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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
LIGIANE DA SILVA CORRA SACHS
DIREITO PENAL MNIMO E APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA PENAL AO DELITO DE DESCAMINHO
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LIGIANE DA SILVA CORRA SACHS
DIREITO PENAL MNIMO E APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA PENAL AO DELITO DE DESCAMINHO
Monografia apresentada pela acadmica Ligiane da Silva Corra Sachs ao Curso de Graduao da Faculdade de Direito, habilitao em Direito das Relaes Sociais, da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do grau de bacharel em Direito.
Orientadora: Prof. Dr. Katie Silene Cceres Arguello
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TERMO DE APROVAO
Ligiane da Silva Corra Sachs
DIREITO PENAL MINMO E APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA PENAL AO DELITO DE DESCAMINHO
Monografia apresentada ao Curso de Graduao da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran como requisito parcial para outorga do grau de Bacharel em Direito e aprovada pela seguinte banca examinadora:
Banca Examinadora
Orientador: Prof. Dr. Katie Silene Cceres Arguello Professora Adjunta do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paran UFPR
Prof. Dr. Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paran UFPR
Prof. Dr. Professor Adjunto do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paran UFPR
Curitiba, 19 de novembro de 2010. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 4
Dedico este trabalho,
Ao meu pai querido, in memoriam; ao meu amado esposo Rafael, pela fora e amor incondicional que transcenderam a distncia fsica.
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AGRADECIMENTOS
Professora Katie Silene Cceres Arguello pela compreenso e disposio para me orientar no momento dbil da minha sade;
minha me, pelo amor to puro e apoio emocional;
Dona Mirtes, pelas oraes to carinhosas;
Aos meus irmos, pelos abraos sempre amorosos na hora da angstia;
Aos meu sogros, Paulo Vitor Sachs e Rosmeri Sachs, pelo acolhimento quando minha vida j beijava a morte;
Aos meus amigos, Glaucia Dalabona, Bruno Mariosi, Fernando Camargo, Gustavo Trinkel, Emanuelle Moreira; Layla Pontello; Letcia Soraya; Mnica Sbalqueiro; Rodrigo Madalozzo, pelos momentos de descontrao, alegria e sorrisos que me proporcionaram;
A Rosi, do Ncleo de Prtica Jurdica, pelo amparo carinhoso e pela disposio em sempre ajudar.
Deus.
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No temas, porque eu sou contigo; no te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te fortaleo, e te ajudo, e te sustento com a minha destra fiel. Isaas 41:10 Porque eu, o SENHOR, teu Deus, te tomo pela tua mo direita e te digo: No temas, que eu te ajudo. Isaas 41:13
Deus, obrigada por permitires que eu sofra, mesmo que isso cause a Ti profunda tristeza. Fortalece minha mente e meu corao para que eu supere meus desafios com dignidade e sabedoria. D-me da Tua sabedoria. Que seja feita a Tua vontade. Em nome de Jesus. Amm Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 7
SUMRIO
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................ 5 RESUMO ........................................................................................................................... 9 INTRODUO ................................................................................................................ 10 CAPTULO 1. PRESSUPOSTO TERICO: CRIMINOLOGIA CRTICA ......................... 13 1.1. Do labeling Approach criminologia crtica ................................................................ 16 1.2. Direito Penal Mnimo versus a expanso do Direito Penal ........................................ 25 CAPTULO 2. PRINCPIOS INFORMADORES DA INSIGNIFICNCIA NO DIREITO PENAL ............................................................................................................................ 36 2.1. Princpio da fragmentariedade ...................................................................................... 36 2.2. Princpio da subsidiariedade ......................................................................................... 37 2.3. Princpio da lesividade ................................................................................................... 40 2.4. Princpio da adequao social ...................................................................................... 43 2.5. Princpio da interveno mnima .................................................................................. 46 2.6. Princpio da proporcionalidade ..................................................................................... 48 2.7. Princpio da dignidade da pessoa humana.................................................................. 51 CAPTULO 3. O PRINCPIO NA INSIGNIFICNCIA ....................................................... 52 3.1. A dignidade constitucional do princpio da insignificncia.......................................... 54 3.2. Definio do princpio da insignificncia ...................................................................... 56 3.3. Tipicidade formal e atipia material ................................................................................ 61 CAPTULO 4. A APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA AO CRIME DE DESCAMINHO .......................................................................................................... 65 4.1. O bem jurdico tutelado no crime de descaminho ....................................................... 66 4.2. O poder punitivo comercivel no delito de descaminho ............................................. 71 4.3. O parmetro para aplicabilidade do princpio da insignificncia................................ 75 4.3.1. A jurisprudncia firmada no mbito do STJ O Recurso Especial Repetitivo n 1.112.748 TO ................................................................................................................... 83 4.4. A seletividade social para a persecuo penal no delito de descaminho ................. 90 4.5. O poder punitivo comercivel nos delitos tributrios e o poder punitivo entitativo e indelvel nos delitos patrimoniais ........................................................................................ 97 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 8
CONSIDERAES FINAIS: O INTRPRETE DEVE BUSCAR A JUSTIA, AINDA QUANDO NO A ENCONTRE NA LEI 1 ..................................................................... 102
1 BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo Direito Constitucional Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n.59, out. 2002. Disponvel em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em: 27 ago. 2010 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 9
RESUMO
Este trabalho monogrfico destina-se a apreciar de forma crtica o princpio da insignificncia no direito penal, especificamente sua aplicabilidade ao delito de descaminho, sob a tica do direito penal mnimo. O princpio da insignificncia um instrumento de maior fora do direito penal contemporneo para correo dos desvios oriundos da aplicao das leis penais ao longo do tempo e compe a base de sustentao do direito penal democrtico. tambm um instrumento poltico- criminal sistemtico de descriminalizao, de acordo com a moderna dogmtica jurdico-penal-constitucional. Enquanto um conceito normativo, o princpio da insignificncia reclama uma valorao do magistrado, que ostenta uma moderna posio, amparada na proeminncia dos interesses e garantias fundamentais em jogo no caso concreto. No caso do delito de descaminho, previsto no art. 334, do Cdigo Penal, o critrio para aplicabilidade do princpio da insignificncia meramente numerrio, correspondente ao quantum do tributo a pagar, a expressar a danosidade ao errio pblico. Neste tocante, havia uma falta de racionalidade e instabilidade das decises que causaram, sobremaneira, uma insegurana jurdica. A falta de critrios objetivamente definidos para o fim de aplicar o princpio em apreo, com certeza consistiu em um entrave ao seu acolhimento, contrariando a premissa segundo a qual o Estado, ao se valer do direito penal para evitar aes ou omisses que lesem diretamente ou indiretamente sua estrutura econmica, deve observar o princpio do Estado Democrtico de Direito. Ainda, considerando, a aplicabilidade do princpio em sentido amplo, observa-se que a submisso de todos ao Direito posto no se realiza perfeitamente, ou seja, tem graus de realizao, conformando-se inevitavelmente estratificao social.
Palavras-chave: Descaminho; princpio da insignificncia; direito penal mnimo, descriminalizao.
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INTRODUO
Considerando essas premissas e tomando-se em conta que o tema da presente pesquisa ser abordado sob a lente de um direito penal de natureza democrtica e constitucional, nos alinhamos a proposta poltico-criminal do direito penal mnimo, que evoca a instrumentalizao de um dogmtica jurdico-penal em torno de uma concepo delimitadora da interveno punitiva estatal, consubstanciada em uma passagem rumo ao abolicionismo penal. Nesse sentido, pensamos que a interveno penal deve se dar unicamente quando fracassam as demais meios para a tutela do bem jurdico, pelo que no lcito ao Estado Penal agir antes do Estado Fiscal, sob pena de negao dos princpios constitucionais prprios de um Sistema Penal Democrtico O princpio da insignificncia um instrumento de maior fora do direito penal contemporneo para correo dos desvios oriundos da aplicao das leis penais ao longo do tempo e compe a base de sustentao do direito penal democrtico. tambm um instrumento poltico-criminal sistemtico de descriminalizao, de acordo com a moderna dogmtica jurdico-penal- constitucional. Este princpio est reconhecido implicitamente na Constituio Federal, mais precisamente no art. 1, inc. III, art. 3, incs. I, II e IV, e art. 5, caput, porquanto ajustado estrutura garantstica do Estado Social e Democrtico de Direito, e concretizado legislativa, judicial e administrativamente A tutela penal sempre voltada para a proteo de bens jurdicos de relevante valor, portanto, deve observar os princpios constitucionais que orientam o Direito Penal em face dos direitos e garantias fundamentais do cidado e reservar ao campo da aplicao penal as condutas que efetivamente impliquem ofensa aos valores fundamentais do meio social. A responsabilizao criminal de condutas atentatrias a ordem tributria deve ter viabilidade constitucional, luz da verdadeira misso do direito penal no Estado Democrtico e Social de Direito. Todos os princpios fundamentos ou corolrios do princpio da insignificncia informam a relao da pena com a gravidade do delito, afastando a Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 11
interveno do direito penal quando a ao, por sua inexpressividade, no chega a atentar contra os valores tutelados pelo direito penal. Isto leva, consequentemente, a que a pena privativa de liberdade, to danosa, s seja aplicada, com reservas, s condutas tpicas de relevante valor social O princpio da insignificncia promove a tutela racional dos bens jurdicos pelo direito penal, pois somente racional a proteo quando no possvel outorg-la outro ramo do direito, ou quando o outro ramo tutela de forma insuficiente e inadequada. Presta-se, igualmente, a corrigir o imperfeito processo legislativo, bem como dirimir a divergncia entre o conceito formal e material de delito. Dessa forma, quando se est diante de um fato que rigorosamente insignificante, sem tipicidade material, no se pode falar em infrao e isso abre a porta para a revalorizao do direito constitucional e contribui para que se imponham penas a fatos que devem realmente ser castigados por ter um contedo sobremaneira grave, reduzindo nveis de impunidade. O delito de descaminho, previsto na segunda parte do art. 334, caput, do Cdigo Penal configurado pelo termo iludir, tendo por objeto o pagamento de direito ou imposto. O descaminho um autntico crime material ou de resultado, isto , exige um resultado distinto da atividade do agente bem como um autntico crime tributrio, que se caracteriza pela sonegao fiscal. A conduta objetiva o no pagamento ou a iluso dos tributos devidos pelas operaes de importao Semelhante delito exige a necessidade de constituio, por via administrativa fiscal transitada em julgado, antes da persecuo penal do suposto crdito tributrio da Fazenda. A pruriofensividade do delito de descaminho no impede que se aplique o princpio da insignificncia, que considera to somente o valor (aspecto numerrio) da afetao ao bem jurdico tutelado pela norma penal incriminadora, suficiente para o trancamento da ao penal, com base apenas no aspecto fiscal do tipo, o que significa que a leso de um bem jurdico acautelado presume a violao de todos como se fosse um. vislumbra-se que o critrio para aplicabilidade do princpio da insignificncia corresponde ao quantum do tributo pagar, a expressar a danosidade ao errio pblico. Este critrio, por longo tempo, ficou ao alvedrio dos Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 12
aplicadores do direito, com grandes oscilaes. Assim, foram utilizadas as seguintes cifras quanto aos tributos iludidos: de apurar as infraes de R$ 100,00 (cem reais), R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) e R$ 10.000,00 (dez mil reais), de forma que cada operador do direito tinha uma concepo do que seria insignificante. A instabilidade acabou quando, em sede de recurso especial repetitivo, a Terceira Seo do Superior Tribunal de Justia, seguindo entendimento j pacificado do Supremo Tribunal Federal, consolidou a interpretao segundo a qual incide o princpio da insignificncia aos dbitos tributrios at o limite de 10.000,00 (dez mil reais), com fulcro no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, A insignificncia deve ser valorada no com fundamento apenas no bem juridicamente tutelado, mas principalmente, com base no grau da leso produzida. Valores de ordem subjetiva, como maus antecedentes, reincidncia, habitualidade, existncia de inquritos policiais tratando do mesmo delito, seja em andamento ou arquivado, no pode agravar o status poenalis do ru ou dar suporte legitimador da constrio da liberdade do autor, o que iria contra ao postulado constitucional da no culpabilidade, inscrito no art. 5, inciso LVI, da Constituio Federal, em iguais circunstncias a ao penal deve ser trancada por falta de justa causa Outra questo, que se faz importante em nosso estudo, diz respeito a utilizao do direito penal como forma de cobrana de tributos, ou seja, como cobrana dotada de maior poder coercitivo. Tal posicionamento desvirtua a aplicao do direito penal, compromete a descriminalizao e vai de encontro ao direito penal mnimo, colocando por terra, em conseqncia, a aplicabilidade do princpio da insignificncia. No iter deste trabalho, observa-se que a criminalidade enquanto realidade social, no uma realidade pr-constituda em relao atividade dos magistrados, mas uma propriedade conferida por estes a certos sujeitos, no somente segundo a conduta destes se subsuma ao no ao tipo abstrato previsto na lei, mas, alm disso e, principalmente, conforme as meta-regras, tomadas no seu sentido objetivo Neste talante, a relao entre direito penal e desigualdade na sociedade capitalista implica na formao e produo da norma penal de forma seletiva, Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 13
passando o direito penal a ser produtor e reprodutor de relaes de desigualdade, na medida em que um dos mecanismos que mantm a reproduo do modo de produo capitalista. Sob este aspecto, o instrumento de descriminalizao consistente no princpio da insignificncia no alcana todos, mesmo quando se afigura possvel, principalmente nos delitos contra o patrimnio, valor hiper protegido na ordem capitalista. Tambm, o princpio da insignificncia, sem embargo de afirmar retoricamente a tendncia do direito penal mnimo, mitiga a funo da preveno geral - que ns criticamos - para crimes tributrios, sem atentar que o resultado da tributao considerada insignificante, em sua totalidade, pode ser revertido para execuo de polticas pblicas voltadas para evitar a criminalizao dos sujeitos dos estratos sociais subalternos.
CAPTULO 1. PRESSUPOSTO TERICO: CRIMINOLOGIA CRTICA Para o efeito de analisar o princpio da insignificncia, enquanto princpio geral que orienta a aplicao da lei penal, faz-se necessrio conjecturar acerca da criminologia crtica, que segundo preleo de Nilo Batista, no aceita a priori o Cdigo Penal, mas investiga para quem e porqu se elaborou este cdigo e no outro. Portanto, uma cincia que no se delimita pelas definies legais de crime, preocupando-se por comportamentos que impliquem forte desaprovao social. 2 Para o autor:
A criminologia crtica insere o sistema penal e sua base normativa, o direito penal na disciplina de uma sociedade de classes historicamente determinada e trata de investigar, no discurso penal, as funes ideolgicas de proclamar uma igualdade e neutralidade desmentidas pela prtica. Como toda Teoria crtica, cabe-lhe a tarefa de fazer aparecer o invisvel 3
2 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 2 Ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2007, p. 103; BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 11 ed. Rio de janeiro: Editora Revan, 2007, p. 32. 3 Idem, p. 32-33. Ver ROXIN, Claus; ARZT, Gunter; TIEDEMANN, Klaus. Introduo ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Traduo de Gerclia Batista de Oliveira; Coord, e Supervisor Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. JAKOBS, Gnther. Fundamentos do Direito Penal. Traduo Andr Lus callegari; coolaborao Lcia Kalil. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 14
O professor Juarez Cirino dos Santos alinhava, no mesmo sentido, que a criminologia crtica tem por funo identificar as funes reais ou latentes da pena criminal cominada ao autor do tipo (desviante), o qual tem sua liberdade constrita para o fim de manter a desigualdade do poder econmico e a hierarquizao social na sociedade dividida em classes sociais antagnicas, fundada na relao capital/trabalho assalariado, que define a separao fora de trabalho/meios de produo nas sociedades capitalistas contemporneas 4
5 . As funes reais ou latentes so encobertas pelas funes aparentes da pena criminal 6 , de preveno geral positiva e negativa e preveno especial positiva e negativa, representadas pela retribuio do crime enquanto imposio de um mal justo contra um mal injusto 7 . A punio que oficialmente deveria ressocializar ou reeducar os encarcerados mediante o trabalho dos funcionrios da ortopedia moral 8 , seleciona os indivduos para to somente incapacit-los e neutraliz-los. Justamente para sobrepujar o discurso oficial que a postura criminolgica crtica considera o crime como fato humano e social, com enfoque no delinqente e sua real recuperao, fragilizada pelas injunes scio- econmicas e idiossincrticas, que conduzem prtica do delito. Sob esse vis, apercebe-se que a preveno geral a que se quer chegar punindo crimes de insignificncia sobeja ineficaz, porquanto no leva a inibio
4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., 2007, p. 454. 5 Jos Luis Bolzan de Morais, a propsito das novas economias delitivas, alega que elas se apresentam como espao de empregabilidade diante da falta de alternativa econmica economia do crime em uma economia do crime como faria o estado para incorporar o exrcito de trabalho do crime em uma economia em crise e transformao? Para onde iriam os milhares (?) de trabalhadores do e para o crime em uma economia cuja capacidade de absoro cada vez menor e, aquela existente, tem um grau de exigncia de capacitao inalcanvel para todos aqueles que no Deten um nvel de informao suficiente para operar mquinas, sistemas operacionais e ferramentas de informtica complexas BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis. Estado, Funo Social e (os obstculos da) Violncia. Ou: do mal estar na civilizao sndrome do medo na barbrie!. In. Poltica Criminal, Estado e Democracia Homenagem aos 40 anos do Curso de Direito e aos 10 anos do Curso de Ps-Graduao em Direito da Unisinos.(Org.:Andr Luis Callegari). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 75 6 PASUKANIS Apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit, p. 455. o valor de uso atribudo a pena criminal, intil do ponto de vista das funes declaradas ou manifestas do sistema penal, til do ponto de vista das funes polticas reais ou latentes da pena criminal, precisamente porque a desigualdade social e a opresso de classe do capitalismo garantida pelo discurso penal da correo/neutralizao individual e da intimidao/reforo da fidelidade jurdica do povo, p. 476. 7 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit, p. 455. 8 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 15
de comportamentos anti-sociais de ameaa penal, como defende o discurso oficial. Ao inverso, a desconsiderao da atipia nos crimes de nmio desvalor da conduta e do resultado leva ao sofrimento desmedido e piora das condies sociais e pessoais de acusados reais, sem desestimular a conduta de acusados potenciais 9 . A teoria criminolgica, enquanto observadora dos vrios sistemas de valores, consoante preleciona Juarez Cirino dos Santos, pode introduzir uma explicao poltica de emergncia histrica da retribuio equivalente, como fenmeno scio-estrutural especfico das sociedades capitalistas, onde:
a funo de retribuio equivalente da pena criminal corresponde aos fundamentos materiais e ideolgicos das sociedades fundadas na relao capital/trabalho assalariado, porque existe como forma de equivalncia jurdica fundadas nas relaes de produo das sociedades contemporneas 10 .
Os parmetros para aplicabilidade do principio da insignificncia no mbito da poltica criminal tributria, se comparada com a punio dos agentes de condutas que lesionem de forma insignificante bens jurdicos de carter patrimonial, demonstra a influncia na poltica criminal dos sistemas poltico e scio-econmicos capitalistas, bem como a veracidade da relao crcere/fbrica como a matriz histrica do capitalismo. Dessarte, seriam as relaes de trabalho da fbrica a principal instituio da estrutura social, a depender da disciplina do sistema penal, a qual consubstancia- se na principal instituio de controle social do capitalismo, voltada para manter e reproduzir as relaes sociais de dominao/explorao de classe. Sob este aspecto, a origem da priso seria a produo de um novo tipo humano, o chamado capital varivel, representado pelo trabalho assalariado. 11 . Assinala o penalista paranaense que a criminologia crtica 12 define o direito penal como sistema dinmico desigual em trs nveis, quais sejam: a) da definio das penas, b) de sua aplicao e c) de sua execuo.
9 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., p. 469. 10 Idem, p. 471. 11 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit. p. 472. 12 A concepo unitria de criminologia crtica levada a afeito por BARATTA mostra a funo de reproduo social do sistema penal e prope uma poltica criminal alternativa de reduo do direito penal desigual e de ampliao da democracia real, cujo significado poltico aparece na perspectiva Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 16
Na definio das penas o direito penal desigual seleciona os bens jurdicos a proteger, de acordo com as necessidades e interesses das classes hegemnicas de relaes de produo/circulao econmica e de poder poltico das sociedades capitalistas 13 . Na aplicao das penas, estigmatiza os sujeitos selecionados, excludos das relaes de produo e de poder poltico da formao social 14 . Na execuo das penas, consubstancia-se em real repressor seletivo dos sujeitos margem da sociedade e do mercado de trabalho, sem utilidade real nas relaes de produo/distribuio material embora com utilidade simblica no processo de reproduo das condies sociais desiguais e opressivas do capitalismo 15 . Diante de tais premissas exsurge a necessidade de se promover a anlise do princpio da insignificncia e da interveno penal no delito de descaminho sob o auspcio da criminologia crtica, das funes reais ou latentes da poltica criminal.
1.1. O Labeling Aproach criminologia crtica A Teoria do labeling approach divisa o problema da definio dos delitos com as conseqncias poltico-sociais que revela, quando este problema venha disciplinado como centro de uma teoria da criminalidade. Esta corrente inverte o posicionamento positivista, asseverando que o criminoso aquele que se tem definido como tal, sendo esta definio produto de uma interao entre aquele que tem poder de etiquetar e aquele que sofre o etiquetamento, o que ocorre mediante um mecanismo de interao, de etiquetamento ou criminalizao 16 . O labelling approach teory ou teoria da etiquetamento considera que no se pode compreender a criminalidade se no se explora a ao do sistema penal, que a define e reage contra ela, comeando pelas regras abstratas at a ao das instncias oficiais. Dentro desta perspectiva, o status social do deliquente pressupe o efeito das instncias oficiais de controle social. Por outro lado, no
de abolio do sistema penal, condicionada superao do capitalismo como (e enquanto) modo de produo de classes. Idem p. 473. 13 Idem., p. 487. 14 Idem, ibidem. 15 Idem, ibidem. 16 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Vol. 1. Parte Geral. 6 Ed. rev. e atual. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 274. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 17
adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento previsto na norma, no alcanado pela ao daquelas instncias e, assim, no tratado pela sociedade como delinquente. Esta teoria se ocupou, segundo as lies de Alessandro Baratta, especialmente, com as reaes das instncias oficiais de controle social, apreciadas no seu papel constitutivo em face da criminalidade, vale dizer, se ocupou com o efeito estigmatizante da atividade de polcia, dos rgos de acusao pblica e dos juzes. O que diferencia a criminologia tradicional da nova sociologia criminal, para o labeling approach, a conscincia crtica que a nova concepo traz, em face da definio do objeto da investigao criminolgica, consistente no criminoso e na criminalidade, e em face do problema gnoseolgico e de sociologia do conhecimento que est ligado a este objeto, quando o consideramos como uma realidade social que no se coloca como pr-constituda experincia cognoscitiva e prtica, mas construda dentro desta experincia, por meios dos processos de interao que a individualizam 17 . Os autores que se guiam pelo labeling approach se questionam:
quem definido como desviante?, que efeito decorre desta definio sobre o indivduo?, em que condies este indivduo pode se tornar o objeto de uma definio? e, enfim, quem define quem? 18 .
A interrogao relativa ao carter do sujeito e do objeto, na definio do comportamento desviante, guiou a investigao dos tericos do labbeling approach em duas direes: em primeiro lugar levou anlise da formao da identidade
17 O campo do labeling approach dominado por duas correntes: uma que remonta direo da psicologia social e da scio-linguistca, indicada como interacionismo simblico e uma que remonta etnometodologia, inspirada pela sociologia fenomenolgica, que concorre para modelar o paradigma epstemolgico caracterstico das teorias do labeling. Segundo o interacionismo simblico, a sociedade constituda por uma infinidade de interaes concretas entre indivduos, aos quais um processo de tipificao confere um significado que se afasta das situaes concretas e continua a se estender atravs da linguagem. Tambm segundo a etnometodologia, a sociedade no uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma construo social, obtida por um processo de definio e tipificao por parte de indivduos e de grupos diversos. E, por conseqncia, segundo a atnometodologia e o interacionismo simblico, estudar a realidade social (por exemplo, o desvio) significa, essencialmente, estudar estes processos, partindo dos que so aplicados a simples comportamentos e chegando at as construes mais complexas, como a prpria concepo de ordem social. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p.86-87 18 Idem, p.88. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 18
desviante e do que se determina como desvio secundrio, ou seja, o efeito da aplicao da etiqueta de criminoso sobre o indivduo em quem se ape a etiqueta; em segundo lugar conduz celeuma da definio, da constituio do desvio como qualidade imputada a comportamentos e a indivduos, no curso da interao e, por isto, leva, igualmente, para a celeuma da distribuio do poder de definio, para a anlise dos que detm na sociedade o poder de definio, vale dizer, para o estudo das agncias de controle social 19 . A inicial direo de pesquisa do labeling que se ocupou da identidade e das carreiras desviantes e se deteve principalmente sobre os efeitos da estigmatizao na formao do status social do desviante. Segundo Baratta, Becker demonstrou que a mais importante implicao do emprego de sanes consiste em uma decisiva mudana de identidade social do indivduo, mudana que ocorre assim que inserido no status de desviante 20 . Na concepo de Lemert, central para uma teoria do desvio na perspectiva da reao social a diferenciao entre delinqncia primria e secundria. Consoante esta distino, a reao social ou a punio de um primeiro comportamento desviante tem a funo de um commitent deviance, suscitando por meio de uma alterao da identidade social do indivduo assim estigmatizado, uma tendncia a permanecer no papel social, no qual a estigmatizao o introduziu 21 . Essa distino central para a construo de uma teoria da criminalidade baseada no labeling approach 22 . Na criminologia inspirada nesta teoria, a pesquisa sobre o desvio secundrio e sobre carreiras criminosas pem em dvida o princpio da preveno, em especial a concepo reeducativa da pena. Na verdade, esses resultados mostram
19 Idem, p.89 20 Idem, Ibidem. 21 Lemert sustenta que so dois os principais problemas de uma teoria da criminalidade, o primeiro como surge o comportamento desviante; o segundo como os atos desviantes so ligados simbolicamente, e as conseqncias desta ligao para os desvios sucessivos por parte da pessoa. Enquanto o desvio primrio se reporta a um contexto de fatores sociais, culturais e psicolgicos, que no se centram sobre a estrutura psquica do indivduo e no conduzem a uma reorganizao da atitude que o indivduo tem para consigo mesmo, e do seu papel social, os desvios sucessivos reao social produz no indivduo objeto da mesma; o comportamento desviante sucessivo reao torna-se um meio de defesa ou de ataque ou de adaptao em relao aos problemas manifestos e ocultos criados pela reao social primeiro desvio. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 90. 22 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 19
que a interveno do sistema penal, antes de ter um efeito reeducativo, determina uma consolidao da identidade desviante do condenado e o seu reingresso em uma carreira criminosa 23 . Uma teoria da criminalidade centrada sob a perspectiva do labeling approach no constitui uma negao, mas pode ser um complemento da investigao etiolgica 24 sobre o desvio criminal 25 . Assim:
As teorias do labeling baseadas sobre a distino entre desvio primrio e desvio secundrio, no deixaram de considerar a estigmatizao ocasionada pelo desvio primrio tambm como uma causa, que tem seus efeitos especficos na identidade social e na autodefinio das pessoas objetos da reao social 26 .
