder. O problema que ele no tira apenas essa concluso. Ele vai muito mais longe ao concluir que a questo do poder deve ser deixada de lado quando se pretende mudar o mundo; que o foco da luta, como j vimos, deve concentrar-se nas lutas sociais que no visam a tomada do poder, mas a superao da ruptura entre o fazer e o feito que, na sua opinio a questo fundamental. Ora, na medida em que o autor identifica o equvoco dos revolucionrios, o que se esperaria? Que ele procurasse analisar o processo histrico para mostrar por que eles erraram. E que ele, como materialista histrico-dialtico que se pretende, fizesse aparecer, nessa anlise, a articulao entre as idias e a realidade objetiva. Sua argumentao, no entanto, situa-se, apenas, no terreno das idias, sem nenhuma articulao com o processo histrico concreto. Ele simplesmente afirma que os revolucionrios agiram daquele modo porque entendiam que revoluo era sinnimo de tomada do poder e que, por intermdio desse poder mudariam o mundo. Ou seja, agiram erradamente simplesmente porque tinham idias erradas. O primeiro passo que se poderia esperar do autor seria o exame das idias de Marx acerca dessa questo. No no sentido de um argumento de autoridade, mas como um autor cuja teoria no pode, de modo algum, ser descartada sem um exame srio. At para ser submetida crtica. Em vo procura-se esse exame. Embora as idias de Marx acerca da 8
revoluo, do Estado e do socialismo sejam sobejamente conhecidas, o autor simplesmente passa ao largo delas. O que Marx em alguns casos junto com Engels disse acerca do Estado, da revoluo e do socialismo nas Glosas Crticas, em A Questo Judaica, em A Ideologia Alem, no Manifesto Comunista, em As lutas de classe na Frana, em O Capital e em vrias outras obras, no pode, de modo nenhum ser deixado de lado. Marx foi enftico ao afirmar que o objetivo da revoluo no era a tomada do poder, mas a emancipao da classe trabalhadora. Exatamente porque tinha claro que o Estado tem sua origem nas relaes econmicas e uma condio indispensvel para a reproduo dessas relaes de desigualdade. Alm do mais, tambm deixou claro que a verdadeira emancipao deveria ter por fundamento uma forma efetivamente livre de trabalho (a associao dos produtores livres, o trabalho associado) e que ela no poderia realizar-se sem o desenvolvimento de foras produtivas que permitisse a criao de uma riqueza abundante. Sem falar na afirmao, inteiramente clara, de que a emancipao da classe trabalhadora deveria ser obra da prpria classe trabalhadora. O que, diga-se de passagem, no exclui, de modo nenhum, a existncia de partidos dessa classe, deixando claro, porm, que a classe, e no os partidos, so o elemento fundamental. E se para criticar os revolucionrios pelo caminho assumido, porque no incluir tambm Marx quando diz, no Manifesto Comunista que o proletariado dever ...centralizar todos os instrumentos de produo nas mos do Estado, isto , do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possvel a massa das foras produtivas. (p. 29-30). Esta passagem parece combinar s mil maravilhas com o procedimento dos revolucionrios. Afinal, foi exatamente isso que eles fizeram.Voltaremos a essa passagem mais adiante. certo que, para Marx, a essncia da revoluo (como emancipao humana) est numa transformao das relaes de produo que instaure o controle livre, consciente e coletivo dos produtores sobre o processo de produo (precisamente o restabelecimento da unidade entre o fazer e o feito preconizado por Holloway). Somente na medida em que essas transformaes se realizassem, os homens seriam verdadeiramente humanos, verdadeiramente livres e verdadeiramente sujeitos da sua histria. A partir da, com uma produo abundante e voltada para o atendimento das autnticas necessidades humanas e no para a reproduo do capital, os homens poderiam trabalhar menos (e de uma forma mais digna) dispondo, ento, de muito tempo efetivamente livre para dedicar-se a atividades mais propriamente humanas. 9
