Mulheremportugal00costuoft PDF
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I.
A MULHER EM PORTUGAL
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DOM ANTOIIO DA COSTA
A.
l
l)
OBRA POSTHUMA
PUBLICADA EM CENEFICIO DE UMA CREANA
LISBOA
T^jTJ. da Companhia N cional Editora
O, Largo do Cokde Baro, 50
1892
ADVERTNCIA DO EDITOR
Tem o leitor ante os olhos uma das mais bellas obras
de D. Antnio da Costa, se no a mais bella.
Ficou infelizmente por acabar este nobre edifcio;
mas, ainda assim,
j
vale pelo que , e bem revela
quanto podia ter crescido no plano, e melhorado nos
pormenores, se a mo de Deus, em seus imperscrut-
veis desgnios, no apagasse to cedo o espirito su-
blime do archilecto
!
Appareceu o manuscripto entre o espolio litterario
legado pelo auctor ao corao do seu amigo mais in-
timo; e enteodeu-se que seria ptimo servio ao Pu-
blico Portuguez offerecer-lhe, tal como a deixara o es-
criptor, esta produco notvel. Desamparal-a por in-
completa, consentir que ficasse esquecida, quando ella
de si to valiosa, to espiritualista, to actual, e to
cheia de intenes benficas, seria imperdovel crime.
em quem saiba apreciar a unco e eloquncia (i'essas
paginas, e o muito amor que D. Antnio da Costa n'el-
las encerrou.
Quantos templos, quantos paos senhoris e realen-
gos no admira a Historia-critica da Arte, embora in-
completos ou truncados! Com faltar uma torre, uma
ala de sales, uina varanda, um azulejado de corucheo,
no deixa o pao de vir a ser habitado pelos seus des-
tinatrios; e o templo, embora lhe falte um lano de
claustro, uma portada, uma capella, uma sineira, no
deixa de se adornar de sedas e flores, estrellar-se de
luzes, attrahir o povo, e resoar com os cnticos since-
ros da devoo.
Assim este livro : um alcar litterario, onde avulta
em todo o esplendor um talento de primeira ordem;
um templo magnifico, onde o culto do bom, do bello e
do grande se manifesta com toda a pujana e toda a
singeleza da verdade.
D. Antnio da Costa queria muito a este liwo (por
outra : ideia d'este livro) ; lidou em to pesada faina
longo tempo; empregou n'ella avultado cabedal de tra-
balho e perseverana, que mal parecia
j
compalivel
com as suas doenas e a sua idade; e, como certos
pes, que vigiam com amargo sobresalto os filhos tar-
dios das suas entranhas, e estremecem lembrana de
j no poderem dirigir-lhes de perto a educao e o
desabrochar juvenil, assim D. Antnio da Costa, por
um presentimento sinistro, que assustava os amigos,
encarava com immensa e invencvel melancholia este
filho derradeiro do seu engenho potico e da sua n-
dole essencialmente philanthropica. Nas conversaes
caseiras, quanta vez manifestou elle o susto de no
pr a ultima lima em to complicada concepo ! Quanta
vez, percorrendo e acariciando com algum amigo esses
captulos formosssimos, ou relendo algum trecho d'es-
ses estudos historico-philosophicos, se lhe via o receio
de no chegar ao termo da tarefa! E por mais que
tentassem distrahil-o d'esses pensamentos negros, des-
annuviar-lhe o espirito, e levantar-Hro, elle, na apalhia
mrbida dos seus ltimos mezes de vida, parecia suc-
cumbido ante a ideia de deixar sem tutor, e inhabil
para cumprir a sua misso civilisadora, um livro como
este, to meditado, to sentido, to filho do seu estro,
ou antes, do seu corao!
O estro entrou aqui para muito n'estes quadros de
poeta ; mas o corao teve quinho maior n'estes anhe-
los de homem bom.
Quem procurar estudos histricos, quem quizer de-
liciar-se na restaurao intelligente e conscienciosa de
personagens histricos e painis de interesse nacional,
tem na Parte I muitssimo onde saciar a sede. Quem
se quizer entregar aos devaneios (talvez arrojados) do
philosopho humanitrio, s suas consideraes em fa
vor da melhoria do lar portuguez, em favor da civili-
sao de Portugal pelo estudo e pelo trabalho serio,
em favor da mulher portugueza, como filha, esposa,
me, educadora, e modelo, percorra os vibrantes cap-
tulos da Parte II.