As tcnicas de definio relevantes dentro do labeling no podem se restringir queles realizados pelas instncias oficiais de controle social, mas, antes, se aproximam com os processos de definio do senso comum, os quais so determinados em situaes no oficiais, antes que as instncias oficiais interfiram, ou tambm de modo inteiramente autnomo de sua interveno 27 . O exame do processo de etiquetamento dentro do senso comum demonstra que, para que uma conduta desviante seja imputada a um indivduo, e este seja considerado como transgressor da norma, para que lhe seja infligida uma responsabilidade moral pelo ato que violou a routine, foroso que se desencadeie uma reao social correlativa. O mero desvio objetivo em relao a um padro, ou a uma norma, no suficiente 28 . A definio no labeling approach se coloca em trs nveis diversos que no devem ser implicados nem reduzidos a apenas um. Em primeiro lugar temos o problema da definio da criminalidade em um problema metalingstico, concernente validade das definies que as cincias sociais nos proporcionam de crime e criminoso; validade da definio de criminalidade a imputao da
23 Idem, ibidem. 24 Etiolgica que significar sobre a origem. 25 Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 90. 26 Idem, ibidem. 27 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p.94 28 As aplicaes gerais que determinam a aplicao com sucesso da definio de desvio, dentro do senso comum, isto , a atribuio de responsabilidade moral e uma reao social correspondente so, pois: 1) um comportamento que infrinja a routine, distanciando-se dos modelos das normas estabelecidas; 2)um autor que se tivesse querido, teria podido agir diversamente; 3) um autor que sabia o que estava fazendo Idem, p.95-96 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 20
qualidade de criminosa a certas condutas e a certas pessoas dentro do senso comum e por parte das instncias oficiais 29 . Em segundo lugar, o problema da definio tambm terico, concernente interpretao scio-poltica do fenmeno pelo qual certos sujeitos pertencentes a determinadas classes sociais e representantes de certas instituies so dotados do poder de definio, vale dizer, do poder de estabelecer quais crimes devem ser perseguidos e quais pessoas devem ser perseguidas este problema leva s leis, aos mecanismos e s estruturas sociais objetivas que regulam o poder de definio, a sua distribuio, as modalidades de seu exerccio num dado contexto enquanto outros sujeitos e grupos sociais esto submetidos a este poder. Em terceiro lugar, o problema da definio tambm fenomenolgico concernente aos efeitos que a aplicao de uma definio de criminoso a certos indivduos tem sobre o comportamento sucessivo do indivduo 30 . Consoante Fritz Sack, o atributo de criminoso est disposio de um grupo especfico de funcionrios, que so formados e introduzidos nas prprias funes atravs de intricados procedimentos de recrutamento e de socializao 31 . Quanto ao desviante, a insero em um papel criminal dependeria, fundamentalmente, da condio social a que pertence, ou da situao familiar de que origina. O desviante, pelo fato de sua origem, deve ter conscincia de que seu comportamento conduz a uma maior probabilidade de ser definido como desviante ou criminoso, por parte dos outros, e de modo especial por parte dos detentores do controle social institucional, do que outra pessoa que se comporta do mesmo modo, mas que pertence a outra classe social 32
29 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 109-110. 30 Baratta, reportando-se s lies de Fritz Sack, aduz que as diferentes noes de crime, oferecidas pelas mais diversas disciplinas que se ocupam do comportamento criminoso, partem sempre, de maneira acrtica, do mesmo ponto de vista emprico (...) a falta de uma crtica referncia ao poder de deciso e seleo que certas pessoas e certas instituies possuem em face de certas outras (...) A interpretao da relao entre os detentores do poder de decidir e os sujeitos submetidos a tal poder, relao baseada precisamente sobre a estratificao e o antagonismo entre os grupos sociais, (...) o poder de atribuir a qualidade de criminoso detido por um grupo especfico de funcionrios que, pelos critrios segundo os quais so recrutados e pelo tipo de especializao a que so submetidos, exprimem certos extratos sociais e determinadas constelaes de interesse ldem, p. 110-111. 31 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 111. 32 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 21
A questo das condies da criminalidade se desloca da pesquisa das condies que determinam o comportamento criminoso, o carter ou as tendncias criminais de certos indivduos, para a pesquisa das condies que determinam o grau de probabilidade de que certos comportamentos e certos indivduos sejam definidos como criminosos 33 .
Em suma, as teorias do labeling approach balanaram os alicerces da ideologia penal tradicional. Desta ideologia puseram em discusso o princpio de igualdade, vez que evidenciaram que a criminalidade, segundo sua definio legal, no o comportamento de uma minoria, mais da maioria das pessoas e que, alm disso, segundo a sua definio sociolgica, um status atribudo a determinados indivduos por ao daqueles que detm o poder de criar e de aplicar a lei penal, atravs de processos seletivos, sobre cuja estrutura a desigualdade do poder econmico e a estratificao/hierarquizao dos grupos sociais tm uma influncia essencial 34 . A legitimao tradicional do sistema penal como sistema fundamental tutela das condies essenciais da vida em sociedade, alm da proteo de bens jurdicos e de valores relevantes para todos, fortemente discutida quando se passa da pesquisa sobre a aplicao seletiva das leis penais pesquisa sobre a formao das leis penais e das instituies prisionais. Nesta perspectiva, o desenvolvimento de uma teoria da criminalidade abalizada nos conceitos de conflito social da teoria materialista - que leva em conta o marxismo -, parece estar funcionalmente ligado a uma perspectiva terica que no prescinde da importncia do estudo da reao social, como fator imprescindvel de uma criminologia crtica 35 . O papel seletivo do sistema penal em face dos interesses das classes sociais, a funo de sustentao que este sistema exerce em face dos outros mecanismos de represso e de marginalizao dos grupos sociais subordinados, em benefcio dos grupos dominantes, parece, portanto, ensejar uma crtica da ideologia penal, tambm no interior desta recente reflexo situaes, proteo dos bens jurdicos que o direito penal tutela de forma sobremaneira fragmentria 36 . A teoria do labeling approach coloca-se criticamente em frente ao princpio da preveno, e em particular em relao ideologia oficial do sistema
33 Idem, p. 112. 34 Idem, p. 113. 35 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 113. 36 Idem., p. 114. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 22
penitencirio moderno consistente na ressocializao. Ainda, ao apelar diferena entre desvio primrio e secundrio, as teorias da criminalidade com fundamento no labeling approach cooperaram para a crtica dos sistemas de tratamento, com um princpio terico fundamental que esclarece os efeitos crimingenos da pena e a celeuma da reincidncia 37 . Nesse sentido o libi se traduz ante as relaes de hegemonia, as quais esto na base da desigual distribuio do bem negativo da criminalidade 38 . O benefcio das relaes de hegemonia desarticula a anlise para um mbito abstrato, em que o momento poltico determinado de modo independente da estrutura econmica das relaes de produo e de distribuio 39 . Segundo Baratta, quando se fala em criminologia crtica, o discurso se d acerca de uma teoria materialista - ou seja, econmico-poltico - do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalizao, um trabalho que leva em considerao instrumentos conceituais e hipteses formadas no mbito do marxismo 40 . Calha observar, que este edifcio terico no deve ser derivado somente de uma interpretao dos textos marxistas, mas requer um trabalho de observao emprica, na qual j se podem dizer adquiridos dados importantes, alguns obtidos em contextos tericos distintos do marxismo. De outro giro, os estudos marxistas sobre o argumento se inserem em um mbito de pesquisas e de doutrinas desenvolvidas nos ltimos decnios, na seara da sociologia liberal contempornea, que prepararam o terreno para a criminologia crtica 41 . Baratta entende que o emprego de algumas hipteses e instrumentos tericos fundamentais, extrados da teoria marxista da sociedade, pode levar a criminologia crtica alm dos limites das teorias do labeling approach, e permitir, em
37 Estas teorias se relacionam, assim, a todo o vasto movimento do pensamento criminolgico e penalgico que, das escolas liberais contemporneas at as mais recentes contribuies da criminologia crtica, mostrou a grande distncia entre idia de ressocializao e a funo real do tratamento Idem, ibidem. 38 Idem, p. 115. 39 Idem, p. 116 40 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit.,, p. 159. 41 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 23
parte, reinterpretar seus resultados e aquisies em um quadro terico mais adequado 42 .
Na perspectiva da criminologia crtica no mais uma qualidade ontolgica de determinados comportamentos e de determinados indivduos, mas se revela, principalmente, como um status atribudo a determinados indivduos, mediante uma dupla seleo: em primeiro lugar, a seleo dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar a seleo dos indivduos estigmatizados entre todos os indivduos que realizam infraes a normas penalmente sancionadas. A criminalidade - (...) - um bem negativo, distribudo desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema scio-econmico e conforme a desigualdade social entre os indivduos 43
Sempre que houver um salto qualitativo em relao ao labeling approach, orientando-se a abordagem criminolgica por uma linhagem atributiva scio- estrutural 44 , pode-se falar em criminologia crtica. Pela Criminologia Crtica o desvio analisado tendo em conta sua conexo substancial com a estrutura social subjacente, como uma contradio real do sistema scio-econmico dentro da sociedade capitalista. A interpretao dos comportamentos negativos deve considerar a posio de classe dos autores do fato delituoso, porquanto a criminalizao das classes subalternas e das classes hegemnicas possuem funes diversas 45 . A criminologia crtica afasta o ideal do direito penal isonmico pelas seguintes inferncias: a uma, o direito penal no tutela todos e somente os bens essenciais, nos quais esto igualmente interessados todos os cidados, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com magnitude desigual e de modo fragmentrio; a duas, a lei penal no igual para todos e o status de criminoso distribudo de forma desigual entre os sujeitos; a trs, o grau efetivo de tutela e a distribuio do status de criminoso prescinde da danosidade social das aes e da gravidade das infraes s normas, no sentido de que estas no se
42 Idem, p. 160. 43 Idem, p. 161. 44 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 180-181. 45 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., p.181. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 24
consubstanciam em varivel principal da reao criminalizante e da sua identidade 46 . A crtica se dirige, portanto, ao mito do direito penal como o direito igual por excelncia, demonstrando que o direito penal desigual por excelncia. Na teoria marxista, sob o vis da distribuio, a direo do estudo apontou a ateno sobre a desigual distribuio dos recursos e das gratificaes sociais, vale dizer, dos atributos positivos de status, mas deixou na sombra a distribuio dos atributos negativos. Dentro desta perspectiva, a desigualdade substancial vista como o acesso desigual aos meios de satisfao das necessidades elementares. Na sociedade capitalista, o princpio da distribuio dos recursos deriva da lei do valor que preside troca entre fora do trabalho e salrio. Sob este aspecto, a igualdade formal dos sujeitos de direito se revela como veculo e legitimao de desigualdade material 47 . A criminologia crtica consiste, assim, em um instrumento de demarcao social, destinado queles que no servem ao sistema capitalista ou queles que, mesmo subservientes, acabam por no se conformar com as hostis condies deste sistema, que afirma o protagonismo da dicotomia capital/trabalho assalariado 48 , criminalizando os excludos do mercado de consumo. Em suma, a criminologia crtica deve ser tambm dialtica, livre do empirismo pragmtico, de forma a construir uma prxis social emancipatria comprometida com a concretizao dos direitos humanos, voltando-se para a dignificao do indivduo enquanto sujeito histrico capaz de realizar todas as suas potencialidades negadas pelo capitalismo 49 . Considerando todo o exposto, mostra-se imprescindvel a investigao do princpio da insignificncia aplicado ao delito de descaminho, sob a tica do paradigma da criminologia crtica, com vistas a consolidao de uma sociedade livre da necessidade de criminalizar para sobreviver 50 , com a modificao da prxis para diminuir os conflitos.
46 Idem, p. 162. 47 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 163. 48 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., passim. 49 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., p. 188-189. 50 Idem, p. 189. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 25
1.2. Direito Penal Mnimo versus a expanso do Direito Penal A tendncia moderna de inmeros ramos do direito adaptar-se constitucionalmente, para o efeito de atender aos ditames do Estado Democrtico de Direito, cujo um dos principais fundamentos a dignidade da pessoa humana. Dentro desta conjuntura que tem se dado a revogao de leis ou, ainda, uma regulao administrativa, a implicar na diminuio da abrangncia e incidncia de algumas reas do direito 51 . Sem embargo da referida tendncia, o direito penal tem expandido sua incidncia, com uma atividade legiferante a criar cada vez mais tipos penais intangveis e abstratos, com a incriminao desenfreada de atividades, comportamentos e setores da vida social 52 . Na esteira do pensamente de Andr Lus Callegari, igualmente h a:
supresso de limites mnimos e mximos na imposio das penas privativas de liberdade para aument-las indiscriminadamente; a relativizao dos princpios da legalidade e tipicidade mediante a utilizao de regras com conceitos deliberadamente vagos, indeterminados e ambguos; a ampliao extraordinria da discricionariedade das autoridades policiais(...) reduo de determinadas garantias por meio da substituio de mecanismos inquisitrios, com a progressiva atenuao do princpio da presuno da inocncia e a consequente inverso do nus da prova, passando-se a considerar culpado quem no prove sua inocncia 53
Segue-se uma poltica que criminaliza mais condutas, com o aumento das penas e a sujeio do indivduo priso, a qual surge como resoluo dos problemas sociais. Demais disso adota-se a forma de um direito penal preventivo ou cautelar 54 , que antecipa a pena e olvida o princpio constitucional da presuno de inocncia. O Direito Penal no protege bens jurdicos, no age antes da sua
51 No s ilusria a afirmao de que o direito penal do inimigo afetar unicamente a garantia destes, como tambm ilusria a sua suposta eficcia contra os inimigos Cf. ZAFFARONI, Ral E. O Inimigo no Direito Penal. Traduo de Srgio Lamaro. 2 edio, Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.119 52 Ver ANDRADE, Vera Regina de Andrade. Sistema Penal Mximo x Cidadania Mnima Cdigos da violncia na era da globalizao. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 53 CALLEGARI, Andr Lus, MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e Poltica Criminal: A expanso do Direito Penal como Forma Simblica de Controle Social. In. Poltica Criminal, Estado e Democracia Homenagem aos 40 anos do Curso de Direito e aos 10 anos do Curso de Ps- Graduao em Direito da Unisinos.(Org.:Andr Luis Callegari). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 03. Ver tambm CARVALHO, Salo de, PERDUCA, Marco. A poltica proibicionista e o agigantamento do sistema penal nas formaes sociais do capitalismo ps-industrial e globalizado. In. Globalizao, Sistema Penal e Ameaas ao Estado Democrtico de Direito. Mria Lcia Karam (org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 54 CALLEGARI, Andr Lus, MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e Poltica Criminal... Op. cit., p.4. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 26
leso, mas penaliza (criminalizao secundria) antecipadamente o agente que feriu, em tese, a norma de direito penal material. Semelhante tendncia flexibiliza, de certa forma, os pressupostos de imputao objetivos e subjetivos, bem como os princpios garantistas prprios do Estado Democrtico de Direito, representando um verdadeiro recrudescimento do sistema penal, a identificar a influncia de traos de uma legislao de exceo, identificada com o direito penal do inimigo. 55
Neste panorama, no contexto do intervencionismo do Estado na Economia, as maximalistas perseveram na idia da responsabilizao criminal por condutas atentatrias ordem tributria, fato que reclama uma anlise da legitimidade, eficincia e viabilidade constitucional luz da real misso do direito penal no Estado Democrtico de Direito 56 . A expanso do direito penal nada mais que uma resposta apresentada pelo Estado que se vale de forma desmesurada e, na maioria das vezes, contraproducente de sua principal mquina coercitiva para evitar os novos riscos, lesionando, por outro lado, os novos direitos. A eleio de bens jurdicos intermedirios ou fictcios ou, ainda, abrangentes, tal como a ordem tributria, descuida do paradigma do direito penal constitucional. Eis que nesses casos, as leis penais criminalizadoras e a misso do direito penal voltam-se apenas para garantir a vigncia da norma, j que o bem jurdico individual j tem sua tutela garantida individualmente 57 . Veja-se que a ordem tributria, eleita como bem jurdico a ser tutelado pela Lei n 8.137/1990, e igualmente tutelada pelo arts. 168-A e 334, do Cdigo Penal, uma construo estatal fundamento para a ampliao do horizonte do direito penal, sem, bvio, atender s necessidades bsicas de concretude e limitao exigidas para manuteno da segurana jurdica. A abstrao, a imaterialidade e indeterminao do conceito Ordem Tributria fator impeditivo funo do bem jurdico como elemento limitador do ius puniend do Estado e crtico do direito positivo 58 .
55 Idem, ibidem. 56 BRITO, Auriney Ucha. Responsabilidade penal tributria e a misso do direito penal no Estado Democrtico de Direito. In Revista dos Tribunais, Ano 98, n 886, agosto de 2009, p. 430. 57 BRITO, Auriney Ucha. Responsabilidade penal tributria... Op. cit., p. 436. 58 Idem, p. 437. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 27
Nesse sentido, Auriney Ucha assinala que a arrecadao fiscal tambm no legitima a persecuo penal nas relaes obrigacionais tributrias. Para o autor, se fosse assim, o principal elemento do crime passa a ser a dvida e o direito penal ser usado como uma ao fiscal de cobrana travestida de maior poder coercitivo 59 , o que realmente vai de encontro ao direito penal mnimo e a tendncia de descriminalizao, porquanto estende a atuao penal nos mbitos em que o direito administrativo deve, em tese, atuar 60 . Ainda assevera:
Nesta esteira, no h como negar que a estruturao de um sistema tributrio imprescindvel para a realizao e manuteno do sistema social. o instrumento utilizado para a obteno de recursos financeiros, que sero destinados principalmente promoo de servios essenciais comunidade, como educao, sade e segurana, alm de possuir uma funo extrafiscal de controle da economia. Logo, uma atividade to relevante, no poderia prescindir de proteo pelo direito. Mas ser que o direito penal possui legitimidade para desempenhar tal funo? 61
Se, como se sabe, o direito penal deve preocupar-se apenas com as condutas estritamente inconciliveis com as condies de uma convivncia pacfica, que lesione ou ameace de leso os bens jurdicos de gnese constitucional escolhidos pelo legislador ordinrio, ento no Estado Democrtico de Direito que se caracteriza pela positivao petrificada de direitos e garantias fundamentais a todos os cidados o mecanismo de criminalizao encontra limites rgidos nos conceitos de dignidade penal e carncia de tutela penal 62
Pelo conceito de dignidade penal, entenda-se - consoante Aurynei Ucha com arrimo nas lies de Manoel da Costa Andrade que as interferncias do direito penal devem ser reservadas a valores ou interesses social e constitucionalmente relevantes, orientadas sempre pela dignidade da pessoa humana 63 . Por outro lado, o conceito de carncia de tutela penal 64 refere-se ao
59 Idem, Ibidem. 60 A conseqncia a ameaa de priso para que o contribuinte cumpra sua obrigao perante o fisco. Caso descumpra, sofrer o constrangimento de uma ao penal e poder ser preso, idia que contraria a vedao de priso por dvida existente na Constituio Federal e no Pacto de So Jos da Costa Rica. (...) No Brasil, se aceitarmos a arrecadao fiscal como bem jurdico, teremos que aceitar o simbolismo penal como preveno, e a pena como retribuio pelo no- pagamento da dvida, confundindo esta com a culpabilidade do autor Idem, Ibidem. 61 Idem, p. 439. 62 BRITO, Auriney Ucha. Responsabilidade penal tributria... Op. cit. p. 431. 63 Idem, Ibidem. 64 Idem, p. 432. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 28
princpio da subsidiariedade, no sentido de que antes de cogitar acerca da aplicao do direito penal, deve-se comprovar a instrumentalizao de todos os outros meios, bem como sua insuficincia em homenagem aos princpios do direito penal mnimo e da dignidade da pessoa humana. No Estado Democrtico (e Social) de Direito, o autor de delitos tem direito a garantia de um julgamento justo e humano, que impea que o estado exera de modo arbitrrio seu poder punitivo, no momento do julgamento e tambm quando da elaborao de leis penais e processuais penais 65 . Dentro dessa perspectiva, de fundamental importncia o princpio da proporcionalidade, abaixo examinado, a subjazer todo o processo de criminalizao primria ou secundria, de forma a garantir a proporcionalidade entre o bem jurdico e a gravidade ou potencialidade da leso, o que no se realiza no ordenamento ptrio, onde o Estado pretende ser mximo. Em uma sociedade democrtica deve remanescer um parmetro axiolgico, de forma que a relao entre o dever ser da pena e os valores da democracia deve ser particular. Note-se que o direito penal o locus onde se manifestam os limites da democracia poltica, entendida como poder ou vontade do povo e, portanto, da maioria 66 . Segundo Ferrajoli, se pensarmos em uma democracia garantidora do direito penal, enquanto direito penal mximo, poder-se-ia dizer que entre garantismo penal e democracia poltica, entre segurana e liberdade, entre defesa social e direitos do acusado e condenado, h uma antinomia. Mas se pensarmos a democracia como complementar a democracia poltica, consistente em compreender os fundamentos axiolgicos e os limites do direito penal e da pena, desemboca-se, necessariamente, na democracia constitucional ou de direito 67 .
65 Idem, Ibidem. 66 FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrtica. In. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 31. 67 trata-se da dimenso que vem a conotar a democracia como democracia constitucional ou de direito e que aponta no quem est habilitado a decidir (a maioria, justamente), mas sim o que no lcito decidir por nenhuma maioria, nem mesmo pela unanimidade. Uma nova dimenso na qual o direito penal representa, e historicamente representou, o terreno emblemtico de reflexes e elaboraes; aquele compromisso da construo de um Estado Constitucional de direito. Esta esfera do no decidvel - o que no lcito decidir (ou no decidir) consiste, nas constituies democrticas, naquilo que se convencionou subtrair da vontade das maiorias. E o que as constituies esses contratos sociais em forma escrita, que so os pactos constitucionais estabelecem como limites e vnculos maioria, precondies de vida civil e as prprias razes do Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 29
Considerando que o limite imposto pelo pacto constitucional, consistente na tutela dos direitos fundamentais - sobretudo a vida e a liberdade pessoal, porquanto no so de interesse geral, nem pblico - que deu gnese ao poder pblico, tem-se que: A nica justificativa que o direito penal pode oferecer como alternativa a hiptese abolicionista que tal limite consiga ser um instrumento de defesa e de garantia de todos: da maioria no-desviada, mas tambm da maioria desviada, que portanto se configura como um direito penal mnimo, como tcnica de minimizao da violncia dos delitos; que, em suma, realize um duplo objetivo: a preveno e a minimizao dos delitos, bem como a preveno das reaes informais aos delitos e a minimizao das penas.
Deste modo, tem-se que o paradigma do direito penal mnimo contrape-se ao retributivismo penal e quelas teorias que vislumbram utilidades maioria no desviada, se valendo dos conceitos de preveno ou defesa social. Ferrajoli anota, nesse sentido, que:
Contra este utilitarismo dividido, o paradigma do direito penal mnimo assume como nica justificao do direito penal o seu papel de lei do mais fraco em contrapartida a lei do mais forte, que vigoraria na sua ausncia; portanto, no genericamente a defesa social, mas sim a defesa do mais fraco, que no momento do delito a parte ofendida, no momento do processo o acusado e, por fim, no momento de execuo, o ru. 68
Segundo o autor italiano, as garantias penal e processual penal se consubstanciam-se, em tese, em tcnicas voltadas a minimizar a violncia e o poder punitivo, reduzindo, por conseqncia, a previso do delito, o arbtrio dos magistrados e o recrudescimento da pena. No entanto, o que se verifica a alimentao do modelo retributivista, em razo mesmo da degenerao da poltica, vale dizer, da capacidade do sistema poltico em confrontar a violncia com os meios da poltica, no entanto, o que ocorre, que apenas o direito penal voltou-se para esse fim, com a conseqente nfase no papel poltico da jurisdio penal 69 .
pacto de convivncia? Essencialmente duas coisas: a igualdade dos cidados sejam eles desviados ou no desviados e garantia de seus direitos fundamentais, antes de tudo a vida e a liberdade pessoal FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit., p. 32 68 FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit. p. 32-33. 69 Idem, p. 33. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 30
Alm disso, na concepo retributivista, que prevalece em nossa sociedade, o crcere 70 tornou-se cada vez mais um instrumento de controle e represso social reservado aos marginalizados, Dependentes qumicos, imigrantes e jovens subproletrios que so, em numero crescente, os destinatrios principais da recluso, por causa do aumento da desocupao, da pobreza 71 , bem como da crise do Estado do Bem Estar Social e da onda repressiva alimentada pelo apelo miditico. A pena carcerria contm elementos de sofrimento corporal, dilatadas por todo o perodo da constrio da liberdade, acrescido do sofrimento psicolgico: a solido, a sujeio disciplinar, a perda da sociabilidade e da afetividade e tambm da identidade, alm daquele sofrimento especfico o castigo da alma, ou seja, a pena de recluso possui um contedo aflitivo que supera a privao da liberdade pessoal, tanto assim, que a pena deixa cair por terra suas caractersticas de igualdade, tipicidade, legalidade e jurisdicionalidade 72 . O crcere , portanto, uma instituio ao mesmo tempo no liberal, desigual, atpica, ao menos em parte extra- legal e extra-judicial, lesiva dignidade da pessoa, penosa e inutilmente aflitiva 73 . Contra esta instituio, sempre mais pobre de sentido, que tambm o direito penal mnimo depe. Eis que produz um custo de sofrimento no compensado por vantagens apreciveis para ningum 74 , por isso urge a abolio da pena detentiva, ou sua reduo e restrio de aplicao, ou ainda a substituio por outras penas no segregadoras. Assim ao lado do direito penal mnimo, faz-se necessria uma poltica de desencarceramento.
70 privao de um tempo abstrato de liberdade, quantificvel com preciso e graduvel pelo legislador e, depois, pelo juiz, em relao a gravidade em abstrato e concreto dos delitos punidos. Idem, p. 35. 71 H desproporo entre a carga de sofrimento infligida com o crcere e a escassa relevncia social dos delitos punidos com a deteno carcerria e, por outro lado, entre a gravidade provocada pela criminalidade do poder e a enorme e intil quantidade de processos gerada pela inflao da legislao penal. Duas despropores que representam uma confirmao do nexo, assegurado no paradigma do direito penal mnimo, entre eficincia e garantismo: ou seja, entre o papel da defesa social do direito penal e a reduo tanto da esfera penal e a reduo tanto da esfera dos bens merecedores de tutela penal como do grau de aflio das penas Idem, p. 34. 72 FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit. p. 35 73 Idem, p. 36. 74 Idem, p. 36-37. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 31
No Brasil a Lei de crimes hediondos e o Regime Disciplinar Diferenciado, cuidam-se de legislaes de exceo 75 que recrudesceram o encarceramento em um processo perverso e desumanizador, cuja aflio perpassa o corpo e a mente, ferindo sobremaneira a dignidade do ser humano. Para sufragar este quadro, imperiosa se faz a descriminalizao, a supresso da pena e o desencarceramento, com a restrio do crcere excepcionalmente s graves ofensas aos direitos e garantias fundamentais referidos constitucionalmente, como a vida, a integridade pessoal entre outros, levando-se em considerao que a liberdade individual um direito fundamental constitucionalmente garantido 76 . A despenalizao deve contemplar a reduo da esfera dos bens que possamos considerar fundamentais e apenas a ofensas realisticamente consideradas que possam ser julgadas decentemente pelo nosso sistema judicirio. 77
A criminalizao de relaes obrigacionais tributrias, igualmente desumanizador, portanto, afigura-se imprescindvel uma articulao programtica de mnima interveno penal, em resposta aos requisitos mnimos de respeito aos direitos humanos na lei penal 78 . Os direitos humanos, nesse sentido, teria uma dupla funo, uma negativa consistente nos limites da interveno penal e outra positiva, que diz respeito definio do objeto, possvel, mas no necessrio, de tutela por meio do direito pena. Um conceito histrico-social dos direitos humanos oferece, em ambas as funes, instrumento terico mais adequado para a estratgia da mxima conteno da violncia punitiva 79 .
