Poema Da Virgem - Padre José de Anchieta
Poema Da Virgem - Padre José de Anchieta
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POEMA DA VIRGEM
COMPAIXO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas, e em pesado dormir, to fundo assim ressonas? No te move a aflio dessa me toda em pranto, que a morte to cruel do filho chora tanto? O seio que de dor amargado esmorece, ao ver, ali presente, as chagas que padece? Onde a vista pousar, tudo o que de Jesus, ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux. Olha como, prostrado ante a face do Pai, todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai. Olha como a ladro essas brbaras hordas pisam-no e lhe retm o colo e mos com cordas. Olha, perante Ans, como duro soldado o esbofeteia mau, com punho bem cerrado. V como, ante Caifs, em humildes meneios, agenta oprbrios mil, punhos, escarros feios. No afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira do que duro lhe arranca a barba e cabeleira. Olha com que azorrague o carrasco sombrio retalha do Senhor a meiga carne a frio. Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho, e o sangue puro risca a face toda arminho. Pois no vs que seu corpo, incrivelmente leso, mal suster ao ombro o desumano peso? V como a destra m finca em lenho de escravo as inocentes mos com aguado cravo. Olha como na cruz finca a mo do algoz cego os inocentes ps com aguado prego. Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo, e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo! V como larga chaga abre o peito, e desgua misturado com sangue um rio todo d'gua. 3
Se o no sabes, a me dolorosa reclama para si quanto vs sofrer ao filho que ama. Pois quanto ele agentou em seu corpo desfeito, tanto suporta a me no compassivo peito. Ergue-te pois e, atrs da muralha ferina cheio de compaixo, procura a me divina. Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada a passagem: assim, tornou-se clara a estrada. Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas, ela o solo regou com lgrimas tremendas. Procura a boa me, e a seu pranto sossega, se acaso ainda aflita s lgrimas se entrega. Mas se essa imensa dor tal consolo invalida, porque a morte matou a vida sua vida, ao menos chorars todo o teu latrocnio, que foi toda a razo do horrvel assassnio. Mas onde te arrastou, me, borrasca to forte? que terra te acolheu a prantear tal morte? Ouvir teu gemido e lamento a colina, em que de ossos mortais a terra podre mina? Sofres acaso tu junto planta do odor, em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor? Eis-te a lacrimosa a curtir pena inteira, pagando o mau prazer de nossa me primeira! Sob a planta vedada, ela fez-se corruta: colheu boba e loquaz, com mo audaz a fruta. Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida, prpria boa me d para sempre a vida, e a seus filhos de amor que morreram na rega do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega. Mas findou tua vida, essa doce vivncia do amante corao: caiu-te a resistncia! O inimigo arrastou a essa cruz to amarga quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga. Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas, ele, o fulgor, a glria, a luz em que divagas. Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dois: era uma s e a mesma a vida de vs dois! Pois se teu corao o conserva, e jamais deixou de se hospedar dentro de teus umbrais, para ferido assim crua morte o tragar, com lana foi mister teu corao rasgar. Rompeu-te o corao seu terrvel flagelo, e o espinho ensangentou teu corao to belo. 4
