O documento descreve a história de 500 anos de espionagem no Vaticano pela organização conhecida como "Santa Aliança". Apresenta como os papas usaram essa organização para influenciar eventos históricos e políticos através de atividades como assassinatos, venda de armas e financiamento de ditaduras, sempre em nome da fé católica.
O documento descreve a história de 500 anos de espionagem no Vaticano pela organização conhecida como "Santa Aliança". Apresenta como os papas usaram essa organização para influenciar eventos históricos e políticos através de atividades como assassinatos, venda de armas e financiamento de ditaduras, sempre em nome da fé católica.
O documento descreve a história de 500 anos de espionagem no Vaticano pela organização conhecida como "Santa Aliança". Apresenta como os papas usaram essa organização para influenciar eventos históricos e políticos através de atividades como assassinatos, venda de armas e financiamento de ditaduras, sempre em nome da fé católica.
O documento descreve a história de 500 anos de espionagem no Vaticano pela organização conhecida como "Santa Aliança". Apresenta como os papas usaram essa organização para influenciar eventos históricos e políticos através de atividades como assassinatos, venda de armas e financiamento de ditaduras, sempre em nome da fé católica.
Baixe no formato PDF, TXT ou leia online no Scribd
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 343
'A Santa Aliana - Cinco sculos de espionagem no Vaticano' repassa
as atividades clandestinas do servio de espionagem do Vaticano que
est conectado atuao poltica da Igreja Catlica e, consequentemente, do papado. O autor aborda temas espinhosos, mostrando que os papas, alm de exercerem grande influncia no Renascimento, protagonizaram passagens definidoras da histria nos ltimos sculos, como a Reforma e a Contra-Reforma, a Revoluo Francesa e a era industrial, alm da ascenso e queda do comunismo. Mostra, ainda, episdios de espionagem, conspirao e at roubos e assassinatos cometidos, por ordens do pontfice, em nome da f catlica. Eric Frattini (Lima, 1963) jornalista. Foi correspondente da Cadena Ser, do jornal Cinco Dias e do Canal Plus no Mdio Oriente. Entre as suas obras, destacam-se Cuestiones para la Paz Entre Ia sombra de Al y Ia estreita de David (1992), La Entrevista, et Arte y Ia Cincia (1994), Tiburones de La Comunicacin. Grandes lderes dos grupos multimedia (1996), Osama bin Laden, La Espada de Al (2001) e Secretos Vaticanos (2003). Atualmente colaborador de programa Cada dia na Antena Televisin.
Desde 1566, ano em que foi criado o servio de espionagem do Vaticano, at aos nossos dias, a Santa Aliana e a sua contra-espionagem viram-se envolvidas em assassinatos, venda de armas, financiamento de ditaduras, fuga de criminosos de guerra nazis e falncias bancrias. Tudo em nome de Deus e da f catlica e por ordem do Sumo Pontfice. A Santa Aliana um ensaio surpreendente que relata cinco sculos de operaes encobertas do servio de espionagem pontifcio.
Se o Papa ordena liquidar algum na defesa da f, faz-se isso sem fazer perguntas. Ele a voz de Deus e ns [a Santa Aliana] somos a mo executora.
Cardeal Paluzzo Paluzzi, chefe da Santa Aliana, sculo XVII.
Ao Hugo, o mais valioso para mim, por estar sempre presente e me dar o seu amor em cada dia da sua vida A Silvia, pelo seu amor e incondicional apoio em tudo o que fao A minha Me, por estar sempre a apoiar-me e a animar-me
Em cada operao de espionagem existe o que est acima e o que est por baixo da escrita. Por cima est o que algum faz de acordo com as normas. Por baixo est a forma como algum deve fazer o trabalho.
John Le Carr, Um Espio Perfeito.
Introduo
O Papado, a suprema autoridade da Igreja Catlica, a mais antiga organizao do Mundo e a nica instituio que floresceu na Idade Mdia. Foi um ator privilegiado no Renascimento, foi um dos protagonistas da Reforma e da Contra- Reforma, da Revoluo Francesa e da era industrial, da ascenso e queda do comunismo. Ao longo dos sculos, os papas, com base na sua famosa infalibilidade, centralizaram o impacto social que os acontecimentos histricos produziam em todo o Mundo. O historiador Thomas Babington, no seu estudo sobre a histria do protestantismo, afirmava que os papas souberam centralizar a Igreja, assim como souberam amortecer o seu impacto nos eventos histricos. Este autor acentuava mesmo a habilidade da Igreja para se apropriar ou se adaptar aos novos movimentos sociais que se formaram durante os sculos. O imperador Napoleo Bonaparte considerava o Papado como um dos melhores ofcios do Mundo, e Adolf Hitler dizia ser um dos mais perigosos e delicados da poltica mundial. Napoleo comparava a fora de um nico papa com a fora de um exrcito de duzentos mil homens. Na verdade, o Papado atuou sempre com duas caras ao longo de toda a Histria: a de cabea da Igreja Catlica em todo o Mundo e a de uma das maiores organizaes polticas do planeta. Por um lado, os papas abenoavam os seus fiis, por outro, recebiam embaixadores e chefes de Estado de diversos pases e enviavam nncios e legados em misses especiais. Este poder levou muita gente a encarar os papas mais como pais dos prncipes do que como vigrios de Cristo. Os pontfices clamavam desde o sculo VIII a primazia e a jurisdio universal para os seus atos, at que, em 1931, com a criao da Rdio Vaticano, se tornou possvel essa primazia e essa jurisdio ao estabelecer um permanente contacto com o Mundo. Ao longo da Reforma, Lutero atacava o Papado como um mal humano desnecessrio. O historiador catlico Lorde Acton criticava a excessiva centralizao do Papado e, aps uma viagem a Roma, afirmava que o poder corrupto e o poder absoluto corrompem absolutamente. A histria da Santa Aliana o servio de espionagem do Vaticano no pode ser relatada sem se contar a histria dos papas e a histria dos papas no pode ser descrita sem se contar a histria da Igreja Catlica. O que est claro que sem o catolicismo o papa no existiria e, como disse Paulo VI na sua encclica Ecclesiam suam, sem o papa a Igreja Catlica talvez no fosse catlica. O que realmente verdade que sem o poder real que os papas tiveram no existiria a Santa Aliana ou o Sodalitium Pianum, a contra-espionagem. Ambos fizeram parte dessa engrenagem que ajudaram a construir: a Santa Aliana desde a sua fundao em 1566 por ordem do papa Pio V e o Sodalitium Pianum (S. P.) desde a sua criao em 1913 por ordem do papa Pio X. Um outro historiador, Cario Castiglioni, autor de uma das melhores enciclopdias sobre os papas, chegou a escrever: A tripla tiara que os pontfices usam simboliza, sem dvida, o poder destes no cu, na terra e no mundo terreno (underworld). fcil explicar esta afirmao: no cu, o papa tem Deus, na terra, o papa basta-se a si mesmo e na clandestinidade (undenvorld {1} ) o papa tem a Santa Aliana. Apesar de a autoridade papal se ter alterado com as modernizaes e renovaes, tanto polticas como econmicas, os interesses da Igreja foram sempre o motivo pelo qual se movimentaram os espies do Vaticano. Os peritos vaticanistas asseguram que a Igreja e as estruturas papais nunca abandonaram a sua imagem de Imprio, ao mesmo tempo que observam que os aspectos de culto pela figura de um imperador foram simplesmente transferidos para a figura do papa. Os quarenta papas que governaram, ou melhor, reinaram desde a criao da Santa Aliana, desde Pio V at Joo Paulo II, tiveram de se confrontar com as descristianizaes e cismas, revolues e ditadores, colonizaes e expulses, perseguies e atentados, guerras civis e guerras mundiais, assassnios e sequestros. A poltica dos papas era um objetivo e a Santa Aliana apenas um poderoso instrumento para a levar a cabo. Do sculo XVI ao sculo XVIII, os inimigos com os quais o Papado e a Santa Aliana tiveram realmente de se debater foram os liberalismos, os constitucionalismos, as democracias, os republicanismos ou os socialismos. Mas nos sculos XIX e XX esses inimigos converteram-se em darwinismo, americanismo, modernismo, racismo, fascismo, comunismo, totalitarismo ou revoluo sexual. No sculo XXI ser a intromisso dos cientistas nas prprias questes religiosas, o bloco poltico nico, a superpopulao, o feminismo ou o agnosticismo social. Este fato vem demonstrar que, muitas vezes, a poltica vaticana e o seu servio secreto andaram em paralelo, utilizando diferentes mtodos com o nico propsito de alcanar um mesmo objetivo. Por um lado, o papa negociava a paralisao de medidas contrrias a Roma e, por outro, a Santa Aliana e a Ordem Negra intervinham na destruio dos seus inimigos. David Rizzio, Lamberto Macchi, Roberto Ridolfi, William Parry, James Fitzmaurice, Marco Antnio Massia, Giulio Alberoni, Alexandre de Mdicis, Giulio Guarnieri, Tebaldo Fieschi, Charles Tournon, John Bell ou Giovanni DaNicoIa foram alguns dos agentes da Santa Aliana que, atravs das suas operaes, mudaram o curso da Histria desde meados do sculo XVI at ao sculo XXI. Ludovico Ludovisi, Lorenzo Maggaloti, Olimpia Maidalchini, Sforza Pallavicino, Paluzzo Paluzzi, Bartolomeo Pacca, Giovanni Battista Caprara, Annibale Albani, Pietro Fumasoni Biondi ou Luigi Poggi foram alguns dos poderosos chefes da espionagem pontifcia que decidiram e realizaram, sempre em defesa da f, vrias operaes encobertas, crimes polticos e de Estado ou meras Iiquidaes de figuras secundrias que interferiam na poltica do papa vigente e na de Deus no mundo. Foram assassinados reis, envenenados diplomatas, apoiados grupos em conflito como norma da diplomacia pontifcia, fecharam-se os olhos a catstrofes e holocaustos, foram financiados grupos terroristas e ditadores sul-americanos, protegeram-se criminosos de guerra e lavou-se dinheiro da Mfia, manipularam- se mercados financeiros e falncias bancrias, condenaram-se os conflitos enquanto se vendiam armas aos combatentes, e tudo isso em nome de Deus. A Santa Aliana e o Sodalitium Pianum foram os seus instrumentos. Desde que o inquisidor Pio V, santificado anos depois, fundou a espionagem do Vaticano no sculo XVI com o nico objetivo de acabar com a vida da herege Isabel I da Inglaterra e de apoiar a catlica Maria Stuart, o Estado Vaticano nunca reconheceu a existncia da Santa Aliana ou da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, embora se possa dizer que as suas operaes foram um segredo pblico. Simon Wiesenthal, o famoso caa-nazis, disse numa entrevista que o melhor e mais efetivo servio de espionagem que eu conheo no Mundo o do Vaticano. O cardeal Luigi Poggi, que era conhecido como o espio do Papa (Joo Paulo II), foi quem levou a cabo uma das maiores modernizaes da Santa Aliana devido aos estreitos contactos com o Mossad israelita. Graas sua importncia, o servio secreto israelita pde desarticular um atentado contra a primeira-ministra Golda Meir na sua visita a Itlia. Poggi seria tambm o responsvel por utilizar os fundos do Vaticano necessrios, atravs do IOR de Paul Marcinkus, para financiar o sindicato Solidariedade dirigido por Lech Walesa, que seria uma operao conjunta entre a CIA de William Casey e a Santa Aliana. Nos seus cinco sculos de histria, a extensa sombra da Santa Aliana tornou-se visvel nas lutas contra a rainha Isabel I da Inglaterra ou na carnificina na noite de So Bartolomeu; na aventura da Armada Invencvel, no assassnio de Guilherme de Orange e do rei Henrique IV de Frana; na Guerra de Sucesso espanhola ou na crise com a Frana dos cardeais Richelieu e Mazarino; no atentado contra o rei dom Jos I de Portugal; na 15 Revoluo Francesa e em Austerlitz; na ascenso e queda de Napoleo, na guerra de Cuba e na de Secesso americana; nas relaes secretas com o kaiser Guilherme II durante a Primeira Guerra Mundial ou com Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial; com o Oiro da Crocia e com a organizao Odessa; na luta contra o grupo terrorista Setembro Negro, Carlos o Chacal ou o comunismo; nas obscuras finanas do IOR e nas muito mais obscuras relaes com a Maonaria, a Mfia e o trfico de armas; na criao de empresas financeiras em parasos fiscais ou no financiamento de ditadores de direita como Anastasio Somoza ou Jorge Videla. Durante os ltimos cinco sculos da sua existncia, as sociedades secretas dependentes da Santa Aliana, como o Circulo Octogonus ou a Ordem Negra, realizaram vrias operaes encobertas para servios de espionagem de outros pases, como o Mossad israelita ou a CIA norte-americana. Enquanto lutavam contra um inimigo claro, o terrorismo rabe ou o malfico comunismo, a Santa Aliana adaptou-se aos tempos e s situaes que marcaram os Sumos Pontfices, porque, como disse um dia o todo poderoso cardeal Paluzzo Paluzzi, chefe da Santa Aliana em meados do sculo XVII, se o Papa ordena liquidar algum na defesa da f, faz-se isso sem fazer perguntas. Ele a voz de Deus e ns [a Santa Aliana] somos a sua mo executora. Este livro apenas um breve trajeto, feito durante cinco sculos de histria, atravs das operaes encobertas do poderoso servio de espionagem do Estado da Cidade do Vaticano. Os sacerdotes-agentes do servio de espionagem papal, a Santa Aliana, e da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, mataram, roubaram, conspiraram e atraioaram em nome de Deus e da f catlica s ordens do Sumo Pontfice. Os espies do papa foram o smbolo perfeito da simbiose sob cujo lema atuaram: Pela Cruz e pela Espada. Todos os fatos que nestas pginas se relatam so reais, tal como o so todas as personagens que nelas se referem.
EI Tamaral, 2004
1
Entre a Reforma e uma nova aliana (1566-1570)
Com lgrimas nos olhos vos digo: muitos de vs comportam-se como inimigos da cruz de Cristo. Filipenses 3,18.
Existem diferentes verses sobre quem foi o verdadeiro fundador da chamada Santa Aliana, o servio de espionagem do Vaticano. Mas ter sido o papa Pio V (1566-1572) quem, em 1566, organizou o primeiro servio de espionagem papal no sentido de lutar contra o protestantismo representado por Isabel I da Inglaterra. Protegido pelo poderoso cardeal Juan Pedro Caraffa (o futuro papa Paulo IV), Miguel Ghislieri foi chamado a Roma para assumir a direo de uma misso especial. Ghislieri foi encarregado pelo papa de criar uma espcie de servio de contra-espionagem, que se ocuparia, de forma piramidal, em obter informaes de todos aqueles que pudessem violar os preceitos papais e os dogmas da Igreja e por isso pudessem ser julgados pela Inquisio. O jovem presbtero era muito devotado s sociedades secretas e o Santo Ofcio era para ele uma das sociedades secretas com maior poder no seu tempo. O trabalho realizado pelos agentes de Ghislieri nas regies de Como e de Bergamo chamaram a ateno dos poderosos de Roma. Em menos de um ano, quase mil e duzentas pessoas, desde agricultores a nobres, foram julgadas pelo tribunal da Inquisio e mais de duas centenas foram consideradas culpadas, depois de serem submetidas a terrveis torturas e executadas. A tortura da corda consistia em atar as mos do presumido herege atrs das costas e o preso era levantado atravs de uma outra corda presa no teto. Com o corpo suspenso, era solto por breves momentos para que casse com o seu prprio peso. O preso ficava a um metro do solo e com essa violenta sacudidela as extremidades deslocavam-se. Uma outra das torturas mais utilizadas era a da gua. Os carrascos estendiam a vtima num cepo de madeira em forma de canal e colocavam um abrao, leno fino molhado na garganta, enquanto lhe tapavam o nariz para que no pudesse respirar. Um dos verdugos enfiava-lhe gua pela boca e pelas narinas e assim o preso no tinha nenhuma possibilidade de respirar. Quando o mdico da Inquisio mandava parar com esse tormento, muitos dos rus j estavam mortos. Em 1551, Miguel Ghislieri, devido aos servios prestados, foi promovido por Caraffa, que o nomeou geral da Inquisio em Roma, sob o pontificado de Jlio III (1550-1555). Com Ghislieri como geral, a Congregao do Santo Ofcio disps de todas as condies para alcanar os objetivos a que se propunha. Em primeiro lugar, foi realizada uma reforma do chamado Conselho da Suprema, e o papa nomeou um grupo de cardeais para o controlarem. Os purpurados faziam ao mesmo tempo de juzes e de conselheiros do Pontfice no caso de levar a juzo pessoas relevantes da sociedade romana. Foi Ghislieri quem, no incio de 1552, estabeleceu as sete classes de delitos suscetveis de serem julgados pelo tribunal do Santo Ofcio: os hereges; os suspeitos de heresia; os que protegiam os hereges; os magos, bruxos e feiticeiros; os blasfemos; os que resistissem s autoridades ou agentes da Inquisio; e os que quebrassem, ofendessem ou violassem os selos ou smbolos do Santo Ofcio. A partir desse mesmo ano, Ghislieri criou em toda a cidade uma autntica rede de espies, que operavam desde os lupanares da cidade at s cozinhas dos palcios dos nobres de Roma. Todas as informaes de qualquer natureza recolhidas pelos agentes da Inquisio eram entregues pessoalmente a Ghislieri por intermdio de dois sistemas: de viva voz e pelo chamado Informi Rosso (Relatrio Vermelho). Este ltimo consistia num pequeno pergaminho enrolado numa cinta vermelha com o escudo do Santo Ofcio. Segundo as leis vigentes, o rompimento do selo era punido imediatamente com a morte. Os agentes de Ghislieri registavam nesses pergaminhos todas as informaes com que acusavam, e muitas vezes sem nenhuma prova, qualquer cidado de Roma de violar as normas da Igreja e que podiam ser apreciadas por um tribunal da Inquisio. O Informi Rosso era depositado num pequeno vaso de bronze colocado para esse efeito na sede romana do Santo Ofcio. Durante anos, o geral da Inquisio criou uma das maiores e mais eficazes redes de espies e um dos melhores arquivos de dados pessoais dos cidados de toda a Roma. Ningum se movimentava ou falava nas ruelas ou praas da cidade sem que Ghislieri o no soubesse. Ningum se movimentava ou falava dentro do Vaticano sem que o geral da Inquisio o no conhecesse. 18 A 23 de Maio de 1555, e depois de um breve pontificado com menos de um ms do papa Marcelo II, o cardeal Juan Pedro Caraffa, sem a oposio do sector imperial nem do sector francs, foi eleito papa no conclave. O embaixador de Veneza, Giacomo Navagero, definia assim o novo papa de setenta e nove anos: Caraffa um papa de um temperamento violento e fogoso. E demasiado impetuoso no tratamento dos assuntos da Igreja e por isso o velho Pontfice no tolera que ningum o contradiga. Caraffa, j como papa Paulo IV, chegou a temer o grande poder de Ghislieri. Em Roma, a populaa chegou mesmo a definir o geral da Inquisio como o papa na sombra, mas apesar de tudo o pontfice concedeu a Miguel Ghislieri a prpura cardinalcia. A partir da Ghislieri o inquisidor tornar-se-ia mais perigoso e mais poderoso. Muitos membros do Colgio Cardinalcio no permitiriam que, a partir do posto ocupado na temvel Inquisio, ele dirigisse os destinos da Igreja Catlica. Os agentes de Ghislieri vangIoriavam-se muito e impunham o terror nas ruas de Roma. Os espies do cardeal, conhecidos como os monges negros, escolhiam uma vtima e esperavam que ela seguisse por uma rua isolada. Nesse momento, era assaltada e metida numa carruagem fechada hermeticamente e levada para uma sala da Inquisio. Um frade que foi testemunha disso relatou a chegada dos sequestrados ao palcio do Santo Ofcio em Roma, assim publicada na obra de Leonardo Gallois, Historia General de Ia Inquisition, de 1869: Deixava-se a vtima num piso inferior do primeiro ptio, ao lado da,, porta principal. A vtima comeava ali a sua iniciao numa sala circular onde dez esqueletos pregados na parede lhe anunciavam que por vezes naquela hospedaria se cravava em vida os hspedes para os deixar esperar a morte com calma. Depois de um aviso to santo, encontrava numa galeria contgua mais dois esqueletos humanos, no colocados de p e na atitude de receber as visitas, mas estendidos em forma de mosaico ou de estrado. Na mesma galeria podia distinguir claramente direita um forno manchado por vrias ndoas de gordura e consagrado a substituir em segredo as fogueiras das praas pblicas, cadas em desuso por causa da picardia do sculo corrompido. () Poucos calabouos propriamente ditos se encontram neste primeiro corpo de edifcios, mas em contrapartida no segundo piso direita encontra-se a sala do Santo Tribunal protegida por duas portas. Uma delas coroada por um letreiro que indica stanza del primo padre compagno e a segunda coroada por um letreiro que indica stanza del secando padre compagno. Assim se chamavam os dois inquisidores encarregados da dupla misso de ajudar a Suprema a procurar descobrir os criminosos e converter definitivamente o ru. Mas essa situao mudaria por completo para o cardeal Ghislieri quando na noite de 18 de Agosto de 1559 o papa Paulo IV faleceu de repente. Aps ser conhecida a notcia da morte, espalhou-se a sedio nas ruas de Roma; a captura e priso dos agentes de Ghislieri converteu-se numa das principais motivaes das massas. Muitos dos que serviram fielmente a Santa Inquisio eram assassinados pela populao e os seus cadveres lanados nas cloacas. Os distrbios no acabaram a. O povo de Roma assaltou o palcio que albergava o Tribunal da Inquisio e foi derrubada a esttua do pontfice falecido. O cardeal Ghislieri e alguns dos seus homens conseguiram pr a salvo uma grande parte dos arquivos secretos, levados em oito carruagens na sua fuga de Roma. Por fim, a situao voltou normalidade em 25 de Dezembro de 1559 quando o cardeal Giovanni Angelo Medeis, que era inimigo do anterior papa, se converteu no novo pontfice com o nome de Pio IV. O papa era um homem de carcter firme, hbil diplomata e estava disposto a limpar a Igreja Catlica de todos os vestgios do pontfice anterior, Paulo IV. Para essa tarefa rodeou-se de dois fiis cardeais e seus sobrinhos, Marcos Sittich de Altemps e Carlos Borromeo. O primeiro era um mestre com a espada e na arte da guerra. O segundo era um mestre da diplomacia. Borromeo foi nomeado arcebispo de Milo, legado papal em Bolonha e Romagna, responsvel do governo dos Estados Pontifcios e finalmente secretrio pessoal do papa. Como primeira medida, ordenou a deteno e recluso no castelo de SantAngeIo dos cardeais Carlo e Alfonso Caraffa, bem como de Juan Caraffa, duque de Paliano, e outros cavaleiros do squito ducal acusados do assassnio da esposa daquele. Como segunda medida, o papa Pio IV, aconselhado por Carlos Borromeo, decidiu reabilitar o cardeal Morone e o bispo Fiescherati que antes tinham sido acusados de heresia pelo Santo Ofcio por ordem de Paulo IV. Como terceira medida, o papa ordenou o desterro do cardeal Miguel Ghislieri, ento geral da Inquisio, e a dissoluo dos monges negros. O cardeal, que se refugiou num mosteiro isolado, retomou o seu trabalho pastoral no antigo bispado, o que o fez ser visto com bons olhos quando o conclave voltou a reunir-se aps o falecimento do papa Pio IV a 9 de Dezembro de 1565. Curiosamente, e depois de trs semanas de conclave, o cardeal Carlos Borromeo, homem de confiana do papa falecido, decidiu defender a candidatura do cardeal Ghislieri, que contava 20 com o apoio do rei Filipe II e desde h alguns anos recebia da Coroa de Espanha uma subveno de 800 ducados. A 7 de Janeiro de 1566, o cardeal Ghislieri era eleito papa e adotou o nome de Pio V. O ento embaixador de Espanha disse: Pio V o papa que os tempos exigem. Filipe II tambm aprovava a chegada de um aliado ao trono de So Pedro. A sua nomeao supunha a vitria de todos os que desejavam um pontfice austero e piedoso, mas por sua vez capaz de lutar e atuar com grande energia contra a Reforma protestante. O que era certo que o papa Pio V utilizaria a sua ampla experincia frente da Inquisio para criar um verdadeiro servio de espionagem, implacvel e de cega obedincia s ordens supremas do pontfice. A primeira funo dos agentes da Santa Aliana, nome dado pelo prprio papa ao seu servio secreto em honra da aliana entre o Vaticano e a rainha catlica Maria Stuart, era sobretudo a de obter informaes dos possveis movimentos polticos e das intrigas dirigidas a partir da corte de Londres. As informaes que obtinham eram enviadas queles poderosos monarcas que apoiavam o catolicismo e o poder pontifcio em face do cada vez mais alargado protestantismo. O principal objetivo dos espies do papa era prestar os seus servios rainha Maria Stuart com o intuito de procurar restaurar o catolicismo na Esccia, que se tinha declarado presbiteriana no ano de 1560, e lutar contra o protestantismo. O papa Pio V entendia que o seu principal inimigo era a Igreja cismtica da Inglaterra, representada pela rainha Isabel, filha de Henrique VIII e de Ana Bolena. O rei Henrique VIII havia rompido com a Igreja Catlica em 1532, quando pediu a Clemente VII (19-XI-1523/25-IX-1534) autorizao para se divorciar da rainha Catarina de Arago, que era filha dos reis catlicos e tia do imperador Carlos I de Espanha e V da Alemanha, para se poder casar com a sua amante Ana Bolena. O pontfice estudou a carta enviada pelo rei da Inglaterra, um velho pergaminho de sessenta por noventa centmetros e com a assinatura, como aval, de setenta e cinco altas personalidades do reino. Desse documento pendiam setenta e cinco Cintas de seda vermelha com setenta e cinco selos de lacre. No texto, Henrique VIII exprimia o desejo de contrair casamento com a sua amante e pedia a autorizao papal para se divorciar da sua esposa, a rainha Catarina de Arago. Essa petio foi negada pelo papa Clemente VII, o que provocou a ira e o afastamento de Henrique VIII da Igreja Catlica. Mas o monarca da Inglaterra decidiu contrair matrimnio com Ana Bolena e anulou assim o seu casamento com Catarina, apesar da recusa de Roma. O cisma definitivo aconteceu a 15 de Janeiro de 1535, sob o pontificado de Paulo III, quando, para dar uma base jurdica sua nova supremacia eclesistica, Henrique VIII convocara os sbios de todas as universidades do reino e o clero para que declarassem publicamente que o papa romano no tinha nenhum direito divino ou autoridade alguma sobre a Inglaterra. As bases reais da nova Igreja eram as de uma Igreja Catlica anglicana, sob a autoridade da Coroa. Os cinco anos de reinado de Maria Tudor at sua morte, ocorrida a 17 de Novembro de 1558, foram muito intensos. Guerras, execues, rebelies internas, golpes de Estado e conflitos religiosos espalharam-se pelo reino. Na prpria noite da morte da rainha Maria, a sua irm Isabel, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, foi proclamada rainha da Inglaterra. Grande parte da populao recebeu com jbilo a chegada da nova rainha, em parte pela m recordao deixada por Maria Tudor, a quem popularmente batizaram como Maria, a Sanguinria (Bloody Mary). Desde a sua chegada ao trono, Maria tinha-se mostrado decidida, com o apoio de Paulo IV e a resistncia do embaixador de Espanha, a implantar a sangue e fogo o catolicismo, mas para isso devia antes cortar as cabeas dos que haviam defendido a Reforma. Muitos dos bispos protestantes, que Maria Tudor definia como maus pastores que conduziram as suas ovelhas perdio, seriam os primeiros a ser queimados na fogueira por crime de heresia. O ex-bispo de Londres, Ridley, o mesmo que pouco tempo antes tinha proclamado Jane Grey como rainha da Inglaterra e considerado Maria Tudor como bastarda, foi queimado vivo a 16 de Outubro de 1555 numa praa da cidade de Oxford. Na fogueira tambm o acompanharia o ex-bispo de worcester, Latimer. Uma outra execuo ordenada pela rainha, e que causaria viva surpresa mesmo em Roma e no Parlamento da Inglaterra, seria o suplcio, a 21 de Maro de 1556, de Thomas Cranmer, ex-bispo de Canterbury, e que no passado declarara a anulao do casamento do rei Henrique VIII com Catarina de Arago e consumara a ruptura definitiva com o poder papal de Roma. A 15 de. Janeiro de 1559, Isabel I foi coroada como rainha da Inglaterra e a 8 de Maio inaugurava a sesso do Parlamento, onde pedia a aprovao das leis que permitiam o restabelecimento do protestantismo em todo o reino e nos seus domnios. Roma e a Igreja Catlica, dirigida por um ancio de oitenta e trs anos, o papa Paulo IV, j no tinham fora para fazer presso face mudana religiosa que novamente se avizinhava na Inglaterra. Mas do que o pontfice estava realmente seguro era de que a nica possibilidade de manter uma ilhota catlica na protestante Inglaterra seria apoiar a rainha da Esccia, Maria Stuart, que nos anos que se seguiram se converteria num ttere das conspiraes ocorridas entre o papa Paulo IV e os seus sucessores, o poderoso e monacal rei Filipe II de Espanha, o caprichoso rei Carlos IX de Frana, o insignificante e inculto Fernando de Austria e aquele que seria o herdeiro da Coroa escocesa e traidor da sua prpria me, o prncipe Jaime. O crculo comeou a fechar-se para Maria Stuart quando os dois homens mais prximos dela se converteram em espies de poderosas potncias com grandes interesses na Esccia. A 29 de Julho de 1565, contraiu casamento com o catlico Henrique Darnley. O novo rei consorte da Esccia era um homem alto, forte e ruivo que atraa as mulheres, mas de uma escassa cultura. Darnley, o novo monarca da Esccia e que assim partilhava o leito com a rainha, era uma marioneta nas mos de sir Francis Walsingham, o chefe dos espies de Isabel, e nas dos nobres escoceses. Em sntese, Darnley era um cobarde. Por outro lado, Maria Stuart, em finais de 1565, travou amizade com um jovem piemonts de pele escura chamado David Rizzio, que fazia parte do squito do embaixador de Sabia, o marqus de Moreta, na sua visita Esccia. Tem vinte e oito anos, olhos redondos e verdes, o que desperta a ateno de uma rainha que admira a beleza dos homens. Rizzio domina as artes da msica e da poesia, o alade e os versos, mas tambm sacerdote e um dos espies mais ativos da recm-criada Santa Aliana. Maria Stuart pede ao embaixador de Sabia que lhe ceda Rizzio para a divertir em privado. Pouco a pouco, o jovem piemonts ascende no squito de simples cantante e em escassos dias converte-se em moo de cmara da rainha e assim passa a ganhar setenta e cinco libras anuais. Graas ao seu lugar junto da rainha, Rizzio tem acesso direto aos seus documentos mais secretos. A rainha encontra no italiano o que no encontra no seu prprio marido, Henrique Darnley. Rizzio tem ideias muito claras e possui uma cultura artstica; domina o latim e fala com fluidez e facilidade francs, italiano e ingls. Apesar de contar com o apoio rgio, o espio continua a comer na mesa dos criados, mas a oportunidade para alterar esta situao apresenta-se quando a rainha rejeita Raulet, o seu secretrio privado, at ento o homem de confiana de Maria Stuart, despedido por ela quando descobriu que ele fazia ouvidos de mercador s constantes denncias de vrios nobres escoceses sobre os subornos ingleses. Walsingham, chefe da espionagem isabelina, dedicava uma grande parte dos fundos da Coroa a subornos com que podia captar os agentes infiltrados na corte escocesa. O gabinete de Raulet passou a ser ocupado por David Rizzio e, apesar de ser um fiel defensor da Contra-Reforma e informar de qualquer movimento ingls ou escocs o papa Pio V, dedicado de corpo e alma a servir a rainha Maria. O espio da Santa Aliana possui cada vez mais poder e Darnley sabe disso. O marido da rainha no ignora que se quiser ver-se livre de Rizzio dever antes aconselhar-se com Walsingham e este, por sua vez, com Isabel. Sabe que s desse modo poder estar protegido no caso de o assassnio do jovem piemonts ser descoberto pela rainha, sua esposa. Rizzio e o seu irmo Jos, que trouxe de Itlia para o acompanhar, passaram a fazer parte do crculo de espies da Santa Aliana na Esccia. A sua misso, por ordem do papa, era obter informaes sobre John Knox, discpulo de Calvino e que supera este em ortodoxia e integrismo. Para Pio V, Knox pode ser o nico obstculo para evitar que a Esccia volte a ficar sob o manto protetor da Igreja Catlica de Roma. John Knox, de acordo com os relatrios da espionagem papal, era um antigo sacerdote catlico sem importncia que decidira mergulhar na Reforma. Para este integrista, Calvino e George Wishart foram os seus mestres, os seus guias espirituais, at a rainha regente da Esccia ter resolvido mandar queimar Wishart na fogueira. Esse ato provocou em Knox o integrismo que passou a praticar, mas tambm provocou um profundo e visceral dio em relao casa Stuart. John Knox converteu-se, na altura da morte do seu mestre, em lder da chamada Sublevao contra a Regncia. As tropas francesas, que desembarcaram na Esccia para ajudar Maria de Guisa, capturaram Knox e enviaram-no para as gals. Depois da sua libertao, Knox refugiou-se em terras calvinistas, onde aprendeu a usar da palavra, com um dio implacvel a qualquer tipo de orgulho, e logo que regressa Esccia consegue arrastar os Lordes e o povo para as guas profundas da Reforma. Jos, o irmo de David Rizzio, informa o papa dos movimentos de Knox e escreve num documento: Todos os domingos no plpito de Saint Gilles, e convertido num profeta escocs, espalha dios e maldies contra aqueles que no escutam a sua prdica. Celebra de forma infantil qualquer derrota sobre um catlico ou outro adversrio de diferente religio. Quando um inimigo assassinado, Knox fala da mo de Deus. Todos os domingos, ao terminar o seu 24 discurso, invoca Deus e pede-lhe que acabe depressa com o reinado dos Stuarts usurpadores, bem como com a rainha que ocupa um trono que no deve. E David Rizzio quem informa o papa Pio V sobre o encontro entre John Knox e a rainha Maria Stuart: O encontro aconteceu em Edimburgo entre a catlica rainha da Esccia e o fantico protestante John Knox. O pregador mostra-se rude e acusa a Igreja Catlica Romana de ser a puta que no pode ser a esposa de Deus. Estas palavras ofendem a rainha Maria. A Santa Aliana ordena aos irmos Rizzio que intensifiquem as suas medidas de segurana, j que parece terem feito muitos inimigos em to pouco tempo e a espionagem do papa no quer perder estes agentes to apreciados. Dois dos principais inimigos dos italianos e da Contra-Reforma na Esccia seriam os prprios conselheiros da rainha: Moray, um meio-irmo bastardo da soberana, e William Maitland, ambos de religio protestante. Depressa os espies da Santa Aliana descobrem, atravs de um traidor, que a prpria rainha Isabel I da Inglaterra ter subornado o conselheiro Moray e vrios Lordes para promover a rebelio na Esccia contra Maria Stuart. O papa somente pode avisar o rei espanhol Filipe II e este informa o seu embaixador na corte inglesa que, se tal sucedesse, talvez fosse obrigado a ter de ajudar a rainha catlica. O embaixador, apesar de a conhecer, no fez nenhuma referncia carta enviada pelo papa Pio V rainha Maria Stuart a 10 de Janeiro de 1566: Minha muito querida filha. Soubemos com grande alegria que vs e o vosso marido tereis dado uma brilhante prova de zelo ao restaurardes no vosso reino o verdadeiro culto de Deus. Mas a cada vez mais estreita relao entre Maria Stuart e o seu secretrio David Rizzio comea a tornar-se incmoda para muitos dos poderosos que rodeavam a rainha da Esccia. O seu casamento com Henrique Darnley estava cada vez pior. Darnley no s se sentia rejeitado pela sua esposa como companheiro, mas tambm como rei. O marido de Maria Stuart sentia-se decepcionado por no ter sido proclamado rei da Esccia de pleno direito, mas apenas a ttulo honorrio. Filipe II enviou uma carta ao seu embaixador Guzman da Silva, dizendo-lhe que devia fazer saber rainha da Esccia que teria de atuar com moderao [em relao a Rizzio] e evitar tudo o que pudesse irritar a rainha da Inglaterra. Este texto caiu nas mos de Isabel I graas a um infiltrado na casa do embaixador espanhol e muito fiel a Randolph, o 25 embaixador ingls. De fato, Filipe II no conhecia o temperamento de Maria Stuart, o que colocaria em srias dificuldades o espio do papa. Durante um encontro de cama entre o prprio Rizzio e Maria da Esccia, o italiano disse que tinha descoberto que os ingleses haviam pago aos rebeldes na Esccia. O embaixador ingls, por seu lado, no sabia que fora Rizzio e o seu irmo que tinham descoberto, em princpios de Fevereiro de 1566, que atravs do embaixador Randolph fora financiada a evaso da Inglaterra pelos rebeldes escoceses, que procuraram sublevar-se contra a rainha no ano anterior. Com a informao redigida por Rizzio, no dia 20 de Fevereiro do mesmo ano, a rainha Maria Stuart convocou o embaixador ingls para se avistar com ela. Maria Stuart dispe, graas aos espies italianos, de uma grande informao sobre o apoio e o papel desempenhado pelo diplomata ingls nos distrbios escoceses ocorridos um ano antes. Expulsar um embaixador no uma tarefa fcil, e muito menos o era no sculo XVI se se queria evitar as respectivas consequncias, e Maria Stuart no teve estas em conta. No dia seguinte expulso, Maria envia a Isabel I uma carta em que a desculpa de tudo, apesar de saber que, se o embaixador Randolph era a mo executora, Isabel era o crebro da operao. Mesmo os quase trs mil escudos utilizados pelos homens de Walsingham para subornar os que ajudaram na fuga os rebeldes escoceses saram das arcas privadas da rainha inglesa, mas a soberana da Esccia ainda tinha presentes as palavras do monarca espanhol no que respeita a no fazer nada que pudesse incomodar Isabel. Maria Stuart escreve a Isabel I, a 21 de Fevereiro de 1566: Senhora, minha boa irm: De acordo com a sinceridade que sempre usei convosco, julgue dever escrever estas palavras pelas quais sereis informada dos maus costumes do vosso ministro Randolph. Fui seguramente advertida [por Rizzio e a Santa Aliana] de que, no mais grave dos distrbios que os meus rebeldes provocaram, esse dito Randolph os ajudou com a soma de trs mil escudos para assim subornar as pessoas e fortalecer se contra mim, o que deu ocasio a que eu, no querendo manter essa ameaa, chamasse Randolph minha presena e ao Conselho e o fizesse manter a informao [confirmar a acusao] pelo prprio a quem entregou o dinheiro. Como me atrevo a esperar que, tendo sido enviado por vs a prestar bons ofcios e tendo feito o contrrio, o considerareis indigno de escudar-se no vosso mandato, no quis sem dvida utilizar mais acrimnia para quem vos envio com as minhas cartas que vos transmitiro mais amplamente a minha acusao. 26 A 1 de Maro de 1566, o embaixador Randolph abandonava a Esccia juntamente com o seu squito, mas antes de partir deixou praticamente preparado o golpe contra os espies do papa Pio V. Um dos maiores aliados para essa vingana ser Darnley, o prprio marido da rainha. Na viagem de regresso a Londres, o embaixador Randolph detm-se na cidade de Bestwick espera de ordens da sua soberana, e desta cidade envia uma carta rainha Isabel I onde declara: () graves acontecimentos se preparam na Esccia. O Lorde Darnley [marido de Maria Stuart] est furioso contra a rainha, porque ela lhe nega a coroa matrimonial e tem conhecimento de um comportamento [a sua relao com David Rizzio] da rainha que impossvel tolerar. () Por isso, Darnley decidiu libertar-se do causador deste escndalo [o agente da Santa Aliana], o que dever ser levado a cabo antes da sesso do Parlamento. Darnley no convidado para as sesses especiais do Conselho de Estado, lhe negado o uso dos escudos reais da Esccia e fica apenas como simples prncipe consorte. Porm, o desprezo pelo marido de Maria Stuart j no parte apenas da prpria rainha, mas tambm se estende aos cortesos mais prximos. Assim, David Rizzio, como secretrio privado da rainha, j no Ihe mostra os documentos oficiais e sela com o chamado Iron Stamp, a chancela real, sem o consultar. O embaixador ingls j no o trata pela dignidade de Majestade, as moedas com as efgies e a legenda Henricus et Maria foram retiradas de circulao e substitudas por outras que mostram a nova legenda Maria Regina Scotiae. A tudo isto se somam os rumores sobre a relao de Maria com o seu secretrio, o espio David Rizzio, convertido em maitre de plaisir, o mestre do prazer da rainha. Graas sua habilidade para consolar Maria Stuart, o agente da Santa Aliana exibe ademanes principescos e exerce com arrogncia o maior cargo do Estado, quando ainda h poucos meses comia com os criados e dormia na parte de cima dos estbulos. Os nobres, muitos deles protestantes, sabem que Rizzio somente uma pequena pea do papa Pio V para converter a Esccia numa nao catlica dentro do grande plano da Contra-Reforma realizado por Roma. Segundo parece, Maria Stuart comprometeu-se com Pio V a converter a Esccia como o primeiro pas a abandonar a Reforma e regressar grande unio catlica. O pontfice deu ordens aos seus agentes para que protegessem Maria Stuart de qualquer perigo que impedisse to importante passo. Os nobres escoceses encaram David Rizzio como o responsvel na sombra dessa unio. O embaixador Randolph informa disso mesmo a sua soberana quando Ihe diz, na carta enviada de Bestwick, que ou Deus Ihe prepara [a David Rizzio] um rpido final ou a eles [os nobres escoceses protestantes] uma vida insuportvel. Apesar do dio que sentem pelo espio italiano, os nobres no desejam confrontar-se com a rainha Maria. Conhecem a dureza com que ela reprimiu a ltima rebelio e muito menos desejam acompanhar Moray na sua sorte do desterro ingls. Os nobres sabem que se conseguirem o apoio de Henrique Darnley, o assassinato de Rizzio passar a ser um mero crime por cimes e, portanto, um ato de rebelio contra a rainha, um ato patritico em favor da verdadeira f (a protestante). Os conspiradores utilizaro algo to simples como os cimes que Darniey sente pelo italiano para o aproximarem da sua causa. Mas o que no sabem que Rizzio, por ordem do papa, impediu Maria Stuart de conceder a Darniey o direito de regncia (matrimonial croivn). O papa Pio V pretende evitar a todo o custo que, se alguma coisa suceder rainha, o regente (Darniey) possa voltar atrs no desejo de converter a Esccia numa nao catlica. Mas nada disto desagrada tanto a Darniey como o fato de a sua esposa, Maria Stuart, no permitir que lhe toque, enquanto consente ao espio da Santa Aliana que passe com ela largas noites no seu prprio quarto. Maria Stuart j est grvida de quem anos mais tarde seria o rei Jaime VI da Esccia e I da Inglaterra. Os conspiradores, pela primeira vez na histria da Esccia, tm autorizao de um rei para se rebelarem contra a sua soberana. Os nobres conspiradores prometem retirar o poder das mos de Maria Stuart e d-Io a Darniey como novo rei da Esccia e este, por sua vez, promete conceder-lhes o indulto e recompens-los com novas propriedades logo que assuma a Coroa da Esccia. Os espies de Walsingham informam que a rainha [Maria Stuart] est arrependida do seu casamento com Henrique Darniey. Fala-se em entregar a Coroa da Esccia a ele [Darnley], queira ou no a rainha. Sei que, se se chegar assim a bom termo nos prximos dias, tero cortado a cabea a Rizzio com a anuncia do rei. Darniey nem sequer deseja a morte do espio do papa por questes polticas, mas por simples cimes daquele que lhe roubou a confiana da esposa e a autoridade real. Moray prepara o seu regresso Esccia uma vez dado o golpe, e o fantico. John Knox refere-a j no seu sermo, enaltecendo a morte, ou por outras palavras, a execuo de um miservel catlico. Dia 9 de Maro de 1566, pela tarde, no castelo de Holyrood. David Rizzio recebera nessa manh um aviso de um dos seus espies, mas no lhe deu importncia. Sabe que se passar todo o dia ao lado da rainha nada o poder incomodar. Ningum se atreveria a levantar a sua arma ou a mo contra ele na presena da rainha Maria Stuart: mas engana-se. A tarde passa depressa. Maria Stuart est a ler no seu quarto, que fica no ltimo piso da torre. Henrique Darnleyx convida Rizzio para uma partida de cartas. De fato, o italiano no suspeita de nada. A mesa do quarto real sentam-se vrios nobres, a meia-irm da rainha e na sua frente est Rizzio vestido com uma casaca adamascada. A conversa agradvel e uma msica invade o pequeno salo. Uma pequena porta ao fundo, atrs de uma cortina, abre-se para dar passagem a Darniey, que se senta ao lado da esposa. A porta ficou aberta de propsito sem o trinco. Segundos depois a cortina abre-se bruscamente e os conspiradores aparecem na sala armados de espada e punhal. O primeiro a entrar com a espada desembainhada e a ser reconhecido pela rainha o Lorde Patrick Ruthven. A rainha levanta-se, derrubando a cadeira em que estava sentada, e recrimina Ruthven pela sua entrada diante dela com a espada desembainhada. O nobre escocs diz-lhe que no deve recear nada, a sua presena s diz respeito ao espio italiano. Rizzio levantou se, mas nem sequer estava armado. Apenas a rainha o pode proteger. Darniey lana-se para trs como que para se afastar da peleja que se aproxima. Maria Stuart interpe-se frente de Ruthven, que procura Rizzio com o olhar, e ordena-lhe que deponha a sua arma. O escocs apenas responde: Perguntai ao vosso marido. A rainha lana ento um olhar para o marido, que est escondido atrs de uma cortina, e ele s consegue responder por entre soluos: No sei nada deste assunto. Entretanto, mais alguns nobres conjurados juntam-se a Ruthven de espada na mo, aps subirem pela estreita escada de caracol que d para o salo da rainha. Rizzio procura escapar, mas agarrado pelo brao. Os sublevados gritam rainha que Rizzio um espio do papa e por isso deve morrer. Maria Stuart diz que se alguma coisa se deve exigir a David Rizzio dever ser atravs do Parlamento. Ruthven agarra o italiano pelos braos, enquanto outro dos conjurados lhe coloca uma corda volta do corpo. E arrastado e agarra-se ao vestido da rainha, que fica descomposta pela presso dos seus dedos aterrorizados. Maria continua a lutar e um dos rebeldes aponta-lhe uma pistola. Um golpe dado por Ruthven faz com que o tiro passe sobre a cabea da rainha e penetre na parede. Darnley agarra a rainha, que se mostra toda desarranjada. O corpo de Rizzio levado de rastos pela pequena escada, com a cabea a bater em todos os degraus. Uma vez fora dos aposentos reais, os conjurados lanam-se sobre o espio da Santa Aliana. Uma primeira punhalada entra no lado esquerdo, a segunda atravessa-lhe a mo direita, quando tenta proteger a cara, e crava-se no pescoo. Sempre a sangrar, levanta-se pesadamente quando uma nova punhalada lhe corta a jugular. Um grito abafado pelo sangue procura sair-lhe da boca. Ruthven desfere uma certeira estocada, que lhe entra no corao. Rizzio est morto. Maria Stuart, agarrada pelo marido, no pra de gritar contra os conjurados e tambm contra o traidor do seu marido. Darnley censura-a ao ouvido que o tenha trocado na sua cama por Rizzio, enquanto Ruthven entra na sala com a espada manchada com o sangue do italiano. Em voz baixa e funda, dirigindo-se ao nobre escocs e ao traidor do marido, Maria Stuart repete-lhes uma e outra vez que eles assinaram a sua sentena de morte. A vingana ser terrvel. Os gritos e o rudo do bater das espadas fizeram com que James Bothwell, no comando da Guarda de Corpo da rainha, procurasse entrar no quarto, mas este estava fechado. Depois de um pequeno desvio, Bothwell e Huntley, o imediato, saltaram pela janela com a espada na mo. Henrique Darnley tranquiliza-os e diz-lhes que apenas mataram um espio do papa Pio V, que desejava facilitar o desembarque de tropas espanholas na Esccia. De um s golpe, Maria Stuart foi afastada da Coroa da Esccia e interrompida a linha direta entre a rainha e o papa com o assassnio de Rizzio. A 19 de Junho de 1566, nasce Jaime, o herdeiro da Coroa da Esccia. Maria Stuart deu luz em Junho, o que quer dizer que devia ter sido gerado em Setembro de 1565. Nesse ms ocorreu a rebelio da Esccia e Maria Stuart tinha j expulso da sua cama Henrique Darnley, com quem contrara casamento em Julho desse ano. David Rizzio apareceu na corte escocesa em meados de Setembro, pelo que seria provvel que Jaime VI fosse realmente filho do espio da Santa Aliana. Maria Stuart, muito inteligentemente, desculpou Darnley, o que faz com que recupere a coroa e a liberdade, permite o regresso de Moray a Edimburgo, mas a Santa Aliana no est disposta a consentir a morte de um dos seus membros sem o poder vingar. O papa deu ordens expressas aos seus agentes para averiguar quem fora o conspirador que tinha dirigido o assassnio de Rizzio e Henrique Darnley aparecia em primeiro lugar na lista dos suspeitos. Existem vrias verses sobre quem realmente ordenou executar a vingana contra os assassinos de David Rizzio, mas fosse quem fosse no sabia que isso seria mais um passo para a queda de Maria Stuart como rainha da Esccia. Isabel I da Inglaterra devia apresentar no Parlamento a lei de sucesso, na qual se decidiria sobre o nome da pessoa que sucederia rainha quando a soberana morresse. Maria Stuart pensava que esse direito devia recair nela, mas para isso no podia cometer nenhum erro que pusesse em perigo essa deciso. Cada vez mais os cidados das duas naes viam Jaime como o prncipe da Esccia e da Inglaterra, o que de certo modo desagradava a Isabel; Maria pensou em como romper o crculo de inimigos que a rodeava e vingar assim a morte de Rizzio, o seu fiel servidor. Henrique Darniey, o esposo trado, sabe que no pode colocar em perigo o filho que Maria Stuart traz no ventre, porque no fim de contas essa criana ser o futuro rei da Esccia e, se tiver sorte, o futuro rei da Inglaterra. Para isso, acaba com o cerco da rainha e permite que ela seja assistida por um mdico e dois ajudantes. Maria Stuart utiliza uma das enfermeiras para comunicar com os dois homens de sua confiana, Bothwell e HuntIey. O crculo de conspiradores torna- se cada vez mais fraco quando Maria Stuart consegue puxar o prprio Darniey para a sua causa. Quarenta e oito horas depois do assassnio, tudo est esquecido. O espio da Santa Aliana foi enterrado num lugar secreto e a rainha foi obrigada a assinar o perdo dos prprios conspiradores. Chegou a hora de comear a preparar a vingana. Os quatro primeiros objetivos sero Ruthven, o nobre que agarrou Rizzio pelos braos; Fawdonshide, o que apontou e disparou a sua pistola sobre a rainha; o terceiro ser John Knox, o radical pregador que chamou bastarda rainha da Esccia; e o quarto ser Moray. Nenhum dos quatro ignora que para eles nunca haver perdo real e ao mesmo tempo reconhecem que os nobres no ho-de mover um s dedo em seu auxlio, porque sabem que o filho que a rainha traz no seu ventre ser o futuro monarca de um reino formado pela Esccia e pela Inglaterra. O papa Pio V no se mostra disposto a permitir o assassnio de um dos seus agentes por quatro protestantes sem que se faa justia e nisso vale a suprema autoridade do pontfice. O antigo chefe da Inquisio ordena que seja ento chamado sua presena o sacerdote Lamberto Maochi. Este jovem verons, filho de uma nobre famlia, tinha tomado o hbito nos jesutas quando contava apenas catorze anos, nessa ordem religiosa fundada h vinte e seis anos por Ignacio de Loyola. De fato, fora criada em 1540 como uma fora de ao rpida, com uma falange de soldados dispostos a morrer pela f e pelo papa, honrando as quatro palavras em latim que formavam o seu lema: Ad Majorem Dei Gloriam (A Maior Glria de Deus). Ignacio de Loyola formou-a sob trs claras premissas: a primeira, estarem sempre dispostos a responder chamada do papa, em qualquer momento e lugar. Os jesutas seriam desde ento os chamados homens do papa. A segunda, serem soldados do papa. Os seus membros deviam preparar-se para serem homens devotos, mas tambm soldados de Deus. Os jesutas eram enforcados nas praas de Londres, arrancavam-lhes as entranhas na Etipia, eram devorados vivos pelos iroqueses no Canad, envenenados na Alemanha, flagelados at morte na Terra Santa, crucificados no Sio, deixados a morrer fome na Amrica do Sul, decapitados no Japo ou afogados em Madagscar, mas o esprito de aventura em nome de Deus fez com que o jovem nobre Lamberto Macchi se ligasse s hostes jesutas. Para Ignacio de Loyola era muito importante atingir a polivalncia entre os seus membros sempre postos ao servio do pontfice. O papa e o seu prprio fundador tinham necessidade de contar com intelectuais, qumicos, bilogos, zologos, linguistas, exploradores, professores, diplomatas, confessores, filsofos, telogos, matemticos, artistas, escritores ou arquitetos, mas tambm precisavam de comandantes, agentes secretos, espies e correios especiais, e para este ltimo Macchi era um perito. Educado como filho de um comerciante rico, aprendera a arte da esgrima enquanto estudava filosofia e ainda o uso de explosivos enquanto estudava Teologia e a arte do crime enquanto estudava outras lnguas. O papa ordenou ao jesuta Lamberto Macchi que viajasse at corte da Esccia com o propsito de investigar e descobrir os assassinos de Rizzio. Acompanhado por mais trs jesutas, Macchi sabia qual seria o seu objetivo Iogo que tivesse a lista dos assassinos do espio da Santa Aliana. Para ele, acabar com a vida de quatro protestantes era mais uma questo religiosa do que pessoal, porque no fim de contas a ordem vinha do papa. Na sua bagagem levava um Informi Rosso que lhe dava carta branca para qualquer das suas aes em nome da f. O nome desse documento procedia da poca em que o papa era o geral da Inquisio em Roma. O contato de Macchi na corte da Esccia no era outro seno o prprio conde Bothwell, o chefe da guarda da rainha Maria Stuart e que ento cumpria as funes de assessor entre os conselheiros e uma espcie de regente do reino, qualquer coisa que muito desagradava aos britnicos em geral e rainha Isabel I da Inglaterra em particular. Alguns nobres do reino queixam-se de que Bothwell se revelara muito mais arrogante do que o italiano David Rizzio, mas a diferena que Bothwell conhece quem so os seus inimigos e um deles mesmo o marido da rainha, Henrique Darnley. Moray agora seu aliado, o que o confronta abertamente com Darnely, que comeou a enviar cartas acusadoras rainha nas quais declara que a sua esposa, Maria Stuart, uma rainha bem pouco segura no que diz respeito f e que entrega a Esccia a Filipe II corno um verdadeiro protetor do catolicismo. Em fins de Setembro, Darnley tomou a grave deciso de abandonar a Esccia quando lhe foi negada a condio de rei. Com esta atitude, Maria Stuart assume um srio compromisso. Henrique Darnley no pode deixar a Esccia aps o batizado do herdeiro no castelo de Stirling sobretudo devido aos constantes rumores sobre a verdadeira paternidade do prncipe. Jaime. Mas o marido da rainha ainda no decidiu qual ser o manto de proteo em que se refugiar, se no de Isabel I da Inglaterra se no de Catarina de Mdicis em Frana. Em forma de contragolpe, Maria Stuart enviou uma carta diplomtica a Catarina em que acusa o seu marido de uma possvel traio. Enquanto tudo isto acontece, o agente da Santa Aliana, Lamberto Macchi e os trs acompanhantes refugiaram-se numa casa em Edimburgo sob a proteo dos homens de Bothwell espera de atuar. Pouco antes de acabar o ano de 1566, Maria Stuart, sempre aconselhada por Moray e Bothwell, assina o perdo para os conjurados que assassinaram Rizzio, mas Macchi no se mostra disposto a aceitar isso. O jesuta pede uma ordem expressa do papa para a cumprir sem discusso ou hesitao. Para Lamberto Macchi uma ordem pontifcia um dogma de f. Moray tambm est na sua mira como um dos instigadores e Darnley sabe que, apesar da publicidade dada na corte ao perdo real, ele ser a primeira presa dos Vingadores e por isso decide fugir e refugiar-se no castelo de seu pai em Glasgow. Bothwell apenas ter de colocar ao alcance dos enviados do papa os conjurados e sero eles a execut-los, mas tambm sabe que s ele ser o responsvel pelos crimes diante de Deus, da prpria rainha e do povo da Esccia, mas um risco e uma tarefa que est disposto a assumir. A 22 de Janeiro de 1567, Henrique Darnley sente-se gravemente doente de sfilis, mas mantm-se escondido em Glasgow sob a proteo de seu pai, o conde de Lennox. Ainda convalescente, Maria Stuart vai buscar o marido para o fazer regressar a Edimburgo, dando-lhe escolta pessoal. Apesar disso, Darnley sabe que em qualquer momento pode ser atacado pelos seguidores de Bothwell, os enviados do papa ou pelos seus antigos companheiros de conjura que esto na Esccia depois de terem recebido o perdo real e a quem ele abandonou. Na verdade, Darnley desconhece que o regresso a Edimburgo tambm o seu caminho ao encontro da morte, uma vez que no sair vivo da capital escocesa. Os vingadores da Santa Aliana devem acabar com o marido de Maria Stuart se desejam assim eliminar de um s golpe todos aqueles que participaram na conjura contra David Rizzio. O cenrio escolhido para o golpe mesmo a prpria casa de Darnley, uma residncia de construo tpica da poca isabelina, na periferia do bairro de Kirk OField, qual se chega atravs de um estreito e obscuro caminho conhecido como o lugar dos bandidos. O seu interior est decorado com uma admirvel galeria, chamins ornamentadas, tecidos exticos, belos objetos de prata com o escudo real da Esccia, tapetes persas e uma confortvel cama que Maria de Guisa trouxe consigo de Frana. Lamberto Macchi e os seus parceiros no podero aproximar-se muito de Darnley, porque o golpe dever fazer-se com explosivos. A data escolhida para o primeiro ato de vingana ser a noite de domingo 9 para segunda-feira 10 de. Janeiro de 1567. Nessa noite a rainha Maria Stuart oferece um grande baile e um banquete em honra de dois dos seus mais fiis servidores, que se casaram. E claro que lorde Darnley e o seu squito de confiana esto convidados e isso dar muito tempo para preparar o golpe depois de a residncia de Kirk OField ficar sem vigilncia. O conselheiro Moray desapareceu de Edimburgo misteriosamente e Bothwell no aparece em parte nenhuma, o que observado no s pelos nobres que aparecem na festa, mas tambm por Darnley ainda debilitado pela doena. Passadas as onze horas da noite, Henrique Darnley retira-se cansado, mas a rainha no permite que passe a noite na residncia real de Holyrood e por isso deve regressar fria manso de Kirk OField. Os executores da Santa Aliana, ajudados por Bothwell, colocaram uma grande carga de plvora nos pilares que sustentam a estrutura da casa. Por volta das duas da manh, a terra treme na Esccia, de tal forma que a onda foi sentida por detrs das grossas paredes da residncia da rainha Maria Stuart. De repente, a porta do quarto abre-se com toda a violncia e aparece um criado que, extenuado, a informa de que a casa do rei em Kirk OField foi pelos ares. Escoltada por guarda armada, Maria Stuart encabea uma viagem que se dirige a toda a velocidade para o lugar onde at h poucas horas se erguia uma grande casa senhorial rodeada por verdes prados e onde agora se v uma grande cratera de terra queimada e tudo negro em seu redor. Os corpos dos criados de Henrique Darnley surgem espalhados a centenas de metros do local da exploso. O cadver do rei encontrado no interior de um riacho que corre a poucos metros junto ao de um criado entre os restos retorcidos da cama e vrios pedaos de carne incrustados. Os ferimentos provocados no corpo do rei consorte da Esccia pela exploso no permitem ver as marcas deixadas pela fina corda com que foi estrangulado. O sistema de n utilizado para matar Darnley e o seu criado era o mesmo que usavam os membros da seita dos ashishin nas montanhas de Alborz, a noroeste de Teero e a nordeste de Qazvin. O explorador Marco Polo tinha visitado o castelo de Alamut, onde operavam os ashishin, no ano de 1273. Os segredos, os sistemas e formas de assassinar, includas as mais de trinta e duas formas de estrangulamento, ficaram registados num dos seus dirios de viagem. Uma parte do texto seria recuperado pelo jesuta Matteo Ricci durante uma das suas viagens a esta parte do Mundo, seguindo os passos do veneziano.
Os quatro homens da Santa Aliana, entre os quais se encontrava Jos Rizzio, irmo de David, afastaram-se de Edimburgo a cavalo aps terem ateado as mechas. A deflagrao no os obrigou sequer a que se voltassem para trs. Lamberto Macchi sabia perfeitamente qual seria o seu resultado. A primeira parte da vingana estava cumprida e isso fez saber ao Sumo Pontfice em Roma. A 15 de Maio de 1567, e ainda de luto, Maria Stuart casa-se com Bothwell, a quem todos apontam como responsvel intelectual pela morte de Henrique DarnIey. A 6 de Junho, um grupo de Lordes subleva-se contra a possibilidade de Bothwell ser coroado rei da Esccia e passados nove dias, depois de uma confusa batalha na colina de Carberry, Bothwell empreende a fuga e Maria Stuart feita prisioneira. Aps uma srie de acontecimentos, as relaes entre Isabel I e Filipe II passaram de mal a pior e no contribuiu para as melhorar o relatrio do papa Pio V, recebido na corte de Madrid, no qual informa o poderoso monarca da implicao da Coroa inglesa nos fatos ocorridos na Esccia e que acabaram por destronar a catlica Maria Stuart. O que era claro que o ano de 1568 seria o annus horribilis do reinado de Filipe II e as operaes da Santa Aliana no poderiam fazer nada para o melhorar. Para o maior protetor da cristandade aquele caso era realmente uma complicao inglesa. Era evidente que a protestante Isabel da Inglaterra no levantaria a mo contra a catlica Maria Stuart, por estarem em Bruxelas os exrcitos espanhis liderados pelo duque de Alba. Filipe II mostrava assim o seu poderio em relao ao resto das naes. A busca dos outros conjurados continuava no esprito de Lamberto Macchi e dos seus parceiros. No seu bolso permanecia envolto em papel vermelho o documento papal que os protegia e onde estava definida a sua misso. O pergaminho devia ser destrudo logo aps ter sido cumprida a vingana ou devolvido ao papa se ela no fosse executada. Os objetivos do religioso da Santa Aliana seriam a execuo de lorde Patrick Ruthven, lorde Fawdonshide, que apontou a pistola rainha, lorde Moray, o esquivo e hbil meio irmo da rainha Maria Stuart, e ainda de John Knox, o pregador radical. O prximo a cair seria Fawdonshide e desta vez Lamberto Macchi e os seus trs companheiros no tiveram que procurar muito. Fawdonshide, o que teve a coragem de apontar a arma contra a rainha, est escondido numa pequena casa dos arredores de Lochleven onde espera a sua morte confortavelmente. Sem resistncia, foi levado at uma rvore prxima e ali pendurado pelo pescoo. O nobre escocs estrebuchou suspenso pela corda enquanto os quatro cavaleiros da Santa Aliana se afastaram em busca de outra vtima. O nome de Fawdonshide sublinhado a sangue vermelho no Informi Rosso. Moray cairia a 11 de Janeiro de 1570, vtima de uma estocada que lhe atravessou o pescoo. Macchi molhou no sangue o seu dedo e sublinhou o nome dele no pergaminho. A vingana pelo assassnio de David Rizzio no se tinha de todo cumprido, estavam ainda vivos John Knox e Patrick Ruthven, pelo que o Informi Rosso que fora entregue em Roma coroado com o escudo pontifcio, e que Lamberto Macchi trazia no bolso, no podia ser ainda destrudo. Quase um ms depois, a 25 de Fevereiro, Pio V tornava pblica a bula Regnans in Excelsis, na qual declarava a excomunho da herege Isabel I da Inglaterra. Esta sentena pontifcia na Europa do sculo XVI era de fato uma medida de extrema gravidade que afetava mais o povo da Inglaterra do que a soberana. Os catlicos ingleses encontravam-se entre a lealdade prpria rainha e a quem deviam a f que era, pois, o pontfice de Roma. Os protestantes ingleses dispunham do argumento para acusar o papa como o anti-Cristo de Roma. O que mais preocupava Isabel no era o valor do documento em si, mas que por detrs da assinatura papal estivesse a mo de Filipe II de Espanha e de Carlos IX de Frana. O monarca espanhol enviou uma carta ao seu embaixador junto da corte de Londres, Guerau de Spes, na qual se mostra surpreendido: () Sua Santidade promulgou uma bula sem me consultar em absoluto nem disso me informar. Eu teria podido, certamente, dar melhores conselhos. Temo que tudo isto, longe de melhorar a situao dos catlicos ingleses, leve a rainha e os seus conselheiros a acentuar a perseguio. Para o rei de Espanha esta bula do papa Pio V supunha uma grave intromisso nos assuntos polticos europeus. O prprio Filipe II sabia que os anos em que o papa (Gregrio VII) podia obrigar um imperador a humilhar-se diante dele, ou os anos em que um outro papa (Urbano IV) podia oferecer o reino da Siclia a um prncipe, tinham j passado. Sem dvida que, para o monarca espanhol, Pio V se enganava no sculo. As consequncias da bula papal seriam o martrio de milhares de catlicos ingleses e o fim de qualquer possibilidade de aproximao entre Londres e Roma. A curto e a mdio prazo a principal vtima daquela bula no seria a rainha Isabel I da Inglaterra, mas o prprio catolicismo. As cabeas coroadas da Europa sabiam disso, mas o papa Pio V, o monge inquisidor e criador da espionagem pontifcia, no estava disposto a recuar, mesmo que tivesse de recorrer aos assassinos da Santa Aliana, sempre em defesa da f. Avizinham-se, pois, anos obscuros.
2
Os anos obscuros (1570-1587)
A vossa conduta entre os pagos deve ser irrepreensvel para que, quando vos caluniem como malfeitores, com as vossas boas obras caleis a boca ignorncia dos insensatos. Primeira Carta de So Pedro, 2, 15.
Para a Frana e para a Espanha, as grandes potncias catlicas da poca e as duas cabeas coroadas, apenas ficavam por exercer duas polticas claras para a Inglaterra a partir da excomunho de Isabel. A primeira consistia em ajudar fosse como fosse os catlicos ingleses a pr termo soberana herege e, dentro dessa possibilidade, colocar no trono a catlica Maria Stuart. A segunda opo era desviar os olhos e continuar a manter boas relaes diplomticas com a corte de Londres. A Frana encontrava-se beira da guerra civil, com fortes presses sobre a Coroa por parte do partido dos huguenotest. A rainha escocesa j no lhe restava outro remdio seno voltar-se para a Espanha como nico aliado e com uma possvel sada da situao em que se encontrava. Entretanto, Maria Stuart mostrava-se uma das mais fervorosas catlicas nas suas mensagens ao papa Pio V e a Filipe II e uma moderada protestante nas mensagens a Isabel I e ainda como uma amiga em apuros junto de Carlos IX. O papa Pio V necessitava de algum que dirigisse a conspirao contra a herege Isabel e para isso escolheu Roberto Ridolfi. Desde h anos que este banqueiro de Florena e agente da Santa Aliana andava em intrigas junto das rainhas da Esccia e da Inglaterra. Rechonchudo, bom conversador, culto e com boas relaes nos dois lados da Mancha, Ridolfi era um amigo bastante ntimo de Guerau de Spes, com quem partilhava a necessidade de apoiar poltica e economicamente um possvel partido catlico em Inglaterra. Tanto o agente da Santa Aliana como o diploma de espanhol eram muito dedicados correspondncia secreta e cifrada, aos encontros em lugares seguros e isolados e outras coisas do gnero. O plano esboado por Roberto Ridolfi e aprovado pelo papa Pio V consistia em organizar uma rebelio contra Isabel no interior da Inglaterra e apoiada por um grande desembarque de tropas espanholas em vrios pontos da costa inglesa, que se deviam concentrar em Londres e libertar Maria Stuart, com a ajuda de agentes da Santa Aliana e de homens que lhe eram fiis, com o intuito de a pr no lugar da herege Tudor no trono da Inglaterra. Filipe II sabe que era esse o momento de o tentar, embora no fosse a melhor altura para fazer o golpe. A Espanha ainda no sufocou a rebelio dos mouros em Granada e encontra-se em plena negociao para criar a Santa Liga a fim de lutar contra os turcos no Mediterrneo, onde eles se tornaram fortes na ilha de Chipre. Talvez o monarca espanhol aceitasse o fato de que da prpria corte de Londres chegavam rumores de conspirao dos nobres contra a rainha lsabel. Os duques de Norfolk, Westmoreland, Arundel e Northumberland eram os mais interessados, por diversas razes, em acabar com o reinado de Isabel. Norfolk, o mais decidido dos quatro para levar a cabo qualquer ao que acabasse com a soberana inglesa, acabava de ser libertado da Torre de Londres. Apesar de estar fortemente Vigiado, o espio florentino da Santa Aliana e o embaixador espanhol viam nele o mais apto para dirigir a grande conspirao. Norfolk revelara um interesse inusitado por Maria Stuart. Ele julgava possvel, e isso mesmo fizera saber a Ridolfi, que a rainha da Esccia pudesse assumir a Coroa da Inglaterra, e se as potncias catlicas, incluindo o papa Pio V, apoiassem o seu casamento com ela, abrig-lo-ia a restaurar a religio catlica em todo o pas dentro do plano da Contra-Reforma. Antes de se lanar nessa aventura, a 21 de Janeiro de 1570, Filipe II aconselhou- se com o duque de Alba, mas o brilhante general espanhol olhava a aventura inglesa do outro lado da Mancha como algo de despropositado; mesmo assim ainda respondeu a Filipe II. E para ir ao encontro do que Vossa Majestade me ordena na sua carta, digo que h trs formas de invadir o reino da Inglaterra: a primeira, ligando-se Vossa Majestade ao rei de Frana. A segunda, fazendo Vossa Majestade essa aventura sozinho. A terceira, por haver na Esccia ou na Inglaterra algumas pessoas que a podem fomentar em segredo, devem ser elas a abrir o caminho. Ridolfi criou uma verdadeira rede de espies desde Edimburgo a Londres e de Glasgow aos Pases Baixos. O primeiro contacto do espio o duque de Norfolk deu-se em fins de Novembro ou comeos de Dezembro de 1570. O florentino deseja um compromisso firme para que tudo esteja resolvido e se possa casar com Maria Stuart e, sendo esta rainha da Inglaterra, Norfolk assumir e ordenar que a religio catlica seja aceite por todos os cidados do reino. Mas, antes de dar a sua bno a toda a operao, o papa Pio V deseja obter de Norfolk um compromisso por escrito. Este compromisso escrito fazia de Norfolk uma presa do papa de Roma e dos agentes da Santa Aliana. Se ele assinasse, ficava sujeito de corpo e alma ao destino da conspirao contra Isabel e sabia que desta vez jogava a sua prpria cabea. O primeiro passo de Norfolk devia ser como intermedirio para o envio de grandes somas de dinheiro destinadas aos partidrios de Maria Stuart, os quais continuavam entrincheirados nos castelos de Dumbarton. Ridolfi manejava as peas como numa partida de xadrez. Enviava cartas ao duque de Alba, ao rei Filipe II, ao bispo de Ross e ao papa Pio V. Acompanhado por vrios agentes da Santa Aliana, entre os quais se contava Lamberto Macchi, o executor de Darnley, Fawdonshide e Moray, realiza um priplo secreto pelos Pases Baixos, por Itlia e por Espanha. A operao consistia no desembarque de seis a dez mil homens provenientes dos Pases Baixos, uma parte do grosso das tropas do duque de Alba. O embaixador Spes achava a operao como uma obra-prima de engenharia, mas o nobre, muito mais perito em matria militar, encarava as coisas de um modo diferente. Para ele, Roberto Ridolfi era um italiano que gostava de falar muito. Apesar das cartas de advertncia do poderoso militar ao seu rei, Filipe II decidiu levar muito a srio as informaes do agente da Santa Aliana. O prprio monarca apresentou ao Conselho, e como ponto a discutir, o assassnio de Isabel I da Inglaterra, e com esta deciso Filipe II dava em pleno sculo XVI o que no sculo XXI se designaria como uma ordem de execuo. O problema era que naquela poca o fazer com que todas as peas da engrenagem funcionassem na perfeio revelava-se muito complicado devido s distncias que existiam entre os conjurados e a lentido das comunicaes. Por fim, os servios secretos de Isabel I comearam a detectar os primeiros sinais da chamada conspirao Ridolfi. A primeira chamada de ateno foi recebida pela prpria rainha inglesa no ms de Maio, quando o gro-duque da Toscnia, que era protestante, informou Londres de uma possvel conspirao contra ela por parte de Roberto Ridolfi, um conhecido agente florentino da Santa Aliana. Depois, alguns agentes ingleses descobriram uma pequena arca que tinha dentro umas seiscentas libras, mandadas pelo duque de Norfolk a Maria Stuart. Um agente da Santa Aliana foi preso a 11 de Abril em Dover com cartas cifradas, enquanto na Esccia, e aps a queda de Dumbarton, eram apreendidos documentos comprometedores para os conjurados. Outras cartas e relatrios foram apanhados a um mensageiro do duque de Alba pela rainha de Navarra, Joana de Albret, que vivia em Frana sob a proteo da Coroa, e esses documentos seriam enviados a Isabel I. Em Agosto de 1571, a espionagem inglesa conhecia todos os nomes dos participantes e cada uma das suas funes na conspirao. A rede estava prestes a fechar-se. Curiosamente, a rainha inglesa tinha dado um passo, em Abril do mesmo ano ou, pelo menos, tinha tentado-, para a liberdade religiosa. Convocara o Parlamento com a revolucionria ideia de colocar em debate a questo da liberdade religiosa, mas com toda a lealdade rainha. Esse documento apresentado dizia: Sua Majestade deseja que se saiba que todos os seus sbditos, desde que se sujeitem s leis e no cometam nenhuma infrao declarada, no sero molestados nem submetidos a qualquer humilhao. Sua Majestade no pretende violentar as conscincias nem renunciar sua clemncia natural. Mas para a deciso final a rainha precisava do Parlamento, que era claramente anticatlico. O documento emitido pela Cmara deixava muito claro para a soberana qual seria a sua posio: A ideia de que os homens podem ter direito a professar outras opinies em matria de religio perigosa para o Estado. Um Deus, um Rei, uma F so necessrios para manter uma monarquia. A desunio enfraquece, mas a unio fortalece. Isabel manifestou, ento, o seu descontentamento com o texto, mas isto deixava a questo em suspenso e a rainha ficava de mos atadas. A descoberta da conspirao Ridolfi e as manobras da Santa Aliana para acabar com o reinado de Isabel I fez com que Maria Stuart ficasse em grande perigo. A denncia da rede dos conspiradores seria finalmente feita pelo pirata John. O corsrio fez crer a Roberto Ridolfi que estaria disposto a lutar a favor de Filipe II e de Maria Stuart como andante de uma frota catlica inglesa. Para Ridolfi isso suporia um golpe que poderia ser utilizado como propaganda para fazer crer que se v a desenvolver no interior da Inglaterra uma rebelio civil contra a rainha Isabel. O que no se sabia era que realmente Hawkins servia a espionagem inglesa sob as ordens de Cecil, o favorito da rainha. Isabel I da Inglaterra pde ler o relatrio de John Hawckins: Fui encarregado de juntar a minha frota do duque de Alba e a outra que o duque de Medina prepara em Espanha. Todos juntos devemos invadir a Inglaterra e restabelecer a rainha da Esccia. Com a ajuda de Deus, esses traidores ho-de cair nas suas prprias malhas. Assinado, John Hawckins, fiel servidor de Sua Majestade a Rainha Isabel, a quem Deus guarde por muitos anos, 4 de Setembro de 1571. 13 A 7 de Setembro, foi detido o duque de Norfolk, a 9 o bispo de Ross e no dia seguinte Maria Stuart era encarcerada numa lgubre sala do castelo de Sheffield. Preso na Torre de Londres, Norfolk continuava a negar qualquer implicao na conspirao Ridolfi e chegava mesmo a rejeitar a autoria das cartas escritas pelo seu punho e enviadas ao espio papal. A rainha tinha pessoalmente ordenado que Norfolk no fosse torturado e que os interrogatrios se centrassem no bispo de Ross. ENTREGA ESPECIAL uma e outra tortura, o bispo gritava que no tinham o direito de tocar num embaixador de um pas estrangeiro (Esccia), mas para os ingleses o bispo era somente um padre conspirador que representava os interesses da rainha destronada (Maria Stuart) e, portanto, no podia contar com a imunidade diplomtica. Com as unhas arrancadas, o corpo em ferida pelas torturas sofridas e os ps em carne viva depois de serem queimados, o bispo de Ross confessa que a rainha da Esccia envenenou o seu primeiro marido (o rei Francisco II de Frana), permitiu o assassnio do segundo marido (Lorde Henrique Darnley), casou-se depois com o instigador (Lorde Bothwell) e tentou casar-se com um traidor (o duque de Norfolk). Depois de serem dados a conhecer a Maria Stuart os resultados da declarao motu prprio do bispo de Ross, ela afirma que o bispo no mais do que um sacerdote assustado e torturado. Eu tenho a importncia de uma rainha e confio que os meus amigos de Espanha e de Frana me ho-de vir libertar. O rei Filipe II, que no estava muito convencido do resultado do plano de Ridolfi, e muito menos o duque de Alba, decidiu deix-la sua sorte, tal como todos os conjurados. A nica medida contra a Espanha foi a expulso dada, em Dezembro de 1571, ao embaixador em Londres, Guerau de Spes. Por seu lado, Norfolk, Arundel, Southampton, Cobham e Lumley estavam detidos na Torre de Londres espera de julgamento. A 16 de Janeiro de 1572, a Cmara dos Lordes condenou Norfolk ao cadafalso. Uma vez pronunciada a sentena, a rainha Isabel devia ratific-la. O pai, o terceiro duque de Norfolk, fora decapitado pelo pai de Isabel I, o rei Henrique VIII, e agora ela devia assinar a sentena de morte do filho, o quarto duque de NorfoIk. Passaram os meses sem que a rainha decidisse ratificar a ordem de execuo. A 8 de Maio de 1572, o Parlamento voltou a reunir-se com um nico tema na ordem do dia: a execuo do duque de Norfolk. Isabel recebeu a mensagem e, por fim, a 1 de Junho, ordenou que Ievassem o documento de execuo. Com a pena, a rainha assinou Elizabeth R e depois o Lorde Protetor dos Selos derramou ao lado da assinatura uns pingos de lacre sobre o qual estampou o selo real. A 2 de Junho, pela manh, Norfolk foi escoltado at ao ptio principal da Torre. Ainda de p, afirmou a sua lealdade rainha Isabel I, bem como a sua fidelidade religio protestante, a verdadeira no reino. A seguir, deu uma moeda de prata ao carrasco, que colocou na sua mo ensanguentada. Ajoelhou-se, atirou os braos para trs e com um nico golpe de machado a cabea ficou separada do corpo. Roberto Ridolfi, por seu lado, conseguiu fugir da Inglaterra num barco que estava ancorado num porto de abrigo para o levar at Frana, no caso de a conspirao falhar. Tinham passado apenas duas semanas desde que o cardeal Hugo Boncompagni, com o importante apoio do rei Filipe II, fora eleito papa no conclave celebrado depois da morte do intrigante Pio V, a 1 de Maio de 1572. Boncompagni era filho de uma famlia bem instalada em Bolonha, onde estudara Direito. Depois de uma fase como professor universitrio, foi chamado a Roma pelo cardeal Parisio, sob cuja proteo comeou a carreira na Cria Eclesistica de Roma. Apesar da formao jurdica e do seu carcter reservado, no se mostrou indiferente ao estilo de vida que se vivia na Roma do Renascimento. Seria o papa Pio IV (25-XII-1559/9-XII-1565) quem enviaria Boncompagni como legado papal para a corte de Madrid e foi a que ele pde estabelecer boas relaes com o monarca espanhol at que, pela morte de Pio IV e a subida de Pio V ao trono de So Pedro, o cardeal chamado a Roma para tomar conta da Secretaria de Breves. Quando morreu Pio V, e devido ao apoio incondicional de Filipe II, Hugo Boncompagni foi eleito papa num conclave que durou menos de vinte e quatro horas. A eleio realizou-se a 13 de Maio de 1572 e ele adotou o nome de Gregrio XIII, em honra de So Gregrio Magno, em cuja festividade havia sido nomeado cardeal. O novo pontfice reformou os trinitrios de Espanha e de, Portugal, confirmou a reforma das carmelitas descalas iniciada por Santa Teresa de Avila e aprovou a fundao da Congregao do Oratrio de So Filipe Neri, mas seria tambm ele que organizaria, com a ajuda dos jesutas, a primeira fora de choque da Santa Aliana, a espionagem papal criada pelo anterior papa. Tal fora consistia num pequeno grupo escolhido da Companhia e fiis autoridade papal, os quais teriam como tarefa e nico objetivo assassinar a rainha da Inglaterra, que era a cabea da Igreja protestante. Os planos para destronar Isabel I com o auxlio de Filipe II e dos catlicos irlandeses foram abandonados depois de terem fracassado duas tentativas de invaso e de conjura interna, mas a Santa Aliana no recuaria no seu empenhamento em acabar com a rainha herege. Os resultados da conspirao Ridolfi, a excomunho pontifcia e a rebelio do norte tinham quebrado no interior da Inglaterra a unidade dos cidados para com a sua rainha. Isabel I sabia que s a unio com a Frana acabaria com os propsitos de Filipe II de uma interveno militar em Inglaterra. O rei Carlos IX dera cada vez mais liberdades religiosas e de culto aos protestantes e a paz civil com os huguenotes estava mais assente no dito de Saint-Germain-en-Laye de 1570, o que desagradava a Madrid. Carlos IX sabia que a sua unio com Isabel I da Inglaterra poderia enfrentar qualquer propsito de intervencionismo do lado espanhol e, portanto, qualquer golpe de surpresa do papa Gregrio XIII. Mas os huguenotes tambm pensavam numa possvel aliana anglo-francesa para assim lutarem contra o duque de Alba nos Pases Baixos. Dominado ainda mais pelos conselhos do seu fiel Coligny, o rei Carlos IX estendeu a sua mo conciliadora a Isabel I, assinando o tratado de Blois a 29 de Abril de 1572. A rainha inglesa tinha conseguido que nesse documento no constasse o nome, a libertao ou a restituio como rainha da Esccia de Maria Stuart. Esta situao tinha ensombrado durante anos as relaes entre Londres e Paris. As aventuras e traies polticas, bem como a mo do papa e dos seus agentes da Santa Aliana, alterariam o cenrio e aparecem novos espies para novas situaes. Enquanto era negociado o tratado anglo-francs, a rainha Isabel no deixou de vigiar a Espanha, sobretudo depois da expulso do embaixador Guerau de Spes pela sua participao na conspirao Ridolfi. Todos os assuntos da Coroa espanhola em Londres ficaram nas mos de Antnio de Guars, um secretrio sem poderes diplomticos. Em finais de 1572, ele foi capturado pela espionagem pontifcia para informar de qualquer movimento de Isabel I at a Santa Aliana poder infiltrar outros agentes no crculo da rainha. Desde a conspirao Ridolfi, os servios secretos ingleses capturaram e executaram uns dez agentes do papa, mas o jesuta Lamberto Macchi continuava ativo e estava em Londres. O primeiro movimento partiu das mos de Isabel para Filipe II, quando ela mandou expulsar de todos os portos ingleses os corsrios holandeses conhecidos como Gueux do mar (mendigos ou esmoleres) que ali se instalaram a partir de 1566. A sua origem era a de marinheiros mercantes holandeses flamengos que se tinham feito ao mar para fugir s tropas do duque de Alba e conseguirem valiosos tesouros de guerra ao abordarem os barcos espanhis. As suas tripulaes eram compostas por corsrios ingleses, escoceses, irlandeses fiis a Isabel I e at mesmo por huguenotes franceses. Todos eles contavam com as patentes de corso conferidas por Guilherme de Orange como prncipe soberano de Orange, na Provena. As patentes de corso eram documentos pelos quais uma potncia beligerante concedia aos marinheiros privados o direito de atacar e abordar qualquer barco de uma potncia inimiga. Ao expulsar estes malditos holandeses, Isabel I atingia dois claros objetivos: agradar aos espanhis e acabar de uma vez por todas com o contrabando feito por esses marinheiros. Mas a expulso provocou uma reao diferente da que era desejada. A Santa Aliana informou que Guilherme de La Marck, comandante dos Gueux, precisava ansiosamente de ter um porto onde se abastecesse e era evidente que o no podia fazer em Inglaterra ou em Frana, tendo assim de procurar um lugar seguro nos Pases Baixos atacando os espanhis. Roma deu ento instrues aos seus agentes para que alertassem os agentes do duque de Alba que estavam infiltrados em certas cidades costeiras inglesas de qualquer movimento de barcos de guerra. Na verdade, a 1 de Abril de 1572, ocuparam o porto e a cidade de Brielle, na ilha holandesa de Voorne, na embocadura do rio Mosa. A Santa Aliana voltou a informar que os corsrios de La Marck no iam ficar ali: poucos dias mais tarde, os barcos voltaram a soltar as amarras e ocuparam a cidade fortificada de Flessinga, na ilha de Wacheren, de onde controlavam a embocadura do rio Escaut, onde hastearam a bandeira de Guilherme de Orange. Os agentes da Santa Aliana informaram o duque de Alba de que uma onda de jbilo invadiu toda a Inglaterra protestante, onde j se comeava a falar da queda espanhola nos Pases Baixos. Esse jbilo provocou o alistamento voluntrio de milhares de soldados ingleses e huguenotes franceses para se aliarem aos corsrios de Guilherme de La Marck em Flessinga. Essa vaga continuou o seu curso e fez levantar a populao da Flandres, Holanda, Zelanda, Geldres e Frsia contra as autoridades espanholas. O brilhante espio Lamberto Macchi informara desde Londres que estavam a chegar constantes reclamaes junto da rainha Isabel da parte de Guilherme de Orange e de Lus de Nassau para que a Inglaterra encabeasse o movimento de independncia dos Pases Baixos sob o estandarte do protestantismo. Macchi escreve ao papa: Isabel tem apenas duas opes: permanecer neutral ou intervir numa guerra aberta contra a Espanha no continente. Ela sabe que um risco muito alto. Se o duque de Alba puder recuperar o controle das cidades rebeldes, os exrcitos no se detero a e continuaro no seu avano at Londres com o beneplcito do rei Filipe. Isabel no se pode colocar em to grande perigo e nem sequer lhe interessa acabar com o poder espanhol no outro lado do Canal e permitir que Guilherme de Orange fique como um poderoso vizinho. O espio da Santa Aliana sabia muito bem que, embora Leicester e Walsingham, ento embaixador em Paris, fossem favorveis a essa interveno, pesava mais na corte a opinio de Burghley a favor de uma posio de esperar para ver. O favorito Coligny aconselhava Carlos IX de Frana a liderar os protestantes e catlicos na guerra contra a Espanha como forma de unir o reino e que nomeasse o duque de Anjou como vice-rei dos Pases Baixos. Esta ideia de grandeza agradava a Carlos IX. At comeos de Junho pensava-se em todo o continente que se estava a preparar uma grande mudana nos poderes da Europa e que o protestantismo havia de acabar com o poder catlico de Espanha. A isto somava- se a partida de quase mil e quinhentos voluntrios ingleses que com os Gueux conquistaram 47 Bruges. Este fato colocou a rainha Isabel I em grandes dificuldades perante Filipe II. Os primeiros triunfos que chegavam de glria aos defensores da Reforma depressa se converteram em terrveis derrotas e posteriores massacres por parte dos defensores da Contra-Reforma. Em meados de Junho, Guilherme de Orange era rechaado e empurrado pelas tropas espanholas de novo para a Alemanha no meio de enormes baixas. Mons capitula sem saber que as tropas de huguenotes que chegavam de Frana em seu auxlio sob as ordens do general De Genlis, parente de Coligny, o intrigante conselheiro do rei Carlos IX, tinham sido massacradas na sua totalidade na passagem de Quivrain. O duque de Alba deu ordens s suas tropas para que no fizessem prisioneiros. Guilherme de Orange passa a ser o novo objetivo da Santa Aliana. O papa Gregrio XIII deu ordens para acabar com ele, com o beneplcito do monarca espanhol, enquanto os huguenotes eram os bodes expiatrios da derrota protestante nos Pases Baixos. Para evitar as represlias por parte de Espanha, Carlos IX planeou um casamento entre Francisco, duque de Alenon, e a rainha Isabel. Sabia que se fosse levado a bom termo, Filipe II no ousaria pr em perigo a frgil estabilidade das relaes entre Madrid e Londres para atacar a Frana. Francisco de Alenon estava disposto a abraar a f protestante se desse modo conseguisse uma aproximao a Isabel. Para isso, enviou a Londres o seu embaixador Boniface de Ia Mole. Mas nem Isabel nem o embaixador sabiam que nesse mesmo instante tinha comeado em Paris a matana de protestantes. A partir da primeira semana de Agosto, o rei Carlos IX moveu-se entre duas guas, mas o seu conselheiro, Gaspar de Coligny, continuava a favor da guerra aberta contra Filipe II. Por outro lado, o rei sofria presses contrrias da sua prpria me, Catarina de Mdicis, do irmo, Henrique de Anjou, de Zuniga, embaixador de Espanha, e at mesmo do representante de Gregrio XIII na corte. O prncipe Henrique, herdeiro da Coroa de Frana e um catlico muito convicto, sabia que, se quisesse acabar com os desejos de seu irmo Carlos para atacar Filipe II, teria de eliminar Coligny. O herdeiro no ignorava que devia evitar manchar as mos de sangue e para isso convenceu um homem enviado pelo nncio do papa que era, ao que parece, um agente da Santa Aliana. Na noite de 22 de Agosto, Coligny segue numa carruagem aberta pelas ruas de Paris quando, num cruzamento, duas carruagens fechadas se atravessam no seu caminho. Do interior saem quatro homens que, com as espadas, tentam atingir o maldito conselheiro real, mas a rpida interveno da guarda obriga-os a fugir. Gaspar de Coligny ferido no rosto e no brao direito. Torna-se, pois, evidente que pessoas muito prximas do rei desejam a sua morte. Tanto Henrique como Catarina de Mdicis sabem que Coligny pode levantar os huguenotes em todo o pas contra o rei e por isso contra o rei para que espalhe por toda a Paris as suas milcias. Na noite de 23 e at 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu, iniciou se na capital um autntico banho de sangue. Cerca de cinco mil huguenotes, segundo certas fontes, ou uns vinte mil, segundo outras, foram assassinados em Paris apenas em 2 dias 24. Os membros da milcia instalaram-se ao longo da cidade sem grande dificuldade. Entravam nas casas dos huguenotes, matavam os homens, violavam as mulheres e degolavam as crianas e, de seguida, os cadveres eram atirados para enormes piras. O almirante Gaspar de Coligny caiu nesse mesmo dia. Depois do atentado sofrido, refugiou-se no castelo familiar de Chatillon. Sabia que em qualquer momento podia ser assassinado se no conseguisse contactar com Guilherme de Orange. Na noite de 26 de Agosto, trs homens entraram nos seus aposentos e mataram- no depois de lhe darem nove punhaladas. Segundo se conta, Coligny teria sido executado pelos homens da Santa Aliana, mas isso no passa de uma lenda. Nas capitais protestantes, a opinio pblica viu nessa que logo seria designada como Matana da Noite de So Bartolomeu o resultado de uma conspirao entre Filipe II, Catarina de Mdicis, o duque de Alba e o papa Gregrio XIII. A verdade que desde h meses os espies da Santa Aliana no paravam de enviar mensagens para Roma sobre as possveis repercusses que teriam as revoltas em Paris e isso com certeza desembocaria na morte de protestantes. Mas Roma no avisou ningum, porque afinal os assassinados nesse dia eram velhos, mulheres e crianas todos hereges. Os relatrios do embaixador ingls, Walsingham, sobre este caso mostram-se claros: No sei como esta tragdia no pode comover todo o reino. O diplomata foi protegido das milcias pela Guarda Real enviada do palcio por Carlos IX e isso permitiu dar cobertura aos ingleses que se encontravam em Paris nesse dia sangrento, como Walter Raleigh. Para contrariar os efeitos do golpe, a prpria Catarina de Mdicis criou uma verso que seria defendida pelo rei no Parlamento de Paris e a seguir espalhada pelos agentes da Santa Aliana em toda a Europa: Gaspar de Coligny concebera um plano para matar o rei, os seus irmos e a famlia real. O governo foi avisado muito a tempo (julga-se que por espies do papa) graas bondade divina, e em virtude de uma ordem do rei, o almirante [Coligny] e os seus cmplices foram executados para evitar o mais sangrento golpe de Estado. E assim ficou resolvida a questo sobre a morte de milhares de pessoas. Maria Stuart continuava a ser rainha da Esccia, mas o nmero dos seus partidrios era cada vez menor. A sua interveno na conspirao Ridolfi colocou-a numa posio delicada perante Isabel. Por seu lado, a Frana j no se mostrava to disposta a apoi-la devido a um projeto de entendimento entre Paris e Londres. E at mesmo a esposa de Carlos IX, Ana de Austria, tinha escolhido Isabel I como madrinha da sua filha que acabava de nascer. Cada vez em mais larga medida, o muito jovem Jaime da Esccia era reconhecido como rei de pleno direito. Macchi informava Gregrio XIII a partir de Londres de que os ingleses estavam a tramar alguma coisa contra a catlica Esccia: Isabel tinha enviado a Edimburgo Henry Killigrew com instrues concretas: Prova-se que a presena da rainha da Esccia to perigosa para Sua Majestade [Jaime] e para o seu reino que por isso necessrio que nos livremos dela. E ainda que a justia se possa fazer aqui mesmo, por razes vrias parece prefervel, sem dvida, envi-la para a Esccia a fim de a pr nas mos do regente [Morton] e que proceda contra ela por via judicial, de tal modo que ningum possa ser logo posto em perigo por ela. Este texto demonstrava claramente o interesse de Isabel em enviar Maria Stuart para a morte. Mas Morton explicou ao enviado de Londres que se na verdade queriam ajudar a Esccia, no tinham mais que deitar-lhe a mo para acabar com a espinha catlica encravada na protestante Esccia, que era o castelo de Edimburgo, ainda nas mos dos partidrios da ex-rainha Maria Stuart. Para os ingleses, reconhecer Jaime VI como rei era uma coisa, mas intervir abertamente na Esccia era outra. Carlos IX estava ocupado em La Rochelle e Filipe II no conflito dos Pases Baixos e por isso Isabel I estava segura de que nenhum deles se mostraria disposto a ajudar Maria Stuart. Por fim, a 17 de Abril de 1573, o exrcito ingls cruzou a fronteira angIo-escocesa. Lamberto Macchi enviara uma mensagem urgente para Roma a informar que um grande nmero de homens e de artilharia estavam a concentrar-se na fronteira da Esccia. A informao do agente chegou a Roma s a 28 de Abril e j era demasiado tarde. Na manh de 17 de Maio, comeou o bombardeio sobre a fortaleza de Edimburgo e doze dias depois deu-se a rendio do sitiados. Os dez anos que se seguiram representam um perodo incerto em toda a Europa, ainda sob os efeitos da conspirao Ridolfi, o massacre de So Bartolomeu e o assalto ingls ao castelo de Edimburgo. Frana, Espanha e Roma mantm-se numa linha constante. Isabel I da Inglaterra, Filipe II de Espanha, Gregrio XIII em Roma e Henrique III, que subiu ao trono de Frana depois da morte de Carlos IX em 1574, marcam a poltica dos finais do sculo XVI e comeos do XVII. Em finais de 1573, o duque de Alba foi substitudo por Luis de Requesens por ordem do rei Filipe II, mas Requesens apenas se manteve trs anos no poder, ou seja, at sua morte em 1576. O monarca nomeou dom Joo da Austria at morte, em 1578, e a este sucedeu-lhe um homem de confiana e seu lugar- tenente, Alejandro Farnesio, duque de Parma. Os Gueux fiis a Guilherme continuavam a castigar as frotas que navegavam pelo canal da Mancha a partir da base em Flessinga. Isabel j tinha ameaado Guilherme de Orange que, se ele continuasse com as suas abordagens aos navios ingleses, seria obrigada a aliar-se aos espanhis para castigar os Gueux de Flessinga. Em 1578, e devido presso militar a que o submetiam os exrcitos espanhis, Guilherme de Orange ofereceu a Coroa dos Pases Baixos j libertados a Isabel da Inglaterra, mas ela sabia que se aceitasse colocaria em perigo a to instvel aliana entre Londres e Madrid. Por outro lado, a morte de Ignacio de Loyola a 31 de Julho de 1556 deixara a Companhia de Jesus sem uma liderana clara para dirigir o destino dos seus quase cinco mil membros espalhados pelo Mundo. Em 1581, a eleio do italiano de trinta e sete anos Cludio Acquaviva como geral da Companhia assinala o comeo da chamada poca dourada dos jesutas. Acquaviva e o papa Gregrio XIII formariam uma das melhores alianas de toda a histria da Igreja Catlica. Desde h muito tempo que os jesutas haviam entendido, do ponto de vista militar, a situao estratgica da catlica Irlanda numa preocupao sria de reconquistar a protestante Inglaterra. O papa estava convencido de que qualquer apoio a James Fitzmaurice, sobrinho do conde Desmond, poderia fazer avanar a causa catlica nas ilhas inglesas. A ideia dos jesutas era organizar uma expedio militar a Munster (Ulster), onde Fitzmaurice acreditava poder liderar a rebelio contra a rainha Isabel da Inglaterra. Para a poder levar a cabo, os jesutas e agentes da Santa Aliana escolheram Thomas Stukeley, um verdadeiro campnio, antigo pirata, conhecido pela espionagem inglesa e que dizia ser filho bastardo do rei Henrique VIII. Stukeley tinha-se convertido num acrrimo defensor do catolicismo e colocou-se sob a proteo da corte de Madrid, onde Filipe II lhe conferiu o ttulo de marqus da Irlanda. Antes da sua partida para a Irlanda, vido por aventuras e honrarias, Stukeiey decidiu envolver-se numa ridcula cruzada contra os infiis de Marrocos junto do rei dom Sebastio de Portugal. A 4 de Agosto de 1578, deceparam-lhe a cabea na batalha de Alccer-Quibir e com a sua morte a Santa Aliana tinha de procurar um novo cabea para a rebelio irlandesa. Fitzmaurice ficava de novo no comando da aventura. Gregrio XIII estava disposto a financiar a operao irlandesa e a abenoa-la. O papa ordenou que um membro da Santa Aliana acompanhasse Fitzmaurice na expedio militar e para isso foi escolhido o padre Nicholas Sanders, um ingls que se tornou muito conhecido durante o reinado de Isabel I pelos seus textos contra a heresia anglicana. A 27 de Junho de 1579, James Fitzmaurice e Nicholas Sanders, sob a bandeira pontifcia, zarparam do porto de El Ferrol rumo s terras irlandesas. A tropa e a tripulao eram compostas por meia centena de homens, que eram na sua maioria italianos e espanhis. A 17 de. Julho desembarcaram na pennsula de Smerwick, onde se entrincheiraram espera de reforos vindos de Espanha. A operao comeou rapidamente a sofrer baixas. Fitzmaurice foi abatido pelos tiros das tropas inglesas, mas o conde de Desmond, que regressara Irlanda depois de uma pena de priso na Torre de Londres, tomou conta do comando e em poucas semanas todo o Munster estava em rebelio aberta contra os ingleses. Entretanto, Nicholas Sanders, com o texto da bula de excomunho de Isabel I na mo, entrava em todas as igrejas da Irlanda para pedir aos irlandeses que se levantassem contra a rainha herege. Os protestantes tinham-se refugiado em Dublin e Cork. O conde de Ormond dirigia as tropas irlandesas fiis Inglaterra. Por ltimo, no ms de Setembro de 1580, foram enviadas tropas espanholas de apoio, mas um dia antes da sua chegada Isabel enviou reforos e uma grande frota para acabar com a insurreio. Em Novembro, o forte estava sitiado por terra e por mar. Aps vrios dias de negociaes, o comandante espanhol perguntou a lorde Grey de Wilton, chefe das foras inglesas, quais as condies da rendio. Wilton tinha ordem da prpria rainha Isabel para conseguir a capitulao e o aniquilamento total dos rebeldes. A 10 de Novembro de 1580, foram abertas as portas s tropas inglesas e irlandesas fiis a Isabel. Mais de uma meia centena de homens foram ali mesmo executados, bem como os catlicos irlandeses, homens, mulheres e crianas que se refugiaram no interior do forte. Perdoou-se a vida a trinta oficiais espanhis, que puderam regressar a Espanha depois de um grande resgate. Um ingls catlico e dois irlandeses que vieram de Espanha com James Fitzmaurice foram torturados e executados. Kicholas Sanders, que no estava dentro do forte, prosseguiu no seu trabalho clandestino como agente da Santa Aliana na Irlanda at 1581, em que morreu vtima de frio e de fome. Depois da Operao Munster por parte da Santa Aliana, Isabel I da Inglaterra protestou junto de Mendoza, o embaixador de Espanha. A soberana inglesa acusava os espanhis e o rei Filipe II de atos de hostilidade pelo desembarque de tropas num territrio sob a soberania da Inglaterra. O diplomata espanhol explicou ento que Espanha nada tinha a ver com aquela aventura e que ela fora pensada e financiada pelo papa Gregrio XIII. A explicao oficial dada pela corte de Madrid foi a de que os navios pontifcios bem como as suas tropas tinham liberdade de passagem pelo territrio e pelos portos do rei de Espanha, prncipe catlico e defensor da f. Isabel da Inglaterra, indignada, ameaou a Espanha com o envio de tropas inglesas para os Pases Baixos. E de novo o embaixador Mendoza respondia soberana inglesa de forma pouco diplomtica: No vosso prprio interesse, deveis saber que se o rei de Espanha decidir fazer-vos guerra, o far com tal fora que no tereis sequer tempo de respirar antes que o golpe se faa. O fiasco irlands fez com que o papa Gregrio XIII fechasse os olhos, bem como Isabel I e Filipe II, questo escocesa, que estava ainda por resolver. Aps a queda do castelo de Edimburgo, h sete anos, Maria Stuart tinha deixado de ter qualquer tipo de poder na Esccia. Os protestantes e a rainha Isabel mantiveram as rdeas muito reduzidas graas ao regente Morton e at que o adolescente Jaime VI se tornasse num bom rei. Mas as nuvens negras voltavam a planar sobre a Esccia como um peo numa partida de xadrez religiosa. Jaime VI entrou triunfalmente em Edimburgo a 17 de Outubro de 1578. As aclamaes recebidas do seu povo fizeram com que comeasse a sentir o gosto pelo poder. O jovem monarca era inteligente e sabia quais as suas prprias responsabilidades como rei, mas tambm precisava de um conselheiro que o ajudasse a manejar a difcil poltica escocesa. O eleito foi Esm Stuart, senhor de Aubigny, um primo francs do monarca e descendente da famlia pelo lado materno, que se instalara em Berry durante a Guerra dos Cem Anos. Esm de Aubigny era um fervoroso catlico que jurara lealdade ao papa Gregrio XIII e depressa se converteu numa espcie de agente livre da Santa Aliana na Esccia. A partir da sua posio privilegiada, quase melhor do que a que tivera David Rizzio junto de Maria Stuart, poderia convencer o jovem rei a converter a Esccia numa nao catlica ou pelo menos era isso que em Roma se pensava. No fim de contas, Rizzio s dominava os problemas de cama de uma rainha, mas Esm de Aubigny conduziria os assuntos polticos de um rei. O francs chegara corte da Esccia em 1579; um ano depois abraava o protestantismo para passar despercebido entre os nobres de Jaime. O monarca no s o tinha nomeado conde de Lennox e depois duque em 1582, mas tambm via no seu primo afastado um possvel herdeiro da Coroa. Os reis e conselheiros das cortes da Europa interrogavam-se sobre as razes pelas quais Esm de Aubigny tinha tanto interesse na Esccia e junto de Jaime VI. Guilherme de Orange julgava que ele era um peo da Frana e Isabel I pensava que era um agente de Gregrio XIII e uma pea dos jesutas. Na verdade, o francs no era mais do que um aventureiro em busca da sua prpria fortuna. Aubigny podia ser um perfeito catlico para o papa e para Filipe II e um fervoroso protestante para Isabel I e para Jaime VI. Aconselhado pela Santa Aliana, Esm de Aubigny sabia que se desejava algum dia tornar-se rei da Esccia devia afastar o poderoso conde de Morton, o regente. Na noite de 31 de Dezembro de 1580, um guarda especial deteve Morton quando se dispunha a entrar no palcio real. A acusao era de ter participado no assassnio de Henrique Darnley catorze anos atrs. E o at ento regente da Esccia ficou fechado numa cela sombria do castelo de Edimburgo espera de ser julgado. Ao inteirar-se das notcias ocorridas na Esccia, a rainha Isabel decidiu enviar o embaixador Thomas Randolph para exigir a imediata libertao de Morton. A soberana inglesa foi informada de que Jaime VI e Aubigny estavam a ser manipulados por uma nova conspirao papal, e isso era mais do que certo. Nessa altura Isabel, por recomendao de Walsingham, que exercia o cargo no s de secretrio de Estado da Inglaterra, mas tambm chefe da espionagem, aconselha a rainha sobre os dois caminhos a adotar: ou se manda uma frota de navios de guerra para as costas escocesas a fim de amedrontar Jaime VI, e desse modo conseguir a libertao de Morton, ou se ordena simplesmente o assassnio de Esme de Aubigny. Isabel aceita a segunda opo, mas frisou bem que o assassinato do agente da Santa Aliana no devia dar-se na presena do rei. Numa noite de Maro de 1581, quatro homens mandados por Walsingham saram no enlao de Esm de Aubigny, duque de Lennox. Hbil com a espada, o francs atirou uma estocada certeira no primeiro que o atacou, matando-o logo, enquanto o tiro de outro dos agentes ingleses o deixava ligeiramente ferido num brao. Ao sentirem a chegada da guarda em auxlio do conselheiro do rei, os espies de Walsingham desataram a fugir. O golpe tinha falhado, mas Aubigny no deixaria que as coisas ficassem assim. Para evitar sofrer um novo ataque, o influente conselheiro ordenou a execuo de Morton a 2 de Junho desse ano. Entretanto, tecia-se uma extensa rede volta de Jaime VI e de Esm de Aubigny contra Isabel I no que foi designado por conspirao Throckmorton. Eram vrios os que nela estavam implicados: Filipe II, Henrique III, Gregrio Xin e Maria Stuart. O objetivo continuava a ser destronar a herege rainha Isabel I e a subida ao trono da Inglaterra de Maria Stuart. Nos primeiros meses de 1583, Thomas Morgan, ento secretrio da embaixada da Esccia em Frana, recrutou um catlico ingls, Francis Throckmorton, de vinte e oito anos, defensor do papa e bom apreciador de intrigas. Enviado a Inglaterra, dedicou-se a reunir o maior nmero de dados respeitantes defesa da Inglaterra, como as linhas costeiras, os pontos de defesa, os possveis locais de desembarque, etc. As principais ligaes com o continente eram Charles Paget, outro membro da Santa Aliana em Londres, e que se dedicava a viajar constantemente at Paris para levar cartas cifradas, e o embaixador da Frana na corte de Isabel, Michel de Castelnau de Mauvissire. As informaes de Throckmorton tinham tambm como destino a embaixada de Espanha em Londres e Paris e a da Frana em Londres. O embaixador Mendoza em Inglaterra e o embaixador Juan Bautista de Taxis em Frana informavam o rei Filipe II sobre os avanos de uma conspirao em que no estavam muito dispostos a participar. Na Primavera de 1583, Walsingham tinha uma grande parte do plano sobre a mesa, bem como o nome dos conjurados e espies da Santa Aliana. Throckmorton no sabia ento que a infiltrao dos ingleses tinha sido levada a cabo na legao francesa em Londres. Walsingham conseguiu infiltrar na embaixada de Frana um espio que tinha o nome de cdigo Fagot desde o comeo de 1583. Na verdade, e s se saberia isso muitos anos depois, Fagot no era outro seno o clebre filsofo italiano Giordano Bruno, tal como observa o historiador John Bossy no seu livro admirvel Giordano Bruno and the Embassy Affair. At h bem poucos anos acreditava-se que o verdadeiro traidor e autor do desmantelamento dessa conspirao Throckmorton era mesmo o secretrio do embaixador, Jean Arnault, senhor de Cherelles. Graas s informaes dadas pelo dominicano Bruno ao prprio Walsingham, Throckmorton foi preso a 12 de Outubro. Antes de ser detido, uma criada que trabalhava na embaixada de Espanha conseguiu pr a salvo importantes papis que acusavam diretamente os diplomatas espanhis e o prprio rei de Espanha dessa conspirao. O espio da Santa Aliana, Francis Throckmorton seria executado a 10 de Julho de 1584, enquanto Giordano Bruno, ou melhor, Fagot continuou a trabalhar para a espionagem inglesa at 1586, ano em que deixou de residir na embaixada francesa em Londres. O que ficava claro que as intrigas dirigidas de Madrid e de Roma deviam ocupar-se em aumentar a tenso na Esccia. A primeira ideia era criar uma fora militar catlica que, depois de desembarcar na Esccia, capturasse vivo o rei Jaime VI e o levasse para Frana, onde se devia converter ao catolicismo fora ou por vontade prpria. Nessa mesma operao, vrios membros da Santa Aliana ajudados por catlicos ingleses deviam libertar a rainha Maria Stuart e coloc-la novamente no trono. Os agentes de espionagem do papa eram os jesutas Crichton, Holt, Edman Campion e Robert Parsons. Como um homem mais fiel ao geral dos jesutas, Cludio Acquaviva, do que ao papa Gregrio XIII, Crichton chegaria a converter-se numa verdadeira lenda dentro da Santa Aliana at sua captura, a 3 de Setembro de 1584. Campion era muito culto e um hbil conversador e diplomata. Por sua vez, Parsons era um guerreiro, habilidoso com a espada e veemente no modo de falar. Os religiosos tinham a misso de ir at Edimburgo, onde deviam avistar-se com os lordes e estes deviam prestar todo o seu apoio causa da rainha Maria Stuart. A tarefa seria financiada por Filipe II e pelo papa. Henrique III, que acabava de se nomear responsvel por essa tarefa, planeava a operao militar em grande. Em cima de um mapa da Esccia distribura quase vinte mil efetivos, algo que era pouco possvel naquela poca. Por seu lado, Maria Stuart pensava enviar o filho, o destronado Jaime VI para Espanha, sob a proteo ou vigilncia de Filipe II, com esperana de que ele abraasse o catolicismo. Para evitar males maiores, Walsingham planejou uma operao para acabar com a conspirao. O chefe da espionagem inglesa ordenou o Conde de Gowrie, inimigo de Esm de Aubigny, que prendesse Jaime VI e o encarcerasse no castelo de Ruthven at que os protestantes voltassem a tomar o poder em Edimburgo. Uma semana depois da deteno do monarca, Esm de Aubigny, duque de Lennox, fugiu da Esccia e refugiou-se em Frana. Os agentes de Walsingham conseguiram prender o jesuta Holt e, aps ser torturado para que confessasse a sua participao e a da Santa Aliana na conjura, foi enforcado sem qualquer julgamento. O padre Crichton pde escapar e regressar a Roma, enquanto o padre Parsons conseguiu fugir e refugiar-se em Frana, onde continuou a trabalhar para a Santa Aliana. O padre Campion tambm fugiu da Esccia, mas foi preso pouco tempo depois em Inglaterra. Detido na Torre de Londres, foi torturado e executado em Tyburn a I de Dezembro. Durante o ano de 1583, a questo escocesa continuou a impor-se na poltica da Europa de finais do sculo XVI. A 29 de Junho deste ano, Jaime reposto no trono da Esccia e a partir deste momento, sabendo que a me Maria Stuart estava envolvida na conspirao para o destronar, decide deixar de ter qualquer contacto com ela. Oficialmente, e perante a Inglaterra, a Esccia rompe com a ex-rainha Maria Stuart por ordem do seu prprio filho. Gregrio XIII, um papa de sade dbil e que conta j oitenta e trs anos de idade, ainda tem nimo para dar mais um rude golpe antes da sua morte: ordena Santa Aliana que assassine o prncipe Guilherme de Orange. O prncipe protestante j tinha escapado com vida num outro atentado ocorrido dois anos antes. O assassnio poltico era muito corrente na Europa dos finais do sculo XVI. Para levar a bom termo a operao, o pontfice escolheu o jesuta Crichton, que tinha conseguido fugir da Esccia e que estava em Roma. Tanto o holands como a rainha protestante da Inglaterra deviam morrer em nome da verdadeira f. O padre Crichton chegara Holanda em Abril de 1574 e, a partir dessa altura, estabeleceu estreitas relaes com Baltasar Grard e Gaspar de Albrech, dois fanticos catlicos de Borgonha. Ambos se mostravam dispostos a acabar com a vida do heri protestante, mesmo numa misso suicida. A oportunidade chegou a 10 de. Julho de 1584 na cidade de Delft. Nessa manh, Guilherme de Orange tinha-se deslocado, juntamente com alguns membros do seu squito, at praa principal para ali se reunir com as autoridades. O holands pde esquivar-se primeira tentativa de Albrech, mas no segunda de Grard. A estocada atravessou-lhe o pulmo e ele morreu nessa noite por causa dos ferimentos. As Provncias Unidas choraram a morte do seu chefe, porque apesar de a guerra com Espanha estar longe de chegar ao fim, uma nova nao, a Holanda, estava a formar-se numa Europa devastada pelas guerras e pelos conflitos religiosos. Na manh de 6 de Setembro de 1584, alguns corsrios holandeses atacaram um navio que passava pelo mar do Norte sem bandeira nacional. Depois de matarem uma parte da tripulao e o resto se ter rendido, os piratas holandeses revistaram o navio e encontraram ali um homem que negava identificar-se. Era o jesuta Crichton que, depois do regicdio, conseguira fugir das possveis represlias dos protestantes. Entregue aos ingleses, o padre foi preso por ordem de Walsingham na Torre de Londres para ser interrogado. Os corsrios holandeses entregaram o padre jesuta ao chefe da espionagem inglesa juntamente com documentos comprometedores. Num primeiro momento, Crichton t-los-ia atirado ao mar, mas os assaltantes conseguiram recuper-los. Os papis em poder de Walsingham tornavam mais evidente o interesse em invadir Inglaterra atravs de uma grande fora catlica, resgatar Maria Stuart e coloc-la no trono da Inglaterra no lugar da herege Isabel. Em poder do jesuta foi tambm encontrada uma carta assinada pelo cardeal Galli, bispo de Como e secretrio de Estado do Vaticano, dirigida a Crichton, na qual se declara:; Dado que essa mulher culpada e causa de tanto dano para a f catlica e pela perda de tantos milhes de almas, no h dvida de que quem a afastar deste mundo com a piedosa inteno de servir a Deus, no s no pecar como tambm ganhar mritos eternos. A sesso do Parlamento realizou-se a 23 de Novembro de 1584 e nela vrios deputados se serviram da chamada Lei complementar contra os jesutas, sacerdotes, seminaristas e outras pessoas semelhantes e desobedientes, promulgada em 1559 e que ordenava abandonar o solo da Inglaterra no prazo de quarenta dias, sob pena de morte. William Parry, deputado conhecido pelas suas simpatias ao catolicismo, atacou o texto da lei e aqueles que defendiam a sua prtica, aduzindo que em Inglaterra viviam muitos catlicos dispostos a morrer pela rainha Isabel. Poucos sabiam Parry trabalhar para os servios de espionagem ingleses na Europa, mas tambm se desconhecia que este mesmo deputado planeou assassinar Isabel I quatro anos antes. O plano foi por fim posto de lado por Parry por motivos de conscincia. Quando a sesso terminou, William Parry foi detido, acusado de traio e levado para a Torre de Londres. A prpria rainha ordenaria a sua libertao e assim salvara a sua cabea, mas no por muito tempo. Desde o momento da sua libertao, que se comeou a urdir-se um mplot para acabar com a vida de Isabel I. Um dos implicados no atentado, Edmond Neville, duque de Westmoreland, decidiu abandonar o plano e denunci-lo a Walsingham. O assunto caiu como uma bomba entre os membros da corte, que tinham bem presente o assassnio de Guilherme de Orange. William Parry aparecia ento como chefe dos conspiradores catlicos e de novo emergia atrs dele a mo do velho papa Gregrio XIII e a da Santa Aliana. A ideia era disparar contra a carruagem real durante as celebraes do comeo do ano. O plano tinha sido esboado por Thomas Morgan, um dos homens de confiana de Maria Stuart. No interrogatrio de Parry apareceram ligaes com os catlicos escoceses que viviam refugiados em Frana, sob a proteo do tambm catlico Henrique III. O julgamento de William Parry foi realizado com rapidez, tal como a sua execuo a 2 de Maro de 1585; Thomas Morgan seria preso na Bastilha pela sua participao no complot e libertado quatro meses mais tarde; Edmond Neville foi posto em liberdade sem culpa, mas foi obrigado a abandonar Inglaterra, tendo morrido em Roma em 1619, sob a proteo do papa Paulo V. A 24 de Abril de 1585, o cardeal e franciscano Flix Peretti foi eleito como novo pontfice depois da morte de Gregrio XIII ocorrida duas semanas antes. Peretti, que adotou o nome de Sisto V, tinha sido um homem muito prximo do papa Pio V e chegou mesmo a ser consultor da Congregao da Inquisio graas ao apoio daquele papa. Por detrs da sua eleio, via-se novamente a mo de Filipe II. Na verdade, seria este papa quem estabeleceria os mais estreitos laos com a congregao dos jesutas e os utilizaria como uma espcie de fora de choque em todos os lugares para onde fossem enviados para defender a f, fosse qual fosse a sua misso. Sisto V via com bons olhos a utilizao dos jesutas como uma fora militar, mas no aprovava os seus pontos de vista teolgicos. O geral Cludio Acquaviva sabia que se o papa Sisto V queria continuar a manter os jesutas como uma fora de choque para misses especiais, deveria ceder aos seus pontos de vista teolgicos. Por sua vez, Sisto V estava consciente de que se levasse por diante a presso contra a Ordem, Acquaviva contra-atacaria e pediria aos membros a sua opinio sobre a questo da obedincia ao papa e os pontos de vista do Santo Padre. O papa deu o seu golpe e surpreendeu o geral dos jesutas quando em 1590 ordenou a mudana de nome da Companhia de Jesus para Ordem de Ignacio. O uso do nome de Jesus pelos jesutas era para o papa Sisto V qualquer coisa de ofensivo. Para muitos cardeais da poca tambm o era o ato de terem que descobrir-se ou inclinar a cabea quando se pronunciava o nome da poderosa Ordem por ter o nome de. Jesus. Apesar da deciso papal, nunca nenhum geral nem a Congregao Geral dos Jesutas adotou esse novo nome. Na Primavera de 1586, teve incio a chamada conspirao de Babington, que tinha como propsito repor Maria Stuart no trono da Esccia e at mesmo com a possibilidade de acabar com a vida de Isabel I para que a rainha catlica assumisse a coroa dos dois reinos. Na verdade, para os ingleses e escoceses de finais do sculo XVI, tanto catlicos como protestantes, levantar a mo contra uma cabea coroada era, mais do que um crime, um sacrilgio. O sacrilgio era cometido por Maria Stuart em relao a Isabel I por participar na conspirao Babington. O sacrilgio era cometido por Isabel I se mandasse executar Maria Stuart uma vez descoberta a conspirao. Em Agosto os conjurados eram todos presos: Ballard, Savage, o prprio Babington, foram encarcerados na Torre. O julgamento de Maria Stuart realizou- se a 14 de Outubro de 1576 no castelo de Fotheringhay, no condado de Northampton, e onde a 25 de Outubro foi julgada e considerada culpada de alta traio, sedio e apoio aos conspiradores que desejavam acabar com a vida da rainha Isabel. A condenao dada pelo tribunal ex-rainha da Esccia foi a morte. As reaes sentena foram muito fracas. Henrique III de Frana estava demasiado ocupado a lutar contra os dois Henriques: Henrique de Navarra e os protestantes e Henrique de Guisa e os partidrios catlicos. Filipe II estava ocupado na Flandres e o papa Sisto V decidiu olhar para o outro lado, porque Jaime VI da Esccia lhe dera a ver a possibilidade de que, uma vez herdeiro do trono da Inglaterra e depois de assumir a coroa conjunta da Esccia e da Inglaterra, aps a morte de Isabel, implantaria novamente o catolicismo. Diante dessa perspectiva, o pontfice decidiu retirar da Inglaterra os agentes da Santa Aliana. A 1 de Fevereiro, Isabel colocou a sua assinatura no documento que autorizava a execuo de Maria Stuart. Uma semana depois, na manh de 8 de Fevereiro de 1587, a rainha ungida da Esccia entrou no grande salo do castelo de Fotheringhay, no meio do qual foi erguido o patbulo. Maria Stuart, que rainha desde o nascimento, ainda pensara comportar-se como tal na hora da execuo. Os condes de Shrewsbury e de Kent participam como testemunhas da rainha da Inglaterra. Aps uma curta orao em latim e ter pronunciado as palavras In te domine, confido, ne confundar in aeternum, inclina a cabea sobre o estrado, a que se agarra com os braos. O carrasco levanta o machado e golpeia o pescoo branco de Maria Stuart. Golpeou uma parte do crebro, num segundo golpe atinge-a em cheio na nuca e s ao terceiro golpe que lhe separa a cabea do corpo. O carrasco agarra a cabea e procura levant-la, mas nesse momento v-se com uma peruca na mo enquanto a cabea quase calva e grisalha de uma mulher j idosa rola pelo cho de madeira. Diante de semelhante viso, algum consegue ainda gritar: Deus salve a rainha. Isabel I da Inglaterra colocou um ponto final na questo escocesa, mas Filipe II e o papa Sisto V no se mostraram conformados com a execuo de uma rainha catlica. A Armada Invencvel e os assassinos da Santa Aliana sero colocados ao servio da f e contra a rainha herege. Chegam os tempos de aventura.