Mas, para chegar a isso, diz ele, preciso quebrar o poder das classes dominantes. Por isso, afirma ele, uma revoluo socialista deve, necessariamente, ser uma revoluo poltica com alma social. E, por alma social entende uma forma de trabalho que seja o fundamento de uma sociabilidade efetivamente livre. H, portanto, em Marx, uma ntima e essencial vinculao entre economia e poltica, no caso da sociedade burguesa, entre Estado e Capital . O que no quer dizer, de modo algum, que o Estado seja visto como um simples reflexo da economia. Como j vimos, a concepo de Marx, de uma dependncia ontolgica (da poltica para com a economia) e uma autonomia relativa da primeira em relao segunda. Por isso mesmo, o Estado no algo que possa ser apropriado por qualquer classe e colocado ao seu servio. O Estado uma condio fundamental na reproduo da ordem burguesa. No faz, pois, sentido, no interior do pensamento de Marx, a idia de um Estado proletrio, um Estado socialista. Mas, tambm no faz sentido desconhecer o carter decisivo que o Estado tem na reproduo do capital. De modo que pensar a revoluo sem levar em conta essa questo-chave to absurdo como colocar a tomada do poder como objetivo dela. No se pode, tambm, confundir, de modo nenhum, a idia de que a classe trabalhadora deve organizar-se, deve utilizar o poder poltico para enfrentar a classe burguesa com a idia de que ela deve constituir um Estado da classe trabalhadora. Esta idia de um Estado socialista surgiu exatamente das circunstncias concretas em que se deu a revoluo sovitica. Surgiu no porque eles tivessem uma viso instrumentalista do Estado, mas precisamente da impossibilidade de que a alma social do socialismo aflorasse, dadas as condies concretas objetivas. Porm, a infelicidade que, uma vez surgida, ela foi tomada como se fosse o caminho preconizado por Marx para a realizao da revoluo socialista. A partir da que se gerou essa absurda idia de que revoluo sinnimo de tomada do poder. Por esse caminho, toda a proposta marxiana foi por gua abaixo. E aqui vale a pena examinar aquela afirmao feita por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Vejamos a afirmao na sua integralidade. Dizem eles: O proletariado utilizar o seu domnio poltico para ir arrancando todo o capital das mos da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produo nas mos do Estado, isso , do proletariado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possvel a massa das foras produtivas (p. 29-30). No foi isso exatamente que os revolucionrios fizeram? A resposta : sim, mas somente se tomarmos essa afirmao em sentido isolado, deixando de lado o seu contexto terico e histrico. O contexto histrico era o do capitalismo mais desenvolvido. Era ali que se teriam criado as condies necessrias para a rpida produo de uma riqueza abundante 10
aps a quebra do poder poltico da burguesia. Portanto, a referncia no era a pases parcamente desenvolvidos. Nestes ainda seria necessrio criar as foras produtivas adequadas ao socialismo. Naqueles, tratar-se-ia, apenas, de liber-las dos entraves das relaes capitalistas e transform-las em relaes socialistas. O contexto terico, por sua vez, indicava, desde os primeiros textos de Marx, que essa produo rpida e abundante s seria possvel com a entrada em cena do trabalho associado, ou seja, com a liberao da produo dos entraves do capital. Mais ainda: Nesse intervalo em termos histricos, relativamente breve que mediaria entre o capitalismo e o comunismo, a classe trabalhadora teria que se organizar para enfrentar a resistncia da burguesia. Mas, nesse caso, os autores tm o cuidado de precisar que o Estado o proletariado organizado e no uma organizao acima e fora das classes. Referindo-se Comuna como ...a forma poltica finalmente encontrada que permitia realizar a emancipao econmica do Trabalho, diz Marx: Sem esta ltima condio, a Constituio comunal teria sido uma impossibilidade e um engodo. O domnio poltico do produtor no pode coexistir com a eternizao da sua escravido social. A Comuna devia, pois, servir de alavanca para extirpar as bases econmicas sobre as quais se funda a existncia das classes, logo, o domnio de classe. Uma vez emancipado o trabalho, todo homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser o atributo de uma classe(A guerra civil em Frana, p. 99). A similaridade entre o que Marx preconizou e o que os revolucionrios pensaram e fizeram apenas aparente. o prprio Marx, em A Ideologia Alem, que, premonitoriamente, reala