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos, quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos. Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida? e no foste arrastada em morte parecida? E como que, ao morrer, no roubou teus sentidos, se sempre uma alma s reteve os dois unidos? No puderas, confesso, agentar mal tamanho, se no te sustentasse amor assim estranho; se no te erguesse o filho em seu vlido busto, deixando-te mais dor ao corao robusto. Vives ainda, me, p'ra sofrer mais canseira: j te envolve no mar uma onda derradeira. Esconde, me, o rosto e o olhar no regao: eis que a lana a vibrar voa no leve espao. Rasga o sagrado peito a teu filho j morto, fincando-se a tremer no corao absorto. Faltava a tanta dor esta sntese finda, faltava ao teu penar tal complemento ainda! Faltava ao teu suplcio esta ltima chaga! to grave dor e pena achou ainda vaga! Com o filho na cruz tu querias bem mais: que pregassem teus ps, teus punhos virginais. Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro e deu-te a rija lana ao corao inteiro. Podes me, descansar; j tens quanto querias: Varam-te o corao todas as agonias. Este golpe encontrou o seu corpo desfeito: s tu colhes o golpe em compassivo peito. Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lana, o amor de nosso amor, que amou sem temperana! rio, que confluis das nascentes do Edm, todo se embebe o cho das guas que retm! caminho real, urea porta da altura! Torre de fortaleza, abrigo da alma pura! rosa a trescalar santo odor que embriaga! Jia com que no cu o pobre um trono paga! Doce ninho no qual pombas pem seus ovinhos e casta rola nutre os tenros filhotinhos! chaga que s rubi de ornamento e esplendor, cravas os peitos bons de divinal amor! ferida a ferir coraes de imprevisto, abres estrada larga ao corao de Cristo! Prova do estranho amor, que nos fora unidade! Porto a que se recolhe a barca em tempestade! 5
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta: mas tu a todo o mal s medicina pronta! Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga: por ti, depe do peito a dura sobrecarga! Por ti, o pecador, firme em sua esperana, sem temor, chega ao lar da bem-aventurana! morada de paz! sempre viva cisterna da torrente que jorra at a vida eterna! Esta ferida, me, s se abriu em teu peito: quem a sofre s tu s, s tu lhe tens direito. Que nesse peito aberto eu me possa meter, possa no corao de meu Senhor viver! Por a entrarei ao amor descoberto, terei a descanso, a meu pouso certo! No sangue que jorrou lavarei meus delitos, e manchas delirei em seus caudais benditos! Se neste teto e lar decorrer minha sorte, me ser doce a vida, e ser doce a morte!
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TEXTO EM LATIM
Mens mea, quid tanto torpes absorpta sopore? Quid stertis somno desidiosa gravi? Nec te cura movet lacrimabilis ulIa parentis, Funera qu nati flet truculenta sui? Viscera cui duro tabescunt gra dolore, Vulnera dum prsens, qu tulit ilIe, videt. En, quocunque oculos converteris, omnia lesu Occurrent oculis sanguine plena tuis. Respice ut, terni prostrato ante ora Parentis, Sanguineus toto corpore sudor abit. Respice ut immanis captum quasi turba latronem Proterit, et laqueis colla manusque ligat. Respice ut ante Annam svus divina satelles Duriter armata percutit ora manu. Cernis ut in Caiphae conspectu mille superbi Probra humilis, colaphos sputaque foeda tulit. Nec faciem avertit, cum percuteretur; et hosti Vellendam barbam csariemque dedit. Adspice quam diro crudelis verbere tortor Dilaniet Domini mitia membra tui. Adspice quam duri lacerent sacra tempora vepres, Diffluat et purus pulchra per ora cruor. Nonne vides, totos lacerum crudeliter artus, Grandia vix umeris pondera ferre suis? Cernis ut innocuas peracuta cuspide ligno Dextera tortoris figit iniqua manus. Cernis ut innocuas peracuta cuspide plantas Tortoris figit dextera sva cruce. Adspicis ut dura laceratus in arbore pendet, Et tua divino sanguine furta luit. Adspice: quam dirum transfosso in pectore vulnus, Unde immixta fluit sanguine lympha, patet! Omnia si nescis ,mater sibi vindicat gra