75 se verdade que o direito penal incide sobre a liberdade dos cidados, ele tem uma relevncia constitucional, e no tolervel deix-lo cotidianamente exposto aos humores contingenciais da maioria do governo e ao surgimento de sempre novas emergncias Idem, p. 39. 76 CERVINI, Ral. Os Processos de Descriminalizao. 2 ed. rev. da traduo. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim. Ver tambm PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In Curso Livre de abolicionismo penal. Edson Passetti (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 13-34.; HULSMAN, Louk. Alternativas justia criminal. In Curso Livre de abolicionismo penal. Edson Passetti (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 35-68.; KARAM, Maria Lcia. Pela abolio do sistema penal. In Curso Livre de abolicionismo penal. Edson Passetti (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 69-108 77 FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit. p. 34-35. 78 BARATTA, Alessandro. Princpios del derecho penal mnimo (para uma teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal). Doctrina Penal, ano 10, n] 37 a 40, 1987, p. 299. 79 Idem, p. 299-300. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 32
O principal resultado desta orientao, consoante Alessandro Baratta, consistem nas seguintes proposies: a) a pena, que tem por objeto a esfera da liberdade pessoal e a incolumidade fsica, violncia institucional ou limitao de direitos e represso de necessidade reais fundamentais dos indivduos, mediante a ao legal ou ilegal dos funcionrios do poder legtimo ou do poder de fato em uma sociedade. b) os rgos que atuam nas diferentes organizaes da justia penal no representam nem tutelam interesses comuns a todos os membros da sociedade, mas sim os interesses de grupos minoritrios dominantes e socialmente privilegiados. O sistema punitivo um subsistema funcional da produo material e ideolgica do sistema social global, vale dizer, das relaes de poder e propriedade existentes; c) o funcionamento da justia penal altamente seletivo, porquanto est dirigido quase que exclusivamente contra as classes populares e, em particular, contra os grupos sociais mais dbeis, como evidencia a composio social da populao carcerria, apesar dos delitos estarem distribudos em todos os estratos sociais. A propsito, as violaes mais graves aos direitos humanos ocorrem por obra de indivduos pertencentes aos grupos dominantes ou que formam parte de organismos estatais ou organizaes econmicas privadas, legais ou ilegais. d) o sistema punitivo produz mais problemas de quantos pretende resolver. Ao invs de compor conflitos, os reprime, e muitas vezes, estes mesmos adquirem um carter mais grave em seu prprio contexto originrio; tambm, pelo efeito da interveno penal, podem surgir conflitos novos no mesmo ou em outros contextos. e) o sistema punitivo, por sua estrutura organizativa e pelo modo em que funciona, absolutamente inadequado para desenvolver as funes socialmente teis declaradas em seu discurso oficial 80 . O autor ainda assevera que o crcere, enquanto pena principal e caracterizante dos sistemas penais modernos, corresponderia a um verdadeiro fracasso histrico frente a sua principais funes declaradas: conter e combater a
80 BARATTA, Alessandro. Princpios... Op. cit., p. 300-302. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 33
criminalidade, ressocializar o condenado e defender interesses elementares dos indivduos e da comunidade 81 . Sob esta perspectiva, o autor assevera:
La lucha por la contencin de la violncia estructural es la misma lucha por la afirmacin de los derechos humanos. Em efecto, em uma concepcin histrico-social, stos asumen um contenido idntico al de las necesidades reales histricamente determinadas. Se desprenden de aqui dos consecuencias: la primera es que uma poltica de contencin de la violncia punitiva es realista solo si se la inscribe em el movimiento para la afirmacin de los derechos humanos y de la justicia social. Pues, em definitiva, no se puede aislar la violncia estructural y de la injusticia de las relaciones de propriedad y de poder, sin perder el contexto material e ideal e la lucha por la transformacn del sistema penal, reducindola a uma batalla sin salida ni perpectivas de xito. La segunda consecuencia es que las posibilidades de utilizar de modo alternativo los instrumentos tradicionales de la justicia penal para la defensa de los derechos humanos son sumamente limitadas. No obstante, el concepto de derechos humanos, em la doble funcin antes indicada, contina siendo el fundamento ms adecuado para la estrategia de la mnima intervencin penal y para su articulacin programtica em el cuadro de uma poltica alternativa del control social. 82
Alessandro Baratta ainda faz um exposio dos princpios que se articulam ao nvel da lei penal e da idia de mnima interveno penal. Estes princpios dependem da adoo de um ponto de vista interno e externo ao direito penal, so os princpios intrasistemticos e extrasistemticos da mnima interveno penal, que no convm aqui detalh-los, seno pontu-los no sentido de que o ponto de vista interno ou intrasistemtico indica os requisitos para a introduo e a manuteno de figuras delitivas na lei e o ponto de vista externo ou extrasistemtico se refere, diferentemente, a critrios polticos e metodolgicos para a descriminalizao e para a construo dos conflitos e dos problemas sociais, em uma forma alternativa a que oferece o sistema penal. Convm, contudo, apontar algumas questes relativas aos princpios extrasistemticos que se referem descriminalizao e construo alternativa dos conflitos e problemas sociais 83 : a) Pela descriminalizao se impe uma tarefa de eliminao parcial ou total das figuras delitivas, ou ainda a implementao de mudanas que reduzam quanto qualitativamente como quantitativamente a violncia punitiva.
81 Idem, p. 302 82 Idem, p. 303-304. 83 BARATTA, Alessandro. Princpios... Op. cit., p. 324-330. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 34
b) A interveno til indica que a alternativa criminalizao nem sempre representada por outra forma de controle social formal ou informal. c) A privatizacin dos conflitos considera as possibilidades de substituir parcialmente a interveno penal por meio de formas de direito restitutivo e acordos entres as partes, no quadro de instncias pblicas e comunitrias de reconciliao. O sistema penal geralmente reprime os conflitos e propicia sua construo em um mbito tcnico que os priva de suas reais conotaes polticas. Poder-se-ia, ento, restituir aos conflitos dimenso poltica que lhes prpria e, em segundo lugar, de considerar como alternativa ao tratamento penal, formas de interveno institucional confiveis no s aos rgos administrativos, seno tambm, e, sobretudo, queles pertencentes representao poltica, assegurando, deste modo, a participao e o controle popular da gesto das contradies mais relevantes do sistema poltico. d) A preservao das garantias formais exige que, em caso de deslocamento dos conflitos fora do campo da interveno penal para outras reas de controle social ou comunitrio, a posio dos sujeitos no seja reconduzida a um regime de menores garantias do que aquele previsto pelo direito penal. e) No que tange aos princpios metodolgicos da construo alternativa dos conflitos e problemas, tm por funo enfrentar a coisificao dos conceitos de criminalidade e de pena e propiciar uma viso inovadora e mais diferenciada dos conflitos e problemas sociais. f) O princpio de subtrao metodolgica dos conceitos de criminalidade e de pena recomenda a que os atores implicados na interpretao dos conflitos, dos problemas e da busca de solues, realizem tal experimento prescindindo do emprego dos conceitos de criminalidade e de pena, para o fim de que se possa verificar se e como poderiam construir-se no s os conflitos e os problemas, mas tambm suas respostas sob tica distinta da punitiva. g) A especificao dos conflitos em contraposio a resposta punitiva nos deixa a seguinte questo Cmo se pueda aceptar la pretensin de um sistema, como el penal, de responder, com los mismos instrumentos y los mismos procedimentos, a conflitos de tan vasta heterogeneidad? Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 35
h) O princpio geral de preveno oferece uma indicao poltica fundamental para uma estratgia alternativa de controle social. Nesse sentido, a poltica da justia social, a realizao dos direitos humanos, a satisfao das necessidades reais dos indivduos representam muito mais que uma poltica criminal alternativa: constituem a verdadeira alternativa poltica criminal. O sistema penal no apto para proporcionar as defesas mais eficazes dos direitos humanos, pelo fato de que sua interveno esta estruturalmente limitada a formulao de respostas sintomticas aos conflitos e em lugar e no momento em que estes se manifestam dentro do sistema social. i) Por sua vez, a articulao autnoma dos conflitos e das necessidades reais , para Alessandro Baratta, o mais importante dos princpios extrasistemticos. Segundo este princpio a articulao autnoma da percepo e da conscincia dos conflitos, das necessidades reais e dos direitos humanos por parte de seus prprios portadores, em uma comunicao no condicionada pelo poder, e a idia da democracia e da soberania popular so os princpios guia para a transformao do Estado, no s para um modelo formal de Estado de direito, seno tambm para um modelo substancial de um Estado de direitos humanos. Considerando essas premissas e tomando-se em conta que o tema da presente pesquisa ser abordado sob a lente de um direito penal de natureza democrtica e constitucional, nos alinhamos a proposta poltico-criminal do direito penal mnimo, que evoca a instrumentalizao de um dogmtica jurdico-penal em torno de uma concepo delimitadora da interveno punitiva estatal, consubstanciada em uma passagem rumo ao abolicionismo penal. O minimalismo penal ou direito penal mnimo deve ser visto como uma etapa necessria a ser trilhada em direo ao amadurecimento cultural que a superao definitiva do sistema penal reclama 84 .
CAPTULO 2. PRINCPIOS INFORMADORES DA INSIGNIFICNCIA NO DIREITO PENAL
84 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., p. 234. Ver tambm HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertrio. Traduo de Regina Greve; Coord. e superviso Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 36
O princpio da insignificncia aplicvel aos delitos de nfima expressividade coaduna-se com o entendimento predominante e consolidado na doutrina e jurisprudncia, de que num Estado Democrtico de Direito toda interveno penal deve ser realizada com a observncia dos princpios fundamentais do direito penal, com vistas a serem respeitados os direitos e garantias fundamentais do cidado 85 . A conjugao de todos os princpios, por si s, constitui via adequada para se chegar atipicidade dos fatos insignificantes.
2.1. Princpio da fragmentariedade O direito penal tutela bens jurdicos selecionados por critrios polticos criminais dentre aqueles bens definidos na Constituio Federal 86 , ou seja, no protege todos os bens da vida definidos como importantes para o direito. Desta sorte, o tipo no mero indicador de antijuridicidade, mas portador de um sentido de ilicitude, dotado de contedo material com funo seletiva, vale dizer, apto a distinguir entre os inmeros comportamentos humanos aquelas condutas dignas de castigo 87 . Da o carter fragmentrio do direito penal, que no trabalha com clusulas gerais, tal como o direito civil, mas funciona segundo a racionalidade de que determinadas condutas que lesionam bens jurdicos tutelados pela norma material penal so proibidas ao passo que todas as outras condutas so lcitas. Os bens jurdicos selecionados com supedneo na Carta Maior, relevantes para a vida humana individual ou coletiva - v.g., a vida, a integridade e sade corporais, a honra, a liberdade individual, o patrimnio, a sexualidade, a famlia, a incolumidade, a administrao pblica e etc 88 - so tutelados pelo direito penal, mas de forma parcial, o que significa dizer que os bens no so protegidos em todas as suas dimenses e roupagens. A proteo fragmentria, figura rigorosa, est intimamente ligada ao carter subsidirio do direito penal, o qual somente deve ser aplicado como ltima ratio,
85 SILVA, Ivan Luiz da. Princpio da insignificncia e os crimes ambientais. Ano 97, vol. 867, janeiro 2008. Editora Revista dos Tribunais. 86 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Op. cit, p. 05. 87 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios Bsicos de Direito Penal, 5 ed. So Paulo: Ed. Saraiva, 1994, p. 121 88 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op.cit. p. 121. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 37
quando os demais instrumentais que o Estado dispe para proteger o bem da vida tutelado falham 89 . A concepo material de tipo considera duas ordens de valorao consistentes no juzo de desvalor tico-social e na carga valorativa contida no tipo que permite a este ltimo desempenhar importante funo seletiva sobre as mais variadas formas de comportamento humano 90 , dando a nota fragmentria do direito penal. Enfim, o tipo legal, ao lado da funo de garantia 91 , tem uma funo seletiva, determinando o que crime e o que no crime, o que permite um juzo de tipicidade e outro juzo, o de atipicidade. Nilo Batista, nesse sentido, registra que o direito penal consubstancia-se em um sistema descontnuo de ilicitude, em que no se lana mo da analogia nem da colmatao de lacunas, ao inverso, a fragmentariedade d o tom de onicompreenso da tutela penal, impondo, necessariamente, a seleo dos bens jurdicos e das formas com que se possa ofend-los 92 .
2.2. Princpio da subsidiariedade O princpio da subsidiariedade no direito penal pressupe o princpio da fragmentariedade e deriva, na lio de Nilo Batista, de sua considerao como remdio extremo, o qual s deve ser ministrado quando qualquer outra medida no se revele suficiente, vale dizer, a interveno do direito penal apenas se d quando falham as demais barreiras protetoras do bem jurdico. Equivale a dizer, tambm, que o instrumento mais grave no deve ser utilizado quando basta ou se obtm o mesmo resultado com o meio mais suave, se assim no fosse contrariaria os objetivos do prprio direito 93 . A subsidiariedade, consoante o autor, coloca em questo a autonomia do direito penal, que se resolveria em saber se constitutivo ou sancionador. Enquanto constitutivo, o direito penal tutela bens e interesses jurdicos de forma
89 Da a aluso j vulgarizada de que o direito penal o ltimo soldado que se pe na batalha. 90 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op.cit. p. 127. 91 Idem, ibidem. 92 BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 11 ed. Rio de janeiro: Editora Revan, 2007, p. 86. 93 BATISTA, Nilo. Introduo Crtica... Op. cit., m, p. 86-87 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 38
autnoma, ainda que j tutelados por outros ramos do direito. Enquanto sancionador, caracterstica perfilhada pelo autor, o direito penal deve ser examinado objetivamente com a totalidade do ordenamento jurdico. Essa ltima tendncia deve guiar o legislador para o fim de que este no se socorra permanentemente do direito penal. A propsito disso, o texto constitucional seleciona situaes a serem necessariamente tratadas pelo legislador penal naqueles casos essenciais vida, sade e ao bem-estar do povo: chama-se a isso imposio constitucional de tutela penal 94 . As modernas teorias do Estado Mnimo, do direito penal como ultima ratio e o abolicionismo penal, defendem que a lei penal de ser aplicada seno de forma subsidiria a outros meios de coero do Estado, de forma que a atuao penal deve ser residual, dando-se especial ateno necessidade e ao tipo de interveno, bem como aos eficazes efeitos da tutela pretendida. Neste diapaso, quanto ao delito de descaminho, a interveno adequada que aqui se defende a administrativo fiscal, que deve isentar absolutamente o direito penal de se movimentar de forma prematura 95 . Uma das funes do direito penal proteger as condies indispensveis da vida comunitria, assim cumpre ao direito penal, por meio do legislador, selecionar dentre os comportamentos aqueles que consistem em um ato ilcito que realmente merea a sano de natureza criminal, sob uma perspectiva teleolgica e constitucional. uma funo valorativa, que denota a dignidade penal do fato selecionado 96 . A natureza do direito penal subsidiria no sentido de que somente se pode punir leses de bens jurdicos e as contravenes contra fins de assistncia social, se tal for indispensvel para um vida em comum ordenada, pelo que onde bastem o direito civil ou o direito pblico, o direito penal no deve atuar 97
No delito de descaminho, v.g., quando feito o pagamento do tributo, o fato j foi resolvido, aplicar, apesar disto, a pena criminal, seria medida sem funo
94 Idem, p. 89-90. 95 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento da via administrativa nos crimes de descaminho. Revista dos Tribunais, Ano 97, vol.877, Nov 2008, p. 401. 96 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia... Op. cit., p. 401. 97 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia e sua aplicabilidade pela polcia judiciria. In. Revista dos Tribunais. Ano 98, vol. 850, agosto de 2006, p. 481. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 39
alguma, a desconsiderar o princpio da subsidiariedade no direito penal, vez que a extino do crdito com o pagamento do tributo no implica leso ao errio, que o principal bem jurdico tutelado pela norma. Se o contribuinte no recolhe o tributo legalmente constitudo, aps o transito em julgado da deciso condenatria administrativa, a tem lugar a atuao do sistema penal, subsidiariamente ao Fisco 98 . Note-se, do referido exemplo, que a subsidiariedade do direito penal deriva justamente da sua avaliao como remdio sancionador extremo, que deve ser aplicado apenas quando outro se revele verdadeiramente insuficiente. A interveno penal deve se dar unicamente quando fracassam as demais meios para a tutela do bem jurdico. In casu, no lcito ao Estado Penal agir antes do Estado Fiscal, sob pena de negao do princpio da subsidiariedade prprio de um Sistema Penal Democrtico 99 . Dessarte, o descaminho deve ser reduzido a um ncleo essencial, visando consecuo efetiva da misso do direito penal, consistente na tutela dos bens jurdicos mais essenciais, decorrente de uma atuao subsidiria, como ultima ratio 100 . Se a misso do direito penal no Estado Democrtico de Direito deve ser intervir, repita-se, como ultima ratio, compete aos operadores de direito buscar alternativas aptas a tutelar os bens jurdicos individuais ou coletivos, para o fim de, especialmente, planejar sua reestruturao para que se torne efetiva ao ponto de dispensar a coero penal 101 . Aurynei Ucha acresce:
A criminalizao de condutas meramente administrativas, como ocorre no direito penal tributrio, sem uma pesquisa aprofundada dos conceitos de dignidade penal e carncia de tutela penal levar, peremptoriamente, a uma progressiva perda da legitimidade punitiva do Estado. Se banalizado, o direito penal perder sua credibilidade coercitiva, o que levar neutralizao psicolgica de culpa e ao ressurgimento da vingana privada.
98 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia... Op. cit., p. 401 99 Idem, p. 402 100 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia e sua aplicabilidade no delito de contrabando e descaminho. In. Revista Brasileira de Cincias Criminais, Bimestral, ano 16, n 73, julho-agosto de 2008, p. 72 101 BRITO, Auriney Ucha de. Responsabilidade penal... Op. cit., p. 429. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 40
Ou seja, o direito penal no pode perder sua natureza subsidiria, banalizando sua atuao para alm dos limites outorgados pela Carta Constitucional, ao determinar a tutela de determinados bens jurdicos.
2.3. Princpio da lesividade Todo crime pressupe leso de bem jurdico na medida em que no existem crimes de inteno, pensamento, ideao. O princpio da lesividade se destina justamente a evitar que leses irrelevantes sejam objeto da cominao, aplicao e execuo de penas e medidas de segurana. O objeto deste princpio o bem jurdico, devendo ser considerados sua natureza (dimenso qualitativa), bem como a extenso da leso ao bem (dimenso quantitativa) 102 . Qualitativamente, o princpio da lesividade impede a criminalizao primria e secundria excludente ou redutora das liberdades constitucionais, as quais devem ser objeto de maior garantia positiva e menor limitao negativa como objeto de criminalizao por parte do Estado 103 . Quantitativamente, o princpio exclui a criminalizao primria e secundria de leses irrelevantes aos bens jurdicos. Assim que, na lio de Juarez Cirino de Freitas:
o princpio da lesividade a expresso positiva do princpio da insignificncia em Direito Penal: leses insignificantes de bens jurdicos protegidos, como a integridade ou a sade corporal, a honra, a liberdade, a propriedade, a sexualidade etc., no constituem crime. 104
Assinala Nilo Batista que o princpio da lesividade transporta para o terreno penal a questo geral da exterioridade e alteridade do direito, a significar que o direito coloca face a face dois sujeitos, no sentido de que conduta do sujeito autor do crime deve se relacionar com o signo do outro sujeito, o bem jurdico 105 . Reportando-se a Claus Roxin, o autor assevera que:
s pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que no simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o direito penal s pode assegurar a ordem pacfica externa da sociedade, e alm desse limite nem est legitimado nem adequado a educao moral. conduta puramente interna, ou
102 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit, p. 25. 103 Idem, p. 26. 104 Idem, ibidem. 105 BATISTA, Nilo. Introduo Crtica... Op.cit. p. 91 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 41
puramente individual seja pecaminosa imoral, escandalosa ou diferente falta a lesividade que pode legitimar a interveno penal 106 .
Por esta perspectiva, para o professor, o princpio da lesividade teria quatro principais funes, quais sejam: 1) proibir a incriminao de atitudes internas, como idias, convices, desejos, aspiraes e sentimentos, os quais no devem subsidiar o tipo penal, nem se orientam a prtica do crime, como o caso do projeto mental. Nada obstante, o direito penal se interessa pelo dolo, enquanto vontade do autor em levar a efeito a conduta objetiva proibida, bem como se interessa por intenes, motivos e estados especiais de nimo, desde que ligado a uma conduta externa. 2) proibir a incriminao de uma conduta que no exceda o mbito do prprio autor, como os atos preparatrios de um crime cuja execuo no se consumou; o conluio entre duas ou mais pessoas para a prtica de um crime que no foi iniciada; a impunibilidade do crime impossvel, da auto-leso e tambm dos usurios de droga, sem embargo do disposto na Lei anti-drogas, Lei n 11.343/2006, em seu art. 28. 3) proibir a incriminao de simples estados ou condies existenciais, vale dizer, dar efeito ao direito penal do fato, afastando-se o direito penal do autor, no sentido de que o homem responde pelo que faz e no pelo que . Assim, vedada a cominao de pena ao homem pelo sua condio de ser, o que implica, segundo Nilo Batista, excluir do direito penal as medidas de segurana fundadas na periculosidade do autor. 4) proibir a incriminao de condutas desviadas que no afetem qualquer bem jurdico, como as prticas e hbitos de grupos minoritrios e condutas que so objeto apenas de apreciao moral. 107
O princpio da lesividade expressa o valor que possui o bem jurdico, o qual deve ser corretamente definido, porquanto o sinal da lesividade do crime, aponta a materializao da ofensa, que limita e ao mesmo tempo legitima a interveno penal do Estado 108 .
106 Idem, Ibidem. 107 BATISTA, Nilo. Introduo... Op. cit., p. 92-94. 108 Idem, p. 95. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 42
Para ns, o bem jurdico decorre do texto constitucional, dos direitos e garantias fundamentais tutelados pelas normas materiais da Carta Maior. Assevera Nilo Batista que o bem jurdico resulta da criao poltica de crime e sua substncia guarda estrita dependncia daquilo que o tipo ou tipos criados possam informar acerca dos objetivos do legislador, e anota que o bem jurdico no pode formalmente opor-se a disciplina constitucional, explcita ou implicitamente, defere ao aspecto da relao social questionada, funcionando a Constituio particularmente como um controle negativo 109 . Ainda, explicita o autor:
Numa sociedade de classes, os bens jurdicos ho de expressar, de modo mais ou menos explcito, porm inevitavelmente, os interesses da classe dominante, e o sentido geral de sua seleo ser o de garantir a reproduo das relaes de dominao vigentes, muito especialmente das relaes econmicas estruturais 110 .
Resta incontestvel a concluso segundo a qual a interveno penal apenas ser legtima se houver lesividade ao bem jurdico, sendo que a mera interpretao literal da norma no tem capacidade para promover a justia social. 111
2.4. Princpio da adequao social
109 BATISTA, Nilo. Introduo... Op. cit., p. 96. 110 Tambm, o autor aponta cinco funes do bem jurdico: 1, axiolgica (indicadora das valoraes que presidiram a seleo do legislador); 2 sistemtico-classificatria (como importante princpio fundamentador da construo de um sistema para a cincia do direito penal e como o mais prestigiado critrio para o agrupamento de crimes, adotado por nosso cdigo penal); 3 exegtica (ainda que no circunscrito a ela, inegvel que o bem jurdico, como disse Anbal Bruno, o elemento central do preceito, constituindo-se em importante instrumento metodolgico na interpretao das normas jurdico-penais); 4 dogmtica (em inmeros momentos, o bem jurdico se oferece como uma cunha epistemolgica para a teoria do crime: pense-se nos conceitos de resultado, tentativa, dano/perigo etc.); 5 crtica (a indicao dos bens jurdicos permite, para alm das generalizaes legais, verificar as concretas opes e finalidades do legislador, criando, nas palavras de Bustos, oportunidade para a participao crtica dos cidados em sua fixao e reviso). Idem, p. 96-97 111 Atravs do princpio da lesividade, s pode ser penalizado aquele comportamento que lesione direitos de outrem e que no seja apenas um comportamento pecaminoso ou imoral; o direito penal s pode assegurar a ordem pacfica externa da sociedade e alm desse limite no est legitimado e nem adequado para a educao moral dos cidados. As condutas puramente internas ou individuais, que se caracterizem por ser escandalosas, imorais, esdrxulas ou pecaminosas, mas que no afetem nenhum bem jurdico tutelado pelo Estado, no possuem a lesividade necessria para legitimar a interveno penal Maurcio Antnio Ribeiro Lopes Apud BRUTTI, Roger Spode. O princpio... Op. cit., p. 477-497. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 43
Ao lado do princpio da insignificncia est o princpio da adequao social, segundo o qual a conduta formalmente inserida na descrio do tipo seria materialmente atpica, na hiptese de se incluir entre comportamentos socialmente permitidos, caso em que a ao socialmente adequada estaria desde j excluda do tipo, porquanto se realizaria dentro na normalidade social. A adequao social princpio geral que orienta a criao e a interpretao da lei penal 112 , excluindo a tipicidade nos casos em que a ao realizada no contexto da ordem social histrica da vida. so aes socialmente adequadas e, portanto, atpicas, ainda que correspondam descrio do tipo legal 113 . Algumas leses no preenchem nenhum tipo legal de leso, ou seja, no se enquadram no conceito de tipicidade material, por fora de sua adequao social. Assim ocorre com o princpio da insignificncia, que abrange aes no tpicas, pois se o tipo legal descreve injustos penais, ento no pode incluir aes socialmente adequadas 114 . A ao socialmente adequada no necessariamente modelar, de um ponto de vista tico, dela se exigindo apenas que se situe dentro da moldura de comportamento socialmente permitido 115 . Ao inverso do tipo abstrato de comportamento proibido, a conduta socialmente adequada no se insere na descrio esquemtica de uma classe de condutas que sejam danosas ou tico- socialmente reprovadas a ponto de serem reputadas intolerveis pela ordem jurdica 116 . De outro vrtice, observe-se que os tipos, por serem frutos de um juzo de desvalor tico-social e, igualmente, conceitos abstratos, impossvel evitar que suas previses legais tenham um alcance maior do que aquele que deveriam ter, motivo pelo qual so limitados pelos tipos permissivos 117 . Para alm disso,
112 Trata-se, segundo Welzel responsvel por sua introduo no direito penal de um princpio geral da hermenutica TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit., p. 131. 113 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit, p., p. 107. 114 no so tpicas a entrega de pequenos presentes de final de ano a empregados em servios pblicos de coleta de lixo ou de correios, em face de sua generalizada aprovao, no constituem corrupo; jogos de azar com pequenas perdas ou ganhos no so punveis; manifestaes injuriosas ou difamatrias no mbito familiar so atpicas, Idem, Ibidem. 115 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal Parte geral v. 1. 19 ed. So Paulo: Atlas, 2003, p. 119. 116 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit, p. 127. 117 Idem, p.129. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 44
condutas socialmente adequadas e at socialmente necessrias podem, pelo seu aspecto externo ser atradas para o campo de fora do tipo legal de crime 118 . Se o tipo descreve uma conduta proibida, no possvel interpret-lo, em situaes aparentes, como se estivessem igualmente alcanando condutas lcitas, socialmente aceitas e adequadas. De outro giro, a conduta socialmente adequada no causa de justificao 119 , pois est excluda do tipo, vez que se realiza dentro do mbito da normalidade social 120 , ou seja, a adequao social exclui desde logo a conduta em exame do mbito de incidncia do tipo, situando-a entre os comportamentos normalmente permitidos (ou materialmente atpicos) 121 . Note-se que o princpio da adequao social pode alcanar diversas circunstncias que nem sempre estaro dentro dos padres ticos e morais. Nada obstante, quanto a essas eventuais situaes apenas se exige que se enquadrem na moldura do comportamento socialmente permitido dentro do quadro da liberdade de ao social, como expe Toledo, reportando-se Welzel 122 . Zaffaroni e Pierangeli aduzem que a teoria da adequao social da conduta implica um corretivo de tipicidade legal, de acordo com a tipicidade comglobante, porquanto remete tica social. Os autores consideram arriscado a questo sair do campo normativo e passar ao campo da tica, especialmente em funo da amplitude da remisso que pode ser concedida 123 . Haveria, assim, remisses da ordem jurdica tica social, freqente nos tipos penais. Como exemplos, so citados: a) os tipos culposos, em que, para precisar o dever de cuidado, necessrio recorrer s normas sociais de conduta e; b) os casos de determinao da posio de garante, em que tambm se apela as mesma fontes e, c) os tipos dolosos em que h elementos normativos que remetem s valoraes tico-sociais (conceito de honestidade art. 216, caput, do CP-, conceito de obscenidade arts. 233 e 234 do CP) 124 . Destarte, os
118 Idem, ibidem. 119 No necessrio ao agente recorrer a uma causa de justificao para alcanar a impunibilidade do fato, vez que este atpico, ou seja, no possui desde logo a tipicidade material. 120 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit., p. 131. 121 Idem, p. 132. 119 Idem, Ibidem. 123 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Vol. 1. Parte Geral. 6 Ed. rev. e atual. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 483 124 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 45
autores compreendem a teoria da adequao social de forma diversa, pois, no talante aos exemplos citados, no acreditam que:
Essas comprovaes autorizem uma ampliao to generalizada das pontes estendidas da tipicidade tica social, nem uma teoria geral to ampla, cuja abertura, frequentemente, a associa ao velho conceito de antijuridicidade material. De outra parte, os casos que se pretendem resolver com recurso a essa teoria (adequao social) so tantos, e to diversos, que praticamente demonstram que se trata de um conceito pouco claro, que se pretendeu usar para resolver quase todas as questes que com certeza no se sabia como solucionar.
A crtica teoria de Welzel fechada nos seguintes termos: a tipicidade comglobante no como a teoria da adequao social da conduta uma concepo corretiva proveniente da tica social material, e sim uma concepo normativa. 125 . Ao contrrio do pensamento por ns perfilhado (Prof. Juarez Cirino dos Santos). Apesar de ser perigoso valorar a conduta no plano tico social, saindo do plano normativo, no se pode descuidar de semelhante princpio geral de hermenutica, que reduz os tipos penais e representa o mbito suportvel 126 de atuao social, permitindo, inclusive, o reconhecimento do princpio da insignificncia no caso concreto.
