Economia Solidária - Euclides Mance
Economia Solidária - Euclides Mance
Economia Solidária - Euclides Mance
Embora isso possa parecer estranho para muitos que não ouviram falar desse assunto,
existem milhões de pessoas no mundo todo que praticam a economia solidária. Que
trabalham e consomem com a finalidade de promover o bem-viver de todos, inclusive
o seu próprio bem-viver pessoal. Nesse circuito econômico da economia solidária o
que importa é assegurar as condições econômicas das liberdades pessoais e públicas,
gerando trabalho e renda, a integração ao tecido sócio- produtivo de todas as
pessoas em idade e condição economicamente ativa, visando abolir toda forma de
exploração, dominação e exclusão, proteger os ecossistemas e promover o
desenvolvimento sustentável.
Inicialmente a economia solidária surge como práticas bem-sucedidas de geração de
trabalho e renda, de comércio justo, de consumo ético, de finanças solidárias, de
difusão de tecnologias produtivas sustentáveis. Mas essas práticas estavam isoladas.
Algum tempo depois surgiram redes colaborativas integrando essas ações diversas,
com estratégias de potencialização dos fluxos econômicos. Desse modo, ações de
finanças solidárias possibilitavam a emergência de empreendimentos produtivos sob
autogestão dos trabalhadores, sem patrões ou empregados, utilizando tecnologias
que provocassem o menor impacto possível nos ecossistemas e, igualmente, o melhor
benefício social possível. Os produtos desses empreendimentos passam a ser
comercializados em circuitos de comércio solidário, com lojas, feiras, sistemas de
comércio justo internacional e vendas por Internet com entregas em domicílio. Os
consumidores passam a substituir produtos e serviços que consumiam de empresas
capitalistas por produtos e serviços gerados e comercializados no interior da
economia solidária, buscando assegurar o seu bem-viver pessoal no ato de consumo,
mas igualmente o bem-viver dos trabalhadores que produzem aqueles bens e
serviços, tanto quanto a proteção dos ecossistemas e o desenvolvimento sustentável
de suas comunidades. Tecnologias produtivas, como softwares livres e agricultura
orgânica, entre outras, passam a ser utilizadas, desenvolvidas e compartilhas
colaborativamente nessas redes. Os excedentes gerados nesse circuito passam a ser
reinvestidos em favor do fortalecimento e da expansão do setor econômico solidário,
parte deles sob a forma de microfinanças solidárias.
Em seguida, com base nesse acúmulo, a economia solidária gera no interior desse
movimento uma concepção de desenvolvimento territorial sustentável, sob o
controle da população local, propondo a reorganização das cadeias produtivas com
base na autogestão social. Expande os horizontes da aplicação da autogestão não
apenas para a esfera da atividade econômica, mas igualmente em relação à
participação popular na definição dos orçamentos públicos e no
planejamento das cidades. E com base nessa participação propositiva, com
abrangência e limites diversos em cada contexto, começam a surgir políticas públicas
de economia solidária em diferentes países.
Por fim, no seio da economia solidária começam a ser debatidos e tratados temas
globais, como os temas abordados nos FSM no eixo das economias soberanas. Mas não
apenas reativamente e sim propositivamente, com relação ao comércio solidário
internacional, bem como em relação aos fluxos financeiros do capital internacional,
tanto quanto em relação ao tratamento das dívidas externas. As décadas de
experiências bem-sucedidas de emissão de moedas locais para intercâmbio em redes
colaborativas ensejaram o desenvolvimento de novas tecnologias da informação
utilizando, ainda de forma experimental, smart cards e sistemas on line que
permitem transações de compra e venda como moedas sociais que não mais são
impressas em papel e avançou-se na metodologia de conversibilidade dessas moedas
em busca da definição de uma unidade monetária solidária global.
Enfim, uma nova revolução está em curso e sua base material está se desenvolvendo.
Mas pouco sabemos dela. Pois ao invés de centrarmos a atenção nas relações e fluxos
que permeiam os processos, voltamos os olhos para as partes que constituem essas
redes. Essa revolução das redes é simultaneamente econômica, política e cultural. E
a realimentação dos fluxos entre as diversas redes que se interligam desencadeia
simultaneamente processos de grande complexidade.
A base material dessa revolução, a economia solidária, está se desenvolvendo
rapidamente. Entretanto, milhares de redes e milhões de pessoas que lutam pela
construção de um outro mundo possível não a praticam. Primeiramente porque a
desconhecem e secundariamente pelas dificuldades encontradas no acesso aos
produtos e serviços gerados no interior dessa outra economia.
Essas duas dificuldades serão superadas em breve. Então as principais dificuldades
serão culturais: a superação de uma cultura consumista que valoriza a quantidade, o
excesso, a posse e o descarte, ao invés de valorizar o bem-viver das pessoas e das
comunidades. A dificuldade será a superação cultural de um padrão insustentável de
produção, consumo e modo de vida, pela afirmação de um novo modo de produzir e
consumir e conviver solidariamente, recuperando o sentido de dignidade da pessoa
humana e de sua integração nas sociedades e ecossistemas, valorizando a diversidade
das culturas, a convivência pacífica entre as pessoas e os povos e o exercício
democrático da autogestão das comunidades e nações.
Ao mesmo tempo em que as redes colaborativas solidárias avancem nos âmbitos
econômicos e culturais dessa revolução, simultaneamente também avançarão na
esfera política, transformando os Estados, alterando suas atribuições e legislações –
bem como os mecanismos de representação política e de participação popular. Trata-
se de uma revolução e não há processos lineares. Cada realidade muda a seu modo.
Mas a interligação das redes solidárias em processos colaborativos permite o mútuo
aprendizado a partir de cada experiência histórica, bem ou mal-sucedida. As novas
tecnologias da informação, utilizadas no interior dessas redes para tomadas de
decisão democráticas, tendem a ser projetadas igualmente para certas tomadas de
decisão no interior dos Estados, envolvendo comunidades
locais e, em certos casos, nacionais. Veremos surgir novos processos e mecanismos
de governança e de gestão compartilhados, que poderão democratizar os Estados.
Mas a sua implementação será fruto de revoluções democráticas, suportadas em uma
nova base de produção material e nos horizontes de uma nova cultura, ambas
desenvolvidas através desses fluxos colaborativos e solidários entre redes e pessoas,
conectando o local o global.