a diferena. A ele deixa claro que a exist6encia de foras produtivas altamente desenvolvidas condio absolutamente indispensvel para a construo do socialismo. E, em O Capital e nos Grundrisse, enfatiza que esse desenvolvimento das foras produtivas obra do prprio capitalismo. Mas, por que no poderia ser realizado por um Estado socialista? Exatamente porque elas s podem vir a existir sobre a base de relaes sociais de explorao, algo inteiramente contraditrio com o socialismo. ...este desenvolvimento das foras produtivas diz Marx (...) um pressuposto prtico, absolutamente necessrio, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a escassez e, portanto, com a carncia, recomearia novamente a luta pelo necessrio e toda a imundcie anterior seria restabelecida (p. 50). Do que foi dito acima, pode-se legitimamente inferir que uma revoluo socialista no pode, de modo nenhum, ser conduzida pelo Estado. E exatamente isto que Marx afirma. Porm, em vez de concluir que o desafio mudar o mundo sem tomar o poder, o que diz ele? Que uma revoluo socialista deve ser, necessariamente, uma revoluo poltica com alma social. Vale dizer, que a quebra do poder poltico das classes dominantes um 11
momento absolutamente necessrio da revoluo socialista. Contudo, embora necessrio, um momento apenas preparatrio e negativo, uma espcie de limpeza do terreno para que a alma social do socialismo possa aparecer. E que alma social essa? aquilo que em nvel genrico constitui o fundamento de qualquer forma de sociabilidade, ou seja o trabalho. S que, no caso da sociedade socialista, o trabalho dever assumir a forma de trabalho associado, de associao livre dos produtores. a que comea, para Marx, a autntica revoluo socialista, o domnio consciente, livre e coletivo dos trabalhadores sobre o processo de produo, base indispensvel para a construo de uma forma de sociabilidade efetivamente livre e humana. Esperamos que essa afirmao limpar o terreno e aparecer a alma social no seja tomada em sentido meramente cronolgico. Trata-se, obviamente, de um processo em que os dois momentos se imbricam. Mas, em algum momento, essa quebra do poder do Estado burgus faz-se necessria. Se, porm, quebrado esse poder, a alma social do socialismo no puder aparecer (por falta de condies objetivas vide o caso recente da Nicargua) ou no puder se instaurar por erros dos revolucionrios, ento aquela quebra de nada adiantar. A sim, se pe com toda fora a afirmao do autor que, antes de ser dele de Marx, de que no possvel mudar o mundo atravs do poder do Estado. Como se v, a concepo de Marx profundamente diferente da concepo instrumentalista, reificada, fetichizada do Estado. Isso, porm, no o leva a diminuir a importncia do Estado. Pelo contrrio, continua a enfatizar o seu papel crucial na reproduo da ordem social burguesa. Da no se segue, porm, que, para ele, a revoluo tenha como objetivo a conquista do Estado nem que este venha a ser o instrumento para a construo do socialismo. A inteno do autor , certamente, louvvel. Seu propsito fazer uma crtica do caminho terico e prtico trilhado pelas revolues que se pretendiam socialistas e que pretenderam realizar a revoluo atravs do Estado. Contudo, ao atribuir esse equvoco a uma concepo objetivista e fetichizada da realidade social, que teria resultado numa idia politicista da revoluo e numa idia instrumentalista do Estado, e, ao abandonar a anlise do processo histrico, chega, ao nosso ver, a uma posio to equivocada quanto a dos revolucionrios. Preocupado em criticar o objetivismo, ele cai no extremo oposto, que o subjetivismo. Ao contrrio do que o autor pensa, o zapatismo seu grande inspirador o melhor argumento, no a favor, mas contra a sua tese. O no enfrentamento da questo do poder, que aquele movimento, por sua prpria natureza, no pode questionar em sua lgica mais profunda, mostra os seus limites insuperveis. O mesmo acontece com os mais variados tipos 12