3
Tempos de aventura (1587-1605)
Haver trevas to densas sobre a Terra que se podero apalpar. Exodo 10,21
Desde h anos, quase desde 1570, data da excomunho de Isabel, que se falava da possibilidade de um ataque declarado de Espanha contra Inglaterra. No plano da espionagem, mesmo a britnica, era conhecida a possvel operao militar com o nome de cdigo Empresa. Interessado em convencer o rei Filipe II para levar a cabo o ataque estava o prprio papa Sisto V e os jesutas por questes religiosas; os partidrios de Maria Stuart, os catlicos escoceses, com o propsito de a recolocar no trono da Esccia e os catlicos ingleses com o objetivo de proclamar a rainha Maria soberana da Inglaterra e restaurar o catolicismo, depois de ter desaparecido a rainha herege. Outro dos interessados em levar a cabo a Empresa era nada mais nada menos do que Joo da Austria, parente de Filipe II, que desejava poder casar-se com Maria Stuart para assim se tornar rei da Inglaterra e da Esccia. Por outro lado, Filipe II no desejava agradar a nenhuma das partes com uma deciso equvoca. O monarca espanhol no era muito partidrio de colocar no trono da Inglaterra uma rainha meio francesa, nem permitir o acesso a to poderoso reino de um irmo em que se no fiava muito e, portanto, contentar o papa, j que muitos poderiam pensar que a sua mo era guiada por Roma. As contnuas guerras nos Pases Baixos custavam ao rei Filipe II bastante dinheiro e Roma exigia cada vez mais sem dar muito em troca. Mas o que Londres no sabia era que o soberano espanhol via Isabel da Inglaterra como uma agressora e, portanto, facilmente atacvel do ponto de vista poltico. Inglaterra tinha-se intrometido abertamente nos Pases Baixos com a assinatura do tratado de Nonsuch e Isabel tinha dado luz verde s operaes de pilhagem nas costas espanholas por parte dos navios-piratas de Francis Drake. A Santa Aliana informara o papa de que, com a execuo de Maria Stuart, Isabel pensava que ao ter feito desaparecer o possvel ponto de unio de catlicos escoceses e ingleses j nada levaria o rei espanhol a embarcar numa aventura militar que pudesse desembocar na libertao de Maria Stuart. Desaparecida esta, deixava de haver uma porta aberta a Roma para poder fazer regressar o catolicismo s ilhas. Jaime VI continuaria a ser defensor do protestantismo apesar das tmidas mensagens enviadas a Sisto V sobre a razo de no intervir claramente contra a rainha Isabel pela execuo de sua me. Jaime VI desejava converter-se em herdeiro legtimo de Isabel e, logo que esta desaparecesse, tornar-se rei da Esccia e da Inglaterra. Havia convencido Sisto V a que no alterasse a ordem entre os catlicos at ser nomeado sucessor legtimo ao trono e para isso o papa devia afastar Isabel, dentro da corte de Londres, de qualquer agente da Santa Aliana com vontade de pr termo vida da rainha. Jaime VI teria mesmo comentado timidamente aos agentes do papa que talvez, quando usasse ambas as coroas, pudesse devolver os dois reinos ao catolicismo ou pelo menos conceder maior liberdade religiosa aos catlicos na Esccia e em Inglaterra, como nunca tinha acontecido. As primeiras informaes sobre a Empresa datam de finais de 1585. Mas foi no incio de 1586, quando os servios de espionagem ingleses passaram a conhecer, atravs de vrios relatrios, a formao de uma grande frota com a inteno de a lanar contra a Inglaterra. Por isso, o embaixador ingls em Paris escrevia a Walsingham: O partido espanhol alardeia aqui em Frana que dentro de trs meses a Inglaterra ser atacada e que uma grande frota armada se prepara para isso. Custa-me a acreditar porque o tempo curto. 4 Por sua vez, Walsingham acreditava de certo modo nas informaes enviadas pelo diplomata. O chefe dos espies de Isabel suspeitava que Filipe II criava uma grande frota, no para a lanar contra Inglaterra, mas contra os Pases Baixos, para assim apoiar o duque de Parma; de qualquer modo existia tambm a possibilidade de que a frota espanhola se dirigisse Esccia ou Irlanda, pelo que Inglaterra sentiria necessidade de responder militarmente. Por seu lado, Filipe II pensava que, uma vez atacada a Inglaterra, amedrontada Isabel I se sentiria na obrigao de uma sada honrosa com Madrid. De fato, o monarca espanhol no conhecia o temperamento da rainha de Inglaterra. Na primavera de 1587, justamente dois meses depois da execuo de-Stuart, Walsingham mostra-se inteiramente dedicado defesa da Inglaterra e aos seus preparativos. Os seus agentes em diferentes pontos estratgicos da Europa podem inform-lo de que Filipe II est disposto a levar por diante a Empresa. Como contrapartida, a rainha Isabel autorizou o seu fiel Francis Drake partir com uma esquadra composta por quase uma vintena de navios com a misso de impedir a reunio da frota espanhola fora dos seus portos. Os barcos ingleses devem perturbar o abastecimento, persegui-los e afunda-los no caso de rumarem para Inglaterra ou para a Irlanda. Os agentes da Santa Aliana informaram Espanha de que a frota de Drake estava prestes a partir do porto de Plymouth e que, segundo as suas informaes, se destinam a atacar os portos e costas prximas de El Ferro I. Na noite de 2 de Abril, e sem aviso, os vinte barcos fizeram-se ao mar enquanto Isabel I se arrependia da deciso tomada. A soberana pediu a Waisingham que enviasse uma mensagem urgente a Drake para o informar que no devia atacar os poos espanhis. A primeira mensagem chegou a Plymouth na manh do dia 3, quando ainda se divisavam no horizonte as velas dos navios ingleses. Uma segunda mensagem enviada por Waisingham tinha sido interceptada pelos agentes do papa. Depois de saberem o que propunham, informaram com urgncia Madrid e Roma, mas tanto para Isabel I como para Filipe II era demasiado tarde. Drake decidira mudar de planos e em vez de atacar nas Antilhas ou em qualquer porto da Galiza ou da Cantbria, resolveu inverter o rumo e atacar a cidade de Cdis. Abordo do navio Isabel Buenaventura e com os seus barcos de escolta, Drake dirigiu o tiroteio sobre a cidade fortificada e a entrada do porto. Em escassas horas, Francis Drake pde afundar cerca de uns trinta barcos espanhis que se preparavam para se juntarem armada. Apenas nas duas horas que durou a operao militar, os navios de Drake destruram os depsitos da Marinha e os seus armazns de munies. Quando se conheceram as notcias do ataque ao poder espanhol, o papa Sisto V chegou a afirmar: Admiramos Drake que conseguiu fazer tanto com to poucos meios, mas a notcia tinha cado mal em Madrid. Nas ruas chegava a dizer-se: O nosso rei s pensa enquanto a rainha herege atua. De qualquer ponto de vista, a Operao de Cdis por parte de Francis Drake foi de uma mestria absoluta, mas apesar do duro golpe que Espanha sofreu, tanto material como no seu prprio orgulho, a armada foi apenas atrasada um ano. Entretanto, os agentes da Santa Aliana continuavam a operar abertamente nos Pases Baixos, protegidos pelo duque de Parma, o todo-poderoso governador de Filipe II. Uma das suas principais operaes foi a de Geertruidenberg. Na altura em que se negociava um acordo de paz, na Primavera de 1588, os agentes do papa conseguiram levantar em rebelio os mercenrios que ali defendiam a praa-forte de Geertruidenberg, um lugar estratgico na margem do rio Mosa. A primeira linha de defesa estava formada por mercenrios alemes; a segunda por mercenrios holandeses e a terceira, a mais importante, por mercenrios ingleses e irlandeses protestantes. Os espies da Santa Aliana alteraram os nimos da guarnio devido ao fato de h quase quatro meses no receberem o soldo. Os agentes papais faziam discursos na praa da cidade holandesa contra os poderosos que descansam as ancas nos tronos da Europa e olham para outro lado na hora de pagar aos que defendem os seus tronos. A Inglaterra negava-se a pagar a dvida de duzentos e dez mil florins, ou o que era o mesmo, quase vinte e duas mil libras esterlinas devidas aos mercenrios de Geertruidenberg, argumentando que isso era um problema dos Estados Gerais, e estes diziam que os mercenrios recrutados pela Inglaterra serviam mais fielmente a causa de Isabel I do que a do protestantismo nos Pases Baixos. Waisingham sabia que a mo de Sisto V estava por detrs da rebelio e, por conseguinte, a do duque de Parma e a do prprio Filipe II. O chefe dos espies ingleses estava consciente de que mais tarde ou mais cedo deveriam pagar se no queriam que a estratgica cidade casse nas mos espanholas. Por fim, e quando estava prestes a vencer-se o prazo para que os mercenrios entregassem a praa aos espanhis por falta de pagamento dos soldos, chegou uma mensagem dos Estados a chamar a si a dvida. Por muito pouco, o exrcito espanhol no tinha ficado com uma praa militar importante sem disparar um tiro graas aos agentes da Santa Aliana. Filipe II no esqueceria to facilmente o golpe dado por Isabel I em Cdis e por isso fez com que se acelerasse o mais possvel a entrada em ao de a Empresa. O plano era bem simples. Saindo de Lisboa, uma grande frota devia rumar para o canal da Mancha, evitar qualquer embate com os galees ingleses, atravessar o estreito de Calais e desembarcar em Margate, ao norte de Kent. Ali se deviam juntar as tropas do duque de Parma que embarcavam nos portos espanhis dos Pases Baixos. No total, uns trinta mil homens deviam vencer o fraco exrcito ingls e chegar at Londres. No papel, o plano era simples e claro, mas na prtica, e em finais do sculo XVI, a questo era muito diferente. Os agentes espalhados na zona faziam certos reparos operao militar. Num documento enviado ao papa, um dos agentes pergunta como Transferir as tropas do duque de Parma dos Pases Baixos para Inglaterra. Por sua vez, o prprio Sisto V pergunta a Filipe II o que acontecer se Inglaterra ficar nas mos espanholas, mas estas perguntas no obtm nenhuma resposta. O duque de Parma, de fato, deixara claro que poderia concentrar os seus quinze mil homens em Dunquerque, Nieuport e Sluis, mas sem a proteo da armada seria quase impossvel passar o canal da Mancha, invadido por galees corsrios holandeses e pelos ingleses de Drake. O governador espanhol pedia ao rei que antes de se dirigir para Inglaterra devia fazer sair a armada da costa dos Pases Baixos para proteger as suas tropas. O problema que isto no podia ser levado a cabo se antes no entrassem num porto seguro em Inglaterra, por exemplo, em Doverf. Mas a questo havia de se tornar, segundo o historiador Garret Mattingly no seu livro The Defeat of Spanish Armada, no ponto fraco de toda a operao. A Santa Aliana tinha instrues do papa Sisto V para procurar apoios entre as populaes costeiras inglesas num possvel levantamento contra as autoridades locais logo que divisassem as velas da armada. Os agentes papais tinham tambm a misso de apoiar atravs de uma grande linha de comunicao que devia estender-se ao longo da toda a costa oriental inglesa e costa ocidental da Flandres e de Frana, com o intuito de manter informados os espanhis de qualquer possvel movimento dos ingleses. Um dos agentes mais ativos da Santa Aliana, o genovs Marco Antnio Massia, informava assim o papa: Aqui, em Inglaterra, acredita-se que os espanhis ho-de trazer uma carga de forcas para dependurar os homens e os chicotes para aoitar as mulheres e ainda quatro mil amas para darem de mamar aos bebs que levaro nos seus navios para Espanha. Diz-se tambm que todas as crianas de sete aos doze anos sero marcadas com ferros em brasa. E estas coisas conduzem o povo resistncia contra os espanhis. Em Roma e Madrid sabia-se que estas histrias, espalhadas pelos homens de Walsingham, provocavam impacto numa populao inculta nos finais do sculo XVI. Mas a verdade que Filipe II no tinha muitos planos sobre a sucesso de Isabel I e nem sequer pensara nisso depois de Maria Stuart ter desaparecido. Para o rei espanhol, o herdeiro Jaime VI da Esccia, de religio protestante, no era um candidato vlido para suceder rainha Isabel I embora pudesse sempre acontecer que o papa Sisto V o declarasse herege e o excomungasse. Na verdade, o papa estava cada vez mais em desacordo com Filipe II desde que os seus agentes na corte de Madrid o tinham informado sobre os desejos de o monarca ser declarado rei da Inglaterra na sua qualidade de descendente pelo lado materno da casa de Encastelar. Mas Sisto V no permitiria que o rei espanhol juntasse a coroa da Inglaterra s de Espanha, Portugal, Siclia e Npoles, para l de muitos territrios que se encontravam sob o domnio de Filipe II em 1588. I Para o comando da armada, o rei designou o almirante Alvaro de Bazn, um perito militar e homem de mar que j tinha vencido a frota francesa em 1582, na batalha dos Aores. O problema era que o almirante estava muito velho e a preparao da armada acabou com ele, a 9 de Maro de 1588. Filipe II substituiu-o pelo duque de Medina Sidonia. De fato, o nobre era apenas um ricao de grande lealdade ao rei e pouco mais. Como a histria o demonstraria, era pessimista, vacilante e at um tanto cobarde, trs coisas muito ms num militar que dirigia uma grande tarefa como a da armada. Filipe II conhecia perfeitamente os defeitos do seu inexperiente almirante e por isso quis ele mesmo dirigir pessoalmente a empresa. Medina Sidonia era apenas a sua mo executora na frotat . Os espies do papa continuavam a informar constantemente sobre os avanos ingleses como preparao perante a chegada da armada espanhola. Isabel tinha nomeado como lorde-almirante Charles Howard, fiel a Isabel, apesar de ser o irmo mais novo do duque de Norfolk, que fora executado em 1572. A esquadra inglesa ancorada em Plymouth seria dirigida por Francis Drake, que evitaria a entrada dos galees espanhis no canal da Mancha. Por seu lado, Howard devia evitar que os navios de Filipe II rumassem para o mar do Norte. Uma vez mais, o genovs Marco Antnio Massia, agora a partir da Inglaterra, informa o papa de que os ingleses estabeleceram um sistema de sinais costeiros atravs de fogachos para avisar de imediato sobre a chegada da armada. As tropas do duque de Parma deviam ser travadas pela frota holandesa, composta por cerca de trinta navios, sob o comando do almirante Justin de Nassau. A Santa Aliana informa ainda sobre um contnuo movimento de tropas e galees em vrios portos da Flandres no incio de Julho, a corte de Londres soube da partida da grande armada espanhola e a sorte estava lanada. Nas semanas anteriores, a polcia de Walsingham dedicou-se caa e captura de espies do papa. Muitos deles, os mais destacados, foram detidos no castelo de Wisbech, bem prximo dos pntanos de Cambridgeshire. Na frente diplomtica, Isabel estava segura de que a Frana no apoiaria a Espanha. Henrique III j tinha feito saber a Madrid que no a poderia apoiar num ataque Inglaterra em face da sua posio estar j comprometida. Uma outra coisa era Jaime VI da Esccia. Isabel no estava to segura de que o filho de Maria Stuart no apoiasse Filipe II se este o ajudasse a ascender ao trono da Inglaterra como legtimo herdeiro. Jaime precisava de um exrcito que afirmasse o seu valor num confronto aberto com Isabel e a armada podia ser esse exrcito. Walsingham aconselhava Isabel que ordenasse uma deslocao de tropas na fronteira com a Esccia, explicando a Jaime que no era uma questo de agresso contra o seu pas, mas uma forma de defesa no caso de os espanhis dirigirem a invaso da Inglaterra a partir da Esccia, e a verdade que Isabel I receava uma possvel aliana hispano-escocesa. Tal como escrevem e coincidem os historiadores Neil Hanson, Colin Martin, Geoffrey Parker e Garret Mattingly nas suas obras The Confident Hope of a Miracle: The Real History of the Spanish Armada, The Spanish Armada: Revised Edition e The Defeat of Spanish Armada, os ingleses tinham encarado quase como uma brincadeira a defesa do reino antes da chegada dos espanhis. Walsingham escrevia ento: A nossa forma de proceder to fria e despreocupada que s a graa de Deus e um milagre nos podem proteger de semelhante perigo, e a verdade que esse milagre chegou. Os nmeros da armada eram incrveis para a poca. Cento e trinta galees divididos em oito esquadras que transportavam trinta mil homens, aos quais se deviam juntar os quinze mil que esperavam sob o comando do duque de Parma nos portos da Flandres, prontos para embarcarem rumo Inglaterra. A frota defensiva inglesa era composta por trinta e quatro navios e seis mil e setecentos homens. Espanha, do ponto de vista naval, impunha-se Inglaterra quase em quatro para um em navios e quase sete para um em homens. Toda a gente sabia que o combate que se travaria era de cinco Golias espanhis contra um ano e raqutico David ingls. A grande frota deixou Lisboa a 7 de Junho. Uma forte tempestade fustiga o Atlntico e dispersa uma enorme parte da armada, que se reagrupa na Corunha muito maltratada. A gua apodreceu nas barricas, a carne est cheia de bichos e vrias centenas de doentes tm de ser desembarcados. A 22 de Julho, a armada parte de novo da costa galega para o norte e a 29 chega s costas inglesas. Os espies de Walsingham vislumbram as velas na Cornualha, enquanto um vento forte sopra de oeste. Em posio de arco, com o navio principal frente, passam diante da costa de Devon. Os navios de Drake e de Howard comeam a atacar os barcos rechaados a 31 de Julho. A 4 de Agosto, um dos galees naufragou na costa francesa com importantes documentos. Passados dois dias, o vento mudou e Medina Sidonia assumiu uma deciso errada. Ordenou a toda a armada que se refugiasse em Calais, mas a verdade que a baa era demasiado pequena para proteger toda a frota e grande parte fica a descoberto. Uma vez mais, Drake e Howard decidem lanar-se no ataque aos barcos espanhis, que lutam por ficar ancorados e no serem arrastados para o mar do Norte. As tropas do duque de Parma continuam sem aparecer, enquanto a frota anglo-holandesa trava a retirada espanhola. Mas, nessa altura, muitos barcos de Medina Sidonia esto incendiados, afundados, desarvorados ou perdidos. A 8 de Agosto, o almirante Howard lana o ltimo grande ataque contra a armada, impedindo por completo qualquer opo de contra-ataque por parte dos galees espanhis. A operao militar idealizada por Filipe II estava errada desde o princpio, como observara o espio Marco Antnio Massia num relatrio enviado ao papa. O monarca espanhol esboou toda a operao militar como um grande desembarque e invaso da Inglaterra, mas nunca como uma batalha naval. Os canhes de Drake e de Howard fizeram o resto. Dez dias depois da derrota definitiva, Filipe II lia uma mensagem enviada pelo seu embaixador em Londres, em que informava que Medina Sidonia tinha afundado quinze barcos de Drake, incluindo o navio-almirante. O papa Sisto V, sentado no trono de Roma, foi o primeiro a conhecer a derrota espanhola, com todos os pormenores, graas eficcia dos agentes da Santa Aliana. A histria ficava escrita para a posteridade. As tripulaes naufragadas na Esccia foram socorridas e repatriadas de seguida por ordem do rei Jaime VI, mas as que naufragaram na Irlanda foram massacradas. Sabe-se que apenas vinte e sete barcos conseguiram regressar a Espanha. Quanto a Medina Sidonia, apesar de ser acusado de incompetncia e cobardia, continuou ainda a ser pessoa de confiana de Filipe II. Pelo contrrio, em Inglaterra proclamava-se a vitria sobre a menos poderosa Espanha e a da verdadeira religio sobre as trevas do papismo. Foi cunhada uma moeda por ordem da rainha Isabel, na qual parece um galeo espanhol em luta com as ondas sob a legenda Venit, Vi Fugit (Veio, viu e fugiu). Pedro de Valds, um dos lugares-tenentes de Medina Sidonia e ento prisioneiro de Francis Drake, permaneceu na casa do pirata ingls por um perodo de cinco anos e era mostrado aos visitantes como um animal humiIhado. A armada, a quem os ingleses designaram como Invencvel de forma irnica, entrou na histria, tal como a participao dos agentes da Santa Aliana, sobretudo a do genovs Marco Massia, antes, durante e depois da operao militar. Muitos dos espies do papa foram utilizados como simples correios, outros como espies em portos inimigos e ainda alguns outros como salvadores de muitos nufragos da frota espanhola. O prprio Massia foi quem negociou com Jaime VI o repatriamento de quase seiscentos e trinta marinheiros e soldados espanhis que tinham naufragado nas costas escocesas. A verdade que pouco depois os vencidos se converteram em heris e os vencedores em vencidos. Os espanhis que sobreviveram foram tratados como heris pelo povo e pelo rei Filipe II e os vencedores ingleses desmobilizados foram muitos deles dizimados pelo tifo, a fome e o esgotamento, sem que a rainha Isabel I prestasse qualquer auxlio aos defensores da Inglaterra. Os triunfadores esqueciam depressa os heris, mas os vencidos glorificavam os seus homens. O rei Filipe II pde voltar a regenerar as suas maltratadas finanas, graas aos barcos carregados de ouro e pedras preciosas que chegavam dos seus domnios na Amrica, enquanto a Inglaterra devia dedicar-se ao saque e pirataria. O fim dos anos oitenta foram anos de mortes. O conde de Leicester morre devido a uma constipao a 4 de Setembro de 1588 e em 1589 desaparecem Walter Mildway, homem de confiana de Isabel I, ministro da Fazenda e vtima dos espies da Santa Aliana, porque, como dizem, foi mesmo envenenado pelos espies do papa. Em 1590, morrem Francis Walsingham, mestre de espies e verdadeiro fundador da espionagem britnica, e o seu quase antagonista, o papa Sisto V, a 27 de Agosto, com sessenta e nove anos. O papa falecido foi aquele que mais utilizou a Santa Aliana como instrumento de espionagem e operaes especiais, incluindo o assassnio. Apenas em quinze meses, trs papas ocupam o trono de So Pedro: Urbano VII, Gregrio XIV e Inocncio IX. Neste curto espao de tempo no se conhecem operaes secretas da Santa Aliana, ou pelo menos no aparecem documentadas. A eleio do cardeal Hiplito Aldobrandini como novo papa, a 30 de. Janeiro de 1592, com o nome de Clemente VIII, coloca novamente em marcha as operaes da espionagem pontifcia. Novas intrigas se preparam na Santa Aliana para acabar com a vida da herege Isabel I. O novo papa, filho de uma nobre famlia florentina, estabelecera bons contactos com os espies de Filipe II quando fez parte do squito do cardeal Miguel Bonelli, legado a Iaterew 18 do Vaticano na corte de Madrid Durante os anos de 1571 e 1572, Aldobrandini tornou-se numa espcie de agente estvel da Santa Aliana na capital do Imprio espanhol, de onde informava diretamente o papa Pio V, fundador da espionagem pontifcia apenas seis anos antes. Com a morte do papa Pio V, a carreira de Hiplito Aldobrandini como espio sofre um duro revs. No pontificado de Gregrio XIII, o espio de Pio V fica esquecido no exerccio da atividade jurdica at ascenso ao trono de So Pedro do papa Sisto V. O novo pontfice torna-se seu protetor e, alm de lhe conceder a prpura cardinalcia, ainda o encarrega de misses especiais. O papa Sisto V sabe que Aldobrandini tem experincia no mundo da espionagem, no mundo diplomtico e religioso e, mais importante, dispunha de boas relaes no crculo de Filipe II. A primeira misso especial do espio Hiplito Aldobrandini deu-se em Maio de 1588, quando o papa o enviou Polnia. O agente da Santa Aliana devia servir de intermedirio entre as faces que apoiavam os dois pretendentes Coroa depois da morte de Estvo Bathory I. Aldobrandini procurava que os dois herdeiros, Segismundo de Vasa e Maximiliano de Habsburgo, chegassem a um acordo pacfico, mas tentava tambm conseguir um compromisso firme para manter a Polnia dentro da religio catlica e em clara obedincia ao papa. Segismundo de Vasa no s se ps ao lado da coroa da Polnia, mas estabeleceu ainda um acordo de paz estvel e duradouro com Maximiliano de Habsburgo a 9 de Maro de 1589. O resultado da operao da Polnia converteu Aldobrandini num dos membros do Colgio Cardinalcio com maior prestgio. A inesperada morte do papa Inocncio IX, a 30 de Dezembro de 1591, obrigou de novo, e pela quarta vez em menos de dezassete meses, a convocar o conclave. A presso espanhola, como sucedeu tantas vezes nos conclaves anteriores, era muito forte. Filipe II queria no trono de So Pedro um papa mais dcil do que fora Sisto V, que qualificava como intrigante e demasiado independente. Por fim, e graas ao apoio do rei espanhol, Hiplito Aldobrandini, como antigo espio, foi nomeado papa a 30 de Janeiro de 1592. Clemente VIII chegava ao trono de So Pedro num momento de grande confuso na Europa. Os Pases Baixos ardiam pelos quatro costados e Maurcio de Nassau convertia-se num autntico lder na luta contra os espanhis. No ano anterior, as tropas de Filipe II tinham perdido Zutphen, peventer, Hults e por fim a estratgica Nimega. A partir desse momento, a parte meridional da futura Holanda est bem protegida. Em Dezembro de 1592, a situao volta a sofrer uma reviravolta inesperada com a morte de Alejandro Farnesio, duque de Parma. A corte de Madrid nomeia vrios sucessores que no passam de testemunhas da caminhada final. O conde Mansfeld, o arquiduque Ernesto, o conde de Fuentes e o arquiduque Alberto so alguns deles. Pouco a pouco, a futura Holanda consolida cada vez mais as suas fronteiras definitivas em Nimega em 1591 e em Groninga e Geertruidenberg, que havia sido recuperada em 1593 depois de um longo assdio por parte das tropas de Mauricio de Nassau. No mesmo ano e em pouco tempo, abre-se uma nova frente em Frana. Henrique IV, que subira ao trono de Frana, tornou-se monarca depois da fuga de Paris de Henrique III de Valois. O rei deposto seria assassinado em 1589 por um frade jacobita que, de acordo com alguns relatrios, era agente da Santa Aliana. Parece que o papa Sisto V no queria nenhum obstculo no caminho de Henrique IV nem da Frana para o catolicismo, e Henrique III era esse obstculo. Henrique de Bourbon, rei de Navarra e calvinista, tinha sido um dos maiores defensores do protestantismo e condenado pelo papa Sisto V. Mas com o que Filipe II e Clemente VIII no contavam era com o elevado nmero de catlicos franceses que aceitavam Henrique como o seu rei. Henrique IV ordenara ento como primeira medida a retirada total das tropas espanholas de Paris. Filipe II encarou isso como uma sria advertncia que podia degenerar numa guerra aberta entre os dois pases. Os agentes da Santa Aliana informaram o papa Clemente VIII que devia colocar-se em segundo plano, porque sabiam que Henrique IV estava disposto a renegar o calvinismo e a abraar a religio catlica, como realmente aconteceu, por estar consciente de que apenas pelo renegar do protestantismo poria fim s divises do reino. Por isso, Henrique IV decidiu abraar o catolicismo a 25 de Julho de 1593, tal como tinham previsto os agentes da Santa Aliana. No mesmo ano, o novo rei da Frana enviou a Roma um emissrio com o propsito de convencer o papa a revogar as censuras e as penas impostas por Sisto V, mas Clemente VIII mostra-se indeciso. Os cardeais esto dispostos a conceder a absolvio a Henrique IV e para sancionar a reconciliao entre Roma e Paris so reatadas as relaes diplomticas interrompidas desde 1588. Em vez de apoiar Madrid, o papa Clemente VIII intercedeu para que a catlica Frana e a catlica Espanha assinassem o Tratado de Vervins a 2 de Maio de 1598 e pusessem termo a uma guerra que h trs anos fustigava os dois pases. Com a assinatura desse tratado, Filipe II reconhecia Henrique IV como verdadeiro rei e devolvia-lhe as conquistas espanholas do noroeste da Frana. Calais regressava s mos francesas aps muitos anos de dominao espanhola. Nessa altura, Henrique IV estabeleceu de forma efetiva a liberdade religiosa em todo o reino pelo dito de Nantes. Isabel I continuava a recear essa reconciliao franco-espanhola e catalogava o rei de Frana como um anti-Cristo da ingratido. A sua recusa em estabelecer uma paz estvel coloc-Ia-ia de novo no ponto de mira dos agentes da Santa Aliana, mas de qualquer modo Clemente VIII devia continuar a defender a verdadeira f, mesmo que para isso tivesse de aprovar as tentativas de assassinato contra a rainha herege. Para demonstrar que no lhe tremia a mo na hora de reprimir o catolicismo, Isabel I manifestou uma crueldade sem precedentes. Nos primeiros anos da dcada de noventa, a rainha ordenou a execuo de 61 sacerdotes e 47 leigos. Em 1593, o Parlamento votou a chamada lei contra os pases papistas, que proibia aos catlicos afastarem-se mais de vinte quilmetros de suas casas. Depois da execuo de Maria Stuart, os catlicos ingleses acaImaram-se ou talvez tivessem compreendido qual seria o seu papel na histria, mas os jesutas fiis ao papa e a Filipe II continuavam a ser os mais perigosos inimigos da herege Isabel. Em 1593, um jesuta enviado pela Santa Aliana saiu de qualquer lugar dos Pases Baixos com a inteno de lanar uma mquina de fogo passagem da carruagem real e acabar assim com a vida de Isabel. Ao que parece os agentes de Walsingham conseguiram evitar isso, mas quem estaria muito perto de poder matar Isabel da Inglaterra seria o mdico Rodrigo Lopes. Em princpios de 1594, a corte inglesa estava ainda mergulhada na suspeita e no engano devido a um caso em que esteve implicado o conde de Essex, favorito da rainha. Desde h uns oito anos, Isabel I tinha como seu mdico pessoal Rodrigo Lopes, um portugus de origem judaica convertido ao cristianismo, que era muito conhecido entre os nobres desde que se instalara em Londres em 1558. Entre os seus clientes contava-se a melhor elite da corte: lorde Burghley, conde de Leicester, Robert Cecil e at o prprio Essex. Pelos servios prestados rainha, tinham-lhe concedido o monoplio da importao de gros de anis, o que o tornara muito rico. De fato, ningum se surpreendia por ver o mdico chegar a altas horas da noite ao Palcio Real, carregado com as maletas escuras cheias de medicamentos. Por causa da sua origem portuguesa, situava-se dentro do crculo de amizades de dom Antnio, o pretendente Coroa de Portugal. Mas de fato servia como espio do papa, do rei de Espanha e de Burghley, o chefe dos espies ingleses. Em Dezembro de 1593, Essex empreendeu a sua prpria caa contra o espio, que ele acusava de tentar matar a rainha em nome do papa Clemente VIII e de Filipe II. Em. Janeiro de 1594, lorde Essex enviou uma informao a Anthony Bacon, que era um dos homens de confiana da rainha Isabel I: Descobri uma perigosa e abominvel traio. Trata-se de assassinar Sua Majestade por envenenamento. O executor deve ser o doutor Lopes. Tenho todos os elementos para provar isto, que to claro como o dia. 24 A carta chegou s mos de Burghiey. O chefe dos espies de Isabel colocava em dvida a veracidade das acusaes de Essex: de resto, que motivos tinha Lopes para assassinar a rainha, quando esta no fazia mais do que cobri-lo de atenes e favores? O que Essex desconhecia tambm era que o doutor Rodrigo Lopes passava informaes a Burghley sobre os movimentos e conspiraes em Roma e em Madrid contra a rainha. Para maior precauo, foi ordenado a Lopes que permanecesse em casa sem sair. A rainha diria que ele estava doente e para evitar que a contagiasse se tinha recolhido na sua prpria casa. Londres continuava a ser assolada pela peste e a corte tinha-se mudado para Hamptom Court. Ao ver que no se avanava na acusao contra Lopes, Essex resolveu contar as suas suspeitas rainha, que o mandou calar, acusando-o de querer, por simples cimes, acabar com um homem to fiel. Mas Essex no esmoreceu no seu empenho. Lopes foi levado em segredo para a Torre de Londres a 29 de Janeiro para ser interrogado pelo prprio Essex e por Robert Cecil. Torturado brutalmente, Rodrigo Lopes acabou por confessar que pertencia Santa Aliana sob as ordens do papa Clemente VIII e que lhe tinha proposto envenenar a soberana da Inglaterra. Como prova disso, falou a Cecil e a Essex no anel de ouro que lhe tinha mandado como presente o prprio Filipe II pelo futuro servio e que ele tinha dado como prenda rainha Isabel. O anel foi devolvido pela rainha ao mdico, negando-se este a aceit-lo. O que era bem claro, e depois ficaria confirmado no julgamento. O que Rodrigo Lopes tinha procurado cobrar dos dois lados: cinquenta mil coroas de Filipe II, logo que a rainha tivesse morrido. Burghley chegou a perguntar ao mdico por que no denunciara antes a conspirao, mas a verdade que Rodrigo Lopes sabia que, mesmo que a tivesse denunciado, seria condenado morte em face das leis aprovadas durante a poca de Maria Stuart. O julgamento de Rodrigo Lopes e de Claudino Tinco, o espio da Santa Aliana que atuava como ligao entre Lopes e Roma, ocorreu a 14 de Maro. Foi condenado morte, mas curiosamente a rainha Isabel no ps o seu selo sobre o documento de ratificao da sentena at 17 de Junho. Nessa noite, Lopes e Tinico foram levados para o ptio central da Torre de Londres, espancados at morte e os corpos esquartejados. J depois de morto, a rainha ainda pensava que Rodrigo Lopes estava inocente, mas quem poderia saber disso era apenas o prprio ru. O certo que, apesar do crime cometido por Lopes ser de alta traio, foi ordenado que todos os seus bens fossem entregues viva e esta chegou mesmo a receber uma penso. Isabel I guardaria o anel que Filipe II tinha oferecido ao mdico e us-lo-ia at ao dia da sua morte. Em finais de. Junho, Filipe II ordenou a mudana da corte para o Escoriai, apesar dos protestos dos seus mdicos,. Juan Gomez de Sanabria e Cristobal Prez de Herrera. O frio da serra madrilena no era bom para a sua sade. A 1 de Setembro de 1598, o rei, muito debilitado, abandona oficialmente todas as tarefas de Estado. A partir desse dia somente frei Diego de Yepes, seu confessor, quem lhe d assistncia espiritual. A 13 de Setembro de 1598, s trs da madrugada, o rei Filipe II morria tranquilamente no seu quarto do mosteiro de San Lorenzo do Escoriai. Nesse mesmo dia partia tambm um dos principais pilares espirituais e financeiros do servio secreto pontifcio, a Santa Aliana, fundada h trinta e dois anos. Para Isabel I, a morte do principal sustentculo da Santa Aliana no melhoraria a sua situao nem a libertaria de futuras intrigas, ou pelo menos o papa Clemente VIII no estaria disposto a isso. Havia ainda muitas intrigas para urdir e muitas conspiraes para organizar contra a rainha herege. Mas desta vez a conspirao contra a rainha Isabel I preparava-se nos Pases Baixos, sob o manto protetor do governador, o arquiduque Alberto, ex-cardeal e ento casado com a estimada filha de Filipe II, a infanta Isabel Clara Eugenia. Trs jesutas, um deles o padre Carew, atravessaram o canal da Mancha a bordo de um barco de pesca. J em territrio ingls, os trs dirigiram-se para Londres. A sua inteno pr debaixo da cama da rainha uma carga explosiva. Para se aproximarem, os trs enviados da Santa Aliana contactaram um criado catlico, que era empregado no Palcio Real. Dias antes de levarem a cabo o atentado, dois dos jesutas foram capturados na pousada onde se instalaram. Um terceiro, o padre Carew, conseguiu ainda escapar. Parece que o criado denunciara o caso a Robert Cecil. Os dois jesutas seriam executados e esquartejados na Torre de Londres em Abril de 1602, e o padre Carew, detido pouco depois, foi tambm executado, em Fevereiro de 1603. Em Junho de 1601, comeou o cerco de Ostende por parte dos espanhis, enquanto as foras inglesas se viam mergulhadas na guerra da Irlanda. Duas frentes eram demasiado para o mal preparado exrcito ingls. Isabel props-se negociar com Henrique de Frana para manter vigiada a passagem de Calais e evitar assim que os espanhis pudessem invadir a Inglaterra a partir da. Henrique IV decidiu enviar o seu amigo ntimo, o duque de Biron, para falar com a rainha Isabel e prometer que no consentiria que as foras espanholas utilizassem Calais como plataforma de uma suposta invaso das terras inglesas. Em Maro de 1602, Henrique IV inteirou-se atravs do seu servio secreto de que o duque de Biron, o seu melhor amigo e colega de armas, atuava como espio da Santa Aliana ao servio de Filipe III. A ideia do duque era entregar Espanha todo o sul e o leste da Frana em troca de ser nomeado rei da Borgonha e do Franco-Condado. As provas eram concludentes: um dos supostos espies do papa que o duque utilizara para enviar as suas mensagens trabalhava realmente para a espionagem francesa e por isso todas as informaes enviadas a Clemente VIII e a Filipe III tinham cado em poder de Henrique IV. A 31 de Julho de 1602, o duque de Biron foi executado na Bastilha, clamando piedade ao rei e seu amigo. Em princpios de 1603, o cetro estava prestes a cair das mos de Isabel depois de quarenta e cinco anos de reinado. A 14 de Maro, sente grandes melhoras e mesmo capaz de receber o embaixador Giovanni Scaramelli, enviado pelo doge de Veneza para restabelecer as relaes diplomticas entre a Inglaterra e a Serenssima Repblica. A anci de setenta anos mesmo capaz de brincar com o Veneziano. A 16 Maro sofre uma recada da qual j no recuperaria. Nas primeiras horas do dia de Maro de 1603, Isabel I da Inglaterra morre tranquilamente na sua cama, tal como acontecera cinco anos antes com Filipe II, o seu inimigo histrico, deixando como legtimo herdeiro Jaime VI da Esccia, que adotaria o nome de Jaime I de Inglaterra. A primeira medida como novo monarca foi a de trasladar o corpo de sua me, Maria Stuart, do pequeno tmulo do cemitrio de Peterborough para a cripta dos reis da Inglaterra na abadia de Westminster, onde as duas rainhas, Isabel e Maria, repousariam juntas para a eternidade. Em Roma, a notcia foi recebida com alegria. A grande inimiga do catolicismo estava morta e Clemente VIII ordenava o repicar dos sinos Mas a sua alegria seria apenas momentnea, at descobrir que Jaime I, rei da Inglaterra, da Irlanda, da Frana e da Esccia, vigsimo quarto rei da Inglaterra desde Guilherme, O Conquistador, no tinha a mais pequena inteno de converter o pas num reino catlico. O papa ordenou a criao em Roma de um colgio para sacerdotes escoceses e confirmou os seminrios ingleses fundados por Filipe II em Sevilha e em Valladolid, concedeu importantes privilgios e confiou a sua direo aos jesutas. Desses centros haviam de sair muitos agentes da Santa Aliana prontos a dar a sua vida em nome da verdadeira f e numa clara obedincia ao Sumo Pontfice. Pode dizer-se que Clemente VIII converteu a espionagem pontifcia num autntico servio secreto e todos os membros, na sua maioria jesutas, peritos em misses executivas. O papa apoiou tambm a evangelizao da Amrica, com a criao de novas dioceses, e do longnquo Oriente, tornando extensivo a todas as ordens o privilgio de Gregrio XIII, que reservava a evangelizao da China e do. Japo aos jesutas, a sua fora de choque. A 5 de Maro de 1605, morria em Roma, mas deixava aos seus sucessores, no sculo que h pouco se iniciara, novos horizontes por descobrir e novos espaos em que a Santa Aliana deveria operar. Os hereges ingleses j no eram um objetivo primordial.
4
Novos horizontes (1605-1644)
A sua boca mais suave do que a manteiga, mas tem a guerra no corao As suas palavras so mais untuosas do que o azeite, mas so espadas desembainhadas. Salmos 54, 21-22
Alexandre de Mdicis passar histria mais como um brilhante espio do que como papa. Pertenoente a um ramo pouco importante da clebre famlia florentina, Alexandre converteu-se num perfeito espio, primeiro ao servio de seu primo, o gro-duque da Toscnia, Csimo, e anos depois ao servio do papa Clemente VIII. Em 1596, o pontfice enviou-o a Frana com a misso de conseguir que Henrique IV ratificasse o acordado com Roma ao converter-se ao catolicismo, reorganizasse a Igreja em Frana e estabelecesse a paz definitiva com Filipe II, que assinaria o tratado de Vervins em 2 de Maio de 1598 e acabaria com uma guerra que assolava os dois pases desde 1595. O cardeal De Mdicis dirigiu durante dois anos a passagem da Frana para o catolicismo e o estabelecimento de uma ampla rede de espies ligados Santa Aliana em todo o territrio. No seu regresso a Roma seria recebido pelo povo e pelo prprio papa Clemente VIII como um verdadeiro heri. As festas duraram seis dias e tudo isso foi regado com vinho e banquetes no mais puro estilo renascentista. Aps a morte de Clemente VIII, o conclave ficou dividido em trs poderosas faces: a espanhola, a francesa e a dos cardeais nomeados pelo papa falecido. O candidato destes ltimos no foi escolhido; ganhou sim o candidato dos espanhis e dos franceses: Alexandre de Mdicis foi eleito papa a 11 de Abril de 1605, sob o nome de Leo XI. Dezesseis dias depois, e por causa de um forte resfriado aquando da sua consagrao em Latro, o papa morreu. Para a histria da Santa Aliana deixou maior tarna como cardeal De Mdicis do que como papa Leo XI, porque foi ele quem estabeleceu uma das melhores redes de espies papais em Frana que perduraria quase at poca napolenica. O seu sucessor no trono de So Pedro seria o cardeal Camilo Borghesp que adotou o nome de Paulo V. Oriundo de Siena, e dados os seus alto conhecimentos em matria jurdica, Borghesi foi enviado pelo papa Madrid em 1593, onde estabeleceu boas ligaes com os altos membros da corte e o prprio Filipe II. Devido aos servios prestados em Espanha o papa Clemente VIII concedeu-lhe a prpura cardinalcia e em 1593 tornou-se cardeal-vigrio de Roma. Depois da morte repentina de Leo XI, o conclave mostrava-se cada vez mais dividido. Os espanhis apresentaram a sua candidatura com o apoio dos franceses, mas um grupo de cardeais pde recus-la. Por fim, Camilo Borghese, que apesar de receber uma penso do rei Filipe II se tinha mantido em segundo plano fora das discusses, apareceu como a nica soluo de consenso. A 16 de Maio de 1605 foi eleito papa. O novo pontfice era um homem de grandes reflexes, o que fazia com que as decises importantes fossem atrasadas at aos limites inverosmeis, uma coisa difcil de compreender no tempo de uma Europa convulsa. A poltica do novo papa apoiou-se numa espcie de neutralidade entre Madrid e Paris, com constantes apelos unidade junto dos catlicos franceses e espanhis. Em Inglaterra, na mesma altura, os catlicos eram obrigados a prestar juramento de lealdade ao rei Jaime I e na Alemanha ocorreram certos conflitos inter- religiosos que haviam de desembocar na chamada Guerra dos Trinta Anos. Entretanto, em Frana, as coisas no corriam melhor para a causa. H alguns anos, o monarca tinha conseguido manter uma entente cordiale inter-religiosa em todo o Estado. Os huguenotes estavam do seu lado e desde sempre manteve uma relao de amizade com eles; os protestantes eram reconhecidos, tal como os seus cultos, depois da assinatura em 1598 em Nantes de uma permisso real de liberdade de culto, com a clusula de fidelidade ao rei. A antiga Igreja, na sequncia da Contra-Reforma, conseguiu uma grande vitria em Frana. O rei mandou expulsar todos os jesutas, embora os voltasse a admitir em 1603. O erro de Henrique IV foi tentar reunir em 1610 uma grande fora protestante em redor da catlica Frana e lutar contra o seu inimigo histrico, a Espanha. Paulo V enviou uma mensagem clara ao rei gauls, insistindo para manter uma posio menos belicista em relao a Filipe III; no fim de contas, Madrid continuava a ser uma das maiores fontes de financiamento das aventuras catlicas empreendidas por Roma e a Santa Aliana, que ento j se convertera num autntico brao armado. Na mais ampla tradio ao assassinato poltico e como uma arma efetiva da Santa Aliana para alterar o rumo das polticas europeias, Henrique IV tinha j sido salvo em 1594 de uma tentativa de assassnio por parte de um frade enviado por Roma. Nessa altura, o monarca foi ferido num brao porque a lmina da adaga utilizada era pequena e no chegou a atingir-lhe os rgos vitais. Denis Lebey de Batilly, alto funcionrio do rei e presidente do tribunal de Metz, escreveu ento, em 1604, o tratado de sessenta e quatro pginas Traicte de IOrigine des Anciens Assassins porte-couteau e o subttulo de Com exemplos das suas tentativas e homicdios contra certos reis, prncipes e senhores da Cristandade. O livro era um estudo muito acertado da histria dos assassinos e dos assassinatos. A nota inslita sobre a origem dos assassinos, por causa da falta de conhecimentos histricos por parte de Lebey de Batilly, era que descrevia a sua procedncia como de uma seita prema-hometana e dizia que j existiria no tempo de Alexandre Magno. Mas apesar destes erros, assegura o historiador Edward Burman no livro Assassins: Holy Killers of Islam, Lebey de Batilly pde atrever-se em certas observaes e revelaes que permitem ter uma certa compreenso acerca da maneira de ser dos assassinos na Europa do sculo XVII. A parte mais interessante do manuscrito centra-se em como esses assassinos se ocupavam em matar as suas vtimas, que tanto eram os pequenos comerciantes como os grandes senhores. O funcionrio de Henrique IV faz a seguinte anlise: Fica ao cuidado do leitor comparar a histria dos assassinos com os acontecimentos da sua prpria poca e os miserveis efeitos que os homens tiveram de sofrer ao longo de algum tempo. Porque infelizmente existem, mesmo na sua poca, religies que contam com assassinos de punhal to nocivos como aqueles fanticos medievais que estimulados por outros, dirigentes de falsas crenas, se mostram dispostos a matar reis e prncipes que no pertenam mesma seita deles. Um destes dirigentes seria o papa Paulo V que, ainda como cardeal Camilo Borghese e vigrio-geral de Roma, conseguiu fazer, atravs do embaixador de Espanha na corte de Paris, uma cpia do manuscrito de nis Lebey de Batilly, editado em Lyon. Um ano depois, j como papa Paulo V, transformou a Santa Aliana numa unidade especializada em assassnios seletivos. A ideia de Paulo V era estabelecer uma unidade da Santa Aliana disposta a matar e morrer em nome da f e responder sem nunca vacilar as Ordens expressamente transmitidas pelo Sumo Pontfice de Roma. O papa ficou inteiramente dominado pelas histrias dos fidai relatadas por Lebey de Battily no seu manuscrito. Para o esprito de um papa do sculo XVII era algo perfeitamente tolervel que um catlico fervoroso desse mesmo a sua prpria vida com o propsito de acabar com a existncia de um herege e se este era um prncipe contrrio verdadeira f ou aos seus interesses, com certeza que o assassino catlico chegaria mais depressa ao cu (o paraso para os muulmanos). O papa Paulo V estava disposto a fazer atuar em toda a convulsionada Europa a sua unidade de fidai catlicos. Paulo V estava tambm fascinado com as histrias descritas por Gerhard de Estrasburgo quando viajou pela Sria em 1175 em misso diplomtica por ordem do imperador Frederico Barba Ruiva. O diplomata informou assim o imperador por carta: H uma seita conhecida pelos heyssessini que vivem entre Damasco e Alepo. O seu lder, o prncipe Sinan, a quem os heyssissini obedecem, vive num alta montanha onde existem belos palcios, que se encontram bem protegidos por grandes muros. O lder vive rodeado de criados a quem; ensinam vrias lnguas, como latim, grego, romano, sarraceno, e ainda muitas outras. Os professores ensinam as crianas desde a mais tenra idade at se tornarem adultos a obedecer a todas as palavras e ordens do senhor da sua terra e dizem-lhes que se assim o fizerem, ele, que tem o poder sobre todas as coisas vivas, lhes consentir o acesso s delcias do paraso. Ensinam-Ihes ainda que no se podem salvar se resistirem de alguma forma sua vontade. Observe-se que, desde a altura em que so tomadas desde crianas no vem mais ningum a no ser os mestres e professores e no recebem qualquer outra instruo at serem chamados presena do prncipe Sinan para irem assassinar algum. Quando se encontram na presena deste prncipe, ele pergunta-lhes se esto dispostos a obedecer s suas ordens para saber se lhes pode conceder o paraso. Depois, tal como foram ensinados, e sem a menor objeo ou dvida, lanam-se aos seus ps e respondem com fervor que lhe obedecero em tudo aquilo que ele decida ordenar-lhes. Ento, o prncipe d a cada um uma adaga dourada e manda-os assassinar qualquer outro prncipe por ele mesmo indicado. Cinco sculos depois, Paulo V observava um grande paralelismo na histria contada por Gerhard de Estrasburgo em pleno sculo XII, porque os seus religiosos da Santa Aliana eram os Fidai dispostos a dar a vida para executar qualquer ordem dada pelo Sumo Pontfice. Camilo Borghese definia-se mesmo como uma espcie de velho da montanha de Alamut, o refgio dos assassinos. O que mais agradava a Borghese era a passagem que salienta que sempre que o prncipe Sinan galopava pelo campo no seu cavalo obrigava um homem que o acompanhava a gritar: Fujam do homem que vai matar 82 reis e prncipes com as suas mos. De fato, o papa Paulo V desejava com ardor ser ou pelo menos simbolizar esse prncipe dos assassinos em nome da f. A primeira morte que ocorrera foi a do rei Henrique IV de Frana. At 1609, o monarca levou a cabo uma poltica externa pacfica, mas no comeo de 1610 iniciou os preparativos para intervir na Alemanha contra a dinastia catlica dos Habsburgo, movimento a que se opuseram alguns catlicos franceses. H alguns meses que temia ser assassinado e por isso o monarca passou a evitar as festas e manifestaes nas ruas, mas os seus obscuros pressentimentos estavam prestes a cumprir-se. Na manh de 14 de Maio, o rei reuniu-se cedo com o duque de Vendme, com o embaixador de Frana na corte de Madrid e com o seu fiel secretrio de Estado, ViIIeroy. Durante um passeio pelos jardins das TuIherias, Henrique IV confessou ao duque de Guisa que sabia que ia morrer muito em breve, como lhe tinham indicado os astros a que o rei era bastante dedicado. Antes de sair, dirigiu-se aos seus aposentos, onde encontrou uma carta sem estar lacrada. Ao abri-la, leu o texto onde se dizia: Sire, no deveis sair esta tarde sob qualquer pretexto. O rei no fez caso nenhum dessa advertncia e saiu do palcio acompanhado pelo seu segundo chefe de escolta, o capito Pralin. Henrique IV recusou a proteo e ordenou-lhe que se mantivesse no palcio. Na mesma carruagem seguem com o rei diversos cortesos, como DEpernon, sua direita, Montalban e Laforce, sua esquerda, Mirabeau e Llancourt de frente para ele. Um corpo de escolta segue-os a cavalo e alguns criados a p. Ao chegar prximo do palcio de Logueville, o rei mete a cabea de fora e indica ao cocheiro que se dirija para o cemitrio dos Inocentes. Era um lugar estranho para ser visitado pelo rei, mas o cocheiro, sem protestar, fez andar os cavalos. At esse momento ningum se deu conta de que um homem de aspecto robusto e armado com uma adaga de dupla lmina acompanhava a p a carruagem real. Ao fim de alguns minutos, a carruagem baixa de velocidade ao entrar na rua da Ferronnerie (oficinas metalrgicas). A rua muito estreita e um grupo de cidados pararam para dar vivas ao rei. O cocheiro segura ainda os cavalos pelas rdeas, mas subitamente a carruagem fica entalada entre uma carroa com vasilhas e outra com feno. Ao tentar desviar-se, a carruagem enfiou uma das rodas num sulco e ficou parada por instantes. Os criados seguiram por uma outra rua como atalho para chegar ao cemitrio, enquanto a escolta ficou imobilizada diante de um grupo de pessoas que se manifestaram a favor do monarca. Henrique IV tem o brao apoiado no ombro de DEpernon enquanto l uma carta oficial. Nesse momento, o homem que os tinha seguido avana rpido, apoia o p no estribo da carruagem e com a grande tcnica dos fidai lanou uma primeira estocada no rei, mas feriu-o apenas ligeiramente no peito. O rei apercebe-se que est ferido ao descobrir que a sua casaca se cobriu de vermelho. O assassino lana ento uma segunda punhalada que atravessa o pulmo e atinge a aorta de Henrique IV. O movimento foi to rpido que ningum reagiu ao primeiro ataque. O monarca apenas pde exclamar: No nada antes de cair de lado sobre Montalban com uma golfada de sangue a sair-lhe pela boca. So quatro da tarde do dia 14 de Maio de 1610. O regicida, em vez de se escapar na confuso, fica parado diante da carruagem com a adaga ainda na mo. De repente, trs homens vindos no se sabe de onde e com a espada na mo atiram-se sobre o atacante do rei aos gritos: Morte ao assassino! Os membros da escolta real fazem frente aos trs homens misteriosos e eles pem-se logo em fuga. O duque DEpernon ordenou que no se matasse o assassino e este fosse escoltado para um lugar seguro longe da ira da multido que se juntou em redor da carruagem. O rei foi levado urgentemente para o Palcio e aqui atendido por um mdico privado do monarca, o doutor Petit, que j nada pode fazer para salvar a sua vida. O rei morreu logo depois de receber a segunda estocada certeira. O preso foi levado para um piquete da Guarda Real no palcio de Retz, junto do Louvre. Nos bolsos trazia consigo oito moedas de prata, um papel com o nome de Beillard, um rosrio e um misterioso pedao de pergaminho de forma octogonal com o nome de. Jesus escrito em cada lado e uma frase no meio: Disposto dor pelo tormento, em nome de Deus. O regicida era um tal Jean-Franois Ravaillac, que garantiu vir da cidade de Angoulme, onde teria nascido h trinta e dois anos. Ravaillac um homem forte, ruivo, de olhos fundos e nariz comprido, que aparentava mais idade do que a que tinha. O mais estranho que DEpernon conhecia Ravaillac do tempo em que fora governador de Angoulme. Jean-Franois Ravaillac tinha sido enviado a DEpernon por ordem do padre jesuta DAubigny. Os jesutas defendiam que Ravaillac entrasse ao servio do governador como uma espcie de guarda de corpo e ao mesmo tempo espio da Santa Aliana. Durante o interrogatrio, dirigido por De Jeannin, Buillon e Lomnie, disseram- lhe que o rei apenas estava ferido e precisavam dos nomes dos conspiradores. Sem dizer uma palavra, Ravaillac foi levado com grilhetas nos ps e nas mos para a torre de Montgomery, na Conciergerie. O regicida apenas repetia que nenhum francs ou romano (seguidores do papa) participou ou me ajudou. Ravaillac foi acareado com o padre jesuta DAubigny, sem nada ter ficado claro e, aps ser sujeito a julgamento, foi condenado morte. Depois da execuo de Ravaillac apareceram novas pistas sobre a viva. Uma criada da marquesa de Verneuil acusou-a a ela, ao duque DEpernon e ao duque de Guisa de serem, juntamente com os jesutas, os instigadores do assassnio do rei Henrique IV e de ter ouvido bem como todos eles tramaram o crime algumas semanas antes. A criada desapareceu pouco depois, justamente quando a rainha viva foi nomeada rainha regente de Frana at maioridade do delfim, que reinaria com o nome de Lus XIII. Em Roma, o papa Paulo V dava uma missa solene em memria do rei defunto, enquanto num lugar secreto das catacumbas da Cidade Eterna se celebrava outra missa pelo mrtir catlico Jean-Franois Ravaillac. A verdade que muitas perguntas ficaram no ar sem terem uma resposta, como por exemplo, de onde saram to rapidamente depois do atentado os trs homens armados e com as suas capas negras?, quem eram?, quem para ali os tinha enviado?, ao servio de quem estavam?, queriam esconder a mo executora do regicdio para evitar que se descobrissem os verdadeiros crebros da conjura?, o duque D Epernon estava envolvido?, que papel desempenharam os jesutas na conspirao?, quem deixou a nota de aviso ao rei? E verdade, nenhuma destas perguntas teve resposta. Seja como for, passados alguns anos a polcia de Frana pde descobrir que Jean- Franois Ravaillac tinha participado num estranho grupo mstico-catlico chamado Crculo Octogonus. De fato, os seus membros eram fanticos catlicos com cega obedincia ao papa de Roma, tinham preparao militar e em particular no uso de armas especiais e estavam sempre dispostos a dar a sua vida em nome da verdadeira religio. O smbolo era um octgono com o nome de Jesus em cada lado e uma frase como lema da organizao: Disposto dor pelo 85 tormento, em nome de Deus, o mesmo smbolo que trazia o assassino de Henrique IV. Em vrios documentos e livros foram relacionados o misterioso e secreto Crculo Octogonus com a Santa Aliana, servio de espionagem pontifcio, embora sem se poder claramente demonstrar isso. E ainda hoje as atividades e a existncia desta organizao continua a ser um mistrio, bem como a sua prpria origem ou o nome do seu fundador. A rainha regente decide demitir o anterior ministro principal, o duque de Sully, e substitu-lo pelo aventureiro florentino chamado Concino Concini, que rapidamente se converteu no seu favorito. O italiano imprimiu de fato uma abertura na vida poltica da dcada posterior a 1610, ao ponto de os contemporneos reconhecerem que chegou a exercer um poder considervel e quase desmedido para um estrangeiro na corte da Frana. Concini tambm se tornou numa das melhores fontes de informao de Paulo V em Paris. De fato, ele no foi apenas um membro da Santa Aliana, mas tambm um dos espies mais importantes que qualquer papa podia ter no sculo XVII. Alguns historiadores asseguram que Concino Concini serviu sob as ordens do cardeal Alexandre de Mdicis, futuro papa Leo XI, durante a sua misso em Frana e que foi um dos que ajudaram a criar a rede francesa de espies papais, mas foi no perodo da regncia que o florentino se pde destacar entre os mais famosos espies papais. E ainda outras fontes garantem que de fato Concini apenas se servia a si mesmo e as suas operaes de espionagem em Frana serviram para dispor de mais poder dentro da estrutura poltica ao longo da regncia. O seu poder, de acordo com os historiadores. John Eliot e Laurence Brockliss, desenvolveu-se em trs fases principais: entre 1610 e 1614, de 1614 a 1616 e, por ltimo, em 1617. Na primeira fase, Concino Concini e a sua esposa, Leonora Galigai, preocuparam-se em acumular uma importante fortuna e adquirir terras e cargos atravs da estreita relao existente entre a prpria Leonora e a rainha regente. A influncia da esposa de Concini sobre Maria de Mdicis sups um grande benefcio econmico para o espio florentino. Em muito pouco tempo, Concino Concini conseguira fazer impor a sua voz nas nomeaes dos altos cargos da Casa Real e na designao de bispos de Frana. Os favores econmicos permitiram-lhe adquirir o marquesado de Ancre em 1610 e a sua nomeao como marechal em 1613. Apenas em trs anos, e graas em parte sua esposa, o italiano passou de simples mensageiro do cardeal De Mdicis e espio de pouco relevo s ordens de Paulo V a marechal de Frana. 16 86 Nesse mesmo ano o delfim chega maioridade, torna-se rei e Maria iwldicis passa a ser chefe do governo. O casal Concini mantm a sua esfera de poder, mas em 1616 que alcana o seu auge. Concino Concini e a esposa tudo fizeram para manipular a poltica de Frana a seu gosto. Na poca corriam certos rumores de que Concini teve relaes bem estreitas com o papa Paulo V. O golpe de rins dado pelo florentino fez com que destitusse todos os ministros do assassnio A Henrique IV e se nomeasse um novo governo do agrado de Concini e do vaticano. Barbin eleito ministro das Finanas, Margot passa a guardio do Selo e Richelieu torna-se ministro dos Negcios Estrangeiros. O italiano est cada vez mais infiltrado nas altas esferas graas rede de espionagem nas cozinhas das grandes famlias de Frana e muitos desses espies j tinham trabalhado para o cardeal Alexandre de Mdicis antes de ser eleito papa sob o nome de Leo XI. Concino Concini, filho e sobrinho de ministros do gro-duque da Toscnia, partidrio do absolutismo e os seus conselhos ao rei Lus XIII revelam-se no sentido de reforar esse sistema de governo. Devido sua aproximao com o monarca, era pelas mos de Concini que passavam todos os pequenos e grandes assuntos de Frana, desde a nomeao de um novo bispo at aos documentos que falavam das possveis alianas com outros Estados. Todas estas informaes eram transmitidas a Roma atravs da ampla rede de espionagem a operar em Frana por ordem de Paulo V. Na verdade, quem estabeleceu as ligaes com a Santa Aliana no foi Concino Concini, mas a sua esposa. Desde 1601, Galigai, como dama de companhia, tinha um estreito contacto com a rainha Maria de Mdicis. Certos historiadores garantiram que a mulher de Concini era s uma agente de ligao entre a rainha e a Santa Aliana do papa Clemente VIII, mesmo que nunca se pudesse demonstrar tal fato. Em 1605, Concini passou a fazer parte do crculo de confiana da rainha e num espao de nove anos o aventureiro florentino de primeiro-moo de cavalaria subiu a primeiro-moo de cmara do rei em 1617, ano da sua queda. Nas primeiras fases da regncia, Concino Concini preocupou-se sobretudo com as nomeaes de cargos relacionados com as finanas de Frana. Com a formao de um novo governo em, 1616, e sob o mandato do rei Lus XIII, Concini entra em cheio na poltica do reino. E desta altura a carta do nncio Vaticano Bentivoglio enviada a Roma e que se encontra hoje na Biblioteca Nacional de Paris: O marechal [Concini] falou-me destes trs novos ministros [Barbin Mangot e Richelieu] como homens de sua confiana e mostrou grande prazer quando elogiei Mangot e Luon, que eu j tinha visitado, e disse-me que considerava mais Barbin, por este superar os outros dois em assuntos importantes. E evidente que eram uma criao do espio Concino Concini, dado que a ele deviam terem sido nomeados ministros, mas depois de eleitos estariam j acima das decises do florentino. Uma outra medida do espio que mais protestos e dios levantou entre os cidados foi a de estabelecer fortificaes, no para defesa de qualquer agresso exterior, mas antes dos seus prprios cidados. Para Concini, aquelas massas defensivas eram a forma de mostrar o autntico poder do rei ao povo, mesmo que fosse pelo medo. Para levar a cabo esta poltica, o marechal de Ancre mandou chamar os melhores tcnicos na matria, os engenheiros italianos que serviram Espanha na Flandres, Pompeo Frangipani, Apollon Dougnano e Giuseppe Gamurrini. Entre 1615 e 1617, com o auxlio dos italianos, Concini comeou a impulsionar o poder real com a construo de fortalezas, que ainda continuou aps a sua morte. Alguns exemplos claros desta poltica seriam a fortificao de Montpellier em 1622, a de Marselha com a fortaleza de Saint Nicolas em 1660 e em Bordus o castelo de Trompette, em 1675. Curiosamente, as cpias dos planos de todas estas fortificaes encontram-se nos Arquivos Secretos do Vaticano e catalogadas em 1743 por ordem do papa Bento XIV. Em 1617, seria a queda do casal Concini. Em Janeiro, o florentino encontra-se no centro do furaco que pode provocar uma nova guerra civil em Frana. Na altura, e a conselho do nncio Bentivoglio, o papa Paulo V decidiu libertar-se das atividades dos Concini em Frana. Para se assegurar disso pediu aos agentes da Santa Aliana que suspendessem qualquer atividade ordenada pelo italiano e que a partir desse momento consultassem Roma sobre alguma ordem dada por Concini aos membros da espionagem papal. A crescente impopularidade de Concini prejudicava enormemente no apenas Maria de Mdicis, mas tambm Lus XIII e at a monarquia. Pouco a pouco, o peso da opinio pblica e a antipatia pessoal do monarca em relao ao marechal comeou a dar frutos entre os nobres que encaravam Concino Concini muito simplesmente como um estrangeiro e espio do papa. Finalmente, a 24 de Abril de 1617, quando Concini se dirigia a p para o palcio do Louvre, foi apunhalado at morte por trs homens desconhecidos. Os trs assassinos faziam parte da Guarda Real de Lus XIII e atuaram por ordem expressa do rei. A um homem com o poder, Concino Concini no se lho retira, mata-se, disse um dia o cardeal Richelieu que se tornaria um dos grandes da poltica e, por que no, tambm da intriga em Frana. Concino Concini, um aventureiro florentino, marechal de Frana e espio do papa, que tinha erguido o suborno e a intriga poltica como uma forma de arte, tornou-se numa personagem incmoda para o rei Lus e a nica sada para o monarca foi ordenar o seu assassnio: Concini cometeu trs graves erros-escreve o nncio Bentivoglio ao papa Paulo V-exibiu as suas riquezas obtidas atravs do rei; exibiu riquezas no dignas de um homem da sua origem humilde, e a razo dessas riquezas exibidas que tinham sido obtidas de forma imoral ou pelo menos de forma duvidosa. No prprio dia do assassnio de Concini, Lus XIII ordenou a deteno de Leonora Galigai. A verdade que o monarca no podia deixar nenhuma ponta solta e a esposa de Concini era uma delas. Ao que parece, a ordem de acabar com a mulher do marechal de Ancre foi dada pelo rei ao cardeal Richelieu, que se ocupou em levar a cabo o ltimo ato da funo. Os agentes do cardeal lanaram falsas notcias pelas ruas de Paris sobre a possvel relao de Leonora Galigai com a bruxaria e graas a esta teria enfeitiado a rainha Maria de Mdicis. A Guarda Real prendeu Galigai na sua casa, prximo do Palcio, que entretanto escrevera uma carta ao nncio Bentivoglio em que lhe pedia proteo para si e para os seus criados na nunciatura papal. Durante a revista sua casa, os soldados encontraram trs livros com caracteres mgicos, cinco rolos de tecido vermelho para dominar o esprito dos grandes e alguns lenos que Galigai trazia ao pescoo, que passaram a fazer parte das provas de acusao de bruxaria contra ela e foram aceites como talisms e amuletos para rituais satnicos. Leonora Galigai, esposa de Concino Concini, dama de companhia da rainha Maria de Mdicis e espia do papa Paulo V, foi dada como culpada de bruxedos e condenada a morte. No dia seguinte, e num lugar desconhecido, os elementos da Guarda Real que lhe assassinaram o marido decapitaram-na e o seu corpo foi queimado numa fogueira em 1617. As mortes de Concino Concini e de sua mulher abriram em Frana uma nova fase de intrigas, desta vez dirigidas pelo cardeal Richejj bom discpulo do espio florentino e um dos maiores homens de Estan dessa poca, mas a Santa Aliana tem outros objetivos nas mos jesutas. O papa Paulo V est mais interessado em utilizar a espiona para conseguir almas para a causa da f catlica do que para dispor mais poder econmico ou poltico numa Europa que se aniquila na chamada Guerra dos Trinta Anos. A 21 de Janeiro de 1621 morre o papa Paulo V e, aps dois dias de conclave, o cardeal Alexandre Ludovisi eleito novo papa e adota o nome de Gregrio XV. Tal como o cardeal Maffeo Barbieri, que anos mais tarde seria o papa Urbano VIII, o cardeal Ludovisi era um excelente diplomata e hbil espio que atuou em Espanha e em Frana. Ludovisi foi responsvel pela negociao da paz entre Filipe III de Espanha e Carlos Manuel de Sabia por causa do problema surgido com o marquesado de Monferrato. A 19 de Setembro de 1616, recebeu a prpura cardinalcia e, segundo certos indcios, foi encarregado por Paulo V de reformar e de estabelecer uma srie de normas para a Santa Aliana quando se cumpria meio sculo sobre a sua fundao por parte do papa Pio V. J como papa, Gregrio XV tentou rodear-se de familiares, que escolheu para ocupar altos cargos no Vaticano. Um dos mais importantes na histria da Santa Aliana seria um seu sobrinho, Ludovico Ludovisi. Nascido em Bolonha tal como o papa, no dia seguinte ao da coroao de Gregrio XV foi nomeado cardeal quando tinha apenas vinte e cinco anos. Ao jovem sobrinho do pontfice encomendada a tarefa de vigiar os assuntos religiosos e polticos da Igreja e ainda as operaes levadas a cabo pelo servio de espionagem. Os dois anos em que Ludovico Ludovisi dirigiu a Santa Aliana foram condicionados pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e em muito especial pela sucesso da Austria e pelas guerras da Bomia e do Palatinado. Os seus agentes estiveram demasiado ocupados em fomentar a derrota do prncipe palatino Frederico V, chefe da chamada Unio Evanglica, e em apoiar Maximiliano de Baviera (1598-1651). A 8 de Julho de 1623, morria Gregrio XV, deixando o sobrinho cardeal Ludovico Ludovisi como responsvel pela Santa Aliana, mas a chegada de um novo papa ao Vaticano acabaria com a curta mas intensa carreira de Ludovico como chefe da espionagem papal. Urbano VIII, sucessor de Gregrio XV, enviaria Ludovico Ludovisi para Bolonha, onde foi arcebispo desde 1621 e onde permaneceria at sua morte, ocorrida a 18 de Novembro de 1632, com trinta e seis anos. Segundo algumas fontes, o jovem Ludovisi teria sido envenenado por agentes protestantes Seguidores de Frederico V como vingana pelo seu papel na guerra contra Maximiliano de Baviera. o Barberini como novo papa o incio, de fato, de uma das fases mais obscuras e pouco gloriosas do servio de espionagem pontifcio sob todos os pontos de vista. Filho de uma rica famlia florentina de comerciantes de tapearias do Oriente, o futuro papa tinha trs anos de idade quando o pai morreu e a me decidiu educ- lo nos jesutas de Florena. Pouco depois, foi confiado aos jesutas de Roma e a seguir entra na Universidade de Pisa, onde faz os seus estudos de Direito. Sob a proteo do tio Francesco Barberini, tem uma das carreiras mais fulgurantes de toda a histria da Igreja Catlica. Em 1601, Clemente VIII envia-o a Frana para felicitar o rei Henrique IV pelo nascimento do delfim. Em 1604, nomeado nncio apostlico em Paris, onde presta uma grande ajuda aos jesutas. A 11 de Setembro de 1606, o papa Paulo V concede-lhe o capelo cardinalcio, que o prprio Henrique IV lhe impe em cerimnia solene, e dois anos mais tarde nomeado protetor do reino da Esccia. Mas dois sinais claros marcariam o pontificado de Urbano VIII: o seu evidente nepotismo e o gosto pelas intrigas, utilizando mesmo, se fosse necessrio, os servios dos agentes da Santa Aliana. O novo papa rodeou-se de uma grande corte familiar. Em 1623, nomeou o seu irmo mais velho, Carlos, como general dos exrcitos papais e duque de Monte Redondo; nesse mesmo ano, Francisco, o filho mais velho de Carlos, nomeado cardeal aos vinte e seis anos, e em 1624, Antnio, um outro filho de Carlos, escolhido como cardeal penitencirio, bibliotecrio principal, camariengo e prefeito da Nunciatura. Apesar dos poderes de que disps, nunca o cardeal Antnio Barberini, sobrinho do papa, pde controlar a Santa Aliana, porque essa tarefa foi reservada ao cardeal e amigo pessoal do papa Urbano VIII, Lorenzo Magaloti, que acompanhou a direo do servio secreto papal no cargo de secretrio de Estado desde 1628. De fato, Magaloti reunia em si todos os poderes do Colgio Cardinalcio, o que causou srias reaes nos outros purpurados. Para os tranquilizar, Urbano VIII concedeu-lhes o ttulo de eminncias e de prncipes da Igreja, mas a tarefa mais dura seria para Magaloti. O chefe da Santa Aliana teria pela frente um gnio da intriga e um grande conspirador do sculo XVIII, o cardeal Richelieu. O cardeal tinha-se convertido num dos homens mais poderosos de Frana. Era oriundo de uma famlia nobre, mas pobre do ponto de vista financeiro, o que fez com que o jovem Richelieu fosse obrigado a abraar a carreira eclesistica, na qual chega a bispo. Mas depressa descobriu que absolutamente tudo o que o rodeava era uma questo de Estado, desde a economia at s guerras religiosas Depois do assassnio de Henrique IV e da chegada da regncia de Maria de Medeis, o cardeal Richelieu viveu o seu momento de glria, sempre protegido por Concino Concini. Mas quando Lus XIII passou a governar e quebrou os seus laos com todos os favoritos da rainha, Richelieu teve de partir para o exlio. Em 1624, com trinta e oito anos e por uma srie de conspiraes, o cardeal conseguiu regressar corte de Lus XIII. Pouco a pouco, tomou conta das rdeas do governo at ser formalmente nomeado primeiro Ministro de Frana. Comeava uma grande carreira ao servio de Frana e por qualquer mtodo, por mais legal ou ilegal que fosse. Francois Le Clerc du Tremblay, o padre Joseph, antigo agente da Santa Aliana e, como alguns afirmam, membro da organizao ultra-secreta do Circulo Octogonus a mesma seita a que pertencia Jean-Franois Ravaillac, o assassino de Henrique IV, converte-se nos olhos e ouvidos de Richelieu fora do Palcio Real. Os livros de histria no esto de acordo em definir se Tremblay era a eminncia parda de Richelieu ou vice-versa, mas o certo que a colaborao do cardeal com o dominicano consolidou uma das unies mais efetivas para governar uma nao e intrigar no grande tabuleiro de xadrez em que se tinha tornado o continente europeu na primeira metade do sculo XVII. Joseph du Tremblay nascera em Paris em Novembro de 1577 e foi ordenado sacerdote em 1604. Viajou para Roma em 1616, quando o pontificado de Paulo V estava no seu ponto alto. Manteve contactos ali com outros dominicanos membros da Santa Aliana, que lhe ensinaram os sistemas de espionagem da poca, como as perseguies, as formas de assassnio por envenenamento e a tcnica de cifrar as mensagens. Uma vez regressado a Frana, passou por vrias cidades, at que em Abril de 1624 passou a fazer parte do apertado crculo do cardeal Richelieu. Muitos asseguram que foi no mesmo ano, ou talvez em 1625, que Joseph du Tremblay se tornou ministro oficioso dos Negcios Estrangeiros de Frana e tambm num dos mais acrrimos inimigos dos agentes da Santa Aliana. Para Richelieu, o poder absoluto da Coroa no era um fim em si, mas na sua ideia o rei era o prprio servidor do Estado. O cardeal era mais favorvel velha poltica externa europeia, nica e de modo exclusivo por questes confessionais e religiosas, e queria pr-se ao lado da poltica da razo de Estado, porque para ele as questes religiosas e os interesses do Estado, na maior parte das vezes, entravam em contradio. O melhor exemplo disto seria a posio da Frana contra a Espanha-Habsburgo, apoiada em parte pelo receio que sentia o prprio Urbano VIII pelos absburgos em Itlia, o que provocou a ruptura da unidade catlica no mundo e serviu assim como pasto para alimentar a fogueira da Guerra dos Trinta Anos. Uma das maiores conspiraes levadas a cabo pela Santa Aliana na Frana de Richelieu foi a chamada unio da nobreza. O cardeal Magaloti no estava disposto a permitir que uma grande parte da nobreza catlica francesa fosse perseguida por Richelieu, a qual se opunha a que a Frana esquecesse as confisses religiosas dos seus inimigos e os convertesse agora em amigos na luta contra a Espanha. O homem de confiana de Urbano VIII colocou frente da misso, um jovem sacerdote de Siena, Giulio Guarnieri, filho de pai italiano e de me francesa. A misso consistia em criar uma rede em Frana em redor de todos aqueles nobres catlicos que se opunham a Richelieu e sua poltica anti espanhola. Guarnieri era filho de um comerciante de vinhos que se dedicava a percorrer todo o territrio francs em busca dos melhores vinhos, que depois vendia s grandes e nobres famlias de Paris, Siena, Florena e Roma, o que permitiu ao jovem Giulio entrar em contacto com os maiores senhores de Frana e assim ganhava bom dinheiro ao fazer de mensageiro ocasional entre os polticos de Frana e os de Mntua contrrios aos interesses de Espanha. A ideia do cardeal Magaloti, chefe da Santa Aliana, era a de ter sempre um p apoiado em Frana no caso de Urbano VIII resolver conciliar-se com Espanha no seu apoio a Richelieu. O papa j se tinha declarado contrrio aos interesses de Espanha nos conflitos da Valtelina e de Mntua e a favor das pretenses francesas. No primeiro caso, apoiou o chamado tratado de Monon de 1626, que segregava os catlicos da Valtelina do domnio dos grises protestantes. Valtelina era uma regio aparentemente sem importncia, situada entre Frana, Itlia e Sua, mas Urbano VIII e Magaloti queriam saber por que e que Richelieu tinha nela tanto interesse. O agente da Santa Aliana, Giulio Guarnieri, bom conhecedor da regio devido s viagens com o seu pai, escrevia ento ao cardeal Magaloti: O cardeal Richelieu tem um grande interesse na Valtelina devido a um estreito vale de grande valor estratgico, que permite a passagem das tropas espanholas da Lombardia para a Alemanha e para os Pases Baixos. Se o vale ficar fechado pelos franceses, evidente que os espanhis no podero comunicar com o norte a no ser pelo mar. A regio estratgica, tal como tinha vaticinado o agente Guarnier caiu prisioneira das lutas religiosas pelo controle desse vale. O grupo protestante procurou ento apoios em Veneza e na Frana de Richelieu enquanto a faco catlica procurou apoios em Espanha e na Austria. por fim, em 1620, os espanhis ocuparam a Valtelina e os austracos o vale de Munster. A soluo no convinha Frana e o cardeal Richelieu resolveu o problema a seu favor com um golpe de surpresa. Como hbil cardeal garantia a plena autonomia aos habitantes dos vales sempre e quando estes exercessem a religio catlica, o que constitua um xito para o papa que se auto-denominou rbitro das negociaes de paz. Entretanto, Guarnieri tinha as mos livres para continuar a operar dentro do prprio territrio de Frana e manter estreitos contactos com a nobreza catlica francesa, cada vez mais perseguida pela sua oposio ao anti-espanholismo de Richelieu. Guarnieri era o nico vnculo dos lderes catlicos com o Vaticano e o papa Urbano VIII. A atitude de Urbano VIII no foi muito clara durante estes trgicos acontecimentos. A simpatia pela Frana, que era aliada dos protestantes e do cardeal Richelieu, foi-lhe censurada pelo legado imperial em Roma, o cardeal Pasmany. Poucos anos depois, havia de se descobrir que Giulio Guarnieri e talvez o seu chefe, o cardeal Lorenzo Magaloti, trabalhavam para Pasmany, que, por sua vez, informava Espanha e os imperiais sobre os movimentos de tropas protestantes. Ao longo de mais de oito anos, os espies de Richelieu, dirigidos por Joseph du Tremblay, procuraram o espio do cardeal Magaloti sem muito xito, tendo chegado a batizar Giulio Guarnieri como o espio fantasma e fizeram mesmo crer que realmente o agente da Santa Aliana era uma inveno do prprio cardeal Lorenzo Magaloti. Entretanto, para enfraquecer o prestgio da Casa da Austria e para aumentar o de Lus XIII, Richelieu menosprezou os princpios da religio e manteve a Frana sob o terror permanente da guerra. Foi o remorso provocado por esta contradio entre o prprio conflito religioso e os compromissos da poltica que mais torturou a conscincia de Joseph du Tremblay, o padre Joseph, como era conhecido. O chefe dos espies de Frana morreria depois de um ataque de apoplexia em 1638, no castelo de Rueil, que era propriedade do cardeal Richelieu. Quatro anos depois morria tambm Armand Jean du Plessis, cardeal de Richelieu, deixando como herdeiro da sua poltica e intrigas o cardeal Jules Mazarino, de origem italiana. O Papa Urbano VIII morria a 29 de Julho de 1644 e foi enterrado no sepulcro que Bermini tinha exigido na baslica de S. Pedro. Depois de 21 anos de Pontificao, deixou uma obscura recordao entre os catlicos que o acusaram de se comportar como um traidor pela sua atuao na guerra dos 30 anos. Giulio Guarnieri, o espio fantasma, continuaria a trabalhar para a Santa Aliana na Frana de Mazarino e de Lus XIV. Chegava ao seu fim uma obscura fase para a espionagem papal, a qual teve de atuar pela causa protestante devido neutralidade de Urbano VIII. Mas graas a homens como o cardeal Lorenzo Magaloti, chefe da Santa Aliana, ou ao espio Giulio Guarnieri, a causa catlica continuava a estar protegida numa Europa desgarrada e esfomeada quando comeava uma nova era de expanso.
5
A era da expanso (1644-1691)
No espalhars rumores falsos, no prestars ajuda ao culpado para dar testemunho a favor de uma injustia. No te deixars arrastar para o mal pela maioria e no declarars num julgamento para seguires a maioria que falseia a justia. Exodo 23, 1-2
Com a morte do papa Urbano VIII, o conclave voltou a reunir-se para eleger o seu sucessor e de novo o Colgio Cardinalcio se mostrava dividido por disputas e grupos. Por um lado, o partido hispano-austraco, que era contrrio poltica seguida pelo papa anterior e, por conseguinte, a qualquer possvel candidato que tivesse sido nomeado cardeal por Urbano VIII. Por outro lado, havia o partido francs, dirigido pelo cardeal Antnio Barberini e apoiado em Paris pelo cardeal Jules Mazarino. Espanha tinha manifestado o seu claro apoio ao cardeal Sachetti, proposto pelo cardeal Francesco Barberini, primo do anterior, mas seria rejeitado por Mazarino. Poucos dias depois, a 15 de Setembro de 1644, os cardeais Barberini decidiram apoiar a candidatura opcional do cardeal Juan Bautista Pamphili, um ancio de setenta e dois anos que adotaria o nome de Inocncio X. O novo papa continuou com a poltica de nomeao de membros familiares para ocupar as altas hierarquias da Igreja. O problema que se colocava ao pontfice era que a pessoa de sua famlia mais capaz para dirigir um alto cargo da Igreja e de Roma era uma mulher, a sua cunhada Olmpia Maidalchini. Tinha sido casada com o irmo mais velho do papa at morte deste e desde ento Olmpia, uma mulher forte, tinha conseguido colocar em Cevadas posies sociais todos os seus filhos. Inocncio X concedeu a Purpura cardinaicia ao sobrinho e filho mais velho de Olmpia, Camilo Panphili, com a inteno de que a me pudesse atravs dele governar e dar conselhos ao papa. Em pouco tempo o Olmpia Maidalchini torna-se uma das pessoas mais influentes em redor do Papa, apesar de nem sequer Ihe permitirem qualquer conversa em privado com ele. Todas as comunicaes e ordens eram feitas atravs do filho e sobrinho, cardeal Camilo Panphili. Durante os primeiros trs anos de pontificado, Olmpia apenas assessora o papa em questes polticas pouco importantes, como os assuntos relacionados com a infira-estrutura da cidade, as nobres famlias que deviam ser favorecidas e as que deviam ser castigadas. Em. Janeiro de 1647, Camilo Pamphili, o correio secreto entre Inocncio X e Olimpia Maidalchini, renunciou ao cardenaiato para depois contrair casamento com Olimpia Aldobrandini, sobrinha de Clemente VIII e viva de Paolo Borghese. Impunha-se sem duvida escolher um novo correio que tambm se mostrasse bem discreto. O papa fez ento cardeais Francesco Maidalchini e Camilo Astalli, ambos familiares de Olimpia, com o propsito de se converterem em simples tteres da ligao entre Inocncio X e Olimpia Maidalchini. Teria sido a prpria Olimpia que sugerira ao Sumo Pontfice a nomeao do cardeal Panciroli como secretrio de Estado e responsvel pela Santa Aliana. Mas o papa Urbano VIII preferia que a espionagem e a poltica da Igreja Catlica estivessem nas mesmas mos e ao mesmo nvel. Atravs de Panciroli, Olimpia controlava os atos da Santa Aliana de forma oficiosa. No assistia secretamente s audincias do papa Inocncio X com o seu secretrio de Estado, mas chegava a decidir quais as operaes que deviam ser levadas a cabo. Um dos principais inimigos da Santa Aliana continuava a ser a Frana do cardeal Mazarino, mas Maidalchini manejou a situao com um certo toque feminino. Lus XIII tinha morrido meses depois de Richelieu e sucedeu-Ihe o seu filho Lus XIV. Devido tenra idade do monarca, durante cinco anos, foi a sua prpria me, a rainha Ana de Austria, quem governou na qualidade de regente. A rainha-me nomeou o cardeal Jules Mazarino como responsvel pelo Conselho de Regncia e, a partir desse momento, Mazarino, a quem os seus inimigos chamavam o vilo da Siclia pela sua origem italiana, comeou a controlar absolutamente todo o poder do Estado. Mazarino conseguira manter uma estreita amizade com Richelieu, o seu protetor, desde a sua poca como nncio pontifcio em Frana. Desde essa altura, Jules Mazarino abandonou o servio do papa e passou a fazer parte das engrenagens do poder em Paris. A confiana da rainha Ana e a incapacidade por parte da famlia real para governar fizeram o resto. Pouco a pouco, a situao foi-se degradando at ao ponto de a nobre em grande parte catlica, comear a intrigar contra o poder cada vez mais absolutista do Estado. Estas intrigas foram em parte apoiadas e, segundo dizem, financiadas pela Santa Aliana por indicao da sua chefe na sombra, Olimpia Maidalchini. O cardeal Jules Mazarino conseguiu introduzir na Santa S alguns espies que o informavam dos movimentos do papa contra a Frana. Foi nessa altura que Maidalchini criou uma espcie de servio de contraespionagem dentro da Santa Aliana, batizado com o nome de Ordem Negra A tarefa dos seus membros seria a de descobrir os agentes de lvlazarino e execut-los de forma imediata. Para isso foi entregue aos seus membros, escolhidos nas fileiras da Santa Aliana pela prpria Maidalchini, um selo pontifcio gravado em prata onde aparecia uma mulher vestida de toga, com uma cruz na mo e a espada na outra. Segundo parece, o escudo da Ordem Negra era uma homenagem prpria responsvel pela espionagem papal. Um dos melhores espies de Mazarino no Vaticano era um padre de origem genovesa chamado Alberto Mercati, que na verdade tinha sido recrutado pela espionagem de Mazarino quando este estava na nunciatura papal em Frana. No seu regresso a Roma, Mercati passou a integrar o squito do cardeal Panciroli e entrou na Secretaria de Estado como perito em assuntos franceses. Entre 1647 e 1650, pelas mos de Alberto Mercati passaram importantes documentos relacionados com a Frana, que eram sempre dados a conhecer de forma imediata ao prprio Mazarino atravs de um complicado sistema de correios. Mercati sabia que os monges da Ordem Negra estavam na sua pista e que a prpria Olimpia Maidalchini tinha prometido a captura do crebro que operava protegido por alguma alta hierarquia eclesistica. Para o espio, a sua captura converteu-se mais num jogo do que numa questo de pura e simples espionagem. Mercati deixava pistas falsas em postos de muda de cavalos e tabernas com a inteno de despistar os agentes da Santa Aliana, mas tambm sabia que mais tarde ou mais cedo a Ordem Negra acabaria por conhecer a sua identidade. Uma das operaes da Santa Aliana que Alberto Mercati pde descobrir foi a do chamado movimento da Fronda. De claro sinal anti-Mazarino e anti-absolutista, esse movimento era formado por grandes senhores catlicos, aos quais por ordem de Mazarino se lhes aplicava altssimos impostos, cujo destino final no era outro seno o das prprias arcas do cardeal e dos seus mais fiis seguidores, sempre com a anuncia da regente Ana de Austria. O nome do movimento procedia de um jogo que as crianas faziam na Paris do sculo XVII e que consistia em atirar pedras com uma fisga Muitos deputados da Assembleia que faziam parte da Fronda no aceitavam novos impostos sem a aprovao do Parlamento. Por isso mesmo estabeleciam que nenhum sbdito do rei podia ser detido por mais de vinte e quatro horas, espao de tempo em que devia ser interrogado e apresentado ao juiz. Graas a um documento enviado por um agente em Frana ao cardeal Panciroli, o espio Alberto Mercati conheceu a implicao do Vaticano e do papa Inocncio X na conjura contra Mazarino. O espio infiltrado tentou enviar um correio urgente ao prprio cardeal Mazarino para o informar da conspirao de uma organizao chamada Fronda com o propsito de derrubar o rei Lus XIV, a rainha Ana de Austria e Mazarino, mas o correio nunca chegou ao seu destino. A mensagem sem assinatura tinha sido entregue a um dos guardas suos do papa, que era de origem francesa, o qual devia faz-la chegar a Paris, mas os monges da Ordem Negra interceptaram essa carta escrita por Mercati em cdigo. O cadver do soldado pontifcio foi descoberto no dia seguinte, suspenso de uma ponte, com as mos cortadas e em cuja roupa pendia uma faixa preta de pano cruzada por duas franjas com o smbolo da Ordem Negra. A carta seria entregue nesse mesmo dia a Olimpia Maidalchini pelo chefe da guarda para ser destruda, enquanto em Frana se sucediam os distrbios. Paris converteu-se em centro de lutas e de barreiras nas ruas. A Frana estava beira da guerra civil entre os partidrios de Ana de Austria e do cardeal Mazarino e os seguidores de Lus de Bourbon, prncipe de Conde, que desejavam afastar o cardeal. Para apoiar o prncipe Conde, o papa Inocncio X enviou o cardeal de Retz, um gasco que era tambm tio de Lus XIVI. Os membros mais importantes da Fronda no se mostravam muito seguros da fidelidade de Retz, mas apesar de tudo era o enviado de Roma e merecia os favores de Lus de Bourbon e de Inocncio X. A revolta conseguiu ser sufocada apenas em trs meses e a paz foi restaurada de forma imediata at 1650. Neste ano, Lus de Bourbon foi detido por ordem de Mazarino, o que provocou uma nova Prenda, que se estendeu at 1652. Na verdade, o prncipe de Conde tinha sido preso por ordem de Ana de Austria, cansada das insolncias do nobre, da sua vontade de poder e desejo de substituir o cardeal no cargo, mas os agentes da Santa Aliana em Paris preferiram fazer saber populao que a sua deteno seria parte de uma conspirao organizada pelo odiado cardeal Mazarino. E isso alimentou a chama do dio. As provncias da Borgonha e de Guyena levantaram-se contra essa priso, tal como o duque de Lorena e o conde DHarcourt. Os cidados de Paris armaram- se e o Parlamento pediu mesmo o exlio para Mazarino. Em vez de aceitar a recomendao, decidiu ceder e colocar em liberdade Lus de Bourbon, que depois se refugiou na Alemanha. Entretanto, em Roma, e desde comeos de 1651, depois da morte do cardeal Panciroli, Olimpia Maidalchini mantinha o controle da Santa Aliana. O papa Inocncio X nomeou como substituto de Panciroli o cardeal Fbio Chigi, futuro Alexandre VII. Chigi desejava ficar com as rdeas do aparelho de poder no Vaticano, incluindo a Santa Aliana, e Maidalchini era realmente um grande entrave. Por fim, e com a interveno do prprio Inocncio X, Chigi chegou a um acordo com Maidalchini, atravs do qual era impedida de qualquer controle sobre a Santa Aliana ou os seus agentes, mas continuava a ser-lhe permitido ter o controle da Ordem Negra. cunhada do papa no lhe restava outro remdio seno aceitar, porque ao fim e ao cabo queria ardentemente apear do topo o cardeal Mazarino. A 6 de Setembro de 1652, o genovs Alberto Mercati apareceu enforcado numa viga na sua casa de Roma. No meio da boca tinham-lhe enfiado um pequeno pano negro com as duas faixas rubras cruzadas. O longo brao da Ordem Negra atingiu um dos mais brilhantes espies inimigos que operavam no Vaticano. Segundo parece, o espio antes de morrer acusou o cardeal Panciroli de lhe ordenar que desse informaes ao cardeal Mazarino, mas esse fato nunca pde ser confirmado. A 7 de Janeiro de 1655, morria o papa Inocncio X, com oitenta e um anos de idade. O seu corpo permaneceu exposto durante horas na baslica de So Pedro, mas como ningum sabia o que fazer com ele foi ento Ievado para um alpendre escuro, onde os trabalhadores guardavam as 101 ferramentas. Mais tarde foi-lhe preparado um modesto tmulo na igreja de Santa ms, na concorrida praa Navona. Com a morte de Inocncio X, chegava ao fim o pontificado da Contra- Reforma. Uma vez mais, os grandes poderes na Europa deveriam decidir sobre o novo papa para governar a Igreja Catlica e o que estava melhor colocado era o cardeal Saccheti, grande inimigo da Santa Aliana, que ele qualificava como um instrumento do diabo que apenas servia para fazer o mal na sombra. Saccheti tinha abertamente declarado o seu receio por um aparelho da Igreja to poderoso que nem sequer os prprios papas podiam controlar. Por isso, estava decidido a acabar com a espionagem custasse o que custasse e foi essa sua posio que talvez o tenha impedido de ser escolhido como sucessor de Inocncio X. O cardeal Fbio Chigi, que dirigia a Santa Aliana desde 1651, no queria acabar com o servio de espionagem que custou tantas vidas. Para isso decidiu realizar um perigoso jogo que consistia em informar Filipe IV de Espanha acerca das atividades claramente pr-francesas do cardeal Saccheti e a sua possvel amizade com o cardeal Mazarino. Recebida essa informao, o monarca resolveu vetar Saccheti e apoiar o fiel Chigi como sucessor de Inocncio XI. Aps quatro meses de conclave, a 7 de Abril de 1655 o cardeal Fbio Chigi foi por fim eleito novo papa e adoptou o nome de Alexandre VII O seu pontificado decorreria envolto em dezenas de conspiraes polticas e em confrontos claros com a Frana, em parte pela debilidade sofrida pelos Estados Pontifcios depois da assinatura da infame paz de Vesteflia em 1648. Alexandre VII era um homem com uma clara habilidade para a diplomacia. Contrrio ao nepotismo praticado pelos seus antecessores, o novo papa preferia tomar ele mesmo as suas decises depois de consultar os especialistas em cada matria. Como primeira medida, o novo papa resolveu fazer a reforma de toda a Cria Romana, incluindo os servios secretos. Tal medida afetaria Olmpia Maidalchini, que ainda mantinha sob o seu controle a Ordem Negra. O papa obrigou Maidalchini a devolver o controle da misteriosa organizao Santa Aliana, a dissolver a Ordem Negra e, por ltimo, a retirar-se da vida pblica, mas em troca disso recebeu uma boa soma de dinheiro. Em clara obedincia a Alexandre VII, a ainda poderosa Olmpia Maidalchini aceitou todas as exigncias e retirou-se para a sua residncia romana at sua morte em 1657, com sessenta e quatro anos. Com ela acabava um dos perodos mais obscuros e tambm um dos mais interessantes na histria da espionagem do Vaticano. A nova direo da Santa Aliana ficava nas mos do cardeal Corrado, que tambm era da Congregao da Imunidade. O cardeal Corrado no era homem entendido em poltica e muito menos em questes como as intrigas, virtude muito necessria para poder dirigir um aparelho to poderoso como a Santa Aliana. Estava mais interessado no estudo da religio do que em questes to mundanas como a de dirigir um servio de espionagem, embora este se encarregasse de proteger os interesses do papa e da Igreja Catlica numa Europa cada vez mais belicista em relao aos Estados Pontifcios. As relaes entre Roma e Paris no passavam pelo seu melhor momento. A Frana no conseguiu vencer a Espanha e a situao interna continuava instvel depois da ltima Fronda. Ao lado de um cada vez mais enfraquecido Mazarino aparecia Fouquet, ministro da Fazenda, como o novo homem forte da Frana. A sua ambio e cobia so ainda maiores do que a dos antecessores Mazarino e Richelieu. As ruas da capital veem-se fustigadas por distrbios religiosos, promovidos pelos jansenistas, que reclamam uma reforma catlica, o que comea a afetar o Governo e a Coroa. O tratado de amizade anglo-francs de 1655, que foi assinado com Oliver Cromwell, lorde protetor da Inglaterra, consentia a Mazarino novas foras para continuar a sua guerra contra Espanha. A queda nas mos inglesas das praas espanholas em Dunquerque e na longnqua Jamaica obrigaram o rei Filipe IV a assinar a paz. As negociaes, planeadas pela rainha Ana de Austria e pelo cardeal Mazarino, centraram-se num possvel casamento entre o jovem rei Lus XIV e a filha de Filipe IV, Maria Teresa. O papa Alexandre VII e o seu conselheiro, cardeal Sforza Pallavicino, abenoavam essa provvel unio. Pallavicino, que se tornou num dos mais prximos conselheiros do papa, afastando mesmo o cardeal Corrado do controle da Santa Aliana, viu no casamento rgio uma possibilidade de reduzir o belicismo francs em relao aos dbeis Estados Pontifcios. O casamento combinado em 1658 deu lugar a 7 de Novembro de 1659 assinatura da paz dos Pirenus, na fronteira hispano-francesa. No documento assinado, em que o prprio Alexandre VII colocou um gro de areia, a Frana tinha um maior nmero de concesses. Como dirigente da Prenda, Conde era restabelecido nas suas possesses, enquanto a Catalunha era abandonada pelas tropas francesas como um elevado nmero de comarcas foram devolvidas Espanha. Portugal foi sacrificado pela Frana, embora mantivesse a sua prpria independncia. O poder de Espanha em Itlia e o franco-condado da Borgonha permaneceram intactos. Mas o que estava claro era que a dos Pirenus, como a de Vesteflia, foi uma paz assinada pelo cansao, a Frana aparecia como a nova potncia europeia face ao cada vez mais enfraquecido poder espanhol. A 9 de Maro de 1661, morria o cardeal Mazarino, o que suporia o comeo da monarquia absolutista de Lus XIV e com isso o poder da Frana em toda a Europa. Durante estes anos, o papa Alexandre VII no passou to-s de uma testemunha acidental dos acontecimentos desenrolados na Europa em convulso. O que o pontfice de Roma menos desejava era alterar os nimos da vizinha e poderosa Frana, mas uma mo oculta mostrava-se disposta a que tais nimos se agitassem perigosamente. Dois graves incidentes estiveram a ponto de provocar uma guerra aberta entre Lus XIV e o papa Alexandre VII. O primeiro aconteceu a 11 de Junho de 1662, quando o novo embaixador de Frana em Roma, o duque de Crequi, escoltado por duzentos guardas armados, procurou ser recebido pelo papa. Crequi entendia que Alexandre VII devia prestar-lhe cortesias como representante de Lus XIV, mas o pontfice no estava disposto a isso. O cardeal Pallavicino ordenou ento Guarda Corsa que formasse uma linha de proteo entrada da residncia papal para assim impedir qualquer tentativa de entrada dos franceses nos aposentos do pontfice. O embaixador Crqui protestou diante do cardeal Rospigliosi, secretrio de Estado, e a seguir o duque de Crequi informou o rei Lus XIV da afronta sofrida como representante da Coroa de Frana em Roma. O segundo incidente aconteceria a 20 de Agosto de 1662, quando quatro homens, que deviam ser agentes da Santa Aliana, tiveram um desentendimento com trs diplomatas franceses. O que de incio pareceu ser uma simples discusso, acabou por se converter num duelo espada nas ruas prximas do palcio Farnese, onde estava instalada a Iegao diplomtica francesa. O barulho do chocar das espadas chamou a ateno de uma patrulha da Guarda Corsa do papa, que vigiava os arredores, e de uma patrulha de soldados franceses que protegiam o edifcio diplomtico. Ao chegar ao local da luta, descobriram dois franceses feridos de morte e tambm um dos agentes da Santa Aliana. Os restantes foram presos e mandados para os calabouos de um dos quartis da Guarda Corsa, no sem antes terem uma sria altercao com as tropas francesas. Os trs agentes da Santa Aliana eram antigos elementos da Ordem Negra sob as ordens de Olmpia Maidalchini e, portanto, foram postos em liberdade. Parece que o cardeal Pallavicino decidira reativar a ordem negra como servio de contra-espionagem apesar das ordens dadas em contrrio pelo papa Alexandre VII. Sforza Pallavicino desejava manter como ncleo de poder os homens formados por Maidalchini, bem como os segredos que conseguiram obter ao longo dos anos em que a cunhada de Inocncio X dirigiu a espionagem pontifcia. Ao chegar a Paris as notcias do segundo conflito, de imediato, Lus XIV ordenou a expulso do nncio papal em Frana, as tropas francesas puseram-se em movimento e ocuparam o condado de Avignon e, por ltimo, foi ordenado ao exrcito que se preparasse para uma demorada campanha de carcter punitivo contra o orgulhoso Estado Pontifcio. A guerra batia porta de Roma e desta vez a dbil Espanha de Filipe IV pouco poderia fazer para a evitar. Alexandre VII procurou obter a mediao da duquesa regente de Sabia, tia de Lus XIV, mas tudo foi intil. O papa foi assim obrigado a humilhar-se e a aceitar as condies do tratado de Pisa assinado a 12 de Fevereiro de 1664. Os cardeais Chigi e Imperiali, governador de Roma, foram enviados a Paris para apresentar as suas desculpas ao rei Lus XIV. Mrio e Agostino Chigi, parentes do papa, foram enviados ao palcio Farnese para apresentarem desculpas ao embaixador de Frana, o duque de Crequi; por sua vez, os membros da Guarda Corsa foram despedidos e a unidade dissolvida; o cardeal Pallavicino foi afastado para segundo plano, embora continuasse a manter o mesmo poder dentro dos muros de Roma. Mas o papa Alexandre VII garantia um bom papel na histria ao proclamar uma bula secreta a 18 de Fevereiro de 1664, em que protesta contra as imposies dos franceses e lamenta ter aceite as condies do tratado de Pisa, assinado apenas seis dias antes, com o intuito de salvar a Itlia da ocupao estrangeira. Declaramos por conseguinte que diante de tais fatos nos opusemos violncia, fora e necessidade por no podermos resistir de forma alguma pelo nosso consentimento ou vontade. Ordeno que o presente protesto e declarao, escrita por ns, tenha validade na defesa da verdade, com pleno e total efeito e com toda a fora, embora no possamos tornar pblico este documento. O que ficava claro era que a brutalidade demonstrada por Lus XIV contra o papa depois do incidente de 20 de Agosto foi s um pretexto para humilhar Roma, Alexandre VII e o seu governo e a Igreja Catlica. No prprio leito de morte, o Sumo Pontfice lanava cara do duque os maus tratos sofridos pelo seu nncio em Paris e os danos causados pela autoridade real igreja da Frana. A 22 de Maio de 1667, Alexandre VII morria, com sessenta e nove anos, e era sepultado no magnfico mausolu que Bermini construira na Baslica de S. Pedro. A morte de Alexandre VII provocaria uma nova vaga de operaes da Santa Aliana na Asia. A partir de 1668, com o desmoronar da dinastia Ming, comearam a chegar China legaes diplomticas europeias com boa recepo por parte do governo Ming. Em 1668, chegariam os holandeses e em 1670 os portugueses, seguindo-se depois as embaixadas da Rssia e dos Estados Pontifcios, j no incio do sculo XVIII, o que tornou a China em mais uma extenso dos problemas polticos e religiosos que ento assolavam a Europa e, por conseguinte, um perfeito caldo de cultura para as operaes levadas a cabo pelos espies de um e do outro lado. O primeiro espio a aparecer na China foi um holands chamado Olfert Dapper, que chegou Asia em 1667 sob as ordens de Van Hoorn. Dapper procurara chegar a um acordo com as altas hierarquias da corte Ming com a inteno de conseguir uma concesso comercial exclusiva para o seu pas em detrimento de outras potncias europeias, o que inclua acabar com o imposto sobre os galees holandeses que atracavam nos portos chineses. Informado o papa Clemente IX da trama urdida pelos holandeses, ordenou aos seus agentes que acabassem com qualquer tipo de entrave que se pudesse impor aos navios ou interesses dos pases catlicos na China. A 11 de Outubro de 1668, Olfert Dapper apareceu decapitado num casebre prximo do porto de Canto. Os europeus residentes pensaram que tinha sido um mero ajuste de contas com algum bando chins, embora se dissesse no seio das legaes europeias que o diplomata e comerciante holands tinha sido executado pelo Crculo Octogonus esse mesmo a que Jean-Franois Ravaillac pertencia, ele que foi o assassino do rei Henrique IV de Frana-, ou pela Ordem Negra. Mas a verdade que a morte de Olfert Dapper atrasou por muitos anos a assinatura de um acordo comercial entre a Holanda e a China. A sbita morte de Clemente IX, a 9 de Dezembro de 1669 e que o tornou num papa de transio, obriga novamente o conclave a reunir-se e no menos de seis partidos disputavam a eleio de outro papa que devia suceder ao breve pontificado de Clemente IX. Os espanhis ligados ao cardeal Chigi lanaram a candidatura do cardeal Escipin dElce, mas ele foi vetado pelos franceses. O cardeal Azzolini apresentou ento como candidato o cardeal Vidoni, antigo nncio na Polnia, mas desta vez os espanhis impuseram o seu veto. E apenas quando os reis de Venezuela, de Espanha e de Frana ordenaram aos seus embaixadores que encontrassem um candidato de consenso que o conclave, depois de quatro meses de votaes, elegeu o ancio cardeal Emlio Altieri como novo papa, com nome de Clemente X em memria do antecessor, que o fizera ascender prpura cardinalcia. Este papa no deu demasiada importncia ao papel que a Santa Aliana devia desempenhar no xadrez poltico da Europa. Clemente X preferia antes a subtileza da poltica e da diplomacia do que os mtodos violentos utilizados pela Santa Aliana. O novo pontfice decidiu passar a outros o seu poder, mas por no contar com familiares diretos optou por faz-lo sobre os ombros do poderoso cardeal Paluzzi. O seu poder era de tal ordem que mesmo os polticos e poderosos da poca chegaram a baptizar Paluzzi como cardeal Paluzzi-Altieri, brincando com o prprio apelido do papa. Em poucos meses, Paluzzi no s se convertera na sombra do Sumo Pontfice, mas assumiu ainda as rdeas da espionagem papal e dos assuntos de Estado. Nada nem ningum, nem mesmo o secretrio de Estado, se movia em Roma sem que ele o no soubesse. Acredita-se que foi ele quem ressuscitou a Ordem Negra como servio de contra-espionagem, embora no exista nenhum documento que o prove. O certo nos poucos mais de seis anos em que o papa Clemente X ocupou o trono de So Pedro, Paluzzi concentrou nas suas mos um dos maiores poderes de toda a histria da Cria Romana. A espionagem e a contra-espionagem eram para si apenas armas perigosas em mos poderosas e no havia a menor dvida de que estava disposto a us-las e sabia como faz-lo. Com Clemente X as relaes com a Frana nem sequer passaram pelo seu melhor momento, sobretudo pela prepotncia com que Lus XIV atuava em relao a tudo o que dissesse respeito ao Papa e a Roma. A crise mais grave entre Paris e Roma ocorreu a 21 de Maio de 1670, quando o embaixador de Frana, o duque DEstrees, acusou o poderoso cardeal Paluzzi de vetar a nomeao de um cardeal francs ou claramente pr-francs. Paluzzi rejeitou a acusao, atribuiu ao rei Lus XIV uma posio antipapista e anticatlica, enquanto Clemente X se levantava do trono para dar por finda a audincia. Nesse instante, o francs lanou-se sobre o velho papa e obrigou-o a sentar-se. O pontfice olhou o diplomata e jurou-lhe que no permitia outra afronta francesa. E o cardeal Paluzzi tomou nota disso. Na noite de 26 de Maio, cinco dias aps o incidente, o secretrio da delegao diplomtica de Lus XIV em Roma apareceu morto. Segundo parece, o jovem diplomata, depois de despachar com o seu embaixador o duque DEstrees, saiu do edifcio da legao e dirigiu-se a passo para Trastevere, na outra margem do Tibre, onde existiam Iupanares e tabernas. Numa delas, e enquanto comia, estabeleceu contacto com dois homens educados que diziam ser estudantes de Florena e que haviam chegado a Roma para ver a possibilidade de tomar os hbitos, como lhes tinham ordenado as suas nobres famlias. Num dado momento, o francs saiu da sala para ir urinar e quando regressou os dois italianos tinham desaparecido. O secretrio de D Estrees voltou a sentar-se e continuou a comer o que ainda tinha no prato. Ao sair a noite primaveril estava agradvel e ele decidiu seguir a p de regresso ao pequeno quarto alugado prximo da embaixada de Frana. A meio do caminho, o suor era insuportvel, no o deixava respirar e continuar a andar. Sentou-se junto de uma fonte, de onde j no se levantou. Estava morto. O francs tinha sido envenenado. Os dois jovens florentinos desapareceram pelas estreitas ruas de Laterano e saltaram um muro coberto por uma camada de trepadeiras. Do outro lado esperava-os o cardeal Paluzzi. De fato, um deles, que era sacerdote, beijou-lhe o anel cardinalcio de joelhos em terra, enquanto da mo deslizava um pequeno pergaminho com uma cinta de seda vermelha, o Informi Rosso. O trabalho estava feito. No dia seguinte, enquanto a embaixada francesa ainda no tinha recuperado da notcia pela morte do jovem secretrio, o papa Clemente X nomeava seis novos cardeais e nenhum deles era francs. A partir desse momento, as relaes entre Frana e Roma, entre Lus XIV e o papa Clemente X, ficaram praticamente interrompidas. Clemente X morreu a 22 de Julho de 1676, mas antes ainda pde beatificar Pio V, o grande papa da reforma e fundador da Santa Aliana. Em Agosto, os cardeais fecharam-se em conclave para eleger um novo papa. Os melhores candidatos para ocupar o trono de So Pedro eram os cardeais Gregorio Barbarigo e Benedicto Odescalchi, os dois muito prximos do papa que acabava de falecer. Barbarigo negava-se a aceitar a tiara pontifcia e isso mesmo pde comunicar ao Colgio Cardinalcio. Para o cardeal Paluzzi isso significava livrar-se de um problema, j que Barbarigo se declarara por diversas ocasies contrrio aos mtodos utilizados pela Santa Aliana. Era claro que se chegasse a papa, as operaes da espionagem pontifcia seriam reduzidas mnima expresso num momento em que eram to necessrias, nessa Europa dominada por urna Frana catlica cada vez mais belicosa em relao a Roma. Apesar da oposio francesa, os cardeais votaram a favor de Odescalchi em 21 de setembro, que adotou o nome de Inocncio XI em honra do papa Inocncio X. Tal como Pamphili, o novo papa apoiaria durante os seus treze anos de pontificado a necessidade de utilizar os servios da Santa Aliana como um mal necessrio. Para isso, manteve na direo dos espies do papa o cardeal Paluzzi, mas afastando-o da Secretaria de Estado, dirigida pelo cardeal Cibo. Inocncio XI no reunia diretamente com Paluzzi, como fazia o seu antecessor, Clemente X, mas todos os assuntos relacionados com o servio de espionagem eram tratados na agenda do dia com o cardeal secretrio de Estado, Alderano Cibo. A poltica de Inocncio XI, e por conseguinte os principais cavalos de batalha da Santa Aliana, seriam as sempre conflituosas relaes com Frana e o Rei Sol, a luta contra o Turco e a esperana de o catolicismo chegar Inglaterra. Assim, os agentes do cardeal Paluzzi centrariam as suas misses em Frana e em Inglaterra. O papa Inocncio XI no estava muito disposto a continuar a tolerar as ingerncias de Lus XIV nos assuntos da Igreja e por isso decidiu enviar ao Rei Sol trs missivas em 1678,1679 e 1680, pedindo-lhe que renunciasse extenso do direito de regalias. Lus XIV pensou ento que a Coroa de Frana podia correr perigo em relao s obrigaes dos catlicos para com ela e por isso convocou uma reunio-do clero francs em 1680. Nesse encontro todos, menos os bispos, apresentaram as desculpas ao rei pelas palavras utilizadas por Inocncio XI nas prprias missivas e ratificaram a sua fidelidade Coroa. Um ano depois, o rei promoveu uma nova assembleia na qual reconhecia as regalias como um direito soberano. Os cardeais Alderano Cibo e Paluzzi aconselharam o papa a contra-atacar, dado que o monarca francs no ficaria por ali, como de fato aconteceu. A 19 de Maro de 1682, quando a corte se instalou no Palcio de Versalhes, Lus XIV aprovou os quatro artigos da declarao redigida por Bossuet, em que defende a independncia absoluta do rei de Frana quanto s questes temporais, a superioridade do Conclio de Constanza sobre o papa, a infalibilidade do pontfice condicionada ao consentimento do episcopado e a inviolabilidade dos antigos usos da Igreja anglicana. Para rematar a questo, ordenou o ensino dos quatro artigos em todas as escolas do pas. O papa Inocncio XI manifestou o seu desagrado pela posio dos bispos franceses perante o seu rei, em vez de terem sabido defender os direitos da Igreja. Em relao aos quatro artigos, preferiu no intervir, mas negou a instituio cannica a todos os que tinham assistido s reunies com Lus XIV. Em 1687, a conselho do cardeal Cibo, o papa nomeou arcebispo de Colnia o candidato imperial contra o proposto pela Frana e, por instigao do cardeal Paluzzi, aboliu ainda o direito de asilo nas embaixadas em Roma. Espanha e Veneza sujeitaram-se a essa ordem papal, mas no a Frana, e esta ltima medida provocaria uma guerra encoberta entre a Frana e os Estados Pontifcios por causa do chamado caso da rede Scipion. H dois anos, a Santa Aliana detectara a infiltrao na Secretaria de Estado de alguns agentes franceses. Os espies de Lus XIV eram trs religiosos que trabalhavam nos arquivos da Secretaria de Estado, em que muitos dos seus documentos classificados como Material delicado eram copiados e enviados por intermdio de um sistema de correios legao diplomtica francesa em Roma. O chefe dessa rede era conhecido como Scipion. Alderano Cibo convocou Paluzzi e ordenou-lhe que acabasse com a rede de espies franceses dentro do Laterano e que para isso utilizasse todos os mtodos necessrios. Paluzzi iria, de fato, servir-se de todos os meios ao seu alcance, como Cibo lhe tinha ordenado, implicando nisso os prprios monges da Ordem Negra. O primeiro a cair s mos da Ordem Negra foi um dos membros da rede Scipion. Na manh de 11 de Maio de 1687, dois agentes da Santa Aliana prenderam um escritor que trabalhava na Biblioteca Vaticana. Era um frade que se dedicava a copiar documentos da Secretaria de Estado para logo serem distribudos pelos diferentes membros da Cria. A Santa Aliana descobrira que alguns dos documentos, em especial os que se relacionavam com a Frana, eram preparados por esse escritor. A espionagem pontifcia contabilizou o nmero de cpias realizadas pelo frade e as que depois foram distribudas. Sempre que se tratava de um documento classificado como Material delicado, e relacionado com a Frana ou com Lus XIV, uma das cpias deixava de ser distribuda ou simplesmente desaparecia. Confiado este caso ao cardeal Paluzzi, o chefe da espionagem deu ordens aos monges da ordem negra para apanhar vivo o escritor. A 19 de Maio, o frade foi detido e enviado para a sede da espionagem papal onde foi interrogado. Depois de ser torturado, o espio de Scipion revelou o nome dos outros dois membros da rede que espiava para o rei Lus XIV em Roma. A 21 de Maio, o cadver torturado do frade foi encontrado, pendurado numa ponte sobre o Tibre, com um pequeno pano negro com duas faixas rubras cruzadas. O terrvel brao da Igreja tinha golpeado um inimigo, mas havia ainda mais espies por encontrar. Na tarde de 23 de Maio, quando os agentes da Santa Aliana se dispunham a prender um sacerdote que trabalhava s ordens do cardeal Alderano Cibo, ele pde escapar vigilncia e pedir asilo na embaixada de Frana. Aplicando a abolio do direito de asilo nas embaixadas em Roma decretada por Inocncio XI, seis monges da Ordem Negra, com a cara coberta, penetraram no palcio Farnese e levaram consigo o tal sacerdote. Interrogado pelos monges, apurou-se que por detrs do nome de cdigo de Scipion se escondia um monge que tempos antes tinha feito parte da Santa Aliana e havia sido recrutado pela espionagem de Lus XIV pela sua origem francesa. Scipion era filho de um cidado de Veneza e de uma mulher fiorentina, que fora educado na Frana de Mazarino. Parece que Scipion se especializou dentro da Santa Aliana na eliminao de inimigos da Igreja atravs de envenenamento. A 26 de Maio de 1687, oito membros da Ordem Negra entraram de espada em punho no quarto de uma hospedaria perto do palcio papal em Roma. Numa carruagem negra, com o emblema pontifcio nas portas, os cardeais Paluzzo Paluzzi e Alderano Cibo observavam a operao, mas antes tinham sido dadas ordens para que nas redondezas no houvesse nenhuma patrulha da guarda papal. Na verdade, no interessava que houvesse ali testemunhas sobre a eliminao de Scipion. Os primeiros monges subiam pela estreita escada quando na sua frente apareceu Scipion de espada na mo e em guarda. O combate durou pouco em face do nmero de atacantes, que obrigaram o espio de Lus XIV a retirar-se. Procurando fugir por uma pequena janela, caiu de vrios metros, onde o esperava um outro membro da Ordem Negra. Um dos oficiais cravou a espada no pescoo do espio que, a sangrar com grande abundncia, procurava levantar-se para continuar a lutar. Nessa altura, Scipion recebeu trs estocadas certeiras, uma das quais lhe cortou o corao em dois. E, antes de cair, estava j morto. O cardeal Paluzzi fez o sinal da cruz com a mo direita enluvada, fechou a cortina e a carruagem afastou-se. Uma vez mais os segredos da igreja ficavam a bom recato e protegidos dos olhares indiscretos. Os corpos de Scipion e do sacerdote arrancado da embaixada de Frana apareceram pendurados numa das pontes sobre o Tibre, como sinal para todos os cidados de Roma e estrangeiros que pusessem em dvida que a mo justiceira de Deus era comprida e que a Santa Aliana e a Ordem Negra eram os instrumentos prprios para a administrar. O incidente na embaixada de Frana com os agentes da Santa Aliana provocou graves reaes na corte de Paris. Lus XIV ordenou ao seu novo embaixador que entrasse em Roma em Novembro de 1687 escoltado por um regimento com grande aparato de armamento. O papa Inocncio XI excomungou o enviado do rei e no o recebeu em audincia. Em comeos de 1688, o papa, atravs do seu nncio em Paris, fez saber a Lus XIV que tanto ele como os seus ministros deviam considerar-se incursus (incorrer) em censuras eclesisticas. O rei Lus XIV, em pleno esplendor do poder, no se incomodou nada com as advertncias do papa e, como j fizera durante o pontificado de Alexandre VII, ordenou aos seus exrcitos a ocupao de Avignon e de Venassin. Ao mesmo tempo, a clara ansiedade pela chegada de um monarca catlico Coroa da Inglaterra ofereceu algum otimismo ao papa de Roma quase em finais do sculo XVII. Jaime II, catlico fervoroso e que ascendeu ao trono em 1685, enviou um embaixador ao papa Inocncio XI e permitiu o regresso dos jesutas. Foi nessa altura que a Santa Aliana espalhou um maior nmero de agentes por toda a Inglaterra. O cardeal Paluzzi sabe que mais tarde ou mais cedo a situao religiosa nas ilhas voltar normalidade, ou seja, religio protestante. Jaime pretendeu imitar o absolutismo de Lus XIV, apesar dos conselhos do papa em contrrio. A reao dos protestantes no se fez esperar. A sublevao foi atrasada, segundo informaram os agentes da Santa Aliana, na corte de Jaime, pelo fato de ele no ter filhos vares e as filhas estarem casadas com prncipes protestantes. Seria necessrio esperar que ele morresse; mas em 1686 a segunda mulher do rei deu-lhe um filho varo, o que abriu a possibilidade de uma dinastia catlica e autoritria. A sublevao foi levada a cabo e os protestantes ofereceram a Corte da Inglaterra a Guilherme III de Orange, casado com a filha mais velha de Jaime. A 5 de Novembro de 1688, o prprio Guilherme e as suas tropas desembarcaram em Inglaterra e em pouco tempo tomou conta do poder. Jaime II teve de se refugiar em Frana at sua morte e a derrota do catolicismo em Inglaterra ficou consumada at hoje. O papa Inocncio XI no foi testemunha disso, por ter morrido uns trs meses antes, tendo sido sucedido no trono de So Pedro pelo cardeal Pedro Ottoboni, que adotaria o nome de Alexandre VIII. Este papa, que s governaria dezasseis meses, cederia s presses do desptico Lus XIV at sua morte, a 1 de Fevereiro de 1691. O seu sucessor, o papa Inocncio XII, tornou-se no ltimo papa do sculo XVII, mas isso no significava que pudesse ter um pontificado tranquilo. A Europa estava submersa em guerras religiosas e polticas e Lus XIV continuava a manter ainda a sua influncia e poder, no apenas em toda a Frana, mas tambm no resto do continente, o que lhe permitia exercer o controle absoluto em face da poca de intrigas que estava a chegar.