2.5. Princpio da interveno mnima A interveno mnima consiste em uma tendncia poltico-criminal que defende a reduo ao mnimo da soluo punitiva nos conflitos sociais, em considerao ao efeito, em geral, contraproducente da ingerncia penal do Estado, cuja interveno muitas vezes agrava o conflito ao invs de resolv-los 127 . Em um sentido mais amplo, quer significar que o direito penal deve intervir sempre que o ataque aos bens jurdicos mais importantes, protegidos constitucionalmente, seja sobremaneira ignbil. As demais leses a outros bens
125 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p.484. 126 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., p. 345-347.. 127 Idem, p.309. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 46
jurdicos devem ser tratados pela via civil ou administrativa, por vias extra- penais 128 . O crime difere das infraes extra-penais qualitativamente, porquanto consiste em um delito de natureza grave a revelar uma culpabilidade mais elevada, merecendo no maior das vezes a cominao da pena, com a consequente constrio da liberdade ou direitos. Por fora deste princpio, para merecer a sano penal, o delito deve ser um injusto deveras grave e com uma culpabilidade tambm elevada. A pena deve ser reservada para os casos em que constitua o nico meio de proteo suficiente da ordem social frente aos ataques relevantes 129 . Desta sorte, aqueles fatos em que a conduta, em tese criminosa, no implique risco concreto ou leso a nenhum dos bens da vida, tutelados pela norma material constitucional, no devem ser incriminados 130 . Alinhava Nilo Batista que este princpio, apesar de no estar inscrito expressamente na Constituio e no Cdigo Penal, integra a poltica criminal, impondo-se ao legislador e ao intrprete da lei, enquanto um princpio imanente, compatvel e conectado logicamente com outros princpios jurdico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos polticos do Estado de direito democrtico 131 . O princpio alm de se dirigir ao magistrado 132 que comina a pena, dirigi-se ao legislador que deve buscar na realidade ftica o substancial dever-ser para tornar efetiva a tutela dos bens e interesses considerados relevantes quando dos movimentos de criminalizao, neocriminalizao, descriminalizao e despenalizao 133 .
128 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual....Op. cit. p.57. 129 Idem, p. 119. 130 Idem, p. 120. 131 BATISTA, Nilo. Introduo... Op. cit., p. 85. O autor ainda afirma que o princpio da interveno mnima relacionado a dois outros princpios do direito penal, quais sejam a fragmentariedade e a subsidiariedade, sendo que este ltimo introduz o debate acerca da autonomia do direito penal, sobre sua natureza constitutiva ou sancionadora. 132 Ainda, de acordo com o que dispe o art. 59 do Cdigo Penal a pena deve ser estritamente necessria e suficiente para a reprovao do crime, para o fim de se impedir o excesso punitivo. 133 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual....Op. cit., p.120. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 47
Sem embargo do exposto supra, o Professor Andr Lus Callegari faz uma crtica ao discurso retrico que permeia o princpio da interveno mnima, dizendo que na nova sociedade o Estado:
ampliou sobremaneira sua interveno com a proliferao de infraes penais e administrativas num claro processo de cesso (redobrar) do princpio da interveno mnima. O que se chamou de administrao do Direito Penal ou carter meramente sancionatrio do direito penal, afastando-se de sua funo mnima de tutela de bens jurdicos, parece uma constante do direito vigente que comea a consolidar-se, sancionando meras desobedincias ou descumprimentos de processos regulamentadores 134
Segundo o autor, este processo expansionista antecipa a interveno penal s esferas distantes da leso de bens jurdicos e formas culposas e omissivas de leso, o que seria um processo inevitvel ante um Estado que tem que responder a expectativas contrapostas, a demandas de maior interveno estatal em vrios mbitos, de forma que, coadunar tal contexto de transformao social crescente e heterognea - com o princpio da interveno mnima , em tese, um objetivo insustentvel 135 . Modernamente, vislumbra-se o direito penal em uma incontida expanso, como se no existissem outros mecanismos de controle social vlidos e eficazes 136 . Assim o princpio da interveno mnima, que deveria ter real eficcia normativa no contexto da adaptao constitucional, sobrepujado pela criminalizao primria e secundria. Zaffaroni e Pierangeli afirmam que, em nosso contexto da Amrica-Latina, necessrio um reforo ao princpio da interveno mnima, vez que estaramos sofrendo as conseqncias da violao aos direitos humanos, consistente no comprometimento do nosso direito ao desenvolvimento (injusto jushumanista), consagrado na Declarao Universal dos Direitos Humanos. Estas conseqncias seriam traduzidas no aumento das contradies e da violncia social interna, com o conseqente genocdio interno e destruio do sistema produtivo, submetendo-
134 CALLEGARI, Andr Lus, MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e Poltica... Op.cit. p. 2. 135 Idem, p. 2-3. 136 Idem, p. 3. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 48
nos a um subdesenvolvimento ainda pior, como decorrncia de uma violncia incontrolvel 137 . Sob esta perspectiva, se a interveno penal violenta, pouco apresenta de racional e resulta em mais violncia, produzindo, ainda o injusto jushumanista, acentuado seus graves efeitos. Diante disso, o sistema penal deve corresponder ao princpio da interveno mnima, traduzida pela idia de que o direito penal deve servir como um instrumento de proteo subsidiria e fragmentria, encontrando, ainda arrimo constitucional na inviolabilidade do direito liberdade.
2.6. Princpio da proporcionalidade A subsidiariedade nsita ao direito penal, enquanto ltima forma de tutela oferecida pelo aparelho do Estado, tem seus contornos limitados pelo princpio da proporcionalidade, segundo o qual os meios adequados devem ser os meios estritamente necessrios, eis que o bem sacrificado pode ser mais relevante que o tutelado, caso em que o sacrifcio do bem - v.g. liberdade, dignidade - incabvel. Neste sentido, Cirino dos Santos ressalta que as sanes cominadas pelo direito penal podem ser inadequadas e desnecessrias em dois sentidos. Primeiramente, nos casos em que o desvalor do resultado mnimo e a conduta no deve ser punida pelo direito penal, mas constituir contraveno penal ou permanecer na seara da responsabilidade civil. De outro vrtice, se o desvalor do resultado for mximo, as medidas constritivas no devem ser absurdamente desproporcionais. 138
No se trata de uma frmula matemtica, mas sim de um princpio geral de interpretao, aplicao e execuo da lei penal material. Preleciona o mesmo autor que o princpio constitudo por trs sub-princpios bsicos consistentes na adequao, na necessidade e na proporcionalidade em sentido estrito. 139
O princpio da adequao, bem como o da necessidade, tm por fim otimizar as possibilidades da realidade no sentido de conferir aos fins meios estritamente adequados e necessrios. A frmula da aplicao dos princpios pode ser
137 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 72-73. 138 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., p. 26. 139 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., p.26 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 49
vislumbrada por meio da seguinte investigao, conforme Cirino: a pena criminal um meio adequado (entre outros) para realizar o fim de proteger um bem jurdico? e a pena criminal (meio adequado, entre outros) , tambm, meio necessrio (outros meios podem ser adequados, mas no seriam necessrios) para realizar o fim de proteger um bem jurdico? 140 . Por sua vez, o princpio da proporcionalidade em sentido estrito tem por fim a otimizao das possibilidades jurdicas ao nvel da definio legal dos crimes (criminalizao primria) e ao nvel da aplicao e execuo das penas criminais (criminalizao secundria), tambm podendo ser vislumbrada mediante a seguinte investigao: a pena criminal cominada e/ou aplicada (considerada meio adequado e necessrio ao nvel da realidade) proporcional natureza e extenso da leso abstrata e/ou concreta do bem jurdico? 141 . Sem embargo, com a descodificao e a criao de micro sistemas legislativos, agravou-se a clarividente incoerncia do sistema de poltica criminal, consistente na desproporcionalidade e irrazoabilidade das sanes previstas abstratamente no Cdigo e nas legislaes extravagantes. Assim, o objetivo maior de integrar princpios meios e fins ou harmonizar os meios e os fins da realidade com os princpios jurdicos fundamentais do povo 142 resta debelado pelo arbtrio das normas penais fabricadas pelos obreiros do discurso oficial. Em tese, o princpio da proporcionalidade, de dignidade implicitamente constitucional, tem o condo de evitar que penas excessivas ou desproporcionais sejam aplicadas, seja pelo desvalor da ao, seja pelo desvalor do resultado 143 , neste ltimo caso, as leses insignificantes devem ser descartadas, face inexistncia de tipicidade material. Num aspecto defensivo, exige-se uma proporo entre o desvalor da ao praticada pelo agente e a sano a ele infringida, e, num aspecto prevencionista, um equilbrio entre a preveno geral e a preveno especial para o comportamento do agente que vai ser submetido sano penal 144 .
140 Idem, p. 27. 141 Idem, ibidem. 142 Idem, ibidem. 143 Idem, ibidem. 144 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual... Op. cit., p. 57. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 50
Segundo as lies do professor Juarez Cirino dos Santos, o princpio da proporcionalidade possui uma dimenso concreta e outra abstrata. Assim, a proporcionalidade abstrata conduz a que a criminalizao primria - a definio legal de crimes e penas -, tem que se limitar a graves violaes dos bens da vida - e no violaes bagatelares -, para o fim de delimitar a aplicao de sanes de acordo com a natureza e extenso do dano social levado a efeito pelo crime. Neste talante, imperioso proceder adequao das penas em escalas, de acordo com o bem jurdico lesado e a gravidade da leso. 145
De outro giro, pelo princpio da proporcionalidade concreta, possibilita-se equacionar os custos individuais e sociais da aplicao e execuo das penas criminais - criminalizao secundria. Isto significa dizer que o custo/benefcio do crime/pena e os custos sociais da decorrentes para o condenado, sua famlia e a sociedade devem ser proporcionais. Entretanto, a pena enquanto como troca jurdica medida pelo tempo de liberdade constrita constitui investimento deficitrio da comunidade e, os custos sociais da criminalizao secundria agravam o conflito social representado pelo crime e agravam sobremaneira o sofrimento do condenado e de sua famlia, especialmente das classes sociais subalternas 146 . O princpio da proporcionalidade concreta pode compensar as desigualdades sociais originrias da criminalizao secundria, para neutralizar ou diminuir a seleo de sujeitos com base nos indicadores sociais de pobreza, desemprego, favelizao. O juiz, no momento da reprovao do crime e da aplicao da pena, se vale destes critrios compensatrios, ainda que eivado de critrios prprios, subjetivos. 147
Enfim, este princpio reclama a medida de justo equilbrio entre a magnitude da sano penal e a magnitude do injusto penal e da culpabilidade do autor 148 , ou seja, reclama o princpio da isonomia no mbito do direito penal.
2.7. Princpio da Dignidade da Pessoa Humana
145 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., p. 28 146 Cf. CIRINO, as classes sociais inferiores so a clientela preferencial do sistema de justia criminal, selecionada por esteretipos, preconceitos, idiossincrasias e outros mecanismos ideolgicos dos agentes de controle social, ativados por indicadores sociais negativos de pobreza, marginalizao do mercado de trabalho, moradia em favelas etc Idem, p. 28-29. 147 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal... Op. cit., p. 29. 148 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos... Op. cit., p. 379. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 51
O Estado Democrtico de Direito tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, inscrito no art. 1, inc. III, da Carta Maior. Tal princpio rege a poltica criminal no sentido de impedir a violao de direitos humanos com a aplicao e execuo de sanes. Inobstante, o encarceramento nas cadeias e presdios pblicos brasileiros constitui verdadeira leso intensa e contnua dignidade humana e aos direitos humanos 149 . A dignidade da pessoa humana, princpio geral de racionalidade que deriva da Constituio ou do princpio republicano 150 , exige vinculao entitativa entre o delito e sua conseqncia jurdica 151 , conduzindo a proscrio de penas cruis 152 , de banimento, de trabalho forado, perptua e de morte, ou seja, qualquer pena que desconsidere o homem como ser humano, na forma do que dispe o art. 5, inc. XLVII, da Constituio Federal 153 . A dignidade da pessoa humana determina a inconstitucionalidades das penas que criem impedimentos fsicos permanentes. Por fora deste princpio, na execuo das sanes penais deve existir uma responsabilidade social com relao ao sentenciado, em uma livre disposio de ajuda e assistncia sociais direcionadas a sua recuperao 154 . O princpio da dignidade da pessoa humana implica na racionalidade e proporcionalidade da pena, na interveno mnima e no princpio da lesividade, para o fim de no desconhecer o ru como pessoa humana, bem como o livre desenvolvimento de sua personalidade. Igualmente intervm na cominao, na aplicao e na execuo da pena, e neste ltimo terreno tem hoje, face posio dominante da pena privativa de liberdade, um campo de interveno especialmente importante 155 .
149 Idem, p. 30. 150 PRADO, Luiz Regis. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral Volume 1. 3 Ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 154. 151 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p.154. 152 Sem embargo da Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948) e de outros pactos internacionais, certo que h violaes terrveis aos direitos humanos, mas hoje o poder tem de comet-las mais abertamente, pois j no h idelogos srios que se atrevam a sustentar um direito natural que as implique, sem envergonhar-se. absurdo pensar que uma lei ou limite legal detenha, por efeito mgico, o poder. Mas muito mais absurdo seria negar que esse limite serviu e serve para desmascar-lo Idem, p. 60-61. 153 Idem, ibidem. 154 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual... Op. cit., p.57. 155 BATISTA, Nilo. Introduo... Op. cit., p. 100. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 52
A racionalidade da pena proscreve que ela tenha um sentido incompatvel com o ser humano, pelo que no pode ela consubstanciar-se num rito expiatrio ou numa sano puramente negativa, representando um fim em si mesma. A desumanidade da pena, consoante Zaffaroni, produz mais alarma social do que o prprio crime em si. O Estado Democrtico de Direito tem uma dimenso antropocntrica, porquanto tem por fundamento, principalmente, na dignidade da pessoa humana, Semelhante dimenso impede a edio de leis com efeitos simblicos e desproporcionais, voltadas inibio da pratica de crimes, utilizando um condenado e sua respectiva pena como exemplo sociedade. Nesse sentido, veja-se que criminalizar condutas nmias seno uma funo simblica, que penaliza o agente enquanto bode expiatrio, ferindo sobremaneira sua dignidade pessoal. Portanto, em um Estado Democrtico e Social de Direito, em virtude do sistema de positivao de direitos fundamentais, a misso do direito penal a tutela subsidiria de bens jurdicos em nome da coexistncia social pacfica 156 , promovendo a dignidade da pessoa humana, sob pena de transformar-se (sic) em mero exerccio arbitrrio de poder.
CAPTULO 3. O PRINCPIO NA INSIGNIFICNCIA A origem remota do princpio da insignificncia ocorreu no direito romano com a mxima contida no brocardo latino minima non curat pretor, na perspectiva do direito privado, porquanto pouco se conhecia sobre o alicerce da legalidade do direito penal. A origem prxima do princpio verificada no sculo XX. Com as severas dificuldades econmicas aps a segunda guerra no continente europeu e o consequente aumento da criminalidade de bagatela, expresso preferida dos alemes (Bagatelledelikte), nasceu o princpio da insignificncia vinculado inicialmente aos crimes patrimoniais 157 .
156 BRITO, Auriney Ucha. Responsabilidade penal... Op. cit., p. 434. 157 GOMES FILHO, Dermeval Farias. A Dimenso do Princpio da insignificncia. In 3 edio da Revista Eletrnica da Justia Federal da Seo Judiciria do Distrito Federal- TRF1. Disponvel em http://www.mpdft.gov.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=1654&Itemid=93. Acesso em 23 de junho de 2010. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 53
Claus Roxin, em 1964, foi o responsvel pela formulao terica do precitado princpio, para a determinao do injusto (das Geringfgigkeitsprinzip), que atuaria como regra auxiliar de interpretao, capaz de limitar o alcance da tipicidade aos crimes bagatelares ou excluir os danos de pouca importncia 158 . Com espeque na caracterstica fragmentria do direito penal, defendeu-se o princpio da insignificncia para afastar a tipicidade de condutas que ofendessem de forma irrelevante o bem jurdico tutelado 159 , dentro da concepo material de tipo. Quando h nfima afetao do bem jurdico tutelado, o contedo do injusto sobremodo pequeno, de forma que no subsiste razo para apenar, diferentemente de quando o fato acarreta uma ofensa de magnitude considervel a fim de que se possa fazer um juzo positivo de tipicidade 160 . Infere-se do princpio da insignificncia que o direito penal, por sua natureza fragmentria, s age at onde imprescindvel para a tutela do bem jurdico, no devendo ocupar-se de delitos bagatelares. Para Zaffaroni e Pierangeli a insignificncia decorre do fato de que a afetao de um bem jurdico exigida pela tipicidade penal requer sempre alguma gravidade, vez que nem toda afetao mnima do bem jurdico capaz de configurar a afetao requerida pela tipicidade penal 161 . Assim, v.g., o descaminho
158 , No h dano ou furto quando a coisa alheia no tem qualquer significao para o proprietrio da coisa; no existe contrabando na posse de pequena quantidade de produto estrangeiro de valor reduzido, que no cause uma leso de certa expresso para o fisco; no h crime contra a honra quando no se afeta significativamente a dignidade, a reputao, a honra de outrem; no h leso corporal em pequenos danos integridade fsica; no h maus tratos quando no se ocasiona prejuzo considervel ao bem estar corporal; no h dano no estrago ao patrimnio pblico de pequena monta; no h estelionato quando o agente se utiliza de fraude para no pagar passagem de nibus; no h furto quando a res subtrada economicamente insignificante; no h corrupo passiva quando o funcionrio aceita um mimo de pequena expresso econmica e etc., MIRABETE, Julio Fabrini. Manual... op. cit. p. 118. Ver tambm Francisco de Assis Toledo. Princpios Bsicos de Direito Penal, 5 ed. So Paulo: Ed. Saraiva, 1994, p. 119-133 et sequ. 159 GOMES FILHO, Dermeval Farias. A Dimenso... Op. cit. 160 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual... op.cit. p. 118. 161 Assim, a conduta de quem estaciona o seu veculo to prximo a nosso automvel, a ponto de nos impedir a sada, no configura uma privao de liberdade; nem os presentes de uso, como as propinas aos servidores pblicos por ocasio do natal, configuram uma leso imagem pblica da administrao, configuradora da tipicidade do art. 317 do CP; nem arrancar um fio de cabelo, por mais que possa ser considerado uma ofensa integridade corporal (art. 129, caput, do CP), resulta numa afetao do bem jurdico tpico de leses; nem a subtrao de um palito de fsforo da caixa que encontramos no escritrio do vizinho configura um furto, ainda que se trate de uma coisa mvel totalmente alheia. ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual p.482. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 54
do art. 334, 1, d, no ser certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor reduzido, indique leso tributria de certa expresso, para o Fisco 162
Como j vimos supra, o injusto admite gradao qualitativa e quantitativa, podendo apresentar-se de modo diferente e localizado, de forma a permitir que o injusto civil, administrativo e etc, no seja, necessariamente, um injusto penal 163 . Quer isto significar que a gradao permite que o fato penalmente insignificante seja excludo da tipicidade penal, mas pode receber tratamento adequado se necessrio, como ilcito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais 164 .
3.1. A dignidade constitucional do princpio da insignificncia A Constituio Federal de 1988 inaugurou uma crise de paradigmas em cujo cerne est a tese da fora normativa da Constituio, a qual pode ser boa ou m, dependendo dos interesses em jogo 165 . No interior deste panorama, divisa-se que a Constituio tem fora normativa quando se trata dos interesses da classe dominante, enquanto apenas uma carta de intenes quando se discutem interesses sociais das camadas excludas 166 . O Poder Judicirio, nesta perspectiva, tem o poder dever de condicionar a legislao, a jurisprudncia, a doutrina e a ao dos agentes pblicos ao constitucionalismo, a fim de implementar o novo paradigma representado pelo Estado Democrtico de Direito, acatando a parametricidade formal e material da Constituio 167 . Neste talante, a relao do direito penal com o direito constitucional deve ser sempre muito estreita. A propsito, a Constituio Federal a primeira manifestao da poltica penal, impondo a racionalizao dos atos do poder pblico e tambm do poder judicirio, o que leva, cogentemente, a uma interpretao lgica e coerente do sistema penal como um todo.
162 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit., p. 119 et sequ. 163 Idem, p.120. 164 Idem, p.134. 165 STRECK, Lnio Luiz. Uma Viso Hermenutica... Op. cit.. 129. 166 Idem, p. 130. 167 Idem, 130-131. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 55
O princpio da insignificncia um instrumento de maior fora do direito penal contemporneo para correo dos desvios oriundos da aplicao das leis penais ao longo do tempo e compe a base de sustentao do direito penal democrtico 168 . tambm um instrumento poltico-criminal sistemtico de descriminalizao, de acordo com a moderna dogmtica jurdico-penal- constitucional. Este princpio est reconhecido implicitamente na Constituio Federal, mais precisamente no art. 1, inc. III 169 , art. 3, incs. I, II e IV 170 , e art. 5, caput 171 , porquanto ajustado estrutura garantstica do estado Social e Democrtico de Direito, e concretizado legislativa, judicial e administrativamente 172 .
O princpio da insignificncia valoriza o princpio da dignidade da pessoa humana ao conferir um padro de atuao tica ao direito penal, resultante da interveno da pena criminal no direito de liberdade nos momentos de mxima gravidade.
O Estado, ao se valer do direito penal pra evitar aes ou omisses que lesem diretamente ou indiretamente sua estrutura econmica, deve observar o princpio do Estado Democrtico de Direito, preceitos asseguradores dos direitos humanos e da cidadania e, notadamente, da dignidade da pessoa humana, valor fundamentador dos direitos fundamentais, inclusive do princpio da insignificncia 173 . A tutela penal sempre voltada para a proteo de bens jurdicos de relevante valor, portanto deve observar os princpios constitucionais que orientam o Direito Penal em face dos direitos e garantias fundamentais do cidado 174 e
168 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia e sua aplicabilidade no delito de contrabando e descaminho. In. Revista Brasileira de Cincias Criminais, Bimestral, ano 16, n 73, julho-agosto de 2008, p. 55. 169 Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; 170 Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidria; II - garantir o desenvolvimento nacional; (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao. 171 Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: 172 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 55. 173 Idem, Op. cit., p.72. 174 SILVA, Ivan Luiz da. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 471. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 56
reservar ao campo da aplicao penal as condutas que efetivamente impliquem ofensa aos valores fundamentais do meio social. Nesse sentido, partindo-se da concepo personalista da Constituio, que tem como valor mxime a dignidade da pessoa humana, nenhum dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados pode sofrer limitao ou restrio seno em funo da tutela de outro bem de equivalente magnitude. Concatenando o direito penal e o direito tributrio mediante uma leitura constitucional, afigura-se que a atribuio de relevncia penal s relaes obrigacionais tributrias, desprovido de um estudo sistmico e teleolgico, ao invs de atenuar os distrbios sociais, acaba por agrav-los, pois, alm de violar os direitos fundamentais, no apresenta resultados positivos prometidos pelo discurso criminalizador 175 . A criminalizao de delitos tributrios, resolveis na via administrativa ou insignificantes, vai de encontro ao Constitucionalismo, e deve causar preocupao ante a consagrao dos direitos fundamentais da pessoa humana, to duramente alcanados 176 . A responsabilizao criminal de condutas atentatrias a ordem tributria deve ter viabilidade constitucional, luz da verdadeira misso do direito penal no Estado Democrtico e Social de Direito 177 .
3.2. Definio do princpio da insignificncia O princpio da insignificncia no est inserto na nossa legislao penal 178 , portanto, um princpio implcito de interpretao restritiva, interativa do direito penal, desde que no contra legem 179 , que admite apartar a tipicidade material de condutas que provocam insignificante leso ao bem jurdico tutelado pela lei material 180 .
175 BRITO, Auriney Ucha de. Responsabilidade penal tributria... Op. cit., p. 429. 176 Idem, p. 430. 177 Idem, Ibidem. 178 J integra expressamente o Direito penal militar (Cdigo Penal Militar), mas no o comum, salvo o disposto no art. 168-A, 3 (crimes previdencirios), que permite interpretao nesse sentido GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia e outras excludentes de tipicidade. Coleo direito e cincias afins, v. 1, (Coord. Alice Bianchini et alii). So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 68. 179 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual... Op. cit., p. 118. 180 Ver MAAS, Carlos Vico. O princpio da insignificncia como excludente da tipicidade do direito penal. So Paulo: Saraiva, 1994. MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 57
Por este princpio, divisa-se possvel alcanar judicialmente e sem macular a segurana jurdica, a proposio poltico-criminal da necessidade de descriminalizao de condutas, que nada obstante sejam tpicas, no afetam relevantemente os bens jurdicos tutelados pela norma material de direito penal 181 . Segundo a lio de Jlio Dalton Ribeiro:
autntico princpio sistmico, decorrente da prpria natureza fragmentria do direito penal. Empresta juzo transcendental estrutura primria do tipo penal, cujo preenchimento no se contenta mais com a mera acomodao formal de seus termos. de raciocnio superior, pois informado de inicialidade conteudstica fundada em pressupostos ticos fundamentais, e possui carter vinculante para outros princpios e normas do direito penal. Determina a validade da lei penal exigindo um significado juridicamente relevante para legitim-la. 182
Ainda, o princpio um juzo de valor social que se projeta sobre todas as condutas delituosas, informando o tipo penal com um contedo substantivo, bem como autorizando a sua incidncia ante uma avaliao positiva do grau de repercusso jurdico social de que deve revestir uma conduta para o efeito de ingressar no terreno da incidncia das normas penais 183 . Consiste em uma mxima de interpretao tpica voltada ao bem jurdico protegido e funciona dogmaticamente como critrio geral interpretativo de excluso da tipicidade, a qual reclama um contedo material para sua apreciao, caracterizado pela ofensa concreta e relevante ao bem jurdico tutelado, ou tica e socialmente reprovvel 184 . Todos os princpios acima apreciados so fundamentos ou corolrios do princpio da insignificncia, a informar a relao da pena com a gravidade do delito, afastando a interveno do direito penal quando a ao, por sua inexpressividade, no chega a atentar contra os valores tutelados pelo direito penal. Isto leva, consequentemente, a que a pena privativa de liberdade, to danosa, s seja aplicada, com reservas, s condutas tpicas de relevante valor social 185 .
181 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 54. 182 Idem, p. 56 183 Idem, p. 56-57. 184 Idem, p. 57-58. 185 Idem, p. 58. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 58
Demais disso, o princpio da insignificncia ajusta-se a equidade e a correta interpretao do direito. Pela equidade acolhe-se o sentimento de justia inspirados nos valores vigentes numa sociedade, liberando-se o agente, cuja ao inexpressiva no chega a afetar os bens jurdicos tutelados pelo direito penal. Pela correta interpretao do direito, se exige uma exegese mais refinada, que no pode se ater a critrios inflexveis, sob pena de distorcer o sentido da norma e implicar injustias 186 . Ao delito acobertado pelo referido princpio, falta a reprovabilidade do fato, a qual deixa de ter valor relevante, devendo-se ressaltar que a conduta tpica nunca isenta de valor, mesmo quando ocorre causa de ilicitude. Tambm, segundo Odone Sanguin 187 , aludido por Dalton Ribeiro, o princpio da insignificncia enquanto descriminalizador tambm reconhecido nos delitos de massa contra o patrimnio, nos seguintes termos:
a) os custos sociais para a ordem pblica no caso de se manter a incriminao e persecuo penal resultariam superiores benefcios; b) seria eficaz e seguro alvio da justia criminal, dado o carter massivo dessa criminalidade, pois, do contrrio, haveria o perigo de sobrecarregar o sistema penal com prejuzo efetividade da tutela jurisdicional em relao aos fatos mais graves; c) os autores desses fatos so muitas vezes pessoas que no cometem outros crimes e que, por isso, no tero mais quaisquer outros contatos com a experincia traumatizante do sistema penal; e d) a tutela da propriedade sempre poder contar com o recurso proteo jurdico civil.
A finalidade do princpio reside na diminuio do campo de incidncia do direito penal, corroborando os princpios da fragmentariedade e da subsidiariedade, reservando-o para a tutela dos valores sociais mais relevantes. Ou seja, promove a tutela racional dos bens jurdicos pelo direito penal, pois somente racional a proteo quando no possvel outorg-la outro ramo do direito, ou quando o outro ramo tutela de forma insuficiente e inadequada 188 . Presta-se, igualmente, a corrigir o imperfeito processo legislativo, bem como dirimir a divergncia entre o conceito formal e material de delito 189 .