O que o leitor ha de lamentar . .
. que de alguns
d'esses captulos s existam o ttulo e os apontamen-
tos princpaes, e que outros ficassem em meio, pasma-
dos e inertes como as arcarias desmanteladas de uma
runa ! O que ha de compungir muito dolorosamente o
leitor afectuoso, que o sopro creador no tivesse
chegado ainda a todas as partes componentes d'esta
vasta mole; e que, em summa, por entre as cantarias
amontoadas para a prosecuo do edifcio, se leia
j
entre musgos um lgubre Aqui jaz !
E comtudo. . . (tal o condo do talento!) d'entre
essa mesma confuso de trechos por acabar e polir,
entremeados de grandes lanos
j
polidos e soberbos,
resae um encanto mysterioso, que ainda vem augmen-
tar o prestigio do livro. No incompleto do todo ha uma
grandeza inconfundvel, como nas capellas imperfeitas
da Batalha. N'aquelle no-concluido do plano, parece
pairar, descansando do lavor interrompido apenas, o
espirito immortal do auctor ; e junto do Aqui jaz, co-
mo que lhe escutmos claramente: Aqui estou.
Sim; porque D. Antnio da Costa no morreu;
continua vivo na saudade dos Portuguezes, que o vi-
ram dedicar toda a sua vida, todo o seu engenho de
artista, todos os seus esforos de funccionario, de par-
ticular, e de escriptor, em prol do bem da sua Ptria.
A leitura, pois, do presente livro A Mulher em Por-
tug.il tem o que quer que seja do sombrio e prophe-
tico bradar de uma voz occulta, ainda viva almtumulo.
Estas olhas, escriptas muita vez com lagrimas, so um
testamento. Oxal saibam cumpril-o os poderes pbli-
cos, a quem o auctor o destinou.
Uma ultima advertncia:
Com tal publicao continua, por assim dizer, a
exercer-se posthumamente a inexhaurivel caridade de
D. Antnio da Costa. O producto da edio destinado
a uma creana desvalida que elle protegia, a quem
sentava sua mesa, e a quem dava, alm dos cari-
nhos, os conselhos moraes.
Quando esse menino crescer, e souber comprehen-
der os sentimentos bons encerrados ao longo d'estas
paginas, lia de apreciar ento, com as suas saudades,
todo o affecto que trasbordava do grande corao do
seu Protector e seu Amio.
11 de junho de 1892.
PARTE PRIMEIRA
A MULHER NA HISTOHIA
SECO I
A' SOMBRA DO CLAUSTRO
CAPITULO I
A Mulher nas classes elevadas
I
Assim como seria crime, nas eras do absolutismo,
negar mulher popular o seu merecimento, injustia
menor no seria, nos nossos tempos democrticos, re-
gatear s classes elevadas a commemorao que mere-
cem por virtudes, valor, ou caridade. A cada um a glo-
ria dos servios que soube prestar, e dos exemplos que
deixou.
Logo no principio da Monarchia, recordarei o valor
com que o fraco resistiu oppresso do poderoso.
Duas senhoras, a Infanta D. Thereza em Montemor,
e a Infanta D. Sancha em Alemquer, cercadas por seu
irmo D. Afonso 11,
que ambicionava rehaver as villas
de que ellas eram donatrias, por tal modo dirigiram a
defensa, que o Rei se viu obrigado a propr-lhes a
paz.
Passam os annos. Ao valor bellico d'essas Princezas,
14 A MILDER EM PORTUGAL
vemos corresponder n'outra a generosidade do corao.
Ao filho alheio, acolhe como se d"elle fora me.
esposa, e lana sobre as fragilidades do marido o veo
da misericrdia. Quando v seu prprio herdeiro ar-
mado contra o pae, va a reconcilial-os. Quando em
Santarm v os orphos morrendo mingua de cura-
tivo, funda-lhes um hospital. Funda outro em Coimbra
para homens e mulheres. Emfim, se a appario das
rosas no inverno uma lenda, essa lenda encerra um
exemplo social, patenteando a modstia, que sempre
formosa.
No de colorido menos vivo o quadro da que, peia
educao, deu Ptria uma raa de heroes. Para ce-
lebridade d'essa raa, bastariam o martimo Descobri-
dor, e a rija tempera de um brao que lanou n'este
Reino a base das franquias populares, realisadas depois
pelo Reformador de ferro, que se chamou D. Joo II.