6
poca de intrigas (1691-1721)
agora, sacerdotes, fao esta advertncia: eis que vou despedaar o vosso brao, lanar-vos esterco ao rosto-o esterco das vossas solenidades-e sereis atirados para longe juntamente com elas. Malaquias 2, 9
Aps a morte do papa Alexandre VIII a 1 de Fevereiro de 1691, foi convocado o conclave para eleger aquele que seria o ltimo papa do sculo XVII, que estava quase a chegar ao fim. Uma vez mais o cardeal Gregorio Barbarigo, como j tinha acontecido durante a eleio do papa Inocncio XI, tornou-se no mais firme candidato para ocupar o trono de So Pedro. Barbarigo era um homem piedoso, mas tambm um recalcitrante inimigo das operaes da Santa Aliana; tal como em 1676 o cardeal Paluzzi, que ainda mantinha o controle da espionagem pontifcia, no estava disposto a desfazer-se de um aparelho de segurana com o poder que tinha o servio secreto papal. De todos os conclaves do sculo XVII, o de 1691 foi o mais longo, com uma durao de cinco meses, entre 12 de Fevereiro e 12 de Julho. Os espanhis, os franceses ou os imperiais no estavam dispostos a votar em favor de Barbarigo. A chegada do calor a Roma fez com que os cardeais encontrassem um candidato de consenso, Antnio Pignatelli, que a 12 de Julho adotou o nome de Inocncio XII. Nascido no corao de uma das mais nobres famlias de Baris, o pai do novo papa era prncipe de Minervo e um magnata de Espanha. As suas relaes com a Cria Romana ajudaram-no a subir no seio eclesistico ate ocupar os cargos de vice-legado em Urbino, governador de Viterbo, nncio em Florena, Viena e Polnia e inquisidor em Malta. E durante esta ultima fase que Antnio PignateIIi mantm as mais estreitas relaes com os agentes da Santa Aliana e com o seu chefe, o cardeal Paluzzo Paluzzi. Nesse tempo, operava em Malta um comerciante irlands e protestante, William DeKerry. Nas ruas da ilha dizia-se que no era s um simples comerciante, mas tambm espio dos ingleses e contrabandista. Os galees da Marinha permitiam a livre passagem dos barcos de DeKerry a troco de informaes sobre as atracagens e as rotas dos navios que navegavam sob bandeiras inimigas ou de naes catlicas. Parece que o irlands subornava as autoridades do porto, que o informavam das rotas e datas de partida dos galees dos pases inimigos, bem como sobre as suas cargas. O inquisidor Antnio PignateIIi informou o secretrio de Estado e o servio secreto papal por uma carta ao cardeal Paluzzi. A Santa Aliana decidiu ento enviar cinco agentes para a ilha a fim de acabar com a rede montada por DeKerry. Os monges resolveram o assunto com o sequestro do oficial do porto de Malta e, sob a ameaa de o entregarem ao Santo Ofcio, confessou que recebia bom dinheiro por passar as informaes a DeKerry sobre o trfego porturio em que tambm estavam implicados vrios despachantes alfandegrios. Paluzzi decidiu acabar com o irlands como chefe da rede e isso mesmo ordenou aos seus agentes. Uma noite, quando DeKerry se dirigia a p para a casa do embaixador de Frana, quatro homens armados de espadas saram ao seu encontro. Minutos depois o corpo do espio e comerciante irlands era lanado s guas do Mediterrneo. Quando se soube da morte e desaparecimento de William DeKerry, a rede deixou de operar, os agentes da Santa Aliana abandonaram silenciosamente Malta e uma vez mais o brao comprido da Igreja atingia os seus inimigos. Foi ainda durante o pontificado de Inocncio XII que se atenuaram as ligaes com a Frana do rei Lus XIV. O primeiro passo foi dado pelo poderoso monarca ao anular a ordem de ensinar os quatro artigos gauleses nas escolas pblicas. Como resposta, o papa outorgou por fim a instituio cannica aos candidatos das sedes vagas, mas por sugesto do cardeal Paluzzi, que vivera toda a controvrsia no pontificado do papa Inocncio XI, o sucessor deste exigia a todas as hierarquias da Igreja de Frana uma carta em que manifestassem o seu sentimento, pelo menos de um modo geral, por tudo o que tinha acontecido. Os especialistas Javier Paredes, Maximiliano Barrio, Domingo Ramos-Lissn e Luis Surez, no Diccionario de los Papas y Conclios, asseguram que no se pode falar de uma rendio ao papa por parte de Lus XIV, uma vez que o decreto das regalias no foi revogado e os chamados quatro artigos gauleses, como no foram abolidos por Lus XIV, continuaram a ser ensinados nas escolas e nas universidades. Mas o papa Inocncio XII, com claras tendncias de inquisidor, havia de continuar com a cruzada contra os hereges, utilizando a Santa Aliana do cardeal Paluzzi como o brao comprido da f e um desses inimigos seria Charles Blount. A teoria do livre-arbtrio, que despontou no sculo XVI com a Reforma, no contribuiu apenas para a decomposio do protestantismo, mas deu ainda origem a pequenas seitas, tendo o desmo sido uma delas. Apesar de ser habitual mencionar como primeiro desta o Lorde Edward de Cherbury, que viveu em finais do sculo XVI, de Charles Blount, nascido em meados do sculo XVII, que existe a primeira documentao atravs do Diccionario Enciclopdico de Teologia Catlica, de Wetzer e Welth. Blount, no seu refgio ingls, distinguiu-se como um inimigo cada vez mais influente da Igreja de Roma atravs do desmo, que penetrava nas fronteiras dos Estados Pontifcios atravs de pregadores que de forma clandestina tentavam ganhar adeptos. Muitos deles seriam presos pelos membros do Santo Ofcio e, depois de serem torturados, confessaram-se seguidores de Charles Blount. O papa no se mostrava disposto a permitir semelhante heresia e por isso mesmo ordenou a Paluzzi que lhe pusesse termo. O velho cardeal optou pelo envio de trs monges da Ordem Negra a Inglaterra. Numa manh do ano de 1693, o corpo do polmico Charles Blount foi encontrado cado em sua casa com um tiro no peito. As autoridades explicaram que certamente Blount se tinha suicidado por no lhe terem permitido casar com a sua cunhada, que ele amava profundamente, e por causa da depresso sofrida deixara esta vida com um tiro no corao. Assim, com esta explicao, o caso foi encerrado e os monges de Paluzzi regressaram a Roma. Os ltimos anos do pontificado do papa Inocncio XII incidiriam no problema da sucesso Coroa espanhola. O rei Carlos II, que j a ostentava desde 1665, pediu conselho ao papa, que se pronunciou a favor do prncipe da Baviera,. Jos Fernando, de quatro anos. Filho do eleitor da Baviera, Maximiliano Manuel, e da arquiduquesa Maria Antnia, neta de Filipe IV, foi escolhido como sucessor por Carlos II em 1696 com a mediao de Mariana de Austria e do papa. A assinatura do Tratado de Haia, sob os auspcios de Lus XIV de Frana, entregava-lhe os reinos peninsulares, com exceo de Guipzcoa, as colnias na Amrica, Sardenha e Pases Baixos, mas os Estantes territrios ficavam para o arquiduque Carlos de Austria ou para o delfim de Frana. A notcia chegou a Espanha e Carlos II nomeou o pequeno. Jos Fernando como herdeiro universal de todos os seus Reinos Estados e Senhorios, sem permitir a renncia a nenhum deles. O cardeal Paluzzi aconselhou ento o papa a proteger a criana se queria que alguma vez pudesse reinar em Espanha. O chefe dos espies do pontfice sabia que mais tarde ou mais cedo o rei Lus XIV tentaria fazer qualquer coisa contra o herdeiro em benefcio do seu neto, Filip de Anjou. Paluzzi nunca chegou a ver confirmados os seus receios dado que morreu com setenta e cinco anos, a 29 de. Junho de 1698, em Ravena onde foi nomeado arcebispo emrito. Segundo a lenda, o chefe dos espies que ao longo de quase trs dcadas dirigiu os destinos da Santa Aliana nos papados de Clemente X Inocncio XI, de Alexandre VIII e de Inocncio XII, acabou por morrer envenenado por agentes ao servio de Lus XIV depois de um banquete. O cardeal Paluzzo Paluzzi Altieri Degli Albertoni teria ingerido uma forte dose de veneno ao comer um borrego, que parece ter sido preparado com folhas de helboro preto, uma planta muito txica que na antiguidade se usava para envenenar a gua ou as pontas das setas. Ningum na cozinha do cardeal provou os pratos que foram servidos na ltima e ovpara ceia do chefe dos espies. Poucos meses depois, nos primeiros dias de 1699 e cumprindo-se a profecia do cardeal Paluzzi, o pequeno Jos Fernando de Baviera ficou repentinamente doente. O tratamento prescrito no foi eficaz, a 5 de Fevereiro o seu estado de sade agravou-se de forma preocupante e na madrugada do dia 6 faleceu entre vmitos e convulses apenas com sete anos, o que permitiria a chegada dos Bourbons ao trono espanhol com Filipe V. Em muitas das cortes europeias circulou o rumor de que a criana tinha sido envenenada segundo instrues de Versalhes, mas, como no caso do cardeal Paluzzi, isso nunca ficou provado. Lus XIV estava disposto a tudo para colocar o seu neto como rei de Espanha, embora para isso tivesse que arrastar a Europa para uma nova guerra. A 27 de Setembro de 1700, morria Inocncio XII, aos oitenta e cinco anos, deixando como herana o problema da sucesso na Coroa de Espanha. O seu sucessor no trono de So Pedro seria aquele que deveria viver a chamada Guerra de Sucesso. As armas e as intrigas estavam j preparadas e Lus XIV tinha em Roma vrios cardeais prontos para o conclave que se adivinhava. Ao entardecer de 9 de Outubro, comeou o Colgio Cardinalcio, minado pelo sector francs, para eleger um novo papa. Do outro lado, encontravam-se os sectores hispano-imperiais e os zelanti. As conversas, discusses, negociaes e manobras polticas prolongavam-se at que a 19 de Novembro chegou a notcia da morte do rei Carlos II de Espanha. A partir desse momento, no s a ateno do conclave como a de todas naes do Mundo se centraram no Palcio Real de Madrid. Com a morte ou assassinato do pequeno Jos Fernando da Baviera, o Moribundo rei Carlos decidiu assinar um ltimo testamento em que ele, declarava que o seu trono passaria para o duque de Anjou, que era neto do poderoso Lus XIV de Frana. As naes da Europa receavam que o grande imprio espanhol casse nas mos de uma s dinastia e por isso se chegou a acordo com o propsito de os territrios serem divididos. O imperador Leopoldo I e o rei Lus XIV de Frana tinham j assinado um acordo em Viena, em 1668, em que estipulavam a diviso entre a Austria e a Frana dos territrios espanhis no caso de o rei Carlos morrer sem descendncia, como de fato aconteceu. Mas tambm entravam em jogo a Inglaterra e os Pases Baixos, depois de se terem unido sob um s rei, Guilherme III de Orange. A 3 de Outubro de 1700, enquanto se desenrolava o conclave que devia eleger o novo papa, Carlos II redigiu um ltimo testamento no qual deixava toda a herana e a Coroa ao segundo filho do delfim de Frana. Se Anjou no aceitasse, a Coroa voltaria para o arquiduque Carlos. Poucos minutos antes das trs da tarde de 1 de Novembro, morria o ltimo rei de Espanha da Casa de Austria. Sob a monarquia de Carlos II o imprio espanhol e os espanhis desejavam um rei que lhes trouxesse de novo os tempos de Filipe II, uma poca que na realidade no voltariam a viver. Face s nuvens negras que caam sobre a Europa e observando que tanto o sector francs como o hispano-imperial no chegavam a um acordo, o grupo dos zelanti resolveu lanar a candidatura do cardeal Juan Francisco Albani. Quando todo o conclave se mostrou de acordo com o candidato, o prprio Albani negou-se a aceitar a tiara. Antes de dar o sim sua nomeao, resolveu aconselhar-se com um prestigiado grupo de telogos. Por fim, a 23 de Novembro de 1700, o cardeal Albani passou a ser o papa Clemente XI. O novo pontfice, de cinquenta e um anos, era um homem jovial e muito culto, mas as suas decises polticas eram por vezes demasiado lentas, sobretudo nos tempos que corriam. Uma dessas decises que tardavam em chegar era, de fato, a nomeao de um novo chefe da Saritl Aliana. Desde o possvel assassinato do poderoso cardeal Paluzzo Paluzzi por agentes franceses, que os espies do papa tinham manifestado uma clara inatividade nas suas operaes, o que muito se apreciava nas atividades da Secretaria de Estado, que estava vaga desde a morte de Inocncia XII. Por exemplo, o conclave apenas se inteirou da morte de Carlos II em dezoito dias depois do seu falecimento. O papa Clemente XI no compreendeu, durante muitos anos de governo, a necessidade de um servio de informaes eficaz para os acontecimentos que assolariam a Europa nos meses seguintes. Muito embora outros papas tivessem utilizado a Santa Aliana como um peo importante no grande xadrez da poltica europeia, o novo pontfice no sabia ainda como, ou pelo menos em que medida, os espies do Vaticano o podiam ajudar a tomar uma deciso correta. O novo secretrio de Estado, o cardeal Paolucci, era um homem hbil e especialista em poltica, mas no acreditava muito como que a Santa Aliana podia ajudar o papa a tomar certas decises em matria de poltica externa. De fato, Paolucci estava enganado, como depois seria demonstrado pelos acontecimentos que se viriam a desenrolar. Filipe de Anjou, conforme o testamento de Carlos II, foi coroado a 8 de Maio de 1701, em Madrid, como novo rei, adotando o nome de Filipe V, mas o imperador ps em dvida a validade do testamento do rei e declarou que o seu filho, o arquiduque Carlos, tinha os mesmos direitos sucessrios de Filipe V. Clemente XI ofereceu-se como mediador na disputa para que no se desse a guerra entre o Imprio e a Frana. Nesses dias, o papa, por recomendao do cardeal Paolucci, nomeou o seu sobrinho Annibale Albani, especialista em diplomacia e muito prximo da Santa S, como responsvel em funes da Santa Aliana. Os agentes do papa sob a direo de um novo chefe comearam a dirigir as suas operaes para a Secretaria de Estado do cardeal Paolucci. As primeiras informaes dizem respeito aos aliados que procuram os mesmos grupos em caso de ruptura das hostilidades. A Santa Aliana afirma que Filipe V procura ter como aliados os duques de Mntua e de Parma, enquanto o arquiduque Carlos tenta fazer uma aliana com o duque de Modena. O papa Clemente XI envia ento uma carta aos trs 120 em que lhes recomenda uma estrita neutralidade. O cardeal Paolucci e Annjbale Albani sabiam que se algum deles se juntasse causa de um ou outro dos contendores, a guerra que se desencadeasse poderia afetar os Estados Pontifcios. Na poca, o duque de Modena tinha entre os seus conselheiros um Veneziano de nome Vicenzo Lascari, que o aconselhava a unir as suas foras s do imperador da Austria em defesa do arquiduque Carlos, no caso De guerra aberta com Filipe V. Lascari sabia que o duque poderia alcanar importantes privilgios territoriais se a causa de Carlos ganhasse a coroa de Espanha. Apesar das prprias advertncias do papa, o duque de Modena disse estar disposto a entrar na guerra em defesa da causa do arquiduque Carlost. Para o cardeal Paolucci e os Estados Pontifcios, as interferncias do veneziano Lascari eram demasiado perigosas e, portanto, ele tinha-se tornado num objetivo a eliminar. De fato, para as hierarquias prximas do pontfice, era muito mais perigoso que a guerra se abeirasse das suas portas do que a uma maior escala estalasse em todo o continente. O cardeal secretrio de Estado, Fabrizio Paolucci, decidiu antes tomar uma deciso mais transcendental e enviar uma carta ao conselheiro do duque de Modena com o objetivo de lhe fazer ver os perigos de fazer chegar a guerra que se desencadearia em breve mesmo at ao corao dos reinos italianos. Vicenzo Lascari preferiu ignorar a carta e prosseguiu na sua clara poltica de apoio causa do arquiduque Carlos. Finalmente, os agentes de Annibale Albani decidiram atuar e na noite de 11 de Janeiro de 1702 assassinaram Vicenzo Lascari quando este se preparava para subir numa carruagem. Nessa noite, o fiel conselheiro do duque de Modena tinha ido visitar uma cortes, que ao que parece dava informaes de todo o tipo aos agentes da espionagem pontifcia na cidade e foi mesmo por recomendao da Santa Aliana que essa mulher recebeu Lascari em sua casa. Quando ele saiu de madrugada para regressar a casa, os assassinos j o esperavam na rua de punhal em punho e com seis apunhaladas tiraram-lhe a vida. No dia seguinte, e depois de se conhecer a terrvel notcia do assassinato, o duque de Modena enviou uma carta ao cardeal Paolucci, secretrio de Estado de Clemente XI, a anunciar-lhe a sua disposio de se manter neutral na Guerra de Sucesso. Uma vez mais, a Santa Aliana tinha defendido os interesses da Igreja e do papa. Durante o ano de 1701, o rei Lus XIV, em nome do seu neto, o rei de Espanha, ocupara militarmente com xito as possesses espanholas em alia, como o ducado de Milo, os reinos de Npoles e d Siclia, a ilha 121 da Sardenha. E tinha tambm enviado tropas para as provncias a sul do Pases Baixos, com Bruxelas como capital. O resto das colnias, as Ilhas Canrias, todo o sul e centro da Amrica, as ilhas Filipinas e um bom nmero de fortificaes na costa norte de frica foram colocadas sob as ordens do rei Filipe V. O atual estado do reino era o mais lastimoso do mundo, porque o dbil governo dos ltimos reis provocara uma horrvel desordem nos assuntos: a justia foi abandonada, a polcia descuidada, os recursos esgotados, os fundos vendidos, o povo oprimido e perdido o amor e o respeito pelo soberano, dizia o duque de Escalona, marqus de Villena numa carta a Lus XIV em 1700. A guerra parecia j quase inevitvel quando um poderoso exrcito do imperador da Austria, sob o comando do general e prncipe Eugnio de Sabia-Carignan, entrou no territrio italiano. Em finais de Maio de 1702 os agentes da Santa Aliana na Catalunha informaram Roma de que Filipe V preparava uma esquadra de guerra constituda por navios franceses para se dirigir a Npoles. Lus XIV sabia que, em face da situao internacional, claramente belicista, a Itlia precisava de um sinal do novo rei. Nessa altura, a Frana v-se confrontada com uma aliana formada pela Inglaterra, pelas Provncias Unidas e pelo imperador. Lus XIV conta apenas com o apoio do duque da Baviera e do prncipe eleitor de Colnia. O desertor mais importante, e segundo dizem por recomendao do papa Clemente XI e da Santa Aliana, seria o prprio duque de Sabia. Em Outubro de 1701, enquanto a sua filha se casava com Filipe V, ele reunia as suas tropas e a sua fidelidade ao imperador da Austria para lutar contra o av do seu prprio genro. Em 1702, Guilherme III de Orange, que encabeara um ano antes a segunda Grande Aliana e interviera na Guerra de Sucesso espanhola, falecia a 19 de Maro, antes de poder participar ativamente na luta, tendo-lhe sucedido Ana Stuart, irm de sua esposa, como rainha da Inglaterra e da Irlanda. A chegada de Filipe V a Npoles no podia ser em melhor altura. Os napolitanos no gostavam nem do novo rei nem de Espanha e alguns meses antes a Santa Aliana tinha descoberto uma conspirao para assassinar o vice-rei. A conspirao dos nobres, como se chamou nessa altura, foi orquestrada por um grupo de nobres, na sua maior parte napolitanos, que apoiavam a sublevao a favor do arquiduque Carlos com a esperana de que, como agradecimento, lhes concedesse a independncia. Poucos dias antes de levar a cabo o atentado, o cabea da rebelio foi detido por agentes espanhis informados por agentes da espionagem papal. O problema dos espies espanhis da poca era que, na sua maioria, falavam italiano ou o dialeto, e por isso as suas principais fontes de informao eram os criados espanhis que trabalhavam nas grandes casas da nobreza da cidade. Os agentes do papa, em contrapartida, todos florentinos, sieneses, venezianos e mesmo napolitanos e, por conseguinte, as suas redes de informadores tinham um maior alcance. Apenas em trs dias dezanove pessoas envolvidas na conspirao foram presas e a maior parte delas foram executadas. A 15 de Maio de 1702, e quase ao mesmo tempo que Filipe V escutava a msica de Alessandra Scarlatti e a representao da pera Tibrio do mesmo autor, a Inglaterra, as Provncias Unidas e o Imprio declaravam guerra Frana, o que fazia supor assim o incio da Guerra de Sucesso espanhola. Os receios do papa Clemente XI tornavam-se numa realidade brutal. A partir dessa altura, Annibale Albani e os seus espies poderiam atuar nica e exclusivamente a favor da Santa Aliana, mantendo-se sempre na perigosa posio de neutralidade, que no fim acabaria por apresentar a fatura ao Sumo Pontfice de Roma. Antes de sair de Npoles, o rei enviou um embaixador a Clemente XI para apresentar os seus cumprimentos ao pontfice como um gesto de cortesia. A 2 de. Junho parte para o norte com vinte navios como escolta. A chegada a Milo foi realmente o primeiro contacto de Filipe V com a guerra. Enquanto isto se passava, os agentes da Santa Aliana informaram o papa acerca do estranho incidente no porto de Vigo. Alguns barcos ingleses e holandeses assaltaram de surpresa os galees espanhis que traziam a prata da Amrica. As cargas foram saqueadas e os barcos afundados, mas a realidade era outra. Em Fevereiro de 1702, um agente da Santa Aliana em Londres, chamado Tebaldo Fieschi, informou Albani de que os ingleses estavam a preparar uma grande operao naval contra o territrio espanhol. Talvez em Cdis ou em Vigo. Aos dezoito anos, Fieschi era um jovem elegante e um rico comerciante de sedas, que nascera em Siena. Desde a mais tenra infncia, este espio viveu perto do poder pontifcio pelo fato de seu pai ter servido sob as Ordens de diferentes papas. Fieschi negou-se a servir a Inglaterra atravs do sacerdcio at ser recrutado pelo cardeal Paluzzi para servir na espionagem papal. Os melhores clientes de Tebaldo Fieschi eram os nobres da corte de Guilherme de Orange e o prprio Fieschi tinha conhecido pessoalmente o rei. Uma das suas clientes era lady Rooke, esposa do almirante sir George Rooke. O italiano no era apenas o fornecedor de tecidos de lady Rooke, mas era tambm o seu amante, o que lhe permitia ter acesso a importantes documentos que o almirante Rooke guardava em sua casa nos arredores de Londres. Deste modo, conheceu os planos dos ingleses para sitiar a cidade de Cdis e informar disso o cardeal Paolucci, secretrio de Estado do papa Clemente XI. Curiosamente, Roma no informou Madrid sobre o ataque que se aproximava, talvez porque tal aviso traria para Roma o fim da neutralidade que o papa tanto defendia. Poucos meses depois, exatamente em Julho, uma frota conjunta anglo-holandesa, formada por meia centena de galees sob o comando de sir George Rooke, sitiava Cdis. A resistncia da guarnio da cidade trouxe srias dificuldades s tropas de Rooke que, castigadas pelo estado do mar, se retiraram e levantaram o cerco cidade passado um ms. O almirante Rooke preferiu no fazer uma anlise derrotista do incidente, como escreve no seu prprio dirio, Journal of Sir George Rooke, Admiral of the Fleet. Rapidamente o descalabro de Cdis foi esquecido face s notcias da iminente chegada de uma enorme frota espanhola vinda da Amrica, carregada de prata e com destino ao porto de Vigo. Os barcos espanhis seguiam fortemente escoltados por galees franceses, sob o comando do almirante Chateaurenaud. A primeira frota inglesa, enviada para fazer parte da vanguarda do ataque, est sob o comando do almirante sir Cloudesley Shovell e seguida pela frota de sir George Rooke, encarregado de desembarcar as tropas para assaltar os barcos espanhis a partir de terra. Uma vez mais Fieschi informou a Santa Aliana em Roma de que zarpou uma grande frota sob o comando de Rooke, mas que se desconhecia a sua atual situao. O que Tebaldo Fieschi sabia era que o objetivo de Rooke seria alcanar em certo ponto a Frota da Prata para tentar capturar o seu carregamento. A informao fora recolhida pelo siens durante uma das aventuras amorosas com lady Elizabeth Rooke, a esposa do almirante. Com a informao em seu poder, Paolucci, o cardeal secretrio de Estado informou o papa Clemente XI, que por sua vez ordenou que essa mesma informao fosse dada aos espanhis por intermdio dos agentes da Santa Aliana em Espanha. Os espies papais entregaram o relatrio je Fieschi ao cardeal Luis Manuel Fernandez de Portocarrero, primeiro ministro de Filipe V. A 23 de Setembro de 1702 travou-se o primeiro combate entre os navios franco- espanhis e os ingleses. Em poucas horas, Diversos galees com a sua carga dentro vo a pique, enquanto outros so capturados, a sua carga apreendida e posteriormente afundados. O que aconteceu em Vigo foi que, de fato, a frota do almirante Rooke Shovell afundou a Frota da Prata procedente da Amrica. Trs galees e treze navios foram incendiados e afundados, com exceo de seis que foram apreendidos pelo inimigo. A esquadra francesa de escolta foi tambm aniquilada, mas seis galees foram capturados e integrados na marinha inglesa. A segunda parte desta histria foi que os almirantes George Rooke e Cloudesley Shovell s encontraram nos pores dos navios cacau, pimenta e peles, mas nem uma ponta de prata. Segundo parece, com a informao dada pelo agente da Santa Aliana em Londres ao cardeal Portocarrero, os espanhis decidiram desembarcar no mais absoluto segredo toda a prata dos barcos e Lev-la para o Alcazar de Segvia, onde ficou a-bom recato e longe das mos inglesas. Em Fevereiro de 1703, Filipe V promulgou um decreto pelo qual declarava que, em face do criminoso ataque dos barcos de guerra aliados sua frota, decidiu que se confiscasse a prata que os navios afundados transportavam e se destinava aos comerciantes ingleses e holandeses. E ainda decidiu tomar posse de uma importante quantidade de prata que era destinada aos comerciantes e ao consulado de Sevilha. O monarca tudo fez para conseguir mais de metade da prata que trazia a frota atacada. De fato, Filipe V pde converter num esplndido e benfico negcio uma autntica tragdia, e o cardeal Portocarrero disse ento: O econmico salvou o poltico. Foi a espionagem papal que informou do incidente o marqus de LouviIIe, tutor do rei e que com o tempo estabeleceria importantes laos com a Santa Aliana. A relao entre o rei e o marqus de LouviIIe era muito estreita e o prprio Filipe V chegou a conceder ao seu tutor o comando do chamado Velho Trcio dos Morados. Com quase seis mil homens divididos em dois regimentos, um espanhol e outro valnio, que acompanhou o rei desde Barcelona, o Trcio foi destinado Guarda de Palcio, para assim substituir as antigas companhias de archeiros e alemes que exerciam esta funo no reinado dos Austrias. A partir desse momento, o marqus de LouviIIe torna-se no melhor espio do papa na corte do rei de Espanha. A Guerra de Sucesso espanhola estava quase a converter-se numa guerra mundial, no tanto pelos teatros de operaes, mas sim porque o conflito estava a provocar reaes econmicas e polticas desde o Peru a Moscovo, da Jamaica a Roma, de Paris a Madrid. Em Setembro de 1703, o segundo filho do imperador Leopoldo coroado rei de Espanha em Viena, aos dezoito anos de idade, e adota o nome de Carlos III. A 7 de Maro do ano seguinte, Carlos entra em Portugal seguido por uma esquadra inglesa sob o comando do almirante sir George Rooke e trezentos soldados alemes, quatro mil ingleses e dois mil holandeses. Filipe V, inteirado dessas notcias, decide atravessar as fronteiras e provocar uma guerra com Portugal. Nesse mesmo ano, Annibale Albani envia Tebaldo Fieschi, o seu melhor espio, a Espanha, com os mesmos interesses que tinha em Inglaterra: os de ser comerciante de sedas. Com diversas cartas de recomendao de diferentes nobres de Veneza e de Roma, Fieschi aproxima-se da princesa dos Ursinos, uma das mais fiis conselheiras da rainha Maria Lusa. A partir dessa posio to privilegiada, Fieschi manteve uma boa relao com Jean Orry, o enviado de Lus XIV de Frana para renovar os exrcitos de Espanha. Mas pouco depois comearam a chegar a Roma importantes informaes em matria militar. Nos seus textos, o espio da Santa Aliana informava que Orry e o rei de Frana estavam a propor a substituio do antiquado armamento, como o arcabuz ou a lana, pela espingarda francesa com baioneta. Ao mesmo tempo, os agentes da Santa Aliana em Frana informavam sobre muitos carregamentos de pistolas, espingardas, balas, fardas e tendas de campanha enviados para Espanha. Clemente XI no deseja fazer, desdelo incio da guerra, nenhuma aliana com os Bourbons nem mesmo com a Casa de Austria, mas a presso militar dos Habsburgo no norte de Itlia, porque ameaava a estabilidade dos Estados Pontifcios, obrigou-o a tomar partido por um dos contendores. A 15 de Janeiro de 1709, emitiu um comunicado em que reconhecia o arquiduque Carlos como Rei Catlico, mas sem questionar o direito de Filipe V coroa de Espanha. Com este reconhecimento de Rei Catlico das regies hispnicas ocupadas, abria- se assim uma nova frente em Espanha. O passo seguinte de Clemente XI seria o envio de um nncio para Barcelona, onde Carlos fora estabelecido a sua corte. A partir desse instante, havia em Espanha dois reinos e dois nncios, um em Castela e outro na Catalunha. Filipe V agiu e retirou o embaixador de Roma, expulsou o nncio em Castela e decretou o corte de relaes com o papa. A situao agravou-se ainda mais quando o decreto de Filipe V proibiu qualquer comunicao oficial com Roma ou qualquer transao financeira com os Estados Pontifcios, estabelecendo ainda um pagamento de impostos sobre alguma quantia em dinheiro que fosse enviada Igreja Catlica. Como ltima medida, o monarca estabeleceu o chamado pase rgio, pelo que qualquer documento procedente de Roma devia ser retido pela censura e saber se da sua prtica e execuo podia resultar algum inconveniente ou prejuzo para o bem comum ou para o Estado. A desesperada situao em Frana fez com que Lus XIV tivesse de retirar todas as suas tropas de Espanha. Na missiva do Rei Sol ao seu neto, Filipe V, fala da fome, da guerra e do transbordo dos rios. E este seria o primeiro passo para atingir a paz. Apesar de terem fracassado as negociaes de Geertruidenberg, o caminho para a paz era j quase. Em Abril de 1711, morria o imperador. Jos da Austria passados seis anos de reinado. Por no ter herdeiro, suceder-lhe-ia o arquiduque Carlos e, a partir desta altura, as armas deram lugar diplomacia. A 27 de Setembro de 1711, o arquiduque, que se tornou no imperador Carlos VI da Austria, saa de Barcelona, para no regressar mais, a bordo de um navio ingls sob o comando do almirante Rooke. Em Agosto de 1712, desapareciam todas as hostilidades entre Inglaterra, Holanda, Portugal, Frana e Espanha, e a 11 de Abril de 1713 era assinada a paz de Utrecht. A Catalunha permaneceu em guerra aberta contra o rei Filipe V at 11 de Setembro de 1714, data em que Barcelona se rendeu. Na mesma tarde, Tebaldo Fieschi, o espio da Santa Aliana, enviou um relatrio ao seu chefe em Roma, Annibale Albani, dizendo: Um exrcito franco-espanhol formado por trinta e cinco mil soldados de Cantaria e cinco mil de cavalaria combateu com dezesseis mil soldados e cidados. BenNick, ao comando das tropas de Filipe V, arrasou a cidade a Sangue e fogo. O ltimo captulo da guerra da Sucesso seria mesmo a rendio de Maiorca em. Junho de 1715 diante de um exrcito de dez mil homens chefiados pelo General DAsfald. Filipe V ordenou que poupassem as vidas dos sitiados e emitiu um indulto real para toda a cidade. Por fim, chegava a paz, mas o monarca, que no esqueceria nunca a rebelio da Catalunha e as suas trgicas consequncias, estabeleceria nesta regio a lei marcial durante alguns anos. Acabada a guerra e reconhecido Filipe V como rei de Espanha o cardeal secretrio de Estado, Fabrizio Paolucci, procurou obter uma aproximao atravs de Isabel de Farnesio, a nova esposa do monarca aconselhado pelo cardeal Alberoni. Clemente XI decidiu afastar Paoluccj da negociao e obrigou o cardeal Albani e retirar de Madrid todos os agentes da Santa Aliana, mas Tebaldo Fieschi permaneceu em Espanha em segredo, por ordem de Annibale Albani. A ascenso de Alberoni tinha sido meterica. Em 1702, o duque de Parma enviou-o em misso diplomtica a Louis-Joseph de Bourbon, que o contratou como secretrio. Vendme era o comandante-chefe do exrcito francs no norte de Itlia. Depressa a sua influncia na corte de Espanha se tornou uma realidade ao negociar o casamento entre o rei Filipe V e Isabel de Farnesio, e em 1717 ao mesmo tempo nomeado cardeal pelo papa Clemente XI e primeiro-ministro por Filipe V. O papa premiava assim as valiosas informaes recebidas pelo espio Alberoni, embora no fossem importantes para a Santa Aliana. O cardeal Albani pensava que as informaes sobre as tropas francesas recebidas em Roma eram falsas na maior parte dos casos. Por exemplo, o chefe dos espies papais recebeu um relatrio de Giulio Alberoni no qual ele informava sobre um possvel movimento de tropas francesas nos Estados Pontifcios. Pouco depois essa informao seria tida como falsa, uma vez que Vendme seria enviado nessa data para Espanha e ali tomar conta das tropas de Filipe V. Giulio Alberoni passou em poucos anos de um mero espio pouco importante da Santa Aliana no norte de Itlia para se tornar responsvel pela negociao da restituio dos direitos da Igreja Catlica em Espanha como primeiro-ministro de Filipe V, atravs de uma Concordata que em nada beneficiou Roma. Em Fevereiro de 1718, tal como Paolucci pde prever, as relaes entre Madrid e Roma voltaram a ser quebradas. O certo que Alberoni Albani demonstrou ser um pssimo espio e um mau primeiro-ministro. A sua m poltica externa e a derrota das foras espanholas durante a invaso franco-britnica foram decisivas para o cardeal Giulio Alberoni cair em desgraa a 5 de Dezembro de 1719.
7
O governo dos breves (1721-1775)
Ai de vs, escribas e fariseus hipcritas, que vos pareceis com os sepulcros brancos, formosos por fora, mas por dentro cheios de ossos de mortos e de podrido. Assim tambm vs por fora pareceis justos com os homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade. So Mateus 23, 27-28
Entretanto, em Roma, o conclave escolheu o sucessor de Clemente XI. A maioria do Colgio Cardinalcio tinha sido nomeada pelo falecido papa, e nas primeiras votaes Fabrizio Paolucci apareceu em posio de obter os dois teros necessrios dos votos para ser eleito papa. Para a Santa Aliana seria uma verdadeira oportunidade para estender os seus compridos braos se Paolucci fosse eleito. O cardeal Annibale Albani sabia que se o antigo secretrio de Estado de Clemente XI fosse eleito novo pontfice a espionagem viveria momentos de glria. Mas a alegria logo se tornou tristeza quando o cardeal Althan tornou pblico no conclave o veto imperial a Paolucci, em parte pelo seu papel durante a Guerra de Sucesso espanhola. Eliminado o poderoso cardeal Paolucci da corrida pelo papado, demoraram quase seis semanas e meia para escolher um novo candidato. Por fim, a 8 de Maio de 1721, foi proclamado papa o cardeal Miguel Angel Conti, com o nome de Inocncio XIII. Conti seria realmente um papa de transio, governaria apenas uns trs anos, mas antes de morrer daria luz verde quanto s represlias contra os jesutas, que haviam de endurecer nos pontificados seguintes. Os agentes da Santa Aliana na Asia, quase todos jesutas, tinham informado Roma sobre a atitude dos missionrios da Ordem na China que estavam a favor da permisso dos ritos chineses e catlicos. Inocncio III ordenou logo congregao De Propaganda Fide que enviasse uma carta de censura ao geral da Companhia. O geral dos jesutas defendeu os seus membros, afirmando que os missionrios se adaptaram na China s normas pontifcias e obedeciam s ordens do papa, mas seria este o primeiro sinal de uma grande tempestade que nos anos seguintes acabaria por cair sobre a Companhia de Jesus. Durante os trs anos em que Inocncio XIII ocupou o trono de So Pedro, as atividades da Santa Aliana quase desapareceram, em parte devido ao fato de o papa nunca ter nomeado um chefe da espionagem do Vaticano, e o mesmo ocorreria no papado seguinte. O cardeal Annibale Albani continuava a exercer o cargo de chefe do servio secreto Vaticano, embora sem poderes efetivos e apenas como um chefe em funes. O nico apoio que Albani tinha dentro do Vaticano era o cardeal Fabrizio Paolucci, que voltaria a ser favorito na corrida ao papado no conclave que se seguiria. Depois da morte do papa Inocncio XIII, a 7 de Maro de 1724, o conclave voltou a reunir-se em Roma. E de novo os candidatos foram os cardeais Piazza, apoiado pelos imperiais, e Paolucci, com o apoio de Filipe V. Por fim, os cardeais elegeram a 29 de Maio de 1724 Pietro Francesco Orsini, que optou pelo nome de Bento XIV. Avisado de que o anterior Bento XIII, conhecido como o Papa Lua, nunca tinha sido consagrado como papa, Orsini decidiu ento adotar o nome de Bento XIII. Trs meses antes, em Espanha, o rei Filipe V abdicava a favor de seu filho Lus. A 19 de Fevereiro de 1724, o prncipe das Astrias foi proclamado rei de Espanha aos dezassete anos. A partir dessa altura, o jovem rei Lus e a sua esposa, a rainha Lusa Isabel de Orlees, comeam a assumir as tarefas do governo. As primeiras expectativas que os espanhis tinham com a chegada ao trono de um rei espanhol depressa foram defraudadas. Na verdade, quem governava a partir do palcio de La Granja de San Ildefonso era Filipe V e todas as decises adaptados pelo rei deviam ser ratificadas por seu pai, uma vez discutidas com aquele que at ento fora o homem forte de Espanha, o marqus. Jos de Grimaldo. A 26 de Junho, Filipe V rene-se com o seu filho e a sua nora em La Granja. A rainha, apenas com catorze anos, mantm um comportamento insuportvel e indecoroso, porque quase sempre no usa roupa interior vestindo apenas uma camisa que deixa o corpo parcialmente mostra. O prprio marqus de Santa Cruz escreve a Grimaldo, dizendo que muitas vezes a rainha vista com dois italianos de forma indecorosa. Um deles talvez fosse Tebaldo Fieschi, o espio siens da Santa Aliana. Cansado pela conduta da esposa, Lus decide fechar Lusa Isabel no Alcazar at que ela prometa comportar-se como se impe. Foi posta em liberdade depois de sete dias de encerramento e os dois italianos, um deles Fieschi, foram expulsos de Espanha. Uma situao mais grave veio juntar-se aos problemas do rei Lus 14 de Agosto, de sbito, caiu doente e a 19 desse ms foi-lhe diagnosticada a varola. No dia 29, a febre alta f-lo delirar e, passados dois dias, aps um reinado de sete meses e meio, o jovem rei morreu. Filip V assim obrigado a assumir a Coroa de Espanha e abandonar o eu prazenteiro retiro no palcio de La Granja. Em Roma, o novo papa trouxe consigo as pessoas de confiana que com ele tinham colaborado nas dioceses de Benevento, Manfredonia e Cesena, e uma delas seria Niccolo Coscia, que foi seu coadjutor em Benevento. Tirando partido da relao com o Sumo Pontfice, Coscia exerceu durante anos um poder corrupto sem igual como secretrio privado do papa. Chamou a si indevidamente enormes somas de dinheiro, fazendo perigrar o oramento do Vaticano; manipulou em proveito prprio a sua aproximao com o papa; tentou manejar as relaes externas do Estado Pontifcio a seu favor e sobretudo utilizou os recursos da Santa Aliana para beneficiar reis e prncipes da Europa com a poltica eclesistica. Apesar da oposio maioritria de cardeais que odiavam Coscia, o papa Bento XIII nomeou-o cardeal e conferiu-lhe uma posio similar que em anteriores papados ocupavam os cardeais favoritos. Annibale Albani, que ainda mantinha poder na Santa Aliana, informou ento o cardeal Fabrizio Paolucci sobre os movimentos do cardeal Coscia para obter o controle e conhecer os documentos da Santa Aliana. O cardeal Albani recomendou mesmo ao papa Bento XIII que controlasse com mais cuidado as atividades do seu favorito. Coscia procurava penetrar na Secretaria de Estado de Paolucci e na Santa Aliana controlada por Albani, mas nem a um nem a outro ele se podia opor com facilidade. Paolucci dispunha de demasiado poder dentro do Colgio Cardinalcio fora afinal por duas vezes candidato a papa, enquanto Albani se ocupava de um departamento da Igreja no qual Bento XIII no tinha muito interesse em intervir. A situao tornou-se mais tensa quando o prprio papa acusou Paolucci, Albani e ainda outros cardeais de espalharem calnias contra o cardeal Coscia, mas tanto o secretrio de Estado como o chefe da Santa Aliana sabiam que o favorito do papa estava a sofrer presses de vrios monarcas europeus. A questo era que devia ficar bem demonstrada a implicao do cardeal Niccol Coscia nos casos de corrupo que lhe eram imputados. Albani decidiu ento ordenar a chamada Operao Iscariotes ern memria do apstolo que traiu Jesus Cristo, uma operao que consistia em introduzir troianos, os agentes da Santa Aliana que penetravam na organizao para espiar na secretaria dirigida por Coscia. Em Fevereiro de 1726, o cerco volta do cardeal Coscia comeou a apertar-se. Paolucci estava cada vez mais disposto a acabar com o corrupto secretrio do papa, custasse o que custasse. Coscia, sabendo que a Santa Aliana estava ao ataque, resolveu dar um sinal de aviso. Uma tarde o corpo do padre Enrico Fasano apareceu junto de uma ponte do Tibre. Algumas partes do corpo tinham sido amputadas durante a tortura a que tinha sido submetido. Fasano era um agente da Santa Aliana destinado por Albani Operao Iscariotes. A sua tarefa consistia em obter informaes sobre o pequeno exrcito de malfeitores que Niccol Coscia tinha recrutado com fundos do Vaticano no pior dos bairros pobres de Roma. Este bando especial era utilizado pelo corrupto cardeal como guarda de corpo na sombra e os seus elementos estavam encarregados de limpar qualquer rasto ou pista que ameaasse o seu poderoso chefe. No entanto, o que nunca se chegou a descobrir foi a implicao do secretrio de Bento XIII no assassnio de Fasano, mas a verdade que, aps esse ataque, Albani no esmoreceu no empenhamento de conseguir melhores informaes relativas aos casos de corrupo realizados por Coscia. O golpe seguinte do adjunto do papa foi contra o padre Lorenzo Valdo, um dominicano que trabalhava na secretaria pontifcia desde os tempos do papa Inocncio XII. Valdo tinha sido um agente menor da espionagem, mas a sua posio muito prxima de Coscia fazia dele um privilegiado aos olhos de Annibale Albani. Na noite de 9 de Junho de 1726, Valdo saiu do Palcio Pontifcio com uma carta com o timbre de Bento XIII, que devia ser entregue em uma morada de Roma, e o dominicano sabia que essa sua misso era quase sagrada porque levava nas mos uma mensagem pontifcia. Ao chegar do destinatrio da carta, bateu porta e esta ao abrir-se fez com que os homens o puxassem para dentro e ali o apunhalaram no pescoo. O de Valdo foi lanado nas guas do Tibre. A investigao levada a cabo pelo cardeal Albani demonstrou que certeza a carta que Lorenzo Valdo levava consigo estava em branco que algum muito prximo do papa Bento XIII, certamente o cardeal Coscia, tinha utilizado o selo pontifcio como astcia para a entregar ao dominicano. Trs dias depois do assassnio de Lorenzo Valdo, a 12 de Junho, o cardeal Fabrizio Paolucci morria misteriosamente, ele que foi por duas vezes candidato a papa, vinte e quatro anos secretrio de Estado e um dos melhores amigos que a Santa Aliana pde ter em toda a sua histria. O cardeal Annibale Albani estava sozinho frente ao cardeal Niccolo Coscia. Outra das operaes descobertas pela Santa Aliana levada a cabo pelo favorito do papa, em 1727, foi a de manipular as relaes da Igreja com Vittorio Amadeo de Sabia, rei da Sardenha, que teve como resultado a assinatura de uma Concordata. Como embaixador em Roma, Vittorio Amadeo enviou o marqus DOrmea, hbil e astuto diplomata que sempre soube obter bons privilgios da parte do cardeal Coscia. Um desses privilgios foi o de permitir a Vittorio de Sabia a apresentao de candidatos a cardeais, o veto para os bispos nomeados para a sua regio e ainda o direito de representao de todas as igrejas, catedrais, abadias e priorados. Ao que parece, Niccolo Coscia conseguiu que o papa Bento XIII assinasse o decreto e assim o corrupto cardeal recebeu de Vittorio Amadeo de Sabia um importante nmero de terras como propriedade na regio de Piemonte. Outro dos conflitos gerados por Coscia seria com a comunidade judaica de Roma. Entre 1634 e 1790, mais de dois mil judeus de Roma converteram-se ao catolicismo e o papa Bento XIII batizou vinte e seis mil deles. Essas converses foram seguidas de fogo-de-artifcio e procisses religiosas, enquanto nos guetos os judeus eram reduzidos ao silncio pelo exrcito especial de Coscia. Se algum deles era encontrado com um archote nos funerais ou a colocar pequenas pedras nas campas, os guardas de Coscia ou do papa estavam autorizados a aoit-los. Os rufies do cardeal Coscia montavam as suas tendas pelas ruas de Korria e alguns deles espalharam mesmo a lenda de que se um catlico conseguisse converter um herege podia assim ganhar um lugar no paraso. Durante os meses seguintes, um elevado nmero de crianas judias foram arrancadas de suas casas e batizadas fora em fontenrios com a gua da chuva. Todos estes acontecimentos se passavam, suposta, mente, sem o conhecimento do papa Bento XIII. Em princpios de 1730, a sade do papa compIicou-se e a febre obrigou-o a ficar de cama, at que a 21 de Fevereiro desse ano acabaria por morrer, com oitenta e dois anos de idade. O melhor historiador sobre os papas, Luis von Pastor, tinha razo quando afirmava que no basta ser um bom monge para ser um bom papa e no caso de Bento XIII esta regra cumpria-se na perfeio. O seu pontificado foi mais religioso do que poltico e essa foi a razo pela qual se pde impor na cpula da Santa S um homem como o cardeal Niccol Cosciat. O conclave que se realizou aps a morte do papa durou cerca de cinco largos meses, desde 6 de Maro at 12 de. Julho. Como nenhum dos participantes se mostrava bem forte dentro do Colgio Cardinalcio, ningum podia impor um candidato. A chegada do calor e a morte de vrios cardeais fizeram com que o cardeal Alvaro Cienfuegos, do partido imperial, se unisse aos que apoiavam a candidatura do cardeal Corsini, que a 12 de Julho de 1730 foi eleito papa e adotaria o nome de Clemente XII. Com setenta e oito anos, o novo pontfice ainda conservava a sua capacidade e mesmo j quando era regente da Chancelaria e clrigo da Cmara Apostlica demonstrara um grande talento para se manter neutral nas duras lutas intestinas dentro da Igreja e da Cria. Lorenzc Corsini tinha vvido plenamente as duas vidas, a civil e a religiosa, o que muito o ajudaria na difcil tarefa a que se tinha imposto depois de se eleito como Sumo Pontfice. A primeira medida adotada, a 24 de Julho de 1730, foi pedir ao cardeal Albani a sua demisso de responsvel pela espionagem pontifcia O papa Clemente XII acusava Albani de no ter sabido defender todos os interesses da Igreja como chefe da Santa Aliana. Mas o papa tambm considerou inepta e ineficaz a Operao Iscariotes em que tinham perdido a vida os agentes Enrico Fasano e Lorenzo Valdo. Chegava agora a vez do cardeal Niccol Coscia. Antes de Bento XIII falecer, Coscia e os seus amigos fugiram de Roma, mas quando chegou s portas da cidade a Guarda Sua proibiu o cardeal passar uma vez que ele devia participar no conclave para eleger um sucessor daquele que tinha sido o seu protetor. Curiosamente, numa das votaes desse conclave, apareceu o nome Niccolo Coscia num dos boletins de voto, o que provocou os protestos ao resto do Colgio Cardinalcio. O primeiro passo do papa Clemente XII contra o cardeal Coscia foi a criao de quatro tribunais eclesisticos com o objetivo de julgar o corrupto cardeal e a sua obra. O primeiro deveria julgar o prprio cardeal Niccolo Coscia; o segundo, examinar todo o ciclo seguido por Coscia at se converter no homem de confiana do papa, para que tal no voltasse a repetir-se; o terceiro, estudar todos os casos de privilgios conseguidos por Coscia para os prncipes da Europa, e o quarto seria para analisar a situao das finanas da Cmara Apostlica e apurar todas as quantias malbaratadas pelo cardeal Coscia. Ao ver-se assim perseguido, o cardeal pediu logo a proteo do imperador Carlos VI, com a inteno de que este ordenasse a paralisao do processo. Ao inteirar- se disso Clemente XII ratificou a abertura do julgamento contra Niccol Coscia. O cardeal fugiu de noite e refugiou-se em Npoles, mas teve de regressar aos Estados Pontifcios ao receber uma dura carta escrita pelo prprio papa. Com Niccol Coscia foram tambm julgados o seu irmo Filippo, bispo auxiliar de Targa, e o cardeal Francesco Fini. Parece que Fini estava encarregado de revelar a Coscia os atos realizados pelos agentes da Santa Aliana e pelo seu chefe, o cardeal Annibale Albani, contra o corrupto cardeal. Francesco Fini tinha sido colocado na Secretaria de Estado e nela atuou como uma espcie de homem de confiana do falecido cardeal Fabrizio Paolucci e mesmo como correio secreto entre este e Albani. O processo ficou concludo a 22 de Maio de 1733. Os dezesseis cardeais que faziam parte da comisso aprovaram por unanimidade a condenao de Niccolo Coscia, que seria ratificada a 25 de Maio, trs dias depois do veredicto, pelo Sumo Pontfice. Todos os bens do cardeal Coscia foram confiscados e distribudos pelos pobres. O corrupto devia Pagar aos cofres da Igreja e de Roma a quantia de cem mil escudos pelos danos causados. Era ainda condenado na perda de todas as honrarias e cargos eclesisticos e sem direito de voto nos prximos conclaves. Por ultimo, foi-lhe imposta uma pena de dez anos de priso a cumprir numa Cela do Castelo de San Angelo. Cumprida essa condenao, o papa Clemente XII absolveu-o da censura e restituiu-Ihe o direito de voto no conclave. Reintegrado na II dignidade cardinalcia, Niccol Coscia afastou-se para Npoles, onde morreu a 14 de Setembro de 1755, inteiramente s e esquecido. Apesar da boa sade do papa e passados dois anos de pontificado, Clemente XII comeou a ter problemas de viso at acabar por ficar completamente cego, sendo necessrio guiar-lhe a mo para que pudesse assinar os documentos. Continuou ainda a ocupar-se dos assuntos do pontificado, delegou grande parte das questes de Estado nas mos do seu sobrinho, Neri Corsini, que tinha sido elevado prpura cardinalcia a 14 de Agosto de 1730. Corsini tomaria as rdeas da Santa Aliana depois da destituio do cardeal Annibale Albani. Com Corsini, o servio secreto Vaticano dedicou-se perseguio religiosa dentro da Igreja e da Maonaria, que se imiscura nas questes polticas nos poucos anos em que as relaes com Filipe V estiveram de fato deterioradas. A constante passagem das tropas espanholas pelo Estado Pontifcio, os recrutamentos forados e a prpria recusa do papa em conceder a entrega do reino de Npoles a Carlos de Borbn, filho de Filipe V, desembocou numa nova ruptura entre Madrid e Roma. Essas relaes apenas se voltariam a estabelecer em 1737 com a assinatura de uma Concordata, na qual, como ponto importante, Clemente XII concedia a entrega de Npoles a Carlos de Bourbon. Passado um ano, e depois de ter recebido um importante relatrio da Santa Aliana sobre a cada vez mais ameaadora Maonaria dentro da Igreja Catlica, o papa decidiu conden-la atravs da bula In Eminenti de 28 de Abril de 1738. Nesse texto, Clemente XII proibia todos os seus sbditos de pertencerem Maonaria ou assistirem s suas cerimnias sob pena de excomunho. Para o Sumo Pontfice, a Maonaria impedia que qualquer pessoa se aproximasse da religio de uma forma plena e antepunha a sua lealdade a uma sociedade secreta mais do que a Deus. O primeiro grande relatrio sobre a Maonaria foi redigido pela Santa Aliana em dezembro de 1733 e deu origem a que a 14 de Janeiro de 1734 o papa Clemente XII aprovasse uma nova Constituio do Estado Pontifcio, na qual se proibia a todos os cidados de participar nos rituais manicos sob pena de morte e confiscao dos seus bens. A nova lei ordenava aos religiosos que denunciassem todos os rituais e quem os praticava aos magistrados eclesisticos. O papa seguinte, Bento XIV, com a bula provida de 18 de Maio de 1751, ratificaria a condenao de Clemente XII. Tambm Pio VII em 1814, leo XII em 1825 e Pio IX em 1865 condenariam a maonaria e os seus rituais. O papa Leo XIII, em 1884, com a encclica Humanum Genus, rituais-cristos em relao ao avano da seita secreta chamada maonaria. A 6 de Fevereiro de 1740, o papa Clemente XII morria aos 87 anos, o que justificava, a abertura de um novo conclave. O cardeal Prspero Lambertini tinha fama de ser um importante especialista Direito Cannico e era muito considerado pelos restantes cardeais, mas no conclave que se iniciou a 14 de Fevereiro no aparecia entre os mais favoritos. A verdade que se viveria um dos conclaves mais longos de toda a histria da Igreja Catlica perante o poder das vrias faces e das claras divises existentes dentro do Colgio Cardinalcio. O setor francs estava ligado ao sector austraco; o sector espanhol ao sector napolitano, toscano e sardenho; o cardeal Neri Corsini, chefe da Santa Aliana, estava frente dos cardeais nomeados por seu tio, o papa Clemente XII. Mas tambm as diversas faces se dividiam em duas, os zeianti, que desejavam um papa intransigente e firme na defesa dos direitos da igreja, e os que se mostravam a favor de um pontfice mais conciliador e mais diplomata. As votaes e escrutnios repetiam-se uma e outra vez sem nenhum resultado positivo, at que algum apresentou a candidatura do cardeal Prspero Lambertini. Seis meses depois de se ter iniciado o conclave, Lambertini foi eleito papa na manh de 17 de Agosto de 1740 e adotaria o nome de Bento XIV. A primeira medida tomada pelo Sumo Pontfice foi a da nomeao do sbio cardeal Silvio Valenti como secretrio de Estado e a ratificao no cargo de chefe da espionagem papal do cardeal Neri Corsini. Bento XIV passaria histria mais como o papa das Concordatas do que como uma figura poltica. Desde o primeiro ano do seu governo, apressou-se a resolver as questes com outros estados que os anteriores papas tinham deixado pendentes. Foi estabelecida uma nova Concordata com os reinos da Sardenha, de Portugal e de Espanha, e tambm se fecharam as difceis Concordatas com o reino de Npoles e a Lombardia austraca. Durante este tempo, os agentes da Santa Aliana permaneceram inativos ou como simples observadores polticos s ordens do cardeal Valenti. A inatividade da espionagem papal fez, por exemplo, que a Santa Aliana recebesse a notcia da morte do rei Filipe alguns dias depois dela ter ocorrido. A morte de Filipe V deu-se a 9 de Julho de 1746. Como era normal, o rei tinha estado reunido no bom retiro com os seus ministros durante a noite e retirara-se para dormir s sete e meia da manh. por volta da uma e meia da tarde, Filipe V disse rainha que sentia vontade de vomitar, mas o seu mdico no estava no palcio. Em poucos minutos o pescoo comeou a inchar, tal como a lngua. Ao tentar erguer-se, cai de costas na cama. Estava morto. A inesperada morte do rei, aos setenta e dois anos, tinha sido um consequncia da deteriorao fsica e mental do prprio monarca, escreveu o historiador Henry Arthur Kamen na sua biografia Philip VofSpajn. The King Who Reigned Twice. De fato, Filipe V no se lavava desde h pelo menos uns quatro meses e o seu estado era de tal ordem que, ao tentarem preparar o corpo, os criados arrancavam com as esponjas pedaos de pele. Por ltimo, amortalhado em roupas de ouro e prata, seria sepultado oito dias aps a sua morte, a 17 de Julho, na igreja de San Ildefonso, em La Granja. O prncipe das Astrias seria proclamado rei de Espanha e reinaria sob o nome de Fernando VI. Acerca das atividades da Santa Aliana ao longo dos dezoito anos de pontificado de Bento XIV realmente sabe-se pouco. Talvez esta situao se deva ao fato do servio de espionagem papal contar nas suas fileiras, desde as prprias origens, com um elevado nmero de jesutas, uma Ordem com a qual o Sumo Pontfice no simpatizava muito. Seria Bento XIV que daria luz verde para acabar com a Companhia atravs da ordem dada ao cardeal Saldanha, arcebispo de Lisboa, que consistia em examinar e estudar as atividades dos jesutas portugueses, cedendo assim s presses do ministro marqus de Pombal. Bento XIV morreria a 3 de Maio de 1758, com oitenta e trs anos de idade. O conclave iniciou-se a 15 de Maio, doze dias depois da morte do papa anterior. Surgiram duas tendncias na votao, os zeianti e o partido das coroas, que desejava uma poltica continuadora da do papa Bento XIV. Por sua vez, os cardeais Corsini e Portocarrero apoiavam Cavalchini, que a 28 de Junho esteve prestes a ser eleito papa pela diferena de um voto. O cardeal Rodt, representante da corte imperial, e o cardeal Spinelli decidiram lanar a candidatura do cardeal Rezzonico, que seria eleito a 6 de Julho de 1758. Cario Rezzonico, que adoptou o nome de Clemente XIII, nascera em Veneza, mas a verdade que no tinha talento nenhum para a poltica ou para a diplomacia. Para suprir este defeito, o papa nomeou o cardeal Torrigiani como secretrio de Estado, que era um homem amigo dos jesutas e muito Autoritrio. De novo sob este pontificado tornou-se mais latente a guerra aberta contra a a Companhia de Jesus, o que provocou a quase total inatividade da Santa Aliana. Os monarcas da poca, Fernando VI em Espanha, Jos I em Purtugal, Frederico II na Prussia, Leopoldo na Toscnia, Jos II na Austria, Carlos III, primeiro em Npoles e depois em Espanha, receiam cada vez mais o influente poder da Ordem. Os seus ministros acusam os jesutas do ensino conservador, da aguerrida defesa da interveno da Igreja nos assuntos polticos e, sobretudo, a sua clara dependncia da Santa S. O fim da Companhia de Jesus iniciou-se a 13 de Setembro de 1758. numa madrugada, o rei dom Jos I de Portugal regressava incgnito ao palcio depois de ter passado a noite com a marquesa de Tvora, que era sua amante. Quando a carruagem diminuiu a sua marcha num caminho estreito, foram disparados vrios tiros sobre o rei. Num primeiro instante, pensou- se que o ataque tinha sido um ato do prprio marqus de Tvora, rodo de cimes pela relao da esposa com o rei. Mas, pouco a pouco, a investigao levada a cabo por Sebastio Jos de Carvalho e Melo, marqus de Pombal e primeiro- ministro do rei, demonstrou que Tvora, o crebro do atentado, no fora levado por cimes, mas antes por motivos polticos. Desde h anos tanto dom Jos I como o seu primeiro ministro haviam estabelecido a monarquia absolutista e tinham confinado os nobres a simples espectadores da poltica, sem terem voz nem voto. A 12 de Janeiro de 1759, o marqus de Tvora e ainda mais onze nobres foram julgados, condenados morte e executados por tentativa de regicdio. Pombal demonstrou durante o julgamento que alguns dos doze condenados mantiveram uma estreita relao com a Santa Aliana, a espionagem papal, e todos eles com os jesutas. Na sentena diz-se que o duque de Aveiro, sob o propsito de recuperar a perda de influncia dos nobres na corte, acordou com os jesutas que assassinar o rei era pura e simplesmente um pecado venial. A 19 de Janeiro, um decreto real ordenava a expulso dos jesutas bem como a confiscao de todos os seus bens nos territrios da Coroa. O papa Clemente XIII recebeu a notcia oficial no dia seguinte. Os permanentes protestos da Santa S junto do governo de Lisboa levariam expulso automtica do nncio pontifcio a 15 de Junho de 1760. A perseguio contra os jesutas estava aberta em toda a Europa e a Santa Aliana viveria momentos de intranquilidade por no saber o que fazer ou a quem informar. O papa acusava o servio de espionagem de o no ter informado sobre as operaes que estava a levar a cabo o padre Lavalette, enquanto os espies da Santa Aliana negavam qualquer responsabilidade, dizendo que desde o comeo do pontificado de Bento XIV os agentes foram reduzidos e, portanto, os tentculos da Santa Aliana passaram a ser mais diminutos ou quase amputados. O terceiro ato e final da tragdia dos jesutas chegaria em 1767, exatamente a 27 de Maro, quando aps o motim de Esquilache o rei Carlos III, que sucedera a seu meio-irmo Fernando VI depois da morte deste em 1759, decretara a sua expulso de todos os seus domnios e ndias, Ilhas Filipinas e outras adjacentes () e que se ocupem todas as temporalidades. A parte mais afetada por esse golpe do monarca espanhol seriam as misses, mas tambm uma das mais vastas redes de informaes da Santa Aliana no estrangeiro. Quase cerca de dois mil jesutas foram obrigados a abandonar as misses. Seguindo o exemplo portugus, francs e espanhol, o gro-mestre de Malta assinou tambm a ordem de expulso da Companhia e dos seus membros a 22 de Abril de 1768 e comunicou ao papa que era obrigado a proceder assim em virtude dos seus compromissos com o reino de Npoles. Nesse mesmo ano, o ducado de Parma adoptou a mesma atitude contra os jesutas. Os protestos formais de Clemente XIII e as bulas contra a medida fizeram com que as tropas francesas ocupassem Avignon e o condado de Venaissin; Npoles ocuparia as cidades pontifcias de Benevento e de Pontecorvo; Parma ameaava o papa com a invaso do Estado Pontifcio se no retirasse as bulas e as condenaes. Em Janeiro de 1769, os embaixadores de Espanha, Frana e Npoles em Roma pediam de modo formal ao papa Clemente XIII a total eliminao da Companhia de Jesus. O papa preparou-se para a resistncia, mas dentro de poucos dias ele morreria vtima de uma apoplexia e o papa seguinte, Clemente XIV, poria um ponto final na questo. O conclave de 1769 que se seguiu morte de Clemente XIII foi, sem dvida, o mais politizado da histria do papado. Durou trs meses, nos quais foram permanentes os confrontos, no dos cardeais que faziam parte do conclave, mas dos embaixadores das cortes catlicas, que eram verdadeiros rbitros da poltica eclesistica da Santa S, porque todos desejavam um papa que fosse muito fcil de manipular e talvez o papa Clemente XIV o pudesse ser. A questo no era eleger um bom pontfice especialista em Direito Cannico nem um poltico hbil ou um avisado diplomata. O que na verdade se procurava era um cardeal de fraco carcter e que como papa se declarasse abertamente inimigo dos jesutas. O partido a favor dos jesutas era liderado pelo cardeal Torrigiani, enquanto o partido contrrio se mostrava comandado pelos cardeais espanhis Francisco Sols e Buenaventura Spnola de la Cerda e o cardeal francs De Bernis. Por fim, aps um cansativo conclave cheio de intrigas e presses, acabou por ser eleito papa, a 19 de Maio de 1769, o cardeal Antnio Ganganelli, sob o nome de Clemente XIV. Mas, como escreve o investigador Michael. J. Walsh na sua obra The Conclave: A Sometimes Secret and Occasionally Bloody History of Papai Elections, a verdade que existiu um pacto dentro do conclave para eleger o cardeal Ganganelli a troco de este ordenar a dissoluo dos jesutas uma vez consumada a sua eleio. Em 1848, durante o pontificado de Pio IX, a Santa Aliana divulgou um pequeno papel que Ganganelli (o papa Clemente XIV) tinha escrito durante o conclave de 1769, em que se juntava ao partido dos anti-jesutas. Curiosamente, no dia seguinte, o cardeal foi eleito papa. Mas o cardeal De Bernis recusou sempre a existncia de qualquer tipo de intriga poltica no conclave que conduziu Ganganelli ao papado. Como primeira medida, o papa afastou Torrigiani da Secretaria de Estado, que seria substitudo pelo cardeal Pallavicini, ao mesmo tempo que ordenava a total depurao dos servios de espionagem da Santa S face a qualquer infiltrao de algum membro dos jesutas. De fato, o que o papa Clemente XIV desconhecia era que o ncleo principal de agentes livres e informadores colocados nos maiores centros de poder da Europa pertenciam Companhia de Jesus. A 21 de Julho de 1773, Clemente XIV assinava o breve Dominus ac Redemptor, que suprimia a Companhia de Jesus. No documento, que s foi dado a conhecer ao padre Ricci, geral da ordem, a 16 de Agosto, podia ler-se: Extinguimos e suprimimos a sbdita Companhia, anulamos e revogamos os seus ofcios, ministrios, administraes, casas, escolas, colgios, hospcios (), estatutos, costumes, decretos, constituies. () E do nosso entendimento e vontade que os sacerdotes sejam considerados como presbteros seculares. Era realmente humilhante ver como a prpria Guarda Pontifcia fazia valer a nota do papa Clemente XIV; entravam e revistavam todos os documentos da ordem nas prprias casas dos jesutas. A 23 de Setembro, o geral padre Lorenzo Ricci e os seus mais fiis colaboradores foram escoltados at ao castelo de SantAngeIo em Roma, onde deveriam ficar detidos. As restries eram to severas que o prprio Ricci apenas soube da morte do seu secretrio Cornolli passados seis meses, quando afinal eram vizinhos de cela. Enquanto isto se passava, a maior parte dos operacionais da Santa Aliana ficava reduzida sua mnima expresso. A justia exigiu que Lorenzo Ricci e os seus companheiros fossem postos em liberdade, mas na aparncia nada se fez por receio de que os jesutas mesmo dispersos se reunissem volta do seu antigo chefe para reconstrurem a sociedade no seio do catolicismo. Como recompensa pelo trabalho realizado contra os jesutas, Clemente XIV conseguiu a restituio do Estado Pontifcio de Avignon, Venaissin, Benevento e Pontecorvo. Depois da supresso da ordem dos jesutas, o papa s viveria mais catorze meses, pois morreu a 21 de Setembro de 1774; mas a Santa Aliana estava disposta a dar um ltimo golpe em pleno pontificado de Pio VI, sucessor de Clemente XIV. Com a morte do rei dom. Jos I de Portugal a 24 de Fevereiro de 1777, o marqus de Pombal foi obrigado a demitir-se do cargo e o at ento primeiro- ministro retirou-se para as suas terras em Oeiras, mas a verdade que a Santa Aliana no permitiria que o marqus de Pombal, o grande inimigo dos jesutas, ficasse sem castigo. No discurso do cavaleiro Francisco Coelho da Silva durante a coroao da rainha dona Maria I de Portugal, na praa de Lisboa, ele atreveu-se a declarar: Portugal tem ainda abertas as feridas que lhe provocaram o despotismo cego e sem limites e sem limites desse ministro [Pombal] agora afastado. Segundo parece, agentes livres da Santa Aliana relacionados com os jesutas fizeram chegar de forma misteriosa aos juizes do reino um amplo relatrio com provas acusatrias contra o marqus de Pombal. O documento de vinte e oito pginas deu lugar abertura de um processo contra o antigo ministro. A 11 de. Janeiro de 1780, Sebastio Jos de Carvalho e Melo, marqus de Pombal e antigo primeiro- ministro do rei, foi declarado culpado de corrupo e de enriquecimento ilegal custa da Coroa e condenado a uma pesada pena de priso. Mas a rainha dona Maria, depois je conhecer a sentena, a 1 de Janeiro de 1781, concedeu o indulto ao acusado pela sua j avanada idade. O marqus de Pombal morreria a 18 de Maio de 1782 abandonado por toda a gente. Com a morte de Clemente XIV, a situao da Santa S tinha cado numa total confuso. Entre os cardeais havia muitos, os zelanti, que se mostravam descontentes com o ineficaz e quase submisso domnio pelas coroas da Europa a que Ganganelli conduzira a Igreja, mas os Bourbons e os seus fiis aliados no continente estavam decididos a no alterar a sua linha poltica em relao Igreja e ao Pontificado. O futuro da Santa Aliana parecia demasiado negro nesses anos, que seriam testemunhas de revolues e de ascenses e quedas das guias.
8
A ascenso e queda das guias (1775-1823)
Senhor, Senhor, no profetizamos em teu nome e no soltamos demnios em teu nome e fizemos milagres em teu nome? () Afastai-vos de mim, fazedores de iniquidade. So Mateus 7, 22-23
A 5 de Outubro de 1774 reuniu-se o conclave para eleger o sucessor do polmico Clemente XIV. De novo, os zelanti, os borbnicos, os franceses e imperiais situavam-se, todos eles, em grupos diferentes. Paris e Madrid apoiavam o cardeal Pallavicini, o antigo secretrio de Estado do papa Clemente XIV. Allavicini foi recusado pelos imperiais e o cardeal Albano Albani apoiou a candidatura do cardeal Braschi, que pertencia aos independentes, com o apoio das cortes borbnicas e a oposio de Portugal, Juan Angel que foi eleito papa a 15 de Fevereiro de 1775, como Pio VI, em honra de inquisidor e fundador da Santa Aliana. O seu pontificado desenrola-se num dos perodos mais agitados da histria e num momento de profunda crise para a religio catlica, atacada primeiro pelas reformas sagradas e depois pelas consequncias da Revoluo Francesa. A segunda etapa do longo pontificado de Pio VI seria a mais dura por ter de viver e sofrer os efeitos da Revoluo Francesa. Nos primeiros dias de Julho de 1789, a populao de Paris est atemorizada, parte pelo triunfo da constituio de uma Assembleia Nacional que fiou a ordem do rei Lus XVI para a dissolver e de ter jurado manter unida at a Frana dispor de uma Constituio. Por outro lado tambm a medo do brigando, o bandido, que despontou por causa dos intensos movimentos migratrios dos camponeses para as grandes cidades com o motivo de vencer a sua fome. A burguesia parisiense estava decidida a defender-se dos seus inimigos, a monarquia e a anarquia, e para isso necessitava de armas para formar uma milcia nacional. Na verdade, a burguesia foi o motor da Revoluo Francesa e no os trabalhadores que no tinham nesses anos lder que os guiasse. Os primeiros revolucionrios foram o marqus de Mirabeau, o marqus La Fayette, os advogados Desmoulins, Robespierre, Danton e Vergniaud ou um mdico como Marat. Jacques Necker, o amigo em quem toda a Frana confiava a fim de solucionar a crise econmica que provocava a fome entre os franceses, foi destitudo por Lus XVI. A notcia correu depressa, como afirma no seu livro Citizens: A Chronicle ofthe Frendi Revolution o escritor Simon Schama. O barril de plvora seria lanado pelo revolucionrio Camille Desmoulins quando se ps em cima de uma mesa no Palcio Real e gritou: Necker foi destitudo. Este o sinal de alarme para uma noite de So Bartolomeu de patriotas. Esta noite os batalhes suos e alemes sairo do Campo de Marte [sede dos seus quartis] para nos degolarem. Cidados! Agarremos em armas!. O problema era que essas armas de que tanto precisavam se encontravam armazenadas na Bastilha, a fortaleza situada no centro de Paris, smbolo do poder real, e com a ameaa constante dos seus canhes apontados aos cidados, em quem Lus XVI no confiava. E foi assim que eles se lanaram ao assalto da Bastilha a 14 de. Julho de 1789. O governador da Bastilha, De Launey, ordenou s suas tropas para abrir fogo contra os assaltantes, at que por fim a fortaleza se rendeu. Um cozinheiro chamado Desnot separou a cabea do corpo de De Launey com um cutelo de carniceiro. O mesmo aconteceria ao comandante das foras da fortaleza, Losme- Salbray, e a mais alguns oficiais. As suas cabeas seriam levadas pelas ruas de Paris na ponta de uma lana, que ficou como smbolo do fim da monarquia absolutista. Nos primeiros momentos revolucionrios o papa Pio VI manteve-se neutral, apesar dos avisos do cardeal Giovanni Battista Caprara, chefe da Santa Aliana e cujos agentes comeavam a observar em Frana claros movimentos anticlericais. A 12 de Julho de 1790, a Assembleia Constituinte promulgou a Constituio civil do clero e a imposio a todos os religiosos de prestarem juramento de fidelidade nova lei. Dois dias depois, o rei Lus XVI, a rainha Maria Antonieta e o delfim prestaram juramento de fidelidade nao. Pio VI promulgou ento a nota Quod aliquantum, a 10 de Maro de 1791, em que condenava em bloco tudo o que foi decretado pela Assembleia em matria religiosa. Como contra-medida, os novos governantes de Frana decidiram expulsar em Maio o nncio pontifcio e deste modo ficavam cortadas, em definitivo, as relaes entre a Paris revolucionria e a Roma papal. As perseguies aos religiosos, a execuo do rei Lus XVI na guilhotina e a permanente descristianizao em Frana cavaram um maior abismo entre os dois pases. A ruptura entre o povo e Lus XVI, razo pela qual o rei de Frana ficaria sem a cabea, seria em parte provocada pelos agentes da Santa Aliana. Bastou apenas que o rei utilizasse o direito de veto que lhe dava a nova Constituio para que as pessoas duvidassem dele. Os agentes da espionagem papal tinham informado o monarca de que a Assembleia Nacional se preparava para aprovar vrias reformas, e entre elas a do clero francs, onde se ordenava acabar com o sinal de obedincia ao pontfice de Roma. Os espies de Pio VI pediam ao rei que recusasse essa lei, utilizando o seu direito constitucional de veto, e Lus XVI decidiu mesmo faz-lo. A 12 de Abril morreu Mirabeau, o homem que fazia com que a Frana caminhasse ao mesmo tempo entre a revoluo e a monarquia. Os agentes do papa pediram novamente ao rei que fugisse e se refugiasse junto das tropas para assim reconquistar a Coroa de Frana com todos os direitos. A Santa Aliana e os realistas conseguiram desorientar os espies revolucionrios e meter a famlia real numa carruagem em direo fronteira, mas a fuga dura muito pouco, porque a 21 de Julho de 1791 a famlia detida e obrigada a regressar a Paris. A ruptura entre o rei e o povo era total. O monarca voltou novamente a utilizar o seu direito de veto contra o decreto dos sacerdotes refratrios, ou seja, aqueles que se negavam a jurar lealdade nao contra a sua fidelidade ao papa Pio. O assalto s Tulherias em Agosto de 1792 deu incio ao chamado governo de Terror. A guilhotina foi erguida a 22 de Agosto e a 21 de Janeiro de 1793 colocada definitivamente na praa da Revoluo, que hoje a da Concrdia. Entretanto, o rei recomps-se, colocou o chapu e partiu no seu trajeto para a morte. Quando chegou ao stio onde estava a guilhotina, ajoelhou-se ao lado do padre e recebeu a ltima bno. Os ajudantes de Samson tentaram amarrar-lhe as mos, mas o rei recusou e disse que no permitia que lhe fizessem isso. Os carrascos estavam preparados para usar a fora, mas o abade Edgeworth aconselhou o rei: Faa este sacrifcio, senhor. Este novo ultraje realmente um novo trao de unio entre Sua Majestade e Deus. Os verdugos prenderam-lhe as mos atrs das costas com um leno e logo lhe cortaram o cabelo. Apoiado ao padre, Lus XVI subiu para a guilhotina e num ltimo instante desviou-se e caminhou at ao extremo da plataforma na direo das Tulherias, e disse: Franceses, eu sou inocente, eu perdoo os autores da minha morte, e rogo a Deus para que o meu sangue vertido no volte a cair sobre a Frana. Os quatro carrascos colocam-no fora na prancha da guilhotina. O rei resiste, grita, mas a lmina desce com extraordinria rapidez e corta-lhe a cabea, salpicando o padre de sangue. Samson agarra a cabea pelos cabelos e mostra-a ao povo. Os federados, os fanticos, os furiosos radicais, sobem tarimba e molham os sabres, os lenos, as facas e as mos no sangue do rei. E gritam: Viva a nao!, Viva a repblica!, mas quase ningum lhes responde. A rainha Maria Antonieta teria a mesma sorte a 16 de Setembro de 1793. Os protestos do papa Pio VI provocaram a ocupao de Avignon e do condado de Venaissin por parte do exrcito revolucionrio de Frana. Os diplomatas e polticos papais abriram caminho aos espies da Santa Aliana, que desempenhariam um papel importante nos anos seguintes. Um dos mais eficazes seria o abade Salamon, que atuaria como uma espcie de representante clandestino do papa na Frana revolucionria dos finais do sculo XVIII. Nesse mesmo ano, Salamon criou uma das melhores redes de informao e evaso ao longo de toda a Frana. A Assembleia Nacional, a Conveno Popular que tinha arrancado do poder o rei Lus XVI e os seus ministros, decidiram a confiscao de todas as propriedades da nobreza e da Igreja, a par da abolio das ordens monsticas, reduo das dioceses e institucionalizao de uma espcie de clero civil partidrio do novo regime. Apesar de no poder contar com o nncio, que tinha regressado a Roma, Salamon converteu-se nos olhos e nos ouvidos do papa Pio VI numa Paris do Terror. A partir da sua pequena casa, o abade informava a cada passo a Santa Aliana em Roma acerca dos rumores das novas medidas contra os religiosos adotadas pelo governo revolucionrio de Frana. Mas h mais uma histria que passou lenda da Santa Aliana como foi o caso de Carlos Lus Capeto, filho do monarca executado, a quem os monrquicos reconheciam como Lus XVII. A 3 de Agosto de 1793, o pequeno Lus, apenas com sete anos, foi separado de sua me, que seria executada e estava ento presa numa cela Igubre. A criana ficou sob a proteo de dois guardies. Os agentes do papa informaram que ele entrara na priso a 13 de Agosto de 1792 e que a sua vigilncia tinha sido confiada a um casal. O abade Salamon estava disposto a salvar o pequeno Capeto ou pelo menos a tent-lo. Acerca do caso de Lus XVII existem duas verses. A primeira que o pequeno Lus no era uma personagem ativa da poltica de Frana pela sua tenra idade e acabaria por morrer aos dez anos na mesma priso, a 8 de Junho de 1795. Algumas fontes asseguram que foi envenenado, mas a verdade que Lus XVII morreu vtima da forada permanncia numa cela sem espao para se mexer e em lamentveis condies de higiene, sempre acompanhado pelos ratos. No ms de Maio foi visitado por um mdico, que considerou o pequeno Lus em grave estado fsico e psquico. Nos dias 6 e 7 de Junho, o seu estado era muito grave e s duas da tarde do dia 8 morria para uns aquele que era Lus XVII e para outros o cidado Carlos Lus Capeto. Depois do registo do bito e de o corpo ser colocado num caixo, o pequeno Lus foi enterrado no cemitrio de Santa Margarida s nove da manh. Dois soldados estiveram de guarda durante alguns dias para evitar que algum pudesse fazer qualquer coisa com o corpo do ltimo rei de Frana, porque, na verdade, a sua morte exaltava a imaginao sobre o que realmente se teria passado. Nesses dias, as conspiraes monrquicas fundamentavam-se no assassnio de todos os membros do Comit de Salvao Pblica e no desejo de colocar o jovem Lus como rei de Frana. A cabea das conspiraes estava Pierre-Gaspard Chaumette, que muitos diziam ser um membro muito ativo da Santa Aliana e que com a restaurao da monarquia tinha prometido a Roma restituir a antiga situao Igreja de Frana. As histrias que ento circulavam eram que de fato o pequeno Lus que falecera no era o filho de Lus XVI, mas outro muito parecido em idade e nos traos, e que o verdadeiro rei estava a salvo na corte do rei Carlos IV de Espanha, graas a uma operao da Santa Aliana. Por outro lado, as cartas encontradas nos Arquivos Nacionais de Frana demonstraram que enquanto se procurava fazer ver que o inocente Lus XVII estava a salvo em Espanha, o rei Carlos IV enviava cartas, uma atrs de outra, para convencer as autoridades revolucionrias a entregar os dois irmos nascidos de Lus XVI e de Maria Antonieta, mas o certo que Paris sempre recusou fazer isso. Outro agente da Santa Aliana, chamado Frott, tinha recebido uma ordem para tentar encontrar o jovem rei e coloc-lo a salvo. Depois de alcanar Paris, Frott escrevia: Tive a mgoa de confirmar que fomos enganados. Os monstros duas vezes regicidas, depois de o terem feito enfraquecer na priso ao longo de muito tempo, fizeram-no depois morrer na sua cela. No nos resta outro remdio seno chorar. Uma outra verso aparecida em 1801, e mais romntica, fala da histria de outro membro da rede do abade Salamon chamado Emilie Fronzac. Ao que parece, Fronzac teria levado de Paris o delfim dentro de um cavalo de madeira de brincar e deixado no seu lugar uma criana rf. Para abrir caminho no interior e nos jardins do palcio, o agente da Santa Aliana teria utilizado o suborno. A carruagem em que viajavam na direo das linhas do exrcito monrquico foi mandada parar por um grupo de guardas. Mas, antes de se render, o espio foi ajudado por soldados, que mataram os revolucionrios e recolheram o legtimo rei Lus XVII de Frana. A investigadora Deborah Cadbury, no seu estudo The Lost King of France: A True Story of Revolution, Revenge and DNA, pergunta: se esta verso verdadeira, onde que ento estava o rei? Segundo um escritor da poca que regista a aventura do espio Emille Fronzac e do delfim de Frana, diz que, aps a morte dos revolucionrios, Lus XVII foi embarcado para a Amrica, mas uma fragata francesa conseguiu cortar-lhe o caminho e, ao descobrir a identidade do passageiro, a criana foi logo devolvida a Paris, onde morreria na cela. Fosse como fosse, estas lendas ou realidades ajudaram a criar uma ideia mais romntica da Santa Aliana e dos espies do papa numa poca em que os religiosos catlicos iam substituir os nobres no caminho para a guilhotina. A tentativa de evaso do rei Lus XVI e de sua famlia, ajudados por agentes do papa Pio VI, e os permanentes discursos do Conselho Revolucionrio a igualarem os nobres e religiosos, fez com que a fria se libertasse em Setembro de 1792 e mais de duzentos sacerdotes fossem assassinados. Milhares de religiosos tiveram de fugir e os que quiseram ficar em Frana foram obrigados a levar uma vida clandestina. O abade Salamon foi um dos mais importantes entre aqueles que decidiram ficar. Todos os dias andava pelas ruas e pelas praas, lojas e tabernas de Paris a recolher informaes para a Santa Aliana em Roma, sendo conhecido na Santa S como os ouvidos de Pio, numa clara aluso ao papa, e pde desenvolver um grande nmero de contactos com bispos e sacerdotes das provncias. Para escapar estreita vigilncia a que estava sujeito pela sua condio religiosa, Salamon conseguiu criar canais seguros de ligao a Roma,: depois de ser descoberto, preso e condenado priso o salvaram do clebre massacre de Setembro de 1792. Aps a sua libertao, em Setembro de 1798, o padre voltou ao seu trabalho dentro da espionagem papal e pde reconstruir a rede que tinha ficado inoperante desde que fora preso. Outras fontes afirmavam que, devido sua experincia nas aes de espionagem, foi requisitado pelo papa Pio VI para dirigir o servio secreto da Santa S. No Estado Pontifcio desenrolou-se uma grande campanha em que se apresentava a Revoluo e os seus dirigentes como uma obra satnica e consequncia de uma grande conspirao anticatlica. O objetivo era fazer um apelo guerra santa contra a Frana e os seus exrcitos e pela defesa da religio. Mas isso no deteve o implacvel avano das tropas francesas. O seu comandante-chefe, Napoleo Bonaparte, obrigou o papa Pio VI a assinar o humilhante armistcio de Bolonha a 23 de Junho de 1796, em que o Sumo Pontfice se comprometia a renunciar autoridade de Ferrara, Bolonha e Ancona, a entregar vinte e um milhes de escudos como forma de indemnizao e quinhentos manuscritos e uma centena de obras de arte renascentistas. Pio VI pediu ento proteo Austria. Para Napoleo aquilo era uma violao do acordo de Bolonha, pelo que ordenou s suas tropas que ocupassem o Estado Pontifcio. Como contrapartida, o francs exigiu desta vez ao papa, depois da assinatura da paz de Tolentino, a cedncia definitiva de Avignon e do condado de Venaissin, a renncia s legaes de Bolonha, Ferrara e Romagna, bem como a entrega de quarenta e seis milhes de escudos e numerosas obras de arte. A situao tornou-se trgica quando os agentes da Santa Aliana ou antigos membros da Ordem Negra decidiram ento matar o general Mathurin-Lonard Duphot. O militar era um dos homens de confiana de Napoleo Bonaparte e um dos seus melhores estrategos. Duphot tinha participado com o exrcito dos Alpes nas campanhas de Sabia e a 13 de Junho de 1795 passou reserva militar, mas foi novamente recrutado a 9 de Fevereiro de 1796. A sua estada na Itlia em Agosto de 1796 levou-o a combater nas campanhas de Mntua, Rivoli e La Favorita. Promovido a general de brigada pelo prprio Napoleo a 30 de Maro de 1797, foi destinado a Roma para acompanhar o irmo de Napoleo, Jos Bonaparte, que tinha sido nomeado embaixador na Santa S. A 28 de Dezembro de 1797, o povo concentrou-se em frente da residncia do embaixador francs para assim reclamar a proclamao da Repblica. Na altura, um contingente da guarda papal afastou a multido e muitas pessoas refugiaram- se na prpria embaixada. O general Duphot, que procurava manter a calma, foi apunhalado nas costas sem que ningum visse a cara do atacante. Em poucos minutos esvaiu-se a sangrar e morreu pouco depois. Os soldados franceses, que conseguiram expulsar da zona as pessoas juntamente com a guarda papal, descobriram no solo junto do cadver do militar um octgono em pano com o nome de Jesus em cada um dos lados e no centro esta frase: Sujeito dor pelo tormento, em nome de Deus e ainda o smbolo do chamado Crculo Octogonus. Como represlia pela morte do general Duphot, Napoleo ordenou ao general Berthier, comandante-chefe do Exrcito de Itlia, que lanasse as suas tropas na conquista de Roma. A 15 de Fevereiro de 1798, as tropas de Napoleo ocuparam Roma e a 7 de Maro depuseram o papa Pio VI como soberano temporal, ao mesmo tempo que se proclamava a Repblica Romana. De seguida, as primeiras unidades francesas chegavam ao palcio do Quirinal e descobriam que a Guarda Sua lhes abria o caminho. O papa Pio VI ordenou que fossem desarmados e no oferecessem luta aos franceses. O papa seria preso e os arquivos embargados e levados para Frana. A partir deste momento, a Santa Aliana deixou de operar em toda a Itlia e passou a registar-se um elevado nmero de atentados contra o invasor francs pelos membros do Crculo Octogonus e mesmo da Ordem Negra. Condenado ao exlio, o papa foi obrigado a abandonar Roma a 20 de Fevereiro de 1798. Aps uma permanncia em Siena, foi recolhido na Cartuxa de Florena, onde continuou a tratar dos assuntos religiosos. A 13 de Novembro do mesmo ano, publicou a bula Quum nos, na qual estabelecia as disposies para o caso de ficar vago o cargo de pontfice e as normas a seguir no conclave seguinte. Em Maro de 1799, o papa foi transferido para Parma e a seguir para Turim, depois de uma tentativa de libertao por parte de membros da Santa Aliana. Em finais desse ano, com oitenta e um anos e doente, foi novamente levado numa cadeira atravs dos Alpes at Brianon pelo receio do que os agentes da espionagem papal, ajudados pelos austracos, pudessem fazer com o Sumo Pontfice. A viagem acabou a 13 de Julho de 1799 na cidade francesa de Valence, onde permaneceu recolhido at sua morte, a 29 de Agosto de 1799. O seu corpo seria posto num caixo de chumbo e transportado para Roma a fim de ser sepultado em Fevereiro de 1802. Ao saber da morte do papa, Napoleo escreveu: Morreu o papa. A velha mquina da Igreja desmorona-se por si mesma. Como todos os grandes ditadores da Histria, acreditava firmemente que o seu imprio lhe sobreviveria ao longo dos sculos, o que no aconteceu, enquanto o imprio da Igreja, que ele pensava que se desmoronava, pde sobreviver, embora tivesse antes de passar por momentos muito duros e terrveis. A 13 de Outubro de 1799, o cardeal Giovanni Francesco Albani, refugiado em Veneza, que nesses anos fazia parte do imprio austraco, decidiu convocar o conclave a 8 de Dezembro. As votaes sucedem-se sem parar, mas nenhum dos candidatos propostos consegue os dois teros necessrios para ser eleito papa. Por fim, a interveno do cardeal Ettore Consalvi desbloqueou a situao ao apresentar como candidato o cardeal Bernaba Chiaramonti, que seria eleito sumo pontfice a 14 de Maro de 1800 e governaria sob o nome de Pio VII. Aps a sua eleio, o papa Pio VII no pde mudar-se para Roma at 3 de Julho. O imperador Francisco II procurava convencer o pontfice para que estabelecesse a sede papal em qualquer lugar sob o controle austraco, mas Pio VII defendia a necessidade de uma Igreja livre e sem ingerncias. O que posteriormente veio a aceitar foi a nomeao de um secretrio de Estado prximo da Austria. Enquanto decorria o conclave veneziano, ocorriam em Paris fatos que mudariam a Histria, no s da Frana, mas de toda a Europa. O Diretrio aprovara o Consulado. A aprovao de uma nova Constituio em 13 de Dezembro de 1799, apoiada maciamente a 7 de Fevereiro de 1800 pelo povo francs, convertia em amo e senhor dos destinos do pas o glorioso general Napoleo Bonaparte. Liquidada a Revoluo, o primeiro-cnsul dedicou-se tarefa de normalizar as relaes entre a Frana e a Igreja. Napoleo compreendeu que a Frana desejava continuar a ser catlica e por isso deu o primeiro passo para se aproximar do papa Pio VI. De fato, Napoleo, embora fosse batizado, era agnstico, mas no mais fundo de si desejava agradar e aproximar-se das fortes monarquias catlicas e ser um dia recebido nas cortes da Europa. Napoleo sabia ainda que devia arranjar algum que pudesse controlar no apenas o funcionamento dos servios secretos, mas tambm as possveis infiltraes de servios de espionagem de outras potncias, em especial os austracos e britnicos e os agentes da Santa Aliana, e por isso o homem escolhido para essa tarefa foi. Joseph Fouch. Oriundo de uma famlia endinheirada, o espio estudou em Nantes para a carreira eclesistica e em 1792 passou a fazer parte da Assembleia Nacional. Um ano depois revelou-se partidrio da morte de Lus XVI. Na sua trajetria poltica caracterizou-se por se ligar aos mais poderosos. Uma das suas intervenes mais cruis teve lugar na rebelio de Vendeia e mais tarde em Lyon. Em 1795, retirou- se por algum tempo das questes polticas, embora mantivesse a sua amizade com as pessoas influentes, at Napoleo Bonaparte o nomear chefe dos seus poderosos servios de espionagem. A partir desta altura, Fouch tornou-se no principal inimigo da Santa Aliana. A primeira conspirao que teve de liquidar foi a conhecida conjura de Enghien, em que estavam envolvidos os generais Moreau, Pichegru e Georges Cadoudal, e ainda Bouvet de Lozier, que foi adjunto-geral do exrcito dos prncipes. No centro da conspirao estava Louis-Antoine Henry de Bourbon, duque de Enghien. Fouch descobrir pouco depois que alguns dos conjurados estiveram em contato com o cardeal Caprara, chefe da espionagem papal e talvez com um importante membro da Santa Aliana em Paris. O plano consistia em sequestrar Napoleo e assassin-lo. O general Moreau substituiria Bonaparte at a situao se acalmar. Passados alguns meses, o duque de Enghien assumiria a Coroa e Pichegru seria nomeado segundo-cnsul de Frana. Cadoudal apercebeu-se de que Moreau, um popular e vitorioso general que merecia a estima dos seus soldados, e o general Pichegru apenas queriam derrubar Napoleo em seu favor. O primeiro a cair foi o general Moreau, que Napoleo mandou prender. Para evitar qualquer rumor, o at a glorioso militar deveria ser julgado por um tribunal civil. Na diligncia contra Moreau foram detidos outros quinze conjurados, entre os quais se encontrava um cidado suo relacionado com a embaixada da Rssia e com a nunciatura papal. Segundo informaes de Fouch, o suo pertencera tempos atrs ao corpo da Guarda Sua de Pio VI e fora recrutado pela Santa Aliana [para efetuar operaes clandestinas na Frana de Napoleo durante o pontificado do papa Pio VII. O embaixador da Rssia, Markof, pediu pessoalmente a Napoleo que pusesse em liberdade o cidado suo, mas este negou-se, e em Paris toda a gente falava j da priso de Moreau. Na noite de 26 para 27 de Fevereiro de 1804, o general Pichegru foi localizado numa casa com o nmero 39 da Rua de Chabanais e logo a seguir detido. Mhe de Ia Touche, o melhor espio de Napoleo em ris, descobriu que Cadoudal continuava ainda na capital e que com certeza estava a procurar contatar, atravs da nunciatura ou de qualquer espio do papa como correio, com o duque de Enghien. A conspirao revelou-se ento clara para Napoleo: um prncipe como lder, os generais Moreau e Pichegru como crebros, Cadoudal como carrasco e mo executora. A 9 de Maro, Cadoudal localizado pelo espio De La Touche e denunciado polcia. Antes de ser preso, Cadoudal matou um agente e feriu de morte um outro. Mas ainda faltava prender o prncipe. A discusso entre Napoleo e os seus cnsules centrou-se no fato de se executar Louis-Antoine Henry de Bourbon ou mant-lo em priso por toda a vida. Estavam ainda bem frescas as memrias da guilhotina a apitar as cabeas reais. Durante a noite, Napoleo ordenou ao seu fiel hier, ministro da Guerra, que se ocupasse da priso de Enghien, que se encontrava em Ettenheiem, nos arredores de Estrasburgo. A 17 de Maro, caram Louis-Antoine Henry de Bourbon, duque de nghien, e outros conjurados. Napoleo Bonaparte entendeu que era justo que Enghien morresse. Para ele, se um homem conspira como um homem vulgar, deve ser tratado como um homem qualquer, mas Joseph uch dizia ser contra essa medida. Na noite de 20 para 21, abriu-se o processo contra Louis-Antoine Henry de Bourbon e na manh do dia 21 ficou acabado: o duque de Enghein foi fuzilado. A 6 de Abril de 1804, o general Pichegru foi estrangulado na sua prpria cela. Segundo uma verso, o ex-general ter sido assassinado pelos seguidores de Napoleo, mas este defendeu-se e alegou que seria estpido matar a sua principal testemunha contra o general Moreau. Uma outra verso afirmava que podia ter sido assassinado por um mandante enviado de Roma no sentido de evitar que ele revelasse as ligaes da conjura Enghien com o Vaticano. O ltimo ato da chamada conspirao Enghien decorreu a 26 de Junho do mesmo ano, quando Henri Samson, o mesmo que cortara as cabeas de Lus XVI e de sua esposa, a rainha Maria Antonieta, aciona a guilhotina para cortar as cabeas de Georges Cadoudal e de mais doze cmplices, incluindo a do cidado suo suspeito de pertencer Santa Aliana. O general Moreau seria autorizado por Napoleo a abandonar a Frana depois de lhe serem embargadas todas as propriedades. Em Maro de 1804, depois do fuzilamento do duque de Enghien e da carta em que Lus XVIII denunciava o usurpador, Napoleo sabia que para evitar novas tentativas de assassnio e intromisses dos Bourbons devia tornar-se imortal para a Frana e para os franceses. Bonaparte avistou-se com o cardeal Giovanni Battista Caprara, chefe dos espies do papa e legado a latere em Paris, para lhe comunicar o desejo expresso de ser coroado imperador de Frana pelo prprio papa Pio VI. A 2 de Dezembro, Napoleo Bonaparte se auto coroa na Notre Dame de Paris e a seguir ele mesmo procede coroao de Josefina, de joelhos em terra, tal como ficou imortalizado num quadro do pintor Louis David, tendo o papa Pio VII como testemunha de exceo. O papa permaneceria quatro meses em Paris e regressaria a Roma a 4 de Abril de 1805, no mesmo ano em que os exrcitos do imperador Napoleo Bonaparte conseguiriam uma grande vitria em Austerlitz, em parte graas s informaes recebidas por um duplo agente que colaborou com os servios de espionagem austracos, com a Santa Aliana e com os espies bonapartistas. O seu nome era Karl SchuImeister. Nascido na cidade de Baden, Shulmeister foi criado numa famlia de pastores. Dedicado ao comrcio, decidiu um dia que as informaes que recolhia nas suas viagens poderiam dar-lhe mais dinheiro do que os negcios, sempre e quando soubesse a quem as vender. Era o negcio da oferta e da procura transposto para o mundo da espionagem. Durante anos exerceu o papel de espio ao servio dos austracos at ser recrutado pela Santa Aliana. Schulmeister dizia que era um bom catlico e alegava que a sua religio o obrigava a servir o papa de Roma com grande obedincia. Na realidade, as informaes que o alsaciano passava aos servios secretos pontifcios eram de pouca importncia. Poucos anos depois havia de saber-se que Karl Schulmeister teria desempenhado um papel muito importante na captura de Louis-Antoine Henry de Bourbon durante a conjura Enghien. Ao que parece, Savary, chefe dos servios de segurana de Napoleo, projetava sequestrar o duque de Enghien em Baden, cidade em que estava refugiado. O duplo agente comentou com Savary que talvez ele pudesse obrigar Bourbon a aproximar-se da fronteira com a Frana para facilitar a sua priso. Schulmeister sabia que o duque tinha como amante uma dama da alta sociedade de Estrasburgo chamada Charlotte de Rohan. Falsificando a caligrafia dessa mulher, Karl Schulmeister escreveu uma carta a Louis-Antoine Henry de Bourbon para pedir que se avistasse com ela em Ettenheim, perto de Estrasburgo. O resto j pertence Histria. O duque de Enghien seria preso e executado Iogo a seguir. Por essa operao, Karl Schulmeister receberia uma grande fortuna das mos do prprio Napoleo, que ele definia como um homem todo cerebral, mas sem corao. Depois dessa operao o imperador confiou ao espio Schulmeister a nova campanha contra a Austria. Como primeiro passo, Schulmeister enviou uma carta ao marechal baro Mack von Liebereich, que comandava as foras austracas, fingindo-se alvo da hostilidade dos franceses devido s suas origens nobres, o que no era certo. Para isso, Schulmeister comprara os ttulos a uma famlia da Hungria, os Biersk, e fez- se ainda possuidor de uma carta dos servios secretos vaticanos como garantia diante de Mack. Schulmeister foi chamado a Viena para ser ouvido pela espionagem austraca. Os conhecimentos que tinha sobre as unidades francesas, os generais napolenicos e a sua estratgia militar eram to amplos que o marechal Mack nomeou Schulmeister para ocupar um posto no Estado-Maior austraco e pouco depois chegou a ser nomeado chefe dos servios de informaes militares. O antigo espio da Santa Aliana entregava a Mack jornais franceses impressos por Savary para o seu agente e cartas de correspondentes que no existiam, nas quais se falava do claro descontentamento da populao francesa em relao ao seu lder. Quando o marechal Mack von Liebereich empreendeu a campanha, Schulmeister convenceu-o de que os exrcitos de Napoleo estavam a espalhar-se pelo Reno para sufocar as revoltas internas. Mack fez o seu primeiro golpe a 7 de Outubro e caiu nessa armadilha preparada pelo agente duplo. O desastre de Ulm, no dia 19, custou a morte a dez mil soldados austracos, a vergonha e o degredo do marechal Mack, com uma pena de vinte anos de priso. Por seu lado, Napoleo perdia quase seis mil soldados. Feito prisioneiro pela espionagem austraca, Schulmeister acusou o marechal Mack de ser o responsvel pela derrota por no dar ouvidos s recomendaes e informaes da sua rede de espies em Frana, que na verdade no existia. O espio conseguiu convencer o Estado-Maior austraco acerca da sua inocncia e obrigou-os a adotar o novo plano estratgico contra os exrcitos napolenicos. O ponto alto deste plano estava numa cidade chamada Austerlitz. A batalha, que foi uma das maiores vitrias militares de Napoleo I, travou-se nas proximidades de Austerlitz (que hoje se chama Slavkov, na Repblica Checa), a 2 de Dezembro de 1805, entre um contingente francs de setenta e trs mil homens e 139 canhes, e as tropas austro-russas, compostas por sessenta mil soldados russos e vinte e cinco mil austracos, com 278 canhes. Denominada por vezes como a batalha dos Trs imperadores, por terem estado presentes no campo de batalha Napoleo I, Francisco II, imperador do Sacro Imprio Romano- Germnico (depois Francisco I da Austria) e Alexandre I da Rssia, causou a perda de vinte e sete mil soldados austro-russos e quase oito mil franceses. Karl Schulmeister, de quem suspeitava o servio secreto austraco aps certas informaes recebidas pela Santa Aliana, estava prestes a ser detido e acusado de alta traio quando as tropas francesas entraram em Viena. Napoleo Bonaparte premiou-o com boas somas de dinheiro mas nunca lhe conferiu qualquer condecorao militar. Segundo Napoleo, depois da batalha de Austerlitz, um homem que vende os seus irmos e os homens que esto s suas ordens, no merece uma condecorao, mas apenas umas trinta moedas de prata, como aluso recompensa dada a Judas Iscariotes por entregar Jesus Cristo. Karl Schulmeister terminaria a sua carreira como chefe da contra-espionagem bonapartista at ter sido obrigado a demitir-se quando a influncia austraca se fez notar em redor da imperatriz Maria Lusa, que era filha do derrotado Francisco I de Austria, e ento a nova esposa de Napoleo. O imperador francs, por no ter um herdeiro de Josefina, decidiu divorciar-se dela em 1809 e contrair casamento com a filha do imperador derrotado em Austerlit. As relaes entre Paris e Roma mostravam-se cada vez mais tensas, quase prximas da ruptura, o que aconteceu em Novembro de 1806 quando Napoleo ordenou ao papa Pio VII para que expulsasse de Roma todos os cidados das naes inimigas da Frana. O papa foi avisado pela espionagem do Vaticano de que as tropas francesas estavam a ser colocadas em estado de alerta para o caso de terem de ocupar Roma. Apesar das advertncias da Santa Aliana, o papa Pio VII recusou-se a expulsar os estrangeiros e a participar ou apoiar o bloqueio contra a Inglaterra. E nem permitiu sequer a demisso do cardeal Consalvi como secretrio de Estado, tal como Napoleo exigia. O confronto estava aberto e Napoleo ordenara a ocupao de Ancona de Lcio. Finalmente, a 12 de Fevereiro, o imperador deu ordens ao general Miollis para que entrasse em Roma, desarmasse a guarda pontifcia e ocupasse o castelo de SantAngelo. O terceiro corpo do exrcito cercou o palcio do Quirinal e colocou dez canhes apontados aos aposentos papais. Pio VII era j um prisioneiro no seu prprio palcio e o controle do Estado Pontifcio passou para a administrao francesa. A Santa Aliana foi novamente dissolvida por ordem dos cardeais Pacca, que tinha sido nomeado seu chefe um ano antes, e por Consalvi, e por todas as operaes proibidas dentro do Estado Pontifcio agora ocupado pelos soldados de Napoleo. Nem o secretrio de Estado nem o chefe do servio secreto papal pretendiam qualquer tipo de confronto dentro de Roma que pudesse provocar o ocupante francs, tal como sucedeu aps o assassnio do general Duphot nove anos antes. A 10 de Junho de 1809, Napoleo declarava Roma como cidade aberta e destronava o papa Pio VII de todo o seu poder. Como forma de contra-ataque, o Sumo Pontfice lanou uma bula pela qual ameaava excomungar quem procedesse a qualquer forma de violncia contra a Santa S ou os seus representantes. Napoleo ordenou ento ao general Radet que tomasse o Quirinal de assalto e capturasse o papa. Na noite de 5 para 6 de Julho, Radet entrou no palcio papal pela fora, arrombando portas, e encontrou Pio VII junto do cardeal Bartolomeo Pacca, sentado na sua mesa de trabalho. Levado para fora de Roma, no lhe permitiram levar mais do que um pequeno leno. O general Radet estava orgulhoso de ter em seu poder o Sumo Pontfice de Roma, de tal modo que no podia permitir que nada nem ningum se interpusesse entre o prisioneiro e os prprios interesses do seu imperador. A situao agravava-se com a disenteria de que sofria o papa. Quando chegaram a Savona, escala final da viagem, tinham passado j quarenta e dois dias aps a captura em Roma. E, enquanto os arquivos eram levados para Paris, o Colgio Cardinalcio foi convocado para Frana e preparou-se um palcio como residncia do papa Pio VI. O desejo de Napoleo era converter Paris num Vaticano sujeito s ordens do Imprio. O cardeal Consalvi ordenara a Bartolomeo Pacca que todos os arquivos da Santa Aliana fossem retirados de Roma pelos prprios agentes da espionagem papal e guardados em lugar seguro. Esses arquivos foram transportados em trinta e seis carruagens fechadas e levados para um local secreto na cidade de Veneza. Quando os franceses passaram em revista todos os fundos vaticanos, deram conta de que no havia ali um nico documento da Santa Aliana. A 9 de. Junho de 1812, foi novamente ordenada a mudana de Pio VII de Savona para Fontainebleau. Segundo informaes dos agentes de Fouch, um grupo de frades pertencentes a uma sociedade chamada Ordem Negra estava a tentar resgatar o Sumo Pontfice e coloc-lo a salvo. O papa foi obrigado pelo oficial que o vigiava a vestir-se totalmente de negro e a viajar de noite para ningum o reconhecer. Os frades da Ordem Negra chegariam ao lugar onde estava detido o papa apenas seis horas depois da sua partida. Passados dez dias, o papa e a sua escolta chegavam ao seu destino, onde Pio VII conseguiu recuperar as foras. Entre 19 e 25 de Janeiro de 1813, Napoleo Bonaparte e o papa tm encontros constantes em que no conversam apenas de poltica, mas tambm de questes pessoais. A marcha da guerra e as contnuas derrotas francesas em diversas frentes provocou o assdio da Frana e a libertao do papa, que pde regressar a Roma a 24 de Maio de 1814. O golpe final nesse Grande Imprio forjado por Napoleo dar-se-ia num lugar chamado Waterloo. Inglaterra, Rssia, Austria e Prssia tinham-se comprometido a estar unidas durante vinte anos para impedir que Napoleo se mantivesse no poder. Mesmo assim, Bonaparte no cedia, mas as suas manobras no conseguiram deter o avano dos exrcitos aliados, que se apresentavam mesmo s portas de Paris a 30 de Maro e obrigaram a capital francesa a capitular. Como ltima tentativa, Napoleo pretendia lanar o resto do exrcito para recuperar Paris, mas os marechais mais ilustres, os mesmos que estiveram a seu lado em mil e uma batalhas, entre os quais se destacavam Michel Ney, Lefebvre e Moncey Oudinot, negaram-se a segui-lo e at lhe pediram que abdicasse. O povo, cansado de uma guerra permanente, desejava a paz e no importava o preo que tivesse de pagar por ela. A 6 de Abril de 1814, em Fontanebleau, no mesmo lugar onde estivera detido o papa Pio VII, Napoleo Bonaparte assinava a sua renncia, quando em Paris o Senado instituiu perante os aliados um governo provisrio sob a presidncia de Talleyrand. O antigo homem de confiana de Napoleo devia manter a ordem em Paris at chegada do rei Lus XVIII, com o qual se havia de restaurar a monarquia dos Bourbons em Frana. Alguns dias mais tarde, a 10 de Abril, o general Wellington derrotava o general Soult na Pennsula Ibrica, sem que nenhum dos contendores soubesse ainda que Napoleo tinha capitulado. Aquele que foi amo e senhor dos destinos da Europa seria exilado na ilha de Elba, defronte da costa meridional de Itlia, enquanto sua esposa Maria Lusa e ao filho era concedido o ducado de Parma. A Frana era obrigada a regressar s fronteiras de 1792. Apoiado por um pequeno aipo favorvel de marechais e de generais, Napoleo decidiu sair do desterro, conhecido como o desterro dos Cem Dias. O desastre de Waterloo a 15 de Junho de 1815 representou para Napoleo e para a sua prpria famlia o repdio de todas as cortes da popa. Para evitar um novo foco bonapartista, os aliados resolveram desterrar Napoleo para a ilha de Santa Helena, um pedao de pedra travado a dois mil quilmetros da costa africana e a mais de dois meses de barco desde a Inglaterra. A viveria desde 15 de Outubro de 1815 a 5 de Maio de 1821, data em que morreria envenenado. Depois do exlio de Napoleo em Santa Helena, o papa Pio VII recomendou ao chefe da Santa Aliana, cardeal Bartolomeo Pacca, que se preocupasse em proteger a famlia do derrotado imperador de Frana. A esposa de Napoleo, Maria Letcia, instalou-se no palcio da romana Piazza Iecia, onde morreu em 1836, ainda protegida pelo papa Gregrio XVI. Alm disso, o papa Pio VII acolheu o tio e os irmos de Napoleo,. Joseph Fesch e Lucien e Lus Napoleo, que foi rei da Holanda. O filho deste ltimo, Carlos Lus Napoleo, tambm abrigado pelo manto protetor de Pio VII e da Santa Aliana, chegaria anos depois a governar sob o nome de Napoleo III. Pouco antes de morrer, a 20 de Agosto de 1823, o papa Pio VII pronunciou o nome das cidades de Savona e de Fontainebleau como o smbolo do sofrimento que lhe coube viver nos anos da ascenso e queda das guias. Os anos seguintes seriam de revoltas e de conspiraes. Seria o tempo dos espies.