186 Idem, p. 59. 187 Idem, p. 49. 188 Idem, p. 60. 189 Idem, 61. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 59
Com arrimo na lio de Roger Sponde Brutti 190 , pode-se dizer que o princpio da insignificncia caracteriza-se como apoio eficaz para a descriminao, sendo claro seu valor na compreenso e interpretao das normas penais, avalizando a equiparao da lei penal dinmica social, fato que proporciona modificao na nossa estrutura cientfico-penal atual. Esse princpio constitucional implcito, ligado fragmentariedade do direito penal e tantos outros princpios, deve ser utilizado pelos operadores processuais no momento da promoo de arquivamento da investigao, do no recebimento da ao penal e da absolvio. Insta salientar que o fato de uma conduta consubstanciar infrao de menor potencial ofensivo no admite a aplicao a priori do princpio da insignificncia, pois a valorao dessas infraes j foi feita pelo legislador e cabe ao intrprete, neste aspecto, respeitar a reserva legal 191 . Mas, nos juizados especiais criminais possvel a aplicao do princpio da insignificncia pra excluir a incidncia da lei penal quando a infrao de menor potencial ofensivo no tenha ofendido materialmente o bem jurdico tutelado pela norma. Tambm, no se pode confundir pequeno valor da coisa que foi subtrada com valor insignificante, porquanto no primeiro caso h abrandamento da pena e no segundo excluso da tipicidade. Preleciona Zaffaroni e Pierangeli que a insignificncia da afetao exclui a tipicidade, mas s pode ser estabelecida atravs da considerao comglobada da norma que consiste no fato de que a:
ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que a garantia jurdica para possibilitar uma coexistncia que evite a guerra civil (a guerra de todos contra todos). A insignificncia s pode surgir luz da finalidade geral que d sentido ordem normativa, e, portanto, norma em particular, e que nos indica que essas hipteses esto excludas de
190 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia e sua aplicabilidade pela polcia judiciria. In. Revista dos Tribunais. Ano 98, vol. 850, agosto de 2006, p. 482. 191 o princpio da insignificncia e a lei 9.099/95, que disciplina os juizados especiais criminais consistem em tcnicas de despenalizao de natureza jurdica distintas; pois enquanto aquele uma soluo penal de natureza material, esta ltima insere-se entre as solues de carter processual. Em sendo assim, no vislumbramos bice algum na coexistncia de ambos os institutos no sistema penal brasileiro. O sistema penal brasileiro utiliza o Princpio da Insignificncia como soluo de direito material para tratar crimes de bagatela (condutas penalmente insignificantes) e, por outro lado, emprega a Lei 9.099/95 para tratar processualmente, as infraes penais de menor gravidade. SILVA, Ivan Luiz da. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 479. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 60
seu mbito de proibio, o que no pode ser estabelecido simples luz de sua considerao isolada 192
Por sua vez, Luiz Flvio Gomes conceitua infrao bagatelar como delito de bagatela ou crime insignificante ou de pouca relevncia, ou seja, consiste em uma conduta que afeta o bem jurdico de forma to irrelevante que no reclama a interveno penal, porquanto resultaria desproporcional, motivo pelo qual os fatos insignificantes devem ser reservados a outras mbitos do direito, v.g. civil, administrativo, trabalhista etc. Dessa forma, quando se est diante de um fato que rigorosamente insignificante, no se pode falar em infrao. 193
A conseqncia natural da aplicao do critrio da insignificncia a excluso da responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouca importncia ou de nfima lesividade. Consubstanciam-se em fatos materialmente atpicos, mas formalmente tpicos, sendo que, se a tipicidade penal formada necessariamente pela tipicidade formal mais tipicidade normativa ou material, obviamente o fato insignificante atpico 194 . O autor divide as infraes bagatelares em duas espcies: a) Infrao bagatelar imprpria, so os casos em que se aplica o princpio da irrelevncia penal do fato. A infrao nasce relevante para o direito penal, mas depois se verifica que a incidncia de qualquer pena no caso concreto apresenta- se totalmente desnecessria. b) Infrao bagatelar prpria, o princpio a ser aplicado o da insignificncia ou de bagatela, que tem o efeito de excluir a tipicidade material. Neste tipo de infrao no h que se perquirir o animus do agente, seus antecedentes, sua vida pregressa etc. O fato atpico e no incide o direito penal, ou seja, impe-se a aplicao do princpio da insignificncia, sem a contaminao dos critrios subjetivizantes 195 tpicos do princpio da irrelevncia penal do fato, devendo levar
192 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 483. 193 GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 15. 194 Idem, p. 50, 195 o sujeito deve ser punido pelo que concreta e objetivamente faz, no pelo que . Em direito penal no devemos nunca considerar ou reconhecer o delito pelo que o sujeito ostenta (antecedentes, reincidncia etc.), seno pelo que ele praticou objetivamente, e na medida em que afetou o bem jurdico protegido GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 18 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 61
em conta os contornos de aplicabilidade 196 que orientam a incidncia do princpio da insignificncia, que sero mais adiante expostos. O princpio da insignificncia (fundamento da infrao bagatelar prpria) se volta a reconhecer a irresponsabilidade penal do fato ofensivo inexpressivo ou da ao banal e sem relevncia penal. Permite no processar condutas socialmente irrelevantes, tornando a justia menos assoberbada e permitindo que fatos nfimos no se transformem em um estigma para seus autores. De outra parte, abre a porta para a revalorizao do direito constitucional e contribui para que se imponham penas a fatos que devem realmente ser castigados por ter um contedo sobremaneira grave, reduzindo nveis de impunidade. Ainda, fortalece a administrao da justia para o efeito de cumprir o seu verdadeiro papel 197 . Consoante o professor Luiz Flvio Gomes, quando se esta diante de uma infrao bagatelar prpria, deve-se requerer o arquivamento das investigaes com fundamento no princpio da insignificncia, que caso de atipicidade. Se ocorrer a denncia, cabe ao juiz absolver sumariamente o acusado, em caso isso no acontea, cabe o remdio de habeas corpus para o fim de trancar a ao penal. No caso de infrao bagatelar imprpria, ao juiz reservada a misso de reconhecer a desnecessidade da pena, deixando de aplic-la. A insignificncia, independente de qualquer definio que se queira dar, deve ser aplicada de acordo com as peculiaridades do caso concreto e do direito material envolvido. Sob este ponto de vista, enquanto um conceito normativo, o princpio da insignificncia reclama uma valorao do magistrado, que ostenta uma moderna posio, amparada no no parmetro abstrato da lei, mas, sobretudo, na proeminncia dos interesses em jogo no caso concreto.
3.3. Tipicidade formal e atipia material Como sabido, o tipo penal , consoante Zaffaroni e Pierangeli, um instrumento legal, logicamente necessrio e de natureza predominantemente descritiva, que tem por funo a individualizao de condutas humanas
196 a) a mnima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ao, (c) o reduzidssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da leso jurdica provocada 197 CORNEJO apud GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 46-47 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 62
penalmente relevantes. Assim, tpica a conduta que apresenta a caracterstica especfica de tipicidade. Atpica a conduta que no apresenta tipicidade. Esta a adequao da conduta a um tipo, este a frmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta 198 . Feitas estas breves consideraes, podemos dizer que dentro de uma concepo material do tipo, em cujo cerne encontra-se sentidos no meramente formais, percebe-se que a expresso da concreta lesividade a bens jurdicos - juridicamente tutelados por normas de direito material -, por condutas tica e socialmente reprovveis, expressam a danosidade social e a periculosidade social do comportamento 199 , as quais referenciam o juzo de atipia material da conduta. Para o fim de compreender o princpio da insignificncia necessria a diferenciao da tipicidade penal em duas frentes: a tipicidade penal formal consistente na conformao ou subsuno do fato letra da lei e, a tipicidade material, consistente na concreta valorao da ofensa ao bem jurdico. O confronto axiolgico no caso concreto, entre a conduta formalmente tpica e a tipicidade material, representada pelo grau da leso causado ao bem jurdico tutelado que permite inferir se h ou no necessidade de interveno penal e, portanto, se possvel aplicar o princpio da insignificncia. 200 . A tipicidade uma das notas essenciais do crime, de forma que para 201 que uma conduta humana seja considerada crime necessrio ser tpica. Assim, tem- se de um lado a conduta humana no caso concreto e, de outro, o tipo legal de crime, sendo que a tipicidade formal justamente a correspondncia que possa existir entre a primeira e o segundo, caso contrrio no h tipicidade, a qual , antes de tudo, um juzo formal de subsuno que, segundo Toledo de Assis decorre da funo de garantia do tipo, para que se observe o princpio da anterioridade da lei penal 202
198 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p.381-383 O juiz comprova a tipicidade comparando a conduta particular e concreta com a individualizao tpica, para ver se se adequa ou no a ela. Este processo mental o juzo de tipicidade que o juiz deve realizar. 199 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit., p. 130-131. 200 GOMES FILHO, Dermeval Farias. A Dimenso do Princpio... Op. cit. 201 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit, p. 125. 202 Idem, Ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 63
J o contedo material do tipo pode ser compreendido se pensarmos no papel positivo do tipo e no no negativo, vale dizer, se observarmos que o tipo no se presta apenas para identificar condutas criminosas, mas tambm se volta para descriminar fatos atpicos, os quais podem ser antijurdicos, mas nunca um injusto penal 203 , consistente no desvalor da ao mais desvalor do resultado. Na lio de Toledo de Assis, o contedo material atribudo ao tipo, alm de funes bem tpicas e inconfundveis, considera no apenas o papel negativo do injusto, mas tambm o positivo, a saber: o tipo no serve apenas para identificar condutas criminosas, mas se presta igualmente para descriminar os fatos atpicos, no sentido de que o fato atpico pode ser antijurdico, mas no pode, contudo, ser um injusto penal 204 , tal como os delitos acobertados pela atipicidade decorrente da aplicabilidade do princpio da insignificncia. O mesmo autor leciona que se no consideramos o tipo apenas como modelo orientador ou diretivo, mas como portador de real sentido, a expressar a danosidade social, bem como a periculosidade da conduta descrita, o poder de deciso a nvel do juzo de atipicidade ampliado 205 . Considerando a construo de Beling, o tipo tinha um significado exclusivamente formal, seletivo, que no implicava um juzo de valor sobre o comportamento que apresentasse suas caractersticas. Contudo, modernamente, procura-se atribuir ao tipo, alm do sentido formal, um sentido material, de forma que no se pode falar em tipicidade sem que a conduta seja, a um s tempo, materialmente lesiva a bens jurdicos, ou tica e socialmente reprovvel 206 , aferio est que nos remete ao princpio da adequao social e ao princpio da insignificncia. Impende destacar que a excluso da tipicidade, consoante Toledo, funo privativa do juzo de atipicidade, difere-se da excluso da ilicitude, a qual a funo do juzo de licitude do fato, na medida em que o papel do tipo no deve ser confundido com o da ilicitude, vez que ambos so dogmaticamente distintos e necessrios a momentos cognoscitivos diferentes 207 .
203 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios... Op. cit,, p.128. 204 Idem, ibidem. 205 Idem, p. 130. 206 TOLEDO apud TOLEDO in O Erro no Direito Penal, p. 45 et sequ. 207 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 64
Luiz Flvio Gomes assevera, no talante ao fato insignificante - em razo da exigidade formal da conduta ou do resultado que a conduta formalmente tpica, mas no materialmente. Eis que tipicidade formal j no esgotaria toda a globalidade da tipicidade penal, que requer a dimenso material (que compreende dois juzos distintos: de desaprovao da conduta e de desaprovao do resultado jurdico) 208 . Ainda, importa contemplar neste estudo a teoria da tipicidade e atipia comglobante, delineada por Zaffaroni e Pierangeli. A tipicidade conglobante consiste na averiguao da proibio contida no tipo mediante, segundo os autores:
a indagao do alcance proibitivo da norma, no considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade comglobante um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do mbito do tpico aquelas condutas que apenas aparentemente esto proibidas. 209
Vale dizer: a tipicidade comglobante comprova que a conduta legalmente tpica tambm est proibida pela norma o que se obtm desentranhando o alcance da norma proibitiva comglobada com as restantes normas do ordenamento, ou seja, o juzo de tipicidade reduzido real dimenso daquilo que a norma probe, deixando de fora da tipicidade penal aquelas condutas que somente so alcanadas pela tipicidade legal. Esta concepo coaduna-se com a idia de tipicidade formal e tipicidade material, na medida em que considera no bastar conduta subsurmir-se ao tipo legal, mas sim que o juzo de tipicidade seja conglobado levando em conta o sistema jurdico e o que ele efetivamente condena 210 . Os casos de ausncia de tipicidade comglobante, se no podem ser resolvidos como justificao, podem o ser por atipia, o que para os autores no deixaria de ser uma conduta justificada e afirmam, ainda, a existncia de figuras atpicas que so antijurdicas, que , de uma certa maneira, o que ocorre com os crimes insignificantes.
208 GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 67-68. 209 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 394. 210 Idem, Ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 65
A atipicidade comglobante no surgiria em funo de permisses que a ordem jurdica concede, e sim em razo de mandatos ou fomentos normativos ou de indiferena (por insignificncia) da lei penal 211 . Igualmente, na viso de Roger Spode Brutti 212 , a incidncia da insignificncia somente pode ser estabelecida pela considerao conglobada da norma, ou seja, a conduta torna-se irrelevante em razo da presena de todos os requisitos para incidncia da insignificncia, especialmente a atipicidade material, tornando-se a pena desnecessria, mas sem, contudo, retirar seu aspecto preventivo geral.
CAPTULO 4. A APLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA AO CRIME DE DESCAMINHO Para o fim de empreender a tarefa de aferir o alcance da aplicabilidade do princpio da insignificncia ao crime de descaminho, mister se faz compreender em que consiste referido crime. Dispe o art. 334, do Cdigo Penal:
Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela sada ou pelo consumo de mercadoria
Consiste em um crime tributrio, ou seja, alude a uma ao ou omisso que implique supresso ou reduo, no autorizada em lei, de tributo ou contribuio. A primeira parte do dispositivo se refere ao contrabando, que importar ou exportar mercadoria proibida, a segunda parte do dispositivo, que contm o verbo iludir, se refere ao descaminho. Iludir enganar, evitar, fraudar, dissimular, causar iluso a, frustrar, malograr, lograr, burlar com subterfgios, sonegar o imposto devido pela entrada, pela sada ou pelo consumo de mercadoria. um tipo de resultado que compreende uma separao espao-temporal entre ao e resultado, ligados por uma relao de causalidade 213 ou, em outras
211 a ordem jurdica resigna-se a que um sujeito se apodere de uma jia valiosa pertencente a seu vizinho, e que a venda para custear o tratamento de um filho gravemente enfermo, que no tem condies de pagar licitamente, mas ordena ao oficial de justia que apreenda o quadro e lhe impe uma pena se no o faz, fomenta as artes plsticas, enquanto que se mantm indiferente subtrao de uma folha de papel rabiscada ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 395-396. 212 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 480. 213 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal... Op.cit. p.109 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 66
palavras, um crime de dano, onde o evento lesivo se concretiza em um evento destacado da ao, mas com ela tendo um nexo causal 214 . Consubstancia-se em um crime de natureza tributria, que pode ser praticado por qualquer indivduo. O sujeito passivo o Estado, principal interessado na arrecadao do tributo aduaneiro e na regularidade da importao ou exportao de mercadoria. Para a configurao do descaminho, alm dos elementos objetivos do tipo, deve estar presente, tambm, o dolo especfico, consistente na vontade de praticar a conduta, vale dizer, de iludir o pagamento devido, o que no deixa de ser um crime de sonegao fiscal. A tipicidade do delito, in casu, pode ser afastada de acordo com a peculiaridade do caso concreto, pelo princpio da insignificncia, jazendo a o objeto do presente estudo.
4.1. O bem jurdico tutelado no delito de descaminho O bem jurdico 215 possui uma funo garantidora, que emerge do princpio republicano, bem como uma funo teleolgico-sistemtica que d sentido proibio manifestada do tipo e a limita, funes necessrias para que o direito penal permanea dentro dos limites da racionalidade dos atos de governo, impostos pelo princpio republicano. No h conduta tpica que no afete bem jurdico, porquanto os tipos so manifestaes de tutela jurdica destes bens. A leso ao bem jurdico indispensvel para configurar a tipicidade. Consoante Zaffaroni e Pierangeli, bem jurdico penalmente tutelado a relao de disponibilidade de um indivduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificao penal de condutas que o afetam 216 . O legislador, em sua atividade tipificadora, houve por bem incluir algumas condutas que possam afetar o interesse da arrecadao de tributos, como penalmente relevantes, todas tendentes a resguardar o errio pblico. Essas
214 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia... Op. cit., p. 407. 215 ROXIN, Claus. A proteo de bens jurdicos como funo do Direito Penal. Organizao e Traduo Andr Lus Callegari e Nereu Jos Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006. 216 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 396-397 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 67
condutas esto descritas, em sua maior parte, na Lei n 8.137/90 que define os crimes contra a ordem tributria. Outras condutas esto previstas, mais precisamente, nos arts. 168-A (Apropriao indbita previdenciria), 334 (Contrabando ou descaminho) e 337-A (Sonegao de contribuio previdenciria) todos do Cdigo Penal. 217
O delito de descaminho, previsto na segunda parte do art. 334, caput, do Cdigo Penal configurado pelo termo iludir, tendo por objeto o pagamento de direito ou imposto, denominando-se tambm contrabando imprprio. O descaminho um autntico crime material ou de resultado, isto , exige um resultado distinto da atividade do agente 218 , como j foi dito, bem como um autntico crime tributrio, que se caracteriza pela sonegao fiscal. A conduta objetiva o no pagamento ou a iluso dos tributos devidos pelas operaes de importao 219 . Semelhante delito exige a necessidade de constituio, por via administrativa fiscal, transitada em julgado, antes da persecuo penal do suposto crdito tributrio da Fazenda 220 , nivelao jurdica necessria ante questes humanitrias como a isonomia no tratamento dos rus, diminuio do
217 LEMOS,
Alessandro Prado. A aplicabilidade do princpio da insignificncia aos crimes tributrios: excluso da tipicidade e consequente falta de justa causa para a ao penal. Revista Jus Vigilantibus, Sabado, 7 de novembro de 2009. Disponvel em http://jusvi.com/artigos/42565, acesso em 03 de setembro de 2010. 218 Se o expediente fraudulento surtiu o efeito desejado, e com ele se logrou iludir as autoridades alfandegrias e o destinatrio entrar em posse das mercadorias sem pagar os tributos ou direitos respectivos nesse momento opera-se a consumao DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia... Op. cit., p. 407. 219 Idem, p. 405. 220 Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matria de prova (distino). Esfera administrativa (Lei n 9.43096). Processo administrativo-fiscal (pendncia). Ao penal (extino) 1.Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda habeascorpus sempre que algum esteja sofrendo ou se ache ameaado de sofrer violncia ou coao; trata-se de dar proteo liberdade de ir, ficar e vir, liberdadeinduvidosamente possvel em todo o seu alcance. Assim, no procedem censuras a que nele se faa exame de provas. Precedentes do STJ. 2.A propsito da natureza e do contedo da norma inscrita no art. 83 da Lei n 9.43096, h de se entender que a condio ali existente condio objetiva de punibilidade, e tal entendimento tambm se aplica ao crime de descaminho (Cd. Penal, art. 334). 3.Em hiptese que tal, o descaminho se identifica com o crime contra a ordem tributria. Precedentes do STJ: HCs 48.805, de 2007, e 109.205, de 2008. 4. Na pendncia de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade do dbito fiscal, no h falar em procedimento penal. 5. Recurso ordinrio provido para se extinguir, relativamente ao crime de descaminho, a ao penal. (STJ,6 T., RHC 25.228 RS. Rel. Min. Nilson Naves, DJ: 08/02/2010. Destacamos). Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 68
aparato pblico repressivo etc - e fiscais aumento da eficcia da exao fiscal 221 . A identificao do bem jurdico tutelado pelo tipo apontado de suma importncia para compreend-lo como crime tributrio. De acordo com diversos entendimentos o bem jurdico tutelado pode ser a administrao pblica; a higidez do errio; o interesse econmico-estatal; a salvaguarda dos interesses do errio pblico, prejudicado pela evaso de renda que resulta do descaminho; a economia pblica; a f pblica; a livre concorrncia; a coletividade; a soberania nacional; a regularidade nas importaes e exportaes; a eficcia das polticas governamentais na defesa do desenvolvimento da indstria nacional; a economia do pas, entre outros 222 . De fato, o descaminho (assim como o contrabando) ofende a funo fiscal do tributo e compromete a atuao extrafiscal do Estado, especialmente quanto ao protecionismo de produtos industrializados nacionais e a fixao de reservas de mercado. Para o Professor Ren Ariel Dotti:
se h divergncias quanto a exata delimitao do bem jurdico tutelado, isto , se chega a abraar o interesse moral da Administrao, o controle da entrada e sada de mercadorias, ou a prpria Administrao pblica em sentido largo, resta claro que, essencial e especialmente, o tipo do art. 334 do CP visa a higidez do errio, desencorajando, notadamente, a sonegao da carga tributria incidente nas operaes de importao e exportao de bens, conforme descrito na parte final do art. 334, caput.
Para Jlio Dalton Ribeiro: Pela tipificao do descaminho so tutelados o prestgio da Administrao Pblica, o interesse econmico-estatal, o produto nacional (agropecurio, manufaturado ou industrial) e a economia do pas. (...) O Estado, ao proibir a entrada ou sada de mercadorias, f-lo por relevante motivo de ordem pblica: ou medida de poltica econmica ou financeira (protecionismo, defesa de monoplios do Estado, guerra aduaneira, reteno de metais preciosos, obras de artes ou antiguidades) ou providncia de utilidade geral, visando defesa da sade ou moralidade pblica, ou segurana do Estado ou dos indivduos.
221 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do... Op. cit., p. 400. 222 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento da via administrativa nos crimes de descaminho. Revista dos Tribunais, Ano97, vol. 877, Nov 2008. RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia e sua aplicabilidade no delito de contrabando e descaminho. In. Revista Brasileira de Cincias Criminais, Bimestral, ano 16, n 73, julho-agosto de 2008. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 69
Afigura-se, para ns, que o bem jurdico do descaminho pluriofensivo, vale dizer, complexo. Sem embargo, a real finalidade da norma tutelar a ordem jurdico-tributria consubstanciada no errio pblico, ou seja, no patrimnio pblico formado pelo pagamento da exao tributria, sendo todos os outros bens tutelados por via reflexa. 223 Nada obstante, veja-se que a pruriofensividade no impede que se aplique o princpio da insignificncia, que considera to somente o valor (aspecto numerrio) da afetao ao bem jurdico tutelado pela norma penal incriminadora, suficiente para o trancamento da ao penal, com base apenas no aspecto fiscal do tipo, o que significa que a leso de um bem jurdico acautelado presume a violao de todos como se fosse um 224 . Conquanto o bem jurdico seja complexo, o fato que para que a condenao torne-se juridicamente vivel, pressupe-se a existncia do elemento objetivo tributo, previsto no art. 3 do Cdigo Tributrio Nacional 225 , e a validade da ao penal depende da constituio definitiva do crdito tributrio. Infere-se o bem jurdico tutelado atravs da verificao de que o tipo penal do descaminho tem sempre a finalidade de punir quem efetivamente no recolhe os dbitos fiscais aos cofres pblicos, bem como pela extino da punibilidade, pelo parcelamento, mesmo aps o recebimento da denncia, conforme prev a Lei n 10.684/03 226 , aplicvel ao descaminho, porquanto reconhecida sua natureza tributria; ou tambm pelo pagamento integral do tributo antes do oferecimento da denncia, de acordo com o disposto no art. 34 da Lei n 9249/1995 227 , que igualmente aplica-se analogicamente ao descaminho.
223 LEMOS,
Alessandro Prado. A aplicabilidade do princpio da insignificncia... Op. cit.. 224 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do... Op. cit., p.413-415. 225 Art. 3 Tributo toda prestao pecuniria compulsria, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que no constitua sano de ato ilcito, instituda em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. 226 Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuio social, inclusive acessrios, antes do recebimento da denncia. LEMOS,
Alessandro Prado. A aplicabilidade do princpio da insignificncia aos crimes tributrios: excluso da tipicidade e consequente falta de justa causa para a ao penal. Revista Jus Vigilantibus, Sbado, 7 de novembro de 2009. Disponvel em http://jusvi.com/artigos/42565, acesso em 03 de setembro de 2010. 227 Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuio social, inclusive acessrios, antes do recebimento da denncia. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 70
Impende destacar que o tributo decorrente da entrada, sada ou pelo consumo de mercadoria (art. 334, caput, CP) tem por caracterstica a extrafiscalidade, ou seja, no se volta simplesmente a abastecer os cofres pblicos, mas sim interferir no domnio econmico, estimulando as importaes quando a carga tributria reduzida, ou inib-la, quando h incremento do nus. Contudo, isto no exime o contribuinte do recolhimento, nem significa que o valor indiferente ao fisco, vez que a funo extrafiscal sempre e ainda fiscal 228 , da porque a proteo ao bem jurdico consistente no errio pblico. Veja-se que a leso ao bem jurdico apenas se configura aps o esgotamento das vias administrativas, vale dizer, aps o reconhecimento da dvida pelo Estado, com a constituio administrativa de um crdito em favor da Fazenda ou com o trmino de um procedimento administrativo diverso, como a aplicao da pena de perdio de produtos ou de multa. A propsito, a jurisprudncia acolhe este entendimento, como pressuposto para a persecuo penal, ou seja, condio de procedibilidade da ao penal a representao fiscal e o lanamento definitivo do dbito, quando no mais caber discusso acerca do quantum debeatur e este ser exigvel, caso contrrio no h que se falar em delito de descaminho, porquanto elemento normativo do tipo ou condio objetiva de punibilidade. A propsito, de acordo com a Smula Vinculante 24 No se tipifica crime material contra a ordem tributria, previsto no art. 1, incisos I a IV, da Lei n 8.137/90, antes do lanamento definitivo do tributo, enquanto no encerrada, na instncia fiscal, o respectivo procedimento administrativo, no se mostraria possvel a instaurao da persecuo penal nos delitos contra a ordem tributria. Veja-se que est smula extensvel analogicamente ao delito de descaminho. Aps o exaurimento da via administrativa, com o proferimento de deciso acerca da exigncia fiscal do crdito tributrio correspondente, a representao fiscal ser encaminhada ao Ministrio Pblico, a partir da que surge a obrigao do operador do direito em verificar a danosidade social da conduta, sua real lesividade, para o efeito de aferir a insignificncia.
228 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do... Op. cit., p. 417.
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Receita Federal do Brasil defeso o envio, ao Ministrio Pblico, da Representao fiscal para fins penais por suposto crime de descaminho, antes de transitada em julgado a deciso administrativa, garantidos o contraditrio e a ampla defesa. Ainda, ao descaminho, enquanto tpico crime tributrio, deve ser aberto prazo para o pagamento e at para o parcelamento do dbito, algo que pode acarretar o arquivamento da ao fiscal e a suspenso e a extino de punibilidade criminal 229 . Se se est diante de comportamento desvestido de tipicidade penal, a evidenciar, portanto, a impossibilidade jurdica de se adotar, validamente, contra o suposto devedor, qualquer ato de persecuo penal, seja na fase pr-processual (inqurito policial), seja na fase processual (persecutio criminis in judicio), comportamentos atpicos no justificariam a utilizao pelo Estado de medidas de represso criminal, porquanto o bem jurdico no foi afetado 230 .
