Allan Kern - Resenha 'Delimitações, Inversões, Deslocamentos'
Allan Kern - Resenha 'Delimitações, Inversões, Deslocamentos'
Allan Kern - Resenha 'Delimitações, Inversões, Deslocamentos'
RESISTNCIA E CONTRADIO
ALLAN STROTTMANN KERN Universidade do Vale do Sapuca
isso o que est em jogo nas interpretaes populistas do discurso revolucionrio: desligar-se do efeito religioso que a se veicula antes de tudo reconhecer que (...) as ideologias dominadas se formam sob a dominao ideolgica e contra elas, e no em um outro mundo, anterior, exterior ou independente (Michel Pcheux).
No percurso terico de Michel Pcheux, precursor da Anlise de Discurso na Frana, o final da dcada de 1970 aparece como um momento de inquietaes tericas e polticas. Motivados pelo que percebiam como "crises existenciais" nos campos da Lingustica e do Marxismo, Pcheux e seu grupo direcionaram esforos em duas vias: por um lado, questionavam as limitaes terico-filosficas do logicismo e do sociologismo na Lingustica, representadas, sobretudo, pela gramtica gerativa
chomskiana e pela sociolingustica (GADET & PCHEUX, 1977 e 1981); por outro, Pcheux se via obrigado a reconhecer e corrigir algumas imprecises sobre os mecanismos de assujeitamento e dominao ideolgica, tal como foram abordados em sua obra Semntica e Discurso (1975). Em dois textos (1977a e 1977b), Pcheux deixa entrever um descontentamento acerca das tendncias dispersas que se apresentavam sob o que se havia convencionado chamar de "A Escola Francesa de Anlise do Discurso". Como lembra Orlandi (2011), Pcheux pensava politicamente. Na prtica, a disperso terica verificada tanto na lingustica quanto no marxismo significavam, para ele, um entrave poltico, num momento crtico em que os partidos Comunista e Socialista se lanavam em uma fuso que tendia para a entrada no jogo do Estado liberal-democrtico francs. Do ponto de vista terico, fazia-se necessria uma reviso do conceito de formao discursiva, que deixaria de ser vista como bloco homogneo para ser tratada como uma instncia
dividida em sua prpria unidade. O momento de reformulaes anunciado no texto de 1978 (S h causa do que falha ou o inverno poltico francs: incio de uma retificao), no qual Pcheux reconhece que a grande falha do livro de 1975 era a concepo de um assujeitamento sem falhas, isto , sem possibilidade de resistncia. Em termos gerais, esses eram tpicos de vivo interesse quando da redao de "Delimitaes, inverses, deslocamentos", objeto da presente resenha. Embora
publicado em 1982, o texto traz a data de sua escritura, em maio de 1980. Isso o coloca justamente no ms que se seguiu ao colquio "Materialidades Discursivas", ao qual Denise Maldidier (2003) atribui o incio de uma produtiva colaborao entre Pcheux e Jacqueline Authier-Revuz em torno do conceito de heterogeneidade: ele, tendo em vista a teoria do discurso; ela, concentrando-se nos estudos da enunciao. No texto aqui abordado, j possvel notar efeitos desse encontro intelectual na medida em que o autor retoma o conceito marxista de contradio para apreender efeitos da dominao da ideologia dominante no prprio interior das ideologias dominadas. Ou, dito segundo um termo proposto por Authier-Revuz (1982): a dominao em si enquanto parte da heterogeneidade constitutiva das ideologias dominadas. Para tanto, Pcheux toma como corpus trs acontecimentos histricos que revelam diferentes tenses nos mecanismos de dominao ideolgica: a Revoluo Francesa em 1789, os movimentos socialistas do sculo XIX e a Revoluo Russa em 1917. O autor usa termos como espectro, assombrao e imagens fantasmticas para afirmar que o histrico das revolues costuma mobilizar a ligao entre o visvel e o invisvel, entre o existente e o alhures, o no realizado ou o impossvel, entre o presente e as diferentes modalidades de ausncia (p. 8, grifos meus). Para Pcheux, essa relao necessariamente colocada em jogo mediante as caractersticas estruturais das lnguas, uma vez que toda lngua tem um modo prprio de dizer e no dizer, isto , de comunicar e no comunicar, de falar e silenciar. Partindo dessa reflexo, o autor levanta uma corajosa, mas oportuna questo: Abstraes como o povo, as massas, o proletariado, a luta de classes, podem ser mostradas enquanto conceitos, sem disfarces? E no ocorre o mesmo com o inconsciente freudiano? (idem). Assim, ele parte sua investigao da delimitao do espao revolucionrio como lugar de um processo contraditrio, no qual se tramam as relaes entre lngua e histria (p. 9 , grifo meu). essa trama que Pcheux investiga, analisando a Revoluo Francesa em 1789, os movimentos revolucionrios socialistas no sculo XIX e a Revoluo Russa em 1917.