9
O tempo dos espies (1823-1878)
Como bandidos espreita, uma chusma de sacerdotes assassinam no caminho de Siqum. Oseias 6, 9
O ano de 1823 comearia com o conclave para eleger o sucessor do papa Pio VII. A escolha era entre o candidato dos zelanti e o dos politicanti, as duas nicas faces que discutiam a liderana na Santa S. Os zelanti ou zelosos eram liderados pelo chefe da Santa Aliana, o cardeal Bartolomeo Pacca, e pelo cardeal Agostino Rivarola, que eram partidrios da manuteno de uma organizao dura e conservadora contra qualquer liberalismo que se quisesse infiltrar em Roma. Para os zelanti, e em especial para o prprio Pacca, o radicalismo revolucionrio procurou organizar uma nova ordem mesmo dentro dos muros do Vaticano. Pacca, Rivarola e outros defendiam a posio de que nada se devia mudar. Pelo contrrio, os politicanti admitiam a necessidade de evoluir para uma ordem mais social dentro da Igreja. O cardeal Consalvi, lder desta faco, pensava que o desmoronar do governo da Igreja depois da era napolenica devia ser aproveitado para restaurar um governo baseado num Estado Pontifcio com uma administrao reformada. Os pases catlicos, na sua maioria governados por monarquias absolutistas, no encaravam Consalvi com bons olhos e acusavam-no de ter introduzido certas medidas revolucionrias como a supresso dos direitos feudais da nobreza ou a abolio de privilgios de algumas cidades. Os que dirigiam esta campanha contra o anterior secretrio de Estado diziam-se patriotas italianos e acusavam Consalvi de se ter vendido, tal como o prprio Vaticano, aos austracos. Pacca conseguiu no conclave que Consalvi se aproximasse dele sem nenhum tipo de oportunismo para ser eleito como Sumo Pontfice. A disputa entre os cardeais Consalvi e Pacca fez com que a Austria vetasse qualquer candidato dos zelanti, no pela rigidez dos princpios, mas por estes serem demasiado italianos, como escreveu o famoso Chateaubriand, ministro francs dos Negcios Estrangeiros. O nome de Annibale delia Genga no figurava entre os candidatos e, apesar de h trs anos ser o vigrio de Roma, era para os cidados um perfeito desconhecido. A 28 de Setembro, trinta e quatro dos quarenta e nove cardeais eleitores votaram em Delia Genga e este, surpreendido pela eleio, pde ento dizer: Haveis votado num cadver. Durante os ltimos trs anos, o cardeal Delia Genga passara mais tempo na cama com vrias enfermidades do que a trabalhar no seu gabinete. A primeira medida do novo papa Leo XII foi nomear o cardeal Giulio Maria delia Somaglia, prximo dos zelanti, como secretrio de Estado e ratificar o cardeal Bartolomeo Pacca como responsvel dos servios de espionagem da Santa S. Para a Santa Aliana ps-napolenica, os novos inimigos seriam os bandidos e os membros das sociedades secretas, como os carbonari, tendo estes ltimos organizado um levantamento na Romnia e, para o sufocar, o papa Leo XII decidiu enviar o cardeal Agostino Rivarola com o propsito de mediar na prtica o conflito. Mas o que o papa no sabia era que Rivarola levava instrues muito explcitas de Pacca para acabar com a revolta, por merecer todo o apoio do cardeal Somaglia, secretrio de Estado. De fato, ningum encarava os carbonari apenas como meros delinquentes, mas desde o comeo do sculo XIX tinham-se formado em Npoles, Milo ou Calbria numerosas seitas, nascidas na sua maior parte dentro da Maonaria e, portanto, proibidas por vrios papas e ratificadas em inmeras bulas. Os carbonari, os protetores, os independentes, os calderari, os peregrinos brancos ou os da mfia eram perseguidos nos territrios dos Estados Pontifcios de forma oficial por organizaes sob o controle do Vaticano e da prpria Santa Aliana, e de forma extra-oficial atravs de pequenos grupos clandestinos integrados por religiosos e que operavam atravs de aes disfaradas de castigos. Entre estas ltimas organizaes estavam as renascidas Ordem Negra e o Crculo Octogonus e outras menos conhecidas, como os Hbitos Negros, a Sociedade dos Treze e os Seguidores de Jesus. Os agentes da Santa Aliana sabiam que os carbonari eram dirigidos por dois homens, Angelo Targhini e Leonida Montanari. Numa tentativa para 166 os capturar, um agente da espionagem pontifcia caiu morto com um tiro, enquanto um outro ficava ferido com gravidade. Bartolomeo Pacca mos-trava-se decidido a encontrar os cabeas e lev-los justia papal. A 20 de Novembro de 1825, Targhini e Montanari acabaram por ser enganados por um agente da espionagem pontifcia que se fez passar por seguidor dos carbonari e durante o encontro eles foram detidos por agentes da Santa Aliana e por soldados da Guarda Pontifcia. No dia 21 foram levados para Roma; a 22 foram julgados por rebelio; no dia 23 foram decapitados sob a acusao de terem ofendido o Sumo Pontfice. Mas a guerra particular entre os carbonari e os agentes do papa no ficava por a. O cardeal Rivarola, a mo executora do cardeal Pacca, empenhar-se-ia a fundo na tarefa de acabar de uma vez com a rebelio. Ao apoiar-se na sociedade secreta dos sanfedisti, Rivarola e os agentes da Santa Aliana dedicaram-se a uma espcie de guerra suja. Os suspeitos de serem membros ou de apoiarem os carbonari eram sequestrados, interrogados, torturados e, na maior parte dos casos, executados de forma sumarssima. Meio milhar de pessoas foram foradas ao exlio ou s prises papais. Ao saber das operaes clandestinas levadas a cabo pela Santa Aliana contra os carbonari com o claro beneplcito do secretrio de Estado, o papa Leo XII decidiu demitir Giulio delia Somaglia, mas manteve ainda no cargo o poderoso Pacca. A partir desse momento, o novo secretrio de Estado, o cardeal Tommaso Bernetti, de ntida ideologia moderada e prximo de Consalvi, resolveu manter um estreito controle sobre os servios de espionagem, as suas operaes, o seu chefe e acima de tudo sobre as suas atuaes na luta contra os carbonari. De qualquer forma, as operaes clandestinas da Santa Aliana contra os rebeldes no acabaram a. Os dois carbonari que a seguir caram nas mos dos servios de espionagem pontifcia foram Luigi Zanoli e Angelo Ortolani. Em Fevereiro de 1828, Zanoli interceptou um emissrio papal que levava instrues secretas de Bartolomeo Pacca para monsenhor Francesco Capaccini, que anos depois se tornaria num importante espio do papa contra os Carbonari na Holanda. ZanoIi perseguiu o emissrio papal mesmo at fronteira e, antes que ele a atravessasse, assassinou-o e roubou-lhe as mensagens com o seio da Santa Aliana. O carbonari refugiou-se numa tenda da Romnia at ser localizado pelos homens de Pacca. No assalto da sua deteno, um outro carbonari amigo de ZanoIi, de nome Angelo OrtoIani, disparou sobre um elemento da Guarda Pontifcia, matando-o de imediato. Seriam ambos presos, julgados e condenados morte. Luigi ZanoIi foi decapitado na manh de 13 de Maio de 1828 e Angelo OrtoIani seria enforcado na tarde desse mesmo dia. Para o poderoso cardeal Bartolomeo Pacca era bem clara a expresso olho por olho, dente por dente e os agentes da Santa Aliana mostravam-se dispostos a levar isso a cabo. Os dirigentes carbonari queriam devolver o golpe ao Vaticano pelos seus companheiros injustiados e o objetivo escolhido foi nada mais nada menos do que o prprio cardeal Agostino Rivaroia, o enviado papal Romnia. Gaetano Montanari, irmo de Leonida, e Gaetano Rambelii seriam encarregados de assassinar o enviado do papa Leo XII. O problema ps-se quando, dois dias antes da data escolhida para o golpe, um alfaiate que ficou de entregar aos dois carbonari uns hbitos negros que lhes permitisse aproximarem-se do cardeal Rivaroia se enganou e entregou essas roupas a dois sacerdotes, um dos quais era agente da Santa Aliana. No dia seguinte, foram ambos presos. Montanari foi executado em finais de 1828, por tentativa de assassnio do cardeal Agostino Rivaroia, e Rambeiio foi enforcado no mesmo ano por conspirar contra o Estado Pontifcio e o papa, mas a guerra no se deteria com a morte de Leo XII, ocorrida a 10 de Fevereiro de 1829. J no conclave de 1823, o cardeal Francesco Saverio Castiglioni era um dos mais fortes candidatos para suceder a Pio VII e contava-se mesmo que certo dia o Sumo Pontfice, numa discusso com o cardeal Castiglioni, teria chegado a dizer: Vossa Santidade Pio VIII [referia-se a Castiglioni] resolver mais tarde este assunto 9. Portanto, a sua eleio a 31 de Maro de 1829 como novo papa nesse conclave, num cenrio de desencontros entre zelanti e politicanti, no foi surpresa para ningum. Apesar do seu curto pontificado de apenas vinte meses, foi um perodo cheio de acontecimentos que mudariam a estrutura da Europa. As revolues que se desenrolaram no Vero de 1830 em Frana, na Alemanha, na Polnia, na Blgica e nos Estados Pontifcios Iiquidaram o sistema da Restaurao. Pio VIII continuou a manter as rdeas da espionagem papal nas mos do cardeal Bartolomeo Pacca, que j era um homem muito poderoso dentro da Cria Romana. Entre os graves problemas com que se devia confrontar o papa Pio VIII, e portanto a Santa Aliana, estavam os movimentos revolucionrios e as seitas secretas dentro do Estado Pontifcio e as suas relaes sempre problemticas com a Frana catlica. Um dos mais brilhantes agentes da espionagem papal nesses anos era o monsenhor Francesco Capaccini. Durante a sua poca como nncio na Holanda, Capaccini dedicou-se a estabelecer uma ampla rede de informadores que iam desde os bairros mais pobres aos sales da corte. Capaccini recebia um grande nmero de relatrios altamente secretos mesmo da parte de membros dos Estados Gerais, o Parlamento Holands. Bartolomeu Pacca descobrira uma verdadeira mina de ouro com Capaccini e estava disposto a explora-Ia. Monsenhor Capaccini conhecia tudo o que dizia respeito famlia real por intermdio de um conselheiro de Estado que se convertera num assduo da nunciatura. Tratava-se de relatrios sobre a homossexualidade, infidelidade e outros assuntos dos membros da Casa de Orange que passavam pelas mos de Capaccini e iam parar aos arquivos da Santa Aliana em Roma. Pio VIII por vrias vezes chamou a ateno de Pacca sobre os mtodos utilizados pelo nncio na Holanda, mas para a mentalidade do chefe da Santa Aliana qualquer mtodo era aceitvel desde que fosse sempre em defesa dos interesses da Igreja, de Roma, do papa e dos Estados Pontifcios. Um dia, Francesco Capaccini alertou a espionagem papal sobre um assunto de alto segredo: Tive nas minhas mos por escassos minutos um relatrio confidencial enviado pelo embaixador da Holanda na Santa S acerca dos movimentos que esto a fazer-se nos Estados papais, escrevia Capaccini a Pacca. Na verdade, Capaccini conseguiu ler o relatrio durante uma visita que realizava ao ministrio dos Negcios Estrangeiros. Enquanto esperava ser recebido pelo responsvel do departamento de assuntos religiosos do ministrio, e numa altura em que a funcionria saiu da sala, o agente da Santa Aliana descobriu entre um monto de papis uma pasta em que estava escrito Santa S: Assunto Confidencial e de Alto Segredo. Sem pensar, abriu a pasta e comeou a ler a primeira pgina. Datado do Vero de 1829, o relatrio dos holandeses desvendava uma ampla conspirao organizada por uma srie de pessoas na cidade de Spa, onde preparavam algumas operaes subversivas contra os Estados Pontifcios. Os conspiradores, que tinham acesso a importantes fundos e impresso de panfletos, planeavam viajar separadamente at ao porto toscano de Livorno e entrar nos Estados papais como peregrinos. Uma vez dentro do territrio da Santa S, fariam a distribuio de literatura anti-papal e revolucionria. A informao foi entregue ao secretrio de Estado, cardeal Albani, e ao responsvel da espionagem pontifcia, cardeal Pacca. Os agentes da Santa Aliana puderam abeirar-se do grupo revolucionrio, prximos dos carbonari, atravs de um arteso que fazia parte da conspirao. Um deles observou que o arteso era um homem jovem que certamente queria vingar-se de qualquer membro do grupo. Entre Outubro e Dezembro de 1829, os soldados pontifcios detiveram cerca de catorze elementos do grupo revolucionrio; cinco deles, os principais cabeas, foram condenados morte e executados. Se de fato a Santa Aliana pudesse dispor de agentes to eficazes como Francesco Capaccini ou o abade Salamon, o Estado Pontifcio seria o governo melhor informado da Europa. Mas, infelizmente, as linhas de espionagem clssica seguidas por Capaccini ou Salamon no eram bem seguidas pelos seus colegas colocados noutras nunciaturas. Muitos deles entendiam que as tarefas de espiar outro Estado ou Governo no estavam dentro da sua funo pastoral e mesmo um elevado nmero de nncios no encaravam com bons olhos os mtodos utilizados pela Santa Aliana. Monsenhor Francesco Capaccini seria elevado a cardeal in pectore a 22 de. Julho de 1844 pelo papa Gregrio XVI por causa dos servios prestados Igreja. Este brilhante agente da espionagem pontifcia morreria um ano depois, a 15 de Junho de 1845. A poltica da Santa S e do seu prprio secretrio de Estado no se subordinou a nenhuma potncia europeia pela primeira vez em muitos sculos e talvez por isso a Igreja e a Coroa foram atacadas de igual modo na revoluo de 1830, que abalaria os alicerces de Frana. A estratgia de Carlos X, irmo do guilhotinado Lus XVI e que reinava em Frana desde h seis anos, foi a de colocar a imagem da Igreja ao lado do absolutismo e, por conseguinte, como inimiga das liberdades. O nncio em Paris j tinha informado Albani e Pacca de que a poltica de Carlos X prejudicaria a imagem da Igreja e de Roma perante os cidados franceses, mas ao que parece ningum o quis escutar. Como consequncia, os revolucionrios atacaram em Julho a sede episcopal, o noviciado dos jesutas, a casa das misses e a prpria nunciatura. Noutras cidades de Frana, e seguindo o exemplo de Paris, foram assaltadas igrejas, conventos e mosteiros. O papa Pio VIII, a conselho de Albani, rompeu a vinculao da Igreja com a monarquia de Carlos X e reconheceu o novo rei Lus Filipe de Orleans. Por sugesto de Pacca, o papa ordenou a todos os bispos e ao clero de Frana que prestassem submisso ao novo monarca escolhido pela nao. De igual modo, a Santa S apressou-se a reconhecer a Blgica como um novo Estado surgido em 1830 quando os catlicos e os liberais belgas se uniram para lutar pela sua independncia do reino dos Pases Baixos. O rei da Holanda, de religio protestante, procurava impor o absolutismo em todos os seus domnios. A 30 de Novembro de 1829, falecia o papa Pio VIII e assim se abria um novo conclave para eleger o seu sucessor. Como era de esperar, o conclave no foi breve, mas sim demasiado longo. Foram precisos cinquenta dias e uma centena de votaes para eleger o sucessor de Pio VIII. O cardeal Alberto Cappellari no fazia parte dos prognsticos e a prova disso que no recebeu nenhum voto passado um ms de conclave. Enquanto se contavam os votos, Cappellari pediu aos membros do conclave que deixassem de votar nele, mas o cardeal Zurla, alegando a obedincia s decises do conclave, pediu que aceitasse a tiara pontifcia. A 2 de Fevereiro de 1831, Cappellari recebeu os smbolos papais das mos do prprio chefe da Santa Aliana, Bartolomeo Pacca, e adoptou o nome de Gregrio XVI. O novo pontificado havia de mergulhar numa onda revolucionria que sacudiria metade da Europa. A rebelio estalou em Modena um dia depois de Gregrio XVI ter sido coroado. Os primeiros xitos tornaram-se em avanos, como a formao de um governo revolucionrio em Bolonha, onde tinham feito prisioneiro o legado pontifcio e proclamado mesmo a repblica. Depressa os exrcitos revolucionrios prosseguiram no seu avano imparvel, acabando por assumir o controle de Marcas e Umbria. Os exrcitos papais eram incapazes de conter esse avano quando tinham j conquistado oitenta por cento do territrio que constitua os Estados Pontifcios. Aconselhado por Tommasso Bernetti, secretrio de Estado, e por Bartolomeo Pacca, chefe da espionagem, Gregrio XVI resolveu pedir ajuda militar Austria para sufocar essa rebelio. Por esta altura, Bartolomeo Pacca estava muito desprestigiado dentro da Cria Romana dado que a Santa Aliana se mostrou incapaz de detectar esse movimento revolucionrio no interior das fronteiras papais. A entrada das tropas austracas nos Estados Pontifcios provocou o rpido protesto da Frana. Ao longo de mais de dois meses viram-se mergulhados quase sempre em permanentes distrbios e ataques bomba dos grupos revolucionrios, entre os quais se encontrava Lus Napoleo, futuro imperador da Frana sob o nome de Napoleo III. Logo que a rebelio foi sufocada, Inglaterra, Frana, Prssia e Rssia convocaram uma conferncia em Roma e obrigaram o papa Gregrio XVI a introduzir uma srie de reformas que apaziguassem os nimos revolucionrios. Nenhuma das potncias desejava que os revolucionrios triunfassem nos Estados papais, porque poderia provocar uma epidemia nas restantes naes da Europa. Depois da retirada das tropas austracas, os Estados Pontifcios voltariam a viver uma nova revolta em 1832 na Romnia, que tambm no foi descoberta pelos servios secretos do papa. O nico a ser detido pelos agentes da Santa Aliana foi Giuseppe Balzani, decapitado a 14 de Maio de 1833 e acusado de ofensas contra o papa. Em Janeiro de 1836, Gregrio XVI demitiu Tommasso Bernetti e Bartolomeo Pacca. Para ocupar a Secretaria de Estado, o papa nomeou o cardeal Luigi Lambruschini, de tendncia conservadora, com a inteno de que se aplicasse a poltica da mo pesada com os movimentos e dirigentes revolucionrios. Um dos mais famosos da poca era Giuseppe Mazzini, fundador da organizao Jovem Itlia e para quem o papa era o principal inimigo de uma Itlia unida. Lambruschini seria o primeiro cardeal na histria da Santa S a assumir ao mesmo tempo a Secretaria de Estado e os prprios servios de espionagem. Segundo este cardeal conservador, as mos do poder deviam dominar fortemente a diplomacia (a Secretaria de Estado) e o martelo (a Santa Aliana). Como secretrio de Estado, Lambruschini negociaria o fim das revoltas, com a inteno de pacificar os territrios da Igreja, e como chefe da Santa Aliana acabaria com todos esses movimentos revolucionrios que colocavam em perigo quase mil anos de governo do papa sobre os Estados Pontifcios. Seja como for, o certo que Gregrio XVI passar histria como um dos papas que mais condenaes morte assinou, num total de cento e dez, por impor a proibio absoluta de qualquer liberdade de expresso tanto verbal como escrita s pessoas e aos grupos que no seguissem os ditames da Santa Madre Igreja, por proibir aos judeus, sob fortes ameaas, de exercerem qualquer atividade cvica ou religiosa fora do gueto e ainda por dar o primeiro passo no total desmembramento dos Estados Pontifcios. Em comeos de 1846, um cancro atingiu o papa Gregrio XVI e disso morreria a 1 de Junho deste ano. A sua morte abria caminho ao pontificado mais longo da Histria na figura do papa Pio IX e a uma das etapas mais ricas historicamente falando. Karl Marx, Friedrich Engels, Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Charles Darwin, Cavour, Giuseppe Garibaldi, Otto von Bismarck ou Napoleo III foram algumas das figuras que passariam diante de Pio IX e influenciariam de uma forma ou de outra os trinta e dois anos do seu pontificado. O conclave de 1846 dividiu-se entre o cardeal Gizzi, candidato dos que desejavam uma Itlia unida, o cardeal Giovanni Maria del Conti Mastai Ferretti, candidato dos conclavistas moderados, e o cardeal Luigi Lambruschini, candidato dos zelanti, que o viam como o nico capaz de enfrentar os revolucionrios e assim obter o apoio da Austria. As constantes discusses entre os membros do conclave prediziam uma demorada eleio, mas, para surpresa de todos, quarenta e oito horas depois da primeira votao, o cardeal Mastai Ferretti conseguia reunir os dois teros necessrios para ser eleito papa. Mastai Ferretti escolheu o nome de Pio IX para um pontificado numa Europa que se perdia em guerras e revolues e era um verdadeiro campo para que germinassem os espies. Um dos grandes agentes secretos com quem a Santa Aliana do cardeal Luigi Lambruschini teve de se enfrentar foi Wilhelm Johann Karl Eduard Stieber. Nascido na Saxnia a 3 de Maio de 1818, Wilhelm foi educado no seio de uma famlia luterana que no via com bons olhos os padres nem o poder de Roma. Levado pela famlia para-o pai era funcionrio-, acabou na universidade berlinense os estudos de Direito. Nesses anos, converteu-se num bufo da polcia prussiana nos meios universitrios, mas no tinha trinta anos quando a Europa foi abalada pelos movimentos operrios. Frederico Guilherme da Prssia receava muito que esses grupos revolucionrios, imagem e semelhana dos que apareciam em Paris, Viena e Itlia, pudessem arrebatar-lhe o trono. Stieber percebeu ento o poder que podia chegar a ter com base nesse medo. Entre 1845 e 1850, Stieber continuou o seu trabalho de advogado enquanto entregava muita informao relativa aos seus prprios clientes revolucionrios ou intelectuais aos servios secretos da Prssia. Mas o primeiro contacto de Stieber com a Santa Aliana ocorreu a 11 de Agosto de 1848. Nesse dia, Wilhelm Stieber aproximou-se de um jovem sacerdote que trabalhava na nunciatura papal em Berlim. O jovem religioso era o secretrio de monsenhor Cario Luigi Morichini, representante do papa Pio IX na corte da Prssia. Stieber desejava estabelecer contacto com os servios de espionagem pontifcios por causa de uma informao que Ihe tinha cado nas mos. Para o espia prussiano, um dado ou informao era susceptvel de poder ser vendido a quem pudesse interessar. Wilhelm Stieber realmente no precisava de dinheiro, mas gostava ter influncias e contatos com outros servios secretos. No encontro com Morichini, o espio informou o nncio papal de que um infiltrado da espionagem prussiana num grupo revolucionrio Ihe comunicara que se preparava um atentado contra uma alta figura de Roma e que talvez pudesse ser o prprio papa. Morichini informou logo a seguir o cardeal Luigi Lambruschini, chefe dos servios secretos pontifcios, e o cardeal Giovanni Soglia Ceroni, secretrio de Estado. Era preciso atuar com rapidez para detectar em primeiro lugar qual o objetivo do grupo revolucionrio, o que era difcil devido ao grande nmero de figuras e de altas hierarquias da Santa S susceptveis de serem assassinadas. Informado Pio IX da notcia recebida por Stieber, ordenou a Luigi Lambruschini que enviasse a Berlim vrios agentes da Santa Aliana com o intuito de recolher mais informaes. Durante dois meses os espies do papa penetraram nos movimentos revolucionrios de Berlim com a ajuda de Wilhelm Stieber, mas sem qualquer resultado positivo. O conde Pellegrino Rossi, que era o chefe do governo dos Estados Pontifcios, nasceu na cidade italiana de Carrara a 13 de. Julho de 1787 e Iicenciou-se em Direito na Universidade de Pavia e Bolonha. Aps concluir os estudos, Rossi comeou a trabalhar para Joachim Murat, rei de Npoles, membro dos carbonari e defensor de uma Itlia independente e unida. Aps a derrota de Murat em Tolentino, Pellegrino Rossi foi obrigado a exilar-se em Frana e, depois da derrota de Napoleo em Waterloo, regressou a Genebra. Passados anos seria chamado pelo papa Pio IX ao conhecer as suas opinies sobre o restabelecimento de uma autoridade papal dentro de um governo constitucional. Mas Rossi tambm acreditava que o regime de liberdade exigido pelos movimentos revolucionrios devia ser alcanado de forma lenta e dentro de uma ordem civil. Foi esta ideia que provocou a sua sentena de morte por parte das sociedades secretas, cujos dirigentes viviam exilados em cidades como Berlim, Paris ou Bruxelas. A 15 de Novembro de 1848, trs meses depois da reunio entre Wilhelm Stieber e o nncio papal, monsenhor Carlos Luigi Morichini, Rossi dirigiu-se Assembleia Legislativa no Palazzo delia Cancelieria para explicar o seu programa. O chefe de governo dos Estados Pontifcios seguia na sua carruagem a ler o discurso quando de repente a portinhola se abriu e um homem que subira at perto do lugar do cocheiro Ihe cravou um punhal no pescoo, matando-o de imediato. A investigao do assassnio foi levada a cabo pelos agentes do servio de espionagem pontifcia, mas de forma misteriosa o assunto foi arquivado por ordem do cardeal Luigi Lambruschini sem se chegara uma concluso, ficando encerrada a investigao da morte de Pellegrino Rossi. Enquanto o papa Pio IX declarava abertamente que o chefe de governo assassinado tinha morrido como um mrtir da causa, as pessoas comeavam a espalhar rumores de que na verdade por detrs desse crime podia estar a mo da Ordem Negra ou mesmo do Crculo Octogonus, manejada na sombra pelo cardeal Lambruschini. O chefe da Santa Aliana era um declarado zelanti ou zeloso, algum que no desejava qualquer movimento de liberdade dentro da Igreja dos Estados Pontifcios, sob a autoridade infalvel do Sumo Pontfice. Com esta ideologia poderia ser bastante exato o rumor de que o cardeal Lambruschini tivesse ordenado o assassnio do conde Pellegrino Rossi, por causa das suas ideias acerca do papel que o papa devia exercer na unidade de Itlia, mas a verdade que a investigao feita por um dos interessados impediu que se descobrisse o autor material do crime e ainda os cabeas da conspirao. O cardeal Lambruschini, chefe da Santa Aliana durante dezoito anos, morreu a 12 de Abril de 1854 e levou consigo o segredo. O certo que o assassinato de Rossi foi para as sociedades secretas um sinal para acender a chama da revoluo que levaria ao exlio de Pio IX e implantao da Repblica Romana. Na manh seguinte morte do poltico pontifcio, as demonstraes e as manifestaes acabaram em distrbios e rebelies que provocariam o assassnio de monsenhor Palma, secretrio do papa. Confrontado com esta situao, o Sumo Pontfice aceitou o ministro que foi imposto pelo povo, mas uma outra parte da populao exigia que a Guarda Sua fosse extinta e o papa Pio IX demitido. Por ltimo, a 17 de Novembro, a Guarda Cvica tomou posies na Santa S, expulsou os suos e o papa foi feito prisioneiro da revoluo. A 24 de Novembro de 1848, e como acontecera antes com Pio VI e Pio VII, o papa Pio IX foi forado a abandonar Roma, refugiando-se no porto de Gaeta, no reino de Npoles. O novo Governo Provisrio decidiu redigir uma Constituio que proclamasse a Repblica Romana. Uma Assembleia Constituinte confiou o poder executivo a um triunvirato formado por Mazzini, Cario Armellini e Aurlio Saffi. A 9 de Fevereiro de 1849, decretava que o papa era destitudo, de fato e de direito, do governo temporal do Estado Romano, que o pontfice romano gozaria de todas as garantias para o exerccio da sua potestade espiritual e a forma de governo do Estado Romano seria a democracia pura, que adotaria o glorioso nome de Repblica Romana. Por iniciativa de Espanha, realizou-se em Gaeta uma conferncia de potncias catlicas: Frana, Austria, Espanha e Npoles. A 3 de Julho de 1849, o general francs Nicols Charles Victor Oudinot e o general espanhol Fernando Fernndez de Crdoba e Valcrcel desembarcavam com a ajuda dos agentes da Santa Aliana em Civittavecchia, rompendo as linhas defensivas de Roma sob o comando de Giuseppe Garibaldi. A capital era tomada, enquanto os exrcitos das outras potncias ocupavam o resto dos Estados Pontifcios. A 12 de Abril de 1850, o papa Pio IX pde regressar a Roma, mas a verdade que o governo temporal dos papas tinha acabado em definitivo. Camilo Benso, conde de Cavour, seria o grande artfice da unidade da Itlia e do fim dos Estados Pontifcios. Como primeiro-ministro do Piemonte desde 1852, estabeleceu um plano baseado em dois simples pontos: Chiesa libera in Stato libero e Roma como capital da Itlia unida. Vtor Emanuel II de Sabia, rei do Piemonte, ocupou, com a ajuda de Garibaldi, os novos territrios para a jovem Itlia, pedindo ao papa que outorgasse aos seus sbditos os mesmos direitos de que desfrutavam os cidados piemonteses, bem como a aceitao da anexao de alguns dos territrios que faziam parte dos Estados Pontifcios, como era o caso da Romnia. Pio IX, aconselhado pelo cardeal Antonelli, recusou a petio. Eu no posso ceder explicava ao imperador Napoleo III naquilo que no me pertence. Uma outra razo era o receio de ver alargar-se assim aos Estados Pontifcios a poltica laica seguida pelo governo de Turim. Na encclica Nullus certi, proclamada a 19 de. Janeiro de 1860, Pio IX denuncia os atentados sacrlegos cometidos contra a soberania da Igreja romana e exige a devoluo do que lhe foi roubado (a Romnia). O texto acabava com a ameaa de excomunho contra os usurpadores dos direitos da Santa S. Em finais de 1860, o papa dispunha apenas de um tero dos seus Estados. Um dos primeiros agentes da Santa Aliana a dar conta do difcil equilbrio que se desenrolaria entre a Frana, a Austria e o Piemonte seria monsenhor Antonino de Luca. Como nncio papal, primeiro em Munique (1853-1856) e depois em Viena (1856-1863), tornou-se numa das mais frutuosas fontes de informao da espionagem pontifcia dessa fase. Formado em Histria, Filosofia e Teologia, e com um largo domnio em vrias lnguas, o prelado siciliano foi chamado para Roma em 1829 para editar um jornal teolgico e servir como consultor de diferentes sectores da Cria Romana. Em 1853, De Luca foi enviado para a Bavria como nncio e trs anos depois transferido para Viena, que era o lugar mais importante da diplomacia pontifcia nesses anos. A curta experincia em Munique serviu-lhe para a sua entrada na capital austraca. Quando, em Fevereiro de 1859, o embaixador britnico em Frana, lorde Cowley, chegou a Viena para procurar uma soluo para a guerra entre a Austria e a Frana, o secretrio de Estado e responsvel pelo servio de espionagem papal, cardeal Giacomo Antonelli, escreveu a De Luca: Desde que as questes italianas deixaram de ser diplomticas, o nncio devia ocupar-se de tarefas mais importantes; e assim seria. Com a ajuda de Wilhelm Stieber, que voltou a aparecer na cena da espionagem, aps uma tentativa por parte dos seus inimigos de o levar justia, o bispo Antonino de Luca tornou-se numa inesgotvel fonte de informaes para a Santa Aliana a partir da nunciatura em Viena. O primeiro grande xito de monsenhor De Luca como espio foi durante a sua estada em Munique. O nncio assegurou que a espionagem austraca (mas na realidade fora Stieber) o informou de que um grupo revolucionrio identificara trs sacerdotes como agentes da Santa Aliana e que era sua inteno acabar com eles. Ao que parece, um dos agentes tinha sido muito eficaz na altura de denunciar os ativistas garibaldinos polcia papal. Todos os agentes da Santa Aliana que operavam no territrio italiano foram postos em estado de alerta para que tornassem precaues sempre por ordem do seu responsvel, o cardeal Luigi Lambruschini. Mas, apesar de tudo, no incio de Janeiro de 1854, quando os trs espies do papa se reuniam numa taberna, entraram de rompante Gustavo Paolo Rambelli, Gustavo Marloni e Ignazio Mancini, que se prepararam para, cada um deles, cumprir um objetivo: Rambelli disparou sobre o primeiro agente da Santa Aliana, que se encontrava de costas, e o espio caiu morto no mesmo instante. Marloni tentou disparar sobre o segundo agente, mas a pistola encravou-se. O sacerdote, com um salto, conseguiu desarmar Marloni, enquanto Mancini disparou sobre o terceiro agente da Santa Aliana e o deixou ferido de morte. Quando Mancini se voltou, Marloni ainda lutava no cho com o espio do papa. Ento, Mancini agarrou num punhal e cravou-o por vrias vezes nas costas, embora o tivesse morto logo com a primeira punhalada. A seguir, e antes da chegada da Guarda Pontifcia, os trs homens fugiram pelas estreitas ruas que rodeavam o edifcio. Passados sete dias, Rambelli, Marloni e Mancini foram presos e acusados, julgados e condenados morte pelo assassnio dos trs agentes da Santa Aliana. A 24 de Janeiro de 1854, os trs subiriam ao patbulo, onde foram decapitados. O poderoso cardeal e secretrio de Estado, Giacomo Antonelli, assinou a sentena de morte. Por este crime, alguns anos depois, o prprio Antonelli seria vtima de outro atentado por parte de um partidrio de Garibaldi, chamado Antnio de Felici. O atacante s feriu o cardeal e homem de confiana do papa Pio IX no brao e na mo direita, a mesma mo com a qual assinaria depois a execuo de Felici. Uma vez em Viena, e sempre com a ajuda de Stieber e da ampla rede de espies, monsenhor Antonino de Luca assumiu cada vez com mais interesse o servio prestado Santa Aliana. Num dos comunicados informou que oficiais traidores do exrcito piemonts lhe cederam os planos da fortificao na Romnia, uma regio que antes fazia parte dos Estados papais e fora anexada pelo reino do Piemonte em 1860. Ningum fez caso desta informao, a no ser Wilhelm Stieber que a aproveitou na guerra franco-prussiana de 1870. Em Maro de 1861, Vtor Emanuel II proclamou-se rei de Itlia e comearam as negociaes em que se faziam mil promessas ao papa no terreno espiritual, desde que este cedesse terreno no plano temporal. As negociaes proIongaram-se at 1864, na mesma altura em que o rei Vtor Emanuel assumiu o compromisso de respeitar o patrimnio e o territrio em que se sentava So Pedro. Por causa da situao de desmoronamento em que vivia o imprio da Igreja, as comunicaes da Santa Aliana em Roma com os espies que andavam espalhados pelo Mundo revelavam-se quase inexistentes e por isso a espionagem pontifcia mostrou-se incapaz de prever a guerra que se avizinhava nos Estados Unidos. Em 1861, os Estados Unidos da Amrica, que s h pouco mais de oitenta anos se chamavam unidos, foram abalados pela guerra civil. Tratava-se de uma nao onde se confrontavam duas sociedades, cada uma com diferentes modelos sociais, polticos e econmicos. Era uma nao que em quatro dcadas multiplicara vrias vezes o seu territrio, com a compra de Louisiana Frana, da Flrida Espanha, a anexao do Texas e a posterior guerra com o Mxico (1846-1848). O ambiente poltico dos estados do Norte e do Sul ficou marcado pelo interesse dos sulistas nas plantaes de tabaco, acar e algodo e em manter a todo o custo os seus quase trs milhes e meio de escravos, enquanto os unionistas se inclinavam mais para o comrcio, a navegao e os interesses financeiros e, portanto, para os direitos alfandegrios. De um lado, estavam os capitalistas nortenhos que eram credores e do outro lado os agricultores sulistas, que eram devedores. A 6 de Novembro de 1860, foi eleito o candidato republicano Abraham Lincoln como presidente dos Estados Unidos, um advogado que no Congresso se manifestara contra a escravatura. A 20 de Dezembro do mesmo ano, a Carolina do Sul separou-se da Unio e poucos dias depois foi a vez do Mississipi, Flrida, Alabama, Gergia, Louisiana e Texas. Em princpios de Fevereiro de 1861, os representantes dos estados secionistas reuniram-se em Montgomery, capital do Alabama, para criar uma nova nao: os Estados Confederados da Amrica. A Constituio Provisria adotada era semelhante, em linhas gerais, dos Estados Unidos e, embora proibisse o comrcio de escravos com frica, permitia o trfico entre os vrios Estados. Os do Sul separavam-se, segundo eles, pelos agravos que o Norte cometia em torno da questo da escravatura, e o escolhido para dirigir a Confederao seria. Jefferson Davis, antigo secretrio da Guerra. O novo presidente dos Estados Confederados da Amrica chamou s suas fileiras uns cem mil voluntrios. Como parte do piano de defesa, a Confederao apoderou-se dos arsenais federais, instalaes militares, correios e alfndegas no interior dos estados do Sul. Fort Sumter, na baa de Charieston, no se renderia aos homens do Sul. Quando Abraham Lincoln anunciou a sua inteno de enviar reforos, os confederados entenderam que deviam utilizar a fora. As quatro e trinta da madrugada do dia 12 de Abril de 1861, um canho sulista disparou o primeiro tiro da guerra civil americana. A Confederao foi a agressora, como Lincoln desejava. Durante o conflito civil, que se desenrolaria entre 1861 e 1865, a Santa Aliana contou com Louis Binsse, cnsul papal em Nova Iorque. As suas informaes como espio no eram muito amenas ou pelo menos interessantes. Por exemplo, em pleno comeo das hostilidades depois do ataque a Fort Sumter, Binsse escrevia aos seus superiores da espionagem papal sobre os navios mercantes que se dirigiam para algum porto dos Estados Pontifcios ou sobre um cidado com apelido italiano que se apresentasse diante dele para pedir um visto. Se se pudessem estudar os relatrios de Binsse, dar-se-ia conta de que o agente da Santa Aliana se baseava mais na informao poltica do momento, em grande parte retirada dos jornais, do que no complexo trabalho de um espio, embora isso o no impedisse de obter informaes importantes: uma delas seria a que descobriu em Junho de 1861, quase por casualidade. Louis Binsse tinha sido convidado para uma recepo em Nova Iorque de polticos e militares unionistas com o propsito de angariar fundos para a causa. Durante a festa, algumas damas abeiraram-se de Binsse sem saberem que ele era um agente do servio de espionagem papal e quiseram que lhes dissesse o que pensava de Giuseppe Garibaldi. De fato, as senhoras da Unio no sabiam que Garibaldi era um inimigo para o papa Pio IX e, portanto, tambm o era para o cnsul em Nova Iorque. O agente da Santa Aliana, fazendo uso do seu charme, pde obter essa informao da esposa de um general da Unio: o prprio presidente Abraham Lincoln convidara Garibaldi para que assessorasse os seus generais sobre tticas de guerra. O agente Binsse comunicou Santa Aliana em Roma e ao cardeal secretrio de Estado, Giacomo Antonelli, as intenes do lder unionista. A notcia desencadeou um escndalo de tal dimenso na Santa S que Lincoln foi obrigado a retirar o seu convite e pedir desculpas formais ao papa Pio IX. No entanto, milhares de voluntrios garibaidinos que tinham integrado as clebres camisas vermelhas formaram ento a chamada Garibaldi American Legion, que combateria corajosamente ao lado das foras da Unio em diferentes batalhas. Logo que tal informao chegou s mos de Roma, o consulado de Nova Iorque tornou-se num autntico centro de espionagem de onde se encaminhava Santa Aliana, em Roma, qualquer informao procedente de bispos, padres ou monges situados em qualquer parte dos Estados Unidos, fosse no Norte ou no Sul. As notcias do bloqueio naval do Norte sobre os estados do Sul, que estava a provocar a deteriorao da posio militar da Confederao, misturavam-se com os pedidos de fundos de qualquer congregao de freiras, a notcia do falecimento de um bispo ou o comeo da construo de uma catedral. A Santa Aliana em Roma ou Louis Binsse em Nova Iorque no classificavam a informao recebida como importante, pouco importante ou absolutamente desnecessria. A Santa S pensava que para poder filtrar a informao recebida de uns Estados Unidos em guerra devia mobilizar dezenas de milhares de religiosos e funcionrios que trabalhavam para a Cria Romana e em fase de desintegrao dos Estados Pontifcios o papa Pio IX no achava necessrio utilizar mais meios. Outra coisa foi mostrar a posio do Vaticano e da Santa Aliana em relao a um dos grupos em conflito. As primeiras presses chegaram ao papa e ao secretrio de Estado por parte do arcebispo de Nova Iorque,. John Hughes, dez meses depois do ataque a Fort Sumter. Hughes disse ao papa Pio IX e ao cardeal Antonelli que ele apenas servia a Igreja e no os interesses nacionais de uma nao, mas de fato o arcebispo de Nova Iorque era um agente encoberto e propagandista de Washington. O seu salrio era pago pelo governo de Lincoln e os seus relatrios eram lidos pelo secretrio de Estado, William Seward. A misso encomendada por Seward ao arcebispo John Hughes era a de viajar at Roma e conseguir o apoio pblico do papa Pio IX para a causa do Norte. Para isso, Hughes apresentou-se de surpresa na Santa S, dizendo que durante o seu trabalho para a Santa Aliana tinha descoberto que a Confederao planeava atacar o Mxico e as ilhas catlicas do Caribe. Mas as simpatias do papa Pio IX e do seu secretrio de Estado, cardeal Giacomo Antonelli, pelo Norte perderam fora quando a Santa Aliana comeou a receber informaes diferentes a partir de Maio de 1863. A fonte no era outra seno Martin Spalding, arcebispo a favor da secesso de Louisville, no estado confederado de Kentucky. Spalding, tal como Hughes por parte do governo de Lincoln, recebia do governo de Jefferson Davis um importante pagamento secreto para conseguir para a causa confederada o apoio do papa. O principal interlocutor de Spalding era Judah Benjamin, secretrio de Estado confederado. O arcebispo Spalding, no seu relatrio Santa Aliana, assegurava que a emancipao dos escravos negros era um movimento poltico por parte de protestantes abolicionistas e que as gentes do Sul representavam o verdadeiro catolicismo. Monsenhor Spalding afirmava num relatrio a Antonelli que os negros se mostravam muito inclinados vida Iicenciosa por natureza e que no estavam preparados para a liberdade. Alm disso, a sua emancipao podia mesmo causar conflitos sociais que iriam comprometer o trabalho missionrio da Igreja em relao aos negros. Os relatrios de John Hughes e de Martin Spalding enviados para a Santa Aliana demonstravam que os bispos catlicos no eram imunes s causas polticas e por vezes a sua lealdade era maior em relao Unio e Confederao do que ao papa e Santa S. A m informao recebida pelos agentes da espionagem pontifcia ao longo do conflito revelou-se de fato uma sria quebra na poltica de relaes de Roma com Washington, a sede da Unio, e Richmond, a sede da Confederao. O papa Pio IX comeou a mostrar as suas simpatias pela causa do Norte e depois mudou para a causa do Sul, e a seguir inclinou-se de novo para o Norte. Seria talvez a partir de 1865, no final da contenda, com o triunfo do Norte sobre o Sul, que os responsveis da espionagem do Vaticano se deram conta de que deviam formar agentes de espionagem profissionais se pretendiam que a Santa Aliana se convertesse no futuro em mais um instrumento que permitisse aos papas tomar as decises necessrias sobre uma situao poltica concreta. Como primeira medida, o cardeal Giacomo Antonelli ordenou que cada administrao da Igreja, nunciatura e arcebispado preparassem todas as semanas relatrios polticos em que indicariam as atividades polticas nas suas reas; os ttulos de livros que deviam ser censurados; os jornais e as ideias polticas que defendiam; as diverses pblicas; os retratos de funcionrios pblicos; a ateno feita sobre os estrangeiros e viajantes suspeitos e dar qualquer informao sobre grupos ou movimentos polticos subversivos. Os relatrios eram enviados Secretaria de Estado, que se ocupava em distinguir o que era matria de espionagem interna, que s interessava direo-geral de polcia de Roma, e matria de espionagem externa, que s dizia respeito Santa Aliana. Um dos mais hbeis espies do servio secreto do Vaticano na obteno e anlise de informaes era, sem dvida, monsenhor Tancredi Bell. Sendo um jovem delegado papal na pequena cidade de Rieti, a norte de Roma, tinha revelado a sua experincia como membro do servio de espionagem ao descobrir uma conspirao do grupo Fedellit e Mistero (Fidelidade e Mistrio), que executavam diversas operaes de sabotagem contra os austracos e contra as autoridades papais, e foi com a sua informao que conseguiram desarticul-los. Como delegado em 1859 numa Ancona prestes a cair nas mos dos patriotas italianos, Tancredi Bell descobriu uma conspirao maior para acabar com o poder pontifcio na regio, apoiada pelo reino de Piemonte. As informaes recolhidas eram da maior importncia. Bell descobriu a partir de meados de Abril de 1859 que um elevado nmero de voluntrios chegados de toda a parte de Itlia estavam a concentrar-se no Piemonte para obedecer s ordens de Giuseppe Garibaldi nas tropas de caadores alpinos contra os austracos; descobriu tambm que o exlio anti-papal estava a fazer srias ameaas aos funcionrios da polcia pontifcia e s suas famlias na regio da Romnia, dentro dos territrios pontifcios; ou que a Frana estava a concentrar fortes contingentes de tropas na sua fronteira com o Piemonte. Entre Maro e Agosto de 1860, Bell recebeu de um dos agentes a informao sobre a dbil sade de Garibaldi e, apesar disso, o heri da Unificao assumiu o comando de um contingente de cinco mil homens rumo Siclia. Uma parte importante das tropas era da sociedade secreta dos protetores, ligados aos carbonari, que chefiariam a iniciativa na campanha garibaldina que obteria a libertao da Siclia em 1860. A qualidade da informao secreta obtida pelos espies de Tancredi Bell era a melhor, em parte devido organizao da sua prpria rede, que se encontrava fora do controle da Santa Aliana em Roma e assim operava com maior independncia. Como delegado, monsenhor Bell controlava entre dez a doze agentes e cada um dispunha de informadores prprios. Um deles era inspetor de polcia de Pesaro, que antes tinha servido nos quadros de polcia de Toscnia e Veneza. Aps a incorporao do gro-ducado da Toscnia no reino de Itlia em 1860, o polcia mudou-se para o porto adritico de Pesaro, O agente da Santa Aliana decidiu abandonar a espionagem papal e integrou-se na polcia em Npoles, embora fosse ainda informador de monsenhor Bell durante anos. Outro dos agentes mais ativos de Bell era um criado que trabalhava para Odo Russell, diplomata em Roma e agente do servio secreto ingls entre 1858 e 1870. Atravs do agente da Santa Aliana em casa de Russell, o secretrio de Estado estava sempre informado das visitas de figuras importantes em Roma, desde aristocratas e diplomatas at jornalistas, religiosos e banqueiros. Por outro lado, tambm o correio diplomtico se tornou numa boa fonte de informao para os espies do papa. Em 1860, o embaixador americano em Roma apresentou uma nota de protesto ao cardeal secretrio de Estado pelo fato de a sua prpria correspondncia entre a embaixada dos Estados Unidos em Paris e a de Roma ser aberta por espies papais. Dois anos mais tarde, o embaixador informou o Departamento de Estado de que todo o correio que ele recebia de Washington chegava sempre com os sobrescritos abertos. Por outro lado, em 1861, curiosamente, a Santa Aliana no fez absolutamente nada quando o servio telegrfico papal detectou algumas comunicaes cifradas entre o representante do reino de Piemonte em Roma e o seu ministro dos Negcios Estrangeiros, o conde Cavour. O servio de espionagem pontifcio no fez qualquer esforo para quebrar os simples cdigos piemonteses, o que muito os teria ajudado a descobrir as intenes da Casa de Sabia sobre o futuro de Itlia. O ducado de Roma, o nico que ainda restava ao papa, seria protegido pelo exrcito de Napoleo III at Cavour conseguir, em finais de 1866, que os franceses se retirassem de Roma. A 19 de Julho de 1870, estalou a guerra franco- prussiana e o imperador Napoleo III viu-se obrigado a retirar as suas foras de Roma. Quando o ltimo soldado francs abandonava a cidade pontifcia, o rei Vtor Emanuel anunciou o firme propsito de ocupar Roma para garantir a manuteno da ordem, segundo as palavras do monarca. O papa Pio IX respondeu ento: Dou graas a Deus por ter permitido que Vossa Majestade encha de amargura o ltimo perodo da minha vida. De resto, no posso admitir as exigncias contidas na vossa carta, nem 183 associar-me aos princpios que revela. lnvoco de novo Deus e coloco nas suas mos a minha causa que inteiramente sua e rogo-lhe que conceda a Vossa Majestade a misericrdia de que vs tanto precisais. A 20 de Setembro de 1870, o exrcito piemonts, sob o comando do general Cardona, entrou em Roma pela Porta Pia, sem haver muita resistncia. A tomada da Cidade Eterna foi realmente o ltimo passo para a unificao definitiva da Itlia. O novo Estado italiano procurou resolver a difcil situao com a unilateral Lei de Garantias, de 13 de Maio de 1871, que reconhecia a inviolabilidade da pessoa do Sumo Pontfice. Pio IX rejeitou esta lei porque, se a aceitasse, isso supunha reconhecer a ocupao de Roma e do pouco que ainda restava dos Estados Pontifcios. Como resposta recusa pontifcia, Vtor Emanuel II instalou-se no palcio do Quirinal, a histrica sede dos pontfices, ao mesmo tempo que declarava: Estamos em Roma e nela. O papa deu ento incio poltica do Non possumus em relao renncia dos seus Estados, considerando-se como prisioneiro da Casa de Sabia no Vaticano. A 6 de Novembro de 1876, o cardeal e homem da confiana do papa, o poderoso Giacomo Antonelli, morria com setenta anos, depois de ter ocupado a Secretaria de Estado durante vinte e sete anos e chefiado a Santa Aliana ao longo de vinte e dois. Em 1877, a sade do papa Pio IX comeou a declinar, quando j contava oitenta e seis anos. O Governo italiano pde preparar os funerais pontifcios com grande antecipao, porque antes disso teve de celebrar as exquias fnebres do seu soberano. Curiosamente, e por um simples capricho do destino, o rei Vtor Emanuel II, o grande inimigo do papa, morria a 9 de Janeiro de 1878, quatro semanas antes de Pio IX. Nos primeiros dias de Fevereiro de 1878, o Sumo Pontfice ainda deu algumas audincias at que na tarde do dia 7, e devido a um Catarro complicado com febre alta, a sua vida extinguiu-se depois de permanecer no cargo trinta e um anos, sete meses e vinte e dois dias. Com a morte do papa Pio IX e a perda dos territrios papais chegava ao fim toda uma poca da histria pontifcia. Os papas seguintes e os agentes da Santa Aliana viveriam alguns anos trgicos. O cavaleiro da guerra cavalgaria pelos cus da Europa, inundando a terra de sangue e de devastao.
10
A associao dos mpios (1878-1914)
Disseram os mpios: faamos tudo contra o justo porque nos incomoda e ope-se s nossas aes, reprova as transgresses da lei e atira-nos cara as faltas de educao que recebemos. Se o justo filho de Deus, Ele o ajudar e o libertar das mos dos seus inimigos. Faamos a prova disso com insultos e tormentos. Sabedoria 2,17.
O cardeal Vincenzo Gioacchino Pecci mostrou-se um dos mais crticos acerca da gesto do cardeal Giacomo Antonelli. Por isso mesmo, Pecci esteve afastado de Roma durante quase trinta anos ininterruptos. Mas depois da morte de Antonelli, o papa Pio IX chamou Vincenzo Pecci para o seu lado e nomeou-o cardeal carmalengo. Com esta atitude o papa desejava que Pecci se encarregasse da administrao da Igreja at eleio de um novo pontfice. O conclave de 1878 foi o primeiro a celebrar-se aps a declarao da infabilidade papal e da perda dos Estados Pontifcios no ano de 1870. O conclave para a eleio de um novo papa desenrolar-se-ia durante o nascimento do Segundo Imprio alemo como grande potncia europeia que desalojava a Frana; um Japo a integrar-se no mundo moderno e que esquecia as suas tradies milenrias; uns Estados Unidos a avanar a passos de gigante para se converter na maior potncia mundial; e ainda uma Europa que dava um novo impulso colonial em frica e na sia. A verdade que o novo pontificado, que comearia depois da eleio de um candidato sado do Colgio Cardinalcio, seria o primeiro do mundo moderno, em parte porque, ao perder influncia e territrios, os cardeais libertavam-se de presses externas pela primeira vez em muitos sculos. O conclave que comeou na manh de 18 de Fevereiro foi um dos mais curtos de toda a histria. S com trs votaes, o cardeal Vincenzo Gioacchino Pecci obteve mais dos dois teros necessrios para ser eleito novo pontfice. Os primeiros anos de governo do papa Leo XIII caracterizam-se pela instabilidade e pela incerteza. O servio de espionagem papal no tinha ningum no comando, o que deixava muitas das operaes e efetivos sem ordens concretas ou sem saberem a quem dar informaes. No plano poltico, as coisas no se apresentavam muito diferentes. A diplomacia pontifcia teve, pois, de se recompor das cinzas. Os conflitos entre Leo XIII e o rei Humberto de Sabia e os ataques do reino de Itlia Santa S eram constantes, tal como as provocaes. A 13 de. Julho de 1881 ocorreria um dos mais graves ataques, na altura em que o Vaticano trasladava os restos mortais do papa Pio IX para a baslica de San Lorenzo Extramuros. Dois dias antes, os agentes da Santa Aliana, que tinham penetrado nas redes dos movimentos revolucionrios que se espalhavam pelas ruas de Roma, detectaram que muitos deles pretendiam apossar-se dos restos mortais do Sumo Pontfice e atir-los s guas do Tibre. Os efetivos da Guarda Sua foram colocados em estado de alerta para evitar qualquer tipo de ataque, enquanto a nova polcia de Roma era informada. Quando a comitiva entrou numa rua mais estreita, vrios agentes revolucionrios atacaram com pedras e objetos contundentes os elementos da comitiva para se apoderarem do corpo de Pio IX. Os polcias italianos que vigiavam os passos da procisso olharam para o lado, enquanto a Guarda Sua se mostrava corajosa para proteger o corpo do papa. Horas depois, o fretro com os restos mortais do Sumo Pontfice repousava na cripta de San Lorenzo. Os ataques Santa S convenceram Leo XIII a abordar o imperador da Austria, Francisco. Jos, a respeito da possvel instalao da administrao da Igreja em territrio austraco. O problema residia no fato de Francisco. Jos no desejar inimizar-se abertamente com a jovem Itlia por uma questo sem importncia como era a do papa. Assim, a negativa austraca fez com que Leo XIII decidisse lutar pelos direitos da Igreja e da Santa S a partir de Roma, mas uma outra frente se abriria depois na conflituosa poltica externa papal. O chanceler Otto von Bismarck, receoso dos influentes ncleos catlicos que se uniram no partido do Zentrum, aprovou uma srie de Ieis entre 1871 e 1878, que tinham como nico objetivo a perseguio e a hostilidade dos crculos catlicos contrrios poltica de Bismarck. A Kuiturkampf ou Luta de Culturas ordenava a expulso da Prssia de todas as ordens religiosas, obrigava a submeter ratificao do Governo alemo todas as nomeaes das altas hierarquias eclesisticas, encerrava todos os seminrios e impunha a expulso de todos os bispos. De repente, o papa Leo XIII viu-se confrontado em Roma com doze dos dezassete bispos que trabalhavam na Prssia. Os permanentes protestos entre os crculos catlicos que apoiavam Bismarck e o trabalho dos secretrios de Estado do Vaticano fizeram o resto. Em 1890, o kaiser Guilherme Il decidiu demitir Bismarck, abrindo desse modo uma nova fase de esplendor para o Zentrum. Leo XIII soube rodear-se de eficazes chefes da diplomacia vaticana, como os cardeais Alessandro Franchi, Lorenzo Nina e Ludovico Jacobini, mas nenhum deles considerava necessria a ajuda de um servio de espionagem como a Santa Aliana para apoiar a poltica do Vaticano no exterior. Tanto Franchi como Nina ou Jacobini viam a interveno do servio de espionagem papal mais como um entrave ou um inconveniente em questes que deviam ser resolvidas pela diplomacia e pela poltica. E apenas com a chegada do cardeal Mariano Rampolla secretaria de Estado, depois da morte do cardeal Ludovico Jacobini, devolveu certo esplendor espionagem papal. Uma tentativa de regenerao dos desgastados servios secretos do Vaticano foi levada a cabo no ano em que se desencadeou a guerra entre a Espanha e os Estados Unidos, mas a verdade que a Santa Aliana foi incapaz de detectar a guerra que se avizinhava entre as duas naes na Primavera de 1898. A dada altura, as relaes hispano-estadunienses foram perturbadas pelos acontecimentos ocorridos na ilha do Caribe. A represso exercida no territrio provocou uma sria reao da opinio pblica dos Estados Unidos. Em Fevereiro de 1898, dois fatos deteriorariam ainda mais as precrias relaes entre Madrid e Washington. A espionagem norte-americana conseguiu interceptar uma carta do embaixador de Espanha em Washington, Enrique Dupuy de Lme, dirigida a um amigo seu em Cuba, em que criticava abertamente os desejos expansionistas dos Estados Unidos e ridicularizava ainda o presidente MacKinley. O diplomata foi obrigado a demitir-se, mas toda a imprensa sensacionalista, dominada por William Randolph Hearst, acalentou os sentimentos feridos dos americanos. O segundo incidente que causaria uma tragdia foi o do couraado Maine. A 15 de Fevereiro, o navio de guerra explodiu acidentalmente e afundou-se quando se encontrava em visita ao porto de Havana e em que perderam a vida duzentos e sessenta e seis homens. Logo a seguir, o Congresso, a imprensa e a opinio pblica dos Estados Unidos acusaram os espanhis de terem cometido um ato de sabotagem. Com grande insistncia, os Estados Unidos exigiam a retirada de Espanha de Cuba. O papa Leo XIII e o cardeal secretrio de Estado, Mariano Rampolla, continuavam a negar a necessidade de dispor de um servio de espionagem ativo, porque preferiam a diplomacia como forma de evitar as guerras. O papa e Rampolla foram os intermedirios numa disputa entre a Alemanha e a Espanha em relao a certas ilhas do Pacfico, com enorme sucesso, e certamente tambm acreditavam poder interceder entre Washington e Madrid na questo de Cuba. Mas o problema estava no fato de o Vaticano no ter relaes diplomticas com os Estados Unidos e isso ajudaria muito pouco na soluo do conflito. O Santo Padre ordenou Santa Aliana que contactasse com John Ireland, arcebispo de Saint Paul, no Minnesota. O delegado apostlico devia tentar mediar em Washington, enquanto Ireland utilizaria outros canais para chegar ao presidente McKinley, mas a experincia do arcebispo revelou alguns dos perigos em utilizar agentes locais. John Ireland no era um agente da Santa Aliana que atuava de forma desinteressada na crise. Seria, pois, suficiente que o papa Leo XIII e Rampolla Iessem o relatrio que a Santa Aliana enviou sobre o polmico arcebispo. John Ireland identificava-se de uma forma clara com o Partido Republicano, que estava no poder em Washington. Poucos anos antes chegara ao extremo da sua implicao, em 1896, com a campanha eleitoral de McKinley, que escandalizara largos sectores catlicos do pas. O relatrio do servio de espionagem papal salientava que o arcebispo John Ireland tinha pedido durante as missas aos seus fiis que votassem a favor do Partido Republicano. Com a incumbncia do papa, o arcebispo esperava alcanar a prpura cardinalcia, mesmo apoiado por importantes personalidades da poltica local. Era claro que monsenhor John Ireland se revelava como um nacionalista a favor da democracia poltica, da tolerncia religiosa e da vitalidade econmica, mas pensava ainda que os Estados Unidos estavam destinados a ocupar a liderana mundial em relao a outras tradicionais potncias como a Espanha e o Vaticano. Mas era difcil determinar as ligaes que John Ireland tinha com a administrao MacKinley e como o seu nacionalismo influenciou os relatrios enviados Santa Aliana, em Roma. O que certo que essa lealdade estava dividida entre a sua paixo nacionalista pelo presidente dos Estados Unidos e a clara obedincia ao Sumo Pontfice. Os analistas da espionagem do Vaticano fizeram saber ao papa Leo XIII que John Ireland desejava ajud-lo a assegurar a paz na guerra de Cuba, mas que no queria fazer pensar administrao McKinley ou aos protestantes americanos que o seu arcebispo ou os seus concidados catlicos eram pouco patriotas ou mesmo pr-espanhis. No havia a menor dvida de que Ireland trabalhava para alcanar a paz, tal como o papa lhe tinha pedido, mas tambm que a soluo para a atingir passava por convencer o Vaticano a pressionar Madrid antes que a administrao McKinley estabelecesse um armistcio imediato em Cuba, como primeiro passo para resolver a crise. Os agentes da Santa Aliana continuavam a informar o secretrio de Estado Rampolla das intenes de John Ireland e, segundo o servio secreto Vaticano, o arcebispo desejava estar nas graas dos dois grupos sem mesmo se declarar favorvel a um ou a outro. Ireland enviou ento uma mensagem cifrada a Rampolla e ao papa Leo XIII com os pontos que o arcebispo julgava necessrios para dar o primeiro passo para a paz: uma declarao de Madrid que estabelecesse o armistcio imediato em todo o territrio de Cuba; negociaes hispano-cubanas para acabar rapidamente com todos os focos de insurreio, e a aceitao de uma arbitragem do presidente dos Estados Unidos na busca de uma soluo negociada. Com estas propostas, Washington assumia o direito de impor uma soluo outra parte, a Espanha, pelo que se exigia a Madrid uma srie de cedncias. Os agentes da Santa Aliana na capital americana informaram Roma de que as propostas feitas pelo arcebispo John Ireland tinham sido redigidas no Departamento de Estado e no pelo arcebispo e se fossem aceites pelo papa ou por Madrid suporia de forma antecipada o abandono de Cuba por parte de Espanha. O problema era que o Vaticano analisava somente a informao enviada por Ireland e no pelos agentes da Santa Aliana nem pelo delegado papal em Washington. Rampolla e a sua Secretaria de Estado liam apenas os relatrios do arcebispo de St. Paul e detinham-se nas afirmaes de Ireland acerca do presidente McKinley, que desejava desesperadamente encontrar uma soluo pacfica para o conflito, mas s se a Espanha cedesse a esses desejos se poderiam acalmar os nimos belicosos do Congresso e da opinio pblica. Na verdade, os Estados Unidos pretendiam controlar Cuba, entre outras razes pela sua posio estratgica diante do golfo do Mxico, e assim McKinley estava disposto a compr-la ou a lutar por ela. Enquanto o Vaticano, enganado de certo modo pelos relatrios de Ireland, procurava encontrar uma soluo junto de Madrid, o presidente McKinley apresentava aos legisladores, a 11 de Abril de 1898, o pedido de poderes especiais para declarar guerra Espanha. Nesse mesmo dia concordam que Cuba livre e independente e que se Espanha no renunciar soberania, o presidente dos Estados Unidos fica autorizado a utilizar todos os seus recursos para levar a efeito o que foi acordado. A 21 de Abril, foram cortadas as relaes diplomticas entre Madrid e Washington e no dia 15 os Estados Unidos declararam guerra Espanha, como sinal do incio do bloqueio da ilha. O resto j pertence Histria. Aps a destruio da esquadra espanhola de Cuba em Santiago, das Filipinas em Cavite, a rendio das foras espanholas do Oriente, a invaso de Porto Rico, o cerco de Manila e a impossibilidade de poder enfrentar o poderio naval dos Estados Unidos, o Governo de Praxedes Mateo Sagasta deu incio s conversaes para negociar a paz. O resultado da operao de desinformao feita pelo arcebispo. John Ireland neste conflito e o mimetismo desenvolvido pelo papa e pelo seu secretrio de Estado, acerca da falta de apoio a Espanha, deu origem a que o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, decidisse dar o primeiro passo na criao das relaes diplomticas com a Santa S. As intrigas urdidas pelo arcebispo. John Ireland foram descobertas pelo agente da Santa Aliana, monsenhor Donato Sbarretti, um perito em assuntos norte- americanos dentro da espionagem papal. Sbarretti levou poucos dias a detectar que Ireland se aproveitou da confiana que nele depositava o papa Leo XIII para a si mesmo garantir um brilhante futuro na diplomacia vaticana. Mas ao mesmo tempo descobriu que. John Ireland informava tambm os servios secretos americanos das mensagens que ele enviaria ao Sumo Pontfice e ao cardeal Rampolla. Monsenhor Donato Sbarretti alertou Roma para o fato de um grande nmero de altos funcionrios norte-americanos, em especial os do Departamento da Guerra, sob a direo do secretrio Elihu Root, que era responsvel pelos assuntos filipinos, manifestarem claros preconceitos em relao s ordens religiosas que operavam nas ilhas asiticas e que tinham proposto a radical soluo de expulsar todos os religiosos do arquiplago das Filipinas. Como anotao final, Sbarretti escreveu: Sinceramente, no creio que os norte-americanos tenham o mais pequeno interesse em estabelecer relaes diplomticas com a Santa S, tal como assegura o arcebispo de St. Paul, monsenhor John IreIand. O Vaticano, misteriosamente, ignorou as advertncias de Sbarretti acerca de. John Ireland e o papa Leo XIII ordenou que esse relatrio fosse declarado alto segredo. Quando, a 1 de Junho de 1902, William Howard Taft, governador das Filipinas, chegou a Roma em visita oficial como chefe de uma pequena delegao, foi recebido no palcio papal com uma cerimnia apenas reservada a embaixadores. A Santa Aliana, por ordem de Rampolla e do prprio Leo XIII, fez todos os possveis para que a visita da delegao encabeada por Taft fosse vista pela imprensa como um claro sinal de que os Estados Unidos estavam a pensar estabelecer relaes diplomticas com o Vaticano. Na verdade, tanto Rampolla como o Sumo Pontfice continuavam a acreditar mais nas anlises partidrias de Ireland do que nas de monsenhor Donato Sbarretti. A reao dos americanos no se fez esperar. William Howard Taft irritou-se ao saber que os agentes da espionagem papal estavam a fazer correr o rumor de que a sua visita era uma misso diplomtica formal por iniciativa do presidente Theodore Roosevelt. E Taft pde ento declarar: Estamos em Roma apenas para negociar uma venda de terras. Mas, depois de vrias semanas, as negociaes foram quebradas e Washington ordenou a Taft que regressasse s Filipinas. Em princpios de Julho de 1903, quando estava reunido com Rampoll, o cardeal secretrio de Estado, o papa Leo XIII sofreu uma inflamao pulmonar. No dia 7, os mdicos descobriram que os pulmes do papa estavam infectados. O estado de sade manteve-se grave e a 20 de Julho acabou por falecer rodeado dos seus mais fiis servidores. Com a sua morte, desapareciam vinte e cinco anos de um pontificado em que a Santa Aliana se mostrou absolutamente inoperante dentro da poltica de conteno ordenada por Leo XIII ao seu servio de espionagem, e apesar de nos ltimos dez anos de vida o mundo ter sido fustigado por uma srie de assassinatos que podiam ter afetado o prprio papa. O presidente da Repblica Francesa, Marie Franois Sadi Carnot, fora assassinado em 1894; o presidente do Governo espanhol, Antnio Cnovas dei Castillo, em 1897; a esposa do imperador Francisco Jos da ustria, Isabel Wittelsbach, Sissi, em 1898; o rei de Itlia Humberto I, em 1900; e o presidente dos Estados Unidos, William McKinley, em 1901. A 31 de Julho de 1903, teve incio o conclave para escolher o sucessor do papa Leo XIII. O candidato mais bem colocado era o cardeal Mariano Rampolla, secretrio de Estado do papa falecido, mas o cardeal de Cracvia, Jan Puzyna, em nome do imperador da Austria, imps o seu direito de veto. Para Francisco Jos I o cardeal Rampolla era um inimigo da Tripla Aliana (Alemanha, Austria e Itlia) pela sua poltica de clara aproximao a Frana e a Roma. A 4 de Agosto, o cardeal Giuseppe Melchiore Sarto foi eleito Sumo Pontfice por cinquenta dos sessenta e dois cardeais reunidos em conclave, e escolheria o nome de Pio X para o seu pontificado. Com o comeo do sculo XX, a Santa Aliana viver uma das suas pocas de maiores frutos, embora no demasiado gloriosos. No novo sculo, apenas os italianos decidiram recrutar agentes secretos no interior do Vaticano. Assim, quando as relaes Igreja-Estado se converteram em motivo de discusses, muitos governos se sentiram na necessidade de recolher informaes acerca da poltica papal e das suas intenes por intermdio dos espies. O problema que persistia era o de que em Frana havia desde 1880 uma importante corrente anticlerical, apoiada pelos polticos Jules Ferry e Emile Combes, convencidos de que a inteno do papa era acabar com a Terceira Repblica e restabelecer a monarquia. O conflito acabou com a ocupao de mosteiros e conventos pelo exrcito, que se encarregou de expulsar os religiosos. Esses acontecimentos culminaram com o corte de relaes entre Paris e o Vaticano em 1904 e a promulgao da chamada Lei de Separao, que proclamava a separao da Igreja e do Estados . No momento mais agudo das tenses entre a Frana e o papa, os servios franceses de contra-espionagem dedicavam-se a operaes de vigilncia do nncio e na interceo das mensagens cifradas entre o Vaticano e o seu embaixador em Paris. Um desses relatrios detectados pelos espies franceses em 1904 falava de um incidente que se tinha passado na Avenida Gabriel, justamente diante do palcio do Eliseu, a residncia do presidente francs, onde o veculo do nncio, monsenhor Benedetto Lorenzelli, tinha colidido com um ciclista sem grandes consequncias. Na verdade, os telegramas cruzados entre a secretaria de Estado papal e os seus nncios eram potencialmente mais importantes do ponto de vista da espionagem do que as cartas, nas quais apenas se informava acerca de questes pouco transcendentes. Os criptgrafos franceses, que puderam quebrar os cdigos espanhis, italianos ou turcos, foram incapazes para decifrar os cdigos definidos pelo departamento de criptografia da Santa Aliana. Assim sendo, a cobertura do Vaticano por parte dos servios secretos franceses era mais uma questo de simples acasos do que de operaes organizadas com eficcia, mas em 1913 a Santa Aliana dirigiria uma operao contra o ministrio dos Negcios Estrangeiros de Frana. Monsenhor Cario Montagnini, o agente da espionagem papal em Paris, sabia que Stephen Pichon, chefe da diplomacia gaulesa, era um homem bastante teimoso em estabelecer relaes com o papa e por isso organizou um movimento secreto para acabar com ele. Montagnini tinha ordenado falsificar uma suposta mensagem entre o embaixador de Itlia em Frana e o seu ministro dos Negcios Estrangeiros em Roma, na qual se revelava que os servios secretos italianos detectaram em Paris a presena de um certo cardeal Vannutelli. O texto, falsificado pela Santa Aliana, salientava que Vannutelli tinha chegado a Frana com a inteno de ter reunies com o presidente Raymond Poincare e o seu ministro dos Negcios Estrangeiros, Stephen Pichon, para estabelecer conversaes secretas com o Vaticano apenas no propsito de restabelecer as relaes quebradas em 1904. Como era de esperar, a Sret pde decifrar o falso telegrama. O ministro do interior, Louis-Lucien Klotz, foi disso informado e protestou junto do presidente por no ter conhecimento desse assunto e ameaou demitir-se. Poincare disse no saber de nada, e de fato tinha razo. Como resultado da crise de governo que foi aberta, Stephen Pichon foi obrigado a demitir-se e Klotz proibiu os seus servios secretos de decifrar o correio diplomtico. A Santa Aliana afastou assim o incmodo Pichon. Outra das operaes da Santa Aliana descoberta pelos franceses seria tambm orquestrada por monsenhor Montagnini. Secretrio do nncio Lorenzelli, aquele que foi escolhido como seu sucessor teve de abandonar o embaixador papal em Paris depois do corte de relaes. O novo representante do papa Pio X ocupava o cargo de Assessor de Assuntos Religiosos e Custdia dos Arquivos da Nunciatura, mas de fato monsenhor Montagnini era um espio da Santa Aliana e os olhos e os ouvidos no oficiais do Vaticano em Frana. O sucessor de Benedetto Lorenzeiii era de fato um homem frvolo e indiscreto que gostava muito de recolher informaes nos ambientes sociais da poca, mas isso no convencia demasiado o novo secretrio de Estado, o cardeal Rafael Merry dei Vai. O chefe espanhol da diplomacia vaticana tinha em muito m conta as habilidades de Montagnini como 193 agente da Santa Aliana e admitia que o seu espio era frvolo, vulgar e completamente torpe. Os servios de espionagem franceses estavam convencidos de que Montagnini se preparava para organizar ciandestinamente movimentos de resistncia contra as leis anticlericais e conspirava com certos polticos conservadores para acabar com a Repblica, embora no tivessem disso provas suficientes. Certa tarde de Dezembro, o servio de espionagem, juntamente com os agentes da polcia francesa, tomaram de assalto a embaixada papal em Paris e apoderaram-se de todos os documentos que encontraram no seu interior. Alguns dos documentos vaticanos confirmavam os contactos entre vrios polticos franceses e o servio secreto do Vaticano, mas aqueles que eram mais comprometedores tinham desaparecido. Apesar disso, a espionagem gaulesa fez cpias das mensagens cifradas enviadas por monsenhor Cario Montagnini Santa Aliana. Numa delas, que Montagnini no pde fazer desaparecer, falava-se da possibilidade de pagar importantes quantias em dinheiro a Jacques Piou, lder do partido Ao Liberal, e a outros atravs dele, em troca de evitarem no Parlamento as novas leis anticlericais que em Frana queriam aprovar. Piou mencionava o nome de Georges Clemenceau, o poltico que conduziu a Frana vitria na Primeira Guerra Mundial, como um desses possveis subornados. Muitos governos sentiram em finais do sculo XIX uma importante diminuio dos seus servios de inteligncia, mas no caso do Vaticano e durante o pontificado de Leo XIII esta quebra foi bastante mais aguda. As capacidades da espionagem da Santa Aliana desapareceram com os Estados Pontifcios e com a perda dos poderes temporais. Um dos seus instrumentos que deviam proteger e manter esses poderes tornou-se quase suprfluo. As redes de espionagem dos delegados papais em comeos do sculo XX eram quase coisas do passado. Nestes anos, muitos agentes experimentados da Santa Aliana envergavam um uniforme brilhante nos servios de proteo e de escolta do papa, da Santa S e vigilncia dos palcios e instalaes pontifcias. As tarefas de espionagem eram levadas a cabo apenas pelos nncios, o que provocou importantes mudanas na filosofia de captar informaes estratgicas para a diplomacia papal. Na altura da morte do papa Pio IX, em 1878, o Vaticano mantinha relaes diplomticas plenas com quinze pases, sete dos quais europeus, maioritariamente catlicos, ou ainda com comunidades catlicas importantes, tanto do ponto de vista do seu nmero como da importncia poltica no seu interior. Os restantes estavam na Amrica do Sul, repartidos em trs nunciaturas. O embaixador papal na Argentina estava tambm acreditado no Paraguai e no Uruguai, e o do Peru estava-o na Bolvia, Chile e Equador. O problema surgia mais nas regies do Mundo em que no existia uma nunciatura e, portanto, se encontravam necessitadas de serem cobertas por agentes experimentados da Santa Aliana, como Londres, Berlim ou So Petersburgo, por exemplo. As autoridades papais durante o pontificado de Leo XIII, um dos que mais prejuzo causaram organizao da espionagem pontifcia em pouco mais de trs sculos da sua existncia, preferiam enviar delegados apostlicos do que espies para essas naes com as quais no tinham relaes diplomticas. Os delegados apostlicos forneciam uma maior informao religiosa Santa Aliana e os nncios faziam melhores anlises polticas. Nesses anos, aps a rigorosa condenao das ideias modernistas pelas encclicas do papa Pio IX, progressistas e tradicionalistas lutavam dentro da Igreja Catlica. O papa Pio X, defensor das ideias de Pio IX, decidiu nomear secretrio de Estado um cardeal espanhol, Rafael Merry dei Vai, que revelou, na altura em que os Imprios Centrais e a Entente entravam em luta, uma marcada preferncia pelas monarquias alem e austraca. Entre os mais estreitos colaboradores de Merry dei Vai estava um prelado chamado Umberto Benigni, que com o correr do tempo havia de se tornar num dos melhores espies do papa, responsvel e fundador do servio de contra- espionagem do Vaticano. Como sacerdote de Umbria, Benigni era o retrato perfeito do tradicionalista ortodoxo, que gozava de uma modesta reputao como jornalista e polemista, que se mudou de Pergia para Roma em 1895 em busca de fortuna. E um clrigo que trabalhava na Biblioteca Vaticana ofereceu-lhe um lugar digno das suas ambies e capacidades. Em 1901, Benigni assegurou um lugar de professor de Histria da Igreja no prestigiado Seminrio Romano, a instituio das elites em que se formavam todos aqueles que desejavam fazer carreira dentro da Cria Romana, mas ao mesmo tempo comeou a escrever artigos de opinio, como colaborador, no jornal ultra conservador La Voce della Verit. Os seus artigos, envoltos sempre em polmica, e os seus pontos de vista reacionrios, a respeito da sociedade ou da religio, chamaram a ateno dos chamados integristas na corte do papa Pio X. Os artigos de 195 Umberto Benigni defendiam os poderes temporais do papa e opunham-se a qualquer reforma poltica ou teolgica. Por isso, depressa o inteligente Benigni se converteu num protegido do influente secretrio de Estado, o cardeal Rafael Merry dei Vai, e de Gaetano De Lai, o poderoso prefeito da Congregao Consistorial, que era o departamento encarregado no Vaticano pela escolha dos bispos. Benigni seria nomeado minutante na Congregao de Propaganda Fide, o departamento responsvel pela atividade missionria, bem como passou a professor dos padres que seriam enviados para as misses. Em pouco tempo, aquele obscuro sacerdote de Umbria tinha-se tornado numa verdadeira celebridade nos crculos intelectuais conservadores de Roma, que constituam a chamada nobreza negra em redor do trono de So Pedro. Em 1906, Umberto Benigni foi catapultado para o prprio corao da mquina do Vaticano ao ser nomeado como subsecretrio de Estado para os Assuntos Extraordinrios dentro da Secretaria de Estado. Com uma absoluta falta de experincia nos problemas diplomticos, Benigni dedicou-se a estabelecer contactos que o ajudassem a subir na carreira dentro da Cria Romana. O cardeal secretrio de Estado, Merry dei Vai, tinha na sua alada dois secretrios, o dos Assuntos Extraordinrios, que se ocupava de supervisionar as relaes com os outros Estados, e o seu substituto para os Assuntos Ordinrios, a cargo de quem estavam as tarefas administrativas do Vaticano. Portanto, Benigni tinha a seu cargo prestar assistncia a monsenhor Pietro Gasparri, que chegara ao lugar de secretrio dos Assuntos Extraordinrios a partir da direo do Seminrio Vaticano e foi a que Gasparri conheceu Benigni, que o considerava como um funcionrio muito eficiente. Ao ficar vaga a nunciatura em Cuba, Gasparri entregou o lugar a Benigni, mas o clrigo olhava mais para cima, ou seja, nada mais nada menos do que a Secretaria de Estado. Ainda h pouco tempo Benigni vira ser-lhe negado o lugar para dirigir a Congregao de Propaganda Fide. Nesses anos, o cargo de secretrio de Estado para os Assuntos Extraordinrios era de grande importncia, mas misteriosamente Pietro Gasparri foi encarregado de rever e publicar o novo Cdigo de Direito Cannico, que era uma tarefa muito absorvente. Com Gasparri to ocupado, Umberto Benigni tornou-se o principal colaborador do cardeal Rafael Merry dei Vai. O obscuro clrigo que chegou a Roma em busca de fortuna dispunha de liberdade suficiente para se movimentar nos corredores do poder. O novo subsecretrio mudou o seu gabinete para o palcio apostlico para estar mais prximo do cardeal secretrio de Estado e apenas a quatro portas do gabinete do Sumo Pontfice. Em 1909, monsenhor Umberto Benigni, por ordem do prprio cardeal Rafael Merry dei Vai, criou uma rede de espies com a funo de se encarregarem, no Vaticano e nas instituies da Igreja, de detectar todos aqueles que defendessem o modernismo. Em muito pouco tempo, os agentes de Benigni comearam a denunciar religiosos que trabalhavam em vrias universidades, meios de comunicao e instituies polticas em Frana, na Gr-Bretanha, na Alemanha e em Itlia. Como consequncia das denncias formuladas pelos agentes de Benigni, que atingiram quase trs centenas de religiosos, o cardeal secretrio de Estado, Rafael Merry dei Vai, que sentia uma absoluta repugnncia pelas inovaes polticas e teolgicas, autorizou o subordinado a organizar uma espcie de unidade de contra-espionagem que deveria operar apenas no interior do Vaticano e das organizaes da Igreja, enquanto as operaes de espionagem no exterior continuariam a depender da Santa Aliana. A nova organizao de contra-espionagem teria como nome Sodalitium Pianum (Associao de Pio) e seria conhecida dentro dos muros do Vaticano como o S. P. Os primeiros esforos do Sodalitium Pianum seriam direcionados para a criao de um consistente programa de propaganda que permitisse atacar os argumentos modernistas com o fim de dominar um futuro debate pblico, tanto na Igreja como na sociedade. De forma separada, o S. P. devia realizar operaes clandestinas para recrutar os seus agentes na Amrica do Norte e na Amrica do Sul, para identificar os modernistas, revelar as suas conspiraes e ligaes e fazer fracassar os seus planos. Umberto Benigni deitou mos obra com toda a fora de um fantico e em pouco tempo as suas funes como subsecretrio dos Assuntos Extraordinrios deram lugar a outras no mundo da espionagem, que deviam permanecer secretas perante os prprios companheiros da Secretaria de Estado e at do seu chefe, monsenhor Pietro Gasparri. Benigni conhecia a influncia potencial dos jornais e pensava de fato que o Vaticano devia usar de forma efetiva a imprensa na sua luta contra o modernismo e o liberalismo. O chefe do S. P. auto-nomeou-se uma espcie de chefe de redao no oficial da Secretaria de Estado e ao longo de anos imps aos jornalistas que cobriam os eventos do papa a linha que teriam de seguir nos seus artigos. Benigni qualificava como inimigos os correspondentes de jornais e das agncias noticiosas de ideologia liberal e como amigos os rgos de comunicao de ideologia conservadora. Um outro passo importante do S. P. foi criar um jornal prprio, o Corrispondenza Romana, que Benigni dirigia por intermdio de um testa-de-ferro. Nas suas pginas atacava-se o modernismo e as polticas liberais e defendia-se abertamente e sem disfarces as prerrogativas papais. Quando chegaram as primeiras crticas de pases como a Frana ou at a Itlia, o papa Pio X negava que fosse um rgo oficial do Vaticano e nem sequer era um rgo semi-oficial. De fato, o papa mentia porque ele prprio autorizara o seu secretrio de Estado, o cardeal Rafael Merry dei Vai, a financiar o Corrispondenza Romana. Por ltimo, monsenhor Umberto Benigni escreveu um artigo que continha todas as suas teses integristas e a sua perspectiva conservadora a respeito dos acontecimentos mundiais polticos e religiosos. A verdade que o artigo estava muito bem redigido e por isso foi distribudo por agentes do S. P. a vrios correspondentes estrangeiros. Muitos fizeram publicar o artigo na ntegra ou resumiram-no com os seus prprios nomes, mesmo sem citar a fonte. Aslteses de Benigni foram lidas por milhes de pessoas na Argentina, em Espanha, na Austria, na Blgica e nos Estados Unidos. As operaes de propaganda e desinformao serviam assim para desacreditar o modernismo, mas Benigni e os seus chefes no interior do Vaticano precisavam de controlar a influncia deste movimento nas organizaes seculares e nas instituies. Os integristas tinham, pois, de identificar as adeses do modernismo e arranc-las das suas posies de maior poder, aplicando pesadas sanes papais. Para o S. P. as principais fontes de informao seriam os bispos, os delegados apostlicos e os nncios, mas muitos deles no se mostravam dispostos a dar informaes contra-espionagem para denunciar os outros. Era preciso dispor de uma boa rede de espionagem instalada em pleno corao do Vaticano, mas infelizmente para os integristas, como Merry dei Vai ou Benigni, a Santa S no contava com um bom servio de inteligncia desde a perda dos Estados Pontifcios. Mas a chegada de monsenhor Benigni cpula dos servios de espionagem pontifcios causou um obstculo nas operaes da Santa Aliana, muitas das quais se cruzavam. A contra-espionagem pontifcia converteu-se, pois, no principal inimigo da espionagem papal. Os agentes do Sodalitium Pianum lutavam com os espies da Santa Aliana por uma boa fonte de informaes. De fato, a organizao clandestina S. P. no tinha designao oficial nem se Localizava em qualquer sede pontifcia, nem sequer tinha uma placa que identificasse os seus servios ou departamentos. A sua prpria criao no foi divulgada no Anurio Pontifcio, publicao onde figura o organograma do Vaticano. As suas despesas eram cobertas com fundos secretos que chegavam a monsenhor Benigni atravs do secretrio de Estado, o cardeal Merry dei Vai. Se alguma autoridade perguntava diretamente ao chefe da contra-espionagem quais as suas atividades, Benigni declarava que s trs pessoas podiam responder: Deus, o papa Pio X e o cardeal Merry dei Vai. E evidente que as pessoas deixavam de fazer perguntas para evitar terem de se confrontar com alguma das trs. Benigni utilizou no Vaticano as mesmas tcnicas de espionagem de outras agncias de inteligncia das grandes potncias, como a Frana, a Gr-Bretanha, a Alemanha ou a Rssia, e apenas em raras ocasies o S. P. trocava informaes com os servios de segurana italianos. Espionagem, interceptao de correio e de telegramas, vigilncia pessoal e perseguies eram os trabalhos realizados pelos agentes da contra-espionagem papal. A partir dos palcios episcopais, sacristias, escolas, seminrios ou nunciaturas, eram dadas informaes ao S. P. em Roma vindas de todo o Mundo acerca de superiores ou colegas suspeitos de abraarem o modernismo, e alguns deles trabalhavam para Benigni. Uma das mais obscuras operaes de espionagem do Sodalitium Pianum aconteceu em finais de 1909. Atravs de vrios informadores, Benigni soube que existia em Roma um grupo de sacerdotes modernistas cujo chefe se chamava Antnio De Stefano, um notvel medievalista e antigo sacerdote que vivia em Genebra. Para poder entrar na organizao de De Stefano, o chefe do S. P. enviou um jovem padre e agente chamado Gustavo Verdesi. Este, muito prximo das ideias modernistas, informou monsenhor Benigni de que a rede dirigida a partir da Sua se tinha desarticulado, mas o chefe da contra-espionagem no se mostrava satisfeito e decidiu enviar o padre Pietro Perciballi, um antigo companheiro de estudos de De Stefano no Seminrio Romano. Foi ali que Perciballi conheceu outros defensores do modernismo, como Ernesto Buonaiuti, cujos livros e escritos foram declarados hereges pelo Santo Ofcio, o departamento vaticano responsvel por manter a ortodoxia catlica. Com dinheiro, um passaporte falso e uma mquina fotogrfica, Perciballi viajou para Genebra e, com o propsito de voltar a encontrar o seu companheiro, colocou-se desde logo em contacto com Antnio De Stefano. No primeiro relatrio, o padre PercibaIIi salientava o desejo de De Stefano de lanar uma revista intitulada Revue Moderniste Internationale. No texto lido pelo chefe do Sodalitium Pianum ressaltava o fato de que De Stefano convidara o agente PercibaIIi a abandonar a residncia em que vivia em Genebra e mudar-se para sua casa. Durante as largas ausncias de Antnio De Stefano, o agente PercibaIIi dedicava-se a fotografar os ttulos dos livros que se acumulavam numa estante da sala e a revistar os papis do escritrio, incluindo a correspondncia com Ernesto Buonaiuti. Quando PercibaIIi regressou a Roma, entregou a Benigni algumas cpias da correspondncia particular de De Stefano. Os arquivos do S. P. converteram-se rapidamente em valiosos relatrios sobre bispos reformistas, professores liberais de seminrios e intelectuais e jornalistas suspeitos. Entre os denunciados encontravam-se os cardeais Amette, arcebispo de Paris; Ferrari, arcebispo de Milo; Mercier, arcebispo de Bruxelas; Maffi, arcebispo de Pisa; Piffle, arcebispo de Viena; ou ainda Fischer, arcebispo de Colnia, bem como os reitores das Universidades Catlicas de Lovaina, Paris e Toulouse. Um outro dos denunciados por ser prximo dos modernistas foi o cardeal Giacomo Delia Chiesa, que seria enviado como arcebispo para Bolonha. O motivo da mudana de Delia Chiesa foi que o cardeal Merry dei Vai desejava afast-lo das influncias da Cria Romana e nada melhor do que mand-lo como arcebispo para longe da Cidade Eterna. Em 1914, o cardeal Giacomo delia Chiesa seria eleito papa depois da morte de Pio X. O prprio Benigni investigou, sem ordens expressas de Merry dei Vai ou do papa Pio X, o seu superior e antigo protetor, monsenhor Pietro Gasparri. Os relatrios dirios do S. P. recolhiam todas as informaes, como o desenvolvimento do Partido Catlico Centrista no Reichstag alemo; a organizao catlica estudantil Sillon, que defendia em Frana a reforma social e a reconciliao do catolicismo com a Terceira Repblica; a chegada do novo presidente no Uruguai, que propugnava a separao da Igreja e do Estado, e a supresso das festas religiosas; ou as tenses na Rssia pelas perseguies religiosas a catlicos da Polnia e da Litunia por parte das foras de segurana do czar Nicolau II. Mas depressa o S. P. comeou a ser conhecido nas altas hierarquias da Cria Romana como o Sagrado Terror e, para l do prprio papa Pio X, estavam entre os seus maiores defensores o cardeal Rafael Merry dei Vai, secretrio de Estado, o cardeal Gaetano De Lai, que era prefeito da Congregao Consistorial, e ainda o capuchinho espanhol cardeal Jos de Calasanz Vives y Tut, que era o responsvel pelo departamento das ordens religiosas. Com o conhecimento e a cumplicidade de Pio X, monsenhor Umberto Benigni viu-se com um poder ilimitado nas suas mos, de tal modo que os inimigos e as vtimas o consideravam como o gnio diablico do papa. Benigni apresentava todas as semanas relatrios exaustivos ao prprio pontfice, a Merry dei Vai e a monsenhor Giovanni Bressan, que era o secretrio particular do papa e um dos mais fiis aliados de Benigni. Na verdade, o chefe da contra-espionagem tinha mais protetores nas altas esferas do que amigos e causou viva surpresa nos corredores do Vaticano quando a 7 de Maro de 1911 o dirio Ubsservatore Romano deu a notcia da demisso de monsenhor Benigni do lugar de subsecretrio dos Assuntos Extraordinrios da Secretaria de Estado. O seu sucessor seria um jovem funcionrio do Vaticano chamado Eugnio Pacelli, que com o correr do tempo saberia progredir na Cria Romana at se tornar papa passados vinte e oito anos. Como Consolao, o papa Pio X nomeou monsenhor Umberto Benigni como protonotrio apostlico e foi-lhe permitido manter o comando da contra-espionagem. Para os amigos de Benigni, isso supunha uma ascenso e uma grande honra, enquanto que para os seus inimigos representava um modo de cair em desgraa ou o purgatrio. Os boatos que ontem como hoje corriam velozes pelos corredores dos palcios vaticanos apontavam que Benigni tinha sido afastado do seu importante cargo por se descobrir que passava documentos secretos papais ao representante do Governo da Rssia imperial no Vaticano. O que realmente verdade que monsenhor Umberto Benigni pediu de modo formal para deixar o cargo na Secretaria de Estado e poder dedicar mais tempo aos servios secretos pontifcios. A partir deste momento, as operaes e as organizaes e efetivos da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum seriam ligadas com um nico objetivo: a defesa da Igreja, do Vaticano e do papa. Para facilitar essa tarefa, Umberto Benigni continuou a ter acesso aos documentos e ao pessoal da Secretaria de Estado; exigiu um salrio de sete mil liras por ano e ainda o aumento de fundos a fim de financiar as atividades dos servios de inteligncia. O seu protetor e interlocutor desde essa altura seria o cardeal Gaetano De Lai e apenas contactava com o cardeal Merry dei Vai quando este desejava alguma informao sobre um bispo que ia ser promovido ou recebia honrarias papais. Por exemplo, na Primavera de 1912, monsenhor Eugnio Pacelli, amante de intrigas e de espionagem, fez perguntas ao seu antecessor sobre um religioso que ia ser nomeado bispo. Algumas semanas mais tarde, Pacelli contactou com Benigni para o informar que a Secretaria de Estado estava a preparar uma declarao sobre os movimentos operrios na Alemanha e para lhe comunicar que andavam procura de algum para substituir um arcebispo alemo h pouco demitido. Os problemas para Umberto Benigni apenas estavam a comear. Durante uma entrevista do jornalista Guglielmo Quadrotta com um antigo sacerdote catlico que se tornou metodista, este confessou-lhe que tinha trabalhado como secretrio particular de monsenhor Umberto Benigni e portanto para a contra-espionagem do Vaticano, infiItrando-se em certos crculos italianos suspeitos de tendncias modernistas. Outro escndalo que afetou a imagem do prprio Benigni e dos servios de inteligncia do Vaticano foi o caso divulgado por um grupo de liberais belgas e alemes, que fizeram uma investigao secreta sobre as atividades do Sodalitium Pianum e para isso conseguiram infiltrar no S. P. um frade dominicano chamado Foris Prims. O dominicano fez-se passar por amigo de um advogado belga que trabalhava na cidade de Gant, chamado Jonckx, e, graas a essa relao, Prims conheceu com todos os pormenores o sistema de operaes do S. P. e da Santa Aliana. Escandalizado e pensando que monsenhor Umberto Benigni agia sem nenhuma proteo, Prims foi a Roma para pedir uma audincia com o papa a fim de lhe contar tudo. Rafael Merry dei Vai salvou Umberto Benigni ao bloquear todas as tentativas de Foris Prims para se avistar com o papa Pio X e at ele se recusou a ver o dominicano ou receber a informao documental que trazia. Em 1912, o cardeal secretrio de Estado cortou o seu apoio financeiro ao jornal Corrispondenza Romana e pouco depois ordenou a Benigni que o encerrasse. Estava claro que a estrela de Umberto Benigni comeava a perder brilho e s se Pio X tivesse reconhecido publicamente a existncia do Sodalitium Pianum o poderia dotar de um inestimvel poder tal como ao seu fundador. Mas em vez de legitimar o S. P, Pio X preferiu, sempre atravs do cardeal De Lai, enviar os seus melhores votos apostlicos ao servio de contra-espionagem e ao seu chefe. Cada vez mais, Benigni levava uma vida de completa clandestinidade, o que Ihe provocou uma parania. A partir do seu pequeno apartamento no Corso, Umberto Benigni procurava manter a rede de informadores e o contacto nos crculos papais, quando muitos Ihe tinham j fechado as portas. Acreditava mesmo que certos agentes modernistas nas estaes de correios da Frana, da Alemanha e de Itlia interceptavam e liam o seu correio. Por medo dos seus inimigos dentro e fora do Vaticano, Benigni viajava pessoalmente para se reunir com os informadores e fazia tudo para que as visitas a Bruxelas, a Paris e a Genebra ficassem em segredo. Nos primeiros meses de 1914, Benigni sobrevivia a ocupar-se de pequenos assuntos papais e ele, que fora um mestre de espies, no passava de uma sombra pattica e paranica do que tinha sido. A sua clarividncia em criar um servio secreto parecido com os que operavam na Rssia, na Alemanha ou em Frana converteu-se em algo de quimrico. De uma forma pessoal, ocupou-se em recrutar informadores, dirigir as suas atividades, ler relatrios, garantir os documentos, informar diretamente o cardeal secretrio de Estado e realizar operaes secretas; s no se tinha preocupado em garantir a sua situao e bem- estar pessoais. Quando monsenhor Umberto Benigni abandonou o Vaticano depois da eleio do cardeal Giacomo Delia Chiesa, como o papa Bento XIV, um dos denunciados pelo Sodalitium Pianum, deixou atrs de si um servio secreto em runas, com as operaes quase inexistentes da Santa Aliana, amizades quebradas e suspeitas constantes entre os membros da Cria Romana pelas denncias que fizeram uns aos outros. Mas a infeliz viso sobre-dimensionada de Umberto Benigni em relao a um servio secreto papal eficiente no passou afinal de um sonho. Curiosamente, o deflagrar da Primeira Guerra Mundial traria a Santa Aliana vida e ao mundo das operaes de espionagem. Uma oportunidade nica tinha sido mal aproveitada quando o cavaleiro do Apocalipse de espada na mo estava prestes a fazer mergulhar o Mundo numa conflagrao mundial.