de lutas sociais, todos importantes, mas todos limitados. O Estado permanece como principal embora no nica condio de reproduo do capital. Nenhuma das outras condies teria condio de assegurar-lhe a reproduo sem a existncia do Estado. Recolocando a questo nos trilhos Se examinarmos a trajetria histrica, veremos que, a partir da segunda metade do sculo XIX, h, com altos e baixos, um processo crescente de reformizao da esquerda. E esse processo de reformizao, que comea com a social-democracia alem e atinge intensamente at os nossos dias, tem como marca fundamental o deslocamento da luta social da centralidade do trabalho para a centralidade da poltica. E esse deslocamento, tanto se deu pelo lado dos reformistas como pelo lado dos revolucionrios. Como afirma tambm o autor, ambas as partes viram no Estado o instrumento fundamental para a realizao das mudanas sociais. Porm, o que o autor no viu que esse deslocamento teve como fundamento um conjunto de circunstncias materiais, elas mesmas responsveis pelas mudanas tericas que respaldavam esse novo e equivocado caminho. Esse deslocamento da centralidade do trabalho para a centralidade da poltica que tem que ser entendido e criticado para se poder retomar o caminho revolucionrio. A crtica do autor tem o mrito de apontar para o fato de que ver a tomada do poder como o primeiro passo positivo para a realizao da revoluo colocar a poltica como eixo do processo revolucionrio. E isso um equvoco. Contudo, afirmar que devemos mudar o mundo sem tomar o poder no significa, de modo algum, repor o trabalho como eixo do processo revolucionrio. Por isso mesmo, tambm esse caminho, por mais que no seja essa a inteno ao autor, incapaz de levar superao radical do capital. Vale dizer, no passa, infelizmente, de uma nova roupagem do reformismo. O equvoco do autor nada mais do que o outro lado da moeda do equvoco dos revolucionrios. Se estes, sob presso das circunstncias concretas, entendiam, e ainda entendem, que a mudana do mundo seria feita atravs do Estado, o autor, por sua vez, tambm sob presso das circunstncias concretas do mundo atual, simplesmente abandona a problemtica do Estado, acabando por apontar um caminho inteiramente voluntarista. Infelizmente, a realidade objetiva no est apontando, hoje, os caminhos concretos para a superao do capital. Face a isso, inventar caminhos no parece ser a melhor soluo. O grande desafio atual, terico e prtico, para a esquerda, exatamente esse: resgatar o pensamento de Marx, em seu carter radicalmente crtico e revolucionrio, resgate que implica a retomada do trabalho como fundamento ontolgico do ser social e, juntamente com isso, repor as lutas do trabalho como eixo central de todas as lutas. Tarefa essa extremamente 13
complexa e difcil exatamente pelas prprias transformaes por que vem passando o mundo do trabalho. Concluindo O balano final da obra melanclico. A inteno boa, o esforo grande, problemas importantes so apontados. Infelizmente, o caminho trilhado pelo autor o leva a criticar um extremo para cair no outro: contra a centralidade do Estado, a total nulificao deste. O que lhe impede de apreender a funo prpria da poltica na luta pelo socialismo. Mas, s se pode perceber as possibilidades e os limites da poltica na medida em que se apreender a lgica prpria do ser social. Esta lgica, como j vimos, tem no trabalho a sua categoria fundante. Como o autor no toma o trabalho como ponto de partida, mas a categoria do fetichismo, aquela lgica se v perdida. Entra, ento, em cena a subjetividade, procura de novos caminhos que, descentrados da lgica objetiva, terminam por impor realidade rumos que expressam muito mais desejos do que possibilidades efetivas. O fracasso dessa obra em atingir os objetivos propostos, refora o que dissemos em vrios textos 1 : o resgate do pensamento marxiano, que lhe restitua o seu carter original, radicalmente crtico e revolucionrio e esse resgate passa, ao nosso ver, pelo caminho indicado por Lukcs em sua obra da maturidade condio indispensvel para compreender o mundo atual e identificar os caminhos de superao do capitalismo. A busca desses caminhos , hoje, uma tarefa extremamente difcil, at porque no um problema nem s e nem principalmente terico. Por isso mesmo, os equvocos so inevitveis. Mas, entendemos que, desde que o objetivo maior seja a superao radical do capital, melhor arriscar-se a comete-los do que abandonar essa luta.
1 TONET, I. As tarefas dos intelectuais, hoje. In: Novos Rumos, n. 29, 1999 e Marxismo para o sculo XXI, 2003 (mimeo).