4.2. O poder punitivo comercivel no delito de descaminho O critrio central que governa o reconhecimento da insignificncia no mbito do direito penal tributrio ou mesmo no delito de descaminho (assim como na esfera das contribuies sociais, ou seja, nos crimes previdencirios) reside no valor mnimo exigido para que se proceda ao ajuizamento da execuo fiscal 231 . No valor do crdito tributrio deve ser computado tudo, inclusive multas, de forma que se o total no ultrapassa o valor definido para o ajuizamento da execuo fiscal, deve ter incidncia o princpio da insignificncia. Para se garantir a tutela dos bens jurdicos ligados ao delito de descaminho e resguardar a funo fiscal e extrafiscal da atividade tributria, a avaliao da afetao causada, para a aplicao do princpio da insignificncia, deve levar em conta a obrigao tributria principal convertida em crdito tributrio, que surge
229 Simplesmente no licito, nesse caso, que o Estado Penal se movimente antes do Estado Fiscal: assim que este cumpra com seu dever privativo, caber quele executar o processo criminal devido, numa relao de complementariedade, e no de excluso, como alguns possam crer. Ora, finalmente, no pode o Estado punir por ter havido iluso quando nem ele prprio se declarou iludido (pelo rgo competente). inegvel essa complementao administrativa de que a norma penal necessita. DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento... Op. cit., p. 410-411, 424. 230 Informativo n. 601 do STF. 231 STJ, REsp 573.398, rel. Min. Felix Fischer, Dj. 02.09.04 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 72
com a verificao do fato gerador, nos termos do que dispe o art. 113, 1 do Cdigo Tributrio Nacional 232 . A dvida ativa tributria decorrente de verba dessa natureza, nos termos do art. 201, do Cdigo Tributrio Nacional. Tambm, o crdito tributrio decorre da obrigao principal - consistente na soma do tributo e da penalidade pecuniria 233
- de acordo com o que dispe o art. 139 do mesmo diploma legal, sendo que o crdito tributrio converte a obrigao principal em certa e exigvel 234 . Ante essas consideraes, importante se faz o estabelecimento do limite penalmente insignificante. A jurisprudncia at 2005 acolheu um critrio, quando ento ocorreu uma srie de mudanas, at meados de 2009. O critrio consistente no valor estabelecido para o ajuizamento da execuo fiscal vlido segundo a alegao de que o valor no interessa ao fisco e, consequentemente, no interessa propor a execuo fiscal, deste modo, com maior razo no teria sentido impor um castigo penal 235 . Impende observar, para evitar confuso, que o critrio vlido para os crimes tributrios como o descaminho no um critrio geral ou um parmetro vlido para todo o direito penal, utilizvel nos demais crimes. O crime tributrio, como o descaminho, deveras caracterstico, porquanto regido por uma soluo peculiar. Luis Flvio Gomes faz um sinptico histrico da evoluo jurisprudencial do princpio da insignificncia nos crimes tributrios e no descaminho: 1) de 1997 a 2001 o critrio adotado para o delito de insignificncia era o valor do ajuizamento da execuo, que era 1.000,00 Reais, nos termos do art. 1 da Lei 9.469/97, o autor aduz que
Particularmente no que concerne ao mbito tributrio federal, no princpio, consolidou-se o entendimento no sentido de se aplicar a
232 Art. 113. A obrigao tributria principal ou acessria. 1 A obrigao principal surge com a ocorrncia do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniria e extingue-se juntamente com o crdito dela decorrente. 233 Art. 113. A obrigao tributria principal ou acessria.(...) 3 A obrigao acessria, pelo simples fato da sua inobservncia, converte-se em obrigao principal relativamente penalidade pecuniria. 234 Art. 139. O crdito tributrio decorre da obrigao principal e tem a mesma natureza desta. Art. 201. Constitui dvida ativa tributria a proveniente de crdito dessa natureza, regularmente inscrita na repartio administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por deciso final proferida em processo regular. 235 GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., passim. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 73
insignificncia para possibilitar o trancamento da ao penal em relao aos impostos inferiores a R$ 1.000,00 (cf. art. 1. da Lei 9.469/97 e ainda art. 20 da MP 1.542-28/97 - STJ, HC 34.281-RS, rel. Min. Jos Arnaldo da Fonseca, j. 08.06.2004).
2) de 2002 e 2003, com a entrada em vigor da Lei 10.522/02, o quantum foi modificado para R$ 2.500,00, segundo Luis Flvio Gomes,
(esse critrio foi adotado amplamente e sem discusso pela jurisprudncia, at o ano de 2004). At esse montante entendia a jurisprudncia que no se tratava de valor lesivo (ofensivo) de modo relevante aos cofres pblicos. Formalmente trata-se de conduta tpica, mas materialmente no est presente o requisito do resultado jurdico relevante, que consiste, no caso, no interesse fiscal da Administrao Pblica (STJ, HC 34.281-RS, rel. Min. Jos Arnaldo da Fonseca, j. 08.06.2004).
3) Em 2004 a Portaria n 49, de 01 de abril de 2004, do Ministrio da Fazenda, autorizou a no inscrio como dvida ativa da Unio de dbitos com a Fazenda Nacional de valor at R$ 1.000,00 e o no ajuizamento das execues fiscais de dbitos at R$ 10.000,00, completa o autor que:
Depois surgiu a Lei 11.033/2004, art. 21 - reiterando o valor de R$ 10.000,00 (para o ajuizamento da execuo fiscal). Ora, se esse ltimo valor (R$ 10.000,00) no relevante para fins fiscais, com muito maior razo no o ser para fins penais. Dbitos fiscais com a Fazenda Pblica da Unio de at R$ 10.000,00, em suma, devem ser considerados penalmente irrelevantes. Se nem sequer o caso de execuo fiscal, com maior razo no deve ter incidncia o Direito penal.
4) de 2005 a 2007 o STJ, por iniciativa do Min. Felix Fischer, reagiu contra o patamar dos R$ 10.000,00, criando o chamado "Leito de Procusto" 236 , no que tange a esse contexto:
No REsp 685.135-PR (j. 02.05.05) o Ministro passou a considerar como vlido para a insignificncia o valor de R$ 100,00. Seu argumento: por fora do art. 18, 1, da Lei 10.522/2002, crditos at esse valor foram cancelados. Acima disso (e at R$ 10.000,00) simplesmente no se ajuizava a execuo. Argumento do Min. Fischer: o que importa o valor do crdito cancelado, no o quantum do ajuizamento da execuo. Essa mudana de critrio, que tinha por fundamento um falacioso argumento desenvolvido pelo Min. Fischer, preponderou no STJ at por volta de 2007. A premissa posta pelo citado Ministro (que se destaca no cenrio nacional por possuir alguns neurnios a mais que ns, os demais seres humanos mortais comuns) astuciosa e enganosa pelo seguinte: se o
236 que aceitava hspede em seu leito, com uma condio: se fosse menor que sua cama espichava-lhe os ps, se fosse maior cortava-lhe a perna. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 74
crdito at R$ 100,00 foi cancelado, no h que se falar em delito tributrio. O cancelamento do crdito tributrio faz desaparecer o delito. Como pode ter incidncia o princpio da insignificncia em um fato que no (sequer) formalmente tpico. Em outras palavras: referido princpio pressupe a existncia de um fato formalmente tpico. Do contrrio, no h que se falar no princpio da insignificncia. O Min. Fischer, com sua habilidade argumentativa, simplesmente acabou com a incidncia da insignificncia no mbito dos delitos tributrios e de descaminho. A jurisprudncia, entretanto, seguiu seus passos (at por volta de 2007), embora fossem claudicantes (alm de incoerentes e absurdos). S as mentes privilegiadas afirmam absurdos e so seguidas como se verdades fossem. No perodo de 2005 a 2007 preponderou o "leito de Procusto" forjado astutamente pelo Min. Fischer.
5) Em 10.10.2007, a 8 Turma do Tribunal Regional Federal da 4 Regio insurgiu-se contra o "leito de Procusto" do STJ, que s admitia a aplicao do princpio da insignificncia at o limite de R$ 100,00, nesse sentido:
Na histrica Apelao Criminal 2003.70.03.009921-6-PR, a Turma citada, em acrdo relatado pelo Des. lcio Pinheiro, passou a admitir (pela primeira vez, at onde sabemos) o princpio da irrelevncia penal do fato (at o limite de R$ 2.500,00). Note-se: no se chegou aos R$ 10.000,00 (por se entender que esse valor seria desproporcional). Mas tampouco aceitou-se a camisa de fora dos R$ 100,00. Acima desse valor e at R$ 2.500,00 o fato passou a ser penalmente irrelevante (o que significa a dispensa da pena).
6) Em 19.02.2008, a 1 Turma do STF, no HC 92.740, rel. Min. Carmen Lcia, admitiu o valor de R$ 10.000,00, em seguida a isto:
Em 18.08.08 a 2 Turma do STF, no HC 92.438-PR, sendo relator o Min. Joaquim Barbosa, voltou a aceitar o valor de R$ 10.000,00 como limite do princpio da insignificncia, por fora da Lei 11.033/2004, art. 21, que fixou esse valor para o ajuizamento da execuo fiscal. Esse mesmo limite foi reiterado na Medida Provisria 449/08 (art. 1, 1), que passou a considerar at R$ 10.000,00 como dvida de pequeno valor (que no justifica o ajuizamento da execuo fiscal). Ora, se o crdito at esse montante no relevante para fins fiscais, com muito maior razo no o para fins penais (da o acerto do entendimento da 2 Turma do STF, no HC 92.438-PR). No mesmo sentido (reconhecendo o limite de R$ 10.000,00): STF, HC 95.479-8-PR, rel. Min. Eros Grau.
A partir dessas decises do STF comeou a ruir o "leito de Procusto" do Min. Felix Fischer que, mesmo assim, continuava admitindo o valor de R$ 100,00 237 .
237 REsp 992.758-PR, j. 16.12.2008. alguns julgados STJ seguem o mesmo entendimento do STF: REsp 992.756-RS, rel. Min. Paulo Gallotti, j. 14.10.08; REsp 966.077-GO, rel. Min. Nilson Naves, j. 14.10.08; HC 110.404-PR, rel. Min. Arnaldo Esteves; AgRg no REsp 1.021.805-SC, rel. Min. Hamilton Carvalhido. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 75
Na atualidade, o que vale como parmetro para aplicao do princpio da insignificncia o quantum da obrigao tributria principal convertida em crdito tributrio no superior R$ 10.000,00, que o critrio da Lei para os demais delitos tributrios, aplicando-se analogicamente ao descaminho. Veja-se que se at R$ 10.000,00 o crdito tributrio no justifica a execuo fiscal, obviamente no pode ter incidncia o direito penal, porque dos delitos de bagatela no deve cuidar o juiz - de mininis non curat praetor 238 , mesmo porque o direito penal deve ter incidncia mnima. Insta frisar que o crdito da unio, at R$ 10.000,00, no desaparece, apenas a execuo fiscal no ajuizada, mas o crdito permanece. Se surgirem outros crditos, quando os crditos ultrapassarem o patamar fixado, a execuo penal instaurada, contudo j ter tido a incidncia, na seara penal, do princpio da insignificncia. Mas a administrao fazendria no fica impedida de executar (ante os novos crditos), mesmo j extinta a punibilidade penal. So instncias distintas, regidas por regras diferentes 239
Notadamente, esses encaminhamentos jurisprudenciais so vlidos para o delito de descaminho, que um tpico crime tributrio, previsto no Cdigo Penal, que consiste em no pagar, no todo ou em parte, o imposto devido pela entrada ou sada de mercadorias do pas.
4.3. O parmetro para aplicabilidade do princpio da insignificncia Existe uma certa idia de que o direito penal pode suprir funes que originariamente so de outros ramos do direito, de fato a ineficincia estatal ao resolver os problemas sociais leva a que ele se valha do instrumento ameaador que constitui o direito penal. No mbito fiscal, semelhante movimento claro, haja vista a criao de tipos que visam to somente cobrana de tributos, por meio da ameaa da pena estatal 240 . Aqui se insere a questo da necessidade de exaurimento da via administrativa para o direito atuar no delito de descaminho, como j se viu supra. Contudo sua aplicao prtica, no se mostra ainda de
238 GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., passim. 239 Idem, p.114. 240 CALLEGARI, Andr Lus, MOTTA, Cristina Reindolff. Estado e Poltica... Op.cit. p. 21. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 76
forma clara e objetiva, especialmente na seara jurisprudencial, e tambm no que diz respeito aplicao profiltica do princpio, j no bojo do inqurito policial 241 . sobremaneira importante a aplicao de vanguarda do referido princpio, no seio da atividade policial, para uma melhor e clere atuao do Estado. Conforme Roger Sponde Brutti:
antes da ao penal ver-se encetada, h, necessariamente, um trabalho levado a efeito a polcia judiciria onde, em detrimento de casos mais graves, labora-se durante considervel lapso temporal em torno de ilcitos penais os quais, pela sua insignificncia, sequer avocaro um dito condenatrio relativo aos seus autores.
Quer isto significar que as condutas com contedo de injusto penal insignificante no possuem o efeito de invocar deciso judicial condenatria, o que torna todo o trabalho policial improfcuo, bem como toda a persecuo penal iniciada a partir da respectiva ao penal. Desta sorte, apesar da falta de debates no que tange a aplicabilidade do principio da insignificncia ao trabalho da polcia, para ns afigura-se indispensvel. Se o rgo do Ministrio Pblico 242 persistir em propor a ao penal, ainda que aplicvel o princpio da insignificncia, ou seja, ainda que presente a atipia material, cabe ao magistrado a rejeio da denncia com esteio no art. 43, inc. I, do Diploma Processual Penal ptrio. Conforme j esboado, vislumbra-se que o critrio para aplicabilidade do princpio da insignificncia meramente numerrio, correspondente ao quantum do tributo pagar, a expressar a danosidade ao errio pblico. Viu-se que o critrio, por longo tempo, ficou ao alvedrio dos aplicadores do direito, com grandes oscilaes, fato que gerava insegurana jurdica ante a obscuridade dos parmetros e decises arbitrrias. Assim, foram utilizadas as seguintes cifras quanto aos tributos iludidos: de apurar as infraes de R$ 100,00 (cem reais), R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) e R$ 10.000,00 (dez mil reais), de forma que cada operador do direito tinha uma concepo do que seria insignificante.
241 BRUTTI Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 478. 242 A Polcia judiciria possui o papel precpuo de apurar as infraes penais e a sua autoria, por meio do inqurito policial, procedimento administrativo com particularidade inquisitiva, o qual serve, em regra, de sustentculo pretenso punitiva do Estado estabelecida pelo Ministrio Pblico, senhor da ao penal pblica BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 477-497. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 77
A jurisprudncia, antes da alterao da Lei n 10.522/2002, cuja nova redao foi dada pela Lei n 10.033/2004, acompanhava o valor mnimo para processamento das execues fiscais como o limite mximo de leso suportvel pelo Estado. No entanto, com o advento da Lei 11.033/2004, que elevou o valor de 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para 10.000,00 (dez mil reais) sentiu-se um grande abalo na segurana jurdica em relao ao princpio da insignificncia. Os Tribunais esto oscilantes: alguns, de forma incoerente ao vinham decidindo, no reconhecem o alargamento da linha limtrofe; outros sustentando suas anteriores convices acompanham o elastecimento legal. 243
A falta de critrios objetivamente definidos para o fim de aplicar o princpio em apreo, com certeza consistiu em um entrave ao seu acolhimento. Grande parte da doutrina aplica, para o reconhecimento da conduta tpica como insignificante, o modelo clssico de determinao fundada na avaliao dos ndices de desvalor da ao e desvalor do resultado da conduta levada a efeito. Assim, possvel aferir o grau quantitativo-qualitativo da lesividade em relao ao bem jurdico afetado. Ressalte-se que a culpabilidade, nesse caso, seria apenas pressuposto para a pena, no devendo, em tese, integrar o critrio de determinao da ao penalmente insignificante, eis que o princpio da insignificncia incide sobre elementos da estrutura interna do delito, quais sejam a tipicidade e a ilicitude 244 . Ademais, na interpretao e valorao da ofensa, imperioso proceder ao sopesamento da nocividade social, somada aos critrios de desvalor do resultado, desvalor da ao 245 - que integram a estrutura do delito, ou seja, integram o conceito de injusto penal - e do grau de lesividade ou ofensividade ao bem jurdico protegido pelo tipo penal. Para alm disso, mister se faz proceder a uma antecipada medida da pena, cotejando-a com sua eventual necessidade, bem como com as conseqncias de sua imposio para a sociedade e para o autor do delito 246 .
243 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 76. 244 Idem, p. 62. 245 SILVA, Ivan Luiz da. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 473 para reconhecer a conduta tpica penalmente insignificante deve ser empregado o modelo clssico de determinao, realizando-se, assim, uma avaliao dos ndices de desvalor da ao e desvalor do resultado da conduta realizada, para se aferir o grau quantitativo-qualitativo de sua lesividade ao bem jurdico atacado. 246 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 62. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 78
O desvalor do resultado tem que ser apreciado com base na importncia dos bens jurdicos e no respectivo grau de ofensa. O desvalor da ao, por sua vez, refere-se, necessariamente, ao grau de probabilidade da conduta para realizar o evento na concreta modalidade lesiva assumida pelo agente 247 . Nesse sentido, Ivan Luiz da Silva:
Ocorre a insignificncia do desvalor da ao quando a probabilidade da conduta realizada de lesionar ou pr em perigo o bem jurdico tutelado apresenta-se material e juridicamente irrelevante, evidenciando que o grau de lesividade do fato tpico praticado quantitativamente nfimo em relao ao bem jurdico atacado. Por seu turno, a insignificncia do quando o resultado do ato praticado de significado juridicamente irrelevante para o Direito Penal; a gravidade do dano provocado no chega sequer a pr em perigo o bem jurdico atacado. Com efeito, uma vez identificada a insignificncia do desvalor da ao e do desvalor do resultado, tem-se determinada a conduta penalmente insignificante em razo de sua irrelevncia jurdico-penal. 248
Quer isto significar que a insignificncia deve ser valorada no com fundamento apenas no bem juridicamente tutelado, mas principalmente, com base no grau da leso produzida 249 . E o grau de leso guarda, necessariamente, relao com a realidade de cada pessoa, principalmente quanto ao seu aspecto scio-econmico, motivo pelo qual a diminuta leso deve ser cautelosamente apreciada, para o efeito de manter a segurana jurdica. Quer isto dizer que, sem um critrio objetivo, pode ocorrer abuso e desvirtuamento do princpio da insignificncia. Nota-se que, em tese, adotado o critrio clssico para determinao do princpio da insignificncia, ou seja, o critrio do desvalor da ao e desvalor do resultado, com apreciao antecipada da pena e prescindindo-se do grau de culpabilidade do autor do delito, ou seja, pouco importa aspectos subjetivos, como a existncia de outros processos em curso contra o ru pela mesma infrao. No entanto, judicialmente, o princpio da insignificncia concretizado por outros critrios objetivos. Nesse sentido, observe-se o seguinte excerto jurisprudencial:
247 SILVA, Ivan Luiz da. Princpio da insignificncia... Op. cit., p.474. 248 Idem, Ibidem. 249 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 63. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 79
HABEAS CORPUS. PENAL. DESCAMINHO. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. INAPLICABILIDADE. HABITUALIDADE CRIMINOSA. 1. A misso do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurdicos mais relevantes. Em decorrncia disso, a interveno penal deve ter o carter fragmentrio, protegendo apenas os bens jurdicos mais importantes e em caso de leses de maior gravidade; 2. "O princpio da insignificncia - que considera necessria, na aferio do relevo material da tipicidade penal, a presena de certos vetores, tais como (a) a mnima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ao, (c) o reduzidssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da leso jurdica provocada" (HC 84.412, STF, Rel. Min. Celso de Mello, deciso publicada no DJU de 2/8/2004); 3. No obstante o baixo valor dos impostos devidos constituir condio necessria aplicao do princpio, no se mostra, todavia, suficiente para tanto; no se deve olvidar que as condutas praticadas, na medida em que a ao ora em exame no se mostra isolada, mas constitui meio habitual para recomposio de estoques comerciais, mostram-se bastante reprovveis sob o ponto de vista de sua repercusso social, tornando inaceitvel a complacncia do Estado para com tal comportamento; 4. Ordem denegada. (STJ, 6 T. HC 44986 / RS. Min. Rel. Hlio Quaglia Barbosa, DJ 07/11/2005, destacamos)
Veja-se que a deciso colacionada adota os critrios da mnima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ao, reduzidssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da leso jurdica provocada, mesclando o critrio clssico acrescido de valorao acerca da culpabilidade do agente, a qual explicitamente apreciada. Trs dos critrios falam do desvalor da conduta e um critrio sobre o desvalor do resultado jurdico. Note-se que possvel desmembrar os quatro vetores. Consoante lio de Luiz Flvio Gomes, deve-se distinguir a insignificncia da conduta da insignificncia do resultado, assim, quando uma conduta insignificante, ainda que o resultado seja relevante, no h como incidir o direito penal. Mas, s vezes, o resultado que insignificante, ou ento, haver insignificncia tanto da conduta quanto do resultado. H situaes que falta o desvalor da conduta, em outras a do resultado, num terceiro grupo, faltam ambos. Nos trs casos no se pode afastar de plano o princpio da insignificncia, vale dizer, o princpio pode ter incidncia quando h puro desvalor do resultado ou puro desvalor da ao ou a combinao Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 80
de ambos, para o professor Flvio Gomes assim que se deve compreender a jurisprudncia do STF. 250
O STF, no entanto, exige para a aplicao do princpio o desvalor do resultado como o da culpabilidade, vale dizer, entendeu que outras circunstncias e condies pessoais do autor so importantes 251 , assim, se o julgado fala em comportamento habitual do autor da ao, infere-se da que no se trata apenas do direito penal do fato, mas tambm, e explicitamente, do direito penal do autor. Em julgado mais recente, o Tribunal, indo na contramo do direito penal constitucional, valora aspectos pessoais do autor, seno vejamos:
HABEAS CORPUS. PACIENTE DENUNCIADO PELA PRTICA DE DESCAMINHO E FORMAO DE QUADRILHA (ARTS. 288 E 334 DO CPB). HABITUALIDADE. RECEBIMENTO DA DENNCIA. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. INAPLICABILIDADE. VALOR DAS MERCADORIAS APREENDIDAS: R$ 8.887,50. SUPERAO DO LIMITE DE R$ 100,00 FIXADO NO ART. 18, 1o. DA LEI 10.522/02. PRECEDENTES DO STJ. PARECER PELA DENEGAO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. O valor das mercadorias apreendidas no caso concreto de R$ 8.887,50, superior, portanto, ao valor fixado na norma legal que disciplina a extino automtica dos crditos tributrios, independentemente de qualquer outra providncia fiscal (art. 18, 1o. da Lei 10.522/02), no havendo, assim, como se considerar insignificante a conduta do acusado. Precedentes do STJ. 2. O antigo preceito romanstico de minimis non curat praetore - o Juiz no se ocupa de bagatelas - precisa ser entendido luz da realidade fiscal e tributria, que impe aos comerciantes em geral obrigaes fiscais expressivas, no se justificando qualquer complacncia com quem engana o Fisco. 3. A habitualidade da conduta criminosa exclui a inexpressividade da leso jurdica provocada, requisito necessrio aplicao do princpio da insignificncia. 4. Ordem denegada, em conformidade com o parecer ministerial. (STJ, 5 T. HC 129226 / SP. Min. Rel. Napoleo Nunes Maia Filho, DJe 28/09/2009, destacamos).
Crime de Descaminho e Princpio da Insignificncia A Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prtica do delito de descaminho (CP, art. 334), no qual se pretendia o trancamento de ao penal, por atipicidade da conduta, com base na aplicao do princpio da insignificncia, pois o tributo devido seria inferior a R$ 10.000,00. Considerou-se que, embora o tributo elidido totalizasse R$ 8.965,29, haveria a informao de que o paciente responderia a outro processo como incurso no mesmo tipo penal cujo valor no pago Fazenda Pblica, considerados ambos os delitos, seria de R$ 12.864,35. Destacou-se estar-se diante de reiterao de conduta delitiva, pois o agente faria do descaminho
250 GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 16-17. 251 Idem, p. 63. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 81
seu meio de vida, da a inaplicabilidade do referido postulado. O Min. Marco Aurlio, relator, enfatizou seu convencimento no sentido de que, sendo o montante superior a R$ 100,00, caberia concluir-se pela tipicidade. HC 97257/RS, rel. Min. Marco Aurlio, 5.10.2010. (HC- 97257) 252
Note-se que mais do que absurdo aquilatar que a habitualidade da conduta exclui a inexpressividade da leso. O STJ, tem exigido a presena simultnea de critrios objetivos (desvalor da ao e desvalor do resultado) e subjetivos (atinentes culpabilidade), considerando os antecedentes do autor, alm de perseverar na aplicao do "leito de procusto". Ora, a constrio do autor apenas se justifica quando indispensvel proteo das pessoas, da sociedade e de outros bens essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade 253 . Em julgado do STF, a Ministra Ellen Gracie esposa outro entendimento:
RECURSO EXTRAORDINRIO. PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. CRITRIOS DE ORDEMOBJETIVA. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. APLICABILIDADE. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFCIO. 1. O princpio da insignificncia tem como vetores a mnima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ao, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da leso jurdica provocada (HC 84.412/SP). 2. No presente caso, considero que tais vetores se fazem simultaneamente presentes. Consoante o critrio da tipicidade material (e no apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tm perfeita aplicao o princpio da insignificncia. O critrio da tipicidade material dever levar em considerao a importncia do bem jurdico possivelmente atingido no caso concreto. Assim, somente possvel cogitar de tipicidade penal quando forem reunidas a tipicidade formal (a adequao perfeita da conduta do agente com a descrio na norma penal), a tipicidade material (a presena de um critrio material de seleo do bem a ser protegido) e a antinormatividade (a noo de contrariedade da conduta norma penal, e no estimulada por ela). 3. A leso se revelou to insignificante que sequer houve instaurao de algum procedimento fiscal. Realmente, foi mnima a ofensividade da conduta do agente, no houve periculosidade social da ao do paciente, alm de ser reduzido o grau de reprovabilidade de seu comportamento e inexpressiva a leso jurdica provocada. Trata-se de conduta atpica e, como tal, irrelevante na seara penal, razo pela qual a hiptese comporta a concesso, de ofcio, da ordem para o fim de restabelecer a deciso que rejeitou a denncia. 4. A configurao da conduta como insignificante no
252 Informativo n 603 edio de 15.10.2010 253 STF, HC 84.687/ MS. Min. Rel. Celso de Mello, DJ 26.10.2006. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 82
abarca consideraes de ordem subjetiva, no podendo ser considerados aspectos subjetivos relacionados, pois, pessoa do recorrente. 5. Recurso extraordinrio improvido. Ordem de habeas corpus, de ofcio, concedida. (STF, RE 536486 / RS. Rel. Min. Ellen Gracie, DJE 19-09-2008)
Nesta deciso, observa-se que o critrio de aplicabilidade tem por fundamento a repartio da tipicidade penal em tipicidade formal e tipicidade material. A constatao da tipicidade material to importante quanto aquela formal, inclusive mais formidvel por trazer em seu bojo a idia de danosidade social. Na esteira da preleo de Roger Spode Brutti, a ilicitude, da mesma maneira que a tipicidade, engloba o aspecto material que a verificao da necessidade de uma danosidade social relevante para a sua configurao. Completa dizendo que a tipicidade no se consome na concordncia lgico- formal (subsuno) do fato ao tipo. A ao delineada tipicamente h de ser na maioria das vezes ofensiva ou arriscada a um bem jurdico 254 . Igualmente, a tipicidade no comporta valores de ordem subjetiva, como maus antecedentes, reincidncia, habitualidade, existncia de inquritos policiais tratando do mesmo delito, seja em andamento ou arquivado, para o efeito de no agravar o status poenalis 255 do ru ou dar suporte legitimador da constrio da liberdade do autor, o que iria contra ao postulado constitucional da no culpabilidade, inscrito no art. 5, inciso LVI, da Constituio Federal 256 , em iguais circunstncias a ao penal deve ser trancada por falta de justa causa. A propsito, observa-se, in casu, que a persecuo penal olvidou o procedimento administrativo para constituio do crdito tributrio definitivo, com deciso administrativa transitada em julgado, que consiste em pressuposto para o oferecimento da denncia e conseqente instaurao do processo criminal. Ou seja, irracionalmente se tem acionado a mquina judicial, tocando processos sem justa causa at chegar aos Tribunais superiores, para se verem arquivados. Por mais que haja jurisprudncia firmada neste sentido, no raro se v dbitos sem lanamento definitivo, decorrente de descaminho, e de inquestionvel insignificncia, dar ensejo a aes penais fadadas ao fracasso, que desperdiam
254 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 483. 255 inconveniente qualquer check-up da personalidade do acusado qundo se debater acerca do princpio da insignificncia. Idem, p. 484. 256 STF, HC 84.687/ MS. Min. Rel. Celso de Mello, DJ 26.10.2006. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 83
os recursos do judicirio e estigmatizam o autor, deixando-lhe marcas indelveis. Ademais, se insignificante para o fisco o recolhimento do inexpressivo, no h sequer lanamento definitivo, de acordo com o art. 20 da Lei n 10.522/2002, da surge a seguinte pergunta: como que essas condutas foram ser objeto de apreciao pelo poder judicirio?. A resposta a irracionalidade do sistema, que na realidade trabalha como se as reas do direito fosse estanques, desprezando os princpios do Estado Democrtico de Direito. Outra questo, que se faz importante em nosso estudo, diz respeito a utilizao do direito penal como forma de cobrana de tributos. Aps a implementao do pagamento do tributo como extintivo da punibilidade do autor, tomou fora o argumento segundo o qual a responsabilizao criminal reveste-se de ao fiscal de cobrana dotada de maior poder coercitivo 257 . Tal posicionamento desvirtua a aplicao do direito penal, compromete a descriminalizao e vai de encontro ao direito penal mnimo, colocando por terra, em conseqncia, a aplicabilidade do princpio da insignificncia.