11
O cavaleiro do Apocalipse (1914-1917)
Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo vivente dizer: Vem e olha. E saiu outro cavalo, vermelho, e ao que o montava foi dado o poder de tirar a paz da terra e fazer com que se matassem uns aos outros. E foi-lhe dada uma grande espada. Apocalipse 6, 3
Gavrilo Princip era um produto desses anos em que a Europa se via fustigada pelas tendncias anarco-sindicalistas. Gavrilo era um estudante servo-bsnio bastante idealista que tinha sonhado participar em grandes batalhas de libertao. O jovem estudante encontrava-se numa rua de Belgrado quando leu os ttulos de um jornal em que se anunciava a visita a Sarajevo do arquiduque Francisco Fernando e de sua esposa, Sofia de Hohenberg; a 28 de Junho de 1914 era dia de So Vito, patrono da Srvia. Para os srvios em geral e para Princip em particular, Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-hngaro e sobrinho-neto do imperador Francisco. Jos, simbolizava o poder dos Habsburgo sobre os bsnios e eslavos do Sul, que desejavam a sua independncia do Imprio Central, seguindo o exemplo da Srviaf. Para um nacionalista como Princip, aquela visita supunha ter como alvo o mais alto representante do imprio ocupante. O estudante contactou com a Mo Negra, uma organizao srvia que at ento s tinha distribudo folhetos na passagem da comitiva do general Potiorek, governador da Bsnia. Apesar da organizao ter negado a sua ajuda, Princip decidiu recrutar cinco jovens para levar a cabo os seus planos. Esse fatdico dia 28 de. Junho comeou cedo, quando a comitiva imperial chegou a Sarajevo. Da estao dirigiu-se para a Cmara Municipal numa comitiva de carruagens abertas que atravessariam os molhes de Miljacka e a parte velha de Sarajevo para chegar ao museu da cidade. Princip e os amigos colocaram-se ao longo do molhe. Quando a comitiva chegou perto do primeiro terrorista, Mohammed Mehmedbasic, este no pde atuar por causa do povo que vitoriava o arquiduque, e nem mesmo o segundo, Vasco Cubrilovic, que estava rodeado por muitos polcias. O terceiro, Nedjeiko Cabrinovic, atirou a bomba, que rebentou na parte baixa da carruagem de escolta que seguia a de Francisco Fernando. Os outros trs terroristas Princip, Cvijetko Popovic e Danilo Ilic, ao verem Cabrinovic ser preso, resolveram no atuar. Contudo, pouco depois o destino voltaria a cruzar as vidas de Gavrilo Princip e do arquiduque. O herdeiro austro-hngaro comunicou ao general Potiorek o seu desejo de visitar os feridos do atentado-o conde Boos Waldeck, o coronel Erik von Merizzi e a condessa Lanjus-no hospital de Sarajevo. O problema surgiu quando os veculos que precediam a carruagem da comitiva imperial mudaram de trajeto sem aviso prvio. O general Potiorek ordenou ao motorista que fizesse marcha-r pela rua estreita em que se encontravam. Gavrilo Princip no podia acreditar que aquele veculo, que com dificuldade procurava fazer a manobra na estreita rua, transportava a comitiva imperial. O estudante agarrou na arma, saiu para a rua e, subindo para a portinhola do veculo real, disparou dois tiros. O primeiro matou logo o arquiduque Francisco Fernando e o segundo feriu gravemente a sua esposa Sofia, que havia de morrer alguns minutos depois dentro da carruagem. O assassnio fez pensar de imediato num ato isolado na luta de libertao, mas realmente marcou o comeo das desordens na Europa. A sorte da guerra estava lanada e os pees, situados nas suas posies: ao lado da Entente, um bloco compacto composto por cento e vinte milhes de soldados, e do lado dos Imprios Centrais havia um bloco com duzentos e trinta e oito milhes de soldados, repartidos por trs zonas geogrficas muito afastadas entre si. O papa Pio X pressentia um desenlace fatal e a Santa Aliana nos seus relatrios falava j de uma guerra que abalaria a humanidade muito antes de deflagrar a Primeira Guerra Mundial. A verdade que o papa, no dio sentido pelos ortodoxos, incitava a cada passo o imperador Francisco. Jos da Austria-Hungria a eliminar os srvios. Depois do que aconteceu em Sarajevo, o baro Ritter, que representava a Baviera no Vaticano, escreveu ao seu Governo: O papa aprova o terrvel tratamento que se est a dar na Srvia. Ele no tem muito boa opinio dos exrcitos da Rssia e da Frana no caso da guerra com a Alemanha. O cardeal secretrio de Estado I (Rafael Merry del Val) no compreendia que a Austria pudesse fazer a guerra se no se decidisse a faz-la nesse momento. A 15 de Agosto, o papa Pio X comeou a sentir-se maldisposto, a 19 o seu estado agravou-se e no dia 20 morria, uma e um quarto da manh, quase dois meses depois do crime de Sarajevo, apertando a mo do seu fiel colaborador, o cardeal Rafael Merry del Val. Apesar das dificuldades impostas pela guerra, os cardeais puderam reunir-se em Roma no conclave para eleger o sucessor do papa Pio X. Na tarde de 31 de Agosto, estavam cinquenta e sete cardeais dos sessenta e cinco que faziam parte do Colgio Cardinalcio. A 3 de Setembro de 1914, Giacomo Delia Chiesa era eleito papa e adotava o nome de Bento XV. Curiosamente, Delia Chiesa tinha ascendido prpura cardinalcia quatro meses antes da morte de Pio X e portanto com opo de voto no conclave que o escolheria como novo papa. Na altura de soarem os primeiros tiros com que se iniciaria a Primeira Guerra Mundial, os dois grandes Imprios Centrais-o alemo e o austro-hngaro enfrentavam as potncias da Entente: Frana, Rssia e Gr-Bretanha, que se reuniram secretamente a 5 de Setembro de 1914 para acordarem que nenhum dos membros assinaria qualquer tratado de paz em separado durante o desenrolar do conflito. Desta forma, ficava clara a diviso das naes e dos imprios europeus, que entrariam numa guerra sem precedentes durante os quatro anos e meio que se seguiram. Entretanto, no paravam de chegar Secretaria de Estado os primeiros relatrios sobre baixas e destruio vindos das nunciaturas de Bruxelas, Berlim e Viena e o papa Bento XV adotava as primeiras medidas no propsito de romper com o passado. Essas mudanas exprimiam o novo curso que a poltica papal havia de conhecer. O cardeal Mariano Rampolla fora colocado como responsvel da insignificante Sacra Congregao da Fbrica de So Pedro. Os novos favoritos deram-lhe apenas quarenta e oito horas para desocupar o seu gabinete na Ala Brgia e mudar-se depois para um pequeno apartamento na Palazzina do Arcipreste de So Pedro. A medida seguinte foi a de demitir o at a poderoso cardeal Rafael Merry dei Vai do seu cargo de secretrio de Estado e nome-lo responsvel pela abadia de Subiaco. Depois de ser afastado Merry dei Vai, tambm os seus amigos caram em desgraa. Por exemplo, o cardeal Nicola Canali foi demitido do cargo de substituto e mandado para a menos importante Secretaria da Sacra Congregao de Cerimnias. Mas o maior golpe contra os fanticos anti-modernistas seria a ordem do Sumo Pontfice para a demisso de monsenhor Umberto Benigni como chefe da contra-espionagem do Vaticano, Sodalitium Pianum, e a sua colocao como professor de protocolo diplomtico na Academia de Nobres Eclesisticos. Esta mudana de poltica revelou-se clara quando o papa Bento XV promulgou a encclica A Beatissimi, com a qual punha fim aos chamados integristas, palavra que o papa nem sequer utilizou no seu documento. Continuou a florescer num mundo em guerra at 1919, data em que se publicaram alguns documentos pertencentes aos seus prprios arquivos e descobertos pelos servios de espionagem alemes. O papa nomeou como secretrio de Estado o cardeal Pietro Gasparri, antigo protetor de Benigni, e at esse momento responsvel pela publicao do novo Cdigo de Direito Cannico. Entretanto, a Primeira Guerra Mundial decorria de acordo com os objetivos traados em 1906 no Plano Schileffen, baseado numa guerra de movimentos que, em princpio, fez pensar numa clara vitria do imprio alemo em bem pouco tempo. E evidente que nenhuma das previses se cumpriu, porque desde a batalha do Marne, que se desencadeou entre 9 e 12 de Setembro de 1914, que os alemes tiveram que retirar-se e isso alterou as condies do conflito. De uma guerra de movimentos rpidos e de golpes estratgicos passou-se a uma outra de trincheiras e de conteno, convertida numa luta cruel e duradoura, com a inevitvel perda de vidas humanas. A Santa S e o papa foram obrigados a procurar uma soluo para o conflito e o Vaticano tornou-se num objetivo, embora no militar, para os espies e todas as conspiraes. As diplomacias alem e austraca estavam representadas na corte papal. A Alemanha encontrava-se muito bem posicionada desde o sculo XIX, quando contava com a presena de dois embaixadores da Bavria e da Prssia. O conde Otto von Mhlberg, um diplomata prussiano, era um homem enrgico quanto ao seu trabalho junto do papa, enquanto o seu homlogo bvaro, Otto von Ritter, era sobretudo muito apreciado na administrao vaticana por ter um carcter moderado. A Austria estava representada pelo prncipe Schnberg, herdeiro de uma nobre famlia que tinha servido o Estado e a Igreja durante sculos. Os trs diplomatas eram peritos nas relaes com a Cria Romana, em especial com os bispos e os cardeais, e ainda com a imprensa italiana. Em contraste com os embaixadores dos Imprios Centrais, a equipa diplomtica dos aliados estava relegada a contentar-se com cargos menos importantes da administrao pontifcia. O nico embaixador aliado com relaes nas altas esferas do Vaticano era o da Blgica, embora preferisse uma boa vida m diplomacia, o que no agradava ao embaixador da Rssia. O representante do czar Nicolau Il no estava to bem visto em Roma pela poltica clerical do seu pas, por afirmar que a Rssia ortodoxa era uma das grandes defensoras do protestantismo numa Europa catlica. Contra o poder diplomtico dos Imprios Centrais estava o cardeal Francis Aidan Gasquet e o seu secretrio, Philip Langdon, que realmente trabalhava para a Santa Aliana como propagandista dos aliados. Langdon era mais conhecido como perito em mosteiros ingleses do que como espio da Santa Aliana. Apesar de ser Philip Landgon quem realizava as misses de campo para a espionagem pontifcia, diz-se que era de fato o cardeal Gasquet quem dava ordens ao seu secretrio sobre essas operaes. Patriota e fiel ao papa Bento XV, o cardeal no duvidou nunca da necessidade de apoiar a causa aliada em relao ao belicismo representado pelos Imprios Centrais. Por isso, ajudado pelo seu fiel Langdon, dedicava-se a recolher informaes para a Santa Aliana e envi-las para Londres. Num desses relatrios, o cardeal Gasquet, atravs do seu secretrio Langdon, conseguiu fazer chegar uma carta ao Foreign Office sobre os esforos dos servios de espionagem dos Imprios Centrais orientados para merecer as simpatias do Vaticano na causa germano-austraca e incumbia o servio externo britnico de nomear, de imediato, um embaixador junto da Santa S. Em Novembro de 1914, Londres enviou sir Henry Howard, um diplomata catlico j retirado, que no seu primeiro relatrio descreveu claramente um Vaticano muito germnico. Gasquet, de fato, era um agente da Santa Aliana e informava sobre todos os movimentos dentro do Vaticano acerca de uma guerra que se desenrolava fora dos seus muros. Em pouco tempo, o Palazzo San Calisto, onde vivia o cardeal Gasquet, um edifcio da Santa S situado no Trastevere, converteu-se no centro dos simpatizantes aliados. O papa Bento XV chamou Gasquet e pediu-lhe que fizesse as suas reunies de forma mais confidencial, dado que se algum embaixador dos Imprios Centrais descobrisse o jogo do cardeal poderia colocar em srio embarao a neutralidade pontifcia no conflito. Mas o papa ordenou tambm ao cardeal Gasquet que devia informar primeiro a Santa Aliana e s depois os britnicos sobre os movimentos dos espies dos Imprios Centrais no Vaticano. Bento XV lembrou-lhe que devia mais fidelidade ao papa do que aos ingleses, mas Gasquet receava que os espies alemes ou austracos se pudessem infiltrar na Santa Aliana ou na contra-espionagem, no Sodalitium Pianum. Tanto o cardeal Gasquet como sir Henry Howard se apercebiam dos movimentos dos Imprios Centrais para atrair as simpatias do papa na sua causa e era contra isso que deviam lutar. Desde os primeiros meses da guerra, Berlim e Viena enviaram os seus embaixadores junto da Santa S com um largo nmero de diplomatas e de agentes secretos. Recorreu-se a pedidos de audincias com o papa Bento XV, para reunies semanais com o cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e mesmo para se organizarem encontros com os auxiliares do papa ou para preparar jantares com altos membros da Cria Romana e com a imprensa italiana. Em princpio, os espies alemes e austracos, tal como os seus diplomatas, trabalhavam sem limitaes para atrair sua causa o papa e os seus auxiliares, para assim justificarem a poltica blica dos Imprios Centrais e em detrimento da poltica dos aliados destinada a combater a Austria e a Alemanha. Em breve, os encontros entre espies nas ruelas escuras de Roma deram lugar a reunies sociais em palcios e grandes residncias a favor de um ou de outro grupo. Em comeos de 1915, a guerra-relmpago tornou-se numa guerra de trincheiras. Os dois grupos desejavam contar com novos aliados para reforar as linhas defensivas ou simplesmente para substituir as unidades que h alguns meses combatiam em pssimas condies. Por isso, a Itlia tornou-se num objetivo dos contendores para a fazer entrar na guerra. Como membro da Tripla Aliana, os polticos de Itlia estavam decididos a no submeter os seus cidados incerteza do conflito. Nos primeiros meses, as embaixadas dos dois grupos muito se esforaram para obter o apoio de Itlia para a causa da Entente ou da dos Imprios Centrais. A Santa Aliana tinha j informado o papa e o cardeal Pietro Gasparri das intenes dos polticos italianos. A espionagem pontifcia detectou certas reunies entre os representantes do Governo de Roma/e do Imprio austro-hngaro para negociar a entrada. O preo do apoio italiano Austria e Alemanha seria a chamada terre irredente, ou seja, os territrios da lngua italiana nos distritos do Trentino e que pertenciam ao Imprio austraco. Mas a posio oportunista de Roma colocou Viena numa situao difcil. O Por outro lado, a Santa Aliana tambm informara o papa sobre os contactos do governo de Itlia com os aliados. O servio de espionagem pontifcio descobrira que o governo de Roma estava a negociar ao mesmo tempo com a Entente a sua neutralidade na guerra. Se esta se mantivesse e as suas foras ganhassem a guerra, o reino de Itlia seria recompensado com os territrios que at a pertenciam Austria. Rapidamente, o papa Bento XV ordenou ao servio de espionagem e Secretaria de Estado que se dedicassem de corpo e alma a procurar evitar que a Itlia entrasse na guerra a favor da Austria e da Alemanha. De fato, o papa duvidava da capacidade do Estado italiano para poder sobreviver poltica e economicamente tempestade blica, sobretudo se a guerra convertesse a Itlia num alvo das bombas e, portanto, a cidade de Roma, sede do Vaticano. O problema surgiu quando a Santa Aliana descobriu que muitas altas hierarquias da Cria Romana defendiam o intervencionismo italiano a favor dos Imprios Centrais, que eram os principais poderes catlicos na Europa Central e barreira contra o avano da religio russo-ortodoxa e do pan-eslavismo, o que deu fora espionagem alem, para assim poder desencadear um maior nmero de intrigas no Vaticano, muitas vezes com o apoio do Sodalitium Pianum, a contra- espionagem papal. A 21 de Fevereiro de 1915, os agentes da Santa Aliana tiveram conhecimento da chegada a Roma de Mathias Erzberger, lder do Partido Centrista Catlico na Alemanha, que era uma pessoa muito respeitada nas altas esferas do Vaticano e figura conhecida, mesmo pelo papa Bento XV. Na verdade, a estreita ligao entre Mathias Erzberger e o Vaticano no explicava claramente aos historiadores o apoio do papa e da Cria Romana aos Imprios Centrais durante a Primeira Guerra Mundial, mas pelo menos deixava muitas dvidas no ar. Durante a Primavera desse mesmo ano, Mathias Erzberger visitou a capital italiana por vrias ocasies, mantendo encontros nas embaixadas da Austria e Alemanha, e visitou constantemente os palcios vaticanos. O que o poltico alemo no sabia era que tinha sido colocado sob estreita vigilncia, no s pelo servio de espionagem italiano, mas tambm pela Santa Aliana, mais prxima da causa aliada e das razes do cardeal Gasquet, e pelo Sodalitium Pianum, afeto aos Imprios Centrais. O que se mostrava claro que Erzberger se encontrava em Itlia para realizar certas operaes encobertas a favor dos Imprios Centrais, mas o que a Santa Aliana conhecia eram apenas as verdadeiras intenes do dirigente do Partido Centrista Catlico, da organizao poltica Zentrum, que durante muito tempo foi perseguida pelo prprio Otto von Bismarck. Mathias Erzberger chegava a Roma por ordem do kaiser Guilherme com a inteno de oferecer ao papa Bento XV a terre irredente em troca de convencer a Itlia a no intervir no conflito. A Alemanha e o kaiser preferiam que no apoiasse a Austria uma vez que isso converteria o territrio italiano em zona de combates e por isso tanto os Imprios Centrais como a Entente seriam obrigados a desguarnecer outras linhas da frente para cobrir a nova brecha. Mas o kaiser Guilherme tambm no desejava uma interveno italiana a favor da Entente, porque isso supunha uma guerra aberta austro-italiana nos territrios do Trentinof . A proposta formal que trazia nas mos o poltico e espio Mathias Erzberger, da parte do kaiser Guilherme e dirigida ao papa Bento XV, era a de transferir automaticamente o Trentino austraco para o papa, o que permitiria a criao de um enclave independente papal em redor do Vaticano e um corredor pontifcio para o mar. A proposta vinha avalizada curiosamente pelo S. R, mas a Santa Aliana recomendou a Gasparri que no a aceitasse. Tanto o papa Bento XV como Gasparri, o cardeal secretrio de Estado, sabiam que s o ato de aceitar a oferta de Erzberger supunha o fim da neutralidade papal na guerra. Mas tambm o Sumo Pontfice e Gasparri encaravam como algo de irreal que, uma vez acabada a guerra, a Austria ou a Itlia permitissem aos representantes papais estabelecer a administrao da Igreja Catlica no Trentino, mas o que estava cada vez mais claro era que, pela primeira vez desde o incio da Primeira Guerra Mundial, os interesses da Alemanha e do Vaticano eram idnticos. Mathias Erzberger era um canal seguro de informao entre Berlim e o Vaticano. Mas, de sbito, o espio do kaiser converteu-se, por obra e graa da diplomacia papal, num aliado da Santa Aliana. Erzberger, bem protegido pela espionagem pontifcia por ordem de Gasparri e talvez pelo prprio Bento XV, fazia circular propostas diplomticas de um lado para o outro de Roma, porque o espio alemo se tornou numa autntica fonte de financiamento para o Vaticano, dado que o prprio Mathias Erzberger se ocupava de entregar, por ordem do kaiser Guilherme, grandes somas de dinheiro como doaes feitas ao tesouro papal. Tal fato provocou srias controvrsias entre os historiadores. Na verdade, desde 1914, que os cofres do Vaticano estavam em estado crtico, quase vazios, devido crise provocada pela economia de guerra e que afetava toda a Europa em geral e a Itlia em particular. O Vaticano tinha recusado categoricamente a indemnizao anual que o governo de Itlia devia entregar ao papa pela perda dos Estados Pontifcios e que estava definida na chamada Lei de Garantias de 1871. O papa pensava que com as contribuies dos peregrinos e o bolo de So Pedro poderiam manter-se no s os gastos da Santa S, mas tambm a ampla estrutura da Igreja Catlica em todo o Mundo. Mas a guerra matou o turismo e interrompeu o fluxo de doaes e de peregrinos ao Vaticano. O nico destino que tinham os poucos fundos recebidos eram as vtimas da guerra e os refugiados e deslocados. O Vaticano talvez no estivesse em bancarrota, mas passava por uma situao financeira delicada que podia fazer perigrar a mquina papal num futuro no muito distante. Reconhecendo a oportunidade de se conciliar com o papa, o kaiser Guilherme, atravs de Erzberger, passou a enviar importantes somas de dinheiro para aliviar a grave situao financeira do Vaticano. E depressa essas somas se converteram em quantias milionrias recebidas como fundos secretos atravs de bancos suos. O cardeal Pietro Gasparri ordenara Santa Aliana que os fundos enviados pelo kaiser Guilherme fossem contabilizados no chamado boIo de So Pedro, para assim evitar qualquer suscetibilidade das naes que formavam a Entente. Como elo de ligao nas operaes encobertas de financiamento do Vaticano por parte da Alemanha, a Santa Aliana optou pelo padre Antonino Lapoma, um sacerdote pr-alemo que trabalhava na cidade de Potenza. A partir da, o padre Lapoma e Mathias Erzberger lanaram mos obra na chamada Operao Eisbr (Urso Branco), nome com que a espionagem alem em Roma conhecia o papa Bento XV. O primeiro passo da Operao Eisbr foi recolher dinheiro entre os cidados dos Imprios Centrais destinado ao Vaticano. Nesse sentido, Erzberger viajou at Berlim com a inteno de organizar uma ampla rede de recolha de fundos no s entre os fiis e as devotas comunidades catlicas, mas tambm entre as Luteranas e as protestantes. Os homens de negcios, os banqueiros e mesmo as donas-de- casa foram obrigados pelo governo do kaiser Guilherme a participar de forma ativa na recolha de fundos sem nunca saberem que o seu destino final era o Vaticano atravs de uma linha criada para o efeito na banca sua. Aos cidados alemes diziam que o dinheiro se destinava aos feridos de guerra. A inteligncia italiana pensava que o papa Bento XV tinha herdado em 1914 de Pio X os cofres papais vazios e, em 1915, descobria que misteriosamente o papa conseguira reforar a economia do Vaticano, sem saber que a principal fonte de rendimento era o prprio kaiser Guilherme e a Alemanha. Os servios secretos da Entente procuravam demonstrar as suas suspeitas de que o papa estava nas mos dos Imprios Centrais, pelo menos do ponto de vista econmico. Erzberger no tinha limites impostos pelo kaiser na hora de entregar fundos ao Vaticano. O agente do kaiser mantinha estreitos contactos com um diplomata da embaixada alem em Roma, Franz von Stockhammem, que ao estalar a guerra assumira a direo dos servios de inteligncia do seu pas em Itlia. Erzberger e Stockhammem colaboravam de forma muito estreita em operaes encobertas junto da Santa Aliana por intermdio do padre Antnio Lapoma para evitar a entrada da Itlia na guerra. Lapoma estava encarregado de fazer fracassar qualquer propsito de polticos, partidos, movimentos de cidados ou organizaes para levar a Itlia ao conflito pelo apoio a uma das partes. Bento XV e o cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, sabiam que isso custaria milhes de marcos procedentes do kaiser. Mas dada a posio neutral da Santa S, no foi surpresa que os jornais catlicos, erguendo-se como porta-vozes das manifestaes dos cidados italianos, se mostrassem firmes defensores da neutralidade italiana. Em princpios de 1915, a embaixada da Austria em Roma informou Viena de que vrios jornais catlicos italianos que na realidade eram quase meia centena diziam que, como nico amigo dos Imprios Centrais, a Itlia se opunha beiigerncia. A espionagem austraca soube atravs de vrios informadores que os meios de comunicao em Itlia estavam a receber subsdios oriundos de fontes misteriosas e que talvez a embaixada da Alemanha em Roma estivesse envolvida. De fato, o dinheiro fazia parte dos fundos enviados pelo kaiser Guilherme ao Vaticano atravs dos bancos suos e entregue aos responsveis dos jornais pelo prprio agente da Santa Aliana, o padre Antnio Lapoma. Sir Henry Howard, o embaixador britnico junto da Santa S, tinha recebido relatrios, certamente do cardeal Francis Aidan Gasquet, sobre sinistras reunies nos aposentos privados que Franz von Stockhammem tinha no elegante Hotel Rssia de Roma. Era ali que o diplomata alemo recebia os seus convidados com champanhe francs e caviar russo. Entre os visitantes encontravam-se cardeais, abades de mosteiros romanos e vrios bispos relacionados com importantes departamentos do Vaticano, que estavam encarregados de escrever os artigos e por vezes chegavam a aconselhar o diplomata alemo sobre a campanha de propaganda que era levada a cabo dentro da Operao Eisbr. Tal campanha, dirigida por Franz von Stockhammem, do servio de espionagem alemo, e pelo padre Antnio Lapoma, da Santa Aliana, provocou uma mudana na opinio pblica a favor dos Imprios Centrais e da neutralidade italiana e contra a Entente. Sir Henry Howard apresentou um protesto formal ao secretrio de Estado, o cardeal Pietro Gasparri, embora sem ter grande xito. Gasparri s prometeu pedir aos editores mais equilbrio nos seus artigos e editoriais. O papa Bento XV ordenou ao cardeal Gasparri que, se a imprensa continuasse a atacar a Entente, escrevesse ele um artigo de censura aos editores dos jornais no Ubsservatore Romano. As crticas foram um pouco atenuadas nas pginas dos jornais, embora em segredo o cardeal Gasparri desse de vez em quando pequenos subsdios a algum jornal para que no publicasse qualquer artigo ou caricatura contra a Entente. Claro que essas quantias provinham do dinheiro entregue pela Alemanha ao Vaticano. Enquanto Franz von Stockhammem trabalhava estreitamente com a imprensa, Mathias Erzberger fazia o mesmo com o padre Lapoma no ato de difundir propaganda neutralista em muitos jornais e fazendo mudar de opinio os que desejavam uma interveno da Itlia na Primeira Guerra Mundial. Em finais da Primavera de 1915, os espies papais informavam os alemes de que o primeiro-ministro de Itlia, Antnio Salandra, e o seu ministro dos Negcios Estrangeiros, Sidney Sonnino, estavam a empurrar o governo e o parlamento para estabelecer o acordo que eles assinaram secretamente em Londres no ms de Abril, pelo qual a Itlia devia entrar na guerra juntamente com a Frana e a Gr-Bretanha. O padre Lapoma ps Erzberger em contacto com Pasquale Grippo, ministro da Educao no governo de Salandra. O padre Lapoma informara Mathias Erzberger dos seus encontros clandestinos em igrejas de Roma, nos quais Grippo lhe tinha comunicado que, depois de Salandra e Sonnino apresentarem a proposta para a Itlia entrar na guerra com a Frana e a Gr-Bretanha, alguns dos ministros se mostraram contrrios interveno e entre eles contavam-se Vincenzo Rizzio, responsvel da pasta dos Correios, e Gianetto Cavasola, ministro da Agricultura. Tanto Riccio como Cavasola se revelavam como firmes defensores da neutralidade a qualquer preo. A informao de Pasquale Grippo sugeria a Viena e a Berlim que fora aberta uma brecha na beligerncia italiana. O servio secreto alemo e o governo austraco colocaram as suas esperanas em Giovanni Gioliti, importante poltico com grande influncia noutros meios sociais e no Parlamento. Para Erzberger, Stockhammern e o padre Lapoma era preciso ganhar tempo e se fosse necessrio at compra-lo. Erzberger recebeu de Berlim cinco milhes de Iiras para distribuir por vrios deputados do Parlamento italiano. Os austracos compraram alguns dos seus membros e os alemes, atravs de Stockhammern, subornaram diversos jornalistas, que deviam incrementar os seus ataques contra a Entente e, por sua vez, o padre Lapoma recolheria assinaturas de bispos e cardeais contra a guerra. Nesta tarefa seria ajudado pelo padre Fonck, diretor do Instituto Bblico Jesuta e antigo membro da contra-espionagem vaticana, e por monsenhor Boncompagni, alto dignitrio do Vaticano com boas relaes entre a Cria Romana e a aristocracia de Roma. Por fim, a embaixada da Alemanha reagiu, como era de esperar, por ordem do kaiser Guilherme. Era necessrio o apoio do papa Bento XV. Na noite de 6 de Maio, Franz von Stockhammern, com a ajuda da Santa Aliana e de monsenhor Giuseppe Migone, secretrio do papa, conseguiu entrar no Vaticano. Embora a Guarda Sua tivesse fechado a entrada s nove da noite e o servio de espionagem e a polcia italiana tivessem as entradas vigiadas, monsenhor Migone pde introduzir nas dependncias papais o espio Stockhammern e num pequeno salo o papa Bento XV esperava por ele. O papa acreditava que Sidney Sonnino, ministro dos Negcios Estrangeiros, estava a fazer um jogo demasiado perigoso com o destino de Itlia. Nessa reunio secreta, Stockhammern ofereceu-lhe de forma clara os territrios do Trentino austraco se conseguisse que a Itlia no entrasse na guerra. Bento XV dava ao agente da espionagem alem no governo italiano todo o apoio do Vaticano na altura da nova reunio do governo, mas no era preciso falar disso a Pasquale Grippo. Mas em relao a todas estas maquinaes secretas, encontros clandestinos, atos de propaganda, Franz von Stockammern, Mathias Erzberger, o padre Antono Lapoma, o servio de espionagem alemo ou a Santa Aliana no puderam evitar o inevitvel, porque, a 23 de Maio de 1915, a Itlia declarou guerra Austria. Pouco depois, os servios de espionagem italianos descobriram as ligaes entre o servio secreto alemo e a espionagem pontifcia, bem como com o prprio papa Bento XV para influenciar nas decises polticas do governo de Itlia, o que demonstrava a conivncia do Vaticano com os Imprios Centrais. Quando a Itlia entrou na guerra, a Alemanha e a Austria fecharam as embaixadas em Roma e os seus diplomatas foram chamados a Berlim e a Viena. As embaixadas alem e austraca junto da Santa S ficariam instaladas na cidade sua de Lugano, enquanto Franz von Stockhammer deslocou tambm para a neutral Sua as operaes de espionagem. A partir da segurana que Lugano oferecia, a Alemanha organizaria com a Santa Aliana operaes encobertas contra a Itlia e os restantes pases membros da Entente. Uma delas ocorreria na Irlanda e a fonte do financiamento seriam os fundos que o kaiser Guilherme tinha entregue ao Vaticano e estavam nas contas secretas dos bancos suos. O servio secreto britnico descobriu que Roger Casement, um funcionrio jubilado do corpo consular, estabeleceu contacto com o conde Von Bernstorff, embaixador da Alemanha em Washington. Nascido na Irlanda em 1864, Casement serviu como cnsul britnico em diversos pases de frica e no Brasil, onde denunciou a situao de escravatura em que viviam os trabalhadores da borracha. Roger Casement foi nomeado Cavaleiro do Imprio Britnico pelo rei Eduardo VII em 1911, no mesmo ano em que comeou a tentar organizar uma revolta contra a Gr-Bretanha, a nao que ele tinha servido durante anos. O antigo diplomata brindou o embaixador alemo em Washington com o apoio do kaiser Guilherme Il dado causa irlandesa. A ideia de Casement era sublevar os irlandeses contra as tropas britnicas. Para os alemes isso poderia fazer supor uma boa manobra de diverso. Se os irlandeses organizassem uma revolta, Londres no teria outro remdio seno enviar unidades de combate para a ilha, retirando-as da frente, para acabar com a rebelio. A 2 de Novembro de 1915, Roger Casement chegou a Berlim, onde teve diversos encontros. A chamada Operao Eire foi confiada a Franz von Stockhammern. O espio alemo ouviu os discursos patriticos de Casement sobre a necessidade de expulsar os britnicos da Irlanda, mas a Stockhammern apenas interessava que a Gr-Bretanha retirasse as suas tropas da frente e faria isso mesmo se tivesse de financiar o prprio diabo. Casement props a Stockhammern a criao de uma tropa formada por irlandeses, financiados e armados pela Alemanha. Essa suposta tropa seria alimentada por prisioneiros irlandeses que pertenciam ao exrcito britnico e recolhidos nos campos de concentrao alemes. O prprio Casement se encarregaria do recrutamento, mas Stockhammern seria o responsvel pelo financiamento e pelo armamento. O armamento do pequeno exrcito irlands seria parte do destinado aos russos na frente oriental, mas o financiamento era um outro problema. O espio alemo lembrou os fundos entregues pelo kaiser ao papa Bento XV pelo seu apoio neutralidade italiana e que na sua maior parte se encontravam ainda depositados em contas em nome do Vaticano. O chefe da espionagem alem sabia que, se a operao fosse descoberta, a Alemanha apenas teria de rejeitar as acusaes e dirigi-las ao Vaticano. Franz von Stockhammem pensava que seria simples explicar a conivncia do Vaticano na rebelio dos patriotas catlicos irlandeses contra o exrcito protestante britnico, mas no contou que a mentalidade do papa Bento XV no sculo XX no era a mesma que a do papa Pio V no sculo XVI. Roger Casement percorria entretanto os campos de prisioneiros alemes em busca de irlandeses e o dinheiro, que antes era do Vaticano, comeou a entrar numa conta secreta na Sua aberta em nome de Casement. Umas semanas mais tarde, pouco mais de uma centena de homens aceitaram a sua proposta para se incorporarem no suposto exrcito rebelde irlands. Os alemes continuavam a vigiar todos os aspectos da operao at que a Santa Aliana, atravs do padre Antnio Lapoma, detectou o desvio de fundos das contas vaticanas para outra que pertencia a Roger Casement. Informado o secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e o papa Bento XV, foi preparada uma reunio de emergncia com Franz von Stockhammem na cidade sua de Lucerna, onde os enviados do papa pediram explicaes ao servio de espionagem alemo e Stockhammem respondeu que estavam a recrutar irlandeses que odiavam os ingleses e queriam combater ao lado dos alemes. O grupo de Casement foi enviado para Zossen, um lugar seguro e afastado da curiosidade a sul de Berlim. Por outro lado, tambm o antigo diplomata irlands ao servio dos britnicos obteve a libertao de mais trs irlandeses que estavam detidos no campo de Ruthleben, depois de terem sido feitos prisioneiros em Frana. Casement decidiu envi-los para a Irlanda atravs das vias clandestinas com a inteno de iludir os lderes revolucionrios irlandeses. Na cidade de Cork um deles foi preso e enviado para Londres a fim de ser interrogado. A troco de dinheiro e de no ser executado, o homem decidiu desvendar aos britnicos toda a Operao Eire, bem como as ligaes de Roger Casement aos alemes e talvez ao Vaticano, embora este ltimo aspecto no pudesse ser confirmado. Ao saber que um dos trs correios tinha sido preso, Casement quis desde logo anular a operao, mas Franz von Stockhammem obrigou-o, argumentando com a grande quantidade de fundos que tinham sido gastos para a financiar. Assustado com as possveis consequncias, Roger Casement preferiu ficar margem e deixou a John Devoy, um lder revolucionrio irlands nos Estados Unidos, o controle dessa operao. Tanto Devoy como o juiz Cohalan, outro lder irlands em Washington, propuseram aos alemes o apoio para criar uma Repblica da Irlanda, mas o kaiser queria resultados imediatos e no quimeras em que poucos podiam acreditar. Os telegramas entre a embaixada da Alemanha em Washington e a espionagem alem em Berlim permitiram que os britnicos obtivessem a informao mais importante do plano. O desembarque devia dar-se nas praias de Tralee Bay. Avisado no ltimo momento, Roger Casement ainda protestou porque essas praias eram continuamente fustigadas por fortes ventos, o que tornaria mais complicado o desembarque de homens e de armas, mas era tarde. Casement foi conduzido para um submarino e levado para a costa IrIandesa. Em princpios de Abril, planearam com Stockhammem que um barco, o Aud, disfarado de neutral pesqueiro noruegus, desembarcasse vinte mil espingardas russas na baa de Tralee entre os dias 21 e 24. Foi escolhido o dia 23, domingo de Pscoa, para a rebelio, mas parece que esperavam tambm mais ajuda dos alemes do que na verdade estes se mostravam dispostos a dar. Ao saber que os lderes irlandeses estavam enganados, Casement quis chegar Irlanda num submarino alemo com o propsito de avisar Clarice e deter um levantamento de cujo fracasso estava convencido. Na realidade, a interveno do servio de espionagem papal no Levantamento da Pscoa de 1916 teve diferentes verses ao longo da Histria. Uma delas, bastante difundida, foi que o servio criptogrfico da Santa Aliana conseguira decifrar os cdigos navais alemes, justamente duas semanas aps o comeo da guerra, e logo os passaram a Winston Churchill, primeiro Lorde do Almirantado. Outras fontes asseguram que foram os russos quem decifrou os cdigos e os entregaram a Churchill em Murmansk. De qualquer modo, com estes cdigos em seu poder, os servios secretos navais britnicos descobriram que os alemes pretendiam colocar a bordo de um pesqueiro noruegus chamado Aud milhares de armas para os rebeldes irlandeses. Quando as unidades navais britnicas procuraram deter o Aud nas costas de Tralee Bay, o barco iou logo o pavilho da Marinha imperial e pouco depois explodiu. O desembarque de Roger Casement dava-se ao nascer do dia 21 de Abril de 1916, na sexta-feira santa. Dois dos chefes da revolta, Monteith e Casey, remavam na pequena embarcao para tentar chegar a terra, e enquanto lutavam com a forte ondulao um golpe de mar fez com que o barco se voltasse. Casement e Monteith conseguiram alcanar a costa a nado, mas Casey acabou por morrer. Enquanto procuravam recuperar as foras, foram rodeados por soldados do exrcito britnico que estavam na praia sua espera. A revolta com que sonhavam conheceu, pois, um fim trgico. Todos os planos do levantamento pareciam ter sado mal. Quando no sbado de Aleluia se ouviu a notcia de que o Aud fora interceptado pela Marinha Real e que sir Roger Casement fora detido perto de Tralee, no condado de Kerry, os responsveis da revolta aperceberam-se de que o levantamento estava condenado ao fracasso e acabou por ser dada ordem para cancelar toda a operao. As autoridades inglesas em Dublin ainda tentaram pressionar para que fossem detidos sessenta a cem homens importantes do Exrcito do Cidado e dos Voluntrios Irlandeses, mas a autorizao necessria procedente de Londres chegou demasiado tarde, na segunda-feira de Pscoa. Ao meio-dia, Connolly e Pearse dirigiram-se com um grupo a Sack-ville Street (OConnell Street desde 1924) e entraram no edifcio dos Correios. A,. James Connolly dirigiu-se aos seus homens e disse que eles j no eram membros do Exrcito do Cidado Irlands nem dos Voluntrios Irlandeses, mas sim do Exrcito Republicano Irlands. O IRA aparecia em cena pela primeira vez. As tropas britnicas de Dublin foram atacadas de surpresa, mas rapidamente se mobilizaram, as foras irlandesas no tardaram a ser derrotadas e os cabeas levados para a priso. No dia 3 de Maio, trs dias depois do Levantamento, trs lderes rebeldes foram fuzilados. A 4 e 5 de Maio foram executados mais quatro e a 8 do mesmo ms ainda outros quatro. No total, foram ditadas 77 sentenas de morte apesar de a maioria delas no ter sido cumprida, mas os cabeas da rebelio passaram de verdadeiros indesejveis a autnticos heris nacionais. A 13 de Agosto de 1916, Roger Casement tambm foi executado na priso de Pentonville, quando contava cinquenta e dois anos. Algumas fontes do servio de espionagem britnico acusaram os servios secretos do Vaticano de terem apoiado num primeiro momento o Levantamento da Pscoa e os prprios planos esboados por Franz von Stockhammern, da inteligncia alem, e de Roger Casement. Mas outros historiadores, na sua maior parte irlandeses, acusaram o papa Bento XV, o seu secretrio de Estado, cardeal Pietro Gasparri, e o agente da Santa Aliana, padre Antnio Lapoma, de terem deixado sua sorte a Irlanda catlica na luta contra a protestante Gr-Bretanha. Algumas biografias de Roger Casement asseguram tambm que um agente do Vaticano (talvez o padre Antnio Lapoma) pde entregar Casement aos ingleses na praia de Tralee Bay por ordem do papa ou do secretrio de Estado do Vaticano. Segundo parece, o papa Bento XV no ficou muito convencido do uso dos fundos por parte da espionagem alem para assim financiar a revolta irlandesa, fundos que anteriormente haviam sido destinados ao Vaticano para cobrir a sua debilitada economia. A verdade que a interveno a favor ou contra o Vaticano, do papa Bento XV e do seu prprio servio de espionagem, a Santa Aliana, nesse acontecimento histrico, designado por Levantamento da Pscoa de 1916, continua a ser ainda hoje mais um dos mistrios que envolvem a Santa S. Entretanto, a Primeira Guerra Mundial continuava no seu pleno apogeu, bem como as operaes de Franz von Stockhammern e da Santa Aliana. Numa manh de Abril de 1916, a contra-espionagem italiana recebeu a visita de um advogado chamado Antnio Celletti, que disse ser amigo de um tal Archita Valente. Celletti declarou que Valente estava sempre muito interessado nos anncios escritos do Giornale dltalia e nos estranhos pacotes que recebia de pessoas desconhecidas. Em Maio, Valente pediu a Giuseppe Grassi, que tambm conhecia Celletti, que levasse algumas cartas ao baro Stockhammern na cidade sua de Lucerna. Sem saber ao certo no que Valente estava metido, Grassi comentou com Celletti a tarefa que lhe tinha sido encomendada e este apresentou-se como voluntrio para entregar as cartas em vez de Grassi. Com as cartas na sua posse e as contra- senhas dadas por Grassi, Celletti viajou para Lucerna a fim de se encontrar com o baro Stockhammern. Na Sua, Celletti foi recebido por Mrio Pomarici, um jornalista italiano claramente germanfilo e que por dinheiro escrevera vrios artigos contra o intervencionismo da Itlia na guerra. Pomarici tinha-se tornado num dos homens de maior confiana do chefe da espionagem alem na Sua, Franz von Stockhammern, o qual disse a Celletti que Valente era um agente alemo em Itlia e que a sua principal tarefa era a de recolher informaes sobre as relaes entre a Itlia e a Entente e entre a Itlia e o Vaticano. No seu regresso a Roma, Antnio Celletti denunciou a conspirao aos servios de espionagem italianos. Assim, no ms de Julho de 1916, a contra-espionagem italiana tinha j provas suficientes contra Archita Valente e Mrio Pomarici, mas apenas em Novembro que os tribunais puderam incriminar ambos por alta traio. Quando o servio de inteligncia de Roma comeou a estudar as mensagens codificadas por Valente no Giornale dltalia, descobriu uma ampla rede de comunicaes entre Franz von Stockhammern e os seus agentes no interior de Itlia e no Vaticano. A informao foi passada aos responsveis da Santa Aliana e estes por sua vez fizeram encaminh-la para a contra-espionagem, o Sodalitium Pianum. Numa das mensagens, Valente falava de um tal cavalieri A ou cavalieri G. interrogado pela espionagem italiana, Archita Valente confessou que tanto A como G eram Giuseppe Ambrogetti, um advogado romano que tinha servido em muitas ocasies como correio especial do papa Bento XV em misses especiais e como mensageiro de alguns cardeais e bispos. Na verdade, Ambrogetti era um experimentado agente da Santa Aliana que chegou mesmo a ser condecorado pelo prprio Sumo Pontfice por servios prestados Igreja. O espio papal foi detido e talvez para salvar a sua prpria pele confessou aos italianos que realmente era mas no Ambrogetti disse ter penetrado nos servios secretos alemes por ordem da Santa Aliana e que mesmo o dinheiro recebido fora depositado no Vaticano. Em face das presses dos agentes do servio de espionagem italiano, o agente Giuseppe Ambrogetti declarou que G era monsenhor Rudolph Gerlach, um religioso bvaro que fora camarista e confidente do papa Bento XV. Nas suas declaraes, Archita Valente pde confessar que durante a neutralidade italiana monsenhor Gerlach havia entregue grandes somas de dinheiro procedentes de Franz von Stockhammern a diversos jornais e jornalistas e houve mesmo uma ocasio em que o prprio Gerlach fez vrias entregas a Ambrogetti, o agente da Santa Aliana. O dinheiro recebido por monsenhor Gerlach estava depositado em vrias contas abertas na Sua, e Giuseppe Ambrogetti disse ainda que a Santa Aliana colocara Gerlach sob vigilncia. O servio de espionagem papal definia monsenhor Gerlach como um homem ambicioso e muito inteligente, mas na passagem pela prestigiada Academia Eclesistica Pontifcia passaram a ouvir-se rumores sobre o seu carcter e a sinceridade da sua vocao. Foi nessa altura que a Santa Aliana, por intermdio do S. R, se colocou no encalo dos passos dados pelo religioso bvaro. Os primeiros sinais surgiram quando Rudolph Gerlach foi indicado para poder ocupar um cargo na nunciatura da Baviera. O cardeal Andrea Fruhwirth, responsvel pela embaixada pontifcia, no quis aceitar Gerlach no seu gabinete e assim o bvaro continuou emlioma. Na Cidade Eterna manteve contactos com Giacomo Delia Chiesa quando o ento arcebispo de Bolonha chegou a Roma para receber o capelo cardinalcio. J como papa Bento XV, Delia Chiesa colocou monsenhor Rudolph Gerlach ao servio, mas esse cargo no era suficiente para um aventureiro to pouco escrupuloso. Para a Santa Aliana no foi surpresa nenhuma descobrir que Gerlach era um traidor. O Sodalitium Pianum tinha j informado sobre as contnuas visitas do religioso bvaro feitas s embaixadas da Austria e da Alemanha em Roma durante a neutralidade italiana. Os italianos estavam convencidos de que Rudolph Gerlach era o ncleo central do servio de espionagem do kaiser no Vaticano. O governo italiano desejaria colocar todos diante do peloto de fuzilamento acusados de espionagem e de alta traio, mas isso suporia abrir o caminho do escndalo imprensa. O Vaticano, e em especial a Cria Romana que rodeava o papa Bento XV, queria o mais depressa possvel virar a pgina do caso de Geriach. O Vaticano e a Santa Aliana foram pouco a pouco informados pelo servio secreto italiano dos avanos na investigao sobre o antigo camarista papal. Por fim, a 5 de Janeiro de 1917, monsenhor Gerlach foi escoltado por agentes italianos at fronteira com a Sua, enquanto Archita Valente e Giuseppe Ambrogetti eram implicados em casos de conspirao por crimes de alta traio e espionagem. Rudolph Gerlach no esteve presente no tribunal e por isso no pde testemunhar nem defender-se. Valente foi condenado morte, Gerlach a priso perptua revelia e Ambrogetti a trs anos de priso. Graas a qualquer mo secreta, talvez a da Santa Aliana, Giuseppe Ambrogetti permaneceu na priso apenas por um dia. O caso Gerlach foi talvez um dos maiores escndalos da histria do pontificado. A demonstrao de que Rudolph Gerlach tinha trado o papa e o Vaticano causou em Bento XV uma forte depresso. O cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, pediu numa carta a Gerlach que se apresentasse no Vaticano para responder s acusaes, mas este nunca deu sinais de vida e preferiu manter-se refugiado na tranquila Sua, longe do brao comprido dos servios secretos italianos. Um tribunal militar considerou inocentes o Vaticano, o papa Bento XV, o secretrio Pietro Gasparri, o servio de contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, e o servio de espionagem do Vaticano, a Santa Aliana, de qualquer responsabilidade no escndalo provocado pelo caso Geriach. Mas no resta a menor dvida de que a implicao do espio da Santa Aliana, Giuseppe Ambrogetti, no escndalo no ajudaria em nada a imagem de neutralidade que o Vaticano queria dar. A partir de Londres, Paris, Roma e Washington, comearam a chegar insinuaes de que o Vaticano simpatizava com os imprios centrais e os servios secretos trabalhavam a favor da sua vitria. Para os governos da Entente, o caso de Rudolph Gerlach era realmente o que demonstrava. O antigo camarista pontifcio utilizou os meios do Vaticano para passar informaes a uma potncia inimiga em tempo de guerra. Anos depois descobriu-se tambm que o Vaticano tinha pago ao advogado de monsenhor Gerlach para o defender no tribunal militar que o acusou de alta traio. Houve mesmo agentes da Santa Aliana que tentaram sem muitas esperanas convencer o general Luigi Cardona, comandante-chefe do Exrcito italiano, a intervir junto do tribunal para que o nome de Gerlach fosse retirado da acusao. E tambm se soube que monsenhor Federico Tedeschini, que era da Secretaria de Estado, disse diante da espionagem italiana e do tribunal militar que, aps observar as atuaes diplomticas do Vaticano e de acordo com todas as normas de censura impostas pelo governo italiano, se tinha restringido a correspondncia da Secretaria aos pases que constituam os Imprios Centrais. Tedeschini admitiu que, desde o fim de 1915 e incios de 1916, monsenhor Gerlach mantivera uma larga correspondncia com Erzberger e Franz von Stockhammern, ambos reconhecidos espies do kaiser, e que essa mesma correspondncia foi autorizada pelo prprio papa Bento XV A explicao do Sumo Pontfice foi que essa autorizao tinha como objetivo convencer a Alemanha a acabar com os bombardeamentos sobre as populaes civis, bem como permitir a transferncia para a Sua de soldados franceses e alemes feridos. Gerlach negou sempre ter qualquer tipo de correspondncia com agentes alemes em pases neutrais por ordem do Sumo Pontfice. O que ele reconheceu foi que passava enormes somas de dinheiro procedentes de Berlim para os jornais como La Vittoria a fim de manter uma linha clara a favor da neutralidade italiana. Um relatrio de Mathias Erzberger para Berlim indicava que monsenhor Gerlach era o principal canal de informao do servio de espionagem nos crculos prximos do papa. Nos ltimos dias da neutralidade italiana, Erzberger autorizou monsenhor Gerlach a distribuir cerca de cinco milhes de Iiras a membros da Cria, jornalistas e polticos, num derradeiro esforo para que a Itlia no entrasse na guerra. Mesmo j depois de o governo de Roma se ter declarado a favor da Entente, Gerlach ainda continuou a receber enormes somas de dinheiro da parte de Stockhammern. Em Novembro de 1915, os servios secretos alemes informaram que foram pagos perto de umas duzentas mil Iiras ao padre Lapoma, agente da Santa Aliana, e tambm a monsenhor Francesco Marchetti-Selvaggiani, o nncio papal na Sua. Desde Maio do mesmo ano, monsenhor Gerlach foi o principal agente alemo no interior da Santa S e, quando o caso estalou e a Itlia exigiu os nomes dos responsveis junto do Vaticano, Bento XV apenas respondeu que a Santa S tinha sido a principal vtima. Gerlach transferiu-se definitivamente para a Sua e foi condecorado posteriormente pelo Kaiser Guilherme II da Alemanha e pelo imperador I Carlos I da Austria, que tinha sucedido ao seu av, Francisco Jos I, aquando da sua morte, a 21 de Novembro de 1916. Depressa abandonou a vida eclesistica e, depois de acabar a guerra, foram vrias as naes que o distinguiram com medalhas pelos seus servios prestados. O caso Gerlach s acabou por demonstrar as simpatias do papa Bento XV para com os inimigos da Itlia. A vigilncia sobre as atividades do papa e dos seus mais fiis conselheiros foi aumentada pelos servios secretos com o propsito de assegurar que os Imprios Centrais no se serviriam do Vaticano como fonte de espionagem. Alguns meses depois, a Santa Aliana soube que no Tratado de Londres assinado por Sonnino, ministro dos Negcios Estrangeiros, e formalizando a entrada da Itlia na guerra, se incluiu uma clusula secreta, o chamado Artigo 15, apoiado por Londres, Paris e So Petersburgo, pelo qual se proibia a interveno do Vaticano, do papa ou de qualquer alto dignitrio da Santa S numa futura conferncia de paz. Tanto a Entente como os Imprios Centrais comeavam no incio de 1917 a descobrir que apenas uma soluo negociada acabaria com a carnificina em que se tinha convertido a Primeira Guerra Mundial. Os anos seguintes seriam de movimentaes para alcanar a paz ou pelo menos reduzir o nmero de inimigos, e a partir da a principal funo dos servios secretos, incluindo a Santa Aliana e o Sodalitium Piamim, ser a de meros intermedirios nessa busca. 12
Intrigas pela paz (1917-1922)
No me entendo com homens falsos nem visito os hipcritas. Salmos 25, 4
Nos ltimos anos da Primeira Guerra Mundial, os principais objetivos da inteligncia italiana eram a Austria e o Vaticano. Um dos agentes mais eficientes no interior da Santa S foi o baro Cario Monti, que por sua vez exercia a direo da Congregao de Assuntos de Culto, a repartio do ministrio da Justia de Itlia em tudo o que dissesse respeito s relaes entre a Igreja e o Estado. De forma no oficial, Monti converteu-se no canal de comunicao entre o governo de Roma e o Vaticano e de algum modo tambm como ponte entre os servios secretos italianos e a Santa Aliana. Neste papel ajudou a estreita relao que tinha o prprio Monti com o Sumo Pontfice desde que ambos foram companheiros de colgio em Gnova. De fato, a atividade de Monti dentro do Vaticano era absolutamente aberta e sem qualquer tipo de subterfgio. As informaes que Cario Monti passava aos servios secretos italianos eram voluntariamente dadas pelos mais estreitos colaboradores de Bento XV e com o seu pleno conhecimento. A informao recebida, na sua maior parte por agentes livres da Santa Aliana, respeitava de preferncia s intenes da administrao papal sobre um assunto em concreto, troca de informaes sobre polticos ou notcias recolhidas por agentes da espionagem pontifcia em qualquer capital estrangeira. Em certas ocasies, o baro Cario Monti recorria Santa Aliana, como aconteceu em Fevereiro de 1917, quando o Vaticano alertou os servios secretos italianos sobre a deteriorao sofrida pela situao social no interior da Rssia do czar Nicolau. Monti no era sequer excludo das reunies entre o papa Bento XV e os seus cardeais ou das mensagens secretas cifradas enviadas pelo Sumo Pontfice ou pelo secretrio de Estado a qualquer nunciatura. A Direo de Segurana Pblica era o departamento italiano que vigiava as atividades do Vaticano e do seu pessoal. Cesare Bertini, o comissrio de polcia do Borgo, o bairro romano onde se inclua o Vaticano, tinha colocado um grande nmero de agentes secretos em redor da Santa S, de postos de observao nos principais acessos que informavam sobretudo acerca das entradas e sadas de diplomatas, jornalistas ou altos membros da Cria Romana. Os agentes de Bertini paisana entravam todos os dias nas dependncias da Guarda Sua e nas zonas de recreio para a recolherem informaes. O principal grupo de informadores no seio do Vaticano era o chamado Vaticaneto, formado por altos membros da Cria Romana durante o pontificado de Pio X e que se conhecia como um grupo de oposio ao papa Bento XV, que os afastara do poder. O crculo era liderado pelo cardeal Rafael Merry dei Vai, secretrio de Estado de Pio X, monsenhor Nicola Canali, subsecretrio de Estado, e ainda pelos camaristas papais, monsenhores Cario Caceia Dominioni e Arborio Mella Di SanfEllia. A vingana como nico fim era a mxima do crculo Vaticaneto e as suas operaes pretendiam humilhar o papa, denegrir a poltica do Vaticano, colocar obstculos ao servio diplomtico papal no estrangeiro e pr a nu qualquer operao da Santa Aliana para depois a denunciar aos servios secretos amigos ou inimigos. Por exemplo, entre a informao viciada e filtrada por parte do Vaticaneto e dada aos servios secretos italianos contava-se o relatrio, datado de 22 de Maro de 1915, no qual se falava da compra de novas espingardas para a Guarda Sua a fornecer por um vendedor prximo dos servios secretos austracos; outro relatrio, datado de 9 de Setembro de 1916, em que se informava que o capelo da Guarda Sua colaborava em matria de espionagem com a embaixada da Austria; um outro do ms de Outubro de 1916, em que se dizia que monsenhor Gerlach entregava planos dos portos de Ancona e Bari para serem atacados por submarinos alemes; ou outro que informava que o diretor da Farmcia Vaticana era realmente um espio do kaiser. Tratava-se, pois, de informaes falsas que pretendiam criar uma m imagem do papa Bento XV e dos seus servios secretos e diplomticos. Outras informaes, embora aceites pelos italianos como falsas, de fato no o eram tanto, como o convite feito pelo rei Afonso XIII ao papa para se instalar em Espanha, em virtude da posio beligerante do governo italiano acerca do Vaticano, ou a descoberta, em Maro de 1917, da tentativa de mediao do monarca espanhol perante o imperador Carlos I da Austria na busca de uma paz separada da Alemanha com as potncias da Entente. Uma das tentativas para alcanar a paz seria levada a cabo por dois agentes da Santa Aliana, o conde Werner de Merode e a sua esposa, Paulina de Merode. Durante muitos anos, o nobre serviu a espionagem pontifcia, a Santa Aliana, como um correio especial. Na verdade, tanto ele como a esposa trabalharam para a Secretaria de Estado vaticana e o seu chefe, cardeal Pietro Gasparri, levando mensagens papais s altas hierarquias eclesisticas dos pases ocupados pela Alemanha. Nos princpios de Abril de 1917, Werner de Merode foi contatado por um agente da Santa Aliana prximo da Alemanha, possivelmente o padre Antnio Lapoma, com o intuito de combinar um encontro com o baro Von der Lancken, antigo oficial da Guarda Imperial, diplomata e membro dos servios secretos do kaiser. Merode pertencia a uma das famlias mais antigas de Frana e Von der Lancken era o chefe do servio de inteligncia alem na Blgica. Werner de Merode disse ao baro Von der Lancken que algumas altas esferas polticas da Entente desejavam fazer um encontro num lugar neutro, por exemplo, na Sua. O alemo perguntou a Merode de que altas esferas falava e o nobre belga citou trs nomes: Paul Deschanel, presidente da Assembleia Nacional francesa, Jules Cambon, secretrio-geral do ministrio dos Negcios Estrangeiros, e Aristide Brian, que tinha sido presidente do Conselho. Disso foram informados Franz von Stockhammern, chefe da espionagem alem na Sua; Zimmermann, secretrio de Estado; e ainda o chanceler Bethman- Hollweg. Von der Lancken esperou notcias sobre o encontro. Para o servio de espionagem e para a Santa Aliana, Deschanel era demasiado anti-austraco e Cambon no se mostrava muito discreto; por isso, restava Brian, adversrio poltico de Clemenceau, o mais feroz belicista, que se negava a qualquer negociao secreta com os Imprios Centrais. Werner de Merode props a Brian que se encontrasse com Von der Lancken na Sua, mas o poltico francs, por muito amante que fosse da paz, devia informar Raymond Poincar, o presidente da Repblica. Para l das advertncias do presidente, Brian decidiu contactar com o primeiro-ministro belga, De Brocqueville, para que o acompanhasse no encontro, que teria lugar a 22 de Setembro de 1917. No dia 9, treze dias antes, Brian voltou a avistar-se com Poincar para anunciar o lugar e o dia do encontro. Como testemunha neutral esteve o jovem monsenhor Eugnio Pacelli, o futuro papa Pio XII, que segundo parece atuava em nome da contra-espionagem vaticana, o Sodalitium Pianum. Quando Brian se preparava para abandonar a Frana e dirigir-se Sua, foi-lhe simplesmente negada a sada do pas. Os servios secretos franceses avisaram o presidente Poincar que os alemes, ajudados pelos servios de espionagem do Vaticano, preparavam uma emboscada para capturar o negociador francs. Algum de dentro do Vaticano ter alertado os servios secretos italianos e estes por sua vez avisaram os homlogos franceses. Certas fontes garantem que foi o cardeal ingls Francis Aidan Gasquet quem filtrou a informao para a espionagem italiana desse encontro de Brian Von der Lancken na Sua. De fato, Gasquet receava que o servio secreto alemo, apoiado pela Santa Aliana, procurasse uma soluo negociada e que por ltimo a paz deixasse no poder o kaiser Guilherme elo imperador Carlos sem qualquer tipo de reparao por parte da Alemanha e da Austria-Hungria. Uma outra personalidade, que gostava de intrigas, entraria no jogo das mediaes. Como o baro alemo, o alto dignitrio da Igreja Catlica, era ouvido pelos servios secretos do Vaticano e dispunha mesmo de uma das melhores redes de espionagem de todo o Mundo e talvez at a mais antiga: tratava-se de monsenhor Eugnio Pacelli e do Sodalitium Pianum. A Santa Aliana e a sua contra-espionagem, a princpio, estavam dispostas a apoiar a ao do papado, ao mesmo tempo que dependiam estreitamente da Santa S. Para dizer a verdade, ambos os servios de inteligncia eram os instrumentos de Bento XV para que estivesse, a cada passo, informado dos movimentos dos contendores para alcanar a paz e at mesmo para tentar dar um pequeno impulso, como sucedeu em Maio de 1917. No dia 20, monsenhor Eugnio Pacelli saiu de Roma para Munique atravs da Sua, depois de o papa Bento XV o ter nomeado nncio na capital bvara quando contava quarenta anos de idade. Uma calvcie precoce, um nariz anguloso, uma extrema magreza e os olhos fundos davam-lhe o aspecto de ser um humilde frade. Os seus largos conhecimentos da diplomacia do Vaticano, sobretudo no plano das questes europeias, permitir-lhe-iam cumprir a incumbncia recebida do papa Bento XV J em 1914, quando era subsecretrio de Estado sob o pontificado de Pio X, Pacelli foi enviado a Viena em misso secreta para estabelecer contactos a alto nvel com a ajuda de monsenhor Umberto Benigni, o responsvel da contra-espionagem do Vaticano. Em Janeiro de 1917, quando teve incio a chamada Negociao Sisto, monsenhor Eugnio Pacelli avistou-se pela primeira vez com o conde Goluchowski, o representante do kaiser. Depois de tomar posse do seu novo cargo em Munique, o nncio Pacelli foi enviado a Berlim a 26 de Junho do mesmo ano. No dia 29 o representante papal era recebido pelo kaiser Guilherme II no quartel-general do Alto Comando em Bad-Kreuznach. O encontro entre ambos decorreu de forma descontrada. Pacelli entregou ao imperador uma carta manuscrita do papa Bento XV, na qual o Santo Padre exprimia os seus desejos de conseguir uma paz estvel para eliminar todos os efeitos desastrosos da guerra. Depois, Eugnio Pacelli tentou convencer o kaiser Guilherme II da necessidade de a Alemanha aceitar a mediao pontifcia com os pases da Entente. Pacelli mostrou-se educado, mas firme nas suas posies, ao tentar colocar o kaiser entre a espada e a parede para que aceitasse a mediao do papa. Por sua vez, Von Hertling, ministro dos Negcios Estrangeiros alemo, lembrava-se de Pacelli e disse: Esse Pacelli valia mais do que um exrcito. O prprio kaiser escreveria nas suas memrias: Eugnio Pacelli era a imagem perfeita do Prncipe da Igreja. No final do encontro, o enviado papal recebeu apenas a promessa formal de a Alemanha ir estudar a mediao pontifcia. No dia seguinte, o encontro foi com o imperador austro-hngaro Carlos I, que estava de visita a Berlim. A reunio entre ambos avanou no mesmo sentido da que ocorreu entre Pacelli e o kaiser. Entretanto, os relatrios que chegavam ao S. P. e ao papa estavam cheios de sugestes, o que permitiria a Bento XV a preparao de uma nota oficial do Vaticano que tinha como objetivo encontrar uma soluo negociada para o conflito. A nota papal foi entregue em mo por Eugnio Pacelli a Guilherme II a 24 de. Julho e muito bem recebida. Sem esperar uma resposta de Berlim, tal como lhe tinha aconselhado Pacelli, o papa Bento XV exigiu ao seu secretrio de Estado, cardeal Pietro Gasparri, que transmitisse essa mesma nota aos representantes da Entente. Essa nota chegou a 9 de Agosto Frana e Gr-Bretanha. Nessa altura, a Sua tornou-se um terreno frtil para as operaes da espionagem italiana contra o papado. H alguns anos que os servios secretos de Itlia estavam convencidos de que o pas transalpino era o centro de operaes sombra da Santa Aliana e do Sodalitium Piamim. As atuaes da espionagem e contra-espionagem vaticanas, dirigidas no sentido de obter uma soluo para a Primeira Guerra Mundial, eram controladas por uma espcie de triunvirato, formado por monsenhor Luigi Maglione, delegado papal na Sua, pelo geral dos jesutas, que havia transferido a sua sede de Roma para a Sua durante o tempo de guerra, e o arcebispo de Coire, uma pequena diocese na Romnia sua. A inteligncia militar recebia constantes relatrios de um amplo movimento da Santa Aliana na Sua com o propsito de desencadear amplas operaes destinadas a mediar entre os grupos contendores. A espionagem italiana havia detectado, sobretudo, um grande fluxo de mensagens entre a delegao pontifcia e Berlim e Viena. A 23 de Agosto, o embaixador da Gr-Bretanha em Roma pde entregar ao papa Bento XV uma petio do rei da Inglaterra,. Jorge V, que indicava que a negociao com a Alemanha deveria passar pelo acerto de condies sobre uma soluo para a questo belga. Para Pacelli era claro que essa negociao apenas dizia respeito a Londres e a Berlim, mas para comear j era pelo menos alguma coisa. Assim, ao apresentar ao Kaiser Guilherme II a proposta inglesa, este recusou-a e alegou que a Alemanha no estava nada disposta a fazer qualquer concesso Blgica. A ideia de que o papa poderia estar a controlar um triunvirato conspiratrio internacional na Sua colocava em alerta no apenas os servios secretos da Entente, mas tambm os principais circuitos anticlericais europeus. O embaixador britnico junto da Santa S garantiu ao governo de Roma que os servios secretos militares se mostravam mais inclinados para a quantidade do que para a qualidade no que dizia respeito recolha de informaes. O diplomata alegava que os italianos estavam mais interessado em obter informaes por grosso, mas que tambm deviam faz-lo sem discriminao para o Vaticano. De fato, os ingleses, que detectaram os movimentos da Santa Aliana em Viena e em Berlim, pensavam que os servios de espionagem papais mantinham um contacto mais direto com Guilherme II e Carlos I e que esses contactos deviam ser aproveitados. A partir do Vero de 1915, o ministrio dos Negcios Estrangeiros da Confederao Helvetica ofereceu-se para enviar uma vez por semana de Berna para Roma uma mala diplomtica, que seria remetida da prpria sede do ministrio para a embaixada da Sua em Roma. No seu interior, acumulavam-se envelopes de vrios formatos fechados e lacrados, com o escudo das chaves de So Pedro. Uma vez em Roma, essa mala era levantada por um membro da Guarda Sua e por dois agentes da Santa Aliana. A mala diplomtica seria tambm motivo de interesse dos servios secretos italianos, sobretudo quando detectaram que continha qualquer envelope procedente de territrio inimigo. Os contedos eram muito difceis de ler dado que, um pouco antes de se declarar a Primeira Guerra Mundial, a Santa Aliana comeou a distribuir entre as nunciaturas um sistema de cdigos criptogrficos para as comunicaes de alto segredo. O departamento encarregado disso designava-se como Repartio Criptogrfica do Vaticano. Durante sculos, os governos protegeram, ou pelo menos tentaram proteger, as suas comunicaes confidenciais dos olhos indiscretos de outros governos por intermdio de codificadores e cifradores nessas tarefas. Para os servios secretos dos pases da Entente e dos Imprios Centrais, os nicos cdigos que nunca chegaram a conseguir decifrar foram os do Vaticano e os da Santa Aliana. Em Dezembro de 1915, poucos meses depois de ser declarada a guerra contra a Austria-Hungria, os servios secretos vaticanos criaram uma unidade especial de codificadores, mas tambm de criptoanalistas, vulgarmente conhecidos como intrpretes de cdigos. O criptossistema usado pela Santa Aliana era muito complicado e geralmente utilizado nas comunicaes entre a Secretaria de Estado e os representantes papais em todo o Mundo. Entre 1914 e 1917, cada um dos nncios pontifcios tinha ao seu dispor um livro de cdigos elaborado pela Repartio Criptogrfica do Vaticano com setecentos a oitocentos grupos numricos de trs e quatro algarismos cada um. Estes grupos numricos representavam uma palavra ou uma mensagem. Por exemplo, 492-7015-119-3683 (492: mensagem recebida; 7015: Sua; 119: agente; 3683: Lugano). O problema era que o livro de cdigos deveria ser em breve alterado, em parte por causa de palavras como submarinos, ataque, retirada, armistcio, canhes e outras do gnero, que tinham de ser includas. Quase no fim da guerra os servios secretos italianos conseguiram um destes livros, o que lhes permitiu ler mensagens importantes entre o Vaticano e as suas Iegaes na Austria-Hungria, na Blgica, em Espanha, na Sua ou nos Estados Unidos. Os relatrios dos nncios sobre as posies polticas dos pases onde estavam colocados, as conversas confidenciais dos nncios com os polticos e intelectuais, as instrues do secretrio de Estado aos nncios relativas s mudanas polticas do Vaticano, os avisos acerca de notcias militares e polticas, as iniciativas de paz dos pases da Entente ou dos Imprios Centrais foram algumas das informaes captadas pelos italianos. Mas a situao seria alterada quando, a 29 de. Julho de 1917, a Repartio Criptogrfica vaticana da Santa Aliana decidiu reforar os seus sistemas de segurana nas transmisses telegrficas. Curiosamente, a 1 de Agosto o papa Bento XV enviou a todos os grupos contendores, atravs das nunciaturas, um documento que reclamava a paz mediante a aceitao de alguns pontos concretos: evacuao mtua e restaurao dos territrios ocupados, renncia s indemnizaes de guerra, liberdade de navegao nos mares e oceanos, diminuio do armamento, rbitros internacionais para as disputas e negociaes abertas sobre os territrios em litgio. O papa Bento XV e o cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, julgavam ser necessrio alcanar um acordo de paz quanto antes, dado que os agentes da Santa Aliana tinham comeado a enviar informaes sobre a possvel entrada dos Estados Unidos na guerra. Para o Vaticano, se tal acontecesse, a situao tornar-se-ia muito difcil para os Imprios Centrais, pelo que o papa ordenou Secretaria de Estado e aos servios de espionagem que tentassem alcanar um acordo de paz antes que o primeiro soldado norte-americano pisasse o solo europeu. A entrada dos Estados Unidos ao lado da Entente sucedeu a 6 de Abril de 1917, mas mobilizar as suas tropas, transporte e armamento at frente levaria mais tempo, e esse tempo devia ser ganho pelo Vaticano e Imprios Centrais. As coisas para a Entente tambm no corriam muito bem. Vrias unidades do exrcito francs amotinaram-se e negavam-se a ir para a frente, enquanto na Rssia o governo do czar Nicolau II era derrubado por uma revoluo e substitudo por um governo provisrio. O novo regime comunista prometia aos aliados que continuaria a seu lado na guerra, mas os constantes motins, deseres e insubordinaes fizeram com que aos oficiais e ao Estado- maior revolucionrio fosse impossvel cumprir a sua promessa. Nesse mesmo ano, monsenhor Eugnio Pacelli informou uma vez mais o papa Bento XV e a Santa Aliana de que o chanceler alemo, Theobald von Bethmann-Hoiiweg, queria iniciar negociaes de paz com os aliados. Pacelli escreveu uma nota pelo seu prprio punho que ainda se conserva nos Arquivos Vaticanos: Bethmann-Hoiiweg v uma oportunidade para alcanar a paz uma vez que o Reichstag deixou de ser dominado pelos polticos pr-blicos por outros que so partidrios da paz. Creio que o momento para dar o passo e fazer um esforo para conseguir uma mediao sria por parte de Sua Santidade? Os servios de inteligncia do Vaticano, de Londres, de Paris e de Roma detectaram as reunies secretas entre Bethmann-Hoiiweg e o nncio Pacelli. O problema residia no fato de os pases da Entente no terem o mesmo ponto de vista do papa em relao a uma soluo negociada com a Austria-Hungria e a Alemanha aps trs anos de guerra, e ainda menos quando os servios secretos avisavam as chancelarias e governos aliados de que o papa Bento XV, o secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e os seus servios de espionagem, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum, de que apenas desejavam afastar a guerra da Europa antes que os Estados Unidos e a sua mquina blica pudessem intervir. Para a Entente, o Sumo Pontfice era claramente pr-alemo, pelo que a Frana comunicou que no aceitaria nunca uma mediao vaticana. O presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, declarou ao nncio papal em Washington que o pas no aceitaria sequer uma negociao com os imprios que no deram nenhum sinal claro de querer a paz ao fim de trs anos de guerra. A Itlia nem sequer considerou como sria a mediao papal. A verdade que desde o caso Gerlach, o Vaticano e o papa Bento XV eram vistos como claramente partidrios dos Imprios Centrais. Eugnio Pacelli estava exultante perante os resultados dos seus encontros com o chanceler Theobald von Bethmann-Hoiiweg e mesmo nas mensagens cifradas o nncio em Berlim descrevia a situao em termos muito otimistas, mas o que Pacelli comunicava ento ao Vaticano eram as promessas que fazia por sua conta e risco junto de Viena e de Berlim, embora soubesse que nunca as poderia cumprir, em parte porque no contava com um nico apoio dentro dos governos da Entente. A 8 de Setembro de 1917, Pacelli desapareceu misteriosamente de Berlim e reapareceu em Roma. A sua inteno era comunicar com Sidney Sonnino, ministro dos Negcios Estrangeiros de Itlia, e poder inform-lo de que tanto a Austria como a Alemanha estavam dispostas a restabelecer a soberania da Blgica, ao pagamento de indemnizaes a Bruxelas e ao reconhecimento austraco das aspiraes italianas pelo territrio do Trentino. Sonnino sabia que tudo se devia interceptao dos telegramas vaticanos, mas o que Pacelli no sabia, e o prprio ministro dos Negcios Estrangeiros de Itlia tinha disso conhecimento, era que o nncio em Viena enviou uma mensagem codificada em que garantia que o imperador Carlos nunca faria qualquer cedncia territorial Itlia. Para os italianos tal fato fazia supor um jogo duplo por parte do Vaticano e do seu nncio em Berlim, monsenhor Eugnio Pacelli. Durante algum tempo o Vaticano no conheceu o famoso Artigo 15 do Tratado de Londres, pelo qual a Frana, a Gr-Bretanha, a Itlia e a Rssia excluiriam o Vaticano de qualquer futura conferncia de paz. Mas um agente da Santa Aliana no Foreign Office descobriu o documento e passou a informao ao cardeal Pietro Gasparri. A partir desse momento, e por ordem de Bento XV, comeou uma forte campanha da Igreja entre as comunidades catlicas no apenas dos pases beligerantes, mas tambm dos que eram neutrais, para que o rei da Inglaterra Jorge V apoiasse a retirada do Artigo 15, mas o caso Jonckx estava prestes a explodir e a onda expansiva afetaria a contra-espionagem do Vaticano, o Sodalitium Pianum. Desde finais de 1917 at comeos de 1918, o dirio Dusseldorfer Tagebiatt denunciara uma conspirao contra os Imprios Centrais na Blgica. Heinz Brauweiler, editor do jornal e agente ocasional do servio de espionagem do kaiser, alegava que um grupo de integristas catlicos apoiados pela Rssia procurava minar a segurana da Alemanha. Nas pginas do jornal, Brauweiller assegurava que um livro recentemente publicado em Frana, La Guerre allemande et Ie Catliolicisme, declarava que o imprio alemo era o verdadeiro inimigo da Igreja Catlica no Mundo e que o kaiser desejava substituir o papa como figura absolutista da Igreja numa futura Europa. Brauweiller afirmava que toda a conspirao havia sido organizada pelo servio de contra-espionagem do Vaticano, o S. R, e por um certo Jonckx, advogado em Gante, cidade belga ento ocupada pela Alemanha. O Dusseldorfer Tagebiatt dispunha dos documentos que o sacerdote dominicano Floris Prims tinha procurado revelar ao papa Pio X e ao seu cardeal secretrio de Estado, Rafael Merry dei Vai. A 3 de Fevereiro de 1918, a polcia militar alem, acompanhada por agentes do servio de inteligncia do kaiser, apresentaram-se na casa de Jonckx. A verso alem foi a de que o advogado e agente da contra-espionagem vaticana mantinha permanentes contactos com um tal baro Sont-hoff, agente da espionagem russa, para promover campanhas contra a Alemanha e o kaiser Guilherme II. De fato, a descoberta do caso. Jonckx foi um absoluto desastre para o Sodalitium Pianum e para o Vaticano. Enquanto Bento XV e o seu nncio em Berlim, Eugnio Pacelli, procuravam negociar a paz entre a Entente e os Imprios Centrais, os servios secretos do Sumo Pontfice realizavam operaes encobertas contra uma das partes. Afetada assim claramente a imagem de neutralidade que o papa queria dar ao longo das negociaes, ordenou ao secretrio de Estado, o cardeal Pietro Gasparri, a total supresso das atividades do Sodalitium Pianum. As operaes do servio de contra-espionagem ficaram suspensas e os efetivos foram absorvidos pela Santa Aliana. A partir desse momento, e por ordem do papa, as operaes de contra-espionagem dentro do Vaticano e os seus organismos seriam dirigidas pelo Sodalitium Pianum, como uma seco menor do servio de espionagem da Santa S. Assim sendo, o papa ordenou a Gasparri a misso de que todos os jovens padres que se ordenassem na Academia Pontifcia para a Nobreza Eclesistica, o centro de onde saam altos membros da Cria Romana, deviam estar preparados para trabalhar como diplomatas e, se acaso as circunstncias o exigissem, mesmo como espies. Nas aulas da Academia deviam formar-se em Direito, Histria, Lnguas e Poltica para assim se tornarem no corpo diplomtico papal. Em pouco tempo, a deciso do papa Bento XV deu os seus frutos e uma nova elite de eclesisticos comearam a ocupar as mais importantes nunciaturas em todo o Mundo. Entre essa elite de diplomatas e espies contavam-se Giuseppe Aversa e Eugnio Pacelli (futuro papa Pio XII) na Alemanha, Raffaele Scapinelli Di Leguigno na Austria, Francesco Marchetti-Selvaggiani e Luigi Maglione (futuro secretrio de Estado) na Sua, Giulio Tonti em Portugal e Federico Tedeschini em Espanha. No fim da guerra as perdas alems ascendiam a quase dois milhes de pessoas e tanto o presidente Woodrow Wilson como os restantes dirigentes da Entente j no se mostravam dispostos a assinar uma paz negociada com a Alemanha e o kaiser Guilherme II. A 11 de Novembro de 1918, Guilherme II, imperador da Alemanha, fugiu para a Holanda e abdicou. O prncipe Max de Baden, ltimo chanceler no Segundo Reich fundado por Otto von Bismarck, entregava o poder ao social-democrata Friedrich Ebert, como presidente interino. A 27 de Setembro de 1919, o ministro dos Negcios Estrangeiros, Hermann Mller, anunciou que a legao diplomtica prussiana em Roma se converteria oficialmente na embaixada da Alemanha junto da Santa S e que Diego von Bergen seria o primeiro embaixador. Mathias Erzberger, o ex-espio e ento ministro do Reich, decidiu estabelecer um contacto secreto com monsenhor Eugnio Pacelli atravs de agentes dos servios de espionagem alemes e vaticanos. De fato, tanto Erzberger como Pacelli desejavam uma completa reestruturao das relaes entre o Estado alemo e o Vaticano, mesmo que para isso fosse necessrio ativar os dois servios de espionagem. A Santa Aliana informou logo o papa Bento XV que monsenhor Eugnio Pacelli estava a negociar sem ter autorizao da Secretaria de Estado e que seria a Santa S que ficaria mal colocada se o nncio em Berlim no conseguisse estabelecer um acordo tcito com o Reich sem ofender a catlica Baviera. A deciso de estabelecer uma embaixada da Alemanha junto da Santa S supunha, pois, o encerramento da legao diplomtica bvara. Mas monsenhor Pacelli no estava disposto a tratar com a Chancelaria do Reich, de tendncia protestante, se encerrava a legao bvara, claramente catlica. Pacelli desejava uma embaixada do Reich no Vaticano a par de uma nunciatura papal para os assuntos alemes em Berlim, excluindo a Baviera, e ainda uma legao bvara em Roma a par de uma nunciatura papal em Munique. Pressionado por Eugnio Pacelli, Mathias Erzberger resolveu apoiar o plano do nncio pontifcio. Segundo parece, Pacelli ameaou Erzberger em revelar aos pases aliados o seu antigo ofcio de espio e algumas das operaes que tinha levado a cabo em Itlia durante a Primeira Guerra Mundial. Por fim, o Reich cedeu e a Prssia aceitou contrariada que a sua prpria embaixada em Roma se convertesse na legao do Reich junto do Vaticano. Tinha passado muito tempo desde que Erzberger avisara o arcebispo Giuseppe Aversa de que o kaiser no aceitaria nunca que um nncio papal na Baviera fosse nomeado depois nncio na Prssia ou no Reich, j que isso seria uma humilhao. Pacelli estava a atrasar a assinatura da Concordata e, na opinio do historiador Klaus Scholder, na sua obra The Church and the Third Reich, criava desse modo o ponto de partida fatal a partir do qual Adolf Hitler, em 1933, procederia capitulao do catolicismo alemo apenas em duas semanas. Por outras palavras, Eugnio Pacelli, como nncio em Berlim, podia ter conseguido uma Concordata no comeo dos anos vinte, sem por isso comprometer a ao poltica dos catlicos alemes. No incio da dcada dos anos trinta era j demasiado tarde e, de forma bem astuta, Hitler viu na assinatura da Concordata com o Estado do Vaticano o modo de afastar da esfera poltica os catlicos alemes e os partidos catlicos do centro. Segundo os analistas polticos e historiadores, Pacelli fez o jogo de Hitler e ajudou-o a libertar-se dos incmodos e ainda numerosos grupos polticos catlico- centristas. Hitler no desejava um confronto com Pacelli como nncio do Vaticano e muito menos quando este j era papa. Um outro caso que a Santa Aliana e Eugnio Pacelli, como nncio papal, tiveram de enfrentar sucederia em Abril de 1920. A disputa era entre a Alemanha e a Frana sobre a utilizao desta ltima de regimentos africanos como fora de ocupao na regio da Rennia. Pacelli recebera muitos protestos de fiis sobre inmeros casos de violaes de mulheres e de crianas de religio catlica por parte dos soldados africanos que estavam no exrcito francs. A 31 de Dezembro, o cardeal Adolf Bertram escreveu uma carta ao cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, na qual afirmava que a Frana preferia utilizar soldados africanos, que devido sua selvtica falta de cultura e de moral tinham cometido terrveis ataques a mulheres e crianas da regio, que quase chegou a uma situao conhecida como vergonha negra. Apesar dos protestos alemes, os franceses ainda pensaram enviar mais tropas africanas para essa regio, mas Pacelli comeou a pedir a Gasparri que ativasse a Santa Aliana para tomar conta do assunto. O embaixador francs rejeitava as alegaes de Eugnio Pacelli e do cardeal Adolf Bertram e definia-as como propaganda anti-francesa. A verdade que os implicados nesse caso eram soldados e oficiais de regimentos vindos de pases do norte de frica e das colnias francesas na frica subsariana. A Santa Aliana decidiu enviar investigadores para a regio a fim de ouvir os implicados e os espies do papa descobriram todo o gnero de aberraes a mulheres e crianas da Rennia pelas tropas francesas. Os rapazes com menos de dez anos eram sequestrados e violados, as adolescentes sequestradas, torturadas e usadas como escravas sexuais, as mulheres golpeadas e violadas, e outros inumerveis casos. Enquanto os agentes informavam Bento XV em Roma, faziam o mesmo tambm junto do nncio Pacelli, mas houve um caso que acabaria por endurecer mais a situao tensa que se estava a viver. Urna rapariga de onze anos, chamada Nina Holbech, foi sequestrada por trs soldados e dois oficiais dos regimentos africanos. Passados dois dias, o corpo da rapariga foi descoberto suspenso na viga de um estbulo abandonado. A jovem fora torturada e violada sadicamente at morte. A Alemanha pedia justia, mas uma nao derrotada e que provocara uma guerra mundial no tinha o direito de a exigir; mas Eugnio Pacelli acabou por lha conceder. Os agentes idos de Roma decidiram atuar contra os atacantes. Para isso recolheram informaes de horrios, locais de diverso dos sequestradores quando iam de licena, controle de estradas e caminhos secundrios at aos quartis a que pertenciam os cinco responsveis pela morte da jovem Nina Holbeck. A segunda forma de ataque da espionagem papal seria uma ampla campanha de denncia nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha contra a Frana pelo ataque dos soldados de cor pertencentes a unidades do seu exrcito feito a raparigas brancas na regio da Rennia. Como resultado das presses da espionagem papal em Washington, o Congresso decidiu criar uma comisso de inqurito para se deslocar Alemanha. Eugnio Pacelli julgava que o governo norte-americano acabaria por pressionar Paris para que pusesse termo s violaes e ataques a mulheres e crianas por parte dos militares africanos, mas o que se passou foi bem diferente. O governo do presidente Wilson aconselhou o Comit do Congresso que no adotasse nenhuma medida ou ao contra a Frana acerca das queixas que chegavam da Alemanha e da Santa S. A 7 de Maro de 1921, Eugnio Pacelli voltou a escrever a Pietro Gasparri para saber qual a posio do Sumo Pontfice, mas desta vez o cardeal secretrio de Estado aconselhou o papa Bento XV a no intervir em defesa das crianas e mulheres alems que eram humilhadas. A partir dessa altura cessaram as censuras da Santa S ao governo de Paris. Misteriosamente, os trs soldados acusados da violao e morte de Nina Holbech, e que nem sequer foram acusados pelas autoridades militares francesas, apareceram despidos com as mos atrs das costas. Tinham sido estrangulados. Os dois oficiais que tambm no foram advertidos e estavam implicados na morte da jovem apareceram enforcados numa viga no mesmo estbulo onde encontraram o corpo dela. Mas nunca se soube quem foram os autores destes crimes, embora as acusaes sobre a chamada vergonha negra continuassem at ao momento em que Hitler, anos depois, voltou a ocupar essa regio. Para Eugnio Pacelli, j como papa Pio XII, a tal vergonha negra deixou marcas na sua atitude em relao s raas e guerra. Vinte e cinco anos depois, quando as primeiras unidades aliadas entraram em Roma aps o fim da ocupao nazi, o Sumo Pontfice, atravs dos embaixadores norte-americano e britnico em Roma, pediu que no houvesse soldados de cor aliados entre as unidades que ficariam aquarteladas em Roma depois da libertao. A 23 de Maro de 1919, ou seja, justamente dois anos antes, num lugar do Santo Sepulcro de Milo, Benito Mussolini reunia-se com cento e dezoito indivduos para fundar os fascistas italianos de combate. No programa exigia-se a expropriao de todos os bens das congregaes religiosas e a revogao da chamada Lei de Garantias. A Santa Aliana alertou imediatamente Gasparri e o papa Bento XV acerca dessa reunio e mesmo sobre a possibilidade de aquele homem to exibicionista poder um dia dispor de um poder excessivo. Mas o que a Igreja no podia saber que dez anos depois Benito Mussolini assinaria os chamados Pactos Lateranenses pelos quais era criada a Cidade-Estado do Vaticano. Em comeos de Janeiro de 1922, o papa Bento XV foi dominado por um catarro que em poucos dias degenerou numa bronquite aguda, agravando o seu estado de sade a 29 de Janeiro. Neste dia, os mdicos do papa diagnosticaram uma pneumonia que lhe causaria a morte dois dias mais tarde, s seis da manh. Pouco depois de morrer, os turcos ergueram uma esttua a Bento XV com uma placa em que se podia ler: Ao grande papa que viveu a tragdia mundial como benfeitor de todos os povos, margem da sua nacionalidade ou religio. O conclave que decorreu aps a morte do Sumo Pontfice durou apenas quatro dias. O cardeal Achille Ratti conseguiu logo os dois teros do total de votos necessrios para ser eleito como papa na manh de 6 de Fevereiro de 1922. Depois de escolher o nome de Pio XI, manifestou junto do Colgio Cardinalcio a sua inteno de salvaguardar e defender as prerrogativas da Igreja Catlica no s em Roma ou em Itlia, mas tambm em todo o Mundo. Desejava lanar a bno Urbi et Orbi como o desejo de uma paz duradoura a partir da varanda da Praa de So Pedro, e no no interior da baslica, o que sempre se tinha feito desde a dcada dos Estados Pontifcios, em 1870. Com este gesto, o papa Pio XI deixava bem claro que durante o pontificado desejava pr fim chamada questo romana. A verdade que com o desaparecimento do papa Bento XV abria-se uma nova poca, uma nova era, a chamada era dos ditadores, que em nada beneficiar a paz mundial. O cavaleiro do Apocalipse est prestes a cavalgar de novo.
13
A era dos ditadores (1922-1934)
No h sinceridade nas suas bocas, o seu corao est cheio de perfdia, a sua garganta um sepulcro aberto, a sua lngua adulao. Condenai-os, Senhor, a que falhem nas suas intrigas, pois se rebelaram contra Ti. Salmos 5, 10-11
A Revoluo Russa de 1917 colocou a Igreja, o Vaticano, o papa Pio XI e o servio de espionagem, a Santa Aliana, diante de um novo inimigo, o comunismo ateu, cuja propagao ameaava destruir a cristandade. Na manh de 21 de Abril de 1926, uma figura modestamente vestida atravessava de forma rpida as portas giratrias do Hotel Moscovo em direo igreja de So Lus dos Franceses, o nico templo catlico em atividade na capital sovitica. Nesse percurso atravessou a praa onde se encontrava a Lubianka, quartel- general, priso e edifcio de execues da temvel Obyeddinenoye Gosudarstvennoye Politicheskoye Upravleniye (OGPU), a polcia poltica do regime. Ao entrar no edifcio sagrado, viu duas pessoas a rezarem diante do altar: uma mulher de meia-idade e um homem de face morena e bem vestido. Outros trs trabalhadores acercam-se nervosos do recm-chegado. Tudo se desenrola com um profundo grau de tenso, perfeitamente explicvel num pas onde o regime comunista persegue, prende e at executa aqueles que se negarem a abandonar as suas crenas religiosas. Em sussurro, o recm-chegado apresenta- se: Michel dHerbigny, arcebispo catlico enviado pelo papa Pio XI a Moscovo em misso clandestina com o intuito de estabelecer uma hierarquia catlica secreta e uma administrao que se ocupe em substituir os bispos e sacerdotes exilados ou encarcerados pelas autoridades comunistas. DHerbigny no era apenas um catlico fiel convencido a levar a palavra do catolicismo aos lugares mais recnditos da Unio Sovitica, era tambm um experimentado agente da Santa Aliana encarregado pelo prprio papa de criar uma seco especial da espionagem que se ocupasse em preparar os sacerdotes que seriam enviados para efetuar ali as tarefas pastorais de forma clandestina. Um dos que se reuniram na igreja era o padre Eugene Neveu, que o embaixador francs em Moscovo convocara a pedido de DHerbigny. O bispo recm- chegado anunciou que o Santo Padre nomeara Neveu como o primeiro bispo secreto e que viajou at Moscovo desde Roma para o consagrar. Mas aps sair do edifcio, Michel dHerbigny dirigiu-se de novo ao seu hotel, onde lhe foi comunicado que devia apresentar-se numa esquadra de polcia moscovita e que nessa mesma noite deveria abandonar o pas. Antes disso, DHerbigny celebraria a cerimnia de consagrao de Eugene Neveu como o primeiro bispo catlico da Unio Sovitica. Foram testemunhas a mulher, Alice Ott, sacrist de So Lus dos Franceses, e o tenente Bergera, adido militar na embaixada italiana de Moscovo. Bergera era amigo pessoal do papa desde que ambos estiveram em Varsvia, ele como adido militar e o cardeal Achille Ratti como nncio papal na Polnia. DHerbigny concedeu uns minutos a Neveu para que se preparasse e pouco depois o bispo leu o documento de nomeao em latim correto assinado pelo secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e pde colocar-lhe o anel como smbolo da sua autoridade episcopal, que lhe permitia tambm a ordenao de sacerdotes e a consagrao de bispos. Depois dessa breve cerimnia, as cinco pessoas que se reuniram no interior da igreja preparavam-se para sair, mas antes de o fazerem o bispo Michel dHerbigny deu as ltimas instrues ao agora bispo Eugene Neveu. Este devia contactar os padres Alexander Frison e Boleslas Sioskans, para lhes entregar as credenciais e consagrar ambos secretamente como bispos. Frison era um padre que dirigia uma pequena congregao catlica em Odessa, no mar Negro, e Sioskans dirigia uma outra em Leninegrado. Neveu recordaria sempre as palavras que DHerbigny lhe sussurrara ao ouvido: Lembra-te que agora s um sucessor dos apstolos, mas isso no tranquilizava de modo nenhum alguns dos apstolos de Cristo que sofreram o martrio em defesa da f. A partir desse momento, Neveu, Frison e Sioskans converteram-se nos responsveis pela rede da Santa Aliana na Unio Sovitica, conhecida como os clandestinos. As misses secretas em territrio estrangeiro eram uma situao normal para a Santa Aliana e nos ltimos anos tinha-as levado a cabo na Blgica ocupada, na Turquia, no territrio austro-hngaro e at mesmo na Alemanha. De fato, o Vaticano recebeu no sem regozijo a queda do czar Nicolau, fiel aliado da Igreja Ortodoxa russa contra a Igreja Catlica Romana, que tinha sido discriminada e perseguida oficialmente. A queda do czar e a chegada de um governo provisrio democrata-liberal em Maro de 1917 dava outras expectativas Santa Aliana. Com a nova legislao aprovada, o governo tentava reconciliar-se com o papado e o catolicismo na Rssia. Mas tudo mudou quando em Novembro desse ano os bolcheviques de Vladimir Lenine tomaram conta do poder. Para os bolcheviques, as crenas religiosas eram de fato um problema de classes e estas deviam ser irradicadas da nova sociedade que pretendiam criar. A 23 de Janeiro de 1918, o Congresso de Comissrios do Povo anunciou uma mudana de rumo em relao s instituies religiosas. Era decretada a proibio de manterem o controle das escolas, negava-se o apoio Igreja por parte do Estado, retirava-se a potestade da Igreja para ter propriedades, proibia-se nas igrejas o pedido de esmolas aos fiis e retiravam-se os direitos cvicos a todos os cidados que seguissem a religio catlica. O golpe derradeiro chegaria em finais de 1919, quando o governo de Lenine proibiu o ensino da religio catlica s crianas, no apenas nas escolas, mas mesmo nas suas prprias casas. A partir da cessaram as relaes entre o Vaticano e a Unio Sovitica. Em resposta s medidas anti-religiosas, o Vaticano e o ento papa Bento XV vacilaram entre o compromisso para aceitar essa imposio e a resistncia. De incio, o papa e o secretrio de Estado decidiram aguardar que o governo revolucionrio abandonasse as duras medidas contra os catlicos; mas, entretanto, o papa Bento XV chamou Michel dHerbigny, antigo membro da Santa Aliana e perito em assuntos russos, para que comeasse a espalhar a sua rede clandestina em toda a Unio Sovitica. Estas medidas seriam ignoradas pelo Santo Padre e apenas o deviam informar se fosse necessrio o seu apoio na nomeao de algum cargo religioso, como foi o de Eugene Neveu. Como ltima deciso do seu pontificado, o papa Bento XV assinou a 22 de Janeiro de 1922 a aprovao de um plano que consistia no envio de uma misso papal Rssia. A Santa Aliana chamou a si as rdeas da operao e para isso mandou o jesuta norte-americano, padre Edmund Walsh, e mais trinta sacerdotes a diferentes pontos do pas para distribuir roupas e alimentos s populaes famintas. Enquanto os espies recolhiam informaes em relao s comunidades catlicas para uma futura estratgia, a diplomacia vaticana estabelecia contactos secretos com Lenine, primeiro em Roma, entre embaixadores, e depois em BerVrav, entre o cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e o dirigente sovitico. Apesar de o Vaticano ter concedido um crdito sem juros Rssia de mais de dez milhes de dlares, Lenine atrasou as cedncias feitas aos catlicos e chegou a assinar na cidade italiana de Rapallo o restabelecer de relaes diplomticas e de cooperao econmica com a Alemanha, o seu antigo inimigo, antes de o fazer com o papa Pio XI. Mas a resposta a esta ao no se fez esperar. Na Primavera de 1923, trs prelados catlicos e doze sacerdotes seriam presos pela polcia secreta russa acusados de atividades contra-revolucionrias e anti- soviticas. Dois deles, o arcebispo. Jan Cieplak e o seu vigrio-geral Konstanty Budkiewicz, este ltimo agente da Santa Aliana, seriam condenados, o primeiro a priso perptua e a trabalhos forados, e o segundo condenado morte. A sentena de Cieplak seria comutada em dez anos de priso, mas Budkiewicz foi executado com um tiro na nuca numa masmorra da Lubianka na noite de 31 de Maro de 1923. De seguida, as igrejas, seminrios e escolas foram encerradas, os sacerdotes presos, executados ou condenados ao exlio. Em 1924, com a morte de Lenine, o velho arcebispo Zerr de Tiraspol era o nico bispo catlico vivo em liberdade dentro da Unio Sovitica. Algumas vozes pressionaram o papa Pio XI para que condenasse publicamente a poltica anticatlica de Moscovo e mobilizasse a opinio pblica catlica mundial contra o perigo do comunismo. Aps um breve discurso de condenao diante dos cardeais por parte do Santo Padre, e aconselhado por Michel dHerbigny, especialista das questes russas, o papa Pio XI comunicou em Dezembro de 1924 ao nncio em Berlim, monsenhor Eugnio Pacelli, que continuasse as suas conversaes secretas com Moscovo. O ministro dos Negcios Estrangeiros russo, Georgij Chicherin, liderava os pragmticos de Moscovo que defendiam a necessidade de uma convivncia com o papado, embora Pacelli se mostrasse decidido a pressionar para obter um acordo que levasse ao reconhecimento da Igreja por parte do Estado. O futuro Pio XII estava decidido a pressionar e at a ameaar Chicherin com o bloqueio econmico Unio Sovitica por parte das naes catlicas se Moscovo no aceitasse um reconhecimento explcito dos direitos catlicos no pas. E logo a seguir as relaes foram cortadas. Vrios historiadores coincidiram em defender essa teoria de que Pacelli no desejava alcanar qualquer acordo com um pas de hereges e selvagens, como ele mesmo o definiu, e assim exigiu a Chicherin coisas impossveis de cumprir por parte dos soviticos. A ruptura que procurara e encontrara levaria a que centenas de sacerdotes e religiosos fossem torturados e executados nos terrveis gulags soviticos por defenderam a f. Era evidente que o papa Pio XI devia ter deixado que as negociaes fossem conduzidas por monsenhor Michel dHerbigny, mas Pacelli pde afast-lo e o catolicismo pagaria por isso um alto preo. DHerbigny entrara nos jesutas aos dezasseis anos e rapidamente se interessou pela cultura russa e pela sua histria durante os estudos em Paris. Era erudito, mas era tambm um homem de ao. Enquanto escrevia trabalhos sobre a filosofia russa em cirlico, participava em programas da Santa Aliana para levar o catolicismo at aos mais distantes recantos da Unio Sovitica. A reputao de Michel dHerbigny chegou aos ouvidos de Roma, que de seguida o chamou para o Vaticano. Em 1922, dirigia o novo Instituto Pontifcio para os Estudos Orientais e era o especialista consultor da Congregao para as Igrejas Orientais, o departamento papal responsvel pelos assuntos eclesisticos na Unio Sovitica e nos pases eslavos. A verdade que, at chegada de DHerbigny Santa Aliana, o Vaticano estava muito pobremente informado sobre o que se passava na Rssia czarista e depois na Unio Sovitica comunista. At a, sem ter um nncio papal em Moscovo ou um delegado apostlico, o Vaticano informava-se atravs de jornalistas com ligaes Santa S que iam dando informaes sobre os avanos polticos ou religiosos que ocorriam no pas. O jesuta Edmund Walsh, chefe da misso de ajuda pontifcia, era o nico que enviava algumas informaes ao Vaticano, por intermdio da embaixada da Alemanha em Moscovo, falando mesmo sobre os movimentos de tropas. Mas o governo comunista proibiu que Walsh se deslocasse livremente pelo pas, pelo que as informaes que chegavam ao servio da espionagem papal estavam mais adequadas vaidade desse diplomata ou ao rumor sobre um comentrio de um funcionrio sovitico feito a um secretrio, amigo de qualquer adido militar, ou seja, falava de coisas sem importncia. Walsh seria substitudo pelo padre Eduard Gerhman, que continuou a colaborar em Moscovo com a Santa Aliana. Por exemplo, em Abril de 1924 os agentes de Walsh informaram que o arcebispo Cieplak tinha sido posto em liberdade e expulso do pas. O religioso viajou logo para Roma para informar o papa Pio XI. No incio de 1925, os refgios catlicos eram escassos e o Vaticano tinha necessidade de criar a sua prpria rede de informadores dentro da Unio Sovitica. Em finais de 1925, Michel dHerbigny recebeu subitamente um convite da Igreja Ortodoxa russa para visitar o pas, um movimento que aprovava claramente o governo de Moscovo. No visto do seu passaporte apareceu escrito viagem de frias e de estudo. DHerbigny viajou at Moscovo vestido com a sotaina negra e o Cabeo branco e ali avistou-se com vrios diplomatas ocidentais, prelados da Igreja Ortodoxa e com um dos mais influentes membros do regime sovitico, o ministro da Educao, Anatoli Lunarcharski. Quando monsenhor DHerbigny regressou a Roma levava consigo um incalculvel nmero de informaes recebidas em primeira mo. O problema consistia em que eram cada vez menos os padres que desejavam viajar para a Rssia e tomar a seu cargo, de forma clandestina, as diferentes parquias que se estendiam por todo o pas. A diversos seminrios chegou a notcia de trs sacerdotes detidos numa pequena aldeia da Sibria por membros da OGPU. Depois de serem interrogados e torturados, os religiosos foram amarrados a um tronco e queimados vivos. Na verdade, esta histria nunca aconteceu, mas passou de boca em boca, sem que ningum pudesse explicar onde, quando ou quem a tinha contado pela primeira vez. A verdade que muitos jovens a tomaram a srio e recusaram-se a viajar para a Rssia. Enquanto as relaes soviticas vaticanas avanavam em marcha forada, Pio XI decidia tomar medidas face ao colapso das estruturas eclesisticas na Rssia. Os bispos teriam uma autorizao papal para ordenar sacerdotes locais, celebrar batismos e casamentos e dar mesmo a extrema-uno. Com esta autorizao pontifcia, apenas os bispos podiam exercer a sua autoridade em questes administrativas das prprias igrejas locais. Segundo Michel dHerbigny, o poder outorgado por Pio XI aos bispos colocava- os numa situao de grande perigo, uma vez que bastava que a polcia secreta sovitica detivesse os bispos para desmembrar a rede de religiosos montada por cada um deles. De fato, foi isso que aconteceu em 1924 quando o papa decidiu criar uma rede clandestina de sacerdotes enviados de Roma com a misso de levar a todos os rinces a religio catlica, mas isso acabou por ser posto de lado e retomou-se a ideia de conseguir essa mesma entrada atravs de conversaes com o regime de Moscovot. O papa Pio XI foi convencido a abandonar este plano dado que o seu xito seria muito improvvel. O problema residia no fato de os conselheiros papais que podiam dirigir esta operao estarem sob apertada vigilncia poltica da OGPU. No seriam os bispos que sobreviveriam nas misses clandestinas na Rssia, mas sim os simples padres que se misturavam com a populao sem levantar suspeitas. Um deles foi o padre Eugene Neveu, que chegara pela primeira vez Rssia em 1907 para dirigir a congregao francesa e belga na cidade de Makejevka. Neveu permaneceu no seu posto at Revoluo de 1917, quando a maior parte dos estrangeiros tinha regressado aos seus pases. Desde ento no se soube mais nada dele at que a Santa Aliana no Vaticano recebeu uma simples mensagem de um lugar afastado da Unio Sovitica em 1922, na qual Neveu pedia que lhe enviasse um bom par de calas e um mapa-mundo. Neveu tinha muita coragem, era um defensor da tica e acreditava firmemente no seu chefe, monsenhor Michel dHerbigny, e na autoridade papal. Por outro lado, Pio XI sabia que Neveu era um homem de ao, um agente perfeito da Santa Aliana, e que as suas aes eram mais eficazes em Moscovo ou em So Petersburgo do que em Washington ou em Bruxelas. A 11 de Fevereiro de 1926, Pio XI chamou aos seus aposentos privados DHerbigny para lhe ordenar o cumprimento de uma misso secreta no interior da Unio Sovitica. O jesuta francs escutou em silncio as instrues dadas pelo Sumo Pontfice, cujas ordens eram as de definir uma hierarquia clandestina catlica na Rssia e como primeiro passo consagrar o padre Eugene Neveu como bispo. DHerbigny, como um bom jesuta, aceitou as ordens do papa sem nada ripostar e sem fazer sequer uma nica pergunta. Em finais de Maro, Michel dHerbigny partiu para Frana com a inteno de pedir na embaixada sovitica em Paris o visto para entrar em Moscovo. Dali viajou de comboio at Berlim, onde se reuniu com o nncio monsenhor Pacelli. O ministrio dos Negcios Estrangeiros de Frana tinha dado j instrues sua embaixada em Moscovo para que Iocalizassem Eugene Neveu e que este, chamado capital sovitica, esperasse por ordens. DHerbigny pde falar pela primeira vez com Neveu a 1 de Abril de 1926. Enquanto o enviado papal e agente da Santa Aliana executava operaes encobertas por ordem do papa, por outro lado fazia chamadas telefnicas e encontros em lugares pblicos com a inteno de despistar o servio secreto sovitico. Um dos protetores de monsenhor DHerbigny seria o embaixador da Alemanha, conde Ulrich von Brockdorff-Rantzau. Foi o diplomata alemo quem deu cobertura a DHerbigny para despistar a polcia sovitica e para que ele pudesse reunir-se finalmente com Neveu na igreja de So Lus dos Franceses a 21 de Abril. Quando o agente da Santa Aliana regressou ao seu hotel e se defrontou com uma ordem para se apresentar na polcia para ser ali interrogado acerca da sua misso na Rssia, soube pela primeira vez que havia um bufo dentro da sua organizao. Mas este sentimento preferiu no revel-lo a ningum, uma vez que poderia provocar o pnico entre os membros da organizao, que comeavam j a ser conhecidos como os clandestinos. A segunda etapa da viagem foi realizada abertamente com Neveu a Karlov, Odessa, Kiev e Leninegrado. Ao longo de vrios dias, DHerbigny e Neveu reuniram-se com sacerdotes e seminaristas e ao mesmo tempo consagraram outros como bispos, entre eles o padre Boleslas Sloskans, de Leninegrado, e o padre Alexander Frison, de Sebastopol. A 10 de Maio, quatro dias antes do regresso a Roma, monsenhor dHerbigny encontrou-se novamente na igreja de So Lus dos Franceses com a senhora Ott e o tenente Bergera para consagrar Sloskans e Frison como segundo e terceiro bispos secretos por ordem do papa Pio XI. Na verdade, DHerbigny era um novato em misses clandestinas e os seus movimentos na Rssia bolchevique no passaram despercebidos sua polcia secreta. Em poucos dias, a OGPU identificou todos os membros da rede dos clandestinos, bem como os seus apoios e centros de reunio, que partiam da igreja de So Lus dos Franceses. Apesar de Michel DHerbigny Neveu, Sioskans ou Frison no terem em princpio sido molestados nem interrogados, o que o enviado do papa no sabia era que toda a rede fora descoberta. O que fizeram os homens de Flix Edmundonovioh Dzerjinsky, o todo-poderoso da OGPU, foi comear a prender os membros menos importantes da rede. Muitos padres foram detidos e enviados para campos especiais a fim de a cumprirem penas de trabalhos forados. Enquanto DHerbigny continuava a alargar a rede da Santa Aliana, o servio secreto sovitico dedicava-se a desmantel-la pela sua parte mais fraca, a dos secerdotes. Em finais de Agosto, o enviado do Sumo Pontfice viajou da turstica cidade de Gorki para Leninegrado. Na antiga cidade imperial e porta fechada na Notre Dame de France, monsenhor DHerbigny consagrou o quarto bispo clandestino da Rssia, padre Antoni Malecki, que tinha sido posto em liberdade depois de cumprir uma pena de cinco anos de trabalhos forados por crimes contra a Revoluo. Os agentes da OGPU controlaram cada passo de DHerbigny sem que este soubesse disso, mas tinham ordens para no atuar at disporem de provas irrefutveis que permitissem Unio Sovitica afastar Michel dHerbigny de cena num nico golpe sem ofender os pases catlicos aliados do Vaticano. Finalmente, a polcia entendeu que j eram suficientes as provas em seu poder. A 4 de Setembro de 1926 expirava o visto do espio da Santa Aliana e a 28 de Agosto DHerbigny tinha ido a uma esquadra de polcia para pedir a renovao do visto e autorizao para entrar na Ucrnia. As autoridades consentiram alargar o visto at 12 de Setembro e disseram ainda que iam estudar o seu pedido para entrar na Ucrnia. Trs dias mais tarde, quatro agentes da OGPU apresentaram-se no seu hotel e informaram-no de que fora declarado persona non grata no pas e, por isso, no era bem-vindo na Rssia. Entregaram-lhe imediatamente o seu passaporte e acompanharam dHerbigny de comboio at fronteira da Finlndia, de onde partiu rumo ao Vaticano para informar o papa Pio XI. Neveu esperava DHerbigny na capital, mas este nunca chegou, e assim decidiu voltar igreja de So Lus dos Franceses e celebrar a sua missa matinal. De repente, a meio da cerimnia, as portas do templo abriram-se e um homem com aspecto de ser trabalhador aproximou-se do bispo e entregou-lhe um pacote com dinheiro e roupas, e disse-lhe: Isto da parte da Santa Aliana. Que Deus o proteja no seu trabalho a partir deste momento. Logo a seguir, o homem deu meia volta e desapareceu por onde tinha entrado. Neveu compreendeu que a partir daquele instante ele e a rede de clandestinos estavam sozinhos, sem a proteo do papa ou da Santa Aliana e apenas com a de Deus. As autoridades soviticas comearam de uma forma sistemtica a desmantelar pouco a pouco a hierarquia da rede catlica na Rssia. Por isso, o aumento das perseguies dava uma ideia ao Vaticano e Santa Aliana da poltica imposta pelo novo lder, Estaline, que depois da morte de Lenine se convertera no homem forte da Unio Sovitica. Estaline afirmava que a segurana da sua posio estratgica, devido ao seu potencial militar e econmico, poderia colocar Moscovo contra o mundo capitalista e para ele um dos seus maiores representantes era a Igreja e o Vaticano. Para os marxistas-leninistas, o papado era um conspirador e os seus sacerdotes ajudavam a propagar as conspiraes por todo o Mundo. O Vaticano era um aliado dos poderes anti-comunistas dispostos a destruir a forma de viver da Rssia. Estaline estava disposto a expandir as ideias comunistas em todo o Mundo e talvez por isso o Vaticano tenha assinado, no pontificado de Pio XI, tratados com a Itlia fascista em 1929 e com a Alemanha nazi em 1933, dois dos governos mais anti-soviticos. A verdade que para o dirigente sovitico os russos catlicos eram potencialmente subversivos e a partir da OGPU j lhe tinham chegado relatrios evidentes sobre as intenes do servio secreto do papa para estabelecer uma rede clandestina de sacerdotes catlicos. A 15 de Outubro de 1926, semanas antes da expulso de Michel dHerbigny, o Conselho de Ministros adotara uma resoluo que proibia a um estrangeiro pregar qualquer tipo de religio. Monsenhor Vincent llyin, nomeado secretamente administrador apostlico em Karkov, foi preso por transportar jornais estrangeiros. Poucos meses depois, monsenhor Sloskans, que em Novembro de 1926 tornou pblica a sua posio dentro da Igreja Catlica, foi preso e condenado a trabalhos forados prximo do Crculo Artico por crimes de espionagem. Uma semana depois, o bispo Teofilus Matulionis foi detido e enviado para o Artico para se juntar a monsenhor Sloskans, Em Fevereiro de 1929 j estavam detidos os bispos Malecki e Frison e todas as igrejas catlicas tinham sido destrudas com dinamite por ordem expressa de Estaline. Calcula-se que em 1924, ano da morte de Lenine, havia no interior da Unio Sovitica cerca de duzentos religiosos catlicos e em 1936 esse nmero caiu para cinquenta, em 1937 passou a dez e cerca de um ano mais tarde apenas restavam dois. Em 1931, o fracasso da coletivizao agrcola, que fez aumentar a fome, levou Moscovo a modificar radicalmente a sua poltica em relao aos pases ocidentais e, portanto, perante o sector catlico e o Vaticano. As prticas catlicas foram consentidas e os religiosos, como o bispo Frison, viram-se em liberdade, embora de forma temporria. Uma vez passada a crise econmica, os servios religiosos foram novamente proibidos e os clrigos detidos e colocados em campos de trabalho. Em 1937, a Santa Aliana informaria o papa Pio XI de que o bispo Alexander Frison, de Sebastopol, fora executado com um tiro na nuca na sua prpria cela do campo de trabalho e quando ele morreu pesava apenas quarenta quilos. Os bispos e sacerdotes eram sequestrados no meio da rua, metidos em veculos pretos e levados para centros ilegais de deteno, onde eram torturados e executados. O cardeal secretrio de Estado recebia por vezes informaes das embaixadas alem e francesa junto da Santa S enviadas de Moscovo. Em finais de 1926, ou incios de 1927, a nica ligao da Santa Aliana e do papa na Unio Sovitica era o bispo Eugene Neveu. Exatamente de duas em duas semanas, Michel dHerbigny recebia um relatrio de Neveu e qual deles o mais desalentador. Por ter nascido em Frana, o bispo podia mais livremente mover-se em Moscovo sem ser detido, ao contrrio do que sucedia aos seus colegas nascidos na Rssia. O jesuta classificava todas as informaes sobre a Rssia como extremamente confidencial, enquanto DHerbigny e a Santa Aliana a consideravam sumamente delicada. Uma das outras misses de Eugene Neveu foi a de resgatar livros religiosos antigos e cones duma possvel destruio. Desde h anos que as autoridades soviticas se dedicavam a queimar indiscriminadamente todos os objetos religiosos ou qualquer material didtico, entre eles, os livros. Monsenhor Michel dHerbigny decidiu ento lanar a chamada Operao Librorum. Depois de a comunicar ao responsvel da Santa Aliana na capital sovitica, decidiu meter mos obra. A princpio, era uma tarefa solitria e de pequena escala, mas em poucas semanas tornou-se numa grande operao. Eugene Neveu comprava livros dos sculos XVI e XVII por poucos rublos e outros do sculo XVIII eram oferecidos pelos prprios donos para no permitir que estes fossem queimados. Os sacerdotes espalhados ao longo de toda a Rssia comearam a enviar para Moscovo todo o tipo de objetos religiosos, como cones dos sculos XIII e XIV, imagens de virgens do sculo XVI e um ou outro crucifixo com pedras preciosas do sculo XV No total, quando se concluiu, dois anos depois, a Operao Librorum, os agentes da Santa Aliana, dirigidos por monsenhor Neveu, tinham enviado um fundo de cerca de um milhar de incunbulos, dois milhares de cones e quase trs mil objetos de carcter religioso como clices, crucifixos ou imagens sagradas. Todo este fundo ficaria depositado para posterior catalogao no Instituto Pontifcio de Estudos Orientais e era enviado diretamente para Roma, por mala diplomtica, atravs da embaixada de Itlia em Moscovo. Em finais da dcada de vinte, a inteligncia sovitica concluiu que existia uma rede clandestina dirigida por um prelado catlico (Neveu) e que estava sob as ordens de um superior (DHerbigny) mesmo dentro do Vaticano. O relatrio da espionagem de Estaline tambm assegurava que a igreja de So Lus dos Franceses era a sede das operaes clandestinas contra o Estado sovitico. A Santa Aliana perderia monsenhor Eugene Neveu em 1936, quando este resolveu sair da Unio Sovitica para se tratar de uma doena na costa francesa. Quando procurou regressar a Moscovo, a embaixada sovitica em Paris negou-lhe o visto uma e outra vez at o fazer desistir dos seus propsitos de voltar a atuar na Rssia de Estaline. Em finais de 1929, o papa Pio XI ordenou a criao de uma unidade especial dentro da Santa Aliana que se chamaria Russicum. As origens desta nova diviso da espionagem do Vaticano seria a chamada Oficina Especial Vaticana, tambm conhecida como Comisso para a Rssia. A direo do Russicum ficou sob o comando de Michel dHerbigny. O bispo decidiu manter a chamada Comisso para a Rssia como uma espcie de instituto onde os futuros membros do Russicum podiam treinar-se antes de seguirem para a Unio Sovitica. O programa de estudos aprovados por DHerbigny e pelo Santo Padre para a comisso incidia muito no total domnio da lngua russa, falada e escrita, na sua histria e cultura e at na prpria gastronomia. Os futuros agentes eram obrigados a ler unicamente os autores russos e s podiam ler jornais soviticos. As notcias eram discutidas em pequenos grupos, mas sempre em russo. Como ltima fase da sua preparao, dois membros do exrcito polaco treinavam os recrutas em tticas de para-quedismo para depois serem lanados dos avies em diferentes locais da Unio Sovitica. No mesmo ano de 1929, exatamente a 11 de Fevereiro, outro acontecimento aparecia nos cabealhos dos jornais de todo o Mundo e alteraria as operaes da Santa Aliana na Rssia. O Vaticano e a Itlia assinavam os chamados Pactos Lateranenses, uma srie de acordos que punham termo chamada questo romana e demonstrava a muitos pases e chancelarias a boa linha de compreenso e comunicao estabelecida entre Pio XI e Benito Mussolini. Em 1926, iniciou-se uma srie de largas e complicadas negociaes para acabar de vez com a situao do Vaticano. A assinatura da nova Concordata permitia assim a criao do pequeno Estado do Vaticano, atravs do seu artigo 26: Reconhece- se a existncia do Estado da Cidade do Vaticano sob a soberania do Romano Pontfice. O territrio era demasiado pequeno, apenas quarenta e quatro hectares, mas a partir desse momento ficava facilitada a independncia das atuaes do papa. Na Concordata assinada, Pio XI conseguia da parte do regime fascista salvaguardar dois aspectos fundamentais, como o direito ao ensino religioso nas escolas pblicas e ainda o reconhecimento, segundo o artigo 34 da concordata, dos efeitos civis do sacramento do matrimnio regulado pelo Direito Cannico. Por seu lado, Benito Mussolini, claramente agnstico, consciente de uma nao italiana catlica, sabia que mais cedo ou mais tarde deveria resolver a questo vaticana. Quanto ao convnio econmico ou, o que o mesmo, indemnizao que a Itlia devia pagar ao papa pela ocupao e anexao dos territrios pontifcios em 1870, fixou-se inicialmente o pagamento de dois milhes de liras, mas Mussolini decidiu baixar essa quantia. No final, o valor a entregar ficou estabelecido em oitenta e cinco milhes de dlares anuais. Outra das medidas que o papa e o cardeal secretrio de Estado Gasparri deviam levar a cabo era convencer os polticos dos partidos catlicos, como o Partido Popular, a deixarem a poltica, tal como se faria passados poucos anos depois da assinatura da Concordata com a Alemanha entre Hitler e o papa Pio XI. As presses da Santa Aliana sobre Luigi Sturzo, lder do Partido Popular, fizeram com que ele se exilasse na Sua e se afastasse por completo da poltica. Desta forma, o Vaticano pagava a Mussolini pelo que alcanara no Pacto Lateranense e o papa Pio XI entusiasmava os padres de toda a Itlia a apoiarem os fascistas, definindo Benito Mussolini como um homem enviado at ns pela Providncia. O texto do Pacto Lateranense, redigido e negociado por Francesco Pacelli, irmo de Eugnio Pacelli, o futuro Pio XII, revelava o propsito de possveis intervenes de ncleos catlicos na poltica. O texto seria utilizado como base de redao da Concordata com o Reich de Hitler. Mas era demasiado claro que o futuro Sumo Pontfice sentia averso pelo catolicismo poltico e que o ativismo dos setores poltico-sociais seria a moeda de troca com que o Vaticano negociaria primeiro em Itlia e anos depois na Alemanha. Em Novembro de 1929, o papa Pio XI resolveu demitir das suas responsabilidades o cardeal Pietro Gasparri, j com quase oitenta anos. Para o substituir, Pio XI nomeou o seu protegido durante um quarto de sculo, monsenhor Eugnio Pacelli, e em Dezembro de 1929, o novo secretrio de Estado envergava a prpura cardinalcia e a 7 de Fevereiro de 1930 ocupava com todos os seus poderes o cargo de cardeal secretrio de Estado, o lugar mais influente da Igreja Catlica depois do papa, que contava ento cinquenta e quatro anos. Uma vez mais, e tendo j Pacelli frente da poltica externa do Vaticano, Pio XI denunciou publicamente as perseguies religiosas no interior da Unio Sovitica e condenou os viciosos ataques por parte dos bolcheviques, censurando os governos europeus pela impassividade que demonstravam em relao a esses ataques. Mas, curiosamente, esta chamada razo foi feita no s s autoridades catlicas, mas tambm s protestantes de toda a Europa, sem que tenha obtido grande resultado. Nos jornais do regime definia-se o papa como um representante da autocracia que procura estrangular a Unio Sovitica, os sacerdotes e religiosos eram tidos como uma pandilha de agitadores e o servio de espionagem do Vaticano como instrumento desestabilizador dos ideais da Revoluo e do sistema de vida comunista. Na aparncia, os servios secretos soviticos no tinham nenhuma fonte em quem confiar no interior do Vaticano nesses anos vinte e os poucos que operavam tinham sido descobertos pelo Sodalitium Pianum, mas na dcada seguinte a situao mudou por completo. As clulas do regime de Estaline comearam a infiltrar-se de forma eficiente na estrutura da Cria Romana. Na Gira-Bretanha, em Frana e nos Estados Unidos a espionagem sovitica conseguiu captar agentes locais ou membros do Partido Comunista, mas no Vaticano tudo era muito diferente. Um dos agentes mais ativos da OGPU na Santa S seria um homem muito prximo de Michel dHerbigny. Alexander Deubner nasceu em So Petersburgo a 11 de Outubro de 1899. O seu pai era um oficial czarista que se converteu secretamente ao catolicismo e decidiu enviar o seu filho Alexander para a Blgica a fim de ser educado no colgio dos padres assuncionistas, uma ordem religiosa muito ligada Rssia. Em 1921, j com vinte e dois anos, Deubner foi enviado para um seminrio na Turquia para se preparar como missionrio. Depois de cinco anos de estudos, Alexander Deubner encontrou-se sem dinheiro, pelo que teve de recorrer ao arcebispo Andreas Sheptyckyi em Varsvia, um amigo de seu pai, que colocou Deubner como novo proco da congregao de expatriados russos na cidade francesa de Nice. L se converteu Igreja Ortodoxa, mas em finais de 1928 renunciou sua apostasia e regressou ao seio de Roma. Uma vez mais, o arcebispo Sheptyckyi interveio a favor do seu protegido e conseguiu que o prprio Michel dHerbigny reclamasse a presena de Deubner para um lugar de assistente na nova diviso da Santa Aliana, o Russicum. O novo investigador tinha impressionado tanto DHerbigny que o prprio chefe do Russicum convidou Alexander Deubner para escreverem juntos uma monografia sobre os bispos russos ortodoxos. Rapidamente, Deubner ascendeu no escalo da espionagem vaticana at se tornar no colaborador principal e mais importante de Michel dHerbigny No Vero de 1932, o Russicum encomendou- lhe uma delicada misso na Polnia relacionada com assuntos eclesisticos, e este seria o comeo do fim de Deubner e o primeiro passo na queda do arcebispo Michel dHerbigny frente do Russicum. Por algum tempo, DHerbigny estava convencido de que, apesar da ditadura bolchevique, a Rssia poderia um dia conhecer uma converso ao catolicismo, mas s se o Vaticano estivesse preparado para adaptar os seus costumes e prticas religiosas cultura russa, exceto no que dizia respeito ao dogma. O chefe do Russicum decidiu enviar um relatrio ao papa Pio XI e ao secretrio de Estado, Pacelli, e na capa podia ler-se Russificado, ou o que era o mesmo, um documento extremamente delicado. O texto revelou-se bastante controverso, no s entre os tradicionalistas que se opunham a qualquer mudana nos seus rituais, mas tambm entre aqueles que defendiam a liberalizao da estrutura da Igreja Catlica, algo que no estava muito em consonncia com o aparelho vaticano. Muitos catlicos na Rssia eram de origem polaca e tinham sofrido uma transformao desde o catolicismo mais hostil ao comunismo mais obediente. Para o regime de Estaline, os polacos catlicos da Polnia no deviam ser convertidos, mas antes combatidos. Michel dHerbigny e o Russicum estavam muito interessados em realizar operaes em territrio polaco e estabelecer no pas uma rede clandestina de sacerdotes e bispos tal como a que tinha organizado na Unio Sovitica. Durante a visita Polnia, Alexander Deubner chamou a ateno dos servios secretos, que estavam interessados no apenas nas suas relaes com DHerbigny, mas ainda nos contactos com Moscovo. O padre Deubner foi detido pelos bolcheviques logo depois da Revoluo e da queda do czar Nicolau e enviado para uma priso na Sibria. A sua me, francesa, vivia na capital russa juntamente com um tio do agente da Santa Aliana, num apartamento no mesmo complexo do Kremlin. O tio de Deubner era amigo da clebre ativista comunista da Alemanha, Clara Zetkin. Quando o agente do Russicum passou por Berlim teve um encontro com Zetkin, que lhe conseguiu vrios contatos na Alemanha, entre eles com diversos diplomatas da embaixada da Unio Sovitica em Berlim, agentes da OGPU. A polcia detectou tambm alguns encontros entre Zetkin e o jovem sacerdote num pequeno apartamento, embora no fosse especificado se era para terem relaes sexuais ou para trocarem informaes de forma mais confidencial. Em finais de 1932, e depois de ser expulso da Polnia por atos de espionagem, Alexander Deubner voltou a Roma no meio de escndalo. Diplomatas e destacados membros da Cria Romana espalharam a notcia de que alguns delicados documentos secretos das operaes do Russicum na Europa Oriental tinham sido roubados da prpria mesa do Sumo Pontfice. A imprensa, como se previa, resolveu explorar essa suculenta histria e o nome de Deubner estava no centro dela. Por fim, as principais hierarquias da Santa Aliana pediram a Michel dHerbigny uma explicao clara acerca da infiltrao no corao do Russicum, mas aquela no pde ser dada. Ao tentar descobrir a verdade, os agentes do Sodalitium Pianum exigiram a comparncia de Alexander Deubner, mas este tinha desaparecido. Essa fuga desesperada fez supor a muitos uma confisso de culpa. Os principais jornais da Europa comearam a publicar ttulos como O espio sovitico Deubner foge do Vaticano, O secretrio de DHerbigny um agente da OGPU ou Em Moscovo com os documentos roubados. Seria o padre Eduard Gehrmann, que foi durante algum tempo o diretor da Misso de Ajuda Pontifcia na Rssia e antigo conselheiro de assuntos russos para o nncio papal em Berlim, quem desencadearia a tempestade ao obrigar Alexander Deubner a confessar-se. O fugitivo agente do Russicum confessou que mantivera relaes sexuais com a comunista Clara Zetkin na sua viagem a Berlim e a Varsvia. Gehrmann saberia depois que nesses encontros Deubner entregara a Clara Zektin material muito delicado do Russicum e da Santa Aliana e ela por sua vez faria chegar esse material aos agentes da espionagem sovitica na Alemanha. Deste modo, nomes, datas, nomes de cidades, operaes da espionagem vaticana foram colocados nas mos da temvel OGPU. Como primeira medida foi decidido que Deubner permanecesse em total isolamento numa casa dos jesutas em Berlim, mas trs dias depois conseguiu fugir por uma janela e simplesmente desapareceu da face da Terra. Em Fevereiro de 1933, um militante comunista, segundo a verso defendida pelo aparelho nazi, lanou fogo ao Reichstag, o Parlamento da Alemanha. Adolf Hitler e o Partido Nacional-Socialista, prestes a chegar ao poder, viram nisso a oportunidade de lanar as suas hordas contra o Partido Comunista alemo. Os assassnios nas ruas de dirigentes do comunismo alemo, publicaes incendiadas e sedes do partido atacadas e destrudas foram a tnica geral nesses dias. Foi nesta altura, pois, que o padre Alexander Deubner abandonou rapidamente Berlim. Parece que, de acordo com um agente da Santa Aliana, Deubner estava a ser procurado por membros do partido nazi pela sua presumvel relao com a conhecida militante comunista Clara Zetkin. O antigo agente do Russicum tivera uma discusso com vizinhos de Zetkin e um deles era um dirigente nazi no bairro. Quando procurava atravessar a fronteira com a Austria disfarado de estrangeiro, foi detido pela Guarda de Fronteiras da Alemanha e seria encarcerado durante dois meses at ser libertado em finais de Maio, mas antes disso fora interrogado sobre as suas possveis ligaes com a espionagem sovitica. Novamente o perderam de vista at aparecer em Belgrado, onde pediu ajuda ao bispo Franz Grivec, um especialista em questes russas. Convocou ento uma conferncia de imprensa para negar qualquer acusao de espionagem. Grivec recomendou a Deubner que regressasse a Roma para responder sobre as acusaes de espionagem diante do papa Pio XI, do cardeal secretrio Pacelli e da Santa Aliana. A contra-espionagem do Vaticano tinha-se empenhado em lanar a notcia em vrios jornais de que o padre Alexander Deubner era um membro temporrio do Russicum e que no tinha tido acesso a documentos importantes da diviso russa da Santa Aliana. Quando Deubner entrou em Roma em Julho de 1933, monsenhor Michel dHerbigny tinha sido enviado para um mosteiro a fim de refletir sobre as suas aes e orar pelo seu perdo. DHerbigny pensava que num curto espao de tempo o Santo Padre o faria regressar a Roma, onde continuaria nas suas tarefas de espionagem. Alexander Deubner julgava que poderia colocar-se sob a proteo do amigo e chefe sem saber que DHerbigny, um dos melhores agentes secretos papais, fora afastado do Vaticano por ordem de Pio XI. Michel dHerbigny criou muitos inimigos entre as figuras de Roma e, pior ainda, entre os altos dignitrios da Cria. Em 1933, o nmero de inimigos do Russicum cresceu perigosamente em relao a Michel dHerbigny e um deles era Vladimir Ledochowski, o geral dos jesutas. Os acontecimentos que se sucederam depois permanecem no mais absoluto segredo e todos os documentos sobre o caso se encontram nos mais recnditos e escuros depsitos dos Arquivos Secretos do Vaticano. A 29 de Setembro de 1933, Pio XI colocou sobre a mesa um monto de fotografias em que se viam imagens de sacerdotes presos em campos de trabalhos soviticos e que tinham sido tiradas pelos agentes da rede de os clandestinos, dirigida por monsenhor Eugene Neveu. Sem mais nada acrescentar, o papa disse a DHerbigny que o padre Ledochowski tinha decidido, por recomendao do seu superior, mand-lo descansar por algum tempo numa clnica da Blgica. A 2 de Outubro, Michel dHerbigny deixou o seu gabinete com dois agentes da Santa Aliana como testemunhas e tarde, inteiramente sozinho, abandonava Roma para sempre. Em finais de Novembro, dois agentes da contra-espionagem vaticana visitaram DHerbigny com o geral Vladimir Ledochowski. Um deles tirou do bolso um documento lacrado com o selo papal. DHerbigny abriu-o cuidadosamente e nesse texto Pio XI expunha ao seu antigo espio que seria conveniente que apresentasse a sua demisso de todos os cargos e de todas as posies dentro da Cria Romana. De acordo com as mais estritas normas da Ordem dos Jesutas, de clara obedincia ao Santo Padre romano, DHerbigny assinou o documento sem protestar. Monsenhor Michel dHerbigny permaneceria completamente incomunicvel numa casa jesuta at sua morte, em 1957. Os superiores da Ordem proibiram que ele escrevesse ou falasse publicamente sobre as suas atividades no Russicum. Entretanto, o padre Alexander Deubner encontrou um asilo de caridade a indigentes graas ajuda de sacerdotes que serviram no Russicum sob as ordens de Michel DHerbigny. Sem nenhuma explicao possvel, Deubner s permaneceu uns dois meses nesse asilo. Os agentes da espionagem italiana encontraram-no depois a viver num andar alugado em pleno centro de Roma e ele explicou que arranjara um trabalho na biblioteca do Instituto Pontifcio de Estudos Orientais. Os seus amigos acreditaram na histria, mas no os italianos. Colocado sob vigilncia, o servio secreto de Itlia descobriu em Setembro que o padre Deubner visitava com frequncia a embaixada da Unio Sovitica. De novo preso, o antigo espio explicou que as visitas eram devidas ao seu trabalho no Instituto de Estudos Orientais. A polcia descobriu que Deubner de fato no trabalhava na biblioteca do Instituto, mas frequentava uma sala de leitura e vivia num apartamento alugado sem nenhum tipo de visitas conhecidas. A Santa Aliana informou os seus colegas italianos de que Alexander Deubner tentara obter um visto para regressar Rssia, enquanto os soviticos, que sabiam das suas relaes com DHerbigny e com o Russicum, negaram esse visto, embora lhe oferecessem um pagamento pelos seus conhecimentos. Por ltimo, um belo dia Deubner foi preso pelos servios secretos italianos para ser expulso, mas antes disso a Itlia perguntou embaixada sovitica se o queriam receber e essa oferta foi recusada. Deubner era til no Vaticano e no fora dele. Em finais de 1934, o antigo espio papal foi escoltado at fronteira com a Frana e da viajou para Moscovo, onde esperava ser condecorado por Estaline pelos seus servios prestados ao regime comunista, mas esses seus sonhos no se cumpriram. Mal acabava de pisar o solo sovitico, foi preso por agentes da OGPU e levado para um campo de prisioneiros na Sibria, onde numa fria noite seria executado por agentes da polcia secreta comunista. A nota oficial enviada ao Vaticano explicava que o padre Alexander Deubner fora assassinado por bandidos que o assaltaram no campo de trabalho para roubar e matar alguns prisioneiros. A Secretaria de Estado no exigiu mais explicaes e o perigoso caso Deubner ficou encerrado e arquivado nos depsitos dos Arquivos Secretos do Vaticano. Entre 1932 e 1939, os servios de inteligncia italianos centraram-se no Vaticano e em especial entre os ncleos da Cria Romana que se diziam contrrios poltica dos fascistas. A espionagem italiana dedicou-se tambm a vigiar as relaes externas do Vaticano com outros pases como Espanha, Alemanha, Frana e Jugoslvia, porque a Itlia de Benito Mussolini queria estar preparada para a grande tragdia que se avizinhava no Mundo. Nenhuma ponta poderia ficar solta antes de os soldados comearem a marchar e a atravessar as fronteiras a sangue e fogo. Estavam bem prximos os anos belicistas de destruio e de morte. O cavaleiro do Apocalipse voltava a galopar depois de dezasseis anos de paz. Faltava apenas escutar a linguagem dos canhes. 14