Vulnera, quae natum sustinuisse vides. Namque quot innocuo tulit ille in corpore pnas, Pectore tot mater fert miseranda pio. Surge, age, et infens per mnia iniqua Sionis Sollicito matrem pectore quaere Dei. Signa tibi passim notissima liquit uterque, Clara tibi certis est via facta notis. Ille viam multo raptatus sanguine tinxit, Illa piis lacrimis msta rigavit humum. Quaere piam matrem, forsan solabere flentem. Indulget lacrimis sicubi msta piis. Si tanto admittit solatia nulla dolori, Quod vitam vit mors tulit atra su, At saltem effundes lacrimas, tua crimina plangens, Crimina, qu dir causa fuere necis. Sed quo te, Mater, turbo tulit iste doloris? Qu te plangentem funera terra tenet? Num capit ille tuos gemitus lamentaque collis, Putris ubi humanis ossibus albet humus? Numquid odorifer cruciaris in arboris umbra, Unde tuus lesus, unde pependit amor? Hic lacrimosa sedes, et prim noxia matris Gaudia, crudeli fixa dolore, luis Illa fuit vetita corrupta sub arbore, fructum Dum legit audaci, stulta loquaxque, manu. Iste tui ventris pretiosus ab arbore fructus Dat vitam matri tempus in omne pi, Quque malo primi succo periere veneni Suscitat et tradit pignora cara tibi. Sed periit tua vita, tui peramabile cordis Delicium, vires occubuere tu. Raptus ab infesto crudeliter occidit hoste, Qui tibi de mammis dulce pependit onus. Occubuit diris plagis confossus lesus, Ille decor mentis, gloria luxque, tu; Quotque illum plag, tot te affixere dolores: Una etenim vobis vita duobus erat. Scilicet hunc medio cum serves corde, nec unquam Liquerit hospitium pectoris ille tui, Ut sic discerptus letum crudele subiret, Scindendum rigido cor fuit ense tibi. Cor tibi dira pium misere rupere flagella, Spina cruentavit cor tibi dira pium. In te cum clavis coniuravere cruentis 8
Omnia, qu in ligno natus acerba tulit. Sed cur vivis adhuc, vita moriente Deoque? Cur non es simili tu quoque rapta nece, Quando non illo est animam exhalante revulsum Cor tibi, si vinctos mens tenet una duos? Non posset, fateor, tantos tua vita dolores Ferre, nec id nimius sustinuisset amor, Ni te divino firmaret robore natus, Linqueret ut cordi plura ferenda tuo. Vivis adhuc, Mater, plures passura labores; Ultima te in svo iam petet unda mari. Sed tege maternum vultum, pia lumina conde, Ecce furens auras verberat hasta leves: Et sacra defuncti discindit pectora nati Insuper in medio lancea corde tremens. Scilicet hc etiam tantorum summa dolorum Defuerat plagis adicienda tuis. Hoc te supplicium, vulnus crudele manebat, Hc tibi servata est pna gravisque dolor. In cruce cum dulci figi tibi prole volebas Virgineasque manus virgineosque pedes. Ille sibi accepit rigidos cum stipite clavos, Servata est cordi lancea dira tuo. Iam potes, o Mater, compos requiescere voti, Hic tibi totus abit cordis in ima dolor. Quod gelida excepit corpus iam morte solutum, Sola pio crudum pectore vulnus habes. O sacrum vulnus, quod non tam ferrea cuspis, Quam nimius nostri fecit amoris amor! O flumen, medio paradisi e fonte refusum, Cuius ab uberibus terra tumescit aquis! O via regalis, gemmataque ianua cli, Prsidi turris, confugiique locus! O rosa, divinae spirans virtutis odorem! Gemma, poli solium qua sibi paupar emit! Nidus, ubi pur sua ponunt ova columb, Castus ubi tenere pignora turtur alit! O plaga, immensi splendoris honore rubescens, Qu pia divino pectora amore feris! O vulnus, dulci prcordia vulnere findens, Qua patet ad Christi cor via lata pium! Testis inauditi, quo nos sibi iunxit, amoris! Portus, ab quoribus quo fugit icta ratis! Ad te confugiunt, hostis quibus instat iniquus; 9
Tu prsens morbis es medicina malis. ln te, tristitia pressus, solamina carpit, Et grave de msto pectore ponit onus. Per te reiecto, spe non fallente, timore, Ingreditur cli tecta beata reus. O pacis sedes! o viv vena perennis, Aeternam in vitam subsilientis, aqu! Hoc est, o Mater, soli tibi vulnus apertum, Tu sola hoc pateris, tu dare sola potes. Da mihi, ut ingrediar per apertum cuspide pectus, Ut possim in Domini vivere corde mei. Hac pia divini penetrabo ad viscera amoris, Hic mihi erit requies, hic mihi certa domus. Hic mea sanguineo redimam delicta liquore, Hic animi sordes munda lavabit aqua. His mihi sub tectis erit, his in sedibus omnes Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori!