O autor inicia sua reflexo destacando que a revoluo burguesa de 1789 foi uma revoluo nacional, mas tambm lingustica: a mudana de mundo o efeito transformador da revoluo passava necessariamente pela regulamentao da lngua francesa como lngua nacional. Nesse movimento, Pcheux identifica uma passagem, um deslocamento do funcionamento social da lngua at o fim do perodo feudalmonrquico. Se o latim clssico e o latim vulgar representavam dois mundos separados por uma barreira visvel, que dividia os sujeitos entre os que eram capazes de compreender claramente o que se tinha a dizer e aqueles outros que eram tidos como inaptos para se comunicar realmente entre si (p. 9 -10), a partir de 1789, a instaurao da poltica burguesa passa a produzir um novo modo de relao com o inexistente. A particularidade da revoluo burguesa foi a de tender a absorver as diferenas rompendo as barreiras (p. 10). Ou seja, as barreiras visveis foram camufladas no processo de adaptao do sujeito sociedade burguesa, na medida em que ele precisou abandonar sua lngua materna e os costumes de sua cultura de origem para se adaptar ao Estado jurdico, mediante a alfabetizao de acordo com o uso legitimado da lngua nacional. Sobre esse deslocamento, Pcheux escreve: no mais o choque de dois mundos, separados pela barreira das lnguas, mas um confronto estratgico em um s mundo, no terreno de uma s lngua, tendencialmente Una e Indivisvel, como a Repblica (p. 11). A difuso da lngua nacional teve reflexos tanto para a dominao quanto para a resistncia. O novo Estado burgus, consolidado a partir dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, precisou fornecer um modelo de liberdade aos cidados submetidos ao Estado nacional. As barreiras lingusticas no foram eliminadas, mas tornaram-se invisveis, em funo do acesso ao ensino da lngua, que se mantinha restrito camada dominante. Por sua vez, o proletariado experimenta o irrealizado do movimento popular, compreendendo gradativamente que seus interesses no eram comuns aos da elite burguesa revolucionria, e no seriam atendidos pela Revoluo. Os revolucionrios socialistas do sculo XIX, cientes do antagonismo
preservado de forma invisvel dentro do Estado jurdico, no tm a pretenso de mudar o mundo, mas de transformar a base do mundo reorganizado pela sociedade burguesa: a revoluo socialista aparece como o inexistente especfico do mundo burgus, diz Pcheux (p. 12). E continua: o discurso revolucionrio socialista se constri (...) em torno da barreira poltica invisvel que protege o Estado, posicionando -se de modo a (d)enunciar a sociedade si mesma a fim de lanar os sujeitos luta final que mudaria a base do mundo. O que, de fato, no ocorreu no contexto histrico do sculo XIX.
J a Revoluo de 1917, que constituiu a base do mundo socialista no sculo XX, se deu, sobretudo, em regies perifricas do mundo capitalista. Constituindo-se, em certa medida, sobre vestgios de sistemas feudais, trata-se de um momento em que algo da revoluo burguesa se repete sob outras formas (p. 13). Aqui, Pcheux enfatiza novamente as condies lingusticas do processo revolucionrio: o incio das pesquisas lingusticas, que visava salvaguardar as diferentes lnguas da Unio (idem), entrava em contradio com a unificao do russo como lngua sovitica oficial. Nessas condies, o mundo socialista se tornou o lugar da Utopia realizada: o alhures realizado tomava a forma do realizado alhures (p. 14). Surgem novas fronteiras: alm daquela, visvel, que delimita o interior do socialismo e o exterior capitalista, h uma fronteira interna, invisvel, que materializa o ponto inassinalvel desta adversidade sem adversrio (p. 15). Os dispositivos do Estado revolucionrio se voltam contra o irrealizado da Revoluo, tornam visveis as adversidades e produzem o adversrio, tomando o intruso interno como traidor, sabotador e agente do inimigo (idem). Ao notar que esses diferentes momentos histricos fizeram balanar os efeitos do inexistente nos discursos revolucionrios, Pcheux investiga a origem desses discursos, isto , sua constituio histrica na relao com o irrealizado e com o impossvel. Para tanto, prope eliminar dois efeitos religiosos (p. 16): o primeiro buscar a fonte do processo revolucionrio em um discurso terico exterior ; o segundo pressupor a existncia de um germe revolucionrio , no sentido de acreditar na promessa de um desenvolvimento orgnico completo, contido em estado de prefigurao (idem). Essas precaues se justificam pelo fato de a dominao ideolgica no se impor do exterior s ideologias dominadas, mas sob e contra elas. Pcheux ento retoma a tese da interpelao ideolgica dos indivduos em sujeitos, que, tomada como um ritual, no pode ser concebida seno sob a ressalva de que no h ritual sem falha. Portanto, diz ele, necessrio retornar aos pontos de resistncia e de revolta que se incubam sob a dominao ideolgica (p. 17), referindo se aos lapsos de linguagem, atos falhos e equvocos em geral. Para o autor, essas quebras de rituais representam transgresses de fronteiras que podem fazer irromper um acontecimento histrico que rompe o crculo da repetio (idem). Essa noo se desenvolveria, nos anos seguintes, sob o conceito de acontecimento discursivo. nessas quebras de rituais que surge a figura do porta-voz, no centro visvel de um ns em formao e tambm em contato imediato com o adversrio exterior (idem). Ele, porm, nunca introduz em seus enunciados o dizer do povo que representa: nele e