A ascenso do terror (1934-1940)
Assim diz o Senhor: Ai da cidade contaminada e prepotente; afastarei de ti os soberbos fanfarres e deixars de te orgulhar. Sofonias 3,11
A ascenso dos nazis ao poder provocou uma forte reao entre as altas hierarquias da Igreja Catlica na Alemanha. Perante os protestos cada vez maiores por parte dos bispos, o novo regime procurou pacificar os nimos com o objetivo de ganhar o tempo suficiente para infiltrar o Partido Nazi em todas as organizaes e esferas do poder, incluindo mesmo a catlica. Pouco depois da nomeao de Adolf Hitler como chanceler da Alemanha a 29 de Janeiro de 1933, o vice-chanceler Franz von Papen manteve reunies secretas com o ainda nncio Eugnio Pacelli. O papa Pio XI s soube desses encontros dois anos depois quando lhe chegou s mos um relatrio classificado como Alto segredo e elaborado pela Santa Aliana. Nas conversaes, primeiro informais e depois secretas, Von Papen e Pacelli estabeleceram os pontos definitivos que deviam fazer parte da famosa Concordata assinada entre Berlim e o Vaticano a 20 de Julho de 1933. Segundo o acordo, o Reich permitia o exerccio pblico e Iivre da religio catlica, reconhecia a independncia da Igreja, garantia a livre comunicao entre a Santa S e os seus bispos na Alemanha e ainda a liberdade de nomeao dos cargos eclesisticos, permitia o acesso ao ensino catlico nos colgios pblicos e o Vaticano ficava autorizado a criar a cadeira de Teologia em todas as universidades da Alemanha. Mas todas as clusulas tinham as suas condies. O Estado poderia exercer o seu direito de veto sobre a nomeao de bispos por razes polticas e os bispos j eleitos deviam prestar juramento de fidelidade ao Reich e ao Fhrer. O que a Santa Aliana descobriu foi que Pacelli, no ltimo minuto, decidiu incluir no texto da Concordata uma clusula pela qual nenhum religioso poderia pertencer a qualquer organizao ou partido poltico e Von Papen aceitou-a sem entender por que que monsenhor Eugnio Pacelli a desejava to ardentemente. Vrios historiadores e estudiosos consideraram a assinatura desta Concordata como uma aprovao e apoio ao regime nazi de Hitler por parte da Santa S. De fato, foi mais uma cedncia de Pacelli, o futuro Pio XII, do que do papa Pio XI. Para o cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, no negociar a Concordata com Hitler suporia deixar a comunidade catlica alem sujeita a perseguies. Alm disso, quando o documento foi assinado, em 1933, o regime nazi ainda no tinha iniciado uma poltica de terror nem as barbaridades que se avizinhavam. H muito que o papa Pio XI tinha condenado o nazismo e os seus dirigentes atravs da encclica Mit brennender Sorge, assinada a 14 de Maro de 1937. Tal como no caso da Itlia de Mussolini, Hitler desejava uma espcie de reconhecimento religioso para o seu regime a fim de assim aumentar o seu prestgio internacional e para isso nada melhor do que assinar uma Concordata com a Santa S. No comeo de 1939, a situao era bem diferente e as atrocidades nazis comeavam a atravessar as fronteiras da Alemanha. O papa Pio XI preparou um novo texto que se queria ler no dcimo aniversrio da assinatura dos Pactos Lateranenses, na presena de todos os bispos italianos e alemes. Afinal, o polmico documento no pde ser lido porque ocorreu a morte prematura do Sumo Pontfice na vspera desse aniversrio. Tal documento no foi tornado pblico at chegada ao trono de So Pedro do papa Joo XXIII, em 1958, passados quase vinte anos. No texto original, intitulado Neila Luce, Pio XI tornava evidente a incompatibilidade entre a ideologia fascista e a doutrina de Jesus Cristo. E na Alemanha as coisas no corriam melhor. Os agentes da Santa Aliana na nunciatura de Berlim comearam a enviar ao Vaticano relatrios em que falavam de uma espcie de instituio dependente do Reich, que se dedicava a purificar a raa ariana. A espionagem vaticana enviou a Berlim dois padres e agentes disponveis, Gunther Hessner e Len Brendt, para ali conhecerem os fatos. Hessner e Brendt conseguiram penetrar no misterioso Rasse-Heirat Institui (Instituto de Casamento Racial), o primeiro como mordomo e o segundo como cozinheiro. Gunther Hessner nascera na regio da Baviera, no seio de uma famlia fiel ao kaiser Guilherme II. Por sua vez, Brendt provinha de uma famlia mista, tinha sido educado num lar de ideologia liberal e, portanto, contrrio a Hitler, enquanto que Hessner fora educado numa famlia conservadora e nacionalista e, por isso, seguidora do novo Reich. O primeiro relatrio sobre o Rasse-Heirat Institu chegou a Roma em 1937, assinado pelo padre Len Brendt. Num texto de oito pginas explicava em pormenor como as mulheres tidas como arianas mantinham relaes sexuais com destacados membros do Partido Nazi e das unidades SS e SA. As mulheres eram usadas e vigiadas como coelhinhos da ndia, mesmo durante o ato sexual com qualquer membro ariano das SS, e estava sempre presente uma enfermeira do Partido Nazi. Um outro relatrio do agente Len Brendt explicava como algumas dessas mulheres aceitaram ser inseminadas artificialmente. O Vaticano reagiu de forma imediata e enviou atravs da sua nunciatura cinquenta e cinco notas de protesto sem referir explicitamente, em nenhuma delas, o Rasse-Heirat Institui. O Vaticano no desejava sob qualquer pretexto pr em perigo os seus agentes infiltrados. Mas o alarme espalhou-se pelos corredores do Vaticano quando chegou o primeiro relatrio do padre Hessner. Atravs de uma jovem do Rasse-Heirat Institui, a Santa Aliana descobriu que em vrias clnicas e hospitais controlados pelos nazis estavam a ser realizadas operaes de esterilizao e assassinados deficientes mentais segundo as leis raciais do Partido Nazi. Em face dos fatos descobertos, Hessner preferiu enviar o relatrio a trs dos dignitrios catlicos mais combativos em relao ao regime nazi, o cardeal Clement August von Galen, o cardeal Konrad von Preysing e o arcebispo de Munique, monsenhor Michael von Faulhaber, e seria este ltimo quem remeteria o relatrio do padre Gunther Hessner para o Vaticano. Com esse material, o papa Pio XI ordenou a publicao da encclica Mit brennender Sorge, lida de forma clandestina nalgumas igrejas catlicas da Alemanha no Domingo de Ramos de 1937. Mas a reao de Hitler no se fez esperar. As autoridades nazis, atravs das SS e da Gestapo, prenderam nas semanas seguintes mais de mil catlicos, incluindo jornalistas, sacerdotes, frades, seminaristas, freiras e dirigentes de organizaes juvenis catlicas. Em princpios de 1938, trezentos e quatro deles foram deportados para o campo de concentrao de Dachau. O padre Gunther Hessner continuaria a atuar para a Santa Aliana em diferentes locais da Alemanha e a informar o Vaticano acerca do holocausto judeu at 1941, ano em que foi detido pela Gestapo e enviado para o campo de concentrao de Mathausen. Foi a enforcado quando os guardas do campo o surpreenderam a dar a extrema-uno a um velho polaco que estava no mesmo barraco. Por sua vez, o padre Len Brendt foi preso em Abril de 1940 por membros das SS ao descobrirem que ele ajudava os judeus a fugir para a Sua atravs de uma rede clandestina organizada pelo prprio Brendt sem autorizao da Santa Aliana. De acordo com alguns relatrios, Brendt montou essa rede com o apoio do cardeal Clement August von Galen. Perante tais medidas, o papa Pio XI refugiou-se na residncia de Castelgandolfo para no ter de receber Adolf Hitler durante a sua visita a Roma entre 3 e 9 de Maio de 1938. Mas o Santo Padre ordenou ainda o encerramento dos museus do Vaticano e foi pedido ao Osservatore Romano que no publicasse uma nica linha sobre a visita do chanceler alemo. Por outro lado, no corao do Vaticano, os agentes do Sodalitium Pianum empenhavam-se na caa aos espies. Desde o fim da dcada de vinte, que os servios secretos italianos se dedicaram a infiltrar bufos nos vrios sectores papais e entre eles o mais importante era monsenhor Enrico Pucci, homem muito bem relacionado com o mundo jornalstico e a administrao papal. Embora nunca chegasse a definir a sua posio, monsenhor Pucci era de forma no oficial o porta-voz do Vaticano. Redigia e publicava um pequeno boletim em que se dava notcia sobre os eventos oficiais do Vaticano ou qualquer assunto papal relacionado com o pequeno Estado. Trabalhava ainda como freelancer, escrevia artigos em jornais de toda a Itlia e os jornalistas junto da Santa S recorriam a monsenhor Pucci para que os informasse sobre este ou aquele cardeal ou de um certo bispo que fizera uma declarao no oficial. Pucci sabia tudo e nada se passava no interior dos palcios vaticanos de que ele no fosse informado. Desde freiras a elementos da Guarda Sua, de cardeais a bibliotecrios, Enrico Pucci sabia tudo o que se passava nos corredores de So Pedro. Monsenhor Pucci revelou-se como o melhor espio de Mussolini no interior do Vaticano desde que foi recrutado, em finais de 1927, por Arturo Bocchini, chefe da polcia fascista. A Santa Aliana passou a ter notcias de um bufo no interior do Vaticano em meados da dcada de trinta. Com o nmero de agente 96, Pucci passava todo o tipo de informaes aos italianos e a sua melhor operao foi levada a cabo em 1932, quando conseguiu apanhar uma cpia do manuscrito das memrias do cardeal Bonaventura Cerretti, nas quais relatava com todo o tipo de pormenores as negociaes e conversaes secretas tidas com o primeiro-ministro Orlando para conseguir os chamados Pactos Lateranenses em 1929, que colocariam fim questo romana sobre o Vaticano. Os agentes da Santa Aliana informaram a contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, acerca da existncia de um bufo detectado dentro do Vaticano. Os agentes do S. P. comearam logo a atuar para descobrir esse infiltrado. Para isso decidiram fazer circular um documento falso com a assinatura do cardeal secretrio de Estado, Pietro Gasparri, e no relatrio dizia-se que um tal Roberto Gianille tinha passado informaes de Itlia e do Vaticano embaixada britnica junto da Santa S. E evidente que essa informao era falsa e o agente Roberto Gianille no existia: tratava-se simplesmente de uma personagem inventada. Os agentes do S. P. conseguiram fazer passar a informao como verdadeira e que ela chegasse s mos de monsenhor Enrico Pucci. Em pouco tempo, Bocchini ordenou a busca e captura de Roberto Gianille, por ser acusado de alta traio. Nem os italianos nem Pucci sabiam que Gianille era uma inveno da contra-espionagem vaticana para detectar o espio, mas a verdade que o bufo caiu na armadilha. Afastado de todas as suas funes oficiais e extra-oficiais dentro da administrao papal, Enrico Pucci continuou a trabalhar e a servir o regime fascista at queda de Mussolini. Com Pucci cairia tambm a sua rede formada por Stanislao Caterini, Giovanni Fazio e Virgilio Scattolini, todos eles funcionrios de nvel intermdio no Vaticano. Caterini estava colocado na Secretaria de Estado e foi recrutado em finais de 1929. Constitua at sua deteno uma das melhores fontes de informao de monsenhor Enrico Pucci, por trabalhar na Repartio Criptogrfica, a diviso de cdigos secretos da Santa Aliana utilizados pelas nunciaturas nas suas comunicaes secretas. Qualquer informao de e para o Vaticano passava pelas mos de Caterini, que informava diretamente o monsenhor Pucci sobre os assuntos mais delicados. Mas foi de imediato obrigado a demitir-se por traio aos seus superiores e expulso do Vaticano. O segundo membro da chamada rede Pucci era Giovanni Fazio, suboficial da polcia do Vaticano. A sua posio dava-lhe acesso a todo o expediente do pessoal religioso e laico do Estado do Vaticano. Uma vez descoberto pela Santa Aliana, Fazio foi demitido do cargo e expulso por desonra dos corpos de segurana do papa e do territrio Vaticano. Mas continuaria ao servio da espionagem italiana at 1942, quando apareceu enforcado na sua prpria casa. Os rumores que circularam em Roma nesses dias asseguravam que se tratava de uma execuo e que Fazio tinha sido apanhado pelo brao comprido da Ordem Negra, que era a organizao de frades assassinos criada no sculo XVII por Olimpia Maidalchini, a poderosa chefe da espionagem vaticana s ordens do papa Inocncio X. O terceiro membro da rede Pucci a cair foi Virgilio Scattolini, um jornalista que trabalhava como auxiliar de monsenhor Mrio Boehm, o editor de Ubsservatore Romano. Scattolini foi recrutado pelos servios secretos italianos e colocado sob as ordens de monsenhor Enrico Pucci no incio de 1930. O trabalho de Scattolini consistia em infiltrar-se nos crculos jornalsticos antifascistas e fornecer os nomes dos seus membros a Pucci para que este, por sua vez, informasse as foras de segurana de Mussolini. Virgilio Scattolini demitiu-se do seu cargo ao ser descoberto pelos agentes da contra-espionagem papal e continuou a sua carreira como jornalista a escrever artigos em vrios rgos de informao italianos. Era evidente que os servios de espionagem italianos tinham dado pouca importncia atuao da Santa Aliana e da contra-espionagem papal, mas os alemes no cometeriam esse mesmo erro. Assim, aps a assinatura da Concordata, os servios de segurana do Reich decidiram fustigar muito fortemente todas as bases do catolicismo na Alemanha. Em Fevereiro de 1933, Adolf Hitler declarou que as igrejas catlicas faziam parte integrante da vida nacional alem e apenas um ms depois que o chanceler assegurou: Prometo erradicar completamente o cristianismo da Alemanha. Ou s cristo ou s alemo. No se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. O primeiro golpe foi dado nas organizaes catlicas laicas, que o regime nazi acusava de serem o principal foco de atividades subversivas contra o Partido, o Fhrer e o prprio povo alemo. Essa medida supunha tambm o encerramento de todos os jornais catlicos, a supresso das editoras catlicas, a proibio de associao dos jovens catlicos e a restrio das cerimnias religiosas. Por sua vez, Hitler tinha dado ordens concretas aos seus servios de segurana e de espionagem para vigiarem de perto os bispos alemes, as comunicaes com a Santa S, o fluxo das fontes de financiamento e as atividades dos servios de espionagem. Esta tarefa ser cometida ao Sicherheitsdienst (SD), o servio de espionagem do Partido Nazi. O seu lder, Reinhard Heydrich, era um verdadeiro psicopata conhecido pela sua crueldade, mas tambm muito inteligente. Heydrich estava convencido de que o papa e os seus espies no interior da Alemanha preparavam, a cada instante, algumas conjuras contra o Reich e, portanto, deviam ser eliminados. Reinhard Heydrich mostrava-se disposto a estrangular a Igreja Catlica at morte e para isso utilizaria todos os meios ao seu alcance, incluindo os servios de inteligncia. A partir de finais de 1933 e incios de 1934, o SD estabeleceu uma pequena diviso em Munique com o objetivo de vigiar as organizaes catlicas e os seus responsveis. O primeiro chefe dessa unidade foi o doutor Wilhelm August Patin, um antigo agente da Santa Aliana. Patin exerceu o sacerdcio e doutorou-se em Teologia. Durante alguns anos, trabalhou como agente livre da Santa Aliana na Alemanha at chegada de Hitler ao poder. O que se descobriria mais tarde foi que Patin era primo de Heinrich Himmler, o todo-poderoso Reichfuhrer. A diviso de Patin era formada apenas por cinco agentes e a sua atividade era mais rotineira do que operacional. O seu maior erro foi ter-se queixado ao seu primo Himmler, passando por cima da hierarquia imediata, que neste caso era Reinhard Heydrich. Por fim seria afastado e substitudo no comando por Martin Wolff, um dos homens de confiana de Heydrich. Wolff permaneceu no cargo poucos meses, uma vez que Heydrich o nomearia chefe da unidade do SD contra o comunismo. Para o substituir, Wolff entregou o lugar ao imediato, Albert Hartl, que se tornaria um dos inimigos mais implacveis da Santa Aliana e dos seus agentes na Alemanha. Obersturmbannfiihrer e antigo padre catlico, Albert Hartl era um apstata que passou a renegar os padres e as freiras. Comeou a trabalhar para o SD nos incios de 1933 como informador pago, na altura em que estudava no seminrio de Freising, onde conheceu o padre Josef Rossberger, de quem se tornou o melhor amigo. Em pouco tempo, Hartl descobriu que Rossberger dirigia uma rede de propaganda antinazi no mesmo seminrio catlico e por vezes prestava mesmo assistncia a agentes da espionagem papal durante as operaes no corao da Alemanha nazi. Albert Hartl acabou por denunciar ao SD o seu melhor amigo. No dia seguinte, e enquanto se dirigia para uma reunio da rede, o padre. Josef Rossberger foi detido em plena rua e levado para um centro de deteno clandestino, onde durante sete dias seguidos foi torturado; o seu denunciante pediu mesmo para ser testemunha nessas sesses. O testemunho de Albert Hartl durante o julgamento do padre Josef Rossberger causou uma profunda impresso entre os sectores catlicos da Baviera, porque ningum podia esperar que os aparelhos de segurana do Reich tivessem conseguido ultrapassar as portas de um seminrio. Depois do julgamento, Hartl colocou-se sob o manto protetor de Heydrich, que nesses dias iniciara uma carreira brilhante para chegar cpula dos servios de segurana de Adolf Hitler. O seminarista de trinta anos soube aproveitar de imediato esta ascenso do seu mentor. Heydrich ofereceu-lhe um trabalho no SD e Hartl aceitou, abandonou a carreira eclesistica e abraou o SD com o entusiasmo de um convertido. As primeiras tarefas foram as de recolher informaes de membros do Partido Nazi suspeitos de manterem estreitos contatos com a Igreja e com os agentes da Santa Aliana, elaborar relatrios sobre a histria da Inquisio para serem utilizados nas campanhas de imprensa anticatlicas do partido, bem como a elaborao de um grande estudo sobre a histria e organizao dos jesutas, essa Ordem que as foras de segurana do Reich muito admiravam pelo seu ascetismo, disciplina e objetivos. Trabalharia nesta tarefa durante muito tempo at que, pouco a pouco, comeou a abandon-la. Hartl retom-la-ia de novo quando Reinhard Heydrich o nomeou diretor do Departamento de Assuntos da Igreja do SD, tambm conhecido como diviso Amt II. A partir do seu gabinete, Albert Hartl controlava todas as operaes contra a Igreja Catlica na Alemanha. As suas ambies eram claras, depois de Heydrich ter sido nomeado como chefe supremo da Geheime Staatspolizei ou Gestapo. Hartl desejava ardentemente que a Amt II se distinguisse das outras divises operacionais do SD para que mais tarde fosse absorvida com todos os seus efetivos pela Gestapo. At ento o Departamento de Assuntos da Igreja da Gestapo era um pequeno grupo formado apenas por uma dezena de agentes que se dedicavam a tratar das denncias de informadores annimos sem interesse e a dar-lhes pequenas somas de dinheiro pelo seu servio. Os detidos pela Gestapo, entre eles vrios agentes da Santa Aliana, eram sujeitos a julgamento unicamente por crimes contra a moralidade. Albert Hart tinha interesse em deixar esse simples trabalho burocrtico-policial e converter a sua diviso num departamento importante dentro do gigantesco organograma da Gestapo. Para isso incluiu nas tarefas do Amt II a investigao das organizaes polticas catlicas, pelas quais o prprio Heydrich denotava um profundo desprezo. Os agentes de Hartl tornaram-se desse modo numa sombra de bispos, clrigos, administradores diocesanos, polticos, editores e at jornalistas. Entre 1939 e 1941, Albert Hartl converteu-se no principal carrasco da Igreja Catlica alem, como lder da especial Inquisio nazi contra o Vaticano e um feroz caador dos espies do papa. A pequena diviso do SD para os Assuntos da Igreja tornou-se numa organizao importante, cujos membros eram treinados numa pequena escola nos arredores de Berlim. Desde de Novembro do ano anterior, o papa Pio XI sentia que a sua sade enfraquecia e com grande sofrimento cumpriu as celebraes do Natal. A sua voz era muito fraca na emisso da Rdio Vaticano e em parte passou os primeiros meses de 1939 acamado, vigiado sempre pelo seu mdico pessoal. A 4 de Fevereiro, levantou-se cedo para celebrar a missa, mas uma crise cardaca levou-o novamente para a cama. Cinco dias depois, a crise agravou-se aps uma insuficincia renal e s cinco e meia da manh do dia 10 de Fevereiro o papa Pio XI morria tranquilamente. A eleio do novo papa tornar-se-ia numa das mais politizadas da histria do papado. O Vaticano tornou-se no principal campo de batalha poltico da crise mundial que estava prxima. Em todas as chancelarias da Europa e da Amrica faziam-se apostas sobre o possvel sucessor. Em Londres, Washington e Paris desejava-se um novo papa dentro da mesma linha de Pio XI ou, o que seria o mesmo, contra a poltica de Hitler e de Mussolini. Em Roma e Berlim pretendia-se um papa mais germanfilo e menos pr-aliados. No prprio dia da morte do papa Pio XI, o ministro dos Negcios Estrangeiros francs, Georges Bonnet, sugeriu ao embaixador britnico em Paris, sir Eric Phipps, que a Frana e a Gr-Bretanha cooperassem para assegurar a eleio de um cardeal com clara orientao democrtica e contrrio s ditaduras. O ministro francs tinha em mente o ex-secretrio de Estado de Pio XI, o cardeal Eugnio Pacelli. O representante britnico no Vaticano, DArcy Osborne, assegurava ao Foreign Office que Pacelli tinha grandes possibilidades de ser escolhido. Os cardeais francfonos reuniram-se em bloco com o embaixador francs junto da Santa S, Franois Charles-Roux, para lhe comunicar que todos votariam a favor de Pacelli. O nico que se revelou contrrio foi o cardeal Tisserant, que preferia o cardeal Maglione, antigo nncio em Paris, com ideias muito mais antifascistas e antinazis do que Eugnio Pacelli. Por outro lado, a Alemanha e a Itlia faziam a mesma coisa. O embaixador italiano no Vaticano, Bonifcio Pignatti, reuniu-se com o seu homlogo alemo, Diego von Bergen, e durante a conversa abordaram as preferncias de Roma e de Berlim. O candidato de ambos era tambm Eugnio Pacelli, mas Von Bergen disse a Pignatti que o Fuhrer no punha de lado a ideia de apoiar Maurilio Fossati, de Turim, e Elia dalla Costa, de Florena. Para Adolf Hitler, Pacelli era o candidato ideal e o primeiro na sua lista de preferncias. Tratava-se de um conhecido germanfilo, que fora um nncio importante na Alemanha durante doze anos, falava fluentemente o alemo e no cargo como secretrio de Estado do Vaticano pde rodear-se de uma importante corte de alemes. O embaixador Von Bergen no era o nico observador no Vaticano interessado nesse conclave. O Amt II tambm estava. Com a morte do papa Pio XI os servios secretos do Terceiro Reich puderam introduzir um dos seus agentes na Santa S, de nome Taras Borodajkewycz, um vienense filho de pais ucranianos que estudou Teologia e tinha bons contactos na Cria Romana. O departamento do Obersturmbannfhrer Albert Hartl decidiu, pois, envi-lo ao Vaticano. Infelizmente, os contactos de Borodajkewycz no eram to firmes como se julgava e os seus relatrios enviados para Berlim falharam, contra todas as previses. O espio alemo garantia que um dos mais seguros candidatos para suceder ao papa Pio XI era o cardeal Ildefonso Schuster, o pr-fascista arcebispo de Milo. Mas na verdade Schuster no obteve sequer um nico voto no conclave. Entretanto, vrios cardeais e bispos tinham j alertado a contra-espionagem vaticana sobre os movimentos de um agente alemo face proximidade do novo conclave. Desejava acabar com qualquer interferncia de agentes estrangeiros que tentassem manipular as decises dos cardeais com direito a voto na iminente eleio do Sumo Pontfice. Mas no contavam com a habilidade de Albert Hartl e da sua diviso Amt II para assim conseguir que um papa pr-alemo assumisse o trono de So Pedro, e nesse sentido o SD prepararia contra o Vaticano a chamada Operao Eitles Gol (Ouro Puro), cujo lder da operao seria Taras Borodajkewycz. O agente do SD no Vaticano convencera Hartl de que com trs milhes de marcos em lingotes de ouro o Reich poderia comprar a eleio do conclave. Borodajkewycz garantiu a Hartl e a Roth que com esse dinheiro seria possvel convencer vrios cardeais para que o seu voto fosse dado aos favoritos da Alemanha, os cardeais Maurilio Fossati e Elia dalla Costa. Uma vaga de otimismo percorreu os quartis-generais da Amt II e do Departamento de Assuntos Religiosos do Reich em Berlim. Com a informao recebida do seu agente no Vaticano, Hartl pediu uma reunio com os superiores Reinhard Heydrich e Heinrich Himmler, qual tambm assistiu Karl Wolff, o fiel adjunto do poderoso chefe das SS. Aps mais de trs horas de debate, Albert Hartl abandonou o quartel-general das SS em Berlim. Na manh seguinte, foi logo ordenado ao chefe da Amt II que se apresentasse juntamente com Josep Roth diante do Fuhrer. Roth foi o primeiro a falar e a explicar ao chanceler nazi que se o Terceiro Reich desse os trs milhes de marcos em lingotes de ouro talvez pudesse haver oportunidade para comprar a eleio do novo papa. Hartl foi muito mais cauteloso do que o seu colega e, inteligentemente, preferiu ficar num segundo plano e no ser muito otimista aos olhos de Hitler. De fato, se porventura a Operao Eitles Gol no resultasse como se esperava, toda a responsabilidade poderia recair em Josef Roth e no Departamento de Assuntos Religiosos do Reich. Hitler aprovou o plano e ordenou-se ao Reichbank que entregasse os trs milhes de marcos em ouro aos enviados de Himmler. O ouro foi carregado num comboio especial e levado para Roma. A Santa Aliana foi informada de que o valioso carregamento se encontrava a caminho da Cidade Eterna. Um relatrio enviado da nunciatura em Berlim comunicava espionagem papal em Roma que um carregamento de ouro tinha sido mandado para a Itlia com o intuito de subornar altos cargos da Igreja Catlica e at mesmo, certamente, certos cardeais para que mudassem o sentido do seu voto no conclave. Taras Borodajkewycz, o espio de Hartl no Vaticano, contatou com um sacerdote que dizia trabalhar na Secretaria de Estado como uma espcie de correio com os membros do Colgio Cardinalcio, o qual disse a Borodajkewycz que ele mesmo se ocuparia de sondar os cardeais. O agente alemo disse ao seu contacto que Hitler e Himmler aprovaram pessoalmente um plano para entregar trs milhes de marcos em lingotes de ouro garantidos pelo Reichbank. A sua ideia era ficar com uma parte do carregamento e entregar o restante aos cardeais que votassem a favor dos preferidos da Alemanha. O sacerdote e contato de Borodajkewycz no interior do Vaticano assegurou-lhe que com esse dinheiro poderiam viver Iuxuosamente em qualquer lugar da Sua. O espio alemo temia apenas o comprido brao das SS e no acreditava que Heinrich Himmler ficasse de braos cruzados ao descobrir que um dos seus agentes tinha ficado com trs milhes de marcos alemes que pertenciam ao Reich. No dia 1 de Maro de 1939, s seis da manh, comeou o conclave com sessenta e dois cardeais reunidos na Capela Sistina. Na primeira votao, Pacelli recebeu vinte e oito votos, seguido pelo cardeal Dalla Costa e pelo cardeal Maglione. No foi obtido o nmero necessrio e a votao repetiu-se uma vez mais. Na segunda volta, o cardeal Maglione obteve um nmero maior de votos, no total de trinta e cinco, o que provocou novo fumo negro, mas na tarde de 2 de Maro, s cinco e vinte e cinco, o cardeal Eugnio Pacelli foi eleito Sumo Pontfice na terceira votao, com quarenta e oito votos. Tinha sido o conclave mais rpido ao longo de mais de trezentos anos e Pacelli escolheria o nome de Pio XII como deferncia para com os seus antecessores. A notcia causou surpresa na Chancelaria de Berlim e no quartel-general das SS. Heinrich Himmler mandou chamar Josef Roth e Albert Hartl sua presena e obrigou-os a que o agente da SD em Roma, Taras Borodajkewycz, fizesse regressar o carregamento de ouro aos cofres do Reich. O problema que se colocava era que desde h alguns dias o espio da SD deixara de comunicar com Berlim e o ouro no aparecia. O ltimo contacto de Borodajkewycz fora a 27 de Fevereiro, trs dias antes da eleio papal. Nessa manh tinha-se reunido num andar situado no bairro do Trastevere romano com o sacerdote da Secretaria de Estado e depois simplesmente esfumara-se. O corpo do espio da SD foi descoberto pela polcia italiana enforcado numa viga de um pavilho no parque central da Cidade Eterna. O ouro do Reich tinha desaparecido. As duas verses que circularam durante muito tempo foram que o agente alemo Taras Borodajkewycz fora executado por elementos das SS enviados a Roma por Heinrich Himmler e que o ouro tinha sido devolvido aos cofres ao Reichbank. Uma outra verso mais alargada, e que se converteu quase numa lenda, foi a de que o sacerdote contacto de Borodjakewycz era de fato um agente da Santa Aliana. Parece que o religioso pertencia a uma sociedade secreta dentro da espionagem pontifcia conhecida como os Assflssini, herdeiros da Ordem Negra, criada por Olimpia Maidalchmi no sculo XVII. Um relatrio do Abwehr afirmava que o agente do SD no Vaticano, Taras Borodajkewycz pode ter sido executado por um agente papal de nome Nicols Estorzi, com quem mantinha contatos. O relatrio da espionagem militar alem assegurava que Estorzi era um homem alto, boa aparncia, de tez morena, cabelo escuro farto e dos seus trinta anos. Nascido em Veneza, Estorzi estudara num seminrio de Roma e pelo domnio que tinha de vrias lnguas esteve alguns meses ao servio do Sodalitium Pianum. Pouco depois seria integrado na Santa Aliana, onde realizaria misses especiais no estrangeiro para o Vaticano. O servio secreto do Duce manteve Borodajkewycz sob intensa vigilncia e detectou mesmo os seus encontros com o agente da Santa Aliana. O ltimo relatrio da espionagem italiana datado de 26 de Fevereiro de 1939 garantia que Tara Borodjakewycz esteve todo o dia a percorrer vrias fundies dos arredores de Roma juntamente com um homem alto, bem parecido e de tez morena. O que estava claro que o agente alemo queria apagar qualquer vestgio da marca do Reichbank nos lingotes e essa necessidade levava-o a procurar uma fundio onde pudesse fundir novamente os trs milhes de marcos em lingotes de ouro. Segundo parece, Estorzi poderia ter ficado com o ouro depois de ter assassinado Taras Borodajkewycz. Desse armazm de Roma transferiu o valioso carregamento para a ilha de Murano, ao largo de Veneza, onde se encontram desde h sculos as mais famosas fbricas de vidro. Nos seus fomos voltou a fundir o metal em lingotes mais pequenos e da levados para serem depositados num banco suo onde permaneceram desde ento com o selo vaticano da mitra e as chaves cruzadas, como smbolo das que foram entregues por Cristo ao apstolo Pedro. A verdade que os trs milhes de marcos alemes em lingotes de ouro desapareceram da face da Terra sem deixarem o menor rasto. Ainda hoje o ouro utilizado na Operao Eitles Gold continua a ser um dos grandes mistrios dos muitos tesouros desaparecidos durante a Segunda Guerra Mundial. Quatro dias depois da sua eleio como papa, Pacelli convocou os quatro cardeais de lngua alem, Bertram, Schulte, Faulhaber e Innitzer. Durante a reunio, Pio XII garantiu de forma imperativa que continuaria a dirigir os assuntos alemes da Igreja Catlica. Por ltimo, o Sumo Pontfice decidiu mostrar o rascunho de uma carta que no dia seguinte enviaria a Hitler. Enquanto o papa Pio XI se mostrava decidido a lanar um duro protesto contra Adolf Hitler e o regime do Terceiro Reich, Pio XII queria suavizar essa posio e nessa carta dizia: Ao ilustre Herr Adolf Hitler, Fhrer e chanceler do Reich alemo. No comeo do Nosso Pontificado desejamos garantir que continuamos comprometidos com o bem-estar espiritual do povo alemo entregue sua liderana. () Agora que as responsabilidades da Nossa funo pastoral aumentaram as Nossas oportunidades, rezamos muito mais ardentemente pelo xito desse objetivo. Que a prosperidade do povo alemo e o seu progresso em todos os domnios se possa alcanar com a ajuda de Deus! O apoio explcito de Pio XII a Hitler e ao seu regime foi ratificado quando o Sumo Pontfice ordenou ao arcebispo Orsenigo, nncio em Berlim, que organizasse uma grande recepo para celebrar os cinquenta anos do Fiihrer. A partir desse ano e durante todos os do grave conflito, Adolf Hitler recebia de Berlim felicitaes por parte do cardeal Bertram, cujo texto era sempre o mesmo: As mais calorosas felicitaes ao Fhrer em nome dos bispos e dioceses da Alemanha. Fervorosas as oraes que os catlicos alemes enviam do seus altares ao cu. Ao mesmo tempo que as felicitaes do papa Pio XII chegavam a Adolf Hitler, no quartel-general do SD, Hartl e os seus colaboradores analisavam e processavam cada dado ou cada informao que chegava sobre pessoas ou organizaes relacionadas com o catolicismo alemo, incluindo o ramo da Santa Aliana no Reich. No ms de Maio de 1939, Albert Hartl reuniu-se com Josef Roth, antigo sacerdote e professor de Teologia e que dirigia a seco catlica do Departamento de Assuntos Religiosos do Reich. A atitude de Roth era manter frequentes contactos com os bispos alemes e com os dirigentes Iaicos catlicos do pas. O seu departamento controlava os fundos procedentes do estrangeiro para os bispos e sacerdotes que viajavam para o Vaticano. Roth pde manter uma boa rede de informadores, com os quais discutia os resultados das suas reunies na Santa S. Durante um desses encontros, um padre revelou a Josef Roth e a Albert Hartl que o Vaticano, pelo servio de espionagem, a Santa Aliana, tinha um espio que entrava e saa dos territrios do Reich com dinheiro e mensagens das altas hierarquias eclesisticas para a Santa S e se fazia designar como Mensageiro. Hartl ordenou que vrios agentes da Amt II do SD se esforassem na busca e localizao do Mensageiro da Santa Aliana. Todos os padres interrogados falavam dele como se o conhecessem, mesmo que de fato nunca lhe tivessem visto o rosto. Por isso, ningum o podia reconhecer. O Mensageiro falava fluentemente alemo e assim podia infiltrar-se no territrio do Reich. Mas o agente da Santa Aliana que conheciam como Mensageiro era nada mais nada menos do que Nicols Estorzi, membro dos Assassini que supostamente acabaria com a vida do agente do SD no Vaticano durante a Operao Eitles Gold. Por sua vez, o almirante Wilhelm Canaris tinha escolhido um novo chefe da espionagem alem em Roma, de nome Josef Mller. Quando pisou o solo italiano na Estao Central, os jornais anunciaram em todas as primeiras pginas a entrada do exrcito alemo na Polnia. Estvamos a 1 de Setembro de 1939 e foi neste dia que se iniciou a Segunda Guerra Mundial. O chamado Plano Branco, minuciosamente preparado por Hitler e pelos seus generais desde o anterior ms de Abril, entrava em ao na data prevista, ao mesmo tempo que a Wehrmacht invadia a Polnia e a Luftwaffe bombardeava cidades e metralhava a populao civil. Aps ter conquistado sem um nico tiro a Austria e a Checoslovquia, em menos de um ms caa a Polnia, que deixava de existir no mapa europeu. A partir desse dia, o papa Pio XII ordenou aos chefes da Santa Aliana e da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, que tomassem medidas acerca das comunicaes com os seus agentes no estrangeiro e em especial com todos aqueles que operassem em zonas delicadas ou de conflito. At 1939 o Vaticano tinha utilizado somente um cdigo, conhecido como Vermelho, que consistia em doze mil grupos numricos a partir dos quais se imprimiam vinte e cinco linhas numa pgina de livro com a chave. Para maior segurana, a Santa Aliana estabeleceu que os grupos numricos se convertessem em letras que substituam o nmero da pgina mediante um grafo formado por um par de tbuas que se utilizavam de forma alternada nos dias pares e mpares. As mensagens mais secretas do Vaticano, ou seja, todas as que desejavam enviar ao Santo Padre ou as que diziam respeito aos servios de espionagem papais, eram designadas como Amarelo e Verde. O Amarelo era um cdigo de treze mil grupos cifrados atravs de tbuas digrficas para os nmeros das pginas e com base em alfabetos mistos aleatrios para os das linhas. As tbuas e alfabetos mudavam-se todos os dias para diferentes circuitos. O cdigo Verde ainda hoje continua a ser utilizado e um dos segredos mais bem guardados pelo Vaticano, mas existem indcios de que se tratava de um cdigo numrico de grupos de cinco cifras que se codificavam atravs de curtas tbuas aditivas e cada uma delas continha para cima de uma centena de grupos aditivos de cinco cifras. Nem o Amarelo nem o Verde eram cdigos mecnicos e por isso muito difceis de descodificar pelos servios de inteligncia italiana e alem. Entre as quase oito mil mensagens enviadas, o Servizio lnformazione Militare (SIM) pde decifrar cerca de quatrocentas e parece que isso ajudou a unidade de infiltrao do SIM, conhecida como Sezione Prelevamento, a conseguir infiltrar- se na polcia pontifcia e at mesmo na Secretaria de Estado. As notcias da agonia da Polnia foram apenas um comeo. Por isso, enquanto os seus trinta e cinco milhes de habitantes, na maior parte catlicos, eram fustigados pela Blitzkrieg alem, Pio XII permaneceu em silncio, ordenou sua Secretaria de Estado e ao geral dos jesutas, Wladimir Ledochowski, que dirigia a Rdio Vaticano, que reduzisse as suas emisses em alemo, bem como as crticas ao Reich por causa da invaso da Polnia. O embaixador polaco junto da Santa S desejava ardentemente que o papa emitisse um protesto pblico contra a poltica de Hitler e, como o Vaticano no dava qualquer resposta, pediu que Pio XII recebesse o cardeal-primaz, August Hlond, num encontro que durou duas horas e meia, mas sem nenhum resultado. O Sumo Pontfice negou-se a falar na defesa da Polnia. As informaes sobre a mquina de guerra alem continuavam a chegar ao Vaticano vindas de diferentes pontos da Alemanha e assinadas pelo Mensageiro. Por isso, a Santa Aliana converteu-se numa verdadeira fonte de informao para os outros servios secretos, tanto dos pases aliados como dos pases do Eixo. Josef Mller, agente do Abwehr, era uma figura familiar em Roma devido s frequentes viagens que ele fazia Cidade Eterna. No quartel-general da espionagem militar, no nmero 74 da berlinense Tirpitz Ufer Strasse, Mller revelava-se uma pessoa inteiramente misteriosa e obscura. Ningum sabia de onde tinha sado este agente e talvez isso o tornasse mais perigoso aos olhos dos seus superiores. Curiosamente, alguma coisa do mesmo estilo se passava entre a hierarquia vaticana com o agente da Santa Aliana, o padre Nicols Estorzi. Mas o que ningum sabia era que Mller e Estorzi eram amigos. Mller era um prestigiado advogado de Munique, devoto catlico e fervoroso antinazi e tinha sido encarregado por Canaris de contactar com o papa Pio XII atravs da Santa Aliana e, para no levantar suspeitas, nomeou-o chefe da estao do Abwehr em Roma. Antes de partir de Berlim, Mller reuniu-se com Nicols Estorzi para lhe falar da perigosa misso de que Canaris o encarregara na Cidade Eterna. O espio papal preparou o terreno ao agente alemo que noutro tempo colaborou com a Santa Aliana. Assim, o Mensageiro enviou uma extensa mensagem em cdigo Verde ao cardeal secretrio de Estado, Luigi Maglione, em cujas pginas fornecia dados sobre Josef Mller e a chamada Operao Amtlich Vatikanische (Fontes Vaticanas). Mller e os seus dois assistentes no Abwehr, o coronel Hans Oster e o major Hans Dohnanyi, pertenciam ao crculo de notveis antinazis liderados pelo general na reserva Ludwig Beck. Mller reuniu-se em primeiro lugar com o exilado monsenhor Ludwig Kaas, antigo lder do Zentrum e arcipreste da baslica de So Pedro, e ainda com monsenhor Johannes Schnhffer, membro da Congregao de Propaganda Fide. O encontro teve lugar na cervejaria Dreher, local muito concorrido pela comunidade alem de Roma. Mller comunicou a Kaas e a Schnhffer que precisava de falar em privado com o Sumo Pontfice a fim de lhe transmitir um importante comunicado de altas personalidades do seu pas e que tinha recebido ordens muito rigorosas de no falar com mais ningum a no ser o papa. Kaas disse ao agente do Abwehr que antes teria de falar com o jesuta e professor alemo de Histria Eclesistica, chamado Robert Leiber. Mas o que pouca gente sabia era que o jesuta era uma espcie de assistente de Pio XII para assuntos especiais. O Santo Padre tinha em Leiber o mais prefeito assistente em matria de espionagem e muitos membros da Cria garantiam que o jesuta era de fato o responsvel da Santa Aliana. Mas a verdade que o padre Robert Leiber era o melhor conhecedor dos mais profundos segredos do papado. Durante a reunio que teve lugar entre Mller e Leiber, o alemo disse ao assistente do papa que um largo crculo de altas patentes alems contrrias poltica belicista de Adolf Hitler desejavam que o papa Pio XII sondasse Londres para negociar o fim da guerra depois da mudana de regime em Berlim. Atravs do seu agente, o padre Nicols Estorzi, Leiber sabia que a desorganizada resistncia antinazi nunca poderia entabular um golpe de Estado contra Hitler e os seus partidrios. De fato, o que os chefes de Mller desejavam era que Londres e Paris no aproveitassem as razes do golpe de Estado para avanarem militarmente contra a Alemanha. A relao de Josef Mller com a Santa Aliana datava de quando os bispos e cardeais alemes descobriram que a sua correspondncia era interceptado pela Gestapo. Por isso, Mller tornou-se no correio secreto entre a Alemanha e o Vaticano, e vice-versa. Mas tambm ele ajudaria a fazer a cobertura do padre Nicols Estorzi, o Mensageiro, em Berlim. Aps uma breve permanncia em Munique, o papa mandou chamar Mller a Roma atravs do padre Estorzi. Ao chegar a solo italiano, Leiber informou o agente do Abwehr que Pio XII tinha decidido que a voz da oposio alem devia ser escutada em Londres e esta deciso do Sumo Pontfice lanou Josef Mller numa verdadeira misso clandestina que duraria vrios meses e dezenas de viagens entre Berlim e Roma. Na verdade, Mller nunca chegou a falar com o Sumo Pontfice, porque todas as comunicaes se realizavam atravs do padre Robert Leiber. As reunies entre Mller e Leiber faziam-se no apartamento do padre jesuta na Universidade Gregoriana, mas por razes de maior segurana o lugar de encontro passou a ser uma igreja da Ordem dos Jesutas nos arredores de Roma. Por fim, na Primavera de 1940, Leiber decidiu comunicar a Josef Mller que o papa Pio XII aceitara receb-lo nos seus aposentos privados no Palcio Apostlico do Vaticano e nessa reunio juntar-se-ia sir D Arcy Osborne, embaixador britnico junto da Santa S. O alemo repetiu toda a histria ao papa e a Osborne e como foi organizada a chamada Operao Amtlich Vatikanische. Depois de ter informado o Foreign Office, o governo britnico mostrou-se ctico sobre a credibilidade e os motivos invocados pelos conspiradores. Winston Churchill no acreditava que tivessem apoios suficientes entre os militares nem entre a populao civil para levarem a cabo um golpe de Estado com xito suficiente contra Adolf Hitler. O tempo dar- lhe-ia razo quando as unidades da Wehrmacht conquistaram a Frana e a Holanda. Para demonstrar a boa-f dos conspiradores, Josef Mller viajou para Roma a toda a velocidade para informar o papa Pio XII de que Hitler se preparava para lanar uma campanha militar contra a Frana, passando antes pelo territrio da Holanda e da Blgica. Com esta informao, o papa ordenou que se alertassem as nunciaturas em Bruxelas e em Haia e exigiu que fossem avisados os governos dos dois pases. Leiber alertou em segredo o embaixador belga junto da Santa S, Adrien Nieuwenhuys, que logo enviou um telegrama para Bruxelas. Por sua vez, o papa Pio XII recebeu em audincia privada o prncipe herdeiro da Coroa de Itlia, Umberto, e a sua esposa, a princesa Maria. O papa insistiu no perigo que se avizinhava para a Holanda e a necessidade de a princesa Maria informar urgentemente o seu irmo, o rei Leopoldo. Todos estes contatos ocorreram entre 2 e 4 de Maio de 1940. No dia 8, tanto o governo da Blgica como o da Holanda no deram grande valor aos avisos e ainda menos quando descobriam que a fonte de tal informao era um espio do Abwehr que trabalhava para a Santa Aliana, e foi esse o seu erro. A 10 de Maio, as primeiras unidades Panzer atravessaram a fronteira rumo Frana, passando pela Holanda e pela Blgica a sangue e fogo. A pouca importncia que os belgas e holandeses deram aos avisos papais acabou por aborrecer Pio XII e f-Io ordenar Santa Aliana que estabelecesse relaes secretas com os servios de espionagem britnicos e com a Resistncia na Frana ocupada. Ao colaborar em negociaes secretas com os governos estrangeiros e passar informaes militares da Alemanha e da Itlia aos pases aliados, o papa Pio XII punha em grave perigo a tradicional neutralidade do Vaticano. O papa mandou depois o seu conselheiro e espio, padre Robert Leiber, destruir qualquer papel, mesmo as notas e documentos, sobre as relaes do Estado do Vaticano com os aliados ou a resistncia alem. No seio do Vaticano apenas mais outros trs homens conheciam estes contactos: o cardeal secretrio de Estado, Luigi Maglione, e os seus dois homens de confiana, monsenhores Domenico Tardini e Giovanni Montini, e todos eles levariam esse segredo para o tmulo. O papa ordenou ao seu fiel espio e conselheiro que elaborasse uma lista de pessoas que pudessem ter estado em contato de algum modo com a Operao Amtlich Vatikanische. Na lista elaborada estavam monsenhor Johannes Schnhffer, amigo de Josef Mller, monsenhor Paul Maria Krieg, capelo da Guarda Sua e confessor de Schnhffer, Ivo Zeiger, jesuta do Colgio Germano-Hngaro de Roma, Augustine Mayer, monge beneditino e professor do Colgio de Santo Anselmo, o padre Vincent McCormick, o reitor americano da Universidade Gregoriana e superior de Robert Leiber, e ainda o geral dos jesustas, padre Wladimir Ledochowski. O papa Pio XII ordenou aos seis religiosos, sob pena de excomunho, que no tornassem pblico qualquer aspecto da Operao Amtlich Vatikanische. E ainda hoje para o mundo tudo isso nunca se passou e deste modo se pde forjar mais uma lenda na longa histria da Santa Aliana. 15
O fim dos mil anos (1940-1945)
Tu cinge os teus rins, levanta-te e diz-lhes tudo o que Eu te ordenar. No temas diante deles, de contrrio farei com que temas a sua presena. Desde hoje te estabeleo como cidade fortificada, como coluna de ferro e muro de bronze, para toda a terra, para os reis de Jud e os seus chefes, para os seus sacerdotes e para todo o seu povo. Eles combatero contra ti, mas no vencero. Jeremias 1, 4-5, 17-19
Herbert Keller era um homem terrvel e ambicioso, sem quaisquer escrpulos. Este monge beneditino era membro de uma antiga abadia de Beuron, de onde saiu para o exlio, por ordem do seu superior, para um mosteiro num lugar deserto da Palestina justamente antes da guerra. Ao regressar Alemanha, Herbert Keller tornou-se num informador espordico do Abwehr e do Sicherheitsdienst (SD), o servio secreto do Partido Nazi. O monge passava aos nazis qualquer informao secreta que recolhia nas suas viagens por Frana, pela Alemanha e pela Sua, procura de livros antigos para a biblioteca da abadia. Quando Hitler e as suas tropas arrasaram a Polnia, Keller arranjou um trabalho mais de acordo com as suas ambies e abandonou a vida monstica. A sua carreira no mundo da espionagem justificou-se sempre mais por dinheiro do que por lealdade. Na primeira misso para o Abwehr foi enviado Sua, onde entabulou contactos com destacados membros da resistncia antinazi. Entre mulheres, bebidas e bons cigarros, algum deles confessaram a Keller que certos oficiais do Abwehr e da Wehrmacht conspiravam para derrubar Hitler e que Mller, um agente do Abwehr, era o contacto com o Vaticano e o seu servio de espionagem, a Santa Aliana, atravs de um padre que conheciam como Mensageiro. Herbert Keller soube que Muller e o Mensageiro tinham procurado negociar a paz com os aliados logo que Hitler fosse derrotado. Keller conhecia muito bem Muller e os dois tornaram-se inimigos acrrimos quando o advogado de Munique ajudou os beneditinos a falar do caso de Keller, que desembocaria na ordem de exlio para um mosteiro na Palestina. Esperando encontrar mais provas contra o colaborador da Santa Aliana, Herbert Keller decidiu viajar para Roma com o propsito de recolher mais dados sobre Muller. Em poucos dias, o agente da espionagem alem conheceu todos os pormenores da conspirao, tal como a misso de. Josef Muller e o importante papel que desempenhou. Keller regressou Alemanha com o seu relatrio. Ao chegar a Berlim, o monge foi aos quartis-generais do Abwehr e do SD para os informar. O relatrio era to significativo que caiu na mesa do prprio Reinhard Heydrich, ento j como chefe do Reichssicherheitshauptamt (RSHA) ou Gabinete Central da Segurana do Reich. Heydrich estava impressionado com a exatido dos dados trazidos pelo antigo monge beneditino. O influente chefe da RSHA chamou logo Herbert Keller sua presena e quando os dois homens estavam frente a frente, Heydrich, aps exprimir a sua antipatia pelo papa, que ele acusava de ser o maior conspirador contra o Reich, confessou a Keller que. Josef Muller estava a ser vigiado desde 1936. Reinhard Heydrich estava convencido de que Muller era um agente secreto ao servio do Vaticano e as suas suspeitas confirmavam-se com o relatrio que tinha nas suas mos e falava de uma operao chamada Amtlich Vatikanische (Fonte Vaticana). O primeiro sinal de desastre veio atravs de Arthur Nebe, chefe da polcia criminal do RSHA. Nebe fez uma cpia do relatrio de Herbert Keller e enviou-a ao almirante Wilhelm Canaris, responsvel pelo Abwehr, que interveio rapidamente para tentar proteger o maior nmero de conspiradores. Canaris era um tipo enigmtico que se movia entre a sua lealdade Alemanha e o dio ao Partido Nazi e aos seus dirigentes, e foi isso que o fez ajudar e proteger os crculos antinazis. Para evitar o golpe, Canaris pediu a Muller a elaborao urgente de um relatrio em que dissesse que tinha descoberto uma conjura no Vaticano para negociar a paz com os aliados. Os chefes da conspirao seriam os generais Werner von Fritsch e Walter von Reichenau. Canaris sabia que Von Fritsch tinha cado em desgraa na campanha da Polnia e, portanto, no podia ser interrogado, enquanto Von Reichenau era um conhecido e fervoroso seguidor de Hitler e do Terceiro Reich. De fato, nenhum deles alguma vez tivera relaes com os crculos antinazis, mas Heydrich precisava de um culpado para demonstrar que Muller era um espio de Pio XII e da Santa Aliana. Canaris foi muito mais hbil do que Reinhard Heydrich. Quando o falso relatrio redigido por Muller chegou s mos do Fiihrer, o prprio Hitler declarou que Walter von Reichenau era um dos seus mais fiis generais e era impossvel que o filho mais fiel pudesse ter conspirado com o Vaticano contra o Reich. Por fim, Hitler qualificou como lixo o relatrio contra Werner von Fritsch e Walter Reichenau. Mas o chefe do Abwehr conseguiu afastar as suspeitas do Vaticano e de Josef Muller pelo menos por algum tempo. No Vero de 1940, de novo a espionagem alem voltou pista da Operao Amtlich Vatikanische. Quando em Maio o embaixador da Blgica junto da Santa S, Adrien Nieuwenhuys, telegrafou para o seu ministrio em Bruxelas a comunicar os avisos do papa Pio XII sobre a prxima ofensiva da Wehrmacht na frente ocidental, o telegrama cifrado foi interceptado pelo Forschungsamt (Gabinete de Investigao), um dos servios de descodificao do Terceiro Reich. A mensagem descodificada acabou mesmo em cima da mesa do Fiihrer, que ordenou ao Abwehr que fizesse uma profunda investigao para identificar todos os traidores. Reinhard Heydrich, que tinha ainda bem presente o relatrio de Herbert Keller, foi afastado da investigao por causa do relatrio sobre Werner von Fritsch e Walter von Reichenau. Mas Canaris permitiu que o SD entregasse a Hitler o falso relatrio de Mller. Para dirigir a investigao ordenada pelo Fiihrer, Wilhelm Canaris colocou frente Josef Mller. O espio alemo regressou a Roma para informar o suposto chefe da Santa Aliana, o padre jesuta alemo Robert Leiber, de que deviam urdir uma histria que fosse convincente para Adolf Hitler. Toda a histria devia acabar com a mensagem enviada pelo embaixador Nieuwenhuys a Bruxelas em que ele falava do perigo alemo. Leiber e Mller meteram mos obra e prepararam a chamada Operao Wind Estlich (Vento Ocidental). A ideia dos dois espies era criar uma operao de espionagem, mas desta vez do princpio ao fim. Leiber props que a infiltrao devia fazer-se em torno do ministro dos Negcios Estrangeiros da Itlia, conde Galeazzo Ciano, mas este foi informado da operao militar da Werhrmacht atravs do seu homlogo Joachim von Ribbentrop. O passo seguinte era explicar que a informao sobre a operao militar havia sido dada por algum no identificado e prximo de Ciano. A informao foi transmitida ao padre Monnens, um jesuta belga, que por sua vez a tinha passado ao embaixador do seu pas em Roma, Adrien Nieuwenhuys. Robert Leiber sabia que nem Nieuwenhuys nem o padre Monnens se encontravam ao alcance dos servios de segurana do Reich. Nieuwenhuys era diplomata e contava com a sua imunidade, enquanto o padre Monnens estava numa misso perdida nas florestas centro-africanas e fora do alcance das SS e da Gestapo. Mller e Leiber acreditavam que esta verso tranquilizaria os dirigentes nazis, mas enganavam-se, porque Reinhard Heydrich no estava disposto a isso. Um tenente-coronel do Abwehr chamado Joachim Rohleder, amigo de Heydrich, no se mostrava muito convencido sobre a veracidade desta histria. Rohleder estudou o telegrama do embaixador belga interceptado e descodificado. No texto, Nieuwenhuys mencionava uma fonte alem que sair de Berlim a 29 de Abril de 1940, chegara a Roma a 1 de Maio e permanecera em Roma at 3 de Maio. Com estes dados, o oficial do Abwehr, amigo de Heydrich, decidiu rever a lista de todos os cidados alemes que abandonaram o pas na mesma data e entre os vrios nomes surgiu o de Josef Mller, que entrara em Itlia a 29 de Abril e regressara a 4 de Maio. Rohleder contatou ento com a diviso do Abwehr em Munique, a que Mller est subordinado, com a esperana de saber se o oficial tinha viajado para Roma nos dias indicados. Como colaborador da Santa Aliana, Josef Mller protegeu-se bem ao garantir numa informao que o seu destino era Veneza. Nesse sentido, utilizou os agentes italianos da Santa Aliana destacados na Guarda Fronteiria italiana, que carimbaram o passaporte com a entrada na bela cidade do norte. Mas Rohleder estava convencido, e disso informou Heydrich, de que Josef Mller e os seus contactos com os servios de espionagem pontifcios eram a chave de tal mistrio. Por algum tempo a investigao esteve parada, at que a diviso do Abwehr em Estocolmo manifestou interesse num conhecido jornalista catlico chamado Siegfried Ascher, que visitou Roma pela primeira vez em 1935 e pouco depois ocupou um lugar como secretrio do padre Friedrich Muckermann, um jesuta alemo bem conhecido pelas suas polmicas declaraes antinazis. Pela mo de Muckermann, Ascher penetrou em todos os sectores importantes da Cria Romana para dispor de uma larga lista de amizades. Em 1937, acompanhou Muckermann quando os jesutas enviaram o seu protetor capital austraca. Assim, quando a Austria foi anexada pela Alemanha no chamado Anschluss, Ascher viu-se obrigado a escapar para a Holanda e logo a seguir para a Sua, onde pde trabalhar como correspondente do jornal Basler Nachrichten no Vaticano. Depois da aprovao das leis raciais, viu-se novamente obrigado a mudar de cidade. Mas o que ningum sabia era que Ascher se chamava realmente Gabriel e no Siegried e que tinha abandonado a religio judaica h poucos anos para abraar o catolicismo. Em finais de 1940, Ascher encontrou uma outra, e melhor, fonte de informaes na pessoa do tenente-coronel do Abwehr, Joachim Rohleder. O oficial da contra- espionagem alem no abandonara a sua investigao acerca de Josef Mller. Com as suas valiosas credenciais antinazis por ter trabalhado com o padre Muckermann, Ascher pde vencer as barreiras de segurana impostas pelo papa Pio XII Santa Aliana no caso Amtlich Vatikanische. Em Janeiro de 1941, Siegfried Ascher j estava preparado para viajar at Roma a partir de Berlim, depois de ter feito um duro treino nas academias de agentes do Abwehr. Ascher obteve do editor-chefe do Basler Nachrichten uma carta de acreditao como correspondente junto da Santa S. O espio da Abwehr disse ao seu chefe que no precisava de receber honorrios, uma vez que o seu ordenado sairia diretamente do Vaticano. Claro, estava a mentir. Em fins de Abril, Siegfried Ascher reuniu-se em Berlim com o tenente-coronel Rohleder para receber os fundos necessrios para a sua viagem a Roma. Antes de partir, telefonou ao nncio vaticano, o cardeal Cesare Orsenigo, para que lhe entregasse uma carta de apresentao. A carta era dirigida ao influente substituto na Secretaria de Estado do Vaticano, monsenhor Giovanni Montini, o futuro papa Paulo VI. Na Santa S e s numa semana, Siegfried Ascher pde ser recebido por Montini, pelo padre Leiber e por monsenhor Kaas. Devido sua cobertura como jornalista perito em assuntos da Igreja, ningum suspeitou de nada a princpio, mas o padre Robert Leiber no podia acreditar que algum de origem judaica viajasse livremente pela Alemanha. Leiber contactou com o seu agente Nicols Estorzi, o Mensageiro, para que averiguasse tudo o que pudesse sobre Ascher. Leiber foi avisado mesmo pelo responsvel mximo da Ordem dos Beneditinos, ao saber que Ascher tinha mantido contacto com Herbert Keller, o agente do SD e antigo monge. Estorzi informou Leiber de que um judeu que se fazia passar por jornalista esteve a treinar-se na escola do Abwehr, na diviso de contra-espionagem, e que talvez a sua origem fosse sueca. Leiber chamou Siegfried Ascher com o intuito de lhe falar na sua passagem pela Alemanha. O espio desculpou-se ao alegar motivos de trabalho para recusar o convite. Robert Leiber informou Montini de que o agente da Santa Aliana na Alemanha lhe tinha garantido que Siegfried Ascher era certamente um perigoso agente da Gestapo. A verdade que, j em finais de Fevereiro de 1941, o agente de Rohleder conhecia em linhas mais ou menos claras a misso de Josef Mller no Vaticano, bem como a implicao do papa Pio XII ao avisar na Primavera de 1940 os governos holands e belga da possvel interveno alem nos seus pases, como pouco depois aconteceu. O relatrio final de Siegfried Ascher era absolutamente conclusivo e foi isso mesmo que Rohleder comunicou a Canaris. O chefe do Abwehr procurou dar pouca importncia ao relatrio e exigiu que sem mais provas concretas seria impossvel prender um dos agentes mais experientes nas questes vaticanas. O almirante Wilhelm Canaris no podia permitir que Rohleder e Ascher prendessem Mller. Por ltimo, o chamado relatrio Mller, Josef foi guardado no lugar mais escondido dos arquivos dos servios secretos militares do Reich. Em finais de 1942, as SS prenderam Ascher numa rua de Berlim. Algum tinha feito chegar um relatrio, em forma de denncia, no qual se colocava em evidncia a origem judaica do espio alemo. Ascher foi logo entregue Gestapo mesmo sem isso ser comunicado ao Abwehr. Quando o tenente-coronel Joachim Rohleder, chefe da contra-espionagem, foi informado da priso de Ascher era demasiado tarde. O jornalista fora morto durante o interrogatrio. Vrios escritores e historiadores dizem que nesse ano Canaris tinha cado em desgraa em relao a Hitler e o abismo entre as foras de segurana do Reich, o Abwehr e as SS, j era enorme. E, talvez por isso mesmo, quando os agentes das SS de Himmler receberam o relatrio onde se falava da origem judaica do agente do Abwehr, preferiram confiar esse interrogatrio Gestapo. Outras fontes asseguram que, durante os meses anteriores priso de Siegfried Ascher pelas SS, o Mensageiro da Santa Aliana viajara pela Holanda e pela Sucia a recolher informaes sobre o jornalista. De fato, seria o padre Robert Leiber, chefe dos espies do papa Pio XII, quem aconselharia o padre Nicols Estorzi a afastar-se do perigoso Siegfried Ascher. Uma vez mais o longo brao da Santa Aliana voltara a atuar de forma implacvel contra um inimigo. Entretanto, Josef Mller, graas proteo do coronel Hans Oster e do major Hans Dohnanyi, que eram ambos membros da rede anti-Hitler, foi nomeado responsvel pela diviso do Abwehr no Vaticano. Um novo perigo incidia sobre a Santa S com a chegada a Roma, em Fevereiro de 1943, de um outro espio alemo, Paul Franken, como professor de Histria no Colgio Alemo, na Via Nomentana, embora fosse de fato um agente da espionagem militar. Os seus contactos eram de preferncia Josef Mller, monsenhor Kaas, Krieg, Schnhffer, Ivo Zeiger e o responsvel dos espies papais, Robert Leiber. Com o seu perfil de estudante catlico e envolvido nos movimentos operrios anteriores guerra, Franken tinha sido detido pela Gestapo e condenado a dois anos de priso por atividades contrrias ao regime. Mas tudo isto o ajudou a mergulhar nas profundas e escuras guas da Cria Romana. Jacob Kaiser, um antigo dirigente operrio, aliciou Franken para o Abwehr pelos seus conhecimentos em matria de poltica vaticana, o que fez com que fosse orientado para a Santa S. Leiber colocou-se de novo em contacto com o Mensageiro para recolher informaes sobre Franken. Duas semanas depois, Nicols Estorzi enviou uma mensagem cifrada de uma cidade austraca para o seu chefe. A mensagem cifrada em Verde seria descodificada. No texto, o agente da Santa Aliana punha Leiber de sobreaviso para as verdadeiras intenes de Paul Franken, mas sem fazer demasiadas afirmaes, e assim o espio de Pio XII decidiu manter o alemo sob quarentena. A 25 de Julho de 1943, voltou a soar o alarme na Santa Aliana quando Vtor Emanuel III, apoiado por generais e lderes fascistas, decidiu demitir Mussolini e nomear o marechal Pietro Badoglio como novo chefe do Governo. Os sonhos do Duce de criar um novo imprio romano esfumaram-se com a mesma velocidade do desastre militar italiano. A invaso aliada na Siclia aconteceu a 10 de Julho com a promessa de libertar do jugo alemo toda a pennsula italiana. Depois da queda de Mussolini, e antecipando-se ao colapso do exrcito italiano, Hitler resolveu enviar um batalho do exrcito para o Norte de Itlia. As notcias que chegavam ao Vaticano do seu agente Nicols Estorzi eram claras a respeito das unidades da Wehrmach que estavam a acantonar-se para o assalto final a Roma. Os avisos do agente da espionagem papal cumpriram-se quando a 8 de Setembro Badoglio anunciou oficialmente a assinatura do armistcio com as foras anglo- americanas que ocupavam o sul do pas. Hitler e os seus generais tinham dado luz verde para a ocupao da Cidade Eterna. As intenes do lder nazi no eram muito evidentes. Pela cidade circulavam rumores de que o Fuhrer estava convencido de que o papa Pio XII e os seus servios de espionagem ajudaram na queda de Mussolini. A verdade que as autoridades papais no tinham muitas iluses sobre o respeito que Hitler poderia ter quanto neutralidade vaticana ou figura do Sumo Pontfice. Segundo relatrios em poder do servio de espionagem pontifcio, na Primavera de 1941, durante uma reunio entre o ministro dos Negcios Estrangeiros da Itlia, conde Galeazzo Ciano, e o seu homlogo alemo, Joachim von Ribbentrop, o representante de Hitler sugeriu ao italiano a possibilidade de expulsar Pio XII de Roma, porque na nova Europa no h lugar para o papado. Na nova Europa dominada pelo nacional-socialismo, o Vaticano deveria ficar reduzido a um simples museu. Apesar das mensagens de tranquilidade dos italianos, esses rumores tornaram-se cada vez mais reais em finais de 1943, ano em que se cumpriram os dez anos do regime nazi. Nessa altura, os para-quedistas alemes controlavam j o permetro da praa de So Pedro sob os olhares apreensivos dos elementos da Guarda Sua. Antecipando-se ao assalto de Roma pelas tropas do Terceiro Reich, as embaixadas estrangeiras destruram os documentos classificados como secretos ou delicados, tal como as suas mquinas codificadoras. Por outro lado, o comandante da Guarda Sua foi verbalmente informado de que o Santo Padre no desejava um derramamento de sangue e por isso ordenou a todos os elementos que no resistissem a essa suposta invaso do Vaticano por parte das tropas alem. O oficial recusou acatar a ordem e foi chamado pelo prprio papa Pio XII para lha confirmar. De fato, no estava nos planos de Adolf Hitler apoderar-se do Vaticano nem do Sumo Pontfice, porque Hitler sentira-se pressionado por dois blocos. Contra a invaso estava Josef Goebbels, o terrvel ministro de Propaganda do Reich, que garantiu ao Ftihrer que a invaso do Vaticano teria um impacto devastador na opinio pblica mundial. Mas a favor estava Joachim von Ribbentrop, ministro dos Negcios Estrangeiros do Reich, que aconselhava Hitler a tirar de cima das costas e de um s golpe o peso que o papa representava. Em Maio de 1944, Paul Franken regressava Alemanha, na altura exata em que os exrcitos aliados pressionavam as foras do Eixo para conquistar Roma. Em fevereiro de 1944, aps uma srie de desacertos por parte do Abwehr e a desero de alguns dos seus membros, Hitler assinou o decreto pelo qual todos os elementos e operaes do Abwehr ficavam subordinados ao RSHA, a organizao nazi que controlava todas as foras policiais e de espionagem do Reich. O almirante Canaris foi colocado num trabalho menor num departamento de economia de guerra, enquanto a Gestapo intensificava o interesse pelos estranhos contactos entre civis e o pessoal do Abwehr. As investigaes levaram deteno do coronel Hans Oster e do major Hans Dohnanyi, dois dos mais importantes crebros antinazis no Abwehr. Tanto Oster como Dohnanyi negaram-se a falar sobre os seus contactos com o Vaticano e a Santa Aliana, apesar de serem torturados. Por ltimo, os dois espies foram executados com um tiro na nuca e os seus corpos suspensos com um gancho de carniceiro. O segundo a ser preso e brutalmente interrogado foi Josef Mller. O agente rejeitou os crimes e negou qualquer implicao nas conjuras anti-nazis com o Vaticano. Mller seria um dos poucos membros do Abwehr a escapar morte. Por seu lado, Paul Franken demitiu-se do seu lugar na espionagem militar da Wehrmacht, procurando no atrair a ateno da Gestapo ou das SS, e conseguiu um lugar de tradutor dos trabalhadores italianos na Alemanha. Paul Franken sobreviveu ao regime nazi e ao final da Segunda Guerra Mundial. Nesses anos, o Vaticano e em especial a Cria Romana mantinham-se a favor de um ou de outro grupo. Tanto o secretrio de Estado do Vaticano, cardeal Maglione, como os seus substitutos, monsenhores Montini e Tardini, deram ordens a todos os altos dignitrios da Cria Romana para no falarem ou entabularem contato com qualquer membro da embaixada da Alemanha junto da Santa S. A Santa Aliana logo informaria sobre os contactos quase dirios do bispo Alois Hudal, o reitor pr-nazi de um dos colgios religiosos alemes em Roma, com altos membros da representao diplomtica do Terceiro Reich. Em poucos anos, Hudal converter-se-ia numa das figuras-chave da organizao Odessa, montada por antigos membros das SS para ajudar na fuga de criminosos de guerra nazis para a Amrica do Sul atravs do chamado Corredor Vaticano. Pouco a pouco, a guerra voltar-se-ia contra os pases do Eixo. O que restava do glorioso VI Exrcito alemo rendeu-se ao Exrcito Vermelho em Estalinegrado, enquanto em frica o temvel Afrika Korps do mareohal Erwin Rommel, juntamente com as unidades italianas, se rendia aos exrcitos angIo-americanos, deixando assim o litoral mediterrnico livre para o assalto Siclia, enquanto os bombardeamentos norte-americanos fustigaram incansavelmente as indstrias blicas nazis e os britnicos reduziram a cinzas cidades inteiras, como o caso de Dresden, a 13 de Fevereiro de 1945, como vingana pelos bombardeamentos nazis sobre Londres. A vontade de Ernest von Weizscker, que substituiu Diego von Bergen frente da embaixada alem junto da Santa S, era acabar com a guerra atravs da mediao papal, mas isso no passava de um simples sonho. Era preciso convencer o papa Pio XII a negociar a paz na Europa e evitar uma derrota total da Alemanha, com a posterior sovietizao do continente ou da Europa Oriental. Na legao diplomtica restavam dois espies, Harold Friedrich Leith- Jasper, como adido de imprensa da embaixada, e Cari CIemm-Hohenberg, obscuro oficial da espionagem, como adido comercial. No Outono de 1942, Leith-Jasper informou Berlim das muitas viagens de Myron Taylor, o representante junto do Vaticano do presidente Roosevelt. Curiosamente, e apesar de os Estados Unidos e da Itlia estarem em guerra, Taylor entrava e saa de Roma sem ser incomodado. O relatrio chegou s mos de Heinrich Himmler em Berlim e o temvel chefe das SS ordenaria ento a Cari von Clemm-Hohenberg a liquidao de Myron Taylor durante uma das suas viagens a Roma. A ordem seria enviada atravs do ministrio dos Negcios Estrangeiros alemo por um despacho especial. Ao mesmo tempo, outro despacho chegava sede da Santa Aliana no Vaticano e informava acerca de um possvel atentado a um diplomata aliado. O padre Robert Leiber passou ao Sumo Pontfice a informao recebida pelo seu agente, o padre Nicols Estorzi. A Santa Aliana alertou os servios secretos norte-americanos e britnicos sobre a informao recebida e que, segundo outro despacho enviado pela mesma fonte, trs agentes da Gestapo foram enviados para Roma com esse pretexto. Leiber considerava claro que tinha de salvar o representante americano. Na manh de 22 de Janeiro de 1943, os trs agentes nazis chegaram a Itlia vindos de comboio e foram recebidos por agentes italianos, que se instalaram num pequeno apartamento de onde tinham pensado dirigir a operao. Durante semanas vigiaram todos os passos de Myron Taylor e por ltimo, em finais de Fevereiro, decidiram dar o golpe. A ideia era seguir o veculo em que se deslocava o diplomata americano e no momento certo disparar sobre ele. No dia anterior ao atentado, um dos agentes da Gestapo desapareceu sem deixar rasto, mas os dois colegas decidiram avanar. Numa estrada sada de Roma, os dois agentes avistaram o carro, que estava num dos lados da valeta. Abriram as janelas e comearam a disparar contra o veculo e o passageiro no seu interior, e puseram-se depois em fuga. Aps o atentado, regressaram estao de comboios e depressa desapareceram. Uma vez em Berlim apresentaram-se diante de Himmler para informar sobre o xito da operao, mas fizeram mal. De fato, quem eles Iiquidaram dentro do carro do diplomata fora o agente nazi que estava desaparecido. Algum o sequestrou, drogou e meteu dentro do carro. Por isso, Myron Taylor continuou a executar tarefas especiais entre Washington e o Vaticano para o presidente Roosevelt sem nunca saber que a espionagem pontifcia lhe tinha salvo a vida. Seria Harold Friedrich Leith-Jasper quem informaria HimmIer de que um agente dos servios secretos alemes tinha visto Myron Taylor a entrar no Vaticano, para surpresa do temvel chefe das SS. As operaes secretas do Reich contra o Vaticano e a Santa Aliana duplicaram ao longo dos ltimos anos de guerra. Desde. Junho de 1941, Walter Schellenberg, um jovem e fantico oficial, assumiu o controle do Amt VI, a diviso da RSHA para a espionagem no estrangeiro. A partir da o Amt VI seria o principal responsvel pelas operaes secretas no Vaticano. Com a criao da RSHA, a seco de espionagem para os assuntos da Igreja, dirigida por Albert Hartl, foi transferida para a polcia secreta poltica, a Gestapo. Hartl, o especialista do SD, no era bem visto pelos responsveis da Gestapo, sobretudo porque gostava de ter liberdade de movimentos, longe dos olhares indiscretos de outros colegas. Hartl era acusado de ocultar informaes e conhecimentos valiosos aos seus homlogos de outros departamentos de segurana e isto chegou aos ouvidos do chefe da Gestapo, Heinrich Mller, que encarava com hostilidade os mtodos usados por Albert Hartl. Por isso, decidiu abrir um inqurito para poder acusar Hartl de alta traio. Uma semana depois, Mller conclua que Hartl, o antigo sacerdote, era realmente um jesuta e um agente duplo que trabalhava para a Santa Aliana dentro dos servios secretos alemes. Por outro lado, Albert Hartl tornou-se muito conhecido nas noites berlinenses pelas suas conquistas. As indiscries sexuais com o pessoal feminino da RSHA levaram-no a sofrer srios castigos; mas no estava disposto a abdicar da sua vida privada por causa do Fhrer. Durante uma viagem de Viena para Berlim, Albert Hartl tentou seduzir uma jovem de dezassete anos, filha de um alto dirigente das SS. Henrich Mller decidiu afastar Hartl das fileiras militares e transferi-lo para os esquadres de exterminao de judeus na frente russa. Quando soube disso, Reinhard Heydrich deu uma contra-ordem e, em louvor pelos servios prestados, Hartl passou a ser oficial de campo da RSHA em Kiev, com a tarefa de controlar a opinio pblica na Ucrnia ocupada. Aquele que tinha criado uma das divises mais eficientes do regime nazi contra o Vaticano e a Santa Aliana nunca mais voltou a ocupar o comando de uma unidade de espionagem. A partir desse momento, os servios secretos do Terceiro Reich assumiriam a chamada Directiva Heydrich. Em 1941, houve uma conferncia no quartel-general da Gestapo em que o ponto mais importante se relacionaria com as operaes de espionagem contra a Igreja Catlica, designado como a Poltica Mundial Vaticana e as Nossas Operaes de Espionagem ou Operaes de Espionagem no Conflito com o Catolicismo Poltico no Reich. Durante essa reunio, Reinhard Heydrich falou sobre a necessidade de melhorar as tarefas de espionagem contra o papado com as operaes de contra-espionagem para descobrir os agentes dos servios secretos do Vaticano, da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum na Alemanha e nos pases ocupados. A chamada Directiva Heydrich ordenava a todos os corpos de espionagem e segurana do Reich que intensificassem os seus esforos para se infiitrarem na segurana do Vaticano. A primeira medida da Directiva foi o envio de agentes da RSHA para as embaixadas alems a fim de recolherem informaes acerca das ligaes do Vaticano com esses pases. Foi uma ideia de Reinhard Heydrich convencer Joachim von Ribbentrop, ministro dos Negcios Estrangeiros, a estabelecer os adidos policiais nas Iegaes no estrangeiro. O adido policial na embaixada da Alemanha no Vaticano era Richard Haidlen, um homem sem escrpulos e muito fiel a Heydrich. No comeo de 1942, Haidler foi substitudo por Werner Picot, um polcia que tinha boas relaes na RSHA e no ministrio dos Negcios Estrangeiros. Picot era tambm um homem fiel a Heydrich. Todos os dias o todo-poderoso chefe do Departamento Central de Segurana do Reich era informado sobre as atividades dos servios secretos estrangeiros, da Santa Aliana e servios de inteligncia italianos, atravs de relatrios muito concisos que o prprio Picot elaborava. Pouco a pouco, Werner Picot tornou-se conhecido nos sales sociais da Santa S, para onde era convidado pelos cardeais pr-fascistas. Na ausncia do oficial da RSHA na embaixada, Heydrich encarregava das tarefas de segurana o major Herbert Kappler, adido policial na embaixada alem na Itlia. Kappler era um homem violento, amante da tortura, de baixa estatura, ruivo e o rosto marcado por cicatrizes dos duelos travados na juventude. O primeiro agente de Kappler no interior do Vaticano foi um assistente de um professor da Gregoriana, Universidade jesuta de Roma, que ofereceu voluntariamente os seus servios depois de ler Mein Kampf, o iderio poltico de Adolf Hitler. Durante o trabalho na Gregoriana, o espio de Kappler dedicava-se a abrir a correspondncia dos professores e a escutar as suas conversas para depois informar pessoalmente Herbert Kappler. Nomeado monitor e assistente dos alunos, o espio foi chamado a Berlim pelo arcebispo-cardeal Michael von Faulhaber. Robert Leiber j tinha informado atravs do Sodalitium Pianum sobre um suposto espio na Universidade Gregoriana. A instncias do espio de Pio XII, o espio alemo foi afastado para Berlim. Um dos mais famosos espies nazis no Vaticano foi Alfred von Kageneck, filho de uma nobre famlia catlica alem. Recrutado em Maio de 1940 por Helmut Loos, adjunto de Kappler, Kageneck foi colocado em Roma devido s suas excelentes relaes com o padre Robert Leiber, amigo da sua famlia. Em cada viagem a Roma o espio alemo recolhia importantes informaes para os seus superiores em Berlim, mas ningum soube, a no ser depois da guerra, que Kageneck trabalhava de fato para a Santa Aliana no chamado Teutonicum, a diviso da contra-espionagem papal encarregada de fazer a desinformao dos servios de segurana do Terceiro Reich. Tanto Kappler como Loos estavam convencidos que conseguiriam penetrar nos hermticos servios de espionagem pontifcios. Alfred von Kageneck foi recrutado pela Santa Aliana no ms de Abril desse ano e logo colocado no Teutonicum pelo padre Robert Leiber. Durante a sua primeira visita a Roma, Kageneck confessou ao jesuta os seus contactos com o Amt VI da espionagem nazi e qual era o propsito da sua viagem a Roma. Leiber informou disso o papa Pio XII e o geral dos jesutas e ambos recomendaram a Leiber que devia manter esses contactos com o agente duplo. Em cada encontro, a Santa Aliana preparava um relatrio com documentos que simulassem ser importantes e muito delicados e eram dados ao agente do Teutonicum, que por sua vez os entregava a Helmut Loos na embaixada alem em Roma. Nos anos seguintes, a informao ia e vinha do Vaticano a Berlim, e vice-versa, por intermdio de Alfred von Kageneck, o agente duplo que denunciaria Santa Aliana os nomes dos espies alemes recrutados pelo Amt VI com o objetivo de se infiltrar no Vaticano. Graas s suas informaes cairia Charles Bewley, um antigo diplomata irlands que foi embaixador do seu pas na Alemanha e no Vaticano, mas tambm cairia Werner von Schulenberg, um ex-oficial do exrcito alemo que se tinha deslocado para Roma com a inteno de iniciar uma carreira de escritor. Schulenberg frequentava ento os crculos aristocrticos e intelectuais da Cidade Eterna com o pretexto de permitir as relaes culturais germano- italianas, mas Bewley e Schulenberg s trabalhavam para a espionagem alem por dinheiro. Heydrich mostrava-se decidido a penetrar de qualquer modo nos corredores do Vaticano, logo que surgissem eclesisticos seguidores do Reich para prestarem a sua ajuda a essa tentativa. Um dos mais eficazes seria o diretor do colgio de Santa Maria dellAnima, ou simplesmente Anima, um centro religioso perto da Piazza Navona. O seu diretor era o bispo Alois Hudal, que a Santa Aliana conhecia como o Bispo Negro por causa das suas simpatias pelo regime nazi e por Heinrich Himmler. A princpio, Hudal foi declarado como persona non grata pela Secretaria de Estado devido ao relatrio do Sodalitium Pianum em que se dizia que o austraco era de fato um agente dos servios secretos do Terceiro Reich. Alois Hudal era uma figura com importantes relaes sociais entre a poderosa Cria Romana e movimentava-se muito bem nos seus atapetados sales. Um dia, a Santa Aliana informou o padre Robert Leiber de que Hudal estava a escrever um texto para apresentar a Adolf Hitler e ao papa Pio XII, no qual apresentava diversos argumentos para conseguir uma reconciliao entre a Igreja Catlica e o regime nacional-socialista. Leiber ordenou ento aos seus agentes que se apoderassem do documento antes que fosse tornado pblico. Essa misso foi concedida a Alfred von Kageneck, espio da Santa Aliana na RSHA, que tinha sido apresentado a Hudal durante as celebraes da Semana Santa em 1941. Depois de uma breve conversa, Kageneck entrou no Anima como assistente para as relaes culturais germano- italianas. Quando o documento original estava prestes a ser concludo, o seu manuscrito desapareceu do cofre-forte de Hudal. O manuscrito nunca foi encontrado, mas algumas fontes asseguram que chegou s mos de Leiber e deste ao papa, que ordenaria que fosse guardado no chamado Arquivo Secreto Vaticano, onde ainda dorme no esquecimento. Vrios escritores e historiadores garantiram que esse documento demonstrava claramente o conhecimento de Pio XII da chamada Soluo Final para o problema judaico e extermnio dos srvios ortodoxos por parte dos ustachis do ditador croata pr-nazi Ante Pavelic. O papa negou-se sempre a enviar uma mensagem de claro protesto e de condenao dessas atrocidades. O papa Pio XII e os membros da espionagem pontifcia encaravam desde h anos os croatas como vanguarda da Igreja Catlica nos Balcs. Quando a 6 de Abril de 1941 Hitler decidiu invadir o pas como parte da campanha contra a Grcia, os fascistas croatas declararam a sua independncia. No dia 12, Hitler exps todo o seu plano baseado numa condio ariana para a Crocia independente dirigida por Ante Pavelic. A 20 de Janeiro de 1942, numa vivenda nas margens do Lago Wansee, reuniram- se quinze superiores nazis de alto nvel presididos por Reinhard Heydrich. No texto final, aprovado por unanimidade, decidiu-se a chamada Soluo Final ou, o que a mesma coisa, o extermnio de todos os judeus na Europa. Segundo Adolf Eichmann, que assistiu terrvel cimeira de Wansee, deviam ser assassinados onze milhes de judeus. A Santa Aliana informou o Vaticano dessa reunio e das suas concluses, a 9 de Fevereiro, justamente vinte dias depois de se ter efetuado. A 18 de Maro de 1942, o Vaticano recebeu a primeira informao de agentes da espionagem papal sobre assassnios macios e deportaes de judeus na Eslovquia, na Crocia, na Hungria e na Frana ocupada. O grupo de Pavelic, os ustachis, mostraram-se contrrios formao de um reino eslavo no sul depois da Primeira Guerra Mundial. Entre 1941 e 1945, os ustachis realizaram uma autntica poltica de terror baseada no assassnio sistemtico de srvios ortodoxos, ciganos, judeus e comunistas. A ideia de Ante Pavelic era a de criar uma Crocia catlica pura pelas converses foradas, deportaes ou extermnios. As torturas e assassnios macios foram de tal forma terrveis que alguns membros das unidades alems enviaram relatrios aos superiores em Berlim a denunciar os excessos dos ustachis. O legado histrico em que se apoiava a formao da chamada NDH (Nezavisna Drzava Hrvatska: Estado Independente da Crocia) consistia numa mistura de antigas lealdades ao papado que remontavam a trs sculos atrs e um ardente ressentimento contra os srvios de religio ortodoxa pelas injustias cometidas no passado. Para os catlicos os srvios eram culpados de favorecerem a f ortodoxa, acalentarem o cisma entre os catlicos e de colonizarem zonas catlicas at as converterem em maioritariamente ortodoxas. Desde o comeo do governo de Pavelic, o papa Pio XII apoiara publicamente o nacionalismo catlico dos croatas e afirmou durante uma peregrinao a Roma, em Novembro de 1939, que os ustachis eram a grande avanada da Cristandade, utilizando as mesmas palavras pronunciadas por Leo X. A esperana de um futuro melhor parece sorrir-nos, um futuro em que as relaes Igreja-Estado no vosso pas se ho-de regular harmoniosamente, disse o papa Pio XII ao grupo de croatas que chegaram ao Vaticano encabeados pelo arcebispo Alojzije Stepinac. A 25 de Abril de 1941, as novas autoridades decretaram a proibio de qualquer publicao editada em cirlico e um ms depois foram aprovadas as leis anti- semitas. Em finais de Maio, os primeiros judeus de Zagreb foram deportados para campos de extermnio. A Santa Aliana comeou a enviar telegramas cifrados ao padre Robert Leiber no Vaticano a alertar sobre os massacres da populao civil e de padres ortodoxos. De forma misteriosa, a Secretaria de Estado pediu aos seus agentes colocados no Estado Independente da Crocia que evitassem qualquer confronto com as autoridades. A 14 de Julho do mesmo ano, o ministro da Justia reuniu os bispos da Crocia para os informar de que existia um sector importante da populao, principalmente de religio ortodoxa, que no entraria nas converses foradas com o intuito de no contaminar o catolicismo da Santa Crocia. A uma pergunta de Stepinac sobre o que fazer com eles, o funcionrio respondeu: S lhes resta a deportao e o extermnio. Com esta premissa, os ustachis, a quem o papa designara como a grande avanada da Cristandade, lanaram-se de seguida no assassnio indiscriminado. Os agentes da Santa Aliana, apesar das advertncias que chegavam do Vaticano, continuaram a documentar as atrocidades. Um desses agentes, que assinava com as siglas L. T., enviara a 28 de Abril de 1941 um relatrio ao padre Robert Leiber onde relatava: () um bando de ustachis atacou seis aldeias do distrito de Bjeiovar e deteve duzentos e cinquenta homens, incluindo um professor primrio e um padre ortodoxo. As vtimas foram obrigadas a abrir uma cova e atadas com arames. Depois foram enfiadas na cova e enterradas vivas. Um outro relatrio chegado atravs de um agente da contra- espionagem papal, o Sodaiitium Pianum, e datado de 11 de Maio de 1941, dizia: Os ustachis prenderam trezentos e trinta e um srvios, entre os quais estavam um padre srvio ortodoxo e o seu filho de nove anos. As vtimas foram esquartejadas com machados. O padre foi obrigado a rezar enquanto Ihe matavam o filho. A seguir, torturaram-no, arrancaram-lhe a barba, furaram-Ihe os olhos e esquartejaram-no vivo. Aps o massacre de que o Vaticano estava informado pelos agentes do servio secreto pontifcio, Pavelic, que passou a chamar-se Poglavnik (a mesma palavra que em croata significa Fiihrer), decidiu visitar a Itlia para assinar um pacto com Benito Mussolini. Durante essa visita, Ante Pavelic teve um encontro secreto com o papa Pio XII. O beijo dado pelo Poglavnik no anel papal seIava no apenas o reconhecimento do Estado Independente da Crocia por parte da Santa S, mas selava tambm o silncio do papa face s atrocidades cometidas em nome da f catlica no passado e no futuro por parte dos bandos ustachis. Na sua obra Hitlers Pope. The Secret History ofPius XII, John CornweII saiientava que entre 1941 e 1945 foram assassinados cerca de 487 mil srvios ortodoxos e 27 mil ciganos. Alm disso, morreram cerca de 30 mil dos 45 mil judeus que constituam a comunidade hebraica da Jugoslvia e destes ltimos, entre 20 a 22 mil morreram nos campos de concentrao ustachis e os restantes nas cmaras de gs. O arcebispo de Zagreb, Aiojzije Stepinac, esteve desde o comeo com os princpios fundamentais do novo Estado da Crocia e esforou-se mesmo para que o papa Pio XII reconhecesse Ante Pavelic como um dos pilares essenciais da Igreja Catlica na Europa eslava. Para Stepinac, Pavelic era um catlico sincero, segundo as palavras que pde escrever no seu dirio. Do alto dos plpitos pedia-se populao uma orao sincera a favor do Poglavnik, e outros padres, quase sempre franciscanos, que participavam ativamente nos morticnios. Um agente da Santa Aliana informou num relatrio enviado ao Vaticano: Muitos deles (os padres franciscanos) passeiam-se armados e levam a cabo com um extraordinrio zelo os seus atos assassinos. Um padre chamado Bozidar Bralow, bem conhecido por trazer sempre uma metralhadora, foi acusado de danar volta dos cadveres de cento e oitenta srvios assassinados em AIipasin- Most e um outro de atiar os bandos de ustachis de crucifixo na mo, enquanto cortavam o pescoo s mulheres srvias. Esta ltima histria seria tambm relatada por um jornalista italiano que acrescentou na sua informao que essa carnificina tinha ocorrido em Banja Luka. Outro investigador, Jonathan Steinberg, teve acesso aos arquivos documentais e fotogrficos do ministrio dos Negcios Estrangeiros da Itlia, onde existem imagens dos massacres e relatrios descodificados dos agentes do servio de espionagem papal que informavam os seus superiores do extermnio de cidades e povoaes inteiras em AU or Nothing: The Axis and the Holocaust, 1941-1943. A pergunta que muitos faziam, e ainda hoje se faz, como que a igreja Catlica, o papa Pio XII, o Vaticano, as autoridades catlicas da Crocia e os servios secretos no fizeram absolutamente nada para deter os morticnios ou simplesmente os condenar. Steinberg tornou pblica uma carta enviada pelo arcebispo-primaz da Igreja Catlica na Crocia, Aiojzije Stepinac, ao ditador Ante Pavelic na qual o religioso refere as opinies favorveis de todos os bispos s converses foradas e chega mesmo a afirmar que monsenhor Miscic, bispo de Mostar, era muito favorvel utilizao de todos os meios necessrios para salvar as almas dos croatas. Stepinac, depois de elogiar as operaes de converso religiosa por parte das autoridades croatas, assinalou ainda na sua carta: Na parquia de Klepca, setecentos cismticos das aldeias mais prximas foram assassinados. Muitos foram executados no campo de concentrao de Jasinovac, um dos maiores dessa poca. A maioria dos bispos, a prpria Santa S, a Secretaria de Estado e at o papa Pio XII aproveitaram a derrota da Jugoslvia perante o nazismo para incrementar o poder e o alcance do catolicismo nos Balcs. A incapacidade dos bispos croatas para se distanciarem do regime ou para o denunciar e excomungar Ante Pavelic e os seus cmplices, devia-se ao seu desejo de aproveitar as oportunidades oferecidas por aquela boa ocasio para construir uma forte base catlica nos Balcs. Uma vez mais, o escritor e investigador. John Cornwell pde aceder a documentos depositados nos Arquivos Secretos Vaticanos, entre eles um relatrio da Congregao para as Igrejas Orientais, em que se dizia que o Vaticano estava ao corrente das converses foradas desde. Julho de 1941. Cornwell teve tambm acesso a um documento da Santa Aliana no qual se falava do envio de quase seis mil judeus para uma ilha deserta sem comida nem gua. Todas as tentativas feitas para os ajudar foram proibidas pelas autoridades croatas, dizia o relatrio do servio secreto pontifcio. No existem dados sobre uma resposta ou iniciativa da parte do Vaticano a respeito deste assunto. O padre Cherubino Seguic, representante especial de Ante Pavelic, chegou a Roma para desmentir o que qualificava como boatos da parte de comunistas e judeus e membros do servio secreto do Vaticano. A 6 de Maro de 1942, o cardeal francs Eugene Tisserant, perito nos Balcs, membro da loja manica do Grande Oriente e de grande confiana do papa Pio XII, teve um encontro secreto com Nicola Rusinovic, o representante oficioso junto do Vaticano do governo de Pavelic, em que lhe disse: Eu sei que os franciscanos, por exemplo o padre Simic de Knin, participaram nos ataques populao ortodoxa, chegando a destruir igrejas, como aconteceu em Banja Luka. Sei que os franciscanos atuaram de forma abominvel e isso di-me muito. Esses atos no devem ser cometidos por gente instruda, culta e civilizada e muito menos por sacerdotes. A verdade que Pio XII nunca deixou de se mostrar benevolente com o regime de Ante Pavelic. Por exemplo, em. Julho de 1941, o Sumo Pontfice recebeu uma centena de agentes da segurana croata trazidos pelo chefe da polcia de Zagreb, o qual seria acusado depois da guerra por crimes contra a Humanidade e ter pessoalmente executado diante de testemunhas seis mulheres e nove dos seus filhos. A 6 de Fevereiro de 1942, o papa Pio XII recebeu em audincia um pequeno grupo de membros das Juventudes Ustachis, aos quais recordou que eles eram a salvaguarda da Cristandade e ainda salientou, com algum desgosto, que apesar de tudo, ningum queria reconhecer o nico e verdadeiro inimigo da Europa: no se iniciou uma verdadeira cruzada militar comum contra o bolchevismo. Em relao Rssia, uma nova operao seria desencadeada pelo servio de espionagem do Vaticano, a Santa Aliana. Quando Hitler levou a cabo a chamada Operao Barba Ruiva, a 22 de Junho de 1941, o papa Pacelli viu nisso uma boa oportunidade para penetrar nas prprias entranhas do inimigo bolchevique atravs da evangelizao. Para isso chamou o cardeal Tisserant e o chefe de espies, padre Robert Leiber. O Sumo Pontfice ordenou-lhes que preparassem um plano para permitir o envio de missionrios catlicos na esteira das divises da Wehrmacht na sua caminhada para Moscovo, enquanto estas Iibertavam os territrios da Unio Sovitica. Nesse sentido, o cardeal Tisserant, juntamente com Leiber, preparariam uma verdadeira operao de espionagem que ficou conhecida como Plano Tisserant. Mas Hitler tinha realmente outros planos quando declarou que o cristianismo a pior calamidade que desabou sobre a Humanidade. O bolchevismo no mais do que um filho bastardo do cristianismo, mas ambos so os monstros engendrados pelos judeus. Ao longo do seu interrogatrio pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberga, a 12 de Outubro de 1945, Franz von Papen declarou: A re- evangelizao da Unio Sovitica foi uma operao do Vaticano. Fosse atravs do seu departamento de misses ou mesmo atravs dos seus servios secretos. O certo que o Plano Tisserant foi dirigido pessoalmente pelo cardeal Eugene Tisserant e no por Robert Leiber, apesar de os principais operacionais serem de fato agentes da Santa Aliana. O responsvel da espionagem pontifcia para levar a cabo o Plano Tisserant na Unio Sovitica foi Nicols Estorzi, o Mensageiro. As atividades do cardeal no Leste da Europa tinham sido referidas em Julho de 1940. O ento dirigente nazi e fervoroso anticatlico Alfred Rosenberg proibiu a entrada de padres nas reas libertadas da Unio Sovitica. Mas foi Reinhard Heydrich, o chefe da Direo Central de Segurana do Reich, quem se ocuparia em apanhar na Rssia os agentes da Santa Aliana e do Vaticano. A 2 de Julho de 1941, Heydrich fez circular um documento entre as altas hierarquias nazis intitulado Novas tticas no trabalho do Vaticano em Roma. O influente chefe da RSHA explicava nesse documento que o Vaticano e os seus servios secretos tinham concebido uma operao chamada Plano Tisserant para infiltrar sacerdotes catlicos nas zonas controladas pela Wehrmacht. O propsito essencial do plano esboado pela Santa Aliana era o de recrutar capeles ajudados por padres espanhis e italianos para acompanhar as unidades que lutavam na frente oriental. Os religiosos liderados por Estorzi dedicavam-se a recolher toda a informao para assim estabelecer o catolicismo, protegidos pelo avano alemo. Heydrich continuava a explicar no seu relatrio: E necessrio impedir que o catolicismo se converta no principal beneficiado da guerra na nova situao que se est a criar na rea russa conquistada com o sangue alemo. Os agentes do papa esto a aproveitar-se desta situao e preciso acabar com isso. Uma ordem datada de 6 de Setembro exigia aos comandantes das divises que informassem o alto comando do exrcito sobre qualquer sinal de ativao das operaes do Vaticano e dos seus servios de espionagem na Rssia. De fato, o Plano Tisserant no foi uma operao esboada nessa altura, mas muito antes, exatamente durante o pontificado do papa Pio XI. Nicols Estorzi dedicou-se a entrevistar um por um os candidatos para realizar o Plano Tisserant e para isso se prepararam as abadias de Grotta Ferrara em Itlia, de Chevetogne na Blgica, e de Velehrad na Morvia, onde foram chegando os agentes da Santa Aliana desejosos de participar no Plano Tisserant para participarem numa das operaes mais importantes da histria do servio de espionagem papal. Viajavam disfarados de comerciantes e crucifixos pregados no interior de penas de escrever ou como moos de quadra na retaguarda do avano alemo. Uma vez chegados a zonas aptas para celebrar missas clandestinas, os espies do papa separavam-se das colunas e seguiam por sua conta e risco. Muitos deles tinham a aceitao das populaes, mas outros eram executados por partidrios comunistas ou apenas detidos e enviados para campos de trabalho na Sibria. Segundo fontes extra-oficiais, diz-se que cerca de duzentos e dezassete membros do Russicum e da Santa Aliana morreram durante o Plano Tisserant, Nicols Estorzi, responsvel de levar a cabo esse plano, manteve-se no interior da Rssia at Fevereiro de 1943, data em que voltou a unir-se s tropas alems que retiravam em debandada diante do impacto do Exrcito Vermelho. A 31 de Janeiro, o general Von Paulus rendeu-se em Stalingrado. Dos trezentos e trinta mil homens que compunham o VI Exrcito alemo, s sobreviveram noventa e um mil e muitos deles morreriam nos campos de prisioneiros da Sibria. A rendio alem na cidade russa seria o primeiro passo para o fim do Reich dos Mil Anos, um dia sonhado por Adolf Hitler. Entretanto, e depois do fracasso do Plano Tisserant, o papa Pio XII reclamaria na encclica Ecclesiae decus, de 23 de Abril de 1944: Espero que por fim amanhea o dia em que haja um s rebanho num nico redil, todos obedientes num nico pensamento em Jesus Cristo e no seu Vigrio na terra. () os fiis de Cristo devem trabalhar juntos na nica Igreja de Jesus Cristo, de forma a serem uma frente comum, apertada, unida e inamovvel aos ataques crescentes dos inimigos da religio. Os historiadores John Cornwell, Cario Falconi, Jonathan Steinberg e Harold Deutsch coincidem em dizer que a ambio do papa Pio XII para evangelizar o leste da Europa no explica o seu silncio em relao ao extermnio de seis milhes de judeus na chamada Soluo Final. O histrico silncio acerca do assassinato de milhes de judeus, do Vaticano em geral e de Pio XII em particular, provocou uma declarao do embaixador britnico junto da Santa S, sir DArcy Osborne, que dizia: A poltica de silncio a respeito desses crimes contra a conscincia do Mundo exprimiria uma renncia liderana moral e a consequente atrofia da influncia e autoridade do Vaticano e precisamente da manuteno e afirmao dessa autoridade depende qualquer sinal de uma contribuio papal no restabelecimento da paz no Mundo. As tropas soviticas chegariam s portas de Berlim, o corao do Reich, a 19 de Abril de 1945. No dia 30, num escuro e hmido refgio subterrneo da Chancelaria do Terceiro Reich, aquele que foi amo e senhor da Europa punha termo vida. Adolf Hitler acabava de cumprir cinquenta e seis anos. Trs dias antes, a 27 de Abril, caiu tambm o Duce Benito Mussolini e o seu corpo foi pendurado pelos ps na Piazza de Loreto, em Milo. De fato, acerca da atuao do Vaticano e dos servios secretos, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum, no perodo da Segunda Guerra Mundial, deve salientar-se uma frase do cardeal Eugene Tisserant, o responsvel da Congregao das Igrejas Orientais, escrita numa carta dirigida ao cardeal Emmanuel Suhard em Maio de 1940: Receio que a Histria censure a Santa S por ter praticado uma poltica de proveito egosta e pouco mais. Ora, isto demonstraria que quase no comeo da Segunda Guerra Mundial o Vaticano j receava que uma poltica de neutralidade encoberta fosse julgada e condenada, como realmente foi, pela prpria Histria. Do Reich dos Mil Anos restavam apenas as runas, a morte e a destruio, quando tinham passado doze anos desde que Hitler chegara ao poder. O nmero de mortos durante a Segunda Guerra Mundial subia a mais de cinquenta e cinco milhes, entre civis e militares. Seis anos e um dia depois do ataque de Adolf Hitler Polnia, os canhes caIavam-se. Restava somente salvar o que sobrou das runas enquanto os assassinos, os executores da poltica do Ftihrer fugiam justia internacional atravs do chamado Corredor Vaticano e de uma organizao conhecida como Odessa. O imprio comunista comeava a estender os seus tentculos pela Europa de Leste. Uma nova guerra desabava sobre o Mundo: a Guerra Fria.