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Jos de Anchieta
Chegado colnia em 1553 com a Companhia de Jesus, o chamado Apstolo do Brasil foi o primeiro intelectual a atuar no pas: em tupi, portugus, espanhol e latim, ele escreveu poemas lricos, dramas, cartas sobre filologia, alm de ter sido o primeiro e maior educador religioso europeu a catequizar os ndios em sua prpria terra natal, o que tambm lhe deu o ttulo de Patrono dos Professores. Essa atividade de JOS DE ANCHIETA, poca, historicamente original, resultou numa aculturao lingstica e espiritual determinante para a formao do futuro povo mestio nacional. Se, por um lado, as foras do poder colonizador impunham uma nova representao maniquesta ou dualista do sagrado, por outro, o cristianismo tinha de receber alguns influxos da crena tupi. O jesuta conseguiu os resultados educacionais mais favorveis ao objetivo almejado atravs de um teatro (em lngua tupi) que soube se adaptar ao novo ambiente. Nesse princpio de mescla entre o pensamento colonizador e o autctone, entre essas duas linguagens, nasce a literatura nacional, de um Barroco singularmente moldado s novas exigncias do pas. OBRAS Auto da Pregao Universal (1570); Dilogo do P.e Pero Dias Martir (1571); Na Festa de Natal ou Pregao (1577); Na Aldeia de Guapimirim (1580); Excerto do Auto de S. Sebastio (1584); Arte de Gramtica da Lngua Tupi (1595); Auto da Visitao de Sta. Isabel (1507); Cartas, Informaes e Sermes (1933); De Beata Virgine (1940); Capitania de So Vicente (1946); De Gestis de Men de S (1958); Poesias (1959); Obras Completas (1985). TRANSPONDO OCEANOS SIMBLICOS O projeto de transpor para a fala do ndio a mensagem catlica demandava um esforo de penetrar no imaginrio do outro, e este foi o empenho do primeiro apstolo. Na passagem de uma esfera simblica para outra, Anchieta encontrou bices por vezes incontornveis. Como
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dizer aos tupis, por exemplo, a palavra pecado, se eles careciam at mesmo de sua noo, ao menos no registro que esta assumira ao longo da Idade Mdia europia? Anchieta, neste e em outros casos extremos, prefere enxertar o vocbulo portugus no tronco do idioma nativo. (Alfredo Bosi, Anchieta ou as Flechas Opostas do Sagrado) O INFATIGVEL Em breve comearam a aparecer os quilates do novio. As slidas humanidades que adquirira indicaram-no para a redao das cartas quadrimestrais. Fez-se professor de primeiras letras, de latim, no s de irmos como de sacerdotes, do padre Manuel de Paiva, por exemplo, superior da misso. Para suprir a falta de livros de ensino perdia parte da noite a traslad-los. Fazia peas manuais prprias ao escambo com os vizinhos que ajudaram a minguar a fome. Sua atividade fsica e sua atividade intelectual no conheciam fadiga. (J. Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos) Extrato da obra Carta ao Geral Diogo Lainez, de So Vicente, a 16 de abril de 1563 Falamos-lhe que o queramos batizar para que sua alma no se perdesse, mas que por ento no podamos ensinar-lhe o que era necessrio por falta de tempo, e que estivesse preparado para quando voltssemos. Folgou ele tanto com esta notcia, como vinda do Cu, e teve-a tanto em memria, que agora quando viemos e lhe perguntamos se queria ser Cristo, respondeu com muita alegria que sim, e que j desde ento o estava esperando [...] O que se lhe imprimiu foi o mistrio da Ressurreio, que ele repetia muitas vezes dizendo: Deus verdadeiro Jesus, que saiu da sepultura e subiu ao Cu, e depois h de vir, muito irado, a queimar todas as cousas [...] Chegando porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde estavam j seus padrinhos com outros cristos a esper-lo. A lhe tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria; e ele respondeu com grande fervor que queria ser batizado, e que toda aquela noite estivera pensando na ira de Deus, que havia de ter para queimar todo o mundo, e destruir todas as cousas, e de como havamos de ressuscitar todos.
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