por ele que o estado atual das coisas deve se confrontar com o irrealizado. O lugar do porta- voz , portanto, o ponto de partida recproco no qual a contradio vem se amarrar politicamente a um negcio de Estado (p. 18). Assim, Pcheux afirma que os discursos revolucionrios parecem inclinados, a partir do sculo XX, a se configurar de acordo com uma lgica de inverso simtrica dos discursos da ordem estabelecida: a resistncia tende a se apresentar como a simples inverso dos valores estabelecidos pela ideologia dominante. Essa estratgia, conforme o autor, se esgota de tanto recobrir as resistncias e as revoltas imprevisveis (p. 19) que ameaam irromper sob e contra as estruturas de dominao. Em outras palavras, ocorre um efeito de deslocamento, pelo qual essas resistncias imprevisveis so remetidas a seu lugar na ordem revolucionria (idem). O grande problema, segundo Pcheux, que esses mecanismos de inverso e deslocamento expem os discursos de resistncia aos dispositivos estratgicos da dominao, que no costuma perder tempo para tirar proveito poltico disso (idem). Pcheux encerra alertando sobre as lnguas de vento, os discursos de qualquer coisa (p. 24), que nos ltimos duzentos anos aperfeioaram a arte da anestesia e da asfixia, de fazer marchar as massas, produzindo- lhes o invisvel (p. 19). O esgotamento dos recursos de inverso e deslocamento utilizados pelas resistncias parece resultar do fato de que tais mecanismos foram apropriados e neutralizados pela dominao, o que, passados mais de trinta anos da redao deste artigo, pode ser interpretado como indcio de outras duas rupturas verificadas neste perodo: a passagem da sociedade capitalista de produo de consumo e a revoluo tecnolgica impulsionada pelo advento da internet. So acontecimentos histricos que instauraram novas discursividades, cujas construes so marcadas pelo cinismo e pela ironia, revelando certo distanciamento do sujeito em sua inscrio nas formaes discursivas (Baldini, 2012). Em 1980, Pcheux j parecia estar ciente dessa tendncia, alertando que o Poder dispunha de uma vantagem considervel sobre as foras capazes de coloc-lo em causa. Em retrospecto, notvel o modo como o autor antev as condies de um iminente processo de ruptura: "comea tambm uma nova transformao das relaes do visvel com o invisvel, com o irrealizado e com o inexistente, que o poder combate com a multiplicidade dos espectros" (p. 20, grifo meu). Essa conjuntura histrica e poltica, teorizada por Sloterdijk em a Crtica da Razo Cnica (1983), parece ter dado a tnica da virada do sculo. E continua a produzir efeitos sobre os movimentos de resistncia.
Referncias bibliogrficas: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s) [1982]. In: Caderno de Estudos Lingusticos, Campinas, 19:25-42, 1990. BALDINI, Lauro Jos Siqueira. Discurso e cinismo. In: MARIANI, Bethania & MEDEIROS, Vanise (orgs.). Discurso e... . Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2012. GADET, Franoise & PCHEUX, Michel. H uma via para a Lingustica fora do Logicismo e do Sociologismo? [1977a]. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Anlise de Discurso: Michel Pcheux textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011. ___________________________________. A Lngua Inatingvel: o discurso na histria da lingustica [1981]. Campinas: RG, 2010. MALDIDIER, Denise. A inquietao do discurso: (re)ler Michel Pcheux hoje . Campinas: Pontes, 2003. ORLANDI, Eni Puccinelli. Ler Michel Pcheux hoje. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Anlise de Discurso: Michel Pcheux textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011. PCHEUX, Michel. As massas populares so um objeto inanimado? [1977a]. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (org.). Anlise de Discurso: Michel Pcheux textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011. ________________. Remontemos de Foucault a Spinoza [1977b]. Traduo brasileira por Maria do Rosrio Valencise Gregolin. Mimeo, 2000. ________________. S h causa do que falha ou o inverno poltico francs: incio de uma retificao [1978]. In: PCHEUX, Michel. Semntica e Discurso: uma crtica afirmao do bvio [1975]. Campinas: Unicamp, 1988. ________________. Delimitaes, inverses, deslocamentos [1982]. In: Caderno de Estudos Lingusticos, Campinas, 19:7-24, 1990.