4.3.1. A jurisprudncia firmada no mbito do STJ O Recurso Especial Repetitivo n 1.112.748 TO. sabido que dois dispositivos da Lei n. 10.522/2002 orientaram a jurisprudncia na definio dos limites para aplicabilidade do princpio da insignificncia ao descaminho, quais sejam:
Art. 18. Ficam dispensados a constituio de crditos da Fazenda Nacional, a inscrio como Dvida Ativa da Unio, o ajuizamento da respectiva execuo fiscal, bem assim cancelados o lanamento e a inscrio, relativamente: (...) 1 o Ficam cancelados os dbitos inscritos em Dvida Ativa da Unio, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).destacamos
Art. 20. Sero arquivados, sem baixa na distribuio, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execues fiscais de dbitos inscritos como Dvida Ativa da Unio pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). destacamos
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Quanto ao quantum de 100,00 (cem reais) mais do que evidente que no satisfaz o sentimento de justia fundamento do princpio da insignificncia, at mesmo porque ofende o princpio da dignidade da pessoa humana. H cestas bsicas que valem mais que isso. No que tange ao antigo valor de 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), perdeu seu completo sentido com a alterao legislativa levada a efeito pela lei 11.033/2004, nada obstante fosse um valor razovel, em termos do que poderia ser considerado irrelevante em mbito tributrio, ou melhor, este valor, em nossa concepo, j era apto a dissuadir a pratica de descaminho. Com a Lei citada o valor do dbito inscrito na dvida ativa da Unio passou para 10.000,00 (dez mil), e sua aplicabilidade restou controvertida. O Supremo Tribunal Federal 258 , adotou solidamente o critrio do art. 20 da lei 10.522/2004:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE DESCAMINHO (ART. 334 DO CP). TIPICIDADE. INSIGNIFICNCIA PENAL DA CONDUTA. TRIBUTO DEVIDO QUE NO ULTRAPASSA A SOMA DE R$ 3.067,93 (TRS MIL, SESSENTA E SETE REAIS E NOVENTA E TRS CENTAVOS). ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O postulado da insignificncia opera como vetor interpretativo do tipo penal, que tem o objetivo de excluir da abrangncia do Direito Criminal condutas provocadoras de nfima leso ao bem jurdico por ele tutelado. Tal forma de interpretao assume contornos de uma vlida medida de poltica criminal, visando, para alm de uma desnecessria carceirizao, ao descongestionamento de uma Justia Penal que deve se ocupar apenas das infraes to lesivas a bens jurdicos dessa ou daquela pessoa quanto aos interesses societrios em geral. 2. No caso, a relevncia penal de ser investigada a partir das coordenadas traadas pela Lei 10.522/02 (objeto de converso da Medida Provisria 2.176-79). Lei que determina o arquivamento das execues fiscais cujo valor consolidado for igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Sendo certo que os autos de execuo sero reativados somente quando os valores dos dbitos inscritos como Dvida Ativa da Unio pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ultrapassarem esse valor. 3. Incidncia do princpio da insignificncia penal, segundo o qual para que haja a incidncia da norma incriminadora no basta a mera adequao formal do fato emprico ao tipo. Necessrio que esse fato emprico se contraponha, em substncia, conduta normativamente tipificada. preciso que o agente passivo experimente efetivo desfalque em seu patrimnio, ora maior, ora menor, ora pequeno, mas sempre um real prejuzo material. No, como no caso, a supresso de um tributo cujo reduzido valor pecunirio nem sequer justifica a obrigatria cobrana judicial. 4. Entendimento diverso implicaria a desnecessria mobilizao de uma mquina custosa,
258 STF, HC 96309, 1 T., Rel. Min. Crmen Lcia, DJe de 24/04/2009; HC 92438, 2 T. Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 19/12/2008. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 85
delicada e ao mesmo tempo complexa como o aparato de poder em que o Judicirio consiste. Poder que no de ser acionado para, afinal, no ter o que substancialmente tutelar. 5. No h sentido lgico permitir que algum seja processado, criminalmente, pela falta de recolhimento de um tributo que nem sequer se tem a certeza de que ser cobrado no mbito administrativo-tributrio do Estado. Estado julgador que s de lanar mo do direito penal para a tutela de bens jurdicos de cuja relevncia no se tenha dvida. 6. Jurisprudncia pacfica de ambas as Turmas desta Suprema Corte: RE 550.761, da relatoria do ministro Menezes Direito (Primeira Turma); RE 536.486, da relatoria da ministra Ellen Gracie (Segunda Turma); e HC 92.438, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa (Segunda Turma). 7. Ordem concedida para restabelecer a sentena absolutria. (STF, HC 100177, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Primeira Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 20-08-2010, destacamos)
No mbito do STJ, mesmo aps a alterao do art. 20 da Lei n. 10.522/2004, o Tribunal continuou a adotar um critrio ou outro 259 , inclusive o parmetro de 100,00, (cem reais) 260 , sendo um dos argumentos o de que o art. 20, caput, da Lei n 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ao de execuo ou arquivamento sem baixa na distribuio, no ocorrendo, pois, a extino do crdito, da no se poderia invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do dbito caracterizador de matria penalmente irrelevante. Nesse sentido, destaco:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. INCIDNCIA DO PARMETRO PREVISTO NO ART. 18, 1., DA LEI N. 10.522/2002. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. NO-INCIDNCIA. 1. No possvel utilizar o art. 20 da Lei n. 10.522/02 como parmetro para aplicar o princpio da insignificncia, j que o mencionado dispositivo se refere ao ajuizamento de ao de execuo ou arquivamento sem baixa na distribuio, e no de causa de extino de crdito. 2. O melhor parmetro para afastar a relevncia penal da conduta justamente aquele utilizado pela Administrao Fazendria para extinguir o dbito fiscal, consoante dispe o art. 18, 1., da Lei n. 10.522/2002, que determina o cancelamento da dvida tributria igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais). 3. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg no Ag 873.362/RS, 5 T, Rel. Ministra Laurita Vaz, julgado em 04/06/2009, DJe 29/06/2009) destacamos.
259 STJ, HC 110.404/PR, 5 T., Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 07/10/2008, DJe 01/12/2008; AgRg no REsp 992.756/RS, Rel. Ministro Halmilton Carvalhido, Rel. p/acrdo Min. Paulo Gallotti, julgado em 14/10/2008, DJe 03/11/2008; REsp 999.339/PR, 5 T. Rel. Ministro Jorge Mussi, julgado em 18/09/2008, DJe 20/10/2008 e outros. 260 STJ, 5 T. HC 129226 / SP. Rel. Min. Napoleo Nunes Maia Filho, DJe 28/09/2009; EREsp 966.077/GO, 3 seo Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/05/2009, DJe 20/08/2009; REsp 1015609/RS, 5 T., Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 07/05/2009, DJe 01/06/2009; REsp 1072592/RS, 5 T., Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 26/03/2009, DJe 17/08/2009; AgRg no REsp 937.755/RS, 5 T.; Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 04/12/2008, DJe 02/02/2009. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 86
Essa falta de racionalidade e instabilidade das decises causaram sobremaneira, uma insegurana jurdica, de forma que o autor do delito no podia prever as reais consequncias do seu ato, bem como era privado do devido processo legal. Esta instabilidade acabou quando, em sede de recurso especial repetitivo, a Terceira Seo do Superior Tribunal de Justia, seguindo entendimento j pacificado do Supremo Tribunal Federal, consolidou a interpretao segundo a qual incide o princpio da insignificncia aos dbitos tributrios at o limite de 10.000,00 (dez mil reais), com fulcro no art, 20 da Lei n. 10522/2002, conforme deciso assim ementada:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF88. PENAL. ART. 334, 1, ALNEAS C E D, DO CDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE. APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. I - Segundo jurisprudncia firmada no mbito do Pretrio Excelso - 1 e 2 Turmas - incide o princpio da insignificncia aos dbitos tributrios que no ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n 10.52202. II - Muito embora esta no seja a orientao majoritria desta Corte (vide EREsp 966077GO, 3 Seo, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20082009), mas em prol da otimizao do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposio de recursos ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei n 11.67208, de ser seguido, na matria, o esclio jurisprudencial da Suprema Corte. Recurso especial desprovido. (STJ, 3 Seo, REsp 1112748 TO. Rel. Min. Felix Fischer, DJ 13/10/2009. Destacamos)
19 . Princpio. Insignificncia. Descaminho. A Seo, ao considerar precedentes do STF, decidiu, em recurso repetitivo, que se aplica o princpio da insignificncia ao crime de descaminho quando os delitos tributrios no ultrapassam o limite de R$ 10 mil (art. 20 da Lei n. 10.522/2002). No caso, o teor do acrdo embargado coaduna-se com esse novo entendimento, o que reclama a incidncia da Sm. n. 168-STJ. Precedente citado: REsp 1.112.748-TO, DJe 13/10/2009. EREsp 1.113.039-RS, Rel. Min. Napoleo Nunes Maia Filho, julgados em 14/12/2009. 261
Com efeito, o acrdo mantm a orientao segundo a qual se aplica, para fins de aferio do princpio da insignificncia, o quantum de 100,00 (cem reais), conforme o disposto no art. 18, 1 da Lei n 10522/2002. Afasta o argumento que defende a aplicao do princpio pautado no desinteresse na cobrana do dbito
261 Disponvel em http://www.prr1.mpf.gov.br/nucleo-criminal/publicacoes-1/boletins/Boletim-nucrim- ultimo.pdf, Acesso em 06.10.2010. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 87
na esfera administrativa e, de igual modo, no haveria na deflagrao do processo-crime. O Ministro Felix Fischer defende que o dispositivo legal utilizado como supedneo para a atual orientao (art. 20 da Lei n 10.522/02), no permite alcanar a concluso proposta, na medida em que o comando normativo trata de arquivamento sem baixa na distribuio do dbito, a evidenciar a ausncia de desinteresse permanente como se d, ao contrrio, na hiptese tratada no art. 18, 1, do mesmo diploma legal. Contudo, para uma otimizao do sistema, evitando-se que uma srie de recursos e/ou habeas corpus sejam dirigidos ao STF, o REsp repetitivo acolhe os precedentes do Supremo emanados para o efeito de considerar que os crditos tributrios que no ultrapassem R$ 10.000,00 (dez mil reais), ex vi do art. 20 da Lei 10.522/2002, sejam alcanados pelo princpio da insignificncia. A deciso cingiu-se a pacificar um entendimento j consolidado no Supremo Tribunal Federal, mas tambm trouxe uma importante contribuio no que tange a valorao objetiva do princpio in quaestio, afastando a equivocada exigncia da habitualidade delitiva do agente ou ento que se proceda ao exame de seus antecedentes. Reconheceu-se que neste ponto, os requisitos escapam ao princpio e tem-se a aplicao do direito penal de autor em que o ru no incriminado pelo que fez, mas, no fundo, pelo o que , inadequado a um regime democrtico, assim abandonou-se a tica da progressiva leso ao bem jurdico e da idia do modus vivendi delituoso do agente. No que tange aos embargos em REsp 1.113.039/RS, observe-se a correspectiva ementa:
EMBARGOS DE DIVERGNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. DESCAMINHO. LIMITE UTILIZADO PARA A APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. MUDANA DE ENTENDIMENTO DIANTE DO JULGAMENTO DO RESP 1.112.748/TO (REPRESENTATIVO DE CONTROVRSIA). JURISPRUDNCIA DO TRIBUNAL NO MESMO SENTIDO DO ACRDO EMBARGADO. INCIDNCIA DA SMULA 168/STJ. EMBARGOS DE DIVERGNCIA NO CONHECIDOS. 1. A egrgia Terceira Seo desta Corte, ao julgar o Recurso Especial Repetitivo 1.112.748/TO (Rel. Min FELIX FISCHER, DJe 13.10.09), decidiu que se deve aplicar o princpio da insignificncia ao crime de descaminho quando os delitos tributrios no Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 88
ultrapassarem o limite de R$ 10 mil, adotando-se o disposto no art. 20 da Lei 10.522/02, com base em precedentes do colendo STF. 2. In casu, o tributo sonegado de R$ 2.403,00, incidindo, portanto, nos termos da nova orientao firmada por esta Corte, o princpio da insignificncia. 3. Aplicvel, na espcie, o enunciado da Smula 168 do STJ, que dispe que no cabem Embargos de Divergncia quando a jurisprudncia do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acrdo embargado. 4. Embargos de Divergncia no conhecidos. (EREsp 1113039/RS, 3 Seo, Rel. Min. Napoleo Nunes Maia Filho, julgado em 14/12/2009, DJe 01/02/2010).
No referido julgado, como o entendimento do acrdo impugnado pelos embargos de divergncia estava de acordo com a orientao firmada em sede de recurso especial repetitivo representativo da controvrsia, acima referenciado, no foi conhecido os embargos, mesmo em funo do contedo da Smula n 168 do STJ que no admite embargos de divergncia, quando a jurisprudncia do tribunal se firmou no mesmo sentido do acrdo embargado. Desta forma, considera-se inexistente a divergncia, para o fim de lastrear as demais decises no julgado que tornou a questo de direito incontroversa, retomando-se, portanto, a segurana jurdica. O Recurso especial repetitivo 1.112.748/TO, por sua prpria natureza, tornou-se paradigma, servindo de lastro para as decises que se seguiram, at hoje. 262 Destacamos os seguintes arestos do Superior Tribunal de Justia:
AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARAO EM RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. ALTERAO DO ENTENDIMENTO. APLICAO DO ART. 20 DA LEI 10.522/02 (LIMITE DE R$ 10 MIL). PRECEDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Nada obstante as alegaes trazidas pelo agravante, em deciso proferida pela 3 Seo desta Corte Superior, no julgamento do REsp 1.112.748/TO, alterou-se o entendimento quanto aplicao do princpio da insignificncia, relativamente aos crimes de descaminho, adotando-se o disposto no art. 20 da Lei 10.522/02, entendendo ser aplicvel o valor de at R$ 10.000,00, como excludente de tipicidade penal. 2. Agravo Regimental desprovido. (AgRg nos EDcl no REsp 1111905/RS, 5 T. Rel. Min. Napoleo Nunes Maia Filho, julgado em 19/11/2009, DJe 01/02/2010. Destacamos)
262 STJ, 5 T, RHC 27623-SP. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 21/06/2010; HC 101.505/SP, 5 T. Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 29/09/2009, DJe 07/12/2009 Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 89
RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. DBITO FISCAL. PATAMAR INFERIOR AO PREVISTO NO ARTIGO 20, DA LEI N 10.522/2002. APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. I - Segundo jurisprudncia firmada no mbito do Pretrio Excelso - 1 e 2 Turmas - incide o princpio da insignificncia aos dbitos tributrios que no ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n 10.522/02. II - A e. Terceira Seo desta Corte, no julgamento do Resp n 1112748/TO, realizado na sesso do dia 09/09/2009, decidiu ajustar- se orientao do c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei n 11.672/08. III - In casu, como o valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas inferior ao patamar estabelecido no art. 20 da Lei 10.522/2002, est caracterizada a hiptese de desinteresse penal especfico. Ressalva do entendimento do Relator.Recurso provido. (RHC 26.326/MS, 5 T., Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 17/09/2009, DJe 03/11/2009, destacamos)
H quem defenda que, dependendo das circunstncias, a incidncia do princpio da insignificncia pode ser afastado, por mais que a leso seja, de fato, penalmente insignificante, ou seja, inferior a 10.000,00 (dez mil reais). Nessa perspectiva, se o crime de descaminho foi praticado por meio de associao ou organizao criminosa, seria inaplicvel o princpio descriminalizador, este o entendimento de Jlio Ribeiro:
ainda que nfimo o desvalor do resultado, devido ao alto grau de desvalor da ao, ou seja, a conduta tica e socialmente muito reprovvel. Evita- se, assim, que cidados se aproveitem da abertura resultante da no interveno do direito penal, associando-se a outros para a internao de grande quantidade de mercadorias.
Sem embargo do exposto, nosso entendimento diverso, porquanto crime de descaminho um delito tributrio (ainda que esteja no Cdigo Penal, e este entendimento pacfico) que no se confunde com o crime organizado, que tradado pela Lei 9.034/1995, a qual dispe sobre a utilizao de meios operacionais para a preveno e represso de aes praticadas por organizaes criminosas. 263 Dessarte, no h que se confundir os dois delitos, o fato de a organizao criminosa no ser insignificante, no faz da leso inexpressiva, decorrente do descaminho, relevante.
263 Art. 1 Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatrios que versem sobre ilcitos decorrentes de aes praticadas por quadrilha ou bando ou organizaes ou associaes criminosas de qualquer tipo Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 90
Por outro lado, no se olvida que os crimes de descaminho que ultrapassem a margem de 100,00 (cem reais) e no alcancem o quantum de 10.000,00 (dez mil reais) ser apenas arquivado sem baixa na distribuio, o que significa dizer que no causa a extino de crdito. Por fim, nas palavras de Jlio Ribeiro:
A fixao de um parmetro objetivo, seguro e constante para a concretizao judicial do princpio da insignificncia serve para prevenir o escndalo poltico que resulta quando a jurisprudncia massivamente muda de critrio e considera atpica uma conduta que at esse momento qualificara como tpica, porque duas pessoas que realizaram idnticas aes reguladas pela mesma lei tero sido julgadas de modo que uma resultou condenada e a outra absolvida. Para correo dessa injustia deve ser viabilizada a reviso criminal, com fulcro no art. 621, I, do CPP, considerando-se a condenao como um decreto contraposto ao texto expresso da lei interpretada. 264
Deste modo, diante dos critrios objetivamente definidos para a incidncia do princpio da insignificncia, destinado a corrigir o imperfeito processo legislativo, admite-se a reviso criminal para o fim de atacar sentena anterior que reconheceu como tpica a ao penalmente insignificante.
4.4. A seletividade social para a persecuo penal no delito de descaminho As infraes a normas gerais realizadas no setor da economia e comrcio por pessoas colocadas em posio de prestgio social correspondem a um fenmeno caracterstico de todas as sociedades de capitalismo avanado. Sobre o vastssimo alcance deste fenmeno influem de forma especial, as conivncias entre classe poltica e operadores econmicos privados, que tiveram eficcia sobre causas do fenmeno e sobre a medida muito escassa, em relao a outras formas de criminalidade. A criminalidade no mbito da economia e comrcio pelas classes sociais abastadas, ou perseguida, ou escapa completamente, de forma refinada, das malhas sempre muito largas das leis, seja por fatores que so, consoante Zaffaroni, ou de natureza social (o prestgio dos autores das infraes, o escasso efeito estigmatizante das sanes aplicadas, a ausncia de um esteretipos que oriente as agncias oficiais na perseguio das infraes, como
264 RIBEIRO, Jlio Dalton. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 65. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 91
existe, ao contrrio, para as infraes tpicas dos estratos sociais mais desfavorecidos), ou de natureza jurdica formal (a competncia de comisses especiais ao lado da competncia de rgos ordinrios, para certas formas de infraes, em certas sociedades), ou, ainda de natureza econmica (a possibilidade de recorrer a advogados de renomado prestgio, ou de exercer presses sobre os denunciantes etc.) 265 .
A criminalidade de carter econmico, financeiro e tributrio concebida de maneira demasiadamente inferior em relao sua incalculvel cifra negra, cujas estatsticas distorceram as teorias da criminalidade, sugestionando uma falsa distribuio da criminalidade nos grupos sociais. Disto decorre uma definio corrente da criminalidade como um fenmeno concentrado, em especial, nos estratos inferiores, e pouco representado nos estratos superiores e, conseqentemente, ligada a fatores pessoais e sociais relacionados pobreza, a compreendidos, observa Sutherland, a enfermidade mental, o desvio psicoptico, a moradia em slum (favela) e a m situao familiar 266
A atuao dos rgos oficiais influenciada e guiada pelos esteretipos da criminalidade, tornando-a socialmente seletiva com as acepes de criminalidade que o povo compartilha. Esta acepo de criminalidade, e as correlativas reaes no institucionais por ela condicionadas, esto ligadas ao carter estigmatizante que a criminalidade leva consigo, que deveras escasso quando se pensa na criminalidade dos estratos superiores. Isto acontece em razo da limitada perseguio, tambm pela insignificante incidncia social das sanes correspondentes, especialmente daquelas exclusivamente econmicas e, em razo do prestgio social de que gozam os autores dos delitos 267 . A criminalidade no um comportamento de uma restrita minoria, mas, ao contrrio, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade 268 , todavia, alguns so selecionados de forma pr-ordernada para o efeito de o Estado infligir a punio.
Partindo de um ponto de vista mais geral e observando a seleo da populao criminosa dentro da perspectiva macrosociolgica da interao e das relaes de poder entre os grupos sociais,
265 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit. p. 102. 266 SUTHERLAND Apud BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit. p. 102. 267 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 103. 268 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 92
reencontramos, por detrs do fenmeno, os mesmos mecanismos de interao, de antagonismo e de poder que do conta, em uma dada estrutura social, da desigual distribuio de bens e de oportunidades entre os indivduos 269
Sob este aspecto, possvel vislumbrar o real sentido do fato de que a populao carcerria, nos pases de capitalismo avanado, em sua maioria, seja eleita entre as classe operria e as classes economicamente desprovidas. Reportando-se proposio de Fritz Sack, Zaffaroni aduz que a maioria dos cidados est entre os criminosos, fato que transporta idia de que a criminalidade enquanto realidade social, no uma realidade pr-constituda em relao atividade dos magistrados, mas uma propriedade conferida por estes a certos sujeitos, no somente segundo a conduta destes se subsuma ao no ao tipo abstrato previsto na lei, mas, alm disso e, principalmente, conforme as meta-regras 270 , tomadas no seu sentido objetivo 271 . Ainda, Fritz Sack pondera os juzos atravs dos quais se atribui um delito a uma pessoa, como juzos atributivos que determinam o atributo criminal desta pessoa com as implicaes jurdicas e sociais conexas, v.g. estigmatizao, mudana de status e de identidade social etc. Nesse sentido, a sentena criaria uma nova caracterstica para o imputado, colocando-o em uma posio que, sem a sentena, no possuiria. A estrutura social de uma sociedade que distingue cidados violadores ou no da lei, no uma ordem dada, mas produzida 272 . A criminalidade, no pensamento de Sack no entendida como um comportamento, mas sim como um bem negativo, paralelo aos bens positivos, v.g. renda, privilgio etc, A propsito, seria o exato oposto ao privilgio, submetida a processos de distribuio equivalente a deste 273 . A criminalidade no existe na natureza, mas uma realidade construda socialmente atravs de processos de definio e interao 274 .
269 Idem, p. 107. 270 As regras sobre aplicao ou meta-regras seguidas, conscientemente ou no, pelas instncias de direito, e correspondentes s regras que determinam a definio de desvio e de criminalidade no sentido comum, esto ligadas leis, mecanismos e estruturas objetivas da sociedade baseadas sobre relaes de poder (e de propriedade) entre grupos e sobre as relaes sociais de produo Idem, p. 105-106. 271 Idem. p. 107. 272 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit., p. 107-108. 273 Idem, p. 108. 274 Idem, ibidem. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 93
Neste talante, a relao entre direito penal e desigualdade na sociedade capitalista implica na formao e produo da norma penal de forma seletiva, passando o direito penal a ser produtor e reprodutor de relaes de desigualdade, na medida em que um dos mecanismos que mantm a reproduo do modo de produo capitalista. A aplicao seletiva das sanes penais estigmatizantes como o crcere, faz parte da estrutura social, mantendo a escala vertical da sociedade 275 . Ainda, consoante Zaffaroni, a aplicao seletiva incide no status social do sujeito pertencente classe social subalterna, impedindo sua ascenso social e, para alm disto explica como uma funo simblica da pena:
a punio de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um nmero mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalizao. Desse modo, a aplicao seletiva do direito penal tem como resultado colateral a cobertura ideolgica desta mesma seletividadade. Contudo, ainda mais essencial parece a funo realizada pelo crcere, ao produzir, no s a relao de desigualdade, mas os prprios sujeitos passivos desta relao. Isso parece claro se se considera a relao capitalista de desigualdade, tambm e sobretudo como relao de subordinao, ligada estruturalmente separao entre propriedade da fora de trabalho e dos meios de produo e, por outro lado, disciplina, ao controle total do indivduo, requerido pelo regime de trabalho na fbrica e, mais em geral, pela estrutura de poder em uma sociedade que assumiu o modelo da fbrica. 276
Quer isto dizer que o crcere, alm de manter a desigualdade j existente, produz sujeitos desiguais, recrutando estes das zonas mais pobres, representando, assim, o sistema penal burgus. O crcere consubstancia-se em um processo de seleo que comea com a discriminao social e vai at a consolidao definitiva de uma carreira criminosa 277 . Tudo isso refora a idia de que o sistema penal no previne condutas delitivas, mas, ao inverso, condicionam essas condutas pelo processo do etiquetamento, ou labeling approach, como j vimos supra, ampliando a violncia
275 Idem, p. 166. 276 Idem, ibidem. 277 antes de ser a resposta da sociedade honesta a uma minoria criminosa(...) o crcere , principalmente, o instrumento essencial para a criao de uma populao criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do proletariado, separada, da sociedade e, com consequncias no menos graves, da classe. Na demonstrao dos efeitos marginalizadores do crcere, da impossibilidade estrutural da instituio carcerria cumprir a funo de reeducao e de reinsero que a ideologia penal lhe atribui, concorrem a observao histrica, que demonstra o substancial fracasso de toda obra de reforma desta instituio BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica... Op. cit. p. 167-168. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 94
atravs da segregao institucional que gera a prisionizao e derpersonalizao 278 . Mais do que isto, demonstra que o sistema penal seleciona pessoas ou aes, como tambm criminaliza os sujeitos segundo sua classe e posio social, nas palavras de Zaffaroni e Pierangeli:
H uma clara demonstrao de que no somos todos igualmente vulnerveis ao sistema penal, que costuma orientar-se por esteretipos que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalizao gera fenmeno de rejeio do etiquetado, bem como tambm daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregao se mantm na sociedade livre. A posterior perseguio por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatizao social do criminalizado. 279
Vale dizer: o sistema penal seleciona indivduos dos estratos subalternos, ou seja, dos humildes e marginalizados, criminalizando-os. Ao mesmo tempo, aqueles que detm o poder de definio, o poder de decidir acerca do sentido da criminalizao, igualmente tem o poder de se subtrair esta. Quer isto significar que no Estado Democrtico de Direito, a submisso de todos ao Direito posto no se realiza perfeitamente 280 , ou seja, tem graus de realizao, conformando-se inevitavelmente estratificao social. No talante aos crimes de insignificncia sobeja, o professor Luiz Flvio Gomes bem anota, com arrimo na lio de Gustavo Vitale, acerca dos efeitos da criminalizao de tal condutas, vale transcrever:
A penalizao das mnimas bagatelas (segundo o direito penal), por outro lado, geraria males muito mais graves dos que os tende evitar, porque evidente que nada favorece tanto a criminalidade como a penalizao de qualquer injusto consistente em uma nimiedade. Ademais a estigmatizao que o prprio processo penal gera, o labor dos funcionrios e empregados do Poder Judicirio avocados investigao e anlise destes fatos, o tempo e esforo empregado por aqueles que devem colaborar de outro modo com a justia (como o caso das testemunhas e dos peritos) e o custo econmico que a atividade judicial demanda, so to s alguns outros inconvenientes que demonstram a no necessidade do controle penal das insignificncias e, particularmente da colocao em funcionamento da engrenagem judicial. A pena para as bagatelas, ento, longe de constituir uma resposta
278 ZAFFARONI, Ral Eugnio; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual..., p. 67. 279 Idem, ibidem. 280 Idem, p. 68. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 95
institucional necessria, seria na verdade em meio irracional, desproporcional em relao aos fatos aos que se aplica, que provocaria males inaceitavelmente maiores que aqueles que com a pena procura se evitar 281
Observa-se, destarte, que a criminalizao secundria se d sobre as pessoas vulnerveis das classes sociais subalternas, ao inverso do que ocorre com as elites econmicas, tendo por efeito, a estigmatizao e o desvio da personalidade, ao mesmo tempo em que reproduz a desigualdade econmica e a verticalizao social. O instrumento de descriminalizao consistente no princpio da insignificncia no alcana todos, mesmo quando se afigura possvel, principalmente nos delitos contra o patrimnio, um dos valores mais protegidos na ordem capitalista, como veremos mais abaixo. No tocante ao delito de descaminho, especificamente atividade dos sacoleiros, foroso desconsiderar a tipificao de crime como consta no artigo 334 do Cdigo Penal. Neste sentido, o Habeas Corpus seria um meio de reparar uma grande injustia que vem sendo cometida contra muitas pessoas pobres e desempregadas nesse pas" 282
Consoante o Procurador da Repblica Dr. Joo Gilberto Gonalves Filho, se o empresariado, que mais comete os crimes contra a ordem tributria, no vai preso em flagrante e s pode ser denunciado aps a materialidade constatada pela regular apurao de crdito tributrio em procedimento administrativo fiscal, no justo nem jurdico (porque viola o princpio da igualdade) termos dois pesos e duas medidas com relao aos sacoleiros que trazem mercadorias importadas, geralmente do Paraguai
Para Gonalves Filho, em geral, as pessoas que tem sua liberdade constrita por descaminho a classe subalterna, formada por pobres e desempregados que, em pssimas condies, vo ao Paraguai comprar mercadorias para vender e garantir o sustento da famlia. Destaco:
Quem vai preso em flagrante por contrabando ou descaminho no so os tubares dessa espcie de crime, que lucram muito com a sua prtica e tm seus negcios escorados em forte e corrupta rede de proteo estatal. Definitivamente, quem vai preso em flagrante por esse tipo de crime a arraia mida, gente miservel que no encontra outro meio de sobreviver.