D'entre tantas outras senhoras que no sculo XV
illustraram Portugal, vejo agora erguer-se aquella, que
mais do que portugueza de adopo, portugueza dos
quatro costados. Duas vezes bisneta de D. Joo I, por
seu pae o infante D. Fernando, e por sua me a in-
fanta D. Beatriz, D. Leonor deixou sua Ptria padres
indelveis. As suas cinzas no jazem com pompa no
mosteiro de S. Vicente, nem no da Batalha, nem no
dos Jeronymos, nem sequer os encerra modesto mau-
soleo. Modesta como ella, a simples campa que lhe
abriga os restos no claustro da egreja da Madre de
Deus, que fundou, fala ainda mais do que esses mo-
numentos. As suas obras derramam mil bens sobre
successivas geraes, alliviando infortnios, arrancando
victimas aos precipcios, estimulando talentos, iniciando
A MULHER EM PORTUGAL lo
artes, desenvolvendo progressos; e essas obras so o
hospital das Caldas, as mercearias, edies importan-
tes nos inicios da Typographia, a proteco ao immor-
tal que se chamou Gil Vicente, a fundao de um
theatro portuguez segundo a possibilidade do tempo.
Coroa tudo isto a lAIisericordia de Lisboa,
j
por si um
monumento de beneficncia, quando mesmo no houve-
ra sido o toque de alvorada de toda essa cohorte de
estabelecimentos anlogos, que tantos fructos tem sa-
bido espalhar da grande arvore da Caridade.
II
Segundo as indica(5es de D. Joo III, a Rainha D.
Catharina, sua viuva, havia de assumir a Regncia do
Reino em nome d'el-Rei D. Sebastio.
D. Catharina tinha i conquistado, pelos seus ante-
cedentes, a opinio geral, e a sua auctoridade moral
attrahia o respeito de todos. Vieram os seus actos con-
firmar esse conceito. Dotada de superior sagacidade
para comprehender os negcios nos differentes ramos
da administrao, juntava prudncia o animo. Paten-
teou-o nos assumptos da administrao ultramarina,
sendo d'isso notvel exemplo os promptos soccorros e
activas providencias a que se deveu o livramento de
Mazago, e o levantamento do cerco posto nossa
importante fortaleza por Muley-Hamet.
Em prova do que deixo dito, leiam-se palavras de
um escriptor coevo (e de bom credito), Frei Bernardo
da Cruz, na sua Chronica editada por Herculano:
A Rainha D. Catharina comeou com muita suavi-
16 A :miliier em portlt.al
dade a tratar os negcios, sem faltar ponto na admi-
nistrao da justia, como nos apparatos da Africa e
ndia, o que fazia com tanta prudncia e esforo de
animo, que fez vantagem a muitos principes, desejo-
sos de alcanar famosos nomes.
Sollcita pela gloria das letras nacionaes, mandou re-
colher das universidades estrangeiras os estudantes
portuguezes, para virem cursar a de Coimbra, que
pela nova reforma havia progredido. No lhe foi me-
nos affecta a educao das creanas, e fundou em Lis-
boa um instituto para orphos. Velou pela misera sorte
da mulher, e arrancou depravao quantas infelizes
poude. Finalmente, acudiu com soccorros aos cavallei-
ros de Africa, se regressavam Ptria pobres ou im-
possibilitados, depois de bons e gloriosos servios.
Fado nosso ! (e porque no do mundo todo ?): diante
da justia, a cavillao; contra os altos espritos que
se apresentam franca luz do dia, a intriga que mina
nas trevas. Um corrilho mesquinho, acoitando-se
sombra do Cardeal D. Henrique, to mesquinho como
elle, no podia encarar aquelle mrito que o offuscava!
lanou mo da arma traioeira, e empeonhou com in-
trigas successivas o animo da Regente.
No era D. Gatharina caracter que sossobrasse aos
tiros da emioscada; fez-lhe frente. Mas a injustia
desgosta; a Rainha succumbiu. Convocou as Cortes
para resignar o mando; mas essa sua retirada foi um
triumpho. Nobres, prelados, camars populares, a voz
gerai, que era a voz da nao, ergueram-se reclamando
contra a renuncia da Rainha, por meio das mais enr-
gicas representaes.
Entre estas, figura com chiste a de D. Frei Bartho-
A MULHER EM PORTUGAL 17
lomeu dos Marlyres. Simples frade no Mosteiro de
Bemfica, acceitra violentado a mitra de Braga, por
apresentao e instancias de D. Catliarina. Depois de
enumerar em sua carta de 7 de junho de 1561 as
razes que obrigavam a Regente a manter-se no seu
posto, accresceutava:
Lembre-se Vossa Alteza do que me dizia, per-
suadindo-me a tomar esta Braga, muito mais pesada
para mim do que so todos os seus Reinos para
Vossa Alteza. D o exemplo conforme o conselho; e
se no, tambm eu irei buscar minha vida e quietao,
e tornar-me-hei para Bemflca, aprendendo com Vossa
Alteza.
O lao fora bem armado. A Regente houve de ceder
voz geral da nao, como ainda depois, accedendo
tambm ao rogo do seu povo, teve de desistir da sua
retirada para Castella.
N'este caso, sobresahiu d'entre todas as reclama-
es a da Gamara de Lisboa, que por si, e em nome
das outras, dizia Rainha que a sua partida de Por-
tugal equivaleria a uma calamidade publica.
Viuva, tendo visto morrer seu marido na fora da
vida, na flor da juventude o herdeiro da Coroa, e suc-
cessivamente os outros seus filhos, s lhe restava a
solido no meio d^aquelles paos, onde lhe entreluzia
saudosa a epocha brilhante de D. Manuel, e o primeiro
tempo em que ella mesma presidira Corte. A solido
triste, quando succede ao bulicio das festas, e fe-
licidade da famlia. N'aquelle ermo, o conforto nico
da Rainha era seu neto, a quem ella estremecia, e
para quem governara o Reino como deposito que in-
tentava entregar-lhe puro e respeitado.
18 A MULHER EM PORTIGAL
Se D. Gatharina havia resigoado o governo, nem
por isso se julgava desobrigada de aconselhar algu-
mas vezes o Neto durante a Regncia do Cardeal, e
at mesmo depois que o Rei assumiu o mando supre-
mo; e se nem sempfe lhe foram acceitos os conselhos,
para o ingrato inexperiente era o erro, e para o Reino
a desgraa.
Afim de dissuadir o to brioso como ferrenho man-
cebo da infeliz jornada de Africa, empregou esforos
successivos; mas inutilisou-os o partido contrario. D.
Sebastio esfriou as suas relaes com a antiga Re-
gente, chegando at a no a visitar quando vinha a
Lisboa.
Ill
Estava reservado a este mesmo tempo o appareci-
mento de um espirito elevadssimo: a Duqueza D. Ga-
tharina de Bragana.
Erudita em sciencias, letras e Unguas, de inque-
brantvel rigidez de caracter e animo varonil, foi me-
recedora do respeito geral. Na corrupo que invadira
as classes priucipaes, conservou-se impolluta; e sendo
a Rainha legitima, teve de simular que o no era, por
lhe faltar a fora militar que a sustentasse.
Com que fortaleza no soube ella conciliar o respeito
aos seus direitos de Rainha, e a sua tutella de me,
com a sujeio forada a um Rei intruso! A quantas
vicissitudes no foi sobranceiro o animo varonil da Du-
queza de Bragana ! Chegou a dizer ao Cardeal-Rei,
que o nico allivio que n'aquella apertada circumstan-
cia podia ter, era considerar as propostas que lhe fo-
A MULHER EM PORTUGAL 19
ram feitas, como provindas d'el-Rei D. Filippe e no
de Sua Alteza. Chegou at a indicar alvitres, pelos
quaes, renunciando ao seu direito individual, ficaria o
Reino com seu filho, por prncipe prprio, e de nenhum
modo unido a Castella. O verdadeiro Rei ento foi D.
Catharina e no Filippe
11, que, se poude vencer pelas
armas, ficou vencido pela dignidade e pelo desprezo.
E em quanto este Rei vai dirigir com mo de ferro
os destinos da ptria infeliz, e em quanto meio mundo
se dobra ao aceno do seu brao, esta mulher que re-
colhe no seu corao as lagrimas e esperanas de um
jpovo, cuja liberdade ella lhe salvaguardou.
IV
Correram os annos; e a nao, vingando a afFronta,
reconquistou a independncia que a fora lhe arreba-
tara.
Se lenda o brado de Villa Viosa
Antes uma
hora Rainha, que Duqueza toda a vida,
o futuro
mostrou que a lenda poderia ler sido realidade. Fra-
quejaria acaso o animo de D. Luisa de Gusmo na sua
Regncia, quando, invocada a raso do soccorro inglez
para nos proteger a independncia, cedia Rombaim,
como presente de npcias sua estremecida filha Ca-
tharina? Se com a raso de estado se mesclou o amor
materno, atenuao lhe seja, porque, a par de me
amorosa, foi tambm viril no pulso com que dirigiu o
governo.
Amou effectivamente em extremo os seus filhos.
Exemplo curioso se deu no Tejo, n"aque]la manh do
20 A MULHER EM PORTUGAL
levantar ferro, antes de entufar as vellas a armada que
ia conduzir a Rainha de Inglaterra.
Foi n'essa manh, que o padre Antnio Vieira no
fez seno andar num corropio, do pao para a camar
da capitnia, da camar da capitnia para o pao;
sendo eu
ou de recear
ser havida por consentidora n'elle ; e decorridos pou-
cos dias tornou-se para Odivellas.
Mas D. Fihppa amava-a ; e o amor, passado o re-
pente, que ainda amor, reacorda sempre nas occa-
sies em que periga o ente amado. O amoroso ressen-
timento atravessara aquelle crebro, mas no lanara
raiz. Ainda correu ao mosteiro D. Filippa ; e quando ?
ao chegar-lhe a nova de grave enfermidade. Eil-a en-
to de novo a caminho de Aveiro. Ali, enfermeira des-
velada, acompanhou a doena da sobrinha querida, e
ali assistiu s ultimas scenas d'aquella tragedia ; d'en-
tre ellas, a uma que a todos impressionou.
Tinha sido a Infanta D. Joanna a educadora do in-
fantil D. Jorge, filho natural de D. Joo II, que aos
cuidados delia o entregara. N'um dos ltimos dias,
julgando ser o derradeiro, mandara a Infanta lhe trou-
xessem o menino, e esforando-se por levantar meio
corpo, abraando o sobrinho, e com as lagrimas nos
olhos, depois de lhe recommendar o amor de Deus,
disse-lhe na presena da tia de ambos:
escreve a Auctora
so mais
firmes naturalmente, mais esforados em pelejas e re-
bates, menos temem a morte, mais procuram a hon-
ra e o proveito; digo pela maior parte, ainda que em
todos haja fracos e fortes. E assim concluo: sua paz
deve ser desejada com grande raso; mas sua guer-
ra (que Deus nos guarde) no deve ser mui temida,
quando sem causa procurarem mettel-a em obra, pois
Deus, justia, verdade, raso humana, so em nossa
ajuda, e a elles contrarias.
Com que votos no almeja D. Filippa em favor da paz
!
mas tambm, com que esforo no estimula o valor dos
seus em favor dos nossos direitos e da nossa honra
!
N'uma occasio em que se receavam tumultos na
capital, tambm escrevia a Pratica ao Senado de Lis-
boa. Depois, Nove Meditaes da Paixo, que vieram a
imprimir-se na Regncia da Rainha D. Catharina. Da
sua artstica obra illuminada em breve se dir.
A MULHER EM PORTUGAL
III
Avaliava e estremecia tanto seu sobrinho D. Joo II,
que, no escripto acima indicado sobre as guerras de
Castella, a expanso do seu affecto lhe faz soltar este
grito
:
Bem sabe Nosso Senhor que eu no tenho desejos
de governos; mas as coisas d'este senhor
(a seu
sobrinho se referia
i
(de S. Bento)
tem cor-
rido o meu pranto. Elle sabe que pelos dictames da
raso foram sempre dirigidas as minhas aces; que
a honra, o decoro, e o pondonor foram sempre inse-
paraveis do meu corao, que mais prompto a pa-
decer enganos, que a admittir infames industrias, por
serem sempre honrados os seus sentimentos
Em face do Ceo e da terra esto justificadas as obri-
gaes com que nasci, e no posso deixar de dizer
que o vosso santo Patriarcha parece de justia rigo-
rosa obrigado a soccorrer-me, pois no ignora que eu
^ no segui indiscretas insinuaes, pelos vnculos da na-
atureza. Elle desprezou as elevaes do Throno, co-
nhecendo que maior grandeza pisal-o, que subir a
A MULHER EM PORTIGAL 71
elle; e eu, infeliz, sem o seu grande espirito, sempre
segui que para os lustres de alheias fidalguias no de-
<ivia incommodar-me, havendo nascido de illustres, e que
pela esperana de possuir no sujeito a desacertos
quem nasceu entre thesouros, e nunca sentiu indigen-
cia
De vossa senhoria, capliva a mais fiel e obrigada--
Dorotha Engrassia Tavareda dWlmira,
Este nome supposto o anagramma do verdadeiro,
que bem se deprehende porque no escreveu o pr-
prio.
Esta carta parece descobrir uma ponta do veo. Nin-
gum a ler sem se convencer de que a encarcerada
lana o grito da verdade ao proclamar a sua innocen-
cia. A verdade tem comsigo este condo: brilha como
o sol, e vibra como o raio. No ha fugir-lhe.
Na presena d'estes preciosos documentos inditos,
ficamos sabendo que D. Theresa Margarida da Silva e
Orta teve a desgraa de ser despojada da sua casa e
liberdade, e que foi encarcerada no mosteiro de Fer-
reira de Aves por haver preferido os sentimentos da
honra a benefcios infames, e a propostas indiscretas.
Foi um facto politico este, que o Marquez de Pom-
bal quiz punir? ou um facto particular, de que recor-
reram para o seu poder?
, Parece-me pouco admissvel a primeira hypothese.
Nenhum indicio ba para fazer d'esta dama uma con-
spiradora, nem apparece n'esta sua carta uma nica
alluso ao seu encerro por motivo algum politico; ao
mesmo tempo que as alluses so transparentes a res-
peito de assumpto individual e de familia. No julgo
alheio verdade descobrir-se do teor da carta Abba-
72 A MLLHER EM POUTIGAL
dessa a proposta ou imposio de um casamento de
grandes haveres, acompanhado de qualquer indignida-
de, com pessoa elevada, que o pondonor da noiva de-
vesse repellir, preferindo o seu martyrio vitalicio
aceitao das infames industrias a que se refere.
No sei de outra explicao.
Crime politico, mostra-se que no o havia.
Delicto de familia ? Qual ?
E se o tivesse havido, como que a sua viuvez a
no salvaguardava?
E se, como viuva,
j
no tinha no esposo um pro-
tector; se, por novo, ainda no tinha no filho quem
lhe advogasse a innocencia; como que a sua honra e
a sua liberdade no encontraram escudo em seu irmo
Mathias Ayres Ramos da Silva d"Ea, que por sua in-
fluencia na Corte, e por seu elevado cargo de Prove-
dor da Casa da Moeda, teria de certo fora moral para
defender o direito de uma irman, duas vezes sagrada
para elle?
Dar se-hia o caso.
.
. (e perde-me a memoria d'esse
homem, se testemunho) de que a violncia proviesse
de seu mesmo irmo? Se assim era, porque provinha
d'elle? Se no era, porque no protegia a desventu-
rada?
Na presena d'este mysterio, e
doeste
padecimento,
quem no bemdir (apesar dos seus abusos) os parlar
mentos, a independncia dos poderes pblicos, afgrande
instancia da opinio geral, esmagadora das tirannias, e
libertadora em taes casos? Hoje no podra succeder
isto.
A desgraada no encontrou um brao que se lhe
estendesse, nem uma instituio que a salvasse; e
A MULHER EM PORTUGAL 73
n'este abandono, sem luz, sem liberdade, sem marido,
sem filho, sem ningum, s na vingadora poesia en-
controu uma voz, para lanar a maldio aos seus op-
pressores, e deixar um protesto contra a injustia dos
homens perante as geraes futuras.
Nota do Editor. EUVm junto com e>te capitulo alguns
apontamentos, dos quaes parece til fazer-se meno, apesar de
que o auctor no julgou dever ineluil-os no seu escripo.
Eis aqui alguns
:
D. Theresa Margarida da Silva e Orta, filha de Jos Ramos
da Silva, Provedor da Casa da Moeda. Era natural de Lisboa.
Irm de Mathias Ayres Ramos da Silva d'Ea, Provedor da Casa
da Moeda, nascido em 170o e j fallecido em 1770.
Ella vivia em 1760.
Reclusa, havia seis annos que era viuva, e tinha um filho.
Mximas de virtude e formomra com que Diofanes, Clymena,
e Hemirena, Prncipes de Th^bas, venceram os mais apertados
lances da desgraa Lisboa
Ha 4
edies.
Problema de Architectnra civil Lisboa
;
e n'um dos seus famosos discursos lanou Thiers
esta sentena ao mundo:
O poder pertence aos mais sbios.
A MULHER EM PORTUGAL 79
Soror Brgida de Santo Antnio foi eleita successi-
vamente para cada uma das funces: refeitoreira, es-
crivan, zeladora, mestra das novias, enfermeira (du-
rante quatorze annos) pelo cuidado e carinho com que
tratava as doentes, escolhida por vezes para accumu-
lar dois destes cargos, e por fim subiu a Abbadessa.
Exerceu todos esses empregos por forma, que mar-
cou poca. S no sabia castigar. Dizia:
Pela punio no fazemos seno amedrontar
;
pelo
amor atlrahimos.
Duas phrases, que fariam um cdigo social, e que
definem um caracter. No o define menos, por sua
modstia, o facto de mandar substituir na casa do ca-
pitulo a cadeira abbadessal por um simples banco se-
melhante ao das outras freiras.
Guiada por estes princpios de fraternidade, appli-
cava-os successivamente. Soror Brgida tornou-se, no
correr do tempo, conhecida pelo seu perspicaz critrio
e insinuante conselho. Ali vinham, sua grade, os Du-
ques do Cadaval, de Aveiro, e de Caminha, D. Filippa
de Vilhena, e no s outros grandes da Corte, como
pessoas de classes menos elevadas. Quando aquelles
se escandahsavam de serem preteridos pelos peque-
nos, que primeiro haviam chegado, respondia-lhes a
que fora D. Leonor de Mendanha:
que tanto estimava um negro, como um titular,
porque em todos considerava a imagem do Creador.
Ha n"este mundo os dias fastos, e os nefastos. Era
a 17 de Agosto de 1651, pelas 9 horas da manh. Es-
tava a Abbadessa na sala grande, procedendo a capi-
tulo, quando de repente se ouve de toda a parte o gri-
to de alarma : Fogo ! fogo !
80 A MULHER EM PORTUGAL
O convento ardia espantosaniente. As freiras alvoro-
tadas rodeavam a sua Abbadessa, que se encaminhou
com ellas para a portaria, e todas sahiram a refugiar-
se nas casas prximas, pertencentes a D. Emerencia-
na de Vallada. A noticia correu logo pela cidade, e to-
dos os concorrentes se offereceram para receber a
Communidade desalojada. Foi acceita a offerta das frei-
ras da Esperana.
Como era natural, encheram-se de povo as ruas, e
a cada momento chegavam as famihas nobres. Sere-
nada, quanto possivel, a confuso, pz-se o prstito a
caminho. Precedia a
p
a Corte, titulares e senhoras
;
seguia-se a creadagem, as moas do coro, as novias,
as freiras, umas chorando de commoo, outras de es-
panto, e ainda outras levadas quasi em desmaio; ejtia
cauda do squito, com o espirito compungido, luz
do mundo de que havia tantos annos se afastara, a
Abbadessa, serena, dominando a todos com a appa-
rente tranquilidade da sua alma, attrahindo as vistas
geraes por entre as alas do povo, que, descobrindo-se
diante do vulto sympathico, despedia successivamente
aquelle musical murmrio, que na sua rouca eloqun-
cia exprime entranhado sentimento. Assim chegaram
ao largo da Esperana.
Abriu-se de par em par a grande portaria. A Com-
munidade da Esperana, tendo frente a sua Abba-
dessa D. Francisca da Conceio, irman do Conde de
Yilla Nova, fez profunda reverencia, e recebeu a pro-
scripta Communidade, que se recolhia quelle refugio.
As duas Abbadessas, adiantando-se uma para a outra,
dram-se o osculo da paz. Em seguida, a Abbadessa
Erigida de Santo Antnio voltando-se para a Corte, que
A MULHER EM PORTUGAL 81
toda se descobrira, ajoelhou, pz as mos, e pronun-
ciou estas palavras
:
disse para
a sua affectuosa enfermeira.
Quando se sentiu menos atribulada, desejou que lhe
cantassem. Adorava a musica desde os verdes annos,
em que a aprendera no seu palcio da Betesga. Quando
ouviu o canto, sorriu como em tranquilo bem-estar.