16
Odessa e o Corredor vaticano (1946-1958)
Enquanto se passeiam os mpios, os insolentes so os que mais se destacam entre os homens. Salmos 11,9
Durante a guerra, o Colgio de San Girolamo degli Illirici, em Roma, era um lugar para os sacerdotes croatas que chegavam ao Vaticano executarem diferentes tarefas. Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, San Girolamo, no 132 da Via Tomacelli, converteu-se num refgio seguro para os ustachis procurados como criminosos de guerra. A Santa Aliana fornecia a muitos deles destinos de confiana, identidades e passaportes falsos para facilitar a sua fuga. O principal responsvel de San Girolamo era o padre Krunoslav Draganovic. Ex-professor de um seminrio croata e descrito pelos servios de inteligncia norte-americanos como o alter ego do ditador Ante Pavelic, Draganovic chegou a Roma em finais de 1943 com o intuito de trabalhar para a Cruz Vermelha. Os servios de espionagem do Vaticano asseguram que Draganovic se encontrava realmente em Roma para coordenar certas operaes na Crocia com grupos fascistas italianos. No final da guerra, o religioso tornou-se no eixo principal do chamado Corredor Vaticano. A princpio, a partir de San Girolamo organizaram-se fugas, sobretudo para a Argentina, para logo a seguir se comear a ajudar na evaso de criminosos de guerra nazis como Josef Mengele, o mdico de Auschwitz, Klaus Barbie, o carniceiro de Lyon e antigo chefe da Gestapo nesta cidade, Ante Pavelic, o ditador croata, o capito das SS Erich Priebke, o general das SS Hans Fischbck ou o clebre Adolf Eichmann. Segundo certos escritores e historiadores, no existem provas suficientes para poder garantir que o Vaticano ou o papa Pio XII tinham conhecimento das operaes da organizao Odessa, embora existam importantes indcios de que pelo menos alguns destacados agentes da Santa Aliana estiveram envolvidos no Corredor Vaticano. Por exemplo, Franz Stangl, comandante do campo de concentrao de Treblinka, recebeu uma nova identidade, papis falsos e refugiou-se em Roma com a ajuda do bispo Alois Hudal e de alguns membros da Santa Aliana. Por sua vez, Klaus Barbie tambm teria sido ajudado por agentes do Vaticano. Mas por esta ajuda o Vaticano e diversas instituies receberam importantes fundos, muitos deles procedentes da extorso a judeus ricos em troca de no serem deportados para os campos de extermnio. Um dos casos foi o do general da diviso das SS, Hans Fischbck. Juntamente com Eichmann e o capito das SS Erich Rajakowitsch, desempenhara cargos importantes na Austria anexada e posteriormente na Holanda. Os relatrios da Santa Aliana e dos servios secretos norte-americanos demonstravam que tanto Fischbck como Rajakowitsch tinham feito uma enorme fortuna a espoliar as famlias milionrias judaicas holandesas em troca de no figurarem nas listas de deportaes das SS. Uma parte desse dinheiro entrava nos bolsos de Eichmann, outra nos de Fischbck e outra nos de Rajakowitsch, mas a parte mais importante era depositada em vrias contas na Argentina atravs dos bancos suos, em especial da Union de Banques Suisses de Zurique. Com uma parte desse dinheiro os trs antigos membros das SS, e em coordenao com a Odessa, puderam escapar-se para a Argentina. Os servios secretos britnicos, descobriram que uma parte da operao de fuga tinha sido financiada atravs de dois cidados suos, Arthur Wiederkehr, um impiedoso advogado que obteve cerca de dois milhes de francos suos em comisses procedentes dos resgates, e Walter Bchi, um jovem suo que tinha uma grande habilidade para pr os seus clientes nas mos da Gestapo depois de entregarem o dinheiro do resgates. Alguns relatrios britnicos referiam que Bchi mantinha grandes contatos com a Cria Romana e alguns elementos prximos dos servios secretos papais. Walter Bchi estabelecera relaes com agentes do Teutonicum, a diviso de assuntos alemes da espionagem pontifcia, e realizara certas misses especiais para a Santa Aliana. Bchi atuava como um agente livre da espionagem do Vaticano e ao mesmo tempo como elo suo de ligao da chamada Unidade Monetria das SS, sob a direo do general Hans Fischbck. Um dos melhores negcios de Bchi foi o de ser intermedirio para a libertao do banqueiro judeu Hans Kroch, que tinha conseguido escapar para a Holanda quando comearam em Berlim as perseguies contra a comunidade judaica. Kroch ps-se em contacto com Walter Bchi para pagar o resgate por toda a sua famlia. O suo recorreu pessoalmente a Adolf Eichmann para obter os salvo-condutos, mas o problema foi que a esposa de Kroch tinha sido detida pela Gestapo e levada para o campo de concentrao de Ravensbriick. O advogado Wiederkehr aconselhou Kroch a fugir para a Sua com as suas filhas e da para a Argentina. Uma vez na Amrica do Sul, Kroch enviou a Bchi e Wiederkehr uma lista de milionrios judeus que estariam dispostos a pagar considerveis fortunas pela liberdade dos familiares. Essa lista de nomes seria conhecida como a Lista Kroch e, a partir da, Bchi e Wiederkehr, pela parte sua, e os seus scios Adolf Eichmann e Hans Fischbck, pela parte alem, comearam a receber grandes quantias de dinheiro em ouro e francos suos que depositavam em contas confidenciais que logo a seguir eram enviadas para contas em bancos argentinos. Esse dinheiro serviria anos depois para financiar a evaso de importantes criminosos de guerra nazis para a Amrica do Sul, sobretudo para a Argentina, a Bolvia e o Brasil, por intermdio do referido Corredor Vaticano. De fato, os primeiros planos de evaso para os dirigentes nazis foram traados dois meses antes de acabar a Segunda Guerra Mundial. Heinrich Himmler, quando sentiu que tudo estava perdido, decidira criar a chamada Operao Aussenwege (Caminho para o Exterior) e para isso colocou frente da operao o jovem capito das SS Karl Fuldner. O alemo de trinta e quatro anos tornar-se-ia o cabecilha da fuga de criminosos de guerra, que receavam a justia aliada depois do conflito, ou seja, durante os cinco anos seguintes, exatamente at 1950. Espanha, Portugal, Marrocos, Austria e Itlia tornar-se-iam numa zona segura de passagem e de proteo para os fugitivos que viajavam com documentao falsa, na sua maior parte preparada pelos servios secretos do Vaticano, e houve muitos agentes da Santa Aliana que actuaram como guias e protetores de criminosos de guerra at encontrarem um lugar seguro, longe do alcance da justia internacional. Fuldner pde realizar um priplo contra-relgio por vrias capitais da Europa, entre as quais Madrid e Roma. Nesta ltima teria uma reunio com o padre Krunoslav Draganovic, responsvel por San Girolamo, que confirmou ao enviado de Himmler que a sua organizao estava pronta para dar assistncia e refgio s altas hierarquias nazis que decidissem fugir para a Amrica do Sul. E garantiu mesmo a Fuidner que contava com a proteo e o apoio do Vaticano atravs da Santa Aliana, o servio secreto papal. Fuidner nascera em Buenos Aires a 16 de Dezembro de 1910, no seio de uma famlia de emigrantes alemes, mas em 1922 o pai decidiu regressar Alemanha e instalar-se na cidade de Kassel. No comeo de 1932, Fuidner foi admitido nas unidades de elite das SS: tinha vinte e um anos e media um metro e setenta e seis. Depois da guerra, Karl Fuidner refugiou-se em Madrid, onde fixou a sua base de atuao. Na capital espanhola, o antigo capito das SS manteve boas relaes com elementos destacados do mundo social e artstico, como Gonzalez Serrano Fernndez de Villavicencio, visconde de Uzqueta; o jornalista Victor de la Serna e os irmos Dominguin, toureiros famosos. Para manter secretos esses encontros, Fuidner reunia-se na casa de banho do restaurante Horcher, situado na rua Alfonso XII, inaugurado em 1943 e propriedade de Otto Horcher. Foi neste lugar que Fuidner estabeleceu o primeiro contato com o bispo argentino, monsenhor Antnio Caggiano, que a seguir foi nomeado cardeal pelo papa Pio XII. Caggiano foi acompanhado por dois homens que disseram pertencer Santa Aliana: de um deles no se sabe o nome; o outro chamava-se Stefan Guisan. Este ltimo era um padre franciscano nascido numa aldeia perto da cidade sua de Berna. No seminrio em que estudou, Stefan estabeleceu contacto com um sacerdote croata que o apresentou a Draganovic e, a partir de 1944, o padre Stefan Guisan passou a colaborar com os servios secretos pontifcios, a Santa Aliana. Mas depois do desembarque na Normandia em Junho desse ano, entrou como elo de ligao da Santa Aliana na sede da Comisso Pontifcia para a Assistncia (CPA), em Villa San Francesco. A CPA, presidida por Pierr Luigi Martin, era o organismo vaticano encarregado de expedir os documentos de identidade para os refugiados, mas aps a derrota nazi foi o organismo encarregado de facilitar documentos falsos a um grande nmero de fugitivos nazis. Na CPA trabalhavam cerca de trinta sacerdotes de diferentes ordens, embora na sua maioria franciscanos, que se dedicavam falsificao de carimbos de organismos internacionais de ajuda aos refugiados. O padre Guisan atuava como ligao entre as diferentes organizaes do Estado do Vaticano para auxiliarem na fuga dos criminosos de guerra. Esta ajuda passava por simplesmente os esconder, facilitar-lhes a documentao falsa, financiar a viagem de fuga ou entregar-lhes uma lista de contactos em cada etapa da prpria fuga. Parece que existem documentos que demonstram que Draganovic no era o principal dirigente da chamada Operao Convento. Um relatrio do servio de espionagem norte-americano indicou que o rosto visvel do Corredor Vaticano era de fato o cardeal Eugene Tisserant. William Gowen, que pertencia contra- espionagem militar americana em Itlia, escrevia num relatrio datado de 1946: Tisserant disse que acredita firmemente que neste momento existem cinquenta por cento de probabilidades de que a Rssia provoque uma guerra ainda este ano. Segundo o cardeal, os russos esto numa posio privilegiada para invadir a Europa Ocidental. () uma oportunidade que sabem no voltar a repetir-se. 8 Monsenhor Caggiano e o agente padre Stefan Guisan reuniram-se com o cardeal Tisserant no Vaticano para o informar de que o governo da Argentina estava disposto a receber os franceses, cuja atitude poltica durante a guerra os exporia, no caso de regressarem a Frana, a rigorosas medidas ou vingana privada. Tisserant era to anti-comunista que pensava que eles no deviam ser enterrados em sepultura crist e achava ser necessrio estabelecer um grupo de peritos nazis anti-comunistas na Amrica do Sul para serem utilizados no caso de estalar uma guerra contra os soviticos. A partir desse momento, comeou a chegar embaixada da Argentina em Roma uma vaga de pedidos de vistos para cidados franceses. Os criminosos de guerra ou colaboracionistas franceses, como Mareei Boucher, Fernand de Menou, Robert Pincemin ou Emile Dewoitine, receberam um visto especial por ordem do cardeal Antnio Caggiano para entrar na Argentina. Os quatro dispunham de passaportes com numerao seguida passados pela Cruz Vermelha de Roma e tinham um certificado de recomendao do Vaticano. Curiosamente, os quatro encontraram refgio em San Girolamo, a instituio que era dirigida por Krunoslav Draganovic e infiltrada pela Santa Aliana e o Sodalitium Pianum. Entretanto, ao mais alto nvel discutia-se um acordo secreto entre o papa Pio XII e o presidente da Argentina, Juan Domingo Pern. O cardeal Giovanni Battista Montini, o futuro papa Paulo VI, exprimiu ao embaixador argentino em Itlia o interesse de Pio XII sobre a melhor forma de acertar a emigrao para a Argentina no apenas italiana. O Sumo Pontfice estava disposto a que os tcnicos da Santa S (o seu servio secreto) se pusessem em contacto com os tcnicos argentinos (membros da organizao Odessa) para estabelecerem um plano de ao. O diplomata argentino entendeu que o interesse do papa Pio XII se alargava aos detidos nos campos de prisioneiros aliados em Itlia, ou seja, oficiais nazis de alta patente. Depois de conhecer este desejo por parte do cardeal Montini, o argentino contactou com o seu ministrio dos Negcios Estrangeiros em Buenos Aires para receber instrues. Como elo de ligao entre os nazis e o Vaticano, ou seja, entre Fuldner e o padre Krunoslav Draganovic, foi escolhido um homem de nome Reinhard Kops, pelo lado alemo, e Gino Mont de Valsassina, por parte da Santa Aliana. Mont de Valsassina era um nobre italiano de origem croata que tinha combatido na Luftwaffe e aps ser ferido em combate foi integrado nos servios secretos de Himmler. Em Abril de 1945, foi capturado pelos ingleses e posto num campo especial de prisioneiros ao qual iam parar todos os nazis que tivessem alguma coisa a dizer depois da guerra, desde uma simples informao sobre outros nazis fugidos at assessoria tcnica e cientfica em matrias desenvolvidas e financiadas durante o regime de Hitler. O conde Mont entrou em contacto com a Santa Aliana em finais de 1944, durante uma viagem familiar a Milo em que conheceu vrios membros da Cria e com os quais estabeleceu depois boas relaes, porque ao fim e ao cabo Mont era um catlico fervoroso. Um desses religiosos era prximo do padre Robert Leiber, o espio do papa Pio XII e que ele tinha introduzido no servio secreto do Vaticano. Em fins de 1945, Mont conseguiu escapar e, segundo todos os indcios manuseados pelos servios secretos norte-americanos, refugiou-se numa instituio do Vaticano, certamente em San Girolamo. Protegido pelos homens de Draganovic, Gino Mont de Valsassina conseguiu viajar para a Argentina atravs do porto de Gnova, graas ajuda do padre Karlo Petranovic. Mont entrou na Argentina a 4 de Janeiro de 1947, com um documento de cidado aptrida passado pelo Vaticano e sete meses depois foi enviado por Pern para Espanha com o objetivo de recrutar alemes com grandes conhecimentos tcnicos. Os protegidos de Mont eram simples criminosos de guerra nazis, como o general da Luftwaffe Eckart Krahmer, ou agentes da espionagem alem, como Reinhard Spitzy. No Vero de 1947, Monti pde entrar novamente no Vaticano atravs de Itlia para atuar como elemento de ligao da Santa Aliana em San Girolamo. O elo de ligao alemo em San Girolamo, Reinhard Kops, que usava o falso nome de Hans Rasohenbach e um passaporte passado pela Santa Aliana, nasceu na cidade alem de Hamburgo a 29 de Setembro de 1914. Kops dirigiu tarefas de extermnio e deportao de judeus na Albnia durante a Segunda Guerra Mundial, de acordo com uma investigao do Centro Simon Wiesenthal, e efetuara tarefas similares em Frana e na Bulgria ocupadas. A seguir queda de Adolf Hitler, Kops chegou a Roma depois de ter fugido de um centro de priso do exrcito britnico. Foi nessa altura que o alemo comeou a trabalhar na Secretaria para os Refugiados Alemes do Vaticano, departamento pontifcio utilizado pela Santa Aliana como forma de cobertura. Da e sempre sob a proteo dos servios secretos papais, ajudou na fuga de criminosos de guerra, especialmente para a Amrica do Sul e para a Austrlia, at que em 1948 decidiu ele mesmo dar o salto para a Argentina a fim de escapar assim a uma Europa que comeava a reclamar a entrega dos nazis evadidos. De acordo com um relatrio da Comisso de Esclarecimento das Atividades Nazis na Argentina (CEANA), Reinhard Kops/Juan Maler pertenceu durante a guerra ao servio de contra-espionagem do Terceiro Reich e, aps a derrota nazi e a sua posterior fuga para Roma, tornou-se num ajudante especial do bispo (pr-nazi) Alois Hudal e elo de ligao da Santa Aliana com os evadidos nazis que chegavam ao refgio de San Girolamo em Roma, a organizao religiosa que era dirigida pelo padre Krunoslav Draganovic. Em Buenos Aires, Reinhard Kops, que passou a usar o nome de Juan Maler, converteu-se num fervoroso intelectual de ultra-direita e administrador na Amrica do Sul do sector das finanas da organizao Odessa at ao incio dos anos cinquenta e do movimento neonazi internacional a partir dos anos sessenta e incios dos setenta. Kops fugiu para a Argentina por Gnova, ajudado pelos padres Karl Petranovic e Ivan Bucko, que eram da maior confiana de Draganovic no Corredor Vaticano, ou por Marrocos, com a ajuda de Marguerite dAndurain. Foi Draganovic quem colocou em contacto o capito das SS Karl Fuldner e Reinhard Kops com a misteriosa e bonita mulher Marguerite dAndurain, que participou em certas operaes que a Santa Aliana levou a cabo em Berlim durante a guerra, e ainda com Nicols Estorzi, o Mensageiro de Robert Leiber. Filha de um juiz francs, Marguerite casou com o visconde Pierre dAndurain quando contava apenas dezassete anos. Em 1918, viajariam para o Lbano, onde se estabeleceriam como negociantes de prolas. Marga, assim conhecida entre as amigas, aprendeu a falar fluentemente o rabe. Sabe-se que durante uns tempos foi dona do Grande Hotel de Palmira, no deserto srio, e que mudara o nome para Hotel Rainha Zenbia, em honra da rainha dos bedunos. Entre 1918 e 1925, Marguerite dAndurain infiItrou-se no mundo da espionagem por intermdio do Deuxieme Bureau, os servios secretos franceses. Teve depois um romance com o clebre agente da espionagem britnica coronel Sinclair, que um pouco mais tarde seria encontrado morto em Damasco. Embora em princpio se pensasse em suicdio, os servios secretos franceses e ingleses suspeitaram da implicao de DAndurain e dos servios secretos do kaiser na morte do espio ingls, mas nunca se descobriu a verdade. Em 1925, Marguerite dAndurain divorciou-se e casou com um xeque wahabi de nome Suleiman. Alguns informadores garantem que DAndurain envenenou o marido e herdou assim um elevado nmero de propriedades e dinheiro. Pouco depois regressou a Palmira, onde voltou a casar com o visconde Pierre dAndurain em 1937. Dois meses depois do casamento, o visconde apareceu morto com dezassete punhaladas, sem que fosse descoberto o autor ou autores do crime. A viva comeou uma vida de luxo desde Nice ao Cairo, sempre acompanhada por homens mais novos. Durante o tempo de ocupao da Frana, Marguerite dAndurain realizou vrias operaes de espionagem para os nazis, concretamente para a Diviso Central de Segurana do Reich, dirigida por Reinhard Heydrick, ao mesmo tempo que contactava com os servios secretos do Vaticano atravs das suas estreitas relaes com o nncio vaticano na capital francesa e com o bispo austraco Alois Hudal, uma das figuras-chave da organizao Odessa. De fato, no existem provas documentais conclusivas sobre a colaborao de DAndurain com a Santa Aliana, mas conhecem-se as suas ligaes com monsenhor Hudal. Depois do fim da guerra, o religioso austraco contactou com DAndurain para que se juntasse rede do Corredor Vaticano. A princpio, ela recusou-se a prestar servios ao Vaticano, at que um dia apareceu morto por envenenamento aquele que fora seu amante. No dia seguinte, Marguerite dAndurain desapareceu da face da terra para reaparecer meses depois na costa norte de Marrocos. Proprietria de um luxuoso iate, o Djeilan, DAndurain atravessava constantemente o estreito de Gibraltar, entre Penn e Tnger. Fala-se que nesses misteriosos cruzeiros a espia ajudou na fuga de relevantes figuras do nazismo atravs de Marrocos, como Franz Stangl, comandante do campo de concentrao de Treblinka, Adolf Eichmann, o responsvel mximo da chamada Soluo Final, Erich Priebke, um dos chefes da Gestapo em Itlia e responsvel pelo conhecido Massacre das Valas Ardeatinas, ou ainda de Reinhard Kops, responsvel pela deportao e extermnio de judeus da Albnia durante a guerra e de excelentes relaes com a Santa Aliana. DAndurain era realmente uma simples e pequena pea na grande engrenagem que o Vaticano e a organizao Odessa tinham montado para ajudar na fuga de criminosos de guerra nazis, utilizando as duas vias que constituam o chamado Corredor Vaticano. Uma delas era Sua-San Girolamo-Porto de Gnova-Amrica do Sul e a segunda era Sua-Frana-Espanha-Gibraltar-Marrocos-Amrica do Sul, na qual Marguerite dAndurain tinha como misso a passagem do estreito dos fugitivos para Marrocos; uma vez em Marrocos embarcavam em navios mercantes rumo aos portos da Argentina, Uruguai, Brasil, Peru ou Chile. Na noite de 5 de Novembro de 1948, foi encontrado a flutuar na baa de Tnger o corpo sem vida de Marguerite dAndurain. As pesquisas realizadas pelo servio secreto britnico em Gibraltar sobre o culpado do assassnio apontavam trs possibilidades. A primeira, que podia ter sido assassinada pelos elementos da organizao Odessa com o intuito de calar a boca a uma mulher que sabia muito acerca do destino final de nazis como Eichmann, Kops, Priebke, Mengele ou Fischbck. Vrias fontes interrogadas por britnicos e por norte-americanos garantiam que DAndurain se relacionara com um tal Poncini, um homem alto, moreno e bem- parecido, com quem tivera relaes sexuais. Tinham sido vistos juntos em festas e casinos e por isso os britnicos investigaram um tal Hans Abel, antigo membro dos servios secretos do Reich, como presumvel autor do assassnio ou execuo da espia de quarenta e sete anos. A segunda verso, defendida pelos servios de inteligncia norte-americanos, era a de que o assassino podia ter sido qualquer membro dos servios secretos israelitas. Esta verso foi retomada pelo investigador Richard Deacon no seu livro The Israeli Secret Service, sobre a histria dos servios de espionagem israelitas. Segundo Deacon, os americanos sabiam que um agente israelita que aotuava em Tnger tinha descoberto todo o conluio para ajudar na fuga dos criminosos de guerra nazis relacionados com o assassnio de judeus na Europa durante a ltima guerra mundial atravs do Vaticano do papa Pio XII. Os israelitas encontraram vrias provas em Tetun, na zona espanhola de Marrocos, por intermdio de um espanhol que deu asilo a muitos dos nazis evadidos at que a condessa Marguerite dAndurain os conseguisse fazer passar o estreito a bordo do iate Djeilan. O espanhol disse aos israelitas que DAndurain fazia parte da organizao Odessa e que ajudava na fuga de criminosos de guerra nazis para a Amrica do Sul. A informao foi passada para Telavive, onde foi dada a ordem de liquidao da colaboradora de Odessa. Em fins de Outubro de 1948, trs agentes israelitas chegaram a bordo de um navio de carga ao porto de Marrocos. Depois do desembarque, instalaram-se num pequeno hotel de Tnger. Na tarde de 4 de Novembro, um dos agentes israelitas detectou o Djeilan a entrar no porto. Marguerite dAndurain estava ao leme. Nessa noite, Marguerite e os trs agentes israelitas desapareceram. O corpo dela foi encontrado na noite seguinte a flutuar nas guas da baa. Os servios secretos norte-americanos suspeitavam que a morte da agente de Odessa tinha sido executada pelos servios secretos israelitas. A terceira verso sobre o assassnio de DAndurain era defendida pelos servios secretos franceses, que tambm a vigiavam. Segundo os espies gauleses, Marguerite dAndurain fora vista com um homem alto, bem parecido, de tez morena, uma descrio que se ajustava muito do padre Nicols Estorzi, o agente da Santa Aliana que era conhecido como o Mensageiro. Estorzi tinha sido visto uma semana antes na nunciatura de Madrid, onde parece ter recebido instrues dos seus superiores. To dedicada aos homens como era Marguerite dAndurain, no foi difcil para Estorzi contatar corn ela. Na noite anterior sua morte a espia foi vista no concorrido restaurante de Tnger com um homem cuja descrio coincidia muito com a do agente da Santa Aliana. Na manh seguinte, Estorzi desapareceu e o cadver de Marguerite dAndurain foi encontrado a flutuar nas guas de Tnger com um forte golpe na cabea. O relatrio dos servios secretos franceses revelava que Marguerite podia ter sido executada por um agente pertencente a uma misteriosa organizao ou seita conhecida como os Assassini, estreitamente ligada aos servios secretos do Vaticano. Segundo o Deuxieme Bureau, a espia foi assassinada por causa dos amplos conhecimentos sobre a chamada Operao Convento, organizada pela Santa Aliana em colaborao com James Angleton, que era o chefe da OSS (Organizao de Servios Estratgicos), os servios secretos americanos em Itlia e antecessora da CIA, que permitiu a muitos criminosos de guerra nazis fugirem para a Amrica do Sul. A verdade que, fosse quem fosse o seu assassino para os servios secretos norte-americanos, israelitas ou vaticanos, a morte de Marguerite dAndurain continuou a ser um dos maiores mistrios em redor da Santa Aliana. Alguns anos depois, os nomes e paradeiros de Adolf Eichmann, Reinhard Kops ou Erich Priebke converter-se-iam em moeda de troca na nova cooperao entre os servios secretos do Vaticano, a Santa Aliana e o amigo israelita, ou seja, o Mossad. Outro caso dos mais clebres em que a Santa Aliana foi envolvida dentro da Operao Convento seria o da evaso de Cari Vaernet, o chamado Mengele dinamarqus. Na dcada de trinta, Vaernet garantiu ter desenvolvido uma terapia baseada no que ele prprio denominava como uma inverso da polaridade hormonal. Essas suas teorias foram muito difundidas pelos jornais do Partido Nazi e Heinrich HimmIer viu nelas uma soluo final para a questo dos homossexuais. Aps a ascenso de Hitler ao poder, Vaernet foi recrutado pelos servios mdicos das SS, grupo de que fazia parte Josef Mengele como fundador. Em 1943, Cari Peter Jensen, ou Cari Vaernet, assinou um contrato com a Diviso Central de Segurana do Reich (RSHA) em que cedia os direitos exclusivos da patente das prprias descobertas a uma empresa das SS, a Deutsche Heilmittel, em troca de financiamento, material de laboratrio e prisioneiros homossexuais dos campos de concentrao para serem utilizados como cobaias humanas. A partir de Janeiro de 1944, HimmIer ps disposio de Vaernet a populao homossexual de Buchenwald. Cari Vaernet fez experincias com quinze prisioneiros nos quais fez o implante de uma glndula sexual masculina artificial, que era um simples tubo metlico que libertava testosterona atravs da virilha durante um certo tempo. Dos quinze presos apenas dois sobreviveram, enquanto os outros treze morreram vtimas de infeces. J em finais de 1943, um agente da Santa Aliana na ocupada Copenhaga informou a Santa S sobre uma possvel experincia que podia eliminar da terra a cruel enfermidade da homossexualidade. O relatrio do servio secreto do Vaticano fazia referncia ao doutor Cari Peter Jensen. No final da guerra, Vaernet foi preso na Dinamarca pelas foras britnicas e a 29 de Maio de 1945 o comandante aliado informava a Associao Mdica Dinamarquesa de que Cari Vaernet seria julgado como criminoso de guerra. No fim desse ano foi entregue pelos ingleses justia dinamarquesa, mas pouco antes do julgamento conseguiu fugir. O caso do mdico que conseguiria acabar com a cruel enfermidade da homossexualidade chegou aos ouvidos do cardeal Eugene Tisserant, que ter ordenado aos servios secretos que ajudassem o eficiente cientista. Mas parece que o antigo mdico das SS se refugiou na embaixada da Argentina ou na nunciatura do Vaticano em Estocolmo. A partir da Suda, e com o auxlio da organizao Odessa, Vaernet encontrou refgio na Argentina. Os argentinos negaram ter conhecimento da chegada de Cari Vaernet ao pas, mas h um documento transcrito pelo jornalista Uki Gora no seu livro The Real Odessa: Smuggling the Nazis to Perons Argentina que demonstra que o mdico dinamarqus das SS entrou no pas e foi aberto registo em seu nome com o nmero 692 e um anexo com o nmero 3480, em que Vaernet solicita a nacionalidade argentina. Uma outra figura envolvida no resgate de nazis foi o coronel do exrcito suo Henri Guisan, filho do general Guisan, comandante-chefe do exrcito suo, acusado de simpatizar com o regime nazi durante a guerra e primo de Stefan Guisan, padre e agente dos servios secretos do Vaticano que acompanhou o cardeal Antnio Caggiano na reunio em Madrid com o ex-capito das SS, Karl Fuldner. Durante a Segunda Guerra Mundial, Guisan relacionou-se com o capito da Waffen-SS Wilhelm Eggen que, como oficial alemo, tinha a incumbncia de comprar madeira na Sua, e por isso contactou com Henri Guisan. Como membro da administrao da companhia madeireira Extroc, Guisan conseguiu a concesso de fornecer madeira para os campos de concentrao de Dachau e Oranienburgo at 1944. Foi Guisan quem apresentou Eggen a Roger Masson, chefe do servio de espionagem suo. Outras fontes asseguram que teria sido outro Guisan, Stefan e no Henri, quem organizou o encontro no castelo de Wolfsburg. No ficou claro se a participao de Guisan era sob as ordens da Santa Aliana ou se por iniciativa prpria. A verdade que, entre 1949 e 1950, Guisan (Henri ou Stefan) contactou com os servios secretos de vrios pases, entre eles os da Argentina, com a inteno de lhes oferecer os servios de cientistas especializados no desenvolvimento de msseis e que tinham trabalhado com Werner von Braun, antigo cientista ao servio dos nazis e depois da guerra um dos fundadores da NASA. Guisan oferecia nada mais nada menos do que os planos das bombas V-3, que tinham substitudo as famosas V-2 com as quais Hitler bombardeara Londres, mas Pern no estava disposto a pagar to caro esse armamento. A informao foi fornecida aos servios secretos do Vaticano, que encontraram na Amrica do Sul um governo disposto a pagar a fuga de vrios cientistas que ficaram detidos no sector russo da Alemanha. Em finais deste ano, a operao do ouro da Crocia estava prestes a cair nas mos dos servios secretos do papa Pio XII e, claro, no podiam deixar que se escapasse por entre os dedos. As investigaes levadas a cabo pelos servios de espionagem militar aliada depois da guerra revelavam que o tesouro saqueado pelos dirigentes ustachis evadidos ascendia a uns oitenta milhes de dlares da poca em moedas de ouro, quase quinhentos quilos de ouro em lingotes, mais uns milhes em diamantes Iapidados e uma quantidade considervel em divisas, principalmente em francos suos dlares norte-americanos. O tesouro ustachi foi transportado em dois camies para a Austria e escoltado por dois antigos agentes da segurana de Ante Pavelic e por trs padres certamente agentes da Santa Aliana. Desse dinheiro uma parte importante foi entregue aos britnicos, que serviu para pagar a libertao de altos dirigentes croatas, como o prprio Poglavnik Ante Pavelic e ainda Stjepan Peric, que foi seu ministro dos Negcios Estrangeiros. Depois de retirar a parte britnica do bolo, restavam ainda uns trezentos e cinquenta quilos de ouro e mil e cem quilates de diamantes. Segundo uma verso, desse tesouro foram levados quase cinquenta quilos de ouro em lingotes, metidos em caixas e transferidos para Roma. Esse carregamento particular seria escoltado pelo padre Krunoslav Draganovic e dois agentes dos servios secretos do Estado do Vaticano. O restante foi enterrado num lugar seguro na fronteira da Austria, mas a cobia era maior do que os sentimentos patriticos dos croatas em fuga. Pavelic ordenou ao general Ante Moskov e a Lovro Ustic, antigo ministro da Economia, que desenterrassem o tesouro e o pusessem a bom recato, num banco suo, mas quando chegaram ao lugar onde devia estar o tesouro este tinha desaparecido. Um relatrio do Corpo de Contra-Espionagem Militar (CIC) norte-americano estacionado em Roma informava: O tesouro, carregado em dois camies, foi colocado sob a proteo do tenente-coronel britnico Johnson. Nos camies iam diversos bens da Igreja Catlica na Zona Britnica da Austria. Os dois camies eram escoltados por vrios padres e pelo coronel. Johnson. Os veculos entraram em Itlia e foram logo para um destino desconhecido. Um outro documento redigido pelo agente Emerson Bigelow, do SSU, uma unidade de espionagem do Departamento de Guerra, e enviado ao Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, explicava: Pavelic levou consigo um total de 350 milhes de francos suos da Crocia, em moedas de ouro. Esse dinheiro procede da espoliao a srvios e judeus para apoiar os ustachis fugidos depois da guerra () O resto, cerca de 200 milhes de francos suos, acabaram nos cofres do Vaticano aps a interveno de um padre chamado Draganovic e outros dois sacerdotes, que possivelmente pertenciam aos servios secretos da Santa S. Outros relatrios da espionagem norte-americana e Departamento do Tesouro asseguravam que uma parte do tesouro ustachi em poder do Vaticano foi desviado para vinte e duas contas em quatro bancos suos. A operao teria sido realizada pelo bispo esloveno Gregory Rozman, um fervoroso anti-semita e criminoso de guerra, protegido pelo papa Pio XII e pela Santa Aliana depois de ter acabado a guerra. Logo a seguir, o governo jugoslavo de Tito pediu reiteradamente a extradio de Gregory Rozman, mas a resistncia da Gr- Bretanha, dos Estados Unidos e, claro, tambm do prprio Vaticano tornou impossvel o seu julgamento. De fato, para os norte-americanos e ingleses era impensvel a entrega de um alto dignitrio da Igreja Catlica a um governo comunista. Para o Vaticano no entrava nos seus planos a entrega de um alto dignitrio que sabia muito sobre as operaes non sancta da administrao papal depois da Segunda Guerra Mundial. Rozman, escoltado por trs agentes da Santa Aliana, viajou para Berna a fim de tomar a seu cargo as finanas, o dinheiro sujo obtido pelo Vaticano, e que serviria para financiar a Operao Convento. Muitos dos evadidos do campo de prisioneiros de Afragola refugiaram-se em San Girolamo, que o principal centro de organizao da fuga de criminosos alemes e croatas para terceiros pases, garante um relatrio dos servios de inteligncia norte-americanos. O apoio de Draganovic dado a esses colaboracionistas croatas vincula-o em definitivo ao plano do Vaticano para proteger esses nacionalistas ex-membros ustachis at ao momento de poderem obter os documentos necessrios que lhes permita ir para a Amrica do Sul. O Vaticano, que sem dvida alguma conta com os fortes sentimentos anti-comunistas desses homens, esfora-se por infiltr-los na Amrica do Sul de qualquer forma para contrariar a difuso da doutrina vermelha, explicava no mesmo documento o agente que tinha a cargo a investigao sobre os movimentos ustachis em San Girolamo. Ante Pavelic, o mais importante dos criminosos de guerra fugidos atravs do Corredor Vaticano, esteve at Maio de 1946 refugiado no Colgio Pio Pontifcio, situado no nmero 3 da Via Gioachino Belli, no bairro romano de Prati. Posteriormente foi transferido para uma pequena casa no complexo de Castelgandolfo, a residncia de Vero dos papas, onde tinha reunies quase semanais com o cardeal Montini, o futuro papa Paulo VI. No ms de Dezembro de 1946, Pavelic refugiou-se em San Girolamo e estava prestes a ser embarcado rumo Argentina a partir do porto de Gnova, escoltado pelos padres Ivan Bucko e Karlo Petranovic, quando a chegada de agentes norte-americanos fez com que o Poglavnik tivesse de voltar ao mosteiro de Santa Sabina para evitar que fosse preso. Em Abril de 1947, um infiltrado da espionagem norte-americana em San Girolamo informou que se perdera o rasto de Pavelic. Em Agosto do mesmo ano, dizia-se que fora organizada uma reunio secreta entre os chefes dos servios secretos britnicos e norte-americanos em Roma e o cardeal Montini. Durante esse encontro, o suposto enviado do papa Pio XII disse aos espies que para o Vaticano, no para o Sumo Pontfice, Ante Pavelic era um catlico militante, mas que se enganou na luta pelo catolicismo e por essa razo estava em contacto com o Vaticano e sob a proteo da Santa S. No se podem esquecer os crimes que cometeu no passado, mas ele s pode ser julgado por croatas que sejam representantes de um governo croata independente. Tornava-se evidente que para o Vaticano, para o papa Pio XII e para a Santa Aliana, Ante Pavelic era culpado do assassnio de cerca de cento e cinquenta mil pessoas, mas tambm Estaline era responsvel pelo assassnio de milhes de pessoas na Ucrnia, na Rssia Branca, na Polnia e no Bltico, e o marechal Tito era o seu agente na. Jugoslvia. Por ltimo, a 11 de Outubro de 1948, o lder dos ustachis dirigiu-se ao porto de Gnova e embarcou no navio Sestriere, num camarote de primeira classe. Levava consigo um passaporte da Cruz Vermelha com o nmero 74, em nome de Pai Aranyos, um engenheiro blgaro. Num relatrio de 1950, a CIA assegurava que o prprio Pavelic ia acompanhado no navio por dois agentes dos servios secretos do Vaticano e que estiveram com Poglavnick nos dois anos seguintes como seus guarda-costas. A organizao do Corredor Vaticano passou por ser uma das maiores operaes secretas de todos os tempos. No existem provas concludentes de que o Corredor Vaticano ou a Operao Convento fosse organizada ou planificada como uma operao unitria e compacta por parte da Santa Aliana, embora existam provas evidentes de que destacados membros da Cria Romana e agentes dos servios secretos do Vaticano participaram em inmeras operaes de evaso de criminosos de guerra para pases seguros e afastados da justia internacional. Dois colaboradores de AIois HudaI, e que tambm ajudaram na fuga de criminosos de guerra nazis, seriam os monsenhores Heinemann e Karl Bayer. No muito apreciado pelos alemes, Heinemann estava incumbido de atender os pedidos dos dirigentes nazis refugiados na igreja de Santa Maria deIlAnima. Karl Bayer, ao contrrio de Heinemann, era muito apreciado pelos nazis procurados. Monsenhor Bayer, quando anos depois foi entrevistado pela escritora Gitta Sereny para o seu livro Mo That Darkness: An Examination of Conscience, recordaria como mais tarde ele e HudaI ajudaram os nazis com a cobertura do Vaticano: O papa (Pio XII) concedia o dinheiro para isso; por vezes a conta- gotas, mas acabava por chegar, afirmaria Bayer. A abertura dos processos da Cruz Vermelha Internacional redigidos durante o ps-guerra encerrou por fim a polmica sobre se os criminosos de guerra nazis e croatas contaram com a ajuda do Vaticano para fugir justia rumo Amrica do Sul, Austrlia, frica do Sul ou ao Canad. A resposta bem clara. Os cardeais Montini, Tisserant e Caggiano definiram as rotas de fuga e alguns bispos e arcebispos como HudaI, Siri e Barrere concretizaram os trmites necessrios para criar documentos e identidades falsas para os criminosos, e ainda certos padres como Draganovic, Heinemann, Dmter, Bucko, Petranovic e muitos outros assinaram pelo seu punho os pedidos para a concesso de passaportes da Cruz Vermelha a criminosos como Josef Mengele, Erich Priebke, Adolf Eichmann, Hans Fischbck, Ante Pavelic ou Klaus Barbie. Em face de todas estas provas e dados resta uma pergunta essencial: Ser que o papa Pio XII sabia da Operao Convento e da organizao Corredor Vaticano Os servios secretos do Vaticano, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum, participaram nos planos de fuga dos criminosos de guena? Segundo os nmeros da Direo de Migraes da Argentina, estima-se que durante o ps-guerra chegaram ao pas cerca de cinco mil croatas. O autor tem provas da interveno de agentes da Santa Aliana em pelo menos cinquenta e quatro operaes de evaso de criminosos de guerra nazis e croatas. Por motivos de espao, foram selecionadas apenas algumas delas e includas neste livro. Dos quais dois mil entraram a partir de Hamburgo, outros dois mil a partir de Munique e cerca de mil a partir de Itlia, ou mais exatamente a partir do Vaticano. Num relatrio do Foreign Office que foi depois desclassificado, o especialista em assuntos sul-americanos Victor Perowne escreve: As atividades do clero catlico para continuar a proteger os refugiados jugoslavos a emigrar para a Amrica do Sul podem considerar-se humanitrias ou politicamente sinistras, conforme se encare a situao. Creio que existem muitos dirigentes fascistas de menor importncia refugiados em San Paolo fuori le Mura (extramuros de So Paulo) e no impossvel que alguns criminosos de guerra jugoslavos se tenham refugiado em San Girolamo, porque no seria nada de estranho. E improvvel que o Vaticano aprove as atividades polticas, to contrrias s religiosas, do padre Draganovic e companhia, na medida em que possam derivar umas das outras, porque se trata de uma situao em que quase impossvel separar a poltica da religio. Assim, embora no possamos condenar a atitude caritativa da Igreja Catlica para com os pecadores individuais, pensamos que existem abundantes provas de que o Vaticano permitiu, de forma encoberta ou abertamente, que se ajudasse os membros da Ustachia. Existe apenas um relatrio que revela a posio da Santa Aliana no caso da Operao Convento, do Corredor Vaticano e do padre Krunoslav Draganovic. Segundo um relatrio da CIA, datado de 24 de. Julho de 1952, o cardeal Pietro Fumasoni-Biondi, chefe da Santa Aliana, tambm estava ao corrente das operaes do padre Draganovic e ainda dos acontecimentos que envolviam San Girolamo. Fumasoni-Biondi estava bastante desgostoso com a Irmandade, a organizao de auxlio que Draganovic dirigia. Em 1952, e apesar da proibio expressa do chefe da Santa Aliana em conceder mais vistos a alemes e croatas, o padre Krunoslav Draganovic continuava a ajudar os criminosos de guerra. Ao longo dos anos que durou a Operao Convento, o cardeal Pietro Fumasoni-Biondi esteve informado de tudo quanto se passava no Corredor Vaticano graas ao padre franciscano Dominic Mandic, agente da contra- espionagem vaticana. Mandic trabalhava em San Girolamo no sector grfico e dedicava-se a imprimir os documentos falsos para os criminosos de guerra protegidos por Draganovic. Mas a situao mudaria consideravelmente quando a 6 de Outubro de 1958, e na altura em que se encontrava em Castelgandolfo, o papa Pio XII sofreu uma trombose cerebral. Nessa noite foram-lhe administrados os ltimos sacramentos e, aps uma demorada agonia, o Sumo Pontfice, um dos homens que mais segredos conhecia da Igreja Catlica, muitos dos quais gerados por si mesmo, morria meia-noite do dia 9 de Outubro, com oitenta e dois anos. Os restos mortais foram sepultados nas grutas vaticanas, na capela de Madona della Bocciata. Os dias de glria de Krunoslav Draganovic acabaram poucos dias depois da morte do papa Pio XII. Em Outubro de 1958, a CIA soube que o padre tinha sido expulso sem contemplaes e sem o deixarem levar absolutamente nada da sua parquia de San Girolamo, por ordem expressa da Secretaria de Estado do Vaticano. A ordem foi executada por cinco agentes da Santa Aliana, dirigidos pelo padre Nicols Estorzi, o Mensageiro, cumprindo as ordens estritas do cardeal Pietro Fumasoni-Biondi, chefe da Santa Aliana. Krunoslav Draganovic, ao perder todos os poderes no Vaticano, perdeu ainda, em 1962, os favores das agncias de espionagem ocidentais, como a CIA e o M16, por razes de segurana. O relatrio da CIA mostra que Draganovic, alis Bloody Draganovic, Dr. Fabiano ou Dynamo, incontrolvel e muito conhecedor do pessoal da diviso e da sua prpria atividade. Exige ao mesmo tempo exorbitantes tributos e a ajuda norte-americana para as organizaes croatas como forma de pagamento pela sua cooperao. Ao tornar-se num repudiado para os Estados Unidos e para o Vaticano, Draganovic decidiu em 1967 atravessar a fronteira e regressar Jugoslvia, onde se dedicou a espalhar mensagens em favor de Tito. Existem indcios de o padre Draganovic ter sido sequestrado por agentes da espionagem jugoslava. Krunoslav Draganovic morreu em. Julho de 1983 na mais absoluta misria, levando para a cova um dos maiores segredos respeitantes ao Estado do Vaticano, isto , as perigosas relaes entre os criminosos de guerra nazis e croatas e os servios secretos da Santa S, bem como as cumplicidades da Operao Convento dentro do chamado Corredor Vaticano. A chegada de um novo papa traria uma verdadeira lufada de ar fresco ou, como diria Allen Dulles, ento diretor da CIA, a eleio do novo papa trar uma corrente de ar puro aos anquilosados palcios vaticanos e isso ajudar a eliminar o ar putrefato em que se movimentou a anterior administrao papal. Talvez esta afirmao estivesse certa. A 25 de Outubro de 1958 comeou o novo conclave, do qual sairia eleito o cardeal Angelo Giuseppe Roncalli. O recm- eleito Sumo Pontfice, de setenta e sete anos, adotaria o nome de Joo XXIII. Abria-se assim no Vaticano uma fase de breve otimismo. Para a Santa Aliana chegavam anos de tranquilidade dentro de um pontificado mais interessado com as questes da alma e do esprito do que com as polticas terrenas.
17
As novas alianas (1958-1976)
Depois o vento muda de rumo e passa, faz o mal, ele, cujo deus a fora. Habacuc 1,11
Durante os quatro anos, sete meses e seis dias em que Joo XXIII governou a Igreja de Roma, a Santa Aliana viveu um grande perodo de inatividade. O papa estava mais ocupado em receber em audincia Raisa, filha do dirigente sovitico Nikita Kruschev, e em preparar o que seria o revolucionrio Conclio Vaticano II do que preocupar-se com as questes mais terrenas e polticas que ocorriam do outro lado da Cortina de Ferro. A Santa Aliana procurava colocar agentes nos pases da Europa de Leste face ao avano cada vez maior do comunismo e em plena conflagrao da Guerra Fria, mas por sua vez o Sodalitium Pianum empenhava-se na intensa vigilncia de personalidades da Cria Romana e dos respectivos departamentos que deveriam encarregar-se de pr em movimento o chamado Conclio Vaticano Il. Mesmo depois da morte, a 12 de Julho de 1960, do cardeal Pietro Fumasoni- Biondi, responsvel pelos servios secretos vaticanos desde o pontificado de Pio XII, o Sumo Pontfice Joo XXIII decidiu no nomear um substituto. O papa era partidrio de abrir ao Mundo as portas do Vaticano e isso impunha o fim das operaes secretas dos seus servios de espionagem. Em finais de 1962, Joo XXIII sofreu uma forte hemorragia, que foi um primeiro sinal da grave doena que o atormentava. A 17 de Maio de 1963 agravaram-se os males do Santo Padre, que o levou a ficar de cama. Em finais de Maio, conheceu algumas melhoras, mas noite o papa sofreu uma peritonite. A 3 de Junho, Joo XXIII morria e deixava vazio o trono de So Pedro e de novo o conclave voltaria a reunir-se, pela sexta vez no sculo, para eleger um sucessor. 323 Dias antes de participarem no conclave, os cardeais liderados por Giacomo Lercaro, de Bolonha, reuniram-se na Villa Grottaferrata, uma propriedade de Umberto Ortolani. Protegidos pela noite e pelos agentes da Santa Aliana que deviam custodiar os cardeais antes da reunio em que escolheriam o novo papa, foi decidido qual o nome do cardeal em quem deviam votar. O escolhido foi Giovarmi Battista Montini, arcebispo de Milo, a quem j tinham informado dessa reunio na casa do clebre membro da Maonaria. O conclave comeou na tarde de 19 de Junho de 1963. Dois dias mais tarde, e quinta votao, foi eleito papa o cardeal Giovarmi Battista Montini, de sessenta e cinco anos, que adotaria o nome de Paulo VI. A coroao teria lugar nove dias depois e a primeira deciso do novo papa foi recompensar a hospitalidade do manico Ortoiani e nome-lo como Cavaleiro de Sua Santidade. Aquele que ajudara Krunosiav Draganovic a criar o chamado Corredor Vaticano e um dos mais altos dignitrios da Cria Romana implicado na Operao Convento, que facilitou a fuga de criminosos de guerra nazis e croatas aps a Segunda Guerra Mundial, era agora o novo Sumo Pontfice. Os servios secretos do Vaticano, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum voltariam a atuar em fora e renasciam das cinzas. Nesse sentido, Paulo VI deixaria nas mos de um simples sacerdote esta dura tarefa: o seu nome era Pasquale Macchi. O novo homem de confiana do Sumo Pontfice conheceu o ainda cardeal Montini quando este assumiu o arcebispado de Milo. Macchi tornou-se no seu secretrio particular, mas tambm na sua melhor fonte de informao. Depois de ser eleito papa, Paulo VI colocava nas mos de Macchi um dos aparelhos de informao mais poderosos, a Santa Aliana, quando estava prestes a cumprir quatro sculos de existncia desde que fora criada por ordem do inquisidor-geral, cardeal Miguel Ghislieri, que foi depois o papa Pio V. Existem informaes que apresentam Macchi como o principal dirigente dos servios de espionagem do Estado do Vaticano, embora outras revelem que Pasquale Macchi no chegou nunca a dirigir a Santa Aliana e no passava de um simples e humilde elo de filtragem entre o Sumo Pontfice e o cardeal responsvel dos servios de espionagem. Os pouco mais de quinze anos de pontificado de Paulo VI seriam dos mais frutuosos nas operaes da Santa Aliana. Nomes como Michele Sindona, Roberto Calvi, Paul Marcinkus, Carlos O Chacal, Setembro Negro, Golda Meir ou o Mossad sero alguns dos nomes com que se dever enfrentar a espionagem da Santa S, mas o inimigo no estar s no exterior do Vaticano, mas tambm no seu interior, como no caso da Maonaria. Uma das operaes mais espetaculares da contra-espionagem do Vaticano, o Sodalitium Pianum, ocorreria nos primeiros anos do governo de Paulo VI. E evidente que o Estado do Vaticano era do maior interesse para Moscovo e para o KGB e os servios de espionagem soviticos conseguiram infiltrar um bufo nas mais altas esferas da Cria Romana, justamente ao lado do prprio Sumo Pontfice. Alighiero Tondi frequentara o seminrio na Ordem dos Jesutas e pela sua eficincia depressa se converteu no secretrio e moo de cmara de monsenhor Montini que, quando foi eleito papa e se mudou de Milo para o Vaticano, Ievara Tondi consigo. De fato, o jesuta Tondi era um agente encoberto do KGB dentro do Vaticano e talvez tambm um dos mais ativos. Uma vez concludo o seminrio em 1936, Tondi dedicou-se a colaborar em editoriais catlicos, onde teve contactos com grupos comunistas e chegou a ser escolhido pelo Partido Comunista italiano para fazer um curso na Universidade Lenine de Moscovo, onde foi recrutado pela espionagem sovitica para operar dentro do Vaticano. Como agente sovitico comeou a atuar em finais de 1944, denunciando todos os padres do Russicum que eram enviados de forma clandestina para a Unio Sovitica em misso evangelizadora. A Santa Aliana pensa que Alighiero Tondi denunciou ao KGB cerca de uns duzentos e cinquenta membros do Russicum, muitos dos quais acabariam os seus dias nos gulags soviticos ou seriam executados por acusao de espionagem contra a Unio Sovitica. Em 1967, um agente do Sodalitium Pianum informou que Tondi tinha sido visto num caf de Roma com um indivduo identificado pela Santa Aliana como suposto agente do KGB colocado na embaixada sovitica em Roma. A partir desse momento, o padre Alighiero Tondi foi posto sob vigilncia da contra- espionagem sem que o papa Paulo VI fosse avisado. Na verdade, a Santa Aliana desejava saber qual o grau de penetrao de Ondi na segurana do Vaticano. Por fim, numa noite de 1968, a contra-espionagem recebeu um aviso de que o secretrio de Sua Santidade pediu para ter acesso a uns documentos depositados no Arquivo Secreto. De imediato, foi sugerido ao cardeal Eugene Tisserant, responsvel pelo Arquivo, que se ganhasse tempo at chegada dos agentes da Santa Aliana. A pasta pedida por Alighiero Tondi era aquela que inclua as comunicaes do prprio papa Paulo VI s suas nunciaturas e Iegaes nos pases da Europa de Leste, isto , do outro lado da Cortina de Ferro. Se Tondi tivesse acesso a essas comunicaes, a cobertura e a segurana de vrios agentes da Santa Aliana na Hungria, na Polnia, na Checoslovquia e na Romnia teria ficado a descoberto. Tondi disse aos agentes da contra-espionagem que os arquivos em questo tinham sido pedidos pelo prprio papa e que, por se tratar de uma ordem pontifcia, apenas responderia perante o papa Paulo VI. O jesuta foi levado para um gabinete escoltado por dois agentes da segurana do Vaticano at manh do dia seguinte. A primeira chamada foi recebida pelo cardeal secretrio de Estado, Amleto Giovanni Cicognani. O chefe da Santa Aliana informou o cardeal de que prenderam o secretrio papal suspeito de realizar tarefas de espionagem para a Unio Sovitica, dentro do Vaticano. Logo a seguir, o prprio Cicognani informaria o Santo Padre com a recomendao de entregar Tondi polcia italiana para ser julgado. Mas o servio de espionagem pontifcio aconselhou Paulo VI que seria melhor passar ao lado e expulsar Tondi do Vaticano sem mais explicaes e com a condio de que nunca mais regressasse. Nessa mesma noite, e com o que levava vestido, Alighiero Tondi, secretrio do papa Paulo VI e agente do KGB no Vaticano durante os ltimos vinte e quatro anos, foi acompanhado por uma escolta da Guarda Sua at linha fronteiria italo-vaticana e da partiu para a Rssia, onde se tornou assessor para os assuntos da Igreja do dirigente da Unio Sovitica Lenidas Brejnev. Mas as infiltraes no Vaticano no eram s realizadas por parte dos soviticos, mas tambm pela Maonaria. Desde finais de 1968, a contra-espionagem vaticana passou a investigar vrios membros da Cria Romana em busca de possveis infiltraes por parte dos manicos. A investigao alargou-se at incios de 1971, quando o responsvel do Sodalitium Pianum foi chamado presena do papa Paulo VI, que estava interessado em conhecer os pormenores da investigao. O chefe do S. P. apresentou ao Sumo Pontfice um grosso dossier com os nomes, datas e lugares em que se mostravam todas as ligaes da Maonaria nos vrios departamentos do Estado do Vaticano. Os manicos da Cria sabiam que deviam estar onde a Histria palpita, como disse o escritor Cesare Pavese, e seguindo a clara palavra de ordem de acreditar o menos possvel, sem chegara ser herege, para obedecer o menos possvel, sem chegar a ser rebelde. O relatrio da contra-espionagem papal colocava em evidncia os tentculos do polvo manico nos diversos palcios do Vaticano. Tinham j passado muitos anos e muitos papas desde que Clemente XII (12-VII-1730/8-II-1740), atravs de uma bula, declarou a excomunho para todos os manicos at que a 19 de Outubro de 1974 o padre jesuta Giovanni Caprile tranquilizava os catlicos filiados na Maonaria num artigo da revista Civilit Cattolica. De fato, desde a chegada de Montini ao trono de So Pedro, os manicos tinham-se espalhado pelos corredores do Vaticano e o mais importante deles era o banqueiro Michele Sindona, que o papa nomeou como assessor financeiro. Poucos anos depois, Paulo VI entregaria o poder do IOR8 aos manicos Sidona, Roberto Calvi, Lido Geili e Umberto Ortolani. O prprio papa pediu ao chefe da contra-espionagem que pusesse termo investigao sobre a Maonaria no Vaticano e ordenou que o relatrio fosse depositado no Arquivo Secreto. Anos depois, em 1987, o jornalista Pier Carpi defendeu a tese de que um elevado nmero de cardeais e bispos pertenciam loja manica Propaganda 2 ou P-29 e definia-a como a Loggia Ecclesia estreitamente ligada Loja Unida da Inglaterra e ao seu gro-mestre, Michael, duque de Kent. Um outro relatrio aparecido na imprensa O dizia que a Maonaria dividiu o Vaticano em oito sees em que atuam quatro lojas manicas de rito escocs, cujos adeptos, altos funcionrios do pequeno Estado do Vaticano, lhe pertencem com carcter independente e ao que parece no se conhecem entre si, nem mesmo por um sinal do polegar. A verdade que desde 1971, quando Paulo VI ordenara que a investigao do S. P. contra a Maonaria fosse concluda, nunca mais se voltou a pesquisar dentro dos muros vaticanos. Na lista de ilustres manicos do Vaticano que dirigiram o Sodalitium Pianutn figuravam cardeais como Augustini Bea, secretrio de Estado no pontificado de Joo XXIII e Paulo VI; Sebastiano Baggio, prefeito da Sagrada Congregao dos Bispos; Agostino Casaroli, secretrio de Estado durante o pontificado do papa Joo Paulo Il; Achille Lienart, arcebispo de Lille; Pascuale Macchi, secretrio particular do papa Paulo VI; Salvatore Pappalardo, arcebispo de Palermo; Michele Pellegrino, arcebispo de Turim; Ugo Poletti, vigrio da diocese de Roma; ou ainda Jean Villot, secretrio de Estado do papa Paulo VI. O famoso dossier elaborado pelos agentes da contra-espionagem sobre os tentculos manicos na Cria Romana ficou enterrado nos Arquivos Secretos Vaticanos. Em comeos de Janeiro de 1974, o Sumo Pontfice ordenou aos responsveis da Santa Aliana e ao Sodalitium Pianum que se reunissem com ele na sua sala de jantar privada. Ningum soube o que ali se disse nem o sentido da conversa, mas a verdade que durante essa reunio o papa Paulo VI pediu aos responsveis dos seus servios de espionagem a entrada em ao da chamada Operao Nessun Dorma (que ningum durma), que consistia na redao de um amplo relatrio que pudesse evidenciar no s as carncias e necessidades de todos os departamentos vaticanos, mas recolhesse tambm as denncias de corrupo praticadas pelos funcionrios do Vaticano. Embora essa investigao corresse a cargo da Santa Aliana, a redao do relatrio final foi confiada ao arcebispo Edouard Gagnon e a monsenhor Istvan Mester, responsvel pela Congregao para o Clero. Durante meses, os agentes da Santa Aliana percorreram muitos e muitos quilmetros pelos corredores a perguntar e a interrogar todos os funcionrios dos diferentes departamentos papais. Em poucas semanas os espies do papa tinham centenas de denncias de irregularidades e delitos cometidos por bispos e cardeais nos seus servios. Por ltimo, o presidente da comisso, monsenhor Gagnon, passou trs meses a colocar em ordem todo o material recolhido pela Santa Aliana. O volumoso relatrio que punha a descoberto as atividades secretas da Cria era guardado todas as noites por agentes da Santa Aliana e do S. R, mas outras foras ocultas no estavam dispostas a que esse relatrio chegasse s mos do papa Paulo VI. Uma vez terminada a redao do relatrio, que recebeu o mesmo ttulo da operao da Santa Aliana, Nessun Dorma, monsenhor Gagnon, atravs da Secretaria de Estado, pediu para ser recebido pelo Santo Padre. Gagnon desejava expor pessoalmente a Paulo VI o que fora descoberto pelos agentes da Santa Aliana. Mas passaram algumas semanas sem que o responsvel de Nessun Dorma recebesse uma resposta ao seu pedido de audincia. Por ltimo, foi-lhe comunicado pela prpria Secretaria de Estado que, pela delicadeza do assunto, esse dossier devia ser entregue guarda da Congregao para o Clero, dirigida pelo cardeal John Joseph Wrigth, e ali devia ficar protegido por monsenhor lstvan Mester at que Gagnon fosse chamado presena do papa. O dossier foi depositado numa arca com fechos metlicos numa das salas da Congregatio pro Clericis. Na manh de 2 de Junho de 1974, monsenhor Mester abriu a porta e descobriu que alguma coisa tinha ocorrido l dentro, com livros espalhados pelo cho, papis soltos e caixas abertas. Chamou monsenhor Edouard Gagnon e este por sua vez chamou os responsveis da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum. Quando chegaram sala, Mester estava de joelhos diante da arca em que na tarde de 30 de Maio tinha depositado o dossier Nessun Dorma. Os fechos foram arrancados e o dossier da investigao levada a cabo no estava l dentro. A contra-espionagem descobriu que os ladres tinham a chave das portas das salas em que estava instalada a Congregao para o Clero, dado que as fechaduras no foram foradas. Os ladres tiveram o sbado 31 de Maio e o domingo 1 de Junho para consumarem o roubo. Informado o papa Paulo VI do assalto, o Sumo Pontfice ordenou a todas as pessoas relacionadas com o caso, incluindo mesmo os agentes do servio de espionagem envolvidos na investigao, que se colocassem sob Segredo Pontifcio. Monsenhor Gagnon informou a Secretaria de Estado de que estava disposto a redigir um novo relatrio, mas de forma misteriosa -lhe ordenado, sempre sob Segredo Pontifcio, que entregue as suas notas na Secretaria e abandone essa tarefa at novas ordens. De modo pouco compreensvel foi pedido a Camillo Cibin, chefe do Corpo de Vigilncia, que dirigisse o inqurito para descobrir os culpados pelo roubo, deixando de lado os servios secretos, que tinham recolhido toda a informao de Nessun Dorma. Cibin devia apenas informar a Secretaria de Estado sem referenciar nenhuma das atuaes levadas a cabo durante a investigao. O papa ordenou que o assunto permanecesse no mais absoluto segredo, mas os rumores sobre um possvel roubo de um dossier secreto comearam a espalhar-se, mesmo fora do Vaticano. A 3 de Junho, a imprensa deu a notcia de que alguns larpios foraram uma sala de segurana no interior do Vaticano e especulava-se sobre o desaparecimento de um relatrio elaborado por incumbncia directa do prprio papa. O doutor Federico Alessandrini, porta-voz do Vaticano, no sabia como sair do imbrglio em face da insistncia dos jornalistas. Por ltimo, Ubsservatore Romano, rgo oficial da Santa S, acabou por dar a notcia do roubo: Tratou-se de um roubo autntico e vergonhoso. Ladres desconhecidos penetraram no gabinete do prelado e roubaram papis e documentos guardados numa arca-forte com fechos duplos. Um verdadeiro escndalo, dizia o artigo. Nos dias que se seguiram, catorze membros da Cria que tinham falado com os agentes da Santa Aliana e fornecido dados de corrupo em diferentes departamentos foram expulsos do Vaticano, enquanto outros cinco foram mandados para frica em misso evangelizadora. Apesar de no voltarem a pedir a monsenhor Gagnon a redao de um novo relatrio, o religioso preparou um outro similar ao roubado. Uma vez concluda a sua redao em segredo, pediu novamente para ser recebido pelo papa Paulo VI, mas uma vez mais o pedido foi recusado. Gagnon solicitou ento Secretaria de Estado que fizesse chegar o seu relatrio ao Santo Padre, mas aquele tambm no chegou ao seu destino. Algum na Secretaria informou o papa de que era impossvel localizar o relatrio Nessun Dorma. A conspirao, segundo os rumores, apontava o cardeal Jean Villot, ex-secretrio de Estado e antigo cardeal camariengo da Cmara Apostlica, que dentro do Vaticano era mais conhecido como o Vice-papa. Por fim, monsenhor Edouard Gagnon pediu para abandonar a Santa S e regressar ao seu pas, o Canad, com a inteno de se jubilar. O papa Joo Paulo ll havia novamente de o chamar para Roma em 1983 e elevou-o ao cardinalato a 25 de Maio de 1985. Pelos corredores do Vaticano nunca mais se voltou a falar da Operao Nessun Dorma e nenhum papa voltaria a exigir Santa Aliana e ao Sodalitium Pianum uma investigao semelhante. Os servios secretos do Vaticano atuariam sempre com toda a fora no papado de Paulo VI contra novos inimigos, como era ento o chamado Setembro Negro. A Operao Jerusalm, para a Santa Aliana, e a Operao Diamante, para o Mossadf 5, demonstrariam a conivncia entre os dois servios de espionagem, numa colaborao que daria frutos poucos anos depois quando o Mossad, em plena guerra contra o Setembro Negro pelo assassnio dos atletas israelitas nos Jogos Olmpicos de Munique 72, deu a conhecer uma operao para sequestrar ou assassinar Paulo VI. Em finais do Outono de 1972, a primeira-ministra israelita, Golda Meir, recebeu uma comunicao secreta do papa Paulo VI em que lhe dizia que estava disposto a receb-la em breve numa audincia privada. A 11 de Dezembro desse ano, Meir reuniu-se com o seu gabinete e com Zvi Zamir, o memuneh do Mossad, para lhe pedir um conselho sobre a reunio com o Sumo Pontfice e as medidas de segurana que deviam ser adotadas. Meir tinha presente, e isso mesmo disse a Zamir, que no queria ir a Canossa, um dito popular israelita que faz uma referncia ao castelo italiano onde o imperador Henrique IV do Sacro Imprio se humilhou ao apresentar-se como um penitente diante do papa Gregrio VII no ano de 1077. Golda Meir era demasiado orgulhosa para isso. Atravs da Santa Aliana e do Ministrio dos Negcios Estrangeiros de Israel, e pela Secretaria de Estado do Vaticano, Zamir soube que 15 de Janeiro de 1973 fora a data escolhida para o encontro com o papa. O cardeal Jean Villot informou que a audincia se prolongaria por trinta e cinco minutos, depois trocar-se-iam presentes e em nenhum momento a reunio entre o papa Paulo VI e Golda Meir seria regida por uma agenda especfica, o que significava que qualquer assunto podia ser tratado pelas duas partes. Por razes de segurana, a vigilncia e controle do encontro ficaria nas mos do Mossad, dirigido por Zamir e pela Santa Aliana, mas nem antes nem depois, sob qualquer pretexto, se faria um anncio pblico do encontro entre os dois dignitrios. Segundo o plano, Meir devia voar para Paris durante os dias 13 e 14 de Janeiro para assistir conferncia da Internacional Socialista e dali para Roma, num avio alugado por El Al, sem emblemas. Apenas durante o voo que os acompanhantes de Golda Meir foram informados do destino final. Aps o encontro com o papa, Meir viajaria para a Costa do Marfim a fim de se reunir durante dois dias com o presidente Flix Houhouiet-Boigny, e da regressaria a Israel. Zamir viajou uma semana antes para Roma a fim de preparar as medidas de segurana e estabelecer um fio condutor com os agentes da Santa Aliana. Para o memuneh, a Cidade Eterna era um cenrio possvel para sofrer um golpe de terroristas rabes. Desde o ataque delegao israelita nos Jogos Olmpicos de Munique, no ano anterior, por parte do grupo Setembro Negro, a capital italiana convertera-se numa cidade de encontro de terroristas de qualquer faco caa de uma boa informao e de traficantes de armas procura de um bom cliente. Os elementos de ligao entre o Mossad e a Santa Aliana eram Mark Hessner, pela parte israelita, e o padre Cario Jacobini, por parte da Santa Aliana. A Hessner juntar-se-ia Shai Kauly, o katsa responsvel pela delegao de Milo. Num encontro secreto, Jacobini, Kauly e Hessner foram postos ao corrente por Zvi Zamir de todos os pormenores da viagem de Golda Meir para o encontro com Paulo VI. Era evidente que nenhuma informao podia ser filtrada se desejavam evitar um possvel atentado contra a dirigente de Israel. Um dia depois a contra-espionagem do Vaticano, o Sodalitium Pianum, informou Jacobini de que algum, certamente qualquer sacerdote auxiliar da Secretaria de Estado, tinha dado uma informao sobre Meira um contado em Roma conhecido pelas suas relaes com extremistas rabes. O agente da Santa Aliana avisou disso Zamir, que telefonou pessoalmente a Golda Meir para tentar convenc-la de que talvez fosse aconselhvel anular a visita a Paulo VI. Conhecendo a primeira-ministra como conhecia, soube de seguida que uma simples ameaa no a faria demover na inteno de conseguir um reconhecimento de Israel por parte do Vaticano, embora tivesse de assumir o risco de um atentado por parte dos terroristas rabes. A nica resposta de Golda Meira Zamir foi esta: Memuneh, o seu trabalho evitar qualquer golpe. Israel no pode parar em face de uma ameaa. Para a segurana dessa reunio, o Vaticano escolheu um outro experimentado sacerdote em matria de contra-espionagem que pertencia ao Sodalitium Pianum, o padre Angelo Casoni, e foi ele quem descobriu que a informao da viagem clandestina de Golda Meir para se encontrar com o papa Paulo VI no Vaticano podia ter chegado s mos de Abu Yusuf. Cario Jacobini, da Santa Aliana, e Zvi Zamir, do Mossad, sabiam que mais tarde ou mais cedo qualquer grupo terrorista apareceria em cena. De fato, Yussuf enviou uma comunicao a Ali Hassan Salameh, o Prncipe Vermelho, primeiro responsvel do grupo terrorista palestino Setembro Negro e o crebro da operao contra os atletas israelitas em Munique. O texto do comunicado dizia assim: Acabemos com aquela que est a derramar o nosso sangue por toda a Europa 18.0 modo e o lugar exato do atentado contra Golda Meir dependia exclusivamente de Salameh. Enquanto para o Prncipe Vermelho o assassnio de Golda Meir seria um golpe de grande efeito na luta contra os israelitas, para Yussuf supunha uma ocasio espetacular para demonstrar ao Mundo que o Setembro Negro continuava a ser um poderoso grupo terrorista que devia ser tido em conta. Assassinar a lder israelita no Vaticano colocaria o seu grupo nas primeiras pginas de todos os jornais. A 10 de Janeiro, cinco dias antes da reunio, o memuneh Zvi Zamir e os katsas Mark Hessner e Shai Kauly foram conduzidos num carro preto pelas ruas de Roma no sentido do Vaticano. Os guardas suos de servio na entrada perfiIaram-se enquanto o carro entrava no interior da zona administrativa da Santa S. Quando desceram do carro, o padre Cario Jacobini estava sua espera. Amir sabia, atravs do relatrio que tinha em seu poder sobre Jacobini, que este padre fora educado nos Estados Unidos e que conseguiu a sua experincia nos servios secretos atravs de vrios cursos em Langley, o quartel-general da CIA no Estado de Virgnia. O agente da Santa Aliana falava seis lnguas fluentemente e dentro do Vaticano era considerado um verdadeiro nobre por causa da relao familiar com o cardeal Domenico Maria Jacobini, o cardeal Ludovico Jacobini, secretrio de Estado do papa Leo XIII, e o cardeal Angelo. Jacobini. Sem qualquer dvida, Zvi Zamir sabia que o jovem Cario era um bom contacto para se orientar nos intrincados corredores do Vaticano e sobretudo depois da perda de confiana da Santa Aliana em relao CIA. Este texto seria tornado pblico depois da invaso do Lbano por parte das Foras de Defesa israelitas em 1982. Urna unidade israelita encontrou este documento num quartel da OLP, ao sul do Lbano. Nada se sabe do encontro secreto levado a cabo no Vaticano entre o Mossad e a Santa Aliana, nem sequer qual o assunto tratado, mas a verdade que seguramente Zamir saiu satisfeito. Ao atravessar a praa de So Pedro, o memuneh disse ao motorista que o levasse ao aeroporto para apanhar um avio para Telavive. No Instituto, nome pelo qual se conhece o servio de inteligncia israelita, sabia-se, atravs do padre Angelo Casoni, que Ali Hassan Salameh fora informado da viagem de Golda Meira Roma, e que deviam estar preparados para qualquer atentado. Os grupos terroristas mantinham uma especial relao com o KGB. Em Moscovo eram doutrinados politicamente e treinados para assassinar e preparar explosivos, que depois colocavam em centros comerciais ou nos concorridos terminais de aeroportos. Tanto o Mossad como a Santa Aliana sabiam que no poderiam contar com o KGB para detectar os terroristas do Setembro Negro que desejavam atentar contra Golda Meir. Se queriam evitar o ataque, deviam eles prprios lutar contra o tempo. Os soviticos no revelariam que os homens de Hassan Salameh dispunham de msseis de fabrico russo escondidos numa nave industrial num porto da Jugoslvia. O plano consistia em embarcar os msseis num barco de pesca no porto de Dubrovnik at ao porto de Bari, na zona italiana do Adritico. Num camio, seriam dali transportados para Roma espera da chegada de Golda Meir. Zvi Zamir e o padre Cario. Jacobini continuavam a trabalhar juntos para descobrir quando e como seria feito o ataque, mas apenas lhes restava esperar. O golpe contra Israel aconteceria a 28 de Dezembro de 1972, quando um comando Setembro Negro assaltou a embaixada de Israel em Ban-guecoque. Salameh desejava que o Mossad desviasse os olhos para outro lado e nada melhor do que preparar ento um ataque a uma Iegao diplomtica judaica. Angelo Casoni, da contra-espionagem vaticana, disse que uma das suas fontes lhe indicara que o assalto por parte do Setembro Negro embaixada de Israel na Tailndia no era mais do que uma forma de desviar a ateno da opinio pblica. Jacobini no acreditava nisso, mas Zamir sim. O Mossad sabia que podiam libertar os refns atravs de um assalto por parte de comandos israelitas e Golda Meir no permitiria sequer que os tailandeses entrassem aos tiros na Iegao. Por fim, e aps algumas horas de negociaes, foram concedidos aos assaltantes salvo-condutos para sarem do pas rumo ao Cairo. Cario Jacobini recomendou que se no baixasse a guarda sobre a possibilidade de sofrer um ataque em solo vaticano contra a poltica israelita. Nas primeiras horas de 14 de. Janeiro, um dia antes do encontro do papa Paulo VI com Golda Meir, um agente da contra-espionagem disse a Angelo Casoni que um informador o avisara de que se falava de qualquer operao por parte de guerrilheiros palestinianos em Ostia ou Bari. Ao mesmo tempo, um sayan avisou a delegao do Mossad na embaixada de Israel na Itlia de que tinha ouvido uma conversa em que um tipo com claro sotaque rabe assegurava a outro, com o mesmo sotaque, que em breve receberia um carregamento de velas. Ao mesmo tempo, a delegao do Mossad em Londres comunicava a Zvi Zamir que um informador lhes disse que o objetivo do Setembro Negro era um dos seus. O chefe do Mossad estava seguro de que as velas a que se referia o seu contacto no eram seno os msseis, mas Zvi Zamir tinha a certeza de que tanto Golda Meir como o papa Paulo VI no anulariam o encontro. Zamir telefonou a Hessner e KauIy e pediu uma reunio com os padres Jacobini e Casoni. Os servios secretos do Vaticano deviam ser informados de cada passo da operao e certo que a Santa Aliana tinha melhores fontes na cidade de Roma do que os servios secretos israelitas. Ali Hassan Salameh, alis Abu Hassan ou Prncipe Vermelho, era um homem culto, enrgico e cruel. Diz-se que matou o seu meio-irmo com um tiro na cara quando descobriu que ele dava informaes Al Fatah, a seco da OLP que apoiava Yasser Arafat22. Salameh estava casado como uma bela libanesa, Georgina Rizak, que tinha sido Miss Universo em 1971. Segundo o Mossad, o Prncipe Vermelho estava por detrs da tentativa de assassnio de Golda Meir, mas para a Santa Aliana era difcil que o terrorista palestiniano se movimentasse em Roma sem que eles o soubessem. O dia em que devia dar-se o encontro, 15 de. Janeiro, amanheceu chuvoso e frio. O Mossad, a Santa Aliana e os digos, a unidade antiterrorista italiana, encontravam-se em estado de alerta mximo. O padre Carlos. Jacobini estava certo de que o Setembro Negro no permitiria que Golda Meir sasse viva de Roma e disso mesmo informou o papa Paulo VI. Zamir e Jacobini sabiam que se o ataque fosse com msseis, o nico lugar seguro para o fazer era nas imediaes do aeroporto e, claro, quando o avio estivesse a aterrar ou a descolar. Tanto o Mossad como a Santa Aliana deslocaram agentes para o aeroporto e nas suas cercanias para controlar qualquer movimento suspeito. Michael Bae-Zohar e Eitan Haber, The Questfor the Red Prince, William Morrow, Nova Iorque, 1983. O primeiro sinal de alerta soou quando faltavam poucas horas para a chegada de Golda Meir. Quando vigiava em redor das instalaes, um agente do Sodalitium Pianum avisou o padre Angelo Casoni de que viu uma carrinha junto de uma pista e que se tinha aproximado para perguntar se precisavam de ajuda. Os homens responderam muito nervosos que j tinham chamado uma grua. Casoni avisou Zamir e Hessner por rdio, que se dirigiram para o local e ao chegarem descobriram uma carrinha Fiat. Armados, pediram ao condutor que sasse do veculo para se identificar, enquanto eram observados a uma prudente distncia por Cario. Jacobini, dos servios secretos papais. Nesse instante, o porto traseiro abriu-se e comeou uma chuva de disparos. Os agentes do Mossad conseguiram sair ilesos, mas deixaram gravemente feridos dois terroristas, enquanto o motorista fugiu a p. Os agentes israelitas puderam intercept-lo e levaram-no num carro, ao que parece com matrcula do Estado do Vaticano. A frente, instalaram-se Hessner ao volante, Jacobini a seu lado, Zamir e o terrorista no banco de trs. O memuneh do Mossad perguntava ao palestiniano onde estavam os outros msseis, enquanto o socava com a culatra da arma. Com a silhueta do avio ao longe, os agentes viram uma outra carrinha de cor branca a que alteraram o tejadilho e por onde se viam canos apontados para o cu. Hessner carregou no acelerador e investiu sobre o veculo, fazendo-o voltar-se. No interior, dois membros do Setembro Negro ficaram enfeixados pelo peso dos msseis. Zamir pediu ao padre Jacobini que desse a volta para poder executar os terroristas, mas antes de disparar o agente da Santa Aliana disse ao chefe do Mossad que se os matasse no teria ele outro remdio do que informar disso o Sumo Pontfice e Israel ficaria novamente numa posio difcil. Zamir preferiu no colocar mais uma pedra nas difceis relaes entre Israel e o Vaticano e logo entregou os terroristas ao DIGO. Golda Meir conseguiu reunir-se com Paulo VI, mas apesar de o papa assegurar que no era aquele o momento adequado para estabelecer relaes, acabou por se comprometer a visitar a Terra Santa. Ao sair do Vaticano, Golda Meir disse a Zvi Zamir que o relgio do Vaticano diferente do do resto do Mundo, e talvez isso fosse verdade. A partir desse dia, as relaes entre o Mossad e a Santa Aliana ficaram muito estreitas, mesmo at no pontificado de Joo Paulo Il. O padre Cario Jacobini, da espionagem do Vaticano, e o padre Angelo Casoni, da contra-espionagem, mantiveram-se como elementos de ligao com os servios secretos de Israel durante os anos que se seguiram, mesmo quando Jacobini deixou de pertencer Santa Aliana. Os terroristas detidos pelos italianos foram postos em liberdade e levados para a Lbia. Alguns meses mais tarde, a maioria deles foram executados por uma diviso do kidon2i, os assassinos do Metsada. Assim, as suspeitas do Sodalitium Pianum acerca da pessoa da Secretaria de Estado do Vaticano que teria passado a informao aos terroristas do Setembro Negro sobre a viagem secreta de Golda Meir recaram no padre Idi Ayad. Mas o que o Mossad no sabia, e talvez nunca tenha descoberto, que Ayad era realmente um agente da Santa Aliana, mas tambm elo de ligao extra-oficial entre o papa Paulo VI e a cpula da OLP. Entretanto, num gabinete perdido entre os quilomtricos corredores do Vaticano, um homem colocava um carimbo numa pasta com o nome de Operao Jerusalm e ordenava o depsito nos Arquivos Secretos dependentes da Biblioteca Vaticana. Para o Mundo, aquela operao para salvar simplesmente a vida de Golda Meir nunca existiu, mas a verdade que o Mossad jamais esqueceria que, graas Santa Aliana, a primeira-ministra de Israel ainda estava viva. A devoluo do favor do Mossad Santa Aliana pela Operao Jerusalm aconteceria trs anos depois, exatamente no ms de Abril de 1976. Aps a operao levada a cabo pelo terrorista Carlos, o Chacal, contra os delegados da OPEP reunidos em Viena a 21 de Dezembro de 1975, viu-se abertamente confrontado com os grupos palestinianos que at ento o tinham ajudado. Para eles, Carlos no era mais do que um mercenrio que ganhara uma enorme soma de dinheiro somente para a esbanjar em coisas burguesas. Carlos e os seus parceiros embolsaram cerca de vinte milhes de dlares pelo resgate pago pelos sauditas em troca da liberdade do seu representante na organizao petrolfera, o xeque Ahmed Zaki Yamani. Wadi Haddad, lder da Frente Popular de Libertao da Palestina (FPLP), exigiu a Carlos uma parte desse dinheiro, mas o Chacal recusou. Haddah, um guerrilheiro curdo, no gostava da ateno dada a Carlos, que ele definia como um mau ator com vontade de ser uma estrela de cinema. O certo que, depois do golpe de Viena contra a OPEP Carlos e os seus amigos transferiram-se para a Arglia e depois para o Imen e aqui foram recebidos como verdadeiros heris: o mito de Carlos o Chacal crescia cada vez mais. Numa manh de fins de Maro, tocou o telefone num departamento administrativo do Vaticano. O padre pegou no auscultador e o interlocutor identificou-se como Yitzhak Hofi, o novo memuneh que substitura Zvi Zamir frente do Mossad apenas h dois anos. Hofi disse ao padre que precisava de falar com ele num local seguro. Nessa mesma tarde, o padre dirigiu-se a p at um hotel central de Roma. Nada mais para identificar a no ser dois homens de cabelo curto que acompanharam o religioso at um dos quartos onde Yitzhak Hofi o esperava sentado numa poltrona. O recm-chegado instalou-se e o chefe dos espies israelitas disse-lhe que tinha chegado a hora de pagar o favor Santa Aliana por t-los ajudado a salvar a vida de Golda Meir em Janeiro de 1973. O padre Cario Jacobini disse que, embora ele j no estivesse na Santa Aliana, talvez pudesse pr os israelitas em contacto com algum da espionagem papal. Hofi recusou a oferta e disse que tinha ordens do seu antecessor, Zvi Zamir, para tratar apenas com ele. Antes de escutar a informao que o Mossad tinha para lhe dar,. Jacobini disse que devia ter ordens concretas do Vaticano. Hofi respondeu-lhe que no trataria com nenhuma outra pessoa que no fosse ele ou o agente Angelo Casoni, da contra-espionagem pontifcia. Yitzhak Hofi acomodou-se na poltrona e informou. Jacobini de que uma das seces do Mossad detectara um plano de um grupo terrorista rabe para sequestrar ou assassinar o papa Paulo VI. Depois de uma srie de rodeios, o israelita disse que os seus katsas estavam seguros de que o ataque era dirigido por Carlos o Chacal. Ao escutar aquelas palavras, Jacobini ficou gelado. Sabia por relatrios da Santa Aliana que Carlos era um homem que raramente falhava um golpe e, se no conseguia os seus objetivos, deixava sempre um rasto de sangue e de morte. Na verdade, a informao no vinha de uma seco do Mossad, mas do adido poltico da embaixada norte-americana em Teero, John D. Stempel. O diplomata comunicou CIA que durante um encontro com o segundo-secretrio da embaixada sovitica no Iro, Guennady Kazankin, este lhe disse que o KGB detectara um possvel plano para sequestrar ou assassinar o papa Paulo VI e na mesma ao poderiam estar implicados vrios membros do bando Baader- Meinhof, que teriam colaborado com o Chacal no sequestro dos representantes da OPEP em Viena. Hofi acabou por dizer ao padre Jacobini que a Santa Aliana poderia contar com toda a ajuda possvel do Mossad para desmantelar esse plano. Ao terminar a reunio, o religioso apanhou um txi em direo ao Vaticano. As palavras de Hofi fervilhavam na sua cabea e tinha de as a partilhar com algum. Ao atravessar os portes do Vaticano dirigiu-se para a zona das dependncias que albergam os servios secretos papais e pediu para falar urgentemente com o seu amigo, padre Angelo Casoni. Durante duas horas, Jacobini relatou a Casoni a histria contada pelo memuneh do Mossad. A ideia de Carlos era entrar de assalto e de surpresa, de armas em punho, na prpria baslica de So Pedro, quando o Sumo Pontfice estivesse a celebrar a missa, ou fazer o controle do edifcio e atravs de atiradores especiais disparar sobre Paulo VI quando este assomasse varanda que dava para a praa na sua bno dominical aos fiis. A primeira ideia foi a que se estudou ao longo de semanas, devido ao sucesso que esta ttica teve no sequestro dos representantes da OPEP em Viena. O Chacal no acreditava que houvesse grande resistncia por parte dos membros da Guarda Sua armados com lanas e alabardas. A segunda opo era defendida por Wilfred Bse, um anarquista alemo e amigo de Carlos Ramirez, e por Gabrielle Kroche-Tiedemann, uma terrorista de vinte e trs anos que participara na operao de Viena juntamente com Carlos no ano anterior. Para Bse, era simples conseguir uma arma de grande calibre com mira telescpica e disparar contra um objetivo imvel vestido de branco. Kroche-Tiedemann era mais a favor deste plano porque, se conseguissem matar o Sumo Pontfice enquanto dava a bno aos fiis reunidos na praa de So Pedro, e diante das cmaras de televiso de todo o Mundo, isso suporia para Carlos o Chacal a maior publicidade nunca antes dada a um terrorista. A Santa Aliana trabalhava a contra-relgio, em colaborao com o Mossad, para desativar a crise que se avizinhava. Jacobini precisava de saber mais e para tal telefonou pessoalmente a Hofi, que se comprometeu a enviar ao Vaticano uma cpia dos dossiers acerca dos homens e das mulheres que acompanhavam Carlos em todas as suas aes. No dia seguinte, vrias pastas cheias de carimbos amontoavam-se na mesa do padre Angelo Casoni, da contra-espionagem pontifcia. Fotografias a preto e branco de cadveres, rostos captados distncia por mquinas fotogrficas de qualquer espio, tudo desfilava diante dos seus olhos. Pouco depois, Jacobini e Casoni receberam outra comunicao do Mossad que indicava que Wilfred Bse e Gabrielle Kroche-Tiedemann tinham sido detectados no Bahrein e Carlos Ramirez no Imen. Mas o que os agentes do servio secreto Vaticano nem mesmo Yitzhak Hofi sabiam naquele momento era que a organizao do Chacal tinha deixado de se interessar por esse objetivo. O sequestro ou assassnio de Paulo VI deixara de ter interesse e fora substitudo, por vontade do prprio Carlos Ramirez, pelo sequestro de um avio da Air France, o AF 149, em voo de Telavive para Paris com escala em Atenas. De fato, este avio ficaria clebre quando uma equipa de comandos israelitas e elementos do kidon pertencentes ao Mossad o assaltaram a 4 de Julho de 1976 numa operao-relmpago feita no aeroporto ugands de Entebbe e libertaram todos os passageiros retidos. No tiroteio que se desencadeou nas pistas e no terminal do aeroporto caram mortos com os tiros israelitas Wilfred Bse e Gabrielle Kroche-Tiedemann e ainda mais cinco terroristas. Poucos dias antes da chamada Operao Entebbe, o padre Cario Jacobini recebeu uma misteriosa chamada no Vaticano. Do outro lado, Hofi informava-o sobre os terroristas mortos e garantia-lhe que a crise sobre Paulo VI tinha passado. Finalmente, a 22 de. Janeiro de 1979, o Mossad localizou em Beirute Ali Hassan Salameh, o Prncipe Vermelho e o maior responsvel do grupo Setembro Negro. Uma bomba de controle remoto colocada pela katsa Erika Chambers, do kidon, o brao armado do Metsada, matou Salameh, quatro dos seus guarda-costas, vrios civis e ainda Susan Wareham, secretria da embaixada britnica no Lbano. Alguns rumores indicavam que a localizao de Salameh na capital libanesa se devia aos servios secretos do Vaticano, atravs de uma infiltrao da CIA, e que um agente da Santa Aliana ou mesmo da contra-espionagem vaticana pde ter passado a informao ao memuneh do Mossad, Yitzhak Hofi. Esses agentes poderiam muito bem ser os padres Cario Jacobini ou Angelo Casoni, mas como tudo no Vaticano, nos seus servios de espionagem, tudo o que no sagrado, segredo.
18
Vaticano S. A. e os negcios de Deus (1976-1978)
Esses tais so falsos apstolos, operrios desonestos, que se disfaram em apstolos de Cristo. E no de estranhar, porque o prprio Satans se disfara em anjo de luz. Por isso, no de admirar que os seus ministros se disfarcem em ministros da justia. O seu fim, porm, ser segundo as suas obras. 2 Carta aos Corntios 11, 13-15
O Instituto per le Opere di Religione (IOR), vulgarmente conhecido como Banco Vaticano, um dos organismos, juntamente com os seus servios de espionagem, mais secretos de todos os departamentos papais. Atravessando as portas de Santa Ana e direita da Colunata de Bernini, deixando a igreja de Santa Ana a direita e os pavilhes da Guarda Sua esquerda, encontra-se o edifcio onde est instalado o IOR. O torreo foi construdo por ordem do papa Nicolau V h quase seiscentos e cinquenta anos, como parte dos planos defensivos da Santa S. Apenas um pequeno piquete da Guarda Sua protege ainda hoje a sua entrada de mrmore e as suas portas de bronze hermeticamente fechadas e que apenas podem ser abertas a alguns escolhidos e ilustres membros da Cria Romana. O Banco Vaticano foi fonte de inmeros escndalos e esteve envolvido na perda de milhes de dlares, falncias bancrias, venda de armas a pases em conflito, criao de sociedades fantasmas em parasos fiscais, financiamento de golpes de Estado, lavagem de dinheiro da Mfia e suicdios misteriosos. O IOR conseguiu violar centenas de leis financeiras internacionais sem que nenhum dos seus dirigentes fosse julgado em qualquer tipo de tribunal terreno. Desde a sua fundao, o IOR no um departamento oficial do Estado da Cidade do Vaticano. Existe como entidade, mas sem uma ligao clara com os assuntos eclesisticos ou com outros organismos da Santa S, sendo o Sumo Pontfice o seu nico rgo de controle. Ao contrrio de outras instituies financeiras internacionais, o Banco Vaticano no fiscalizado por uma agncia interna ou externa, nem existem registos escritos das suas operaes. Por exemplo, em 1996, o cardeal Edmundo Szoka, auditor interno da Santa S, informou vrios investigadores de que ele tinha qualquer espcie de autoridade sobre o Banco Vaticano e acrescentou que desconhecia por completo as suas atuaes ou o sistema de operar. Em 1990, o Estado do Vaticano declarou um dfice de 78 milhes de dlares, enquanto o Banco Vaticano declarou de forma extra-oficial ter lucros nesse ano que ultrapassavam os dez mil milhes de dlares. Em 1967, o papa Paulo VI criou um gabinete de contabilidade geral a que o Vaticano chamou Prefeitura de Assuntos Econmicos da Santa S. O Sumo Pontfice entregou a direo a um seu amigo, o cardeal Egidio Vagnozzi, mas poucos meses depois ele foi demitido. Parece que Vagnozzi descobriu as estranhas relaes entre o papa e o chamado banqueiro da Mfia, Michele Sindona. Curiosamente, Egidio Vagnozzi foi impedido de falar sobre qualquer assunto relacionado com a Prefeitura por causa do famoso Segredo Pontifcio. Aquele que era responsvel pela direo da Prefeitura descobriu que milhes de dlares de origem desconhecida eram depositados todas as semanas nos cofres do Banco Vaticano sem nenhum tipo de explicao e, com a mesma rapidez com que entrava, logo o dinheiro saa pela porta traseira para contas privadas em bancos suos e para empresas do Grupo Sindona. Este dinheiro servia para financiar revoltas e golpes de Estado, como o que aconteceu na Grcia em Abril de 1967. A loja Propaganda 2, intimamente ligada ao Vaticano e aos seus servios secretos, concentrara toda a sua ateno nas eleies gregas que se aproximavam. O favorito era o lder da esquerda Andreas Papandreu, um inimigo poltico do monarca Constantino II, rei da Grcia e comandante-chefe dos seus exrcitos. As sondagens demonstravam que Papandreu conseguiria o poder, enquanto o exrcito receava que entregasse o pas aos comunistas. O coronel Papadopoulos garantiu que se tal acontecesse a Grcia seria arrastada para uma guerra civil. Por volta de finais desse ano, o Continental Bank of Illinois, que pertencia a Sindona, fez uma transferncia de quatro milhes de dlares para a Banca Privata Finanziaria, dentro da rbita vaticana. Quando o dinheiro foi recebido, o prprio Michele Sindona encarregou um agente da Santa Aliana de levantar esses fundos e entreg-los pessoalmente ao coronel Papadopoulos. O dinheiro foi depositado numa conta-corrente em nome da imobiliria Helleniki Tecniki, controlada pelo exrcito grego e avalizada pelo prprio Banco Central da Grcia. A Santa Aliana, em associao com Michele Sindona, Licio Gelli e a loja Propaganda, decidiu financiar o golpe de Estado para evitar a chegada da esquerda ao poder. Os investigadores no esto de acordo se os servios secretos do Vaticano foram um simples instrumento de Gelli e Sindona ou se a Santa Aliana foi realmente quem elaborou a chamada Operao Tatoi e Licio Gelli e Michele Sindona foram somente as fontes de financiamento. A verdade que, a 2l de Abril de 1967, um grupo de coronis realizou um golpe de Estado e decretou a entrada em vigor da lei marcial, a Constituio foi suspensa e foi desencadeada uma violenta represso contra os movimentos democrticos e em especial contra os sindicatos e as organizaes comunistas. O lder socialista Andreas Papandreu foi condenado a nove anos de priso. Em Dezembro do mesmo ano, o rei Constantino tentou derrubar a Junta, mas fracassou e teve de se exilar em Roma com toda a famlia. Os militares nomearam o general Zoitakis como presidente e Papadopoulos como primeiro-ministro. O regime dos coronis, como foi conhecido, continuou a receber a ajuda dos Estados Unidos, da loja manica P-2 e de grandes empresrios gregos Aristteles Onassis e Stavros Niarchos. Devido ao xito obtido na Grcia, Michele Sindona, com a ajuda dos fundos vaticanos, atravs da rede montada por ele mesmo para o IOR, e de alguns agentes livres da Santa Aliana, decidiu financiar os grupos de extrema-direita. Poucos anos depois, comeou a aparecer em cena esse misterioso Paul Casimir Marcinkus, um homem que estava ligado aos servios secretos do Vaticano. Nascido nos arredores de Chicago em 1922, fez os seus estudos religiosos nos Estados Unidos e mais tarde mudou-se para Roma, onde ingressou na Universidade Gregoriana e se formou em Direito Cannico. Em 1952, Marcinkus entrou na Secretaria de Estado e foi colocado nas nunciaturas do Canad e da Bolvia para se tornar chefe de segurana do papa Paulo VI. Foi neste perodo na Secretaria de Estado que Marcinkus estabeleceu estreitas relaes com os servios secretos do Vaticano e com importantes elementos da Santa Aliana, que anos mais tarde lhe ho-de prestar valiosa ajuda. Um desses agentes implicados no futuro escndalo do Banco Ambrosiano foi o jesuta polaco Kazimierz Przydatek. Em 1969, Marcinkus foi consagrado bispo pelo papa Paulo VI e na manh seguinte consagrado tambm secretrio do Banco Vaticano. Dois anos depois, e de forma surpreendente, o papa Paulo VI premiou a fidelidade de Paul Marcinkus ao nome-lo como responsvel mximo do IOR, dando assim incio a uma fulgurante carreira financeira. O seu crculo mais ntimo era formado por Michele Sindona, Roberto Calvi, Umberto Ortolani e Licio Gelli, todos eles relacionados com a Mfia (a famlia Gambino), a loja manica Propaganda 2 e as finanas do Vaticano. Marcinkus utilizou a Santa Aliana em proveito prprio como fonte de informao. Um relatrio do servio secreto do Vaticano, em poder de Paul Marcinkus, demonstrava que Sindona tinha criado, certamente com fundos da Santa S, uma holding no Liechenstein chamada Fasco AG e que atravs dela adquirira em Milo a Banca Privada Finanziaria (BPF). O que esse relatrio no esclarecia era que com uma parte dos lucros de tal compra ele criou a Casa delia Madonnina. O ento cardeal Montini, arcebispo de Milo, precisava de fundos e Sindona ofereceu-lhos. No total, dois milhes e meio de dlares foram para os cofres do arcebispado para financiar a instituio religiosa. Marcinkus saberia anos depois que esse dinheiro no procedia dos lucros da aquisio da BPF, mas da lavagem de dinheiro sujo oriundo da Mfia siciliana, principalmente do trfico internacional de herona. A partir da, e por intermdio do cardeal Montini, Sindona pde criar uma importante carteira de clientes que ele prprio assessorava em assuntos relativos a impostos, a investimentos e at a evaso fiscal. Assim, pouco a pouco, os negcios do Banco Vaticano e dos seus assessores comearam a ser cada vez mais perigosos, colocando em graves dificuldade no s as vrias instituies financeiras, mas tambm os sistemas econmicos do prprio Vaticano e da Itlia. Um relatrio da CIA desses anos, e que caiu em poder da Santa Aliana, pormenorizava as extensas relaes do banqueiro de Paulo VI com a famlia Gambino, dos Estados Unidos, e com as famlias Inzerillo e Spatola, da Siclia. O dossier com cerca de vinte pginas explicava bem as ligaes de Cario Gambino com as famlias Colombo, Bonanno, Lucchese e Genovese, todas elas envolvidas na manipulao, trfico e venda de herona, cocana e marijuana. O relatrio dizia ainda que Sindona depositava parte dos lucros da droga, prostituio, fraude bancria, pornografia e usura em contas bancrias secretas na Sua, Liechenstein e Beirute. A verdade que Michele Sindona no era apenas o assessor financeiro do papa Paulo VI e do Vaticano, mas era tambm de famlias mafiosas. Mas foi Marcinkus, ao que parece, quem ordenara a destruio do relatrio sobre o banqueiro que a Santa Aliana recebeu da CIA. Anos depois, o responsvel do IOR recordaria isso mesmo ao prprio Sindona pouco antes da sua queda. Entretanto, comeava a enfraquecer a sade do grande protetor das escuras manobras financeiras do Vaticano, situao que tem a sua origem quando Paulo VI operado prstata em 1968, aos setenta e um anos. Em 1978, o Sumo Pontfice foi muito afetado por dois acontecimentos que marcariam os seus ltimos meses de vida: o sequestro e assassnio do lder da democracia-crist Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas e a aprovao da lei do aborto em Itlia. No sbado 5 de Agosto, depois de jantar, rezou o rosrio na sua capela privada e, antes de se deitar, assinou vrios documentos segundo parece relacionados com assuntos do Banco Vaticano. Na manh seguinte, 6 de Agosto, no pde celebrar missa, devido ao estado em que estava, e tarde a sua sade agravou-se. Os mdicos do Vaticano diagnosticaram um grave edema pulmonar e pouco depois j no respondia aos cuidados mdicos acabando por falecer. A partir desse momento, a mquina do Vaticano ps-se em marcha para ser escolhido um novo papa. As conspiraes palacianas estavam preparadas para a convocatria do novo conclave, no qual se devia eleger o sucessor do Sumo Pontfice falecido. Os departamentos do Banco Vaticano comearam a queimar muitos documentos para atenuar uma possvel investigao face chegada de um papa mais liberal e dado que a pessoas como Marcinkus, Gelli, Calvi e Sindona no lhes seria muito fcil explicar ao novo papa muitos desses atos financeiros realizados em nome do Vaticano, do papa e de Deus. A 10 de Agosto, o cardeal Albino Luciani, patriarca de Veneza, decidiu partir para Roma com o propsito de participar no conclave que deveria escolher o sucessor de Paulo VI, mas a verdade que o seu nome no figurava sequer entre os favoritos e, portanto, manteve-se tranquilo na sua cela nmero 60. Em apenas nove horas de votaes, cento e dez cardeais chegaram a acordo por aclamao sobre a pessoa que devia assumir o ministrio papal. Foi nas reunies anteriores ao conclave que o cardeal Giovanni Benelli comentou na presena dos surpreendidos cardeais Albino Luciani, Stefan Wyszynski, primaz da Polnia, e Laszlo Lekai, primaz da Hungria, que o prximo papa se defrontaria com srias dificuldades ao chegar ao trono de So Pedro devido situao econmica e financeira da Igreja. Benelli disse aos trs cardeais que estavam sua volta que a situao no apenas crtica, como est prestes a rebentar. O cardeal camarlengo, Jean Villot, que estava perto, escutou as advertncias do cardeal Benelli e pediu silncio. De imediato chamou o prefeito dos Assuntos Econmicos do Vaticano, que era o cardeal Egidio Vagnozzi, e pediu-lhe que com a ajuda da Santa Aliana preparasse um relatrio sobre a situao to crtica a que o cardeal Benelli se referia. Vagnozzi sabia at onde podia chegar com a sua investigao, mas que nunca chegaria a conhecer os fundos escuros do IOR dirigido por monsenhor Paul Marcinkus e os tentculos por ele estabelecidos sob o manto protetor de Paulo VI. Misteriosamente, o cardeal Pietro Palazzini avisou a Santa Aliana e a contra- espionagem, o Sodalitium Pianum, de que deviam prestar toda a sua ajuda a Vagnozzi, mas o problema residia no fato de muitos agentes da Santa Aliana fazerem trabalhos especiais para Marcinkus e, portanto, ele foi informado dos movimentos de Benelli e de Palazzini. Paul Marcinkus e Michele Sindona tinham sido tranquilizados pelo prprio cardeal Villot sobre a quase segura eleio do cardeal Giuseppe Siri, de Florena, homem conservador e de majestosa figura. Marcinkus sabia que, se Siri fosse eleito, o IOR no seria sujeito, pois, a incmodas investigaes, porque ao fim e ao cabo o cardeal Giuseppe Siri no tinha boas relaes com os cardeais Benelli e Palazzini. Um dos mais firmes defensores da abertura do inqurito ao IOR foi o cardeal Srgio Pignedoli. Meses antes de se iniciar o conclave, Pignedoli falou, talvez demasiado abertamente, a outros cardeais sobre a necessidade de investigar o destino de milhes de dlares procedentes do Vaticano. O cardeal teve uma reunio secreta com os cardeais Benelli, Palazzini e Vagnozzi, em que lhes exprimiu a sua preocupao acerca dos constantes rumores que circulavam a respeito do IOR e certas operaes efetuadas com o ditador nicaraguano Anastasio Somoza. Durante o conclave, o cardeal Franjo Seper revelara ao ainda cardeal Luciani que certas foras obscuras dentro do Vaticano tinham afastado o perigoso cardeal Pignedoli da corrida ao pontificado. O cardeal jugoslavo garantiria a Luciani que durante a ceia algum aludiu em voz baixa e s para quem estava ao lado os rumores sobre a condio sexual de Srgio Pignedoli durante o seu apostolado entre a juventude e por isso s vezes o seu apartamento ficava cheio de sacos de dormir quando no lhes encontrava outro alojamento. O certo que esse rumor era apenas um pretexto infundado para acabar com as possibilidades de Pignedoli entre os conclavistas, e isso foi conseguido. Seper garantiu que o cardeal responsvel pelo boato tinha sido expulso do conclave, mas j o mal estava feito. Segundo parece, ele trabalhou durante anos no Banco Vaticano at ser transferido para outro lugar. As foras obscuras, como as definia o prprio Albino Luciani, conseguiram afastar assim um candidato incmodo para o IOR e para Paul Marcinkus. No sbado, 26 de Agosto de 1978, a primeira votao foi encarada como um ensaio, mas nela surgiu um claro domnio do cardeal Giuseppe Siri, que no conseguiu os dois teros necessrios, setenta e cinco votos, e teve assim de se proceder a uma segunda votao, em que Luciani obteve cinquenta votos e Pignedoli vinte. Aps uma breve pausa, os conclavistas voltaram Capela Sistina para se realizarem as duas votaes da tarde. A primeira delas foi s quatro e o cardeal Bafile leu o nome do cardeal Albino Luciani por mais de setenta e cinco vezes. Logo a seguir, os influentes cardeais Villot, pelos bispos, Siri, pelos presbteros, e Felici, pelos diconos, aproximaram-se de Luciani para lhe pedir que aceitasse o seu destino. Depois de pronunciar a palavra Aceito, o cardeal Jean Villot perguntou: Como vos desejais chamar, Santo Padre? E Luciani respondeu: Joo Paulo. Sereis Joo Paulo I, replicou o cardeal Felici sem saber o lapso que acabava de cometer. O papa que inaugura uma dinastia de nomes no se distingue por um ordinal at chegar o segundo pontfice que utilize esse nome. As palavras que de seguida o novo papa proferiu seriam quase premonitrias: Seja Joo Paulo primeiro, j que o segundo chegar em breve, disse o ex-cardeal Albino Luciani. Enquanto os jornais como Ubsservatore Romano publicavam a notcia na primeira pgina da eleio do novo papa Joo Paulo I, a revista The Economist inseria no interior as estranhas operaes feitas por financeiros ao servio da banca do Vaticano. No entanto, quando soube da notcia, Paul Marcinkus avisou logo os scios do IOR e Roberto Calvi, que se encontrava em Buenos Aires. Aconselhou-os a no esquecer que o novo papa era muito diferente de Paulo VI e acabou por lhes recomendar que transferissem todos os fundos da banca internacional para um pas mais seguro, por exemplo, Bahamas ou Sua. Mas nos corredores vaticanos corriam rumores e especulaes sobre as atuaes dos responsveis mximos do IOR, que negavam ter-se reunido alguma vez com figuras como Michele Sindona ou Roberto Calvi. Uns dias depois da nomeao do cardeal Bernardin Gantin como presidente do Conselho Pontifcio Cor Unun, o prprio papa encontrou no seu gabinete uma cpia do relatrio da Repartio Italiana de Controlo Bolsista, a UIC. Algum tinha decidido deixar a primeira pista a Joo Paulo I sobre os escuros negcios que o IOR estava a realizar. O relatrio, assinado pelo ministro do Comrcio Externo, Rinaldo Ossola, declarava que o Banco Vaticano era uma instituio financeira no-residente, isto , estrangeira e inviolve1. O ministro Ossola estava incomodado pelos abusos no trfico de moeda, que tinha provocado a sada de grande quantidade de divisas de Itlia, deixando a lira numa situao perigosa. Ossola julgava saber que no Vaticano ou prximo dele essa operao era dirigida pelo prprio IOR. Conta-se a histria de que sempre que o papa, quando ainda era cardeal, pedia uma explicao sobre os rumores da situao financeira do IOR, o papa Paulo VI mandava Marcinkus fazer-lhe a mesma pergunta: Sua Eminncia, no tem hoje mais que fazer? Deve fazer o seu trabalho que eu fao o meu, respondia o responsvel pelas finanas do Vaticano ao patriarca de Veneza. Joo Paulo I, depois de ler o documento, pediu uma reunio secreta com os cardeais Benelli e Felici, a quem exigiu que lhe explicassem tudo o que souberam nos ltimos anos acerca da investigao levada a cabo pelo Banco de Itlia ao Banco Ambrosiano. Durante vrias noites, Benelli pde relatar ao Sumo Pontfice as relaes do IOR com Licio Gelli, a loja Propaganda 2, Michele Sindona e Roberto Calvi e as conexes deste com o IOR e Paul Marcinkus. Parece que Benelli era informado de cada passo do inqurito atravs de uma fonte secreta, uma garganta funda no Banco de Itlia, mas monsenhor Felici por sua vez era informado por uma fonte dentro da Santa Aliana. Esta ltima fonte foi aquela que informou o cardeal Benelli sobre a investigao que estava a ser realizada contra o imprio de Roberto Calvi e que em Setembro de 1978 atingiria a mxima tenso. O agente da Santa Aliana que informava Benelli era um padre por ela infiltrado no IOR de Marcinkus, chamado Giovanni DaNicola. Licenciado em Cincias Econmicas e perito na criao de sociedades bolsistas e sociedades em parasos fiscais, o padre DaNicola no tivera dificuldades em infiltrar-se no IOR. Os seus servios eram muito solicitados por aqueles em que o Banco Vaticano era proprietrio de sociedades: Bahamas, Ilhas Caimo, Luxemburgo, Mnaco, Genebra e Liechtenstein. DaNicola tinha revelado ao cardeal Benelli que o Banco de Itlia estava a investigar as ligaes do Vaticano com as sociedades de Calvi e os prprios inspetores tinham j provas suficientes para o prender. Na lista dos investigados constavam Paul Marcinkus, responsvel pelo IOR, Luigi Mennini, secretrio-inspetor do IOR, e Pellegrino de Strobel, chefe contabilista do Banco Vaticano. Mas no era s o cardeal Benelli quem dispunha do acesso a essa informao; dentro do prprio Banco de Itlia, os membros da loja P-2 informavam Licio Gelli na Argentina e ele por sua vez informava Roberto Calvi e Umberto Ortolani, manico e Cavaleiro de Sua Santidade, nomeado pelo prprio papa Paulo VI. Ao mesmo tempo, certos membros da P-2 colocados na Magistratura de Milo informaram Gelli de que a investigao sobre o Banco Ambrosiano estava concluda e que o amplo e volumoso processo seria entregue ao juiz Emilio Alessandrini. Nesse relatrio, segundo disse o padre DaNicola, da Santa Aliana, tinha sido includa uma reportagem publicada em UOsservatore Politico (OP) e assinada por um jornalista chamado Mino Pecorelli. A reportagem tinha o ttulo de A Grande Loja Vaticana e no texto fazia-se referncia, com os seus nomes e apelidos, a cento vinte e um membros do Vaticano que pertenciam a diferentes lojas manicas. Cardeais, bispos, prelados e oficiais da Santa S apareciam numa lista que acabava com o nome de Licio Gelli, gro-mestre da Propaganda 2. Segundo descobriu a Santa Aliana, Pecorelli era um ativo membro da loja da qual, desencantado, se dedicava ento a limpar as ndoas negras, embora estas manchassem o prprio Vaticano. A 12 de Setembro, o padre Giovanni DaNicola apresentou de modo formal e pessoalmente a lista ao Sumo Pontfice. Joo Paulo I viu nela os nomes do cardeal Jean Villot, de monsenhor Agostino Casaroli, do cardeal-vigrio de Roma, Ugo Poletti, do cardeal Sebastiano Baggio, do bispo Paul Marcinkus ou de monsenhor Donato de Bonis, do Banco Vaticano. O papa perguntou a Felici e a Benelli se aquela lista era verdadeira e os dois religiosos confirmaram que uma lista semelhante tinha circulado na sede da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, j em 1976. Roberto Calvi acreditava que o papa Joo Paulo I desejava vingar-se dele por causa do assalto que o seu prprio grupo tinha feito Banca Cattolica dei Veneto. Mas o que os seus scios no IOR no sabiam era que Calvi conseguira desviar cerca de quatrocentos milhes de dlares e deposita-los em contas secretas em diversos bancos da Amrica Latina. Gelli disse a Calvi que, segundo as suas fontes, o papa Joo Paulo I queria renovar as finanas do Vaticano e que se fizesse isso seria descoberto o desvio continuado de fundos, as empresas em parasos fiscais, a lavagem do dinheiro procedente da Mfia e muitas outras coisas. Licio Gelli garantiu a Roberto Calvi que o problema devia ser resolvido. Calvi no soube nunca se o chefe da Propaganda 2 se referia ao responsvel do Banco Ambrosiano ou ao papa Joo Paulo I. Na manh de domingo, l7 de Setembro, e aps um ligeiro pequeno almoo, o Sumo Pontfice chamou o padre DaNicola para lhe entregar o relatrio redigido pela Santa Aliana sobre o processo da crise das finanas do Vaticano e que se designou por IOR-Banco Vaticano. Situao e Processo, classificado de Alto Segredo e Sob Segredo Pontifcio. O relatrio, redigido mo por um agente da Santa Aliana, comeava por afirmar que o papa Joo XXIII tinha deixado ao seu sucessor alguns fundos de reserva procedentes do bolo de So Pedro e administrados pelo IOR. A quantia ascendia a cinquenta mil milhes de liras. Naquela altura, a Administrao de Bens era dirigida pelo cardeal Gustavo Testa e o IOR por monsenhor Alberto Di Jorio. Paulo VI chegou a preparar um decreto para unir todas as administraes, mas misteriosamente no ltimo momento no foi levado a cabo, dizia o relatrio. Eu creio (o agente da Santa Aliana que redigiu o relatrio) que a presena de Michele Sindona nos nossos interesses financeiros e a sua ligao com Lido Gelli teve muito a ver com a retirada desse decreto. A anlise do servio de espionagem papal referia-se tambm a uma figura sinistra chamada Umberto Ortolani, que era um bolonhs amigo ntimo do cardeal Giacomo Lercaro e do cardeal Joseph Frngs. O Sodalitium Pianum era o departamento de espionagem pontifcio que melhor informao tinha sobre Ortolani. Segundo o relatrio do S. R, Ortolani era um bolonhs baixo, de aspecto redondo, que trazia sempre um grosso cordo de ouro no colete. As suas operaes eram dirigidas a partir da sua faustosa vivenda de Grottaferrata, onde se instalaram por vrias vezes os cardeais Lercaro e Frings. Umberto Ortolani dedica-se a recuperar empresas em crise e, depois de estarem saneadas, liberta-se delas e vende-as pelo melhor preo, dizia-se no relatrio. Num anexo especial indicava-se ainda que Ortolani tinha ingressado na Ordem de Malta e iniciou-se depois na loja P-Z de Licio Gelli. Desde Janeiro do ano anterior (1977), a Santa Aliana conhecia a Lista dos 500. Nessa mesma data, Mrio Barone, antigo companheiro universitrio de Michele Sindona, revelou a existncia da clebre lista com os nomes de meio milhar de empresrios, polticos, financeiros, membros da Cria Romana, industriais e mafiosos que utilizaram os bancos de Sindona para fazer sair de Itlia grandes somas de capitais. Barone prometeu entregar a lista s autoridades em troca da imunidade, mas quando abriu o cofre de segurana da Banca Privata, onde devia estar depositada essa lista, ele estava vazio. O que no se sabe como o servio de espionagem papal pde ficar com uma cpia. A 23 de Setembro, o papa Joo Paulo I j quase que tinha nas suas mos a totalidade da investigao sobre o Vaticano S. A.. Nessa mesma tarde, e aps uma reunio com os responsveis da Santa Aliana, o chefe dos espies papais informou o Sumo Pontfice sobre outra obscura figura que se movimentava entre as finanas do Vaticano, o eslovaco monsenhor Pavel Hnilica. Alguns indicavam que era este membro da Cria que informava a partir do IOR os agentes da Santa Aliana, mas esta verso nunca pde ser confirmada. Um outro relatrio nas mos do agente da Santa Aliana padre Giovanni DaNicola, e depois em poder de Joo Paulo I, dava uma outra informao que lhe tinha passado a sua prpria fonte. Segundo parece, os inspetores do Banco de Itlia passaram a investigar o Ambrosiano aps uma denncia annima (Luigi Cavallo, um mafioso de pouca importncia amigo de Michele Sindona) a 21 de Novembro de 1977. Era evidente que a presa era Roberto Calvi e pouco a pouco as autoridades fiscais comearam a desmontar a sua emaranhada organizao. Calvi tinha interesses financeiros no Peru e na Nicargua, em Porto Rico e nas Ilhas Caimo, no Canad, na Blgica e nos Estados Unidos, mas de fato o ponto fraco do financeiro eram as sociedades Suprafin e Ultrafin. Tanto a Calvi como a Sindona no lhes interessava que se soubesse a verdade sobre essas empresas e a sua nica tbua de salvao era mesmo Paul Marcinkus. Quando os inspetores italianos comearam a decifrar as ligaes das suas sociedades e movimentos financeiros, apareceu Cario Oligati, administrador-geral do Ambrosiano, a declarar que a Suprafin era mesmo propriedade do Vaticano e portanto intocvel. Marcinkus apenas teve de abanar a cabea para espantar as autoridades italianas. O ltimo dia de vida de Joo Paulo I foi uma jornada normal de trabalho. Esse 28 de Setembro de 1978 comeou com uma orao na sua capela privada, um pequeno-almoo frugal, enquanto escutava as notcias da RAI, e um primeiro contacto com os seus secretrios John Magee e Diego Lorenzi. s nove da manh comearam as audincias. Joo Paulo I recebeu o cardeal Bernardin Gantin e o padre Riedmatten, ambos responsveis por todas as obras de ajuda em matria social. Por volta das duas horas da tarde, o Sumo Pontfice retirou-se para almoar com um pequeno grupo que costumava acompanha-lo. Nesse dia sentaram-se mesa o cardeal Jean Villot e os padres Lorenzi e Magee e a seguir deram todos um longo passeio de cerca de uma hora pelos jardins do Vaticano. No comeo da tarde, o papa, acompanhado por dois membros da sua escolta e seguido por dois agentes da Santa Aliana, dedicou-se a espiolhar alguns papis e cartas pessoais s quais devia responder. Ao entardecer passou largas horas com o cardeal secretrio de Estado, Jean Villot, a despachar assuntos da Santa S. Falou ainda pelo telefone com os cardeais Giovanni Colombo, arcebispo de Milo, e Benelli. As oito da tarde, retirou-se para rezar o tero em companhia de duas freiras e dos seus dois secretrios. Depois, foi servida a ceia base de sopa de peixe, feijo verde, queijo fresco e fruta. Por volta das nove, e como era seu hbito, sentou-se frente do televisor para ver o noticirio. Logo a seguir, o papa retirou-se para o seu quarto e pediu a soror Vincenza que lhe levasse um jarro com gua para colocar na sua mesinha. s nove e meia da noite, Joo Paulo I fechou a porta do seu quarto, pronunciando as suas ltimas palavras. Antes de adormecer, Joo Paulo I tinha o costume de ler um pouco na cama e para isso mandou colocar uma pequena lmpada na mesa situada ao lado. A escolta de agentes da Santa Aliana que seguiam o papa foi retirada por ordem de um superior no identificado, conforme informou na manh seguinte o padre Giovanni DaNicola ao cardeal Benelli. O Sumo Pontfice morria de morte natural ou assassinado entre as nove e meia da noite de 28 de Setembro e as quatro e meia da madrugada do dia 29. Existem duas verses sobre quem descobriu o cadver. A oficial, ou seja, a do Vaticano, a de que o primeiro a entrar no quarto do papa morto foi o secretrio John Magee. A extra-oficial e verdadeira a de que a primeira pessoa a entrar no quarto por ele no responder sua chamada foi soror Vincenza Taffarell e ali descobriu o corpo do papa Joo Paulo I. As 5:40, como todas as manhs, soror Vincenza bateu porta com os dedos para acordar o Santo Padre. Chamou nervosamente, sem obter uma resposta. Ao entrar, encontrou a luz acesa na mesinha e o corpo de Joo Paulo I imvel. Estava morto. Saiu rapidamente do quarto e a pesada mquina vaticana foi logo posta em movimento. A ajudante do papa avisou o padre John Magee e este avisou o cardeal secretrio de Estado, Jean Villot, e o decano do Sacro Colgio Cardinalcio, o cardeal Cario Confalonieri. Villot avisou o mdico do papa, Renato Buzzonetti. No interior do quarto a confuso era total. O diagnstico do mdico papal foi certificar a morte de Joo Paulo I ocorrida por volta das onze e meia da noite de 28 de Setembro por um enfarte agudo do miocrdio. s sete e meia da manh, a agncia noticiosa ANSA dava a notcia da morte do Sumo Pontfice. A comisso cardinalcia criada para investigar a morte de Joo Paulo I, dirigida pelos cardeais Silvio Oddi e Antnio Samore, acabou por concluir que se tratou de uma morte natural por enfarte, mas muitas perguntas ficaram sem resposta quando o papa Joo Paulo II ordenou a classificao de Segredo Pontifcio para o processo de inqurito. Ainda hoje esse relatrio permanece, como muitos outros, num obscuro recanto do Arquivo Secreto do Vaticano. Por que se disse que o papa sofria do corao quando o seu mdico de toda a vida, doutor Antnio Da Ros, recusou tal afirmao? Por que no foi avisado o doutor Da Ros se o seu secretrio John Magee disse que o papa se tinha queixado vrias vezes durante o dia de que lhe doa o peito? Por que se disse que o papa apenas tornava vitaminas, quando realmente e por prescrio do doutor Buzzonetti lhe tinham sido receitadas injees para estimular a glndula que segrega a adrenalina. Por que no se disse que foram receitadas a Joo Paulo I injees para minorar o problema da baixa presso sangunea? Por que que a cafeteira de caf que todas as manhs soror Vincenza lhe levava estava intacta quando se descobriu o corpo do papa e desapareceu pouco depois sem deixar o menor rasto? Porqu e quem ordenou a retirada da vigilncia ao papa Joo Paulo I dos agentes da Santa Aliana? Por que que quando Hans Roggan, oficial da Guarda Sua, comunicou a Paul Marcinkus a morte do Sumo Pontfice ele no mostrou nenhuma estranheza, segundo o testemunho do prprio Roggan? Por que que se disse que no se tinha feito nenhuma autpsia ao cadver do papa, quando na verdade se fizeram trs? Por que que se no tornaram pblicos os resultados de nenhuma das trs autpsias? Por que foi ordenado Santa Aliana que no abrisse qualquer inqurito por parte dos servios secretos papais? Sim, todas estas perguntas e muitas outras ficariam sem resposta. O padre Giovanni DaNicola, que informava o Sumo Pontfice sobre os maus investimentos financeiros realizados por Paul Marcinkus e os seus scios atravs do IOR, sabia que depois da morte de Joo Paulo I tinha os seus dias contados. O espio pediu proteo ao cardeal Benelli, mas por um ou por outro motivo essa proteo no foi dada. Benelli conseguira que a Santa S, atravs da Secretaria de Estado, transferisse DaNicola para a nunciatura no Canad, mas a confirmao da mudana de destino do espio papal nunca chegou. Quatro dias aps a morte de Joo Paulo I, e enquanto o Mundo se recompunha da surpresa, o espio da Santa Aliana apareceu enforcado num solitrio parque de Roma muito concorrido por travestis e prostitutas em busca de clientes. Apesar de a polcia italiana ter arquivado o caso depois de considerar que se tratou de suicdio, ningum quis investigar as estranhas marcas que DaNicola tinha nos braos e no corpo, como se tivesse lutado com algum. A autpsia revelava que Giovanni DaNicola tinha o pescoo partido, ao que parece provocado por uma forte pancada na nuca e no pelo efeito do peso do corpo ao cair em seco corn a corda amarrada ao pescoo. Era evidente que aquele que sem dvida mais sabia dos segredos do IOR e de Paul Marcinkus fora assassinado. Ningum fez perguntas, nem sequer os chefes da espionagem e da contra- espionagem do Estado do Vaticano. A misteriosa morte de Joo Paulo I fez novamente reunir-se o conclave para escolher o sucessor. A 14 de Outubro de 1978, s quatro e meia da tarde, cento e onze cardeais entraram no conclave de onde devia sair o novo sucessor de Pedro. Na Capela Sistina, os cardeais ouviram em silncio as estritas normas do conclave. O cardeal Wojtyla estava muito tranquilo na vspera da primeira votao. No dia seguinte, domingo 15 de Outubro, comearam as votaes. A luta trava-se entre o cardeal Giuseppe Siri e o cardeal Benelli, porque cada um deles obteve trinta votos. Na segunda votao, os dois perdem apoio, mas tarde o cardeal Ugo Poletti, presidente da Conferncia de Bispos Italianos, recebe trinta votos. Na quarta votao, entram na lia os cardeais Felici e Wojtyla, que recebe cinco votos. Apesar do silncio que reinava nas celas que rodeiam a Capela Sistina, estava a travar-se uma grande luta pelo controle da Igreja Catlica. Embora a candidatura de Siri no perdesse terreno, cada votao apenas faz com que entrem e saiam novos nomes de candidatos, sem que se alcance o resultado esperado. Na noite de 15 de Outubro, o cardeal Franz Knig negoceia com os cardeais franceses, alemes, espanhis e norte-americanos o possvel apoio ao cardeal polaco Wojtyla. Na manh de segunda-feira, dia 16, ocorrem mais duas votaes e Siri continua a perder terreno em relao a outros cardeais, como Giovanni Colombo, Ugo Poletti ou Johannes Willebrands. No sufrgio seguinte, cresceu o nmero de votos no cardeal Karol Wojtyla e nessa tarde Wotjtyla rene-se na sua cela com o cardeal-primaz da Polnia, Wyszynski, que lhe diz que se o elegerem ele deve aceitar. Duas votaes depois, Karol Wojtyla ouviu o seu nome em voz alta: entre cento e oito cardeais, noventa e nove tinham-lhe dado o seu voto.
CERTIFICATO DI MORTE
Certifico che Sua Santita GIOVANNI PAOLO I. ALBINO LUCIANI, nato in Forno di Canale (Belluno) 17 ottobre 1912, e deceduto nel Palazzo Apostolico Vaticano l 28 settembre 1978 alle ore 23 per morte improvvisa-da infarto mocardco acuto.
Il decesso stato constatato alle ore 6.00 del giorno 29 settembre 1978.
Citt del Vaticano, 29 settembre 1978.
(Dott. Renato Buzzonetti) Visto il Direttore dei Servizi Sanitari (Prof. Mario Fontana)
A certido de bito de Joo Paulo I era inimaginvel e nunca se tinha visto: um papa de um pas do Leste da Europa, de uma nao para l da Cortina de Ferro. Depois de pronunciar as palavras de aceitao e dizer o nome que adotaria como Pontfice, o novo papa foi escoltado at antecmara conhecida como comera lacrimatoria, onde o novo papa vestiu o seu hbito branco. Logo de seguida, e num passo firme, Joo Paulo II dirigiu-se para a varanda para lanar a sua bno Urbi et Orbi ao Mundo e aos fiis. Momentos depois, o papa pediu aos membros do conclave que ficassem para jantar com ele. As expectativas perante a chegada de um novo papa desfizeram-se com as primeiras nomeaes. Para dirigir a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum, Joo Paulo II escolheu monsenhor Luigi Poggi, nascido h sessenta e um anos na regio italiana de Piacenza e que tinha ocupado o cargo de delegado apostlico na Polnia desde 1975. Poggi era sem dvida aquele de quem precisaria a Santa Aliana na altura em que comeavam a surgir as primeiras brechas na Cortina de Ferro. Trata-se de novos tempos e para isso so precisos uns servios de espionagem ativos num dos pontificados mais polticos de toda a histria da Igreja Catlica Romana e quando ainda se sentem as repercusses pelas aes econmicas do IOR. Se fosse eleito o cardeal Benelli, no restava a menor dvida de que o cardeal Jean Villot seria substitudo, enquanto Marcinkus, Mennini e De Strobel seriam demitidos e talvez processados, mas no aconteceu nada disso. O cardeal polaco Karol Wojtyla foi o eleito e tudo continuou na mesma apesar da mudana de papa. Toda a informao sobre o escndalo financeiro recolhida pelo cardeal Benelli, a Santa Aliana, o Sodalitium Pianum e o cardeal Felici foi posta sua disposio e tambm lhe entregaram as provas dos membros da Maonaria que faziam parte da Cria, mas tudo ficou tal como estava. O cardeal Jean Villot foi confirmado frente da Secretaria de Estado, Paul Casimir Marcinkus, ajudado por Mennin e De Strobel, continuou a reger os destinos do IOR e a encobrir as atividades ilegais do Banco Ambrosiano. Calvi, Gelli e Ortolani continuaram com toda a liberdade para se dedicarem ao roubo sistemtico, apoiados pelo IOR. Por sua vez, Sindona estava em condies de continuar em liberdade nos Estados Unidos longe da alada da lei italiana. Como diria um dia a personagem do prncipe de Lampedusa, no clebre romance O Leopardo: Faz falta que tudo mude para que tudo continue igual. Dez anos aps a sua fundao por Licio Gelli, a loja Propaganda 2 continuou a operar e a manipular a poltica de vrios pases e a apoiar golpes de Estado, como o dos militares argentinos. Entre 1979 e 1982, cinco cardeais relacionados com o inqurito do IOR e do Banco Ambrosiano, gozando de boa sade e com uma mdia de idades de sessenta e nove anos, faleceram misteriosamente: Jean Villot, setenta e trs anos, Srgio Pignedoli, setenta anos, Egidio Vagnozzi, setenta e quatro anos, Pericle Felici, setenta anos, e ainda Giovanni Benelli, com sessenta e um anos. Vrios escritores investigaram a misteriosa morte do papa Joo Paulo I, como o investigador David Yallop no seu livro In Gods Name. An Investigation into the murder of Pope John Paul l, e o historiador John Cornwell, na sua obra A Thied in the Night. Life and Death in the Vatican. Mas enquanto Yallop defende que a morte de Joo Paulo I foi o resultado da conjura organizada pela loja P-2 e os crculos financeiros que rodeavam o IOR, Cornwell sustenta que, embora a morte do papa possa ter sido natural, no descarta qualquer conspirao financeira que considerasse ser conveniente a sua morte para continuar com as obscuras operaes financeiras. Fosse como fosse, o certo que a morte de Joo Paulo I continua a ser um dos maiores e mais bem guardados segredos de toda a histria do Estado do Vaticano. As intervenes da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum neste caso foram apenas testemunhais e quase acidentais. Corn a chegada do papa Joo Paulo II ao trono de So Pedro, os agentes da Santa Aliana assumiriam um papel muito mais ativo em operaes clandestinas, como a venda de armas Argentina durante a Guerra das Malvinas/Falklands contra a Gr-Bretanha de Margaret Thatcher, ou o financiamento ilegal com fundos desviados do IOR feito ao sindicato Solidariedade de Lech Walesa. De qualquer forma, faltava ainda ajustar contas com muitos dos maiores protagonistas dos escndalos financeiros em que o Vaticano estava envolvido e nesse plano, verdade, a Santa Aliana atuaria de forma decisiva na hora dos assassinos.
19
A hora dos assassinos (1979-1982)
Todos os dias as minhas palavras me fazem hesitar, apenas pensam causar-me dano, espiam os meus passos para atentar contra a minha vida. Salmos 55, 7
O coronel Ryszard Kuklinski abriu a porta de par em par para anunciar ao general Wojciech Jaruzelski que Karol Wojtyla acabava de ser eleito Sumo Pontfice. Com cinquenta e sete anos, para o ministro da Defesa da Repblica Popular da Polnia aquela notcia no era melhor nem pior do que qualquer outra, mas o que ele no sabia nesse momento era que a eleio de um polaco como novo papa lhe causaria mais uma dor de cabea. Entretanto, os restos do escndalo IOR continuavam a cair sobre o Vaticano e uma obscura mo como a de Licio Gelli estaria disposta a solucionar a questo. Em Janeiro de 1979, Mrio Sarcinelli convenceu Roberto Calvi a apresentar-se diante da comisso especial do Banco de Itlia. O banqueiro de Deus seria interrogado acerca das suas relaes com a Suprafin, sobre os contactos entre o Banco Ambrosiano e o IOR de Marcinkus e sobre a filial do banco que operava em Nassau. Um dos investigadores solicitou a Calvi que indicasse os nomes dos acionistas do Ambrosiano, mas o banqueiro de Deus recusou-se. Um outro obstculo seria o advogado e jornalista Carmine Mino Pecorelli. Na sua revista OP, Pecorelli revelou um grande nmero de escndalos nos anos sessenta. A maior parte deles procediam de vrias fontes de informao, muitas das quais relacionadas com a Mfia. Com o passar dos anos, a OP tomou-se numa importante fonte de informao no apenas para os polticos, mas tambm para os financeiros, advogados e inspetores fiscais. A verdade que o jornalista tinha acesso a fontes de informao privilegiadas graas aos estreitos contactos com membros dos servios secretos italianos, com os servios secretos papais e, naturalmente, com pessoas de destaque na loja Propaganda 2. Pecorelli era membro da P-2 por causa das suas relaes com Lido Gelli. O prprio gro-mestre pedia aos seus poderosos irmos da loja que facilitassem papis e documentos OP com o intuito de denunciar todos aqueles que se opusessem em segredo a favor da loja ou ainda pelos interesses da P-2. Em meados de 1977, Pecorelli decidiu iniciar uma investigao sobre um dos maiores roubos na histria das finanas da Repblica da Itlia. O caso consistia na adulterao e venda fraudulenta de um derivado de petrleo que se utilizava para o aquecimento central nos edifcios e como combustvel nos camies. Os lucros, segundo os dados que Pecorelli apresentava, chegavam a quase nove mil e quinhentos milhes de dlares. O jornalista continuou a investigar perigosamente at descobrir que nessa fraude estavam implicados o IOR e o monsenhor Paul Marcinkus. Atravs de um agente livre da Santa Aliana, talvez o jesuta polaco Kazimierz Przydatek, o Banco Vaticano desviava o dinheiro sujo obtido para contas no estrangeiro, sobretudo em Nassau e na Sua. Num certo dia de Agosto de 1988, os artigos sobre o escndalo do combustvel deixaram de aparecer. Pecorelli foi pressionado pelo senador democrata-cristo Cludio Vitalote, pelo juiz Cario Testi e pelo general Donato Prete, da Central de Finanas, para que esquecesse o assunto. Fala-se tambm de uma misteriosa visita que Przydatek ter feito ao jornalista. Uma fonte garantiu, aps o assassnio de Pecorelli, que o jesuta polaco e espio dos servios secretos do Vaticano, Kazimierz Przydatek, era um agente livre s ordens de monsenhor Marcinkus. Em princpios de 1978, Mino Pecorelli comeou de novo a publicar artigos sobre a infiltrao da Maonaria no Vaticano e em especial nos seus trs grandes ncleos de poder: diplomacia, finanas e nos servios secretos. Num dos artigos o jornalista publicava uma lista com os nomes dos principais membros da Maonaria vaticana, onde apareda o nome do poderoso cardeal Jean Villot. Licio Gelli soube que, se essa lista chegasse s mos do papa Luciani, poderia coloc-los em srias dificuldades e em especial Paul Marcinkus e Roberto Calvi. Aps a morte de Joo Paulo I, Gelli negociou diretamente com Pecorelli e, segundo parece, o jornalista estimou o seu silncio em cerca de trs milhes de dlares, mas Gelli negou-se a pagar tal valor. O primeiro artigo apareceu na OP, o que deixava em m posio o prprio Licio Gelli. O texto afirmava que o gro-mestre da loja P-2 tinha sido espio do KGB e depois da CIA americana e por ultimo trabalhara para a Santa Aliana Vaticana. Passados alguns dias sobre o aparecimento dos primeiros cinco artigos nas pginas da OP, Licio Gelli convidou Mino Pecorelli para jantar e falar do assunto. Nessa noite, Przydatek foi visto perto da casa de Pecorelli, mas nunca foi interrogado a esse respeito pela polcia italiana. Na noite seguinte, dia do encontro com Gelli, Pecorelli trabalhou todo o dia no seu gabinete. Uma hora antes da reunio marcada com o lder da P-2, Mino Pecorelli saiu do edifcio e seguiu na direo do carro estacionado no parque. Nessa altura, dois homens aproximaram- se do jornalista e deram-lhe trs tiros na boca. A Mfia tinha feito a sua justia especial, aplicando em Pecorelli o sasso in bocca, que significa que um traidor no voltar a falar. Mas nunca ningum foi detido por causa deste assassnio. A 29 de Maro de 1979, algum deu ordem para que fossem presos os diretores do Banco de Itlia que investigavam as conexes do Banco Ambrosiano e do IOR de Marcinkus. Mrio Sarcinelli e Paolo Baffi foram presos e acusados de esconder deliberadamente informaes sobre o inqurito. Apesar de Sarcinelli, chefe de investigadores do Banco de Itlia, ter sido posto em liberdade, o juiz negou-se a permitir o seu reingresso no banco e, portanto, a no prosseguir no trabalho de inqurito do caso do Banco Ambrosiano. Um outro inspetor que tentara fazer um inqurito independente sobre as relaes entre Michele Sindona e o Banco Vaticano foi Giorgio Ambrosoli. Como inspetor liquidatrio do imprio Sindona desde 1974, pde denunciar as operaes que o banqueiro da Mfia tinha realizado em colaborao com o Banco Vaticano. A sua investigao permitiu identificar quase noventa e sete altos funcionrios da administrao, da poltica, das finanas e do Vaticano relacionados com contas- correntes no estrangeiro, sobretudo em Londres, na Sua e nos Estados Unidos. Nessa lista apareciam os nomes de homens de confiana do papa Paulo VI e depois de Joo Paulo II, como Mximo Spada ou Luigi Mennini. O inspetor Ambrosoli achou provas irrefutveis da cumplicidade do Banco Vaticano com as operaes fraudulentas realizadas por Michele Sindona. Em Maio de 1979, Ambrosoli calculava a falncia do imprio Sindona por perdas prximas dos setecentos e cinquenta e sete mil milhes de liras. Com o inspetor Giorgio Ambrosoli colaboraram tambm Boris Giuliano, superintendente das foras policiais em Palermo, e o tenente-coronel Antnio Varisco, chefe de segurana de Roma. Giuliano ps-se a investigar Sindona quando de forma casual descobriu no colete de um mafioso assassinado dois cheques que incriminavam o banqueiro da Mfia com o envio de dinheiro sujo procedente do trafico de herona para uma conta bancria no Caribe. Por sua vez, Varisco efetuou uma investigao profunda sobre as origens da P-2. Por exemplo, Ambrosoli descobriu como tinha mudado de mos a Banca Cattolica dei Veneto e como um agente da Santa Aliana de um pas de Leste (possivelmente, Kazimierz Przydatek) transportara em duas maletas nove milhes e meio de dlares em comisses que eram destinadas a Roberto Calvi, Paul Marcinkus e ao cardeal John Cody. A 11 de Junho de 1979, Ambrosoli foi assassinado entrada de sua casa por William Arico, um assassino profissional. Uma vez mais vrias testemunhas relataram polcia que, alguns dias antes da morte do inspetor, um homem alto, de cabelos castanho-claros, tinha sido visto nas proximidades a tomar notas de alguma coisa. Przydatek, o agente da espionagem pontifcia que trabalhava para Marcinkus, parecia coincidir com essa descrio. A l3 de Junho, o tenente-coronel Antnio Varisco foi assassinado quando dois homens o metralharam num semforo. A 20 de Julho, Boris Giuliano entrou no Lux Bar, em Palermo, como fazia todas as manhs para tomar o seu caf. Quando se dirigia caixa para pagar a despesa, um homem aproximou-se dele por trs e disparou um tiro na nuca. Antes de sair do local, o assassino colocou sobre o corpo um cravo branco. Uma investigao demonstraria anos depois que o cravo branco era um sinal utilizado pela Inquisio em Roma durante os anos em que o cardeal e inquisidor-geral Miguel Ghislieri espalhava o terror na Cidade Eterna. O cravo branco era colocado pelos denunciantes annimos para indicar as casas dos que deviam ser presos e torturados pelo Santo Ofcio. Embora Ambrosoli no tivesse concludo a sua investigao, o volumoso dossier serviu como prova acusatria durante o julgamento que decorreu em Nova Iorque contra Michele Sindona. Tanto Roberto Calvi como Paul Marcinkus negaram sempre terem recebido qualquer comisso pela venda da Banca Cattolica dei Veneto. O julgamento de Sindona pelo colapso do Franklin Bank comeou em Fevereiro de 1979. Altos membros da Cria Romana, como Paul Marcinkus, e ilustres cardeais, como Giuseppe Caprio e Srgio Guerri, estavam prontos a depor a favor de Sindona, mas poucas horas antes das suas declaraes, na embaixada dos Estados Unidos em Roma, o cardeal Agostino Casa-roli, ao que parece por ordem expressa do papa Joo Paulo II, exigiu que Marcinkus, Capri e Guerri mantivessem a boca fechada. A seguir, o Vaticano, atravs da Secretaria de Estado, emitiu um comunicado em que dizia: Podem criar um precedente muito conflituoso e prejudicial. Houve demasiada publicidade. Di-nos muito que o Governo dos Estados Unidos no reconhea o Vaticano no plano diplomtico, porque o Vaticano um Estado de direito. 10 A verdade que Casaroli salvou o Estado do Vaticano de um escndalo, sem saber que tinha desobedecido a uma ordem expressa do papa Joo Paulo II, que autorizava Marcinkus, Capri e Guerri a declarar a favor de Sindona, mas o fiel Casaroli s saberia disso anos depois. Por fim, a 23 de Maro de 1980, Michele Sindona, o banqueiro da Mfia, foi declarado culpado em noventa e cinco crimes, entre eles os de fraude, conspirao, perjrio, falsificao de documentos bancrios e apropriao indevida de fundos depositados nos seus bancos. Sindona ficou preso no Centro Correcional Metropolitano de Manhattan espera da sentena. Enquanto passava as horas numa cela e trocava os fatos de mil e quinhentos dlares por um quimono laranja de presidirio, Roberto Calvi e Paul Marcinkus continuavam com os seus negcios sujos. Uma das sociedades mais rentveis para o Vaticano seria a Bellatrix, com sede no Panam. Embora tivesse sido fundada em 1976 por Calvi com dinheiro do IOR, todas as suas operaes eram realmente controladas e dirigidas pelo prprio Marcinkus, em representao do IOR, Licio Gelli, o manico Umberto Ortolani e Bruno Tassan Din, diretor executivo e estratego financeiro do poderoso grupo editorial Rizzolil. Atravs da Bellatrix foram transferidos milhes de dlares todos os dias para contas secretas. Por um lado, entravam fundos provenientes da lavagem de dinheiro do trfico de drogas ou de operaes financeiras fraudulentas, e, por outro lado, o dinheiro saa para as mos de polticos corruptos sul-americanos. Por conta da Bellatrix, Marcinkus tinha ali colocados trs agentes da Santa Aliana que o informavam diretamente, saltando por cima do chefe imediato, monsenhor Luigi Poggi. A espionagem vaticana sabia que em Setembro de 1976 Calvi tinha aberto em Managua uma sucursal do Banco Comercial, pertencente ao Grupo Ambrosiano. Mesmo que a funo oficial fosse facilitar as transaes comerciais entre pases da regio, a extra-oficial, com a aprovao de Paul Marcinkus, consistia em desviar fundos resultantes dos negcios fraudulentos para contas em Nassau. Era claro que para Luigi Poggi e para a Santa Aliana seria melhor fechar os olhos face s operaes fraudulentas preparadas por Marcinkus atravs do IOR, uma vez que, no fim de contas, os seus lucros sempre poderiam ser utilizados para financiar operaes encobertas a favor da Igreja e sempre na defesa da f. Foi Lido Gelli quem apresentou Anastasio Somoza a Calvi. Em troca de converter a Nicargua num refgio seguro para o dinheiro B do Vaticano e pelo passaporte diplomtico nicaraguano que estaria nas mos de Calvi at ao dia da sua morte, o IOR pagou grandes somas ao ditador, sempre atravs de maletas que eram levadas por qualquer agente da Santa Aliana. No comeo de 1978, os sandinistas conseguiram derrubar o ditador e tomaram conta do poder na Nicargua. A primeira medida do novo regime foi a nacionalizao de toda a banca estrangeira, com exceo do Banco Comercial do Grupo Ambrosiano. Por mero acaso, como em toda a histria da poltica externa do Vaticano, o IOR de Paul Marcinkus havia enviado milhes de dlares para os comandantes da Frente Sandinista de Libertao Nacional (FSLN) para que pudessem comprar material de guerra em pases como a Espanha, a Frana e a Blgica. As aes do Banco Ambrosiano, negociadas ilegalmente e postas em companhias fantasmas criadas pelo IOR no Panam, estavam fora do alcance dos inspetores do Banco de Itlia, mas Calvi no se mostrava muito tranquilo com a chegada dos sandinistas e por isso resolveu mudar todos os seus negcios da Nicargua para o Peru. Nesse sentido, a 1 de Outubro de 1979 inaugurou o Banco Ambrosiano Andino, mas apenas as operaes da Bellatrix foram transferidas para Lima, porque as outras empresas continuaram a proliferar no Luxemburgo. No total, dezanove sociedades financeiras operavam a partir da cidade europeia e todas elas pertenciam ao IOR, como demonstra o certificado expedido pelo prprio Banco Vaticano e assinado por Paul Marcinkus.