Consoante concluso do ilustre Procurador da Repblica:
281 Gustavo vitale apud GOMES, Luiz Flvio. Princpio da insignificncia... Op. cit., p. 77. 282 Habeas Corpus - Ministrio Pblico Federal - Procurador Joo Gilberto Gonalves Filho Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 96
a) O Estado no propicia emprego suficiente para todas as pessoas que necessitam; b) O universo de prises em flagrante pelos crimes de descaminho atinge pessoas miserveis e desempregadas, que se sujeitam a uma viagem longa e seguem enfurnadas, "via de regra, num nibus ftido, lutando para sobreviver"; c) Considerando os itens anteriores, no h reprovabilidade social na conduta de quem se torna sacoleiro para sustentar a si mesmo ou sua famlia; d) Os verdadeiros "tubares" do descaminho, que lucram muito dinheiro com esse negcio, no se sujeitam referida viagem, por isso mesmo no so presos em flagrante; e) Os empresrios que praticam crimes contra a ordem tributria, iludindo o fisco no recolhimento dos tributos devidos, nunca so presos em flagrante: se existirem casos no Brasil, certamente poderemos cont-los nos dedos. f) Como decorrncia do princpio da isonomia, a mesma prxis deve ser aplicada aos crimes de descaminho; g) Ignora o princpio da dignidade da pessoa humana (e o paradigma do direito penal mnimo), bem como a atual poltica criminal, lanar na cadeia pessoas que no revelam a periculosidade social necessria para tanto, nem cometeram fato de tal gravidade que o justifique; h) "O erro no est propriamente na conduta das autoridades policiais, que so obrigadas a prender em flagrante e no podem conceder fiana. O erro do sistema de persecuo criminal, cabendo ao Poder Judicirio tomar a medida cabvel para corrigir essa distoro sistmica"; i) A punio representada pela pena privativa de liberdade mostra-se absurdamente desproporcional ao crime de descaminho, j que a perda integral da mercadoria para o fisco que o basta para punir exemplarmente tal conduta ilcita; j) Para evitar que muitas pessoas continuem sendo presas sem necessidade, sujeitas ao tratamento humilhante e desumano do crcere, a medida mais coerente a se tomar impedir a priso em flagrante pelos crimes de descaminho;
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Tal medida no implicar a impunidade de quem quer que seja, j que (i) no impedir que a autoridade policial federal apreenda as mercadorias e colha o depoimento de todos os envolvidos, instaurando inqurito policial e remetendo os autos a Juzo, nem impedir a instaurao (e condenao) dessas pessoas por processos de contrabando ou descaminho, a critrio do Procurador da Repblica e do Juiz Federal oficiantes em cada caso; (ii) no impedir, caso seja necessria, a priso cautelar por contrabando ou descaminho determinada por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente; (iii) no impedir a priso por crimes conexos com o contrabando ou descaminho, praticados em concurso formal ou material; (iv) no impedir a severa punio administrativa hoje aplicada, consistente na apreenso e posterior perda das mercadorias, decretada em regular procedimento administrativo fiscal. 283
Ante todo o exposto, vislumbra-se que at no delito de descaminho, que um crime de natureza eminentemente tributria, o sistema penal seleciona os agentes sujeitos ao processo de criminalizao secundria, conforme sua posio na estrutura econmico-social.
4.5. O poder punitivo comercivel nos delitos tributrios e o poder punitivo entitativo e indelvel nos delitos patrimoniais Da anlise da dos parmetros de aplicabilidade do princpio da insignificncia ao crime de descaminho e a sua aplicao casustica quanto aos crimes patrimoniais - sem olvidar que a lgica para aplicao do princpio no a mesma no mbito do direito penal e do direito tributrio, vez que cada seara tem suas peculiaridades intrnsecas e inafastveis - observa-se uma clarividente afirmao da seletividade dos estratos sociais subalternos para criminalizao primria e, especialmente, secundria. O sistema penal, no que tange aos delitos patrimoniais promove condies para uma carreira criminal, dentre as pessoas das camadas mais humildes, selecionando-as de modo a formar um rol de desviados. Tal mecanismo constitui uma insofismvel violao dos direitos humanos, eis que o sistema insiste com a pena (criminalizao secundria), destruindo o sujeito, negando-lhe a dignidade. E esse mesmo sistema que seleciona as pessoas e as sujeita criminalizao, com a conseqente destruio de sua integridade fsica, psquica e moral, tambm
283 Habeas Corpus - Ministrio Pblico Federal - Procurador Joo Gilberto Gonalves Filho. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 98
compartilha essa criminalizao com os rgos oficiais de controle, v.g. Ministrio Pblico, magistratura e funcionrios judiciais 284 . O parmetro adotado para aplicao do princpio da insignificncia ao delito de descaminho revela, querendo ou no, um afrouxamento da poltica criminal para crimes tributrios, especialmente quanto aos "tubares do crime". evidente que semelhante construo, sem embargo de afirmar retoricamente a tendncia do direito penal mnimo, mitiga a funo da preveno geral - por ns criticada - para crimes tributrios, sem atentar que o resultado da tributao considerada insignificante, em sua totalidade, pode ser revertido para execuo de polticas pblicas voltadas para evitar a criminalizao dos sujeitos dos estratos sociais subalternos. Portanto, insta dar uma especial valorao aos furtos famlicos ou de inexpressividade nfima, como por exemplo, furtos de pequeno valor em supermercados, pelos quais no se justifica a priso, vez que a pena aplicada mais grave que o dano. Em um regime democrtico de direito imperativo a considerao do princpio da proporcionalidade entre a gravidade do delito e a intensidade da sano. H de serem observadas as peculiaridades do caso concreto, com a conseqente individualizao da pena. provvel, seno certo, que as infraes materialmente atpicas, devido a insignificncia da ofensa aos bens jurdicos tutelados, levam, inexoravelmente, ao relaxamento da priso. O primeiro ato da polcia judiciria, consistente na priso indistinta, em relao aos crimes materialmente atpicos, tratar de forma igual situaes absolutamente desiguais 285 . Apesar de todo o exposto acerca dos parmetros de aplicabilidade do princpio da insignificncia no direito penal, em sentido amplo, tem-se as seguintes decises recentes e absurdas 286 no que toca aos delitos patrimoniais. Vejamos, ttulo de exemplo 287 :
284 ZAFFARONI, Ral Eugnio; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 69. 285 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 493. 286 A contrrio sensu: HC 104828 STF; HC 152359 STJ; HC 104070 STF; 287 Ainda Furto de dois sacos de fumo no pode ser considerado crime de bagatela A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justia (STJ) conheceu em parte e deu provimento a um recurso especial do Ministrio Pblico do Estado do Rio Grande do Sul em que se pretendia afastar o princpio da insignificncia em um caso de furto qualificado de dois sacos de fumo avaliados em R$ 270,00. A deciso da Turma foi unnime e, agora, o processo retorna ao tribunal Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 99
FURTO. PENITENCIRIA. PRINCPIO. INSIGNIFICNCIA. A Turma, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus a paciente condenado por tentativa de furto de um cartucho de tinta para impressora avaliado em R$ 25,70. Segundo o Min. Relator, no obstante o nfimo valor do bem que se tentou subtrair, o alto grau de reprovao da conduta no permite a aplicao do princpio da insignificncia, pois perpetrada dentro da penitenciria em que o agente cumpria pena por crime anterior, o que demonstra seu total desrespeito atuao estatal. Precedentes citados do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004; do STJ: HC 104.408-MS, DJe 2/8/2010, e HC 152.875-SP, DJe 7/6/2010. HC 163.435-DF, Rel. Min. Napoleo Nunes Maia Filho, julgado em 28/9/2010. 288
A Turma reiterou seu entendimento de que no se aplica o princpio da insignificncia ao crime de moeda falsa, pois se trata de delito contra a f pblica, logo no h que falar em desinteresse estatal sua represso. No caso, o paciente utilizou duas notas falsas de R$ 50 para efetuar compras em uma farmcia. Assim, a Turma denegou a ordem. Precedentes citados do STF: HC 93.251-DF, DJe 5/8/2008; do STJ: HC 78.914-MG, DJe 1/12/2008; REsp 964.047-DF, DJ 19/11/2007, e HC 129.592-AL, DJe 1/6/2009. HC 132.614-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 1/6/2010. 289
Sexta Turma deve julgar se aplica insignificncia em furto de seis escovas de dente A desconsiderao do furto de seis escovas de dente, no valor de R$ 30,00, o objeto do pedido de um habeas corpus a ser julgado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justia (STJ). O presidente
de origem para que sejam apreciados os pedidos remanescentes contidos na ao. J.J.P., contando com a participao de um menor, furtou os dois sacos de fumo com 50 quilos cada um. O acusado foi denunciado pelo MP estadual por crime de furto qualificado e, tambm, pelo delito de corrupo de menores. A Defensoria Pblica recorreu, em nome do ru, ao Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul (TJRS), alegando que o crime poderia ser includo nas hipteses previstas no princpio da insignificncia. O TJRS deu provimento ao apelo da defesa, absolvendo J.J.P. do delito de furto, pois reconheceu como insignificante o valor dos bens subtrados e restitudos: O nfimo valor da rs no autoriza a insero da pendenga em seara penal. Prejudicada a imputao do crime de corrupo de menores. O MP local recorreu, ento, ao STJ, alegando que o furto dos sacos de fumo no poderia ser considerado insignificante para o delito penal, bem como para a configurao do crime de corrupo de menores. Desnecessria a comprovao de que o menor tenha se degradado para a configurao do delito de corrupo de menores, defendeu. O ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do processo, acolheu os argumentos do MP, porm ressaltou que o tema da aplicao do princpio da insignificncia permanece controvertido tanto na doutrina como na jurisprudncia ptria. Entretanto, indiscutvel a sua relevncia, na medida em que exclui da incidncia da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ao e/ou do resultado implique uma nfima afetao ao bem jurdico. Em seu voto, Esteves Lima transcreveu trecho de deciso do Supremo Tribunal Federal (STF) que afirma: Para a incidncia do princpio da insignificncia, necessria a ocorrncia de quatro vetores, a saber: a mnima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ao; o reduzidssimo grau de reprovao do comportamento envolvido e a inexpressividade da leso jurdica provocada. Para o relator, no caso da subtrao de dois sacos de fumo avaliados em R$ 270,00, estaria caracterizada a definio do crime de furto, mostrando-se proporcional a medida socioeducativa, uma vez que a ofensividade da conduta, a periculosidade social da ao, a reprovabilidade do comportamento e a leso ao bem jurdico revelaram-se expressivas 288 Informativo n. 0449 do STJ - Perodo: 27 de setembro a 1 de outubro de 2010. 289 Informativo n: 0437 do STJ - Perodo: 31 de maio a 4 de junho de 2010. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 100
do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, negou liminar em habeas corpus requerida pela defesa do ru, que pretendia trancar a ao. No processo de habeas corpus, a Defensoria Pblica do Estado de So Paulo sustenta que a conduta do ru irrelevante, o que permite desconsiderar a tipicidade, diante do princpio da insignificncia. O rgo, que busca trancar a ao penal, sustentou um pedido de liminar no STJ. Para o ministro Cesar Asfor Rocha, no esto presentes, no caso, os pressupostos autorizadores de uma liminar. A concesso da tutela urgente, ainda que em cognio sumria e singular, exigiria a demonstrao da existncia do direito e do chamado periculum in mora. No caso concreto, no se evidencia a plausibilidade do direito vinculado, o que desautoriza esta presidncia, de forma prematura, a desconstituir o ato impugnado, que no se mostra, primeira vista, desarrazoado ou carente de fundamentao, assinalou. Reserva-se, portanto, ao juiz natural, depois da instruo do feito, a apreciao definitiva da matria, concluiu Cesar Rocha.
Preso por furto de jogo de lenol em supermercado consegue liberdade provisria O ministro Hamilton Carvalhido, no exerccio da presidncia do Superior Tribunal de Justia (STJ), deferiu o pedido de liberdade provisria a Alex Machado da Silva, preso em flagrante pelo crime de furto tentado. A deciso determina, ainda, que Silva assine termo de compromisso de comparecimento nas datas designadas e de no mudar de residncia, nem se ausentar do distrito da culpa, sem antecedente comunicao. Silva foi preso em flagrante em 17 de fevereiro deste ano porque tentou furtar um jogo de lenol, no valor de R$ 69,90, pertencente ao Supermercado Bretas, em Juiz de Fora (MG). O pedido de liberdade provisria, de maro de 2010, no foi apreciado pelo juzo da 3 Vara Criminal de Juiz de Fora. A defesa, ento, impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justia de Minas Gerais, que no o analisou sob pena de supresso de instncia, j que o juzo de primeiro grau no apreciou o pedido anterior. No STJ, a defesa sustenta a ausncia dos motivos legais que autorizam a priso preventiva e aponta a no apreciao do pedido de liberdade pelo TJ/MG. A demora na prestao jurisdicional pleiteada acarretar prejuzo irreparvel ao paciente (Silva) que se ver impedido de cumprir sua pena na forma prescrita em lei ou, se for o caso, de recorrer ao Tribunal Superior contra deciso desfavorvel a seus interesses, afirmou. Para o ministro Carvalhido, no se justifica a custdia cautelar ante a mora do Judicirio, principalmente em se tratando de furto simples tentado, em que Silva foi preso em flagrante, encontrando-se recluso h mais de quatro meses sem que seu pedido de liberdade provisria tenha sequer sido analisado.(...)
Revela-se, pelos excertos supra que o princpio da insignificncia totalmente olvidado, com a conseqente criminalizao justamente daquelas pessoas excludas do mercado de consumo. A constrio da liberdade, pelo que se percebe, a primeira medida imposta, sem verificao da danosidade social ou dos requisitos da priso cautelar ou, ainda, das peculiaridades do caso concreto. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 101
No caso de furto, deve-se proceder a um exame ex post facto da leso patrimonial sofrida pela vtima 290 , perquirindo acerca da objetiva repercusso no mbito de seu patrimnio, ou seja, conforme a singularidade do caso concreto. Quanto ao crime de roubo, no se admite a aplicao do princpio por se tratar de um tipo complexo que tutela a liberdade pessoal (constrangimento ilegal), no entanto, entendemos que o autor deve responder pela leso expressiva ao bem jurdico, com a ciso do tipo, respondendo o autor apenas ao constrangimento ilegal. Veja-se que o furto de bens de inexpressivo valor e danosidade social no justifica, por si s, a priso preventiva do autor do delito. Ademais um verdadeiro absurdo deixar que semelhantes delitos cheguem at o Superior Tribunal de Justia ou ao Superior Tribunal Federal, principalmente para que se pleiteie a liberdade. Tais casos bem demonstram o maximalismo punitivista 291 , bem como a seleo dos sujeitos desviados, relegitimando, assim, a ordem social desigual existente. O direito penal deixa de ser um limite ao arbtrio do Estado e passa a ser um repressor dos direitos e garantias fundamentais, caracterizadores do Estado Democrtico de Direito, em cujo interior, est proscrito o tratamento desumano ao preso ou condenado. Quando da aplicao de sanes o Estado no pode, sob qualquer pretexto, proceder a uma interveno punitiva que lesione a dignidade pessoal do autor do delito. No entanto o que ocorre degenerao da identidade do "desviado" pelo fato do processo e pela realidade do crcere, que provoca marcas indelveis na personalidade do ru, a influenciar seu convvio posterior na sociedade.
290 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos Crticos.... Op. cit., p. 352. 291 Ver CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicao da Pena e Garantismo. 3 ed. ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004; HASSEMER, Winfried. Crtica al derecho penal de hoy. Traduccin Patricia S. Ziffer. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 1997; BATISTA, Vera Malaguti, CORSI, Giancarlo. A funcionalidade do processo de criminalizao na gesto dos desequilbrios gerados nas formaes sociais do capitalismo ps-industrial e globalizado. In. Globalizao, Sistema Penal e Ameaas ao Estado Democrtico de Direito. Mria Lcia Karam (org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005; GUIMARES, Cludio Alberto Gabriel. Funes da pena privativa de liberdade no sistema penal capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 102
CONSIDERAES FINAIS: O INTRPRETE DEVE BUSCAR A JUSTIA, AINDA QUANDO NO A ENCONTRE NA LEI
De tudo quanto exposto, no se olvida que o direito penal mnimo e a conseqente aplicao do princpio da insignificncia tem por fim afirmar as garantias inscritas em nossa Carta Constitucional. Em um sentido mais amplo, quer dizer que se nos afiliassemos expanso do direito penal, teramos que abjurar de todo o sistema principiolgico constitucional que rege, enquanto fonte maior do direito penal, todos os procedimentos do processo penal no Estado Democrtico de Direito. A conjugao de todos os princpios informadores da insignificncia no direito penal j limitariam o ius poenali e fundamentariam a no interveno do direito penal quando a ofensa demasiada nfima ou inexpressiva a danosidade da conduta. Mas como se viu, na falta de critrios, o ideal o estabelecimento de parmetros claros e objetivos a amparar a segurana jurdica. Para alm disto, a ausncia de danosidade social ou a proibio de excesso so fundamentos para a no interveno do direito penal a condutas insignificantes, insuficientes para motivar qualquer castigo penal ou para fazer incidir a lei penal. A propsito, o princpio da insignificncia exime o autor da pena, da responsabilidade penal, mas no da responsabilidade civil, administrativa, trabalhista, tributria etc. Ante estas breves consideraes, mostra-se imperiosa uma postura clara dos operadores do direito, tanto magistrados quanto defensores e membros do Ministrio Pblico, diante deste tema e, principalmente, a explorao das possibilidades hermenuticas 292 que porventura contribuam para diminuir o
292 Em excelente passagem, o constitucionalista e filsofo Lnio luiz STRECK esclarece o que a atividade do hermeneuta: (...) fazer hermenutica jurdica realizar um processo de compreenso do direito. Fazer hermenutica desconfiar do mundo e de suas certezas, olhar o direito de soslaio, rompendo-se com (um)a herm(nu)tica jurdica tradicional-objetivamente prisioneira do(idealista) paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia.(...)Talvez por acreditar em sentidos a priori ou em verdades apofnticas, que os aplicadores do Direito, inseridos na j delineada crise do paradigma da dupla face, consigam (re)produzir decises sem se darem conta das repercusses sociais e da prpria funo social dele jurista e do (des)cumprimento do texto da Constituio. No se do conta do devir histrico, da conscincia exposta aos efeitos da histria (wirkungsgechichtliches bewussein) e de sua situao hermenutica, ou seja, no tem a compreenso prvia, a antecipao do sentido do que seja, por exemplo, a funo social do Direito (e so estado). In. Hermenutica Jurdica e(m) crise. Uma explorao hermenutica da construo do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 200. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 103
potencial altamente prejudicial da aplicao da lei penal, vale dizer, da criminalizao secundria. Neste talante, a deciso judicial deve passar por uma filtragem constitucional 293 , permitindo que, sob a lente da legitimidade, o intrprete, levando em conta as necessidades do direito material no caso concreto, o contraditrio, a plenitude de defesa, a proporcionalidade, a razoabilidade, a celeridade e a preservao dos ncleos fundamentais dos princpios e dos direitos fundamentais, pondere os interesses das partes, privilegiando o equilbrio das foras antagnicas, por meio dos princpios constitucionais balizadores e limitadores da hermenutica, de modo a enunciar uma deciso justa, colada realidade dos fatos. Atente-se que o ato de julgar, por implicar uma notvel margem de poder criador, influencia a evoluo e aplicao das regras punitivas, a reviso e a modificao do direito positivo. O magistrado, querendo ou no, compe para o caso concreto uma norma que vem completar o sistema objetivo do direito, implicando em uma verdadeira reelaborao legislativa, permeada por valoraes poltico-sociais 294 . Evocando a Theodore Roosevelt, o Prof. Dotti alinhava que os principais criadores do direito podem ser, e frequentemente so, os juzes. Com essas interpretaes, de fundamental importncia empresta direo a toda atividade de criao do direito 295 . As decises judiciais no seriam, deste modo, meramente descritiva, mas especialmente criativa. De outra parte, remetendo-se a Ricardo Antunes Andreucci, aduz:
a criao do direito pela jurisprudncia deflui no apenas da autorizao legal, da impreviso e da ilogicidade do legislador, tendendo busca da exata proporo capaz de superar o conflito entre a forma e a realidade, entre la razione dell autorit e a autorit della razione. Tal ocorre nas hipteses de lacunas, antinomias e de muitos aspectos do crime e da
293 BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo Direito Constitucional Brasileiro..., op. cit., p. 44. 294 DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento... Op. cit., p. 402. 295 Idem, p. 403. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 104
pena, os quais evidenciam que a lei, em abstrato, no pode prever em tudo, em razo do multifacetrio emanado da realidade. 296
Ainda, no se pode consentir com a letra estagnada da lei quando encerra desconformidades sintomticas. Note-se que ao interesse da sociedade que se deve ceder vitria, e no inteno do legislador sobremaneira indeterminvel, equivocada ou esvaziada com o passar dos anos 297 . A coero penal deve dar enlevo segurana jurdica, contudo, se ultrapassa o limite de tolerncia na ingerncia aos bens jurdicos do infrator, causa mais alarma social do que o prprio delito. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, no se cuida de que a pena retribua nenhum mal, e sim de que garanta os bens jurdicos sem lesionar o sentimento de segurana jurdica da comunidade 298 . Sob esse vis, imperioso o reconhecimento ao descaminho a mesma natureza fiscal das demais sonegaes fiscais, bem como o reconhecimento do princpio da insignificncia no caso concreto, para o fim de no aplicar a situaes equnimes regras diversas, e tambm evitar a manuteno no crcere, de indivduos que causaram uma danosidade social nfima, irrelevante ou inexistente, que tem como conseqncia a onerao descabida do Estado 299 . Conclui-se que a misso do direito penal tributrio consiste em promover o terror para satisfazer seu interesse de arrecadao, ou seja, o Estado elege o direito penal para forar o cumprimento das obrigaes tributrias independentemente da destinao do recurso. Deste modo a ao penal se
296 ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criao judicial. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 62 Apud DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento... Op. cit., p. 402. 297 Idem, p. 416. 298 ZAFFARONI, Ral Eugnio; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 85. 299 Notcia Push STJ de 31/05/2010 - 10h02 - Judicirio gasta R$ 2,6 mil para julgar tentativa de furto de R$ 5,89 O Superior Tribunal de Justia (STJ) determinou a extino de uma ao penal contra uma mulher condenada pela tentativa de furto de trs vidros de esmalte, avaliados em R$ 5,89. De acordo com a Quinta Turma, trata-se do chamado crime de bagatela, tendo em vista o pequeno valor, que no lesionaria o patrimnio da vtima e no causaria qualquer consequncia danosa. So correntes os casos que chegam ao STJ em que vem sendo aplicado o princpio da insignificncia. Bens cujos valores so nfimos se comparados ao custo mdio registrado para cada processo julgado no Tribunal no ano passado: R$ 2.674,24. No Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte do pas, o custo mdio do processo em 2009 foi de R$ 3.775,06. No incio de fevereiro, a Quinta Turma concedeu habeas corpus a um homem que furtou um caderno em uma papelaria. Outras situaes semelhantes que acabaram chegando ao Tribunal Superior se tornaram folclricas, como os furtos de um bon, de um pote de manteiga, de um cabrito, de uma bicicleta, de galinhas e de frangos congelados. Todos analisados pelo STJ e considerados crimes de bagatela. Tambm DOTTI, Ren Ariel, SCANDELARI, Gustavo Britta. A exigncia do exaurimento... Op. cit., p. 420. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 105
traveste de ao fiscal de cobrana com maior poder coercitivo, para penalizar condutas que podem ser resolvidas por outras reas do direito, que no o direito penal. Assim, afigura-se que o princpio da insignificncia no pode ser olvidado no Estado Democrtico e Social de Direito, especialmente na esfera penal, em suas diversas entrncias, inclusive administrativa, porquanto afeta a liberdade da pessoa humana e sua dignidade e porque a sociedade reclama por uma justia mais clere, gil e, principalmente, mais justa 300 . Justa na medida em que a criminalizao secundria no cause um processo de empobrecimento do ru vulnervel e sua famlia, estigmatizando-os pelo fato do processo, que passa a ser no mais a vontade da verdade, mas, como diria Salo de Carvalho 301 , a vontade do sistema, eleita como fim ltimo da prpria atividade. A descriminalizao das condutas que atentem contra a Ordem Tributria medida que se impe. Nesse talante, a mquina punitiva deve ser acionada para casos sobremaneira graves, com ateno aos direitos e garantias fundamentais. O judicirio pode enfrentar com muito mais eficincia e respeito s garantias as ofensas mais graves oriundas da grande criminalidade quanto mais reduzido for seu trabalho. 302
A rejeio da aplicao do princpio da insignificncia se operaria em nome da realizao incondicional da vontade irracional do Estado, que seria o nico bem jurdico sob a tutela do direito penal. Demais disso, se uma pena no cumpre uma funo preventiva particular, mas to somente se limita a ter uma funo simblica, a informao de fato deve ser valorado pelo direito, e, em tal situao, deve-se entender que essa pena inconstitucional, violadora dos direitos humanos, e, consequentemente, no se justifica a sua imposio 303 .
300 BRUTTI, Roger Spode. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 496. 301 PLETSCH apud CARVALHO, Salo de. Memria e esquecimento nas prticas punitivas. Revista de estudos Ibero-Amerticanos: Revista do Programa de Ps Graduao em Histria da PUC-RS, Ed. Especial, Porto Alegre: 2006, n.2, p. 85. In. Formao da Prova no Jogo Processual Penal: O atuar dos sujeitos e a construo da sentena. So Paulo: IBCCRIM, 2007, p. 37. 302 FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit., p.34. 303 FERRAJOLI, Luigi. A pena... Op. cit., p. 96. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 106
A desconsiderao do injusto mnimo, inexistente ou desprezvel, para o efeito de declarar atpica a conduta, coaduna-se com o direito penal do autor, enquanto corrupo do direito penal, a considerar o ato como manifestao de uma forma de ser do autor, a qual considerada delitiva. O ato, assim, seria sintoma de uma personalidade tomada como perigosa a priori e todo direito penal da periculosidade direito penal do autor 304 . Justamente para corrigir distores legislativas e tipificaes abrangentes, em que a pena imposta desproporcional ao dano provocado ao bem jurdico tutelado, que atua o princpio da insignificncia, enquanto instrumento seletivo das aes concretamente lesivas ao bem tutelado 305 , j que o legislador ao incriminar uma conduta no dispe de meios para evitar que tambm sejam alcanados casos leves 306 , bem como corrigir eventuais injustias na aplicao no tipo penal em casos de leso mnima ao bem jurdico tutelado. Fica mais do que evidente que o princpio da insignificncia no se consubstancia em um critrio de seleo de bens jurdicos, porquanto esta funo compete ao poder legislativo, este postulado diz respeito ao grau de intensidade da ofensa ao bem jurdico destacado pelo legislador como digno de tutela penal 307 . Se partirmos da premissa de que qualquer dano deva ser punido sem exceo, obviamente estaramos abjurando o Estado Democrtico de Direito e todos os seus fundamentos inscritos no art. 3 da Carta Maior.
304 ZAFFARONI, Eugnio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual... Op. cit., p. 105. 305 Idem, p. 471. 306 TAGLIALENHA, Jlio A. O princpio da insignificncia e os crimes contra a ictiofauna. In Revista Brasileira de Cincias Criminais, n 57, nov-dez de 2005, Editora Revista dos Tribunais, p. 76. 307 TAGLIALENHA, Jlio A. O princpio da insignificncia... Op. cit., p. 78. Generated by Foxit PDF Creator Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only. 107
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A Influência Do Neoconstitucionalismo Na Jurisprudência Do Supremo Tribunal Federal Relativa Aos Direitos de Liberdade - Rainieri Ramos Ramalho de Castro