Depois agradeceu s que lhe tinham velado, despediu-
se de todas, e chamando pela sua Ignez, pediu-lheque
lhe desse a vela da morte. Soror Ignez comprehendeu
a distinco, adiantou-se, e ajoelhando (como palpita-
ria aquelle peito
!)
collocou-Ihe a vela na mo, segu-
rando-a.
l^assado um quarto de hora, a moribunda, procurando
vagamente o quadro que pendia na parede fronteira,
enlre-disse
:
Me de Deus I valei-me I .
.
E ficou- se.
Decorridas as primeiras horas, Soror Ignez cumpriu
entre lagrimas o derradeiro dever, e deu morta a
derradeira prova do seu affecto : amortalhou a que lhe
tinha sido ama, bemfeitora e amiga, e cobriu-a de flo-
res. Apoz trs dias do que hoje chamariamos camar
ardente no coro da Esperana, o corpo de Soror Eri-
gida de Santo Antnio foi dado sepultura. Ao fim de
trs mezes, reentrando no seu convento as Inglezinhas,
trasladaram-se os restos mortaes de Soror Erigida,
n'um caixo riqussimo offerecido pelo Marquez de
Gouva, para a casa do capitulo do mesmo convento,
A MULHER EM PORTUGAL 83
situado ua actual rua do Quelhas, lavrando-se-lhe um
epitaphio apropriado.
U
D. Leonor de Mendanha sobreviveu a si prpria. Du-
rante os ltimos cincoenta annos alimentou uma ideia.
O seu convento, se bem que admittia Portuguezas
(e para prova ali estava ella) provinha de origem in-
gleza. Desejava ella por isso fundar um convento da
mesma Ordem exclusivamente para nacionaes ; mas as
edificaes no se fazem s com desejos.
Certo dia, foi-lhe apresentado na grade o Padre Se-
bastio Ribeiro, que chegara da provncia do Algarve.
Praticaram sobre a ideia fixa de Soror Erigida ; e ella
exclamou por fim
:
Mas quem ?
De quem?
a Abba-
dessa de Santa Erigida Soror Erigida de Santo Ant-
nio.
Gloria a Deus
! . .
.
Serenaram aquelles dois espritos. N'ella tinha ar-
dido a f. Pelo crebro do avarento havia atravessado
o fogo subhme, que da fraqueza do homem faz a gran-
deza do heroe.
No descanoH o Arcediago. Deu seguidamente as
ordens para o preparo dos materiaes; procedeu- se
construco da egreja, e, em seguida, do convnio,
obtida de D. Joo IV a necessria licena para a fun-
dao.
Trs dias antes da sua morte assignou Soror Erigida
de Santo Antnio, como acima disse, a escriptura do
seu mosteiro, na presena do Arcediago, da Duqueza
de Aveiro, de sua filha D. Maria de Guadalupe, e do
Vigrio geral. No logrou
j
a fundadora assistir
inaugurao, (jue se realisou em 1660, cinco annos
depois do seu fallecimento.
Quem hoje queira vr esse convento, no terreno que
foi a quinta do generoso Arcediago, quem quizer vr
esse convento que durante meio sculo desvelou o es-
pirito da ardente iniciadora, procure, beira do cami-
minho que sobe do Poo do Bispo para Marvilla, onde
o Asylo de D. Luiz para infncia do sexo feminino.
Se D. Leonor de Mendanha ressuscitasse, prantearia
com a saudade de no encontrar ali a sua instituio
primitiva. Era natural, e justo. Mas se por um lado a
entristecia o presencear, pela successo das ideias e
transformao dos tempos, desviado do seu fim o seu
mosteiro, por outro lado ser-lhe-hia grato vr a sombra
da sua memoria dar ali agazalho e educao a gera-
es de creanas desvalidas, como as que ella amou
quando vivia.
CAPITULO YII
Soror Violante do Co
I
Os dois conventos, das Inglezinhas de Santa Brgida,
e das Dominicanas do largo da Kosa, Costa do Cas-
tello, apresentavam na poesia mystica duas faces diffe-
rentes.
No primeiro, como acabamos de vr, Soror Erigida
de Santo Antnio era, com a austeridade temperada
pela doura, o arrebatamento apaixonado do amor di-
vino, a pomba voando com os olhos no Ceo. Nas Do-
minicanas, Soror Violante, a meio caminho das alturas,
debruava-se para o mundo, e de l fitava os olhos na
terra.
Isto no pr em duvida o espirito seraphico de
Soror Violante; e o prprio Frei Pedro Monteiro, no
seu livro Claustro Dominicano, relata