BANCO AMBROSIANO ANDINO S. A.
-Peru Gentlemen: This is to confirm that we directly or indirectly control the following entries: -Manic S. A., Luxembourg-Astolfine S. A., Panama-Nordeurop Establishment, Liechtenstein-U. T. C. United Trading Corporation, Panama-Erin S. A., Panama- Bellatrix S. A., Panama-Belrosa S. A., Panama-Starfield S. A., Panama We also confirm our awareness of their indebtedness towards yourselves as of June 10, 1981 as per attached statement of accounts. Yours faithfully, Certificado do IOR assinado por Paul Marcinkus em que se reconhece que o Vaticano proprietrio de empresas em parasos fiscais, entre elas, a Bellatrix. No final de 1979, os prejuzos do IOR atingiam os duzentos milhes de dlares e para o ano seguinte estavam previstos duzentos e oitenta milhes. De acordo com o cardeal Srgio Guerri, administrador do Governo da Cidade do Vaticano, o papa Joo Paulo II ter-lhe- dito pessoalmente que a seguir a mesma tendncia estava convencido de que em finais de 1985 se poderia dizer que o Estado da Cidade do Vaticano se encontraria por completo arruinado. Mas ao mesmo tempo tinha sido tomado pblico um relatrio do Bank for Internacional Settlements que se assinalava que entre 1978 e 1979 o IOR depositara em bancos estrangeiros fundos entre novecentos a mil e trezentos milhes de dlares. Os fundos totais depositados dentro e fora do Vaticano podiam nessa altura aproximar-se dos dois mil e quinhentos milhes de dlares. Joo Paulo II conhecia este dado, mas omitiu-o durante a sua reunio com os cardeais Felici e Benelli. No incio de 1980, enquanto a dvida externa da Polnia aumentava e o pas enfrentava um Inverno sem carvo, o governo decidiu lanar mo ao congelamento salarial e aumentar os preos dos bens essenciais e por isso ningum se alarmou quando comearam a ser decretadas greves gerais por todo o pas. Enquanto o papa trabalhava em Castelgandolfo com monsenhor Luigi Poggio, o seu chefe de espies, o eletricista no desemprego Lech Walesa, de ombros largos e bigode farto, subia para cima de uma escavadora nos estaleiros Lenine. Ao longo de vrios meses os trabalhadores dos estaleiros tinham-se recusado a aderir as greves. A economia da Polnia estava em quebra, milhes de operrios mos-travam-se descontentes e as greves, que de incio eram espontneas, alargaram-se a mais de cento e cinquenta grandes empresas. Apesar de a polcia ter morto quarenta e cinco trabalhadores nos estaleiros desde 1970, ningum queria um novo confronto, mas nesse dia, e enquanto o gerente e director dos estaleiros de Gdansk, Klemens Giech, prometia aumentos salariais aos que voltassem ao trabalho, Lech Walesa do cimo da escavadora gritava e chamava mentiroso a Giech. A verdade que o que numa primeira fase eram greves isoladas tornou-se em pouco tempo como verdadeiras insurreies polticas contra-revolucionrias, segundo as palavras de Lenidas Brejnev. Walesa contra-atacou quando a 16 de Agosto vrios trabalhadores estiveram prestes a abandonar a greve por um aumento salarial volta de mil e quinhentos zulotes e uma garantia para construir nos estaleiros um monumento memria das vtimas de Dezembro de 1970. Muito entusiasmado, Walesa apresentou uma lista com dezasseis exigncias e, quando estavam quase a ser aceites, apresentou uma outra corn mais vinte e uma reivindicaes, que inclua a aceitao por parte do governo de um sindicato livre. Nesse mesmo dia, cento e oitenta fbricas do pas uniram-se em bloco greve, apoiando todas as exigncias feitas por Walesa. Entretanto, no Vaticano, o papa Joo Paulo II recebia os relatrios elaborados pelos agentes da Santa Aliana e que monsenhor Luigi Poggi arquivava em belas pastas na presena do cardeal Agostino Casaroli. Poggi ordenara ao agente e sacerdote jesuta polaco Kazimierz Przydatek que formasse um grupo de religiosos da sua prpria nacionalidade para que se infiltrassem nos crculos grevistas e nos sindicatos. A partir desse momento, Przydatek tornou-se uma sombra de Walesa e no melhor espio do Vaticano sobre a situao polaca. Segundo o papa, Walesa foi enviado por Deus, pela Providncia, e Poggi precisava de um contacto permanente junto do lder sindical. Todas as noites, o agente da Santa Aliana recolhia informaes em primeira mo depois de conversar com trabalhadores e religiosos. Urna das suas melhores fontes era o padre Henryk Jankowski, da Igreja de Santa Brgida, a parquia de Lech Walesa em Gdansk. O papa Joo Paulo II gostou de saber como vrios trabalhadores do estaleiro tinham escalado as altas redes de arame, onde penduraram enormes fotografias do papa diante do aparato da polcia que vigiava as instalaes. Przydatek sabia desde os tempos da sua colaborao com Paul Marcinkus o que gostavam de ouvir no Vaticano e estava disposto a faz-lo. Kazimierz Przydatek inventou mesmo que os operrios tinham desobedecido a uma ordem de parar e, depois de subirem s redes, arrancaram as imagens dos dirigentes polacos para as trocar pelas de Joo Paulo II. Claro que era mentira, mas o Sumo Pontfice ficou muito satisfeito com a histria. O sindicato criado recentemente por Lech Walesa, com o nome de Solidariedade, seria o objetivo seguinte da Santa Aliana. Perante o receio de que o sindicato se convertesse em mais um refgio de comunistas moderados, o papa ordenou a Poggi que os seus agentes se infiltrassem no Solidariedade e obrigassem de alguma forma os seus dirigentes a aceitar uma organizao muito mais aberta em que estivessem representados dirigentes e intelectuais claramente catlicos. Przydatek convenceu Walesa a aceitar na direo do sindicato Tadeusz Mazowiecki, chefe de redao do jornal Wiez, e o historiador catlico Bronislaw Geremek. A partir desse momento, o movimento grevista passou a ficar sob o controle da Igreja e em poucos dias a Santa Aliana informou Poggi de que o cardeal-primaz Wyszynski preparava uma homilia contra a greve e o governo de Varsvia deu-lhe eco na televiso pblica. Poggi transmitiu a Casaroli, mas o perito diplomtico sabia que nada poderia dizer ao papa sobre o seu amigo e antigo protetor. O cardeal Wyszynski comeou nesse dia a falar sobre os erros que todos cometem e que ningum (referia-se aos grevistas) deveria incriminar o prximo (o governo comunista polaco). Todos cometemos erros e pecados, disse o cardeal no plpito do templo de Czestochova. A parte mais importante do discurso foi quando se referiu s exigncias da parte dos grevistas: No podem exigir tudo de uma vez. melhor estabelecer um programa. Ningum dever colocar o pas em perigo, disse ele. O discurso caiu como uma bomba. Os grevistas consideraram ser um claro apoio da Igreja para atrasar as reivindicaes de um sindicato independente e os intelectuais catlicos protestaram pelo discurso, mas mantiveram-se em silncio. Por sua vez, Walesa no fez caso do que disse o arcebispo-primaz e o papa Joo Paulo II passou trs dias a murmurar por entre dentes nos corredores de Castelgandolfo, dizendo a mesma frase: Ah! Esse velho esse velho. A 31 de Agosto de 1980, seriam assinados os clebres Acordos de Gdansk, que ratificavam a criao do primeiro sindicato independente para l da Cortina de Ferro, enquanto o Solidariedade, com o apoio poltico do Vaticano e do papa Joo Paulo II, e financeiro atravs da Santa Aliana, comeou a estender-se por todo o pas. Poucos dias depois, Edward Gierek perdeu o poder e foi substitudo por Stanislavv Kania. A 29 de Outubro de 1980, reuniu-se em segredo e numa sesso extraordinria o Politburo da Unio Sovitica. Andropov, Gorbachov, Kirilenko, Chemenko, Rusakov e todos os outros abordaram a situao da Polnia. Creio, e os fatos o demonstram, que os dirigentes polacos no entendem plenamente a gravidade da situao conhecida, afirmou Yuri Andropov, chefe do KGB. A no ser que se imponha a lei marcial, as coisas podem complicar-se ainda mais. As nossas foras do Norte esto na plena disposio e bem preparadas para a luta, afirmou Ustinov, mas a mais radical das posies foi de Andrei Gromiko, ministro dos Negcios Estrangeiros, quando disse: No devemos perder a Polnia. A Unio Sovitica perdeu seiscentos mil soldados para a libertar do jugo nazi. No podemos permitir uma contra-revoluo. E todos ficaram calados. Ningum desejava uma nova revolta hngara como a de 1956, nem uma Primavera de Praga como a de 1968. De fato, nos incios de 1980, nenhum dirigente sovitico queria ver os tanques russos avanar no solo de Varsvia para reprimir uma contra-revoluo. Dois dias depois dessa reunio, Joo Paulo II e Agostino Casaroli tinham em seu poder, graas a um agente da Santa Aliana infiltrado no Ministrio da Defesa da Polnia, tudo o que fora transmitido a Varsvia a partir de Moscovo. Esse agente era de fato o coronel Ryszard Kuklinski, ajudante de campo do general Wojciech Jaruzelski. A 20 de Janeiro de 1981, Ronald Reagan assumiu a presidncia dos Estados Unidos, mas algumas semanas antes de prestar juramento no Capitlio tinham j sido estabelecidos alguns contactos estratgicos entre Washington e a Cidade do Vaticano, entre Ronald Reagan e o papa Joo Paulo II, entre William Casey, da CIA, e monsenhor Luigi Poggi, da Santa Aliana. Desde finais de 1980, os contactos entre os Estados Unidos e o Vaticano sobre a situao na Polnia foram estabelecidos entre Zbigniew Brzezinski, assessor da Segurana Nacional do presidente Crter, e o cardeal Josef Tomko, chefe da Propaganda do Vaticano e antigo chefe da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum. Tomko foi o chefe do S. P. at Joo Paulo II ter nomeado monsenhor Luigi Poggi como responsvel dos servios de inteligncia do Vaticano, que ficaram assim ligados num nico comando, ou seja, na situao que ainda se mantm. Foram Tomko e Brzezinski que prepararam, com a autorizao de Jimmy Crter e de Joo Paulo II, a chamada Operao Livro Aberto, que consistia em inundar de livros anti-comunistas os pases do Leste e as regies da Unio Sovitica como a Ucrnia e os estados blticos. Esta operao seria coordenada pela CIA e a Santa Aliana atravs dos padres que trabalhavam nessas zonas. Enquanto Joo Paulo II apoiava a Operao Livro Aberto, Crter limitava-se a fazer algumas objees. Zbigniew Brzezinski escreveria anos depois nas suas memrias: Era claro que Joo Paulo II que devia ser eleito presidente dos Estados Unidos e Jimmy Carter escolhido como Sumo Pontfice. medida que os acontecimentos ofereciam a maior possibilidade de as foras soviticas entrarem na Polnia, a Santa Aliana resolveu compartilhar com a CIA a informao fornecida pelo coronel Kuklinski, que durante onze anos, como militar polaco e oficial do Estado-Maior, fornecera informaes muito valiosas aos servios secretos do Vaticano. Com a nova administrao a funcionar, o Vaticano tinha dois novos interlocutores para o problema da Polnia: Richard Allen, conselheiro da Segurana Nacional, e William Casey, director da CIA. As ligaes de Kuklinski e da Santa Aliana e o Vaticano faziam com que a informao fosse muito importante do ponto de vista de anlise estratgica. Zbgniew Brzezinski conservava a sua posio de elemento de ligao entre a Casa Branca e a Santa Aliana de Poggi. O certo que a viso que Ronald Reagan tinha da Igreja Catlica e do Vaticano era muito diferente das anteriores administraes, mesmo da de John F. Kennedy, o nico presidente catlico dos Estados Unidos. Reagan era filho de um trabalhador catlico irlands e isso marcou-o muito. Um dos principais ncleos de votantes eram os catlicos e sentia-se bastante apoiado por eles. Para Reagan e os seus assessores, a Igreja era o perfeito contraforte do comunismo. Tal como o papa Joo Paulo II, o presidente dos Estados Unidos considerava o marxismo, o leninismo e o comunismo como os sinais do mal que era preciso afastar do Mundo. Era muito claro que o Solidariedade representava para Moscovo uma ameaa sria sem precedentes, talvez uma infeco que estava a contagiar um sistema monoltico como era o comunista e, se chegasse. A infectar os estados blticos, poderia chegar a desfazer o bloco sovitico. Joo Paulo II e os principais assessores do Vaticano estavam bem convencidos de que se o sindicato Solidariedade triunfasse na Polnia a onda expansiva afetaria tambm a Ucrnia, os Balcs, a Letnia, a Litunia, a Estnia e talvez a Checoslovquia. Reagan entendeu que, se assim fosse, poderia pensar no fim da Guerra Fria e no triunfo do capitalismo sobre o comunismo. Durante uma reunio do presidente Reagan com William Casey e William Clark, assessor presidencial, este declarou: No nos podemos Ver a entrar no pas e derrubar o governo em nome do povo. A nica coisa que podemos fazer utilizar o Solidariedade como arma para conseguir isso. Reagan resolveu ento que o Solidariedade receberia ajuda financeira dos Estados Unidos. Casey no sabia de onde sairiam os fundos, mas isso seria resolvido no corao do Vaticano. Como elo de ligao para as novas operaes conjuntas da CIA com a Santa Aliana na Polnia foi nomeado Jan Nowak, chefe do congresso polaco- americano. A sua funo era manter o fluxo constante de informaes entre Varsvia e o Vaticano e do Vaticano at Washington. Nowak tambm se ocuparia da recolha de fundos e do envio de dinheiro para a Polnia a fim de financiar a imprensa clandestina, a aquisio de mquinas tipogrficas, a compra de fotocopiadoras e outro material. Uma outra figura que teve um grande protagonismo na Operao Polnia foi o delegado apostlico do papa em Washington, o arcebispo Pio Laghi. Casey e Clark gostavam de visitar Laghi na sua residncia e, enquanto tomavam caf, falavam da situao poltica na Amrica Central, do controle da natalidade, mas sobretudo o tema principal era a Polnia. Ronald Reagan precisava de saber todos os aspectos da espionagem desenvolvida pela Santa Aliana na Polnia e nessa altura apareceu tambm em cena o cardeal John Krol, de Filadlfia. Allen, Casey e o prprio Reagan comearam a reunir-se com Krol e o cardeal entrava mesmo pela porta traseira da Casa Branca. Mais do que nenhuma outra figura da Igreja, Krol esforava-se por manter a Casa Branca sempre informada acerca da situao do Solidariedade, das suas necessidades e das relaes com o episcopado polaco. Apesar de John Krol em muitos sentidos interferir nas operaes e comunicaes da Santa Aliana de monsenhor Luigi Poggi para o Vaticano e para o papa Joo Paulo II, a relao do arcebispo de Filadlfia com o presidente Ronald Reagan devia ser aproveitada e os prprios colaboradores de Reagan chamavam a John Krol o Compincha do Papa. Na Primavera de 1981, as relaes entre a Casa Branca e o Vaticano eram muito fluidas, em especial sobre as questes relacionadas com a Polnia e a Amrica Central. Por isso mesmo, William Casey, Vernon Walters, William Clark e Zbigniew Brzezinski, pelo lado norte-americano, e monsenhor Luigi Poggi e os cardeais Pio Lagni, John Krol e Agostino Casaroli, pelo lado do Vaticano, tornaram-se numa espcie de fora de choque, cujo nico objetivo era apoiar o sindicato Solidariedade na sua luta particular contra o governo comunista de Varsvia. Sempre que Walters, o embaixador especial de Reagan, regressava de Roma, onde tinha encontros secretos com o papa Joo Paulo II, os seus relatrios eram mais abundantes. Walters falava com o papa acerca da Polnia, da Amrica Central, do terrorismo, do Chile, do poder militar chins, da Argentina, da teologia da libertao, ou da sade de Lenidas Brejnev, das ambies nucleares do Paquisto, da Ucrnia ou da situao no Prximo Oriente. Mas o que de fato faziam Joo Paulo II e Vernon Walters era manter contatos geo-estratgicos. Como contrapartida, a Santa Aliana recebeu da CIA relatrios baseados em comunicaes telefnicas travadas entre padres e bispos da Nicargua e El Salvador, que apoiavam a teologia da libertao e assim participavam ativamente na oposio s foras apoiadas pelos Estados Unidos. Por ordem de William Casey, Oliver North e outros membros do Conselho de Segurana Nacional fizeram pagamentos secretos a padres da classe dirigente da Amrica Central e leais ao papa e Santa Aliana. Na verdade, no existe nenhum documento que demonstre que o papa Joo Paulo II ou qualquer outro alto dignitrio do Vaticano aprovasse tais pagamentos, embora haja indcios de que Luigi Poggi devia saber. A 23 de Abril de 1981, William Casey chegou a Roma. O objetivo da viagem era tratar da manuteno do apoio da CIA e da Santa Aliana ao Solidariedade. O director da Agncia sabia que a situao da Polnia era mais um processo evolutivo do que revolucionrio e no havia a menor dvida de que era necessrio conseguir que se afastasse da rbita sovitica. O papa Joo Paulo II e Casaroli encontrar-se-iam por trs vezes com o embaixador sovitico em Roma e Casey seria informado de tudo o que tratavam. Jaruzelski temia um autntico desastre que passasse pela interveno das tropas do Exrcito Vermelho em Varsvia e que afastasse os homens do Solidariedade, e nesse sentido solicitou ajuda ao cardeal Wyszyinski para que convencesse Walesa a suspender a greve geral. Quando Walesa e os outros dirigentes se recusaram, o cardeal ps-se de joelhos diante dele, agarrou-o pelas calas e disse que no o soltaria enquanto no se comprometesse a suspender a greve. A chantagem emocional funcionou e Walesa ordenou o fim da greve, permitindo ao general Jaruzelski comunicar a Moscovo que tinha a situao controlada. A 9 de Fevereiro de 1981, Jaruzelski foi nomeado primeiro-ministro da Repblica Popular da Polnia e nesse dia o general foi investido no cargo depois de um golpe de Estado e da posterior demisso de Jozef Pinkowski. Conforme Luigi Poggi informou o papa, Jaruzelski era considerado como um duro e contrrio a qualquer forma de liberalizao da vida pblica e sem dvida alguma converter-se-ia no principal inimigo do Solidariedade e ainda das operaes que a Santa Aliana estava a levar a cabo na Polnia. Durante a reunio com o papa, William Casey falou da Amrica Central, da possvel extenso do comunismo em toda a rea centro-americana, do treino de militares nicaraguanos e sandinistas por parte de Cuba. Segundo disse Casey a Joo Paulo II, os russos, os cubanos, os blgaros e os norte-coreanos esto comprometidos. Entregou ainda ao papa Joo Paulo II uma pasta com um relatrio em cuja capa aparecia a indicao de Alto Segredo. O Sumo Pontfice no a abriu, mas passou-a a monsenhor Luigi Poggi, que estava a seu lado e sempre presente nos encontros do Santo Padre com o director da CIA. O relatrio tinha sido entregue pelo servio de espionagem italiano CIA e esta por sua vez passou-o Santa Aliana. Falava-se a de que quando Lech Walesa viajou para Roma, em Janeiro, para visitar o papa se tinha tambm reunido com Luigi Scricciollo, da Confederao Italiana do Trabalho. A contra-espionagem italiana dizia no relatrio que Scricciollo era de fato um agente dos servios secretos blgaros. Para os italianos isso significava que os planos do Solidariedade podiam ser conhecidos ou que Lech Walesa podia ser assassinado. A l3 de Maio de 1981, nada fazia adivinhar a tragdia que se avizinhava. Joo Paulo II almoou ao meio-dia com vrios convidados e pelas cinco da tarde o papa dirigiu-se ao Palcio Apostlico para celebrar a audincia geral semanal na Praa de So Pedro, a qual comeou com pontualidade. Milhares de pessoas apinhavam-se no crculo formado pela Colunata de Bernini: 264 colunas coroadas por 162 esttuas de santos. O percurso que o Papa-mvel devia realizar j estava delimitado, quando um jovem turco chegara praa meia hora antes. O papa Joo Paulo II recusou levar escolta. Chegou ao veculo e num salto subiu para a plataforma. Seguiam-no de perto Camillo Cibin, chefe de Segurana do Vaticano, dois agentes de fato azul, dois agentes da Santa Aliana e frente quatro membros do corpo da Guarda Sua. Poggi tinha convocado Cibin meses antes para lhe dar a conhecer que receberam um relatrio da espionagem francesa no qual se falava de uma trama de qualquer servio secreto do Pacto de Varsvia para tentar matar o Sumo Pontfice e que por isso os seus homens deviam estar atentos. s 5.18 da tarde, e quando o papa estava com uma menina ao colo, soou o primeiro tiro na praa de So Pedro. Com as mos agarradas na barra do Papa- mvel, Joo Paulo II comeou a cambalear. A bala disparada por Mehmet Ali Agca perfurou-lhe o estmago e causou graves ferimentos no intestino delgado, clon e intestino grosso. Sem pestanejar, o papa Joo Paulo Il, que sabia estar ferido pela dor insuportvel no estmago, tentava com as mos, mas sem o conseguir, deter o sangue que brotava pelo pequeno orifcio. Tinham passado apenas breves segundos e ouviu-se o segundo tiro, mas desta vez a bala feriu o papa na mo direita. O terceiro tiro disparado por Agca atingiu o papa mais acima, no brao. O condutor olhou para trs sem entender o que se passava, mas ao voltar-se Cibin estava j a agarrar a cabea do papa, cado no banco, no meio de uma poa de sangue. Cibin gritava aos agentes com as armas na mo que procurassem o atirador, que mergulhara na multido. Agca corria e abria caminho de arma na mo, uma Browning automtica de nove milmetros. Mas a certa altura sentiu que algum lhe bateu nas pernas e o fez cair: era um agente da polcia italiana que estava num passeio da praa e o prendeu. Estendido no cho, vrios agentes papais pontapearam e bateram em Ali Agca antes de ele ser arrastado para uma carrinha celular, enquanto o Papa-mvel se dirigia a toda a velocidade para a Porta de Bronze para colocar o papa numa ambulncia. No meio dos gritos, o veculo abriu passagem at Clnica Gemelli de Roma, a que ficava mais prximo do Vaticano. Uma vez na zona cirrgica do nono andar, foi rasgada a sotaina branca do papa Joo Paulo II e ficaram a descoberto uma medalha de ouro e uma cruz manchadas de sangue. Curiosamente, a medalha estava abaulada pelo impacte de uma das balas. Ao que parece, o projtil ter-lhe-ia atingido o peito se no fosse essa medalha desviar a bala, que apenas lhe atingiu o indicador da mo direita. Quando recuperou a vida depois de seis horas de interveno cirrgica, Joo Paulo II acreditava que tinha sido salvo pela Virgem de Ftima. Ao longo dos muitos meses de recuperao, o desejo de saber quem tinha dado a ordem para o assassinar converteu-se numa obsesso para Joo Paulo II. Leu todos os relatrios da Santa Aliana que caam nas suas mos vindos da CIA, da BND alem, do Mossad israelita, do servio secreto austraco ou da espionagem turca, mas nenhum deles respondia sua pergunta. E nem sequer se inteirou de algo mais quando Mehmet Ali Agca foi presente justia de Roma na ltima semana de Julho de 1981 e condenado a priso perptua. Segundo o escritor Gordon Thomas, no seu livro Gideors Spies. The History of Mossad, seria monsenhor Luigi Poggi, chefe da Santa Aliana, quem lhe daria a resposta. Durante meses, o espio papal tivera estreitos contactos com Yizhak Hofi, o memuneh do Mossad. Poggi teve reunies secretas em Viena, Varsvia, Paris e Sfia. Em Novembro de 1983, monsenhor Luigi Poggi voltava de uma reunio em Viena e trazia consigo a resposta para a pergunta de Joo Paulo II. Quem tinha dado a ordem para o matar? O seu motorista esperou durante horas no aeroporto pela chegada do avio que trazia Poggi da capital austraca. Ao chegar Porta dos Sinos, deram passagem ao veculo com matrcula vaticana, mas mesmo assim foi detido pelos elementos da Guarda Sua para identificao do passageiro. Ao ver de quem se tratava, o soldado ps-se em sentido e apresentou armas ao chefe da Santa Aliana. O arcebispo trazia vestida uma gabardina preta e um cachecol que lhe cobria todo o rosto, mas notava-se que era um homem corpulento. E enquanto aquecia o corpo, recordava ainda a reunio secreta havida no bairro judeu de Viena. Era uma sala um tanto desarrumada, mas Poggi escutara atentamente um katsa chamado Eli responder pergunta que Joo Paulo II fazia constantemente. Poggi foi acompanhado por um mordomo at ao gabinete do papa. Os livros e os relatrios militares amontoavam-se nas estantes. O chefe da espionagem papal sabia que o atentado afetara muito o Santo Padre fsica e mentalmente. Depois de uma breve saudao, Poggi sentou-se com as mos sobre os joelhos e num tom baixo comeou a relatar a histria que tinha ouvido na ustria. Depois de 13 de Maio de 1981 no deixavam de chegar notcias ao quartel- general do Mossad em Telavive e o fato de todos os servios secretos terem realizado as suas prprias investigaes fez com que Hofi mantivesse o Mossad fora do assunto. A investigao do servio de espionagem israelita teve realmente incio em 1982, por ordem de Nahum Admoni, que substitura Yitzhak Hofi no comando do Mossad. Para os norte-americanos estava claro que Ali Agca tinha apertado o gatilho, mas a ordem partira do KGB, ao ver que o apoio expresso de Joo Paulo II e do seu servio de espionagem ao sindicato Solidariedade podia acender o facho do nacionalismo polaco. Esta mesma verso defendida pela escritora Claire Sterling no seu livro The Time ofthe Assassins. Para os israelitas, a conspirao tinha sido preparada em Teero e ordenada pelo ayatola Khomeini: assassinar o papa era o primeiro passo para o ythad contra o Ocidente. Esta mesma verso defende-a o jornalista russo Eduard Kovaliov no seu livro Atentado en la plaza de San Pedro. Antecipando-se ao fracasso de Agca, os servios secretos iranianos pensaram apresentar o turco como um fantico solitrio e nesse sentido se faria todo um relatrio favorvel. Poggi relatou ao papa a histria de Agca, que estava num relatrio da Santa Aliana que entregou ao Sumo Pontfice dentro de uma pasta vermelha: Mehmet Ali Agca nasceu na aldeia de Yesiltepe, a leste da Turquia. Com dezanove anos ligou-se aos Lobos Cinzentos, um grupo terrorista pr-iraniano que era financiado por Teero. Em Fevereiro de 1979, Agca assassinou o editor de um jornal clebre pela sua posio a favor do Ocidente. Poucos dias depois do assassnio, o jornal recebeu uma carta supostamente escrita por Agca, na qual se referia a Joo Paulo II como o comandante das Cruzadas e ameaava mata-lo se ele (o papa) pisasse solo do Islo. O papa fazia pequenas pausas no relato de Poggi para beber gua e fazer-lhe perguntas concretas. Depois da Lbia, continuava o espio papal a relatar, Agca viajou para a Bulgria em Fevereiro de 1981 para se juntar aos agentes do servio secreto blgaro. William Casey estava to furioso pelo fato de o KGB ter envolvido a CIA no atentado que ordenou criar uma conexo blgara na tentativa de assassnio. Segundo ele, o KGB ordenou aos blgaros que preparassem uma conspirao para liquidar o papa pela sua poltica em relao Polnia e ao Solidariedade. A 23 de Dezembro de 1983, o papa Joo Paulo II pde fazer a pergunta que no lhe saa da cabea nos ltimos dois anos diretamente a Mehmet Ali Agca. O papa avanou sozinho at cela T4 da priso de Rebibbia. Ao v-lo, Ali Agca ajoelhou-se e beijou com todo o respeito o anel do Pescador. Os dois homens sentaram-se e, quase roando as suas cabeas, Agca comeou a falar, quase a sussurrar, ao ouvido do papa e, enquanto escutava o que Agca dizia, o seu rosto tomava-se mais srio. Finalmente, o papa Joo Paulo II obteve a resposta para a sua pergunta. Mais tarde o prprio espio do papa, monsenhor Poggi, explicava: Ali Agca sabe coisas apenas at certo nvel. Para l desse nvel no sabe nada. Se se tratou de uma conspirao, ela foi tramada por profissionais e estes no deixam vestgios. Nunca ningum encontra nada. A verdade que desde esse dia 13 de Maio de 1981 se escreveram dezenas de livros e reportagens acerca de quem tentou matar o papa Joo Paulo II naquela tarde, na Praa de So Pedro. Foram procurados centenas de presumveis culpados e dezenas de explicaes dos motivos polticos para essa conjura. Foram acusados os iranianos pelo yihad, acusaram os soviticos pela poltica papal na Polnia, a CIA pela ligao de Mehmet Ali Agca com um ex-agente colocado na Lbia, os blgaros como tteres do KGB, mas ningum sabe de fonte segura, nem sequer a Santa Aliana, quando passaram mais de vinte anos sobre o atentado na Praa de So Pedro, quem esteve por detrs do gatilho de Mehmet Ali Agca. Poucos anos depois havia de se saber que, aps o encontro de 23 de Dezembro de 1983 entre o Sumo Pontfice e Ali Agca na priso de Rebibbia, Joo Paulo II ordenou a monsenhor Luigi Poggi, e portanto Santa Aliana e ao Sodalitium Pianum, que cessasse qualquer inqurito a respeito do atentado. Como ordem pontifcia, o espio papal assumiu o mais puro estilo Vaticano, ou seja, colocando um vu escuro sobre o que se relacionasse com o 13 de Maio de 1981. A 24 de Dezembro de 1983, e enquanto o Vaticano se preparava para as festividades de Natal, dois agentes da Santa Aliana, escoltados por quatro membros da Guarda Sua, transportaram em vrias caixas, hermeticamente fechadas e seladas com o escudo pontifcio, todos os documentos que diziam respeito ao atentado na Praa de So Pedro at ao Arquivo Secreto Vaticano, onde ainda dormem no esquecimento. Entretanto, as pontas que ficaram por atar no caso IOR-Banco Ambrosiano- Calvi-Marcinkus estavam prestes a ser bem atadas. Michele Sindona, o banqueiro da Mfia, foi condenado a 13 de Junho de 1980 a vinte e cinco anos de priso por um tribunal norte-americano, mas no entanto havia muito que dizer at ele ser assassinado, em 1986. E ainda h muito para dizer sobre os anos polacos.
20
Os anos polacos (1982-2005)
Aqui que mpios retesam o arco, ajustam a flecha na corda para disparar na escurido contra os retos de inteno. Salmos 10,2
Os anos oitenta foram cansativos para a Santa Aliana por causa das operaes que estavam em marcha no estrangeiro. O maior nmero dos efetivos encontravam-se colocados na Polnia e um grupo mais reduzido na Amrica Central. Por esta altura, monsenhor Luigi Poggi solicitou ao papa para ser afastado de to alta responsabilidade, mas o papa Joo Paulo II no se mostrava disposto a perder o seu chefe da espionagem num momento to crucial. O pedido de Poggi foi rejeitado pelo papa por oito vezes. Na Polnia, as coisas iam de mal a pior, quase perto do desastre. A 4 de Novembro de 1981, Jaruzelski props a Walesa e ao cardeal-primaz da Polnia, Josef Glemp, a criao de uma chamada Frente de Salvao Nacional para acabar com o caos que reinava no pas. Walesa negou-se porque a nica coisa que Jaruzelski queria era fazer mergulhar o Solidariedade num grande grupo de sindicatos oficiais. A Santa Aliana informou ento o papa Joo Paulo II, ainda em convalescena, o cardeal Casaroli e o monsenhor Poggi sobre uma carta de protesto que Brejnev escrevera a Jaruzelski. O texto da carta tinha sido filtrado pelo agente de espionagem pontifcia e ajudante de campo de Jaruzelski, o coronel Ryszard Kuklinski, que a espionagem do Vaticano conhecia com a alcunha de Gull. A carta do dirigente sovitico enviada a Jaruzelski dizia: Advirto-o sobre o consequente desmantelamento do socialismo se se concederem ao Solidariedade e Igreja certos papis relevantes no exerccio do poder. No se tratava, pois, de uma anlise, mas antes de uma premonio. Na manh de 30 de Novembro, o embaixador especial de Ronald Reagan, Vernon Walters, reuniu-se com o Sumo Pontfice. No encontro o diplomata norte-americano pde mostrar ao papa uma srie de fotografias tiradas de satlites espies. Nas imagens a preto e branco viam-se as torres dos estaleiros e molhes de Gdansk e a menos de uns quarenta quilmetros vrias colunas de veculos, mas realmente eram tanques de fabrico sovitico que se aproximavam das instalaes. O papa sabia melhor do que Walters o que aquilo significava. O agente Gull tinha informado o contacto da Santa Aliana que o general Jaruzelski e o Estado-Maior polaco preparavam uma operao militar para decretar a lei marcial, mas o problema era que no se sabia quando nem como. Depois dessa comunicao, o contacto com Gull foi cortado. De manh, Kuklinski assistiu a uma reunio no gabinete do chefe-adjunto do exrcito polaco, encarregado de planear a aplicao da lei marcial. No grande salo coberto de mapas e fotografias, o general disse a Kuklinski que no sabia como, mas o Vaticano e os norte-americanos conheciam os planos. Na verdade, foi o prprio Kuklinski quem passou a informao. Durante a reunio manteve a calma, mas compreendeu que se encontrava sob suspeita quando descobriu que sada do quartel-general do Estado-Maior polaco era seguido por agentes dos servios secretos. Gull estava assim no ponto de mira e no havia a menor dvida de que devia ser ajudado na sua fuga. Parece que algum dentro do Vaticano informara o KGB e estes os seus homlogos polacos de que um agente da Santa Aliana, com certeza um militar prximo da cpula do poder, passava informaes aos servios secretos norte- americanos e vaticanos. O coronel Ryszard Kuklinski, conhecido por Gull, correu para casa em busca da famlia. Em poucos dias, pde contactar com o seu elo de ligao no Vaticano e informa-lo de que tinha de fugir com todos os seus familiares, mas para isso necessitava de um corredor seguro. Monsenhor Luigi Poggi ps em movimento toda a mquina da espionagem papal a fim de criar uma via segura de fuga para o ex-espio. Graas aos contactos com a Cria canadiana e porque Kuklinski passava as manhs diante da embaixada daquele pas em Varsvia, a Santa Aliana preparou o plano de evaso e o dia previsto para isso foi a sexta-feira seguinte, um dia festivo em toda a Polnia. Pela manh, e estranhamente Vigiado, Kuklinski e a famlia subiram para um carro vestidos de modo informal e com cestos para um almoo campestre. De fato, l dentro levavam todos os documentos da famlia. Mas quando se aproximava da avenida onde estava situada a entrada principal da embaixada canadiana, o veculo acelerou, girou de forma brusca para a esquerda, enquanto um camio cheio de tubos metlicos e conduzido pelo agente Kazimierz Przydatek interrompeu a marcha dos dois carros que seguiam Kuklinski de perto. Quando o carro do ex-agente entrou a toda a velocidade no ptio da legao diplomtica, os grandes portes fecharam-se atrs dele. O coronel Ryszard Kuklinski, ou Gull, o melhor espio da Santa Aliana na Polnia, deixava para trs a sua vida. O comprido brao de Luigi Poggi, em colaborao com a CIA, tinham conseguido pr Gull e toda a sua famlia a salvo. A 12 de Dezembro, o general Wojciech Jaruzelski estabelecia a lei marcial em todo o pas. Enquanto os corredores do Vaticano eram sacudidos pelas notcias alarmantes que chegavam do pas natal do Sumo Pontfice, nos bastidores do IOR, Paul Marcinkus preparava uma das operaes mais vantajosas em que estaria implicado o Banco Vaticano e a conhecida empresa Bellatrix seria disso o instrumento. Para tal, Marcinkus destacou trs agentes da Santa Aliana sob a chefia do padre Kazimierz Przydatek, que regressara de Varsvia depois de pr a salvo Kuklinski e a famlia, para dirigir a chamada Operao Peixe Voador em finais de 1981. Desde 24 de Maro de 1976, quando uma Junta formada por altas patentes do exrcito chefiadas pelo general Jorge Rafael Videla decidiu tomar o poder na Argentina, aps derrubar a presidente Isabel Martnez de Pern, as relaes entre Buenos Aires e a Santa S estreitaram-se mais e alguns dos comandantes que pertenciam a esse triunvirato, como o almirante Emilio Eduardo Massera, tinham boas ligaes com a loja P-2 de Licio Gelli. Graas a este ltimo, e com a cobertura de agentes livres da Santa Aliana, Roberto Calvi canalizaria atravs da companhia Bellatrix, que pertencia ao Vaticano, milhes de dlares procedentes da Junta Militar argentina para a compra de msseis Exocet de fabrico francs. O nome desta operao secreta, Peixe Voador, derivava do nome dado a este tipo de peixe, o Exocoetus, que desliza superfcie das ondas tal como o Exocet. Enquanto os militares argentinos procuravam, atravs de Calei e dos servios secretos do Vaticano, ficar com o maior nmero possvel de msseis, a primeira- ministra Thatcher e o M1 6, a espionagem britnica, tentava evit-lo por todos os meios. Os argentinos s tinham uma escassa quantidade dos devastadores mssies Exocet. Fizeram esforos desesperados para aumentar o seu arsenal Pela nossa parte, estvamos igualmente desesperados para impedir que o conseguissem, afirmaria anos depois Margaret Thatcher nas suas memrias, The Downing Street Years. Para isso, Thatcher ordenou espionagem britnica que fizesse todos os possveis para detectar e evitar alguma tentativa argentina para conseguir ter os msseis Exocet ou qualquer outro tipo de armamento. Em 1981, a Argentina assinou com o governo francs um contrato de compra de catorze Super-Etendard e catorze Exocet, mas a 2 de Abril de 1982 a Argentina apenas tinha recebido cinco avies e cinco msseis. O que a primeira-ministra da Gr-Bretanha no sabia nessa altura era que aqueles que procuravam os msseis no mercado negro no eram os argentinos, mas toda uma conspirao sempre orquestrada pela loja Propaganda 2, financiada pelo Vaticano e executada por agentes livres da Santa Aliana. Segundo se depreende de um relatrio do Ml 6, a Junta Militar da Argentina, sem se saber de que forma, conseguiu seis msseis Exocet. O resultado da Operao Peixe Voador conheceria os seus frutos da parte argentina quando a 4 de Maio de 1982 saram da base aeronaval de Rio Grande dois Super-Etendard armados cada um com um Exocet, que logo desceram para entrar na zona morta do radar e evitar serem descobertos pelos britnicos. Logo que os dois pilotos detectaram um alvo grande e trs mdios, engancharam os seus Exocet sobre o objetivo maior e quando estavam a uns escassos cinquenta quilmetros lanaram os msseis. O destroyer HMS Sheffield tinha sido atingido mortalmente. No final dessa contenda, os msseis fornecidos pelos homens do Vaticano atingiram os destroyers britnicos HMS Sheffield e HMS Glamorgan e o porta- contentores SS Atlantic Conveyor, causando assim duzentos e cinquenta e cinco mortos e mais de uma centena de feridos. Quando ficou concluda a Operao Peixe Voador, a empresa financeira pertencente Santa S tinha canalizado mais de setecentos milhes de dlares, dos quais onze milhes acabariam na caixa B do Estado do Vaticano. Segundo uma investigao posterior, esse dinheiro foi destinado pelo cardeal Luigi Poggi, chefe da Santa Aliana, em conivncia com monsenhor Paul Casimir Marcinkus, responsvel pelo IOR, com o cardeal Agostino Casaroli, frente da diplomacia vaticana, e com a autorizao de Joo Paulo II, para financiar o sindicato polaco Solidariedade. Mas uma obscura mo estava decidida a acabar com as pontas que ainda estavam por ligar do escndalo do Banco Ambrosiano, e Roberto Calvi, conhecido como o banqueiro de Deus, foi o primeiro a ser apanhado. A 31 de Maio de 1982, Calvi queixara-se a um grupo de cardeais, entre os quais estava Pietro Palazzini, prefeito da Congregao para a Beatificao. Calvi pde dizer-lhes num tom ameaador que, se o Banco Ambrosiano casse, com ele cairia o Banco Vaticano. H alguns anos que Roberto Calvi exigia a Marcinkus que se resolvesse de forma conjunta o problema da enorme dvida acumulada nas empresas transatlnticas da rede formada pelo IOR e Banco Ambrosiano. Mas uma vez mais falhou a tentativa de reconciliao. Calvi ameaou ento Luigi Mennini, director do IOR, de contar tudo o que sabia sobre o Banco Vaticano s autoridades monetrias de Itlia. A 7 de Junho, Roberto Calvi pde expor diante do conselho de administrao a situao dramtica que o Banco vivia e afirmou que, se o Banco Vaticano no pagasse os seus crditos, apresentaria um balano negativo. No dia seguinte, o banqueiro recebeu a estranha visita de um tal lvaro Giardili, que segundo a polcia teria ligaes com a Mfia e com a Santa Aliana vaticana. Giardili revelou a Roberto Calvi que a sua mulher e as suas filhas estavam em perigo de vida. Ao que parece, Giardili relacionava-se com um homem chamado Vincenzo Casillo, um assassino da Mfia que fizera um ou outro trabalho para Marcinkus e para os servios de espionagem do Vaticano. Casillo foi depois identificado pelas Finanas do Estado de Roma como um dos executores diretos de Roberto Calvi. Vincenzo Casillo seria assassinado, a 23 de Janeiro de 1983. As queixas de Roberto Calvi tornam-se cada vez mais perigosas no s para o IOR, mas tambm para as operaes da Santa Aliana na Polnia. O banqueiro de Deus queixava-se abertamente de que Paul Marcinkus, para evitar ser investigado por ordem pontifcia ou pelos homens da contra-espionagem vaticana, o Sodalitium Pianum, sob o comando de monsenhor Luigi Poggi, retirou dos cofres, sem autorizao, cem milhes de dlares destinados ao Solidariedade de Lech Walesa. A 14 de Junho, pelas onze da manh, monsenhor Paul Casimir Marcinkus apresentou a demisso como membro do Conselho Diretivo do Banco Ambrosiano Overseas Limited (BAOL), com sede em Nassau. Atravs deste Banco, o IOR retirou fundos sem controle num valor de cerca de mil milhes de dlares que cobririam o buraco do Banco Ambrosiano. A 15 de Junho, Roberto Calvi chegou a Londres e instalou-se no quarto 881 do Chelsea Clisters, que um hotel decente para um qualquer viajante em negcios, mas no para o presidente de um dos bancos catlicos mais importantes e poderosos da Europa. A 16 de Junho, Calvi desconfiava de toda a gente e chegou mesmo a dizer a Clara, sua mulher, em conversa telefnica, que receava os homens de preto [os agentes da Santa Aliana] que andavam a volta de Paul Marcinkus. Eles sabem sempre como me podem localizar. A 17 de Junho de 1982, Roberto Calvi continua desesperado a fazer chamadas para a famlia para que saiam da Sua e se ponham a salvo nos Estados Unidos. s cinco da tarde, Roberto Calvi destitudo da direo do Banco Ambrosiano. Ao inteirar-se disso, o banqueiro de Deus sabe que est acabado e as suas horas de vida sero escassas. Pelas dez da noite, como consta dos documentos das Finanas de Roma, dois homens que falam italiano-podiam ser agentes da Santa Aliana ou assassinos da Mfia-levaram Calvi do hotel. Saram pelas traseiras, bem longe dos olhares do recepcionista, e subiram para uma limusine preta. Roberto Calvi seria encontrado suspenso pelo pescoo sob a ponte londrina de Blackfriars (Frades Negros) no dia seguinte. O corpo de Roberto Calvi foi submetido a trs autpsias e todas coincidiram em indicar que a hora da morte foi s duas da madrugada de 19 de Junho de 1982. O famoso forense Antnio Fornari garantiu no seu relatrio, sem nenhuma dvida, que Calvi fora assassinado. Se se tivesse suicidado, Calvi teria de descer por uma escada hmida com um forte corrimo, depois teria de dar um salto de quase um metro para alcanar a plataforma sob a ponte, e tudo isso com a gua acima dos joelhos por causa da preia-mar e ainda por cima com quase cinco quilos de pedras nos bolsos das calas e do casaco. E mais: uma vez sobre a plataforma, teria depois de trepar uns sete metros at chegar ao extremo onde se deveria ter enforcado. No havia a menor dvida que Roberto Calvi fora assassinado e o que nunca se soube foi o que se passara em Milo horas antes do seu assassnio. Nessa tarde de 18 de Junho, dois homens que se identificaram como enviados do Vaticano chegaram sede do Banco Ambrosiano com o propsito de entregar uma srie de documentos procedentes do IOR. Os recm-chegados subiram num elegante elevador at ao quarto andar do solene edifcio. Ao fundo do corredor ficava o que tinha sido o gabinete do poderoso Roberto Calvi em Londres. Os dois homens chegaram a um pequeno escritrio que se ligava atravs de uma porta com o gabinete de Calvi, onde trabalhava Graziella Corrocher, a fiel secretria do banqueiro de Deus e uma das que mais segredos conhecia do seu todo-poderoso chefe. Minutos depois saltava pela janela num ato de suicdio. Na nota encontrada pela polcia Graziella Corrocher responsabilizava o seu chefe Roberto Calvi por tudo o que acontecera no Banco Ambrosiano. Nem uma nica referncia famlia, sua vida ou aos seus amigos, mas apenas uma oportuna acusao contra o seu chefe. Em Setembro, Licio Gelli foi acusado de espionagem, conspirao poltica, associao criminosa e fraude. Num primeiro instante, salvou-se de ser preso, mas no dia 13 desse mesmo ms, o gro-mestre da loja P-2, o homem a que toda a gente chamada il Burattinaio (o Saltimbanco), foi detido em Genebra quando procurava levantar uma maleta com cinquenta milhes de dlares de uma conta bancria. Um ms mais tarde, a 2 de Outubro de 1982, Giuseppe Dellacha, um dos mais altos executivos do Banco, tambm se suicidaria ao saltar pela janela do sexto andar do seu gabinete no prprio edifcio do Banco Ambrosiano em Milo. Parece que Dellacha era o correio especial dos assuntos entre Roberto Calvi e monsenhor Paul Marcinkus. O delicado trabalho de Dellacha era levar mensagens que no deviam ficar escritas em nenhum lugar da sede do banco at ao Vaticano. Giuseppe Dellacha sabia muitas coisas e tambm devia morrer. Pouco a pouco, as pontas estavam a ser atadas por mo misteriosa. Clara Calvi, a viva do banqueiro de Deus, dizia ento: O Vaticano assassinou o meu marido para esconder a bancarrota do Banco Vaticano (IOR). Desde a queda de Michele Sindona, Roberto Calvi tinha assumido as suas funes lavando dinheiro da Mafia, reciclando dinheiro da P-2, traficando armas, desviando dinheiro de altas personalidades por evaso fiscal para parasos fiscais ou financiando regimes ditatoriais na Nicargua, no Uruguai, na Argentina e no Paraguai. Em Outubro de 1982, Joo Paulo II nomeou uma comisso especial para investigar o papel desempenhado pelo Vaticano, pelo IOR e pelos seus servios secretos na fraude do Banco Ambrosiano. As investigaes do caso Calvi, a falncia do banco e as conexes com o IOR continuaram a correr at 1989. Assim, a 22 de Maro de 1986, Michele Sindona foi envenenado com cianeto misturado no caf na priso italiana de Voghera, onde foi colocado depois da sua extradio pelos Estados Unidos. Aquele que foi o banqueiro da Mfia morreu na sua cela sem que ningum o socorresse e apenas passados dois dias que um tribunal o condenou a priso perptua; antes ele dissera que, se ningum o ajudasse, contaria tudo o que sabia sobre as relaes da Mfia e do Vaticano e o papel exercido por alguns departamentos papais como o IOR ou os servios secretos. A 20 de Fevereiro de 1987, o juiz de instruo de Milo, Antnio Pizza, ordenou a deteno e encarceramento de monsenhor Paul Marcrnkus, Luigi Mennini e Pellegrino de Strobel, os trs mais altos dirigentes do IOR. At essa altura, o papa Joo Paulo II manteve-os nos seus lugares, talvez porque sabiam demasiado e seria melhor que se no revolvessem as poludas guas financeiras vaticanas. Em redor de So Pedro e em todas as sadas do Estado do Vaticano os agentes da polcia esperavam para levar as esposas de toda a cpula da banca vaticana e o presidente do governo do Vaticano. Marcinkus no s presidia ao IOR, como tambm ao Conselho do Governo do Vaticano. O cardinalato estava j quase ao alcance da mo de monsenhor Marcinkus quando estalou o escndalo, o que obrigou o papa Joo Paulo II a ret-lo dentro do Vaticano para assim impedir que fosse preso pelas autoridades italianas e posteriormente repatriado para os Estados Unidos. Hoje vive retirado na pequena cidade de Sun City, no Arizona, com a proteo do seu passaporte diplomtico do Estado do Vaticano, o que o torna intocvel perante as autoridades norte- americanas. Graas s presses exercidas pelo papa Joo Paulo II, um supremo tribunal italiano considerou sem efeito a ordem de priso e os banqueiros do Vaticano foram declarados imunes em Itlia, dada a sua condio de diretores de um banco estrangeiro. O Banco Vaticano teve de pagar pela responsabilidade contrada na falncia do Ambrosiano mais de duzentos e quarenta milhes de dlares aos credores. No julgamento pela falncia do Banco Ambrosiano, que foi encerrado em 1998, as maiores condenaes recaram nos chefes da loja Propaganda 2: Licio Gelli foi condenado a dezoito anos de priso e Umberto Ortolani a dezanove. Em 1988, realizou-se o julgamento pelo assassnio de Roberto Calvi. Em 1993, foram condenados por cumplicidade o bispo Pavel Hnilica, destacado membro da Santa Aliana e pessoa da maior confiana do papa, Flvio Carboni e Giulio Lena, com o que se deu por encerrada a investigao e as pontas soltas do Vaticano S. A., mas um novo caso de corrupo financeira acabou por estalar no corao do Vaticano. Leopold Ledl era um ex-carniceiro que tinha estado implicado em vrios negcios fraudulentos do Vaticano e executou estranhas operaes para a Santa Aliana. O ex-agente dos servios secretos pontifcios serviu como intermedirio entre o Vaticano e a Mfia numa operao de ttulos e aes falsificadas. Ao descobrir-se esse caso, soube-se que Ledl no foi apenas o responsvel, mas tambm a vtima. Parece que o negcio consistia em que Ledl conseguisse para algum do Vaticano ttulos falsificados por um valor de mil milhes de dlares. A funo do ex-espio papal era fazer de intermedirio entre o Vaticano e a Mfia norte- americana para conseguir no s falsificar os ttulos da Boeing, Chrysler, General Motors ou ITT, mas tambm coloca-los. A operao por parte do Vaticano era dirigida pessoalmente por monsenhor Marcinkus e de vez em quando assistiam aos encontros com Ledl os cardeais Tisserant e Benelli. Por ltimo, monsenhor Pavel Hnilica avisou Marcinkus acerca do perigo que havia em colocar nos mercados financeiros tal quantidade de ttulos falsos, porque suporia enfrentar o departamento do Tesouro dos Estados Unidos, e Hnilica recordou a Marcinkus que tinha nacionalidade norte-americana. Se Reagan quiser, pode pedir ao Santo Padre a sua extradio, explicou a Marcinkus o obscuro agente da Santa Aliana. O responsvel pelo IOR no estava disposto a arriscar cometer um crime federal no seu pas, sabendo como agiam os seus patrcios. Em Maio de 1992, Licio Gelli, detido na sua residncia, recebe a notificao da sentena por implicao na falncia do Banco Ambrosiano. Seis anos depois de recorrer, aquele que fora o gro-mestre da loja P-2 recebe a ratificao da sentena pelo Tribunal de Recurso, que confirma a sentena do Supremo Tribunal da Relao. A 20 de Maio de 1998, Gelli fugiu de sua casa sob os olhares da polcia que o vigiava. Quase quatro meses depois, a 10 de Setembro, Licio Gelli foi novamente preso na Costa Azul, parece que por infiltrao dos servios secretos vaticanos na DST, a contra-espionagem francesa. Em 1990, durante o interrogatrio do manico e membro da loja Propaganda 2, Umberto Ortolani revelou que os servios secretos do Vaticano tinham atuado durante alguns meses para tentar resgatar umas fotografias comprometedoras do prprio Joo Paulo II. Em Abril de 1981, Licio Gelli mostrou a um membro do Partido Socialista italiano algumas fotografias que mostravam o papa Wojtyla completamente nu na piscina de Castelgandolfo. Gelli supunha que se essas fotografias foram tiradas com teleobjetiva, seria tambm simples disparar sobre o Sumo Pontfice com uma arma de mira telescpica. Poggi decidiu colocar em campo os agentes da Santa Aliana com o propsito de resgatar os negativos desaparecidos. O chefe da Santa Aliana batizou a misso como Operao Imagem. O responsvel dos espies papais sabia que a maior parte das fotografias estava j em poder de Rizzoli, atravs de Licio Gelli e deste para Giulio Andreotti. As 385 fotografias foram entregues em mo ao Sumo Pontfice na presena de monsenhor Poggi. De seguida, o chefe da espionagem vaticana convocou dois padres do Sodalitium Pianum. Como sempre, Poggi foi claro, breve e conciso nas ordens dadas. Deviam localizar os negativos extraviados por dois motivos: o primeiro, para evitar a sua publicao e posterior escndalo, e o segundo, de maior interesse, para saber como os autores das imagens puderam disparar as suas mquinas sem serem detectados pelos servios de segurana pontifcia. No havia a mais pequena dvida de que uns simples fotgrafos conseguiram iludir os cordes de segurana em redor do papa. Os agentes comearam a trabalhar nos laboratrios de Roma que se dedicavam a revelar o material dos profissionais. No fim dessa mesma semana, o S. P. detectou um homem que procurava vender umas fotos muito comprometedoras sem dizer do que se tratava. O homem em causa era um ajudante de laboratrio de uma firma conhecida por trabalhar com fotgrafos da imprensa cor-de-rosa, pelo que deviam revelar o material com grande velocidade. O homem vivia num pequeno apartamento dos arredores de Roma e um dia, quando regressou do trabalho, encontrou ali tudo remexido, as gavetas despejadas no cho, o colcho rasgado e os cadeires totalmente esventrados. Algum esteve ali procura de alguma coisa e o homem sabia o que era. Quando se dirigiu pequena casa de banho do apartamento soube que os intrusos tinham encontrado o que procuravam. Uma das tubagens de chumbo fora cortada e do seu interior levaram um rolo de plstico onde estavam os negativos. Os homens de Poggi fizeram bem o seu trabalho e a Operao Imagem nunca existiu, porque posteriormente monsenhor Poggi acabou por destruir todo o material. O Sodalitium Pianum descobriu que na histria das fotografias estivera envolvido um agente da Santa Aliana, o padre Lorenzo Zorza. Este agente tinha estado relacionado com o caso da falncia do Banco Ambrosiano e numa operao juntamente com o ex-agente do SISMO, o servio de inteligncia militar italiano, Francesco Pazienza. Zorza seria tambm investigado pelos suas presumveis relaes com associaes de mafiosos comprometidos no trfico de drogas e obras de arte. Quando as autoridades italianas pediram ao Vaticano a entrega de Lorenzo Zorza, a Secretaria de Estado uma vez mais negou-se, alegando que se tratava de um funcionrio de um pas estrangeiro e, portanto, no estava sujeito s leis da Repblica de Itlia. Meses depois, o agente da Santa Aliana foi enviado por convenincia para uma nunciatura no continente africano, mas as intrigas no acabariam, porque logo uma nova conspirao abalou uma das organizaes de maior renome e popularidade da Santa S: a Guarda Sua. A 4 de Maio de 1998, pouco depois das nove horas da noite, no apartamento do quartel da Guarda Sua ocupado pelo comandante-chefe do exrcito pontifcio, descobriram-se trs cadveres cobertos de sangue. Os trs tinham sido assassinados a tiro. Os corpos foram descobertos por uma freira, cuja identidade foi protegida pela Santa Aliana. Os primeiros a chegar ao local foram o porta- voz do Vaticano, Joaqun Navarro-Valls, o cardeal Giovanni Battista Re, substituto da Secretaria de Estado, e monsenhor Pedro Lpez Quintana, assessor para os Assuntos Gerais da Secretaria de Estado. Meia hora depois, o cenrio do crime era um autntico corropio de altos membros da Cria, agentes da Santa Aliana e da contra-espionagem Sodalitium Pianum e ainda membros da Guarda Sua paisana. Passados quarenta e cinco minutos, chegaram ao local trs altos dirigentes da Vigilanza vaticana, o inspetor-geral Camillo Cibin, o superintendente principal Raoul Bonarelli e um outro superintendente. Quando Cibin lanou um primeiro relance de olhos descobriu que algum fizera desaparecer quatro vasos, possivelmente os agentes da Santa Aliana, que misteriosamente foram os primeiros a chegar ao local do crime. Apareceu tambm um funcionrio da Governao, que com uma mquina Polaroid tirou algumas fotografias aos corpos do comandante da Guarda Sua, Alois Estermann, da sua mulher, a venezuelana Gladys Meza Romero, e ao cabo da Guarda Sua Cdric Tornay. Bonarelli chamou a ateno de Cibin para o pormenor das gavetas abertas na mesa de Estermann. No havia dvida de que algum revistara a mesa de trabalho do oficial e os seus arquivos. A poucos metros dali, o cardeal Luigi Poggil, que apenas h dois meses conseguira ser afastado das suas tarefas no comando dos servios secretos pontifcios, informou o papa Joo Paulo II daquela tragdia. No exterior da Porta de Santa Ana, e diante de um corpo da Guarda Sua, os curiosos e a imprensa comearam ali a juntar-se, porque os rumores circularam rapidamente. Os trs cadveres foram retirados e levados para a morgue e ali colocados no cho, cobertos com um lenol. Os membros do Corpo della Vigilanza e da Santa Aliana ordenaram logo a evacuao do local e fecharam a porta selada com o selo pontifcio. Nada nem ningum podia entrar sob pena de excomunho. Alois Estermann, de quarenta e quatro anos, nascido em Gunzwill, no canto suo de Lucerna, subcomandante da Guarda Sua desde 1989, tinha sido nomeado comandante do corpo umas horas antes pelo prprio papa. A cerimnia oficial da passagem de poderes devia celebrar-se a 6 de Maio, dois dias depois da sua morte. A esposa, Gladys Meza, trabalhava na embaixada da Venezuela junto da Santa S. A terceira e ltima vtima foi identificada como o cabo Cdric Tornay, de vinte e trs anos, nascido em Saint-Maurice, no canto suo de Valais, incorporado no exrcito papal a 1 de Fevereiro de 1994. O porta-voz do Vaticano, Navarro-Valls, comeou de imediato, verdade, a fazer uma reconstituio dos fatos que, como depois se havia de descobrir, em nada se aproximavam do que de fato tinha acontecido. Segundo Navarro-Valls, os corpos foram descobertos por uma vizinha. Tanto Estermann como Meza e Tornay foram assassinados a tiro e sob o corpo do cabo foi encontrada a arma utilizada. Ainda segundo o porta-voz, num arrebatamento de loucura o cabo matou com a sua pistola o comandante e a esposa deste, e o Vaticano tem a certeza de que foi assim que tudo se passou. Ningum fez mais perguntas sobre o assunto. Na noite de 5 de Maio, trs agentes do SISMI, o servio secreto militar italiano, participaram numa reunio com um antigo elemento da Guarda Sua. Na verdade, nem a espionagem nem a polcia italiana acreditavam na verso do Vaticano. A imprensa baseou a sua informao em trs hipteses: a primeira, Estermann teria uma relao homossexual com Tornay; a segunda, que este poderia ter uma relao com a esposa de Estermann; a terceira, por detrs do crime podia haver uma conjura muito mais obscura. O Vaticano defendeu oficialmente a tese de que Tornay tinha srios conflitos com Estermann e que este chegou mesmo a recusar promov-lo e dar-lhe uma condecorao, mas a espionagem continuou a no acreditar nisso. Segundo Navarro-Valls, num arrebatamento de loucura, Tornay fez cinco disparos com a arma regulamentar, uma das balas ficou na cmara, duas mataram Estermann e a outra ficou incrustrada no teto, mas este no foi o nico incidente ocorrido no corao da Guarda Sua. As perguntas continuavam a correr pelos quilomtricos corredores do Vaticano: como que, se Tornay fez cinco disparos, apenas foram recolhidos quatro invlucros no local do crime, ou por que que a porta da casa dos Estermann estava aberta quando chegou a suposta freira que descobriu os cadveres. Uma outra pergunta que faziam os investigadores que, se Tornay utilizou a sua arma regulamentar, uma Sig Sauer 75 com carregador de nove balas, como possvel que ao dispar-la para se suicidar casse para a frente sobre a arma. A Sigh Sauer 75 tem uma grande potncia de fogo e o mais normal que tivesse cado para trs com o impacte da bala. Tambm se especulou sobre os motivos pelos quais a Guarda Sua esteve vrios meses sem comandante e, quando ele foi nomeado, morreu poucas horas depois. Perguntas e mais perguntas a que o Vaticano no respondeu ou preferiu no responder. A 6 de Maio, s perguntas dos jornalistas, o ministro italiano do Interior, Giorgio Napolitana, esclareceu que as autoridades italianas no receberam nenhum pedido de ajuda na investigao do caso da Guarda Sua. De fato, foi o Corpo della Vigianza do Estado do Vaticano que se ocupou em abrir e encerrar com rapidez a investigao. Durante as exquias, em que os trs corpos estiveram juntos, o Sumo Pontfice disse acerca de Alois Estermann: Era uma pessoa de muita f e de profunda entrega no seu dever. Durante dezoito anos prestou um fiel e valioso servio que pessoalmente lhe agradeo. Mas as perguntas sobre o crime continuavam a ser feitas, como por exemplo: por que que a porta do apartamento estava aberta se os trs corpos foram encontrados na sala ao fundo da casa ou por que que a suposta vizinha que descobriu os cadveres disse que ouviu vrios rudos surdos no apartamento e estranhou. A vizinha do lado devia ter ouvido cinco fortes detonaes da arma de Tornay, mas esta mulher garantiu a um jornalista que o que escutou foram cinco tiros secos, como se fosse um disparo feito com silenciador. A histria complica-se quando quatro ilustres cardeais, Silvio Oddi, Daro Cartrilln, Roger Etchegaray e Cario Maria Martini, revelaram ao papa Joo Paulo Il a sua desconfiana pela verso dos fatos que foi apresentada. Outra teoria que acabou por confundir o caso a defendida pelo escritor John Follain no livro City of secrets. The Truth Behind the Murders at the Vatican, quando declara que a Guarda Sua se converteu em motivo de luta pelo seu controle entre os seguidores da Opus Dei, que pretendiam torn-la num corpo de elite que assumisse tarefas antiterroristas, e os manicos da Cria, que desejavam acabar com ela, deixando-a como uma presena testemunhal s para turistas em relao ao Corpo della Vigianza. A 7 de Maio de 1998, o jornal Berliner Kurier publicou uma verso na qual se relacionava o comandante Alois Estermann com a Stasi, os servios de espionagem da Alemanha Oriental. O artigo fornece uma srie de dados e pormenores bem explcitos. O jornal chega mesmo a afirmar que Alois Estermann, quando ainda era capito da Guarda Sua, trabalhou para os servios secretos do Vaticano, a Santa Aliana, em operaes encobertas. Por exemplo, foi ele quem viajou diversas Vezes para Varsvia e Gdansk quando os sectores radicais do Solidariedade defenderam a necessidade de militarizar o sindicato para uma possvel defesa armada dos grevistas durante a aplicao da lei marcial de 12 de Setembro de 1981 imposta pelo general Jaruzelski na Polnia. Estermann ocupou-se tambm em coordenar a compra de armas no mercado negro pagas com dinheiro do IOR e ainda na preparao de campos de treino na ustria e na Alemanha para os futuros combatentes do Solidariedade. Markus Wolf, o poderoso chefe da Stasi durante trinta e trs anos, afirmou que atrs do agente com o nome cifrado Werder se escondia um membro do exrcito papal. Segundo os arquivos da Stasi desclassificados aps a queda do Muro de Berlim, Werder converteu-se em informador no incio de 1980, quando Alois Estermann entrou na Guarda Sua. A notcia das ligaes de Alois Estermann com os servios secretos germano- orientais provocou grande indignao na cpula do Vaticano e na Santa A1iana. A seguir, o prprio Markus Wolf, em entrevista a um jornal polaco, confirmou que Estermann era agente da Stasi. Sentimo-nos muito orgulhosos em 1979 quando conseguimos recrutar Estermann como agente. Esse homem tinha um acesso ilimitado Santa S e com ele tambm ns. Quando iniciamos os nossos contactos com ele, Estermann s queria ingressar na guarda papal. E quando o Vaticano o integrou, a sua importncia como informador cresceu enormemente. O elo de ligao no interior do Vaticano para as suas ligaes com a Stasi era um frade dominicano chamado Karl Brammer, com o nome de cdigo Licht Blick (Raio de Luz). Brammer foi expulso do Vaticano em finais de oitenta, quando foi apanhado por agentes da contra-espionagem, Sodalitium Pianum, a recolher informaes secretas junto dos arquivos da Comisso Cientfica do Vaticano. Os agentes pontifcios descobriram Brammer a passar a informao a um jornalista italiano. Um ms depois do crime, a me de Tornay fez algumas declaraes ao semanrio italiano Panorama. Nessa entrevista afirmou ter falado com o seu filho na prpria manh do crime e que de modo algum ele estava deprimido. Num dado passo da entrevista, a me de Tornay refere-se a um tal padre Ivan como conselheiro espiritual do filho e com quem se ia reunir nessa tarde para falar de um futuro trabalho num banco suo como responsvel de segurana. Na verdade, o padre Ivan ou padre Ivano era Yvan Bertorello, um francs dos seus trinta e cinco a quarenta anos, que usava sempre sotaina e se movimentava pelos corredores vaticanos sem que ningum o controlasse. Bertorello era um agente da Santa Aliana que participou em operaes especiais do servio de espionagem papal. Fala-se mesmo de que tinha preparao militar feita no exrcito francs ou no suo. Mais tarde, a me de Cdric Tornay declararia ao juiz do Vaticano ter conhecido Ivan, mas posteriormente disseram-lhe, segundo informao do Corpo delia Vigilanza, que no Estado Vaticano no constava nenhum padre chamado Ivan ou Ivano, nem nada parecido. De fato, Yvan Bertorello, de origem franco-italiana, foi um agente da Santa Aliana ou do Sodalitium Pianum, encarregado para certas misses diplomticas e de espionagem em frica e na Bsnia. O chefe de Bertorello, monsenhor Pedro Lpez Quintana, confiou ao agente a misso de espiar a Guarda Sua para descobrir as conexes com a Opus Dei. Lpez Quintana, nascido na cidade espanhola de Barbastro, a 27 de Julho de 1953, pertencera ao corpo diplomtico da Santa S e Comisso Disciplinar da Cria at 1987, quando foi nomeado prelado honorrio de Sua Santidade e colocado na nunciatura de Nova Deli. Em 1992 foi novamente chamado para o Vaticano e entrou na Secretaria de Estado como assessor dos Assuntos Gerais. Murmurava-se no interior do Vaticano que monsenhor Pedro Lpez Quintana assumira o controle da contra-espionagem vaticana depois da demisso do cardeal Luigi Poggi, a 7 de Maro de 1998. Urna fonte dos servios secretos franceses revelaria ao escritor David Yallop que no crime de 4 de Maio havia trs pessoas implicadas de fato numa conspirao: o prprio Alois Estermnn, Gladys Estermann e o agente da espionagem vaticana, Yvan Bertorello. Em Maro de 1999, o novo comandante da Guarda Sua, Pius Seg-mller, foi encarregado de criar uma unidade especial no seio da Guarda Sua, o chamado Comit de Segurana, aprovado pela Comisso Pontifcia para o Estado da Cidade do Vaticano. Este novo comit ficava com a misso de coordenar as atividades relacionadas com a segurana da Santa S e do Sumo Pontfice, bem como a preveno de atividades delituosas dentro do Vaticano. De fato, o Comit de Segurana revela-se como uma espcie de servio secreto fora da zona de influncia da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum e sob o controle de monsenhor Giovanni Danzi, ento o secretrio-geral da Governao. Danzi , segundo fontes do Vaticano, um homem sem escrpulos com um grande poder dentro da Comisso Pontifcia para o Estado da Cidade do Vaticano. A partir da sua luxuosa residncia, Danzi maneja com mo de ferro o Comit de Segurana. Na investigao levada a cabo refere-se a possibilidade de nessa noite de 4 de Maio uma quarta pessoa ter estado no interior do apartamento dos Estermann juntamente com Cdric Tornay. O que realmente est demonstrado que essa quarta pessoa, que talvez j estivesse no interior do apartamento dos Estermann, foi apenas uma testemunha, uma vez que ficou provado que todas as balas foram disparadas pela prpria arma regulamentar de Tornay e se encontraram alguns vestgios de plvora na mo e no dedo indicador que apertara o gatilho. H ainda a possibilidade de essa quarta pessoa se ter escondido nalgum stio do apartamento at chegada das primeiras autoridades que ali acorreram e, no meio da confuso, conseguisse escapar-se da casa dos Estermann. Segundo dizem, os primeiros a chegar foram quatro agentes da Santa Aliana, que logo retiraram os vasos que estavam em cima da mesa do escritrio de Alois Estermann. Posteriormente descobrir-se-ia que Cdric Tornay foi Vigiado ao longo de alguns meses pela Santa Aliana, pelo Sodalitium Pianum ou pelo Comit de Segurana. O jovem cabo da Guarda Sua apaixonou-se por uma jovem italiana chamada Manuela, que ele conhecera numa cafetaria perto do Vaticano, onde costumavam juntar-se os elementos da Guarda Sua. A tal Manuela informava algum bispo do Vaticano sobre cada um dos movimentos de Tornay, o que tornava impossvel que o rapaz pudesse ter entrado na casa de Alois Estermann sem poder ser visto. Apesar das boas palavras do Vaticano para com a dor da me de Cdric Tornay, ainda houve um membro da Santa Aliana que se dedicou a pressionar Muguette Baudat e os seus advogados. Desde essa noite de 1998, foram muitas as teorias da conspirao, como, por exemplo, a de que a Santa Aliana executou Alois Estermann devido a tudo o que ele sabia sobre as suas operaes encobertas; que Estermann pode ter sido assassinado por um Tornay que o estimava e se sentia infeliz porque o comandante o tinha substitudo na cama por outro jovem guarda; que Estermann teria sido talvez executado pelas suas estreitas relaes com a Opus Dei ou pelo cl manico da loja vaticana; que Estermann pode ter sido assassinado pelas suas antigas relaes com algum servio de espionagem da antiga Cortina de Ferro; e ainda muitas outras. Mas do que toda a gente est convencida que o segundo-cabo da Guarda Sua, Cdric Tornay, era um jovem como muitos outros. Os seus amigos, na prpria Guarda Sua, e os familiares garantem que Tornay no estava drogado nem louco e que certamente se viu envolvido numa situao e em fatos que no pde controlar, superiores a si mesmo e que o levaram morte. Nenhuma investigao policial nem judiciria independente foi realizada por parte das autoridades vaticanas sobre o que acontecera na noite de 4 de Maio de 1998. A Santa Aliana, o Sodalitium Pianum, o Comit de Segurana ou o Corpo della Vigilanza no levaram a cabo alguma investigao sria. O secretrio de Estado, Angelo Sodano, com o pleno acordo do papa Joo Paulo II, decidiu depositar e selar toda a documentao no Arquivo Secreto, relacionada com aquela trgica noite em que trs pessoas perderam a vida dentro dos muros do Vaticano. Mas ningum poder saber nunca a Verdade sobre o assassnio do comandante da Guarda Sua, Alois Estermann, e de Gladys Meza, sua mulher, e do segundo- cabo da Guarda Sua, Cdric Tomay. O espio da Santa Aliana, Yvan Bertorello, que poderia saber mais sobre o que se passou nessa noite, desapareceu simplesmente e nunca mais foi visto nos conspirativos corredores do Estado do Vaticano. No seu livro In Gods Name. An Investigation into the Murder of Pope John Paul I, o escritor David Yallop fez uma durssima acusao contra o papa Joo Paulo II: Temos um papa que, publicamente, condena os padres nicaraguanos pelo seu envolvimento na poltica e ao mesmo tempo d o seu beneplcito para que uma grande quantidade de dlares flutuem secreta e ilegalmente para a Polnia, com destino ao Solidariedade. Este um papado com um duplo rosto: um para o papa e outro para o resto do Mundo. Mas o pontificado de Joo Paulo II tem sido e ainda e um triunfo para os especuladores, os corruptos e os ladres internacionais como Roberto Calvi, Licio Gelli e Michele Sindona, enquanto o Santo Padre continua a mostrar-se publicamente em viagens frequentes semelhantes tourne de uma estrela de rock. Os homens que o rodeiam dizem que o faz por negcio, como habitual, e que os lucros desde a sua chegada ao pontificado aumentaram. lamentvel que os discursos moralistas de Sua Santidade no possam ser escutados nos bastidores. Seja como for, o certo que durante os largos anos de pontificado do papa Joo Paulo II o Vaticano vendeu armas, financiou ditaduras, golpes de Estado, ocorreram falncias financeiras e bancrias e por causa delas muitas pessoas se suicidaram, alem de ter ordenado operaes encobertas do servio de espionagem pontifcio. Hoje, quando j nos encontramos no sculo XXI, ningum conhece os servios secretos vaticanos, como a Santa Aliana. Agora, no mundo da espionagem o servio secreto do Vaticano, espionagem e contra-espionagem, e chamado AEntidade. Mas, chame-se como se chamar, continua a manter intactos ainda hoje os mesmos princpios com os quais foi criado pelo papa Pio V no ano do Senhor de 1566: a defesa da f, a defesa da religio catlica, a defesa dos interesses do Estado do Vaticano e a suma obedincia ao papa ho-de continuar a ser os quatro grandes pilares para assim sobreviver at ao mais obscuro da histria futura, porque, enquanto a Igreja Catlica continuar a transmitir a f no lugar mais longnquo da Terra, A Entidade estar sempre ao abrigo de qualquer inimigo que aparea no caminho do Sumo Pontfice ou da sua poltica. Mas at aos nossos dias o Estado do Vaticano continua a negar a existncia do seu servio de espionagem.
Eplogo
Os anos vindouros Bento XVI Sei viver na penria e sei viver na abundncia. Em tudo e em todas as circunstncias, tenho aprendido a ter fartura e a ter fome, a ter abundncia e a padecer necessidade. Tudo posso nAquele que me d fora. Carta aos Filipenses 4, l2-l3
Na manh de sexta-feira, l de Abril, o chefe da espionagem e da contra- espionagem do Estado do Vaticano foi chamado presena do cardeal camarlengo Eduardo Martnez Somalo. Ao entrar no seu gabinete situado no Palcio Apostlico, descobriu os rostos sombrios daqueles que o acompanhavam, os cardeais Joseph Ratzinger, prefeito da Congregao da Doutrina da F, os arcebispos Leonardo Sandri e Giovanni Lajolo, responsveis do Interior e Relaes Exteriores do Vaticano, o cardeal secretrio de Estado, Angelo Sodano, e Camilo Ruini, vigrio de Roma. O estado do Sumo Pontfice era j de extrema gravidade. A ltima hora, juntou-se ainda o cardeal Giovanni Battsta Re, prefeito da Congregao para o Clero. O arcebispo responsvel pelos servios de espionagem e da contra-espionagem soube que tinha sido convocado para preparar todas as operaes que deveriam ser postas em prtica logo que o papa Joo Paulo II tivesse expirado. Tocava a ele a responsabilidade de proteger o corpo do papa depois de o doutor Renato Buzzonetti ter certificado o bito do Santo Padre. Seria essa a primeira tarefa dos agentes da contra-espionagem papal, o Sodalitium Pianum. Os membros da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum estariam desde logo s ordens do camarlengo. A operao Catenaccio ou Ferrolho seria ativada uma vez declarada a morte do Sumo Pontfice. Na manh de sbado, 2 de Abril, o delegado do ministrio do Interior em Roma, Acquile Serra, atravessou as portas do Vaticano. Um telefonema feito por um alto dignitrio eclesistico anunciou-lhe: O papa vai morrer. Estejam preparados. Por volta das 21 horas foi novamente chamado o responsvel pelos espies vaticanos. Ao entrar numa das salas contguas aos aposentos papais no Palcio Apostlico encontrou-se com o coronel Pius Segmuller, com o comandante-chefe da Guarda Sua, o coronel Elmar Theodor Mader, com o inspetor-geral da Gendarmeria Vaticana, Camillo Cibin, e com o subinspetor Domenico Giani. Os cinco ali presentes seriam os responsveis pela segurana do Estado do Vaticano e tambm nas suas mos ficava a segurana dos 115 membros do Sacro Colgio Cardinalcio que deveria reunir-se em conclave na segunda-feira 18 de Abril para a nomeao de um novo papa. At esse momento, os purpurados seriam a maior autoridade no Estado do Vaticano e na Igreja Catlica durante o interregno at escolha do sucessor de Pedro. As 21:37, o doutor Renato Buzzonetti declarou o falecimento de Joo Paulo II: Declaro que o papa Joo Paulo II, nascido em Wadowice a 18 de Maio de 1920, residente na Cidade do Vaticano, cidado Vaticano, morreu s 21:37 horas do dia 2 de Abril de 2005 no seu quarto do Palcio Apostlico do Vaticano, em consequncia de uma infeco e de um colapso cardio-circulatrio irreversvel. Os murmrios chegaram at ao quarto. Um grande silncio encheu todas as salas como se se tratasse de uma vaga. Os cinco homens puseram o joelho esquerdo no cho e benzeram-se. Camillo Cibin, o mesmo que colocou a mo sobre a ferida quando atentaram contra a vida de Joo Paulo II na praa de So Pedro, a 13 de Maio de 1981, dirigiu a pequena orao. Todos sabiam que a partir da toda uma mquina perfeitamente oleada desde h sculos comearia a movimentar-se e eles e os seus departamentos seriam peas importantes nas horas seguintes. A Segmuller e a Mader foi ordenado que os seus homens tornassem posies em redor da praa de So Pedro perante o fluxo cada vez maior de fiis que se aproximavam do Vaticano preocupados com a sade do papa. A Cibin e Giani foi ordenado que os seus homens escoltassem os altos dignitrios do Colgio Cardinalcio e assumissem assim os poderes temporais at eleio de um novo papa. Ao responsvel dos servios de espionagem foi dada a tarefa de escoltar o camarlengo Martnez Somalo e proteger os aposentos papais at serem selados. A partir do prprio momento em que se noticiou a morte do papa Joo Paulo II, o chefe da Santa Aliana comeou a dar ordens aos seus agentes. Escoltar o cardeal Martnez Somalo at ao gabinete do papa a fim de destruir o selo de chumbo do Pescador, bem como o anel que o papa trazia no dedo. Desta forma se evitava que algum pudesse utilizar os selos pontifcios para assinar documentos no aprovados antes do falecimento do Sumo Pontfice. Ao sair do gabinete, Martnez Somalo ordenou logo a selagem dos aposentos papais. Cinco selos de lacre sobre uma fita vermelha foram colocados pelo vigrio de Roma, o cardeal Tuini. Dois agentes da contra-espionagem e dois elementos da Guarda Sua fariam ali uma guarda permanente para proteger os selos at que fossem quebrados pelo novo papa a eleger no conclave. O sucessor de Pedro era o nico que poderia entrar naquele que foi o gabinete do papa Joo Paulo II nos ltimos vinte e seis anos. Logo de imediato, Martnez Somalo indicou a Cibin, ao coronel Mader da Guarda Sua e ao responsvel da espionagem que estivessem preparados para uma reunio do chamado Comit de Crise, formado pelas autoridades da repblica italiana e da cidade de Roma. Os trs seriam o elo de ligao do Vaticano com todas as foras de segurana do Estado italiano. Depois, s 21:55 de sbado, 2 de Abril, exatamente dezoito minutos aps ser declarado o falecimento do papa, o arcebispo Leonardo Sandri anunciou a sua morte ao Mundo. Por volta das 23:30 dessa mesma noite, um telefonema do cardeal carmalengo informou o arcebispo-chefe da Santa Aliana que deveria apresentar-se nos aposentos de monsenhor Stanislaw Dziwisz, secretrio do papa durante mais de quarenta anos, que tinha em seu poder o testamento de Joo Paulo II e que apenas devia ser lido numa data concreta. O chefe da espionagem ofereceu ao bispo polaco um cofre de segurana para depositar o valioso documento, mas Dziwisz preferiu mant-lo em seu poder tal como lhe tinha recomendado o Santo Padre. Roma vivia horas difceis. Mas o rudo da multido concentrada na Praa de So Pedro no era perceptvel para l do Porto de Bronze que d acesso ao Palcio Apostlico. No seu interior apenas se escutavam os passos das patrulhas da Guarda Sua e os murmrios de cardeais e altos membros da Cria. Era evidente que, depois de tantos sculos de rituais, o corao da Igreja Catlica continuava a bater regularmente como um relgio e marcava os minutos do ritual de Sede Vacante. Os dias iam prosseguir dentro de uma espcie de pnico controlado. O cardeal Eduardo Martnez Somalo dava ordens precisas ao vigrio de Roma e tambm aos cardeais Camillo Ruini e Joseph Ratzinger, encarregado como decano do Sacro Colgio Cardinalcio de realizar a chamada oficial da convocatria do conclave e assistir os seus membros na chegada a Roma. Os servios de segurana e de espionagem receberiam ordens ao mesmo tempo de Somalo, Ruini e Ratzinger. A meia-noite de 7 de Abril, um dia antes do funeral de Joo Paulo Il, um telefonema de urgncia do substituto da Secretaria de Estado, o arcebispo argentino Leonardo Sandri, informava o chefe de espionagem que tinham recebido uma comunicao do Air Force One, o avio presidencial, a indicar que, aps aterrar em Roma, os chefes da delegao norte-americana se dirigiriam at baslica de So Pedro para orar diante do corpo do papa. Em poucas horas, um presidente e dois ex-presidentes dos Estados Unidos ajoelhar-se-iam perante o corpo de Joo Paulo II. O responsvel do Sodalitium Pianum, sob as ordens do arcebispo-chefe dos servios de espionagem do Estado do Vaticano, comeou a contactar com as autoridades italianas em Roma e os responsveis do servio secreto norte-americano. A comitiva do presidente George W. Bush, acompanhado pela esposa e por seu pai, o ex-presidente George Bush, e tambm pelo ex-presidente Bill Clinton e pela secretria de Estado, Condoleezza Rice, chegou s portas do Vaticano perto da 1:35 da madrugada. A segurana era mxima no interior da baslica, mas ao servio secreto foi pedido que no entrassem l dentro com armas. Por alguns minutos, a segurana dos trs mandatrios norte-americanos ficou nas mos da Guarda Sua, do Corpo de Vigilncia e da contra-espionagem do Vaticano. A mesma hora, decorria uma reunio de emergncia no gabinete do cardeal camarlengo. Estava a estudar-se a possibilidade de logo a seguir ao funeral, que devia celebrar-se horas depois com a presena de quase duzentos chefes de Estado e de Governo, monarcas e lderes de outras religies, o corpo de Joo Paulo II ser levado de helicptero para a igreja de So Joo de Latro, a catedral de Roma, para que o povo ali pudesse render uma ltima homenagem ao papa falecido. Ratzinger estava de acordo com a trasladao, mas Ruini alegou que a segurana do corpo era difcil de controlar fora dos muros do Vaticano. Apoiado pelo chefe da Santa Aliana, Cibin dirigiu-se aos cardeais ali reunidos e advertiu-os de que montar um dispositivo mvel fora do Vaticano seria muito complicado perante a avalancha de fiis que procurariam chegar ao interior de So Joo de Latro. A Guarda Sua pode controlar a segurana no Vaticano, mas fora dele responsabilidade da polcia italiana, disse ainda Cibin. O cardeal Martnez Somalo decidiu ento acabar com a discusso e declarou que tomara uma deciso. O papa Joo Paulo II seria sepultado depois do funeral, sem nenhum tipo de demora. Ao assomarem s janelas voltadas para a Praa de So Pedro, os membros da Cria Romana e das suas foras de segurana observaram como as longas filas de fiis se estendiam por quilmetros e quilmetros para l mesmo das pontes sobre o rio Tibre. Cada um dos fiis percorria duzentos metros de trs em trs horas. Seria, pois, uma longa noite para todos. Na sexta-feira, 8 de Abril, e depois de uma orao, celebrou-se a ltima reunio com os responsveis de segurana do Estado do Vaticano e de Itlia. Como se se tratasse de um general antes da batalha, o cardeal camarlengo Eduardo Martnez Somalo, acompanhado pelo penitencirio maior, Francis James Stradford, pelo vigrio de Roma, Camillo Ruini, e pelo vigrio-geral para a Cidade do Vaticano, Angelo Comastri, tinha em cima da mesa um grande mapa do Vaticano e um plano escala da Praa de So Pedro. Sobre ele, pequenas bandeirinhas de diferentes cores e que representavam presidentes, primeiros-ministros, reis e lderes religiosos estavam marcadas na planta. O presidente do Municpio de Roma, Walter Beltroni, e Guido Bertolasso, responsvel do governo para a Proteo Civil, pelo lado italiano, escutavam as explicaes de Martnez Somalo. Tudo estava previsto e muito bem previsto. A partir de altas horas da madrugada, os agentes da Santa Aliana e da contra- espionagem vaticana, misturados no meio da multido, tinham comeado a tomar posies entre os fiis que se juntavam para ter os melhores stios antes de se iniciar a homilia celebrada pelo cardeal Joseph Ratzinger. Ao longe, membros do chamado Corpo de Vigilncia da Santa S, vestidos com fato e gravata preta, patrulhavam os arredores ligados por auriculares com a diviso de coordenao de segurana, dirigidos por um representante da Repblica de Itlia e outro da Santa S. Nos telhados em volta, centenas de fotgrafos, cmaras de televiso e jornalistas de noventa pases, representando mais de trs mil rgos de comunicao, esperavam o comeo da cerimnia. No meio deles, havia agentes da Santa Aliana disfarados e atiradores de elite da polcia e do exrcito italiano. Desde as primeiras horas da manh, j cerca de seiscentas mil pessoas se concentravam por detrs das grades colocadas pela polcia italiana em redor da colunata de Bernini. Um elemento da segurana vaticana chegou a dizer que nunca antes em toda a histria se tinham concentrado tantas foras de segurana do mundo inteiro em to poucos quilmetros quadrados. Era evidente que se referia s seguranas dos chefes de Estado e de Governo, quase duas centenas, que se encontravam sentados diante do corpo do Sumo Pontfice. Para os responsveis da segurana no resta a menor dvida de que se trata do primeiro funeral a uma escala global. A manh apareceu coberta de nuvens e um forte vento corria pela Praa de So Pedro, levantando as vestes vermelhas cardinalcias. Toda a gente est em alerta perante as duas centenas de poderosos que ali se juntaram para render o seu ltimo tributo ao papa Joo Paulo II. A cerimnia comea de forma privada no interior da baslica. O cardeal Martnez Somago, acompanhado sempre por um membro da contra-espionagem e trs agentes da Gendarmeria da Santa S, celebra o ritual do fechamento do atade, uma urna simples de cipreste. O arcebispo Pietro Marini, mestre das celebraes litrgicas, procedeu leitura do rogito, uma breve biografia do defunto, e depositou-o dentro do caixo. Logo a seguir, o secretrio Dzwisz cobriu o corpo com um pano branco. Mas o que ningum sabia nessa mesma hora que o chefe da espionagem do Vaticano e Camillo Cibin, inspetor-geral da Gendarmeria Vaticana, tinham recebido um alerta de violao de segurana vindo da parte do comando italiano. Um avio sem identificao estava a entrar no espao areo do Estado do Vaticano. Parece que o controle do espao areo da repblica italiana no conseguiu pr-se em contacto com os pilotos e o alarme foi ativado. Pela cabea de Cibin e do responsvel da Santa Aliana passaram dezenas de imagens de um avio a estatelar-se sobre dezenas de monarcas, trs prncipe herdeiros, cinquenta e sete chefes de Estado e dezassete chefes de Governo, e ainda sobre mais de uma vintena de lderes religiosos sem que pudessem fazer absolutamente nada para evitar o desastre. Era impossvel evacuar todos eles com suficiente rapidez. Vestidos de luto rigoroso, estavam j nesse momento sentados nos seus lugares espera da sada do fretro de Joo Paulo II e do comeo da homilia celebrada pelo cardeal Joseph Ratzinger. Em poucos segundos, a aeronave por identificar viu-se rodeada por quatro caas da Fora Area Italiana, que o obrigaram a descer e aterrar numa base militar. Quando aterrou, os agentes da polcia e elementos dos servios de espionagem italianos e vaticanos comprovaram que no havia sinais de explosivos ou de bombas. Parece que o piloto teve problemas de comunicao e o avio dirigia-se ao aeroporto de Ciampino para ali apanhar a delegao da Macednia que veio assistir ao funeral pontifcio. Do centro de comando informaram Cibin e o chefe da Santa Aliana do incidente, enquanto prosseguiam as cerimnias fnebres pelo Sumo Pontfice. Quando o cardeal Ratzinger, decano do Colgio Cardinalcio, se dispunha a iniciar a sua homilia, de novo Cibin e o arcebispo-chefe da espionagem pontifcia receberam uma segunda comunicao de alerta. Desta vez o incidente passava-se entre agentes italianos e agentes do servio secreto norte-americano. Parece que os seguranas do presidente Bush tentavam entrar armados numa zona controlada pelos servios secretos de Itlia. Era evidente que o incidente em que o agente italiano Nicola Calipari perdeu a vida ao ser metralhado por marines no Iraque ainda provocava receios entre os norte-americanos e os italianos. Mas foi Cibin quem deu ordens para expulsar os seguranas de Bush para fora do crculo de segurana e da responsabilidade dos servios secretos de Itlia e da Santa S. O clamor dos assistentes e de mais de trezentas e cinquenta mil pessoas que se reuniram na Praa de So Pedro tornou-se num murmrio quando saiu o atade, seguido por cento e quarenta cardeais vestidos de vermelho, para ser depositado sobre um tapete vermelho. Os agentes da Santa S no paravam de vigiar os fiis que ocupavam as primeiras filas, os que estavam mais perto da zona ocupada pelas autoridades. Muitos dos cartazes com frases como Santo Sbito ou Joo Paulo, o Magno impediam vigiar a multido. Camillo Cibin, o coronel Elmar Theodor Mader, comandante-chefe da Guarda Sua, e o chefe da Santa Aliana tinham falado na reunio havida no dia anterior sobre a possibilidade de a polcia italiana poder impedir o acesso de fiis com cartazes. Poderiam talvez alegar que eles ocupavam muito espao para no ofender quem os trazia. Camillo Ruini, vigrio de Roma, aconselhou mesmo que se montasse uma espcie de posto para que os fiis depositassem os seus cartazes e depois de acabar as cerimnias poderiam levant-los. A proposta foi apoiada por Angelo Comastri, vigrio-geral para a cidade do Vaticano, mas a proposta acabou por ser rejeitada pelos cardeais Martnez Somalo e por Ratzinger, que argumentavam que isso poderia ofender os fiis que com tanta esperana tinham esperado horas sob a intemprie para poder apresentar os seus psames ao papa falecido. E isto obrigou a que a segurana da Santa S tivesse de infiltrar entre os fiis vrios agentes da contra-espionagem. Depois da homilia, interrompida por treze vezes com os aplausos, deu-se a cerimnia por concluda aos gritos de Santo, Santo, aps ser dada a comunho e feita a orao dos defuntos. O coro Vaticano entoou o Magnificai, acompanhado pelo toque dos sinos. Novamente os agentes da Santa Aliana e da Gendarmeria deviam comear a movimentar-se. A urna do Sumo Pontfice seria de novo levada para o interior da cripta de So Pedro para ser ali sepultado. Aquele local tinha sido protegido por agentes da Gendarmeria e do Sodalitium Pianum. O caixo de madeira de cipreste foi envolvido por cintas vermelhas, em que foram postos os selos da Cmara Apostlica, da Prefeitura da Casa Pontifcia, da Repartio das Celebraes Litrgicas do Papa e do Captulo Vaticano. A urna de cipreste foi metida noutra de chumbo com quatro milmetros de espessura e por sua vez enfiada noutra de madeira de olmo envernizada. Sobre esta ltima foi posto um crucifixo e as armas do papa falecido. Uma simples lpide, em que est escrito em latim o nome de Joo Paulo II, a data de nascimento e da morte, cobriu a sua sepultura. Um notrio do Captulo da Baslica do Vaticano redigiu a ata da sepultura e a seguir leu-a aos presentes, em reduzido nmero, presidido pelo camarlengo e por alguns membros escolhidos da famlia pontifcia do papa, os seus secretrios, as freiras que cuidavam dele, o seu mdico pessoal e Stanislaw Dziwisz, o seu fiel secretrio. Com este ato e a sada do aeroporto de Roma do ltimo chefe de Governo era dada por terminada a chamada operao Ferrolho e as foras de segurana Vaticanas reduziam o seu nvel de alerta. Tinha agora chegado o momento, para os servios de espionagem e contra- espionagem da Santa S, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum, de se pr em marcha para preparar o conclave em que deveria ser eleito o sucessor de Joo Paulo II. a hora dos Novendiales [os nove dias de luto], do conclave e de um novo papa, disse Martnez Somalo aos chefes de segurana. Na segunda-feira, 11 de Abril, uma hora da manh, e depois de assistir a uma missa em memria do papa falecido, os cinco homens encarregados da segurana do Estado do Vaticano reuniram-se numa sala do Palcio Apostlico com o cardeal camarlengo Martnez Somalo e o cardeal Joseph Ratzinger. Aps uma breve saudao e orao, o coronel da Guarda Sua, Pius Segmuller, o comandante-chefe da Guarda Sua, o coronel Elmar Theodor Mader, o inspetor- geral da Gendarmeria Vaticana, Camillo Cibin, o subinspetor Domenico Giani e o chefe da espionagem do Vaticano comearam a fazer uma espcie de relatrio das incidncias ocorridas no dia anterior. O cardeal Ratzinger tomou a palavra para felicitar os cinco homens ali presentes e para lhes pedir que continuassem nos seus esforos num momento to importante para a Santa S como era a convocatria do conclave. Os cinco homens ali reunidos foram os primeiros a saber que o dia escolhido para o comeo do conclave seria a segunda-feira, 18 de Abril, mas a verdade que tinham pouco tempo, isto , apenas sete dias para organizarem tudo. Os agentes da contra-espionagem, o Sodalitium Pianum, seriam encarregados de proteger os 115 cardeais eleitores para evitar que durante as votaes do conclave pudessem ser influenciados por foras externas. Ocupar-se-iam tambm de proteger o interior da Casa de Santa Marta, onde ficariam instalados os cardeais que haviam de escolher o novo Sumo Pontfice. Todos os dias deviam limpar os quartos dos cardeais para impedir quaisquer escutas, microfones ocultos ou simples aparelhos de rdio ou de televiso. No comeo do conclave era absolutamente proibido qualquer meio de comunicao e se algum dos cardeais violasse esta norma seria imediatamente excomungado. Os agentes da espionagem, a Santa Aliana, ficariam encarregados de limpar todas as manhs, antes da chegada dos cardeais Capela Sistina, quaisquer escutas eletrnicas e comprovar entrada que os 115 cardeais eleitores no tinham nenhum aparelho eletrnico nem mesmo os telefones celulares. Os servios secretos do Vaticano tambm se ocupariam de ter perfeitamente coordenada a barreira eletrnica colocada em redor da Capela Sistina e de Santa Marta para evitar que, mesmo que algum cardeal conseguisse passar um telefone celular atravs dos controles da contra-espionagem, esse no disporia de cobertura. A ltima hora, o cardeal Martnez Sodamo indicou ao chefe da Santa Aliana que os seus homens se encarregariam ainda de proteger os fustigadores eleitos pelo Colgio Cardinalcio para controlar as normas do conclave. Os dois fustigadores eram o padre capuchinho Raniero Cantalamessa, de setenta e um anos, especialista em exerccios espirituais e pregador oficial da Casa Pontifcia, e o cardeal checo Thomas Spidlik, de oitenta e seis anos, um dos maiores especialistas em espiritualidade oriental.
Estavam abertas as trguas para a sucesso ao trono de So Pedro. Para os responsveis dos servios de espionagem era claro que preferiam um continuador e se possvel que pertencesse ao chamado crculo polaco, formado pelos cardeais mais prximos de Joo Paulo II. O arcebispo-chefe da Santa Aliana sabia que se o eleito como o sucessor de Pedro fosse o cardeal Dionigi Tettamanzi, arcebispo de Milo e defensor dos jovens anti-globalizao, o brasileiro Cludio Hummes, arcebispo de So Paulo, amigo do presidente Lula e defensor dos Sem-Terra, ou o hondurenho Oscar Andrs Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e que, segundo dizem, esteve com a Teologia da Libertao, o mais normal que estabelecessem uma linha de imobilismo nos servios de espionagem do Estado Vaticano. Ainda se recorda o que aconteceu quando o cardeal conservador Roncalli foi eleito papa a 28 de Outubro de 1958 com o nome de Joo XXIII, se tornou num dos papas mais progressistas de toda a histria da Igreja Catlica e convocou o Conclio Vaticano II. Os servios secretos, espionagem e contra-espionagem, permaneceram na mais absoluta inatividade ao longo de cinco anos at ao falecimento do papa, a 3 de Junho de 1963. O cardeal Montini, eleito como Paulo VI, reativou s atividades da Santa Aliana e do Sodalitium Pianum, chegando ao ponto culminante da sua operacionalidade durante a primeira dcada do pontificado do papa Joo Paulo II, entre 1978 e 1988. Era evidente que para a Santa Aliana seria perigosa a escolha de um progressista para a cadeira de So Pedro. Antes de chegar o dia 18 de Abril, data do incio do conclave, os principais favoritos para suceder a Joo Paulo II eram os cardeais Dionigi Tettamanzi e o alemo Joseph Ratzinger. A 16 de Abril, sbado, Ratzinger, na ltima reunio de cardeais eleitores antes de se iniciar o conclave, ordena um silncio absoluto. Ficam proibidas as declaraes aos meios de comunicao e para isso o camarlengo ordena a Camillo Cibin e ao chefe da espionagem papal que, a partir desse momento, todos os cardeais eleitores, cento e quinze no total, pertencentes a cinquenta e dois pases dos cinco continentes, devam ser sempre acompanhados at se recolherem em Santa Marta para preparar o conclave. Chegou a hora da verdade para os cento e quinze cardeais que devem eleger o pontfice da Igreja Catlica. Minutos depois de o arcebispo Pietro Marini, mestre de cerimnias do Vaticano, pronunciar as clebres palavras extra otnnes (todos fora), o cardeal decano Joseph Ratzinger ler em voz alta o juramento atravs do qual cada eleitor se compromete a observar as normas da constituio Universi Dominici Gregis e o mais absoluto segredo em tudo o que diga respeito eleio do novo papa. As urnas de prata e bronze onde sero recolhidos os votos esto j colocadas diante do altar-mor e protegidas por dois agentes do S. P. e membros da Guarda Sua. Foram tambm preparadas as duas estufas, a antiga, que queimar os votos, e a mais moderna, que, com a ajuda de substncias qumicas, far sair o fumo branco ou o fumo negro. Esto tambm arrumados os bancos em que os cardeais devem sentar-se e a mesa coberta com um pano purpurado onde os encarregados do escrutnio e da contagem abrem os votos, fazem a sua leitura em voz alta e atam-nos com uma agulha grossa antes de os queimarem. O jornal Ubsservatore Romano, rgo oficial da Santa S, tem j preparadas umas sessenta possveis primeiras pginas. A 18 de Abril de 2005, s 17:30 da tarde, inicia-se oficialmente o conclave e nesta mesma tarde, pelas 20.06, hora do Vaticano, sai pela chamin colocada no telhado da baslica de So Pedro o primeiro fumo preto. Nenhum candidato conseguiu os votos necessrios para ser eleito Sumo Pontfice, ou seja, setenta e seis votos e mais um. Na manh de tera-feira, 19 de Abril, os conclavistas esto de novo reunidos. Um grupo seleto de cardeais lidera a votao a favor do cardeal Ratzinger. O espanhol Julian Herranz, membro da Opus Dei e prefeito para a Interpretao dos Textos Legislativos, o colombiano Drio Castrilln Hoyos e tambm o colombiano Alfonso Lpez Trujillo, todos eles pertencem ala conservadora da Cria. Pouco depois, juntar-se-o ainda a este grupo os cardeais italianos Angelo Scola e Camillo Ruini, um dos fiis de Ratzinger. O cardeal austraco Christoph Schnborn, amigo do chamado Panzerkardinal, tambm se juntaria ao grupo de apoio candidatura de Ratzinger. Cada vez mais parecia ser relativamente simples a vitria de Ratzinger. Era evidente que Tettamanzi contava com a oposio do bloco liderado por Angelo Scola e vice-versa. O cardeal Cario Maria Martini, lder da ala reformista e promotor da candidatura de Tettamanzi, enviou um sinal ao seu grupo para desistir do apoio ao arcebispo de Milo. A fora da candidatura de Joseph Ratzinger e dos apoios que tinha revelam-se cada vez maiores e mais seguros. De acordo com o vaticanista Orazio Petrosiello, do jornal II Messagero, na primeira votao do conclave na tarde de segunda-feira, Martini conseguiu quarenta votos em relao aos trinta e oito dados a Ratzinger. s 17.50, hora do Vaticano, aparecia na pequena e estreita chamin o que parecia ser fumo branco, mas os sinos da baslica de So Pedro no repicaram como tinham anunciado. Na Praa de So Pedro houve grande confuso, mas de repente os grandes sinos da baslica comearam a tocar. Os cento e quinze cardeais tinham eleito o sucessor de So Pedro. Uns minutos antes e aps a quarta votao do conclave, o cardeal alemo Joseph Aloysius Ratzinger alcanara o quorum necessrio para ser eleito novo Sumo Pontfice, obtendo um total de 107 votos dos 115 cardeais eleitores. A seguir, o cardeal Angelo Sodano perguntou a Joseph Ratzinger: Aceitas a tua eleio cannica como Sumo Pontfice?; o alemo respondeu afirmativamente. segunda pergunta: Qual o nome pelo qual desejas ser chamado?, o cardeal Ratzinger respondeu: Pelo nome de Bento XVI. O novo papa Bento XVI rezou diante do altar da Capela Sistina e deslocou-se depois a uma pequena sala, chamada quarto das lgrimas, onde o papa eleito esteve algum tempo a ss, com os seus sentimentos. Foi tambm a que ajudaram Bento XVI a vestir o hbito de Santo Padre, que o conhecido alfaiate Grammarelli confeccionou em trs tamanhos diferentes. Minutos antes e como assinala a tradio, o cardeal protodicono, o chileno Jorge Arturo Medina Estevez, cumpriu a sua tarefa de fazer o anncio oficial: Annuntio vobis gaudium magnum: habemus Papam: Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominun Josephus Sanctae Romanae Ecclestae Cardinalum Ratzinger qui sibi nomen imposuit Benedictum XVI. Nesse mesmo momento, Bento XVI aparecia varanda para lanar a sua bno Urbi et Orbi, mas enquanto milhes de olhos viam esta cena, no interior do Vaticano os servios de segurana eram avisados de que o novo papa tinha sido eleito e em seu redor deviam comear a esboar um plano de proteo e escolta. Nessa mesma noite, o cardeal Eduardo Martnez Somalo reuniu-se com Camillo Cibin, o coronel da Guarda Sua Elmar Theodor Mader e o arcebispo-chefe da Santa Aliana: Devem estar preparados para serem chamados presena do Santo Padre, disse-lhes Somalo. esta a hora de orar depois da eleio do nosso novo Sumo Pontfice. Os membros da Gendarmeria e da Guarda Sua seguiriam no seu trabalho de patrulhar o interior do Palcio Apostlico, mas os agentes da contra-espionagem, pelo menos nessa noite, ocupar-se-iam em proteger o Sumo Pontfice, que cearia na residncia de Santa Marta com os cento e catorze cardeais que estiveram com ele no conclave at que pudesse dispor dos seus prprios aposentos no Palcio Apostlico. Cibin foi informado a altas horas da noite de que, no dia seguinte, o papa desejava visitar o antigo gabinete da Congregao para a Doutrina da F, bem como passar alguns instantes pela que tinha sido at ento a sua residncia no Vaticano para recolher algumas coisas pessoais. O inspetor-geral da Gendarmeria Vaticana, Camillo Cibin, chamou pelo telefone interno o subinspetor Domenico Giani para que informasse a Santa Aliana dos desejos do papa. Antes da visita papal, os agentes da espionagem do Vaticano deviam passar pelas instalaes da Congregao e pelo seu apartamento privado para se assegurarem de que o papa Bento XVI no sofreria nenhum percalo. Na quinta-feira, 20 de Abril, s sete da manh, os cardeais que ainda se encontravam na residncia de Santa Marta viram entrar no refeitrio o papa Bento XVI, onde ia tomar, como fazia desde h anos, o pequeno-almoo com os seus colegas. A nica diferena que desta vez aparecia vestido de um branco imaculado e era escoltado por trs agentes da contra-espionagem e da Gendarmeria. As ntidas olheiras revelavam o enorme peso que assumiu no dia anterior ao aceitar a sua nomeao como Sumo Pontfice. O cardeal Schnborn foi o primeiro a aproximar-se do papa e a beijar-lhe o anel do Pescador. A seguir, o papa chamou o cardeal Sodano e disse-lhe qualquer coisa em privado. Depois do pequeno-almoo, Bento XVI dirigiu-se para o Palcio Apostlico, acompanhado pelo cardeal Eduardo Martnez Somalo e pelo cardeal Angelo Sodano, tendo o cardeal espanhol indicado ao piquete da Guarda Sua e aos dois agentes do Sodalitium Pianum que se retirassem para poder quebrar os selos da porta do gabinete do anterior papa Joo Paulo II nos ltimos vinte e seis anos. Com o papa como testemunha, Martnez Somalo cortou as cintas vermelhas e quebrou os cinco selos de lacre que deixaram abrir a grande porta. A seguir, Bento XVI ordenou uma srie de reformas que deviam ser feitas antes de ocupar o gabinete do seu antecessor falecido apenas h dezoito dias. De imediato, o Sumo Pontfice ratificou no cargo de secretrio de Estado do Vaticano o cardeal Angelo Sodano, de setenta e sete anos, e que ocupava esse mesmo cargo com o papa Joo Paulo II desde 1990. Confirmou ainda o arcebispo Giovanni Lajolo, nos Negcios Estrangeiros, e o vice-secretrio de Estado Leonardo Sandri, que, juntamente com Sodano, formava o chamado triunvirato do poder da Cria Romana. A primeira ordem pontifcia dada ao recm-nomeado secretrio de Estado foi a de ratificar nos seus cargos, at nova ordem, todos os responsveis pelas congregaes, comisses e corpos de segurana. O chamado crculo alemo, e que substituiu o anterior crculo polaco, encerrava-se com a integrao, no mbito privado do papa Bento XVI do seu secretrio privado, o sacerdote Georg Gaenswein, e uma mulher, Ingrid Strampa. O primeiro, segundo relatrios da Santa Aliana entregues ao secretrio de Estado, era um padre de quarenta e nove anos, telogo, ruivo, alto e de aspecto desportivo, alm de ser muito perspicaz e eficiente no seu trabalho. Entende qualquer coisa muito complexa em menos de dez segundos e d uma resposta imediata e clara, afirmam aqueles que o conhecem. Por sua vez, a mulher de cinquenta e cinco anos substituiu nas tarefas administrativas da residncia do ainda cardeal Ratzinger a sua irm Maria, aps esta ter falecido em 1991. Ingrid Stampa faz de ajudante, secretria e at de cozinheira se isso for necessrio. Stampa possui um alto nvel intelectual, foi professora de Msica em Hamburgo antes de se dedicar em Itlia investigao teolgica, faz tradues para editoras catlicas e outras atividades docentes e, tal como o papa Bento XVI, tambm uma grande apaixonada da msica de Mozart. A prpria Ingrid Stampa revelou pouco antes de se ter iniciado o conclave que o ainda cardeal Joseph Ratzinger tinha comentado com ela: J falta pouco, na prxima semana poderemos descansar e vamos todos em excurso. Dias depois, Ratzinger ocupava a cadeira de So Pedro, vaga desde a morte de Joo Paulo II. Era bem claro para o arcebispo-chefe da Santa Aliana que o pontificado alemo de Bento XVI no seria muito diferente do dos anos polacos de Joo Paulo II. Esperam-se anos de glria, mas tambm anos de enorme atividade dentro dos servios de espionagem do Estado do Vaticano, porque no fim de contas os ento inimigos comunistas do papa Joo Paulo II se converteram noutros inimigos. As seitas evanglicas cada vez mais influentes na Amrica Latina e que esto a provocar um enorme afastamento de catlicos, o gigante chins onde os representantes da Igreja Catlica continuam a ser perseguidos pelo governo de Pequim, ou esses telogos que querem afastar-se das estreitas diretrizes definidas pelo Vaticano. Muitos so, pois, os inimigos e muitas as operaes que os agentes da Santa Aliana tm ainda para realizar. Parece que sinto a sua mo forte (a de Joo Paulo II) que aperta a minha. Parece que estou a ver os seus olhos sorridentes e a ouvir as suas palavras que me dizem: No tenhas medo, declarou o prprio Bento XVI. Pode ser que isto seja talvez e to-s a filosofia que dever marcar a atuao dos servios de espionagem e contra-espionagem do Estado do Vaticano, a Santa Aliana e o Sodalitium Pianum nos anos de Bento XVI. Alea jacta est! (A sorte est lanada).
Fim Anexo
Relao dos papas desde a criao da Santa Aliana
Pio V 7 de Janeiro 1566-1 de Maio 1572 Gregrio XII 13 de Maio 1572-10 de Abril 1585 Sisto V 24 de Abril 1585-27 de Agosto 1590 Urbano VII 15 de Setembro 1590-27 de Setembro 1590 Gregrio XIV 5 de Dezembro 1590-15 de Outubro 1591 Inocncio IX 29 de Outubro 1591-30 de Dezembro 1591 Clemente VIII 30 de Janeiro de 1592-5 de Maro de 1605 Leo XI 11 de Abril 1605-27 de Abril 1605 Paulo V 16 de Maio 1605-28 de Janeiro 1621 Gregrio XV 6 de Fevereiro 1621-8 de Julho 1623 Urbano VIII 6 de Agosto 1623-29 de Julho 1644 Inocncio X 15 de Setembro 1644-7 de Janeiro 1655 Alexandre VII 7 de Abril 1655-22 de Maio 1667 Clemente IX 20 de Junho 1667-9 de Dezembro 1669 Clemente X 29 de Abril 1670-22 de Julho 1689 Inocncio XI 21 de Setembro 1676-12 de Agosto 1689 Alexandre VIII 6 de Outubro 1689-1 de Fevereiro 1691 Inocncio XII 12 de Julho 1691-27 de Setembro 1700 Clemente XI 23 de Setembro 1700-19 de Maro 1721 Inocncio XIII 8 de Maio 1721-7 de Maro 1721 Bento XIII 29 de Maio 1724-21 de Fevereiro 1730 Clemente XII 12 de Julho 1730-8 de Fevereiro 1740 Bento XIV 17 de Julho 1740-3 de Maio 1758 Clemente XIII 6 de Julho 1758-2 de Fevereiro 1769 Clemente XIV 19 de Maio 1769-21 de Setembro 1774 Pio VI 15 de Fevereiro 1775-29 de Agosto 1799 Pio VII 14 de Maro 1800-20 de Agosto 1823 Leo XII 28 de Setembro 1823-10 de Fevereiro 1829 Pio VIII 31 de Maro 1829-30 de Novembro 1830 Gregrio XVI 2 de Fevereiro 1831-1 de Junho 1846 Pio IX 16 de Junho 1846-7 de Fevereiro 1878 Leo XIII 20 de Fevereiro 1878-29 de Julho 1903 Pio X 4 de Agosto 1903-20 de Agosto 1914 Bento XV 3 de Setembro 1914-22 de Janeiro 1922 Pio XI 6 de Fevereiro 1922-10 de Fevereiro 1939 Pio XII 2 de Maro 1939-9 de Outubro 1958 Joo XXIII 28 de Outubro 1958-3 de Junho 1963 Paulo VI 21 de Junho 1963-6 de Agosto 1978 Joo Paulo I 26 de Agosto 1978-29 de Setembro 1978 Joo Paulo II 16 de Outubro 1978-2 de Abril 2005 Bento XVI 19 de Abril 2005
{1} A palavra inglesa underworld significa tambm, para l do mundo terreno ou clandef-, tino, inferno, gente de m vida, mundo do vcio ou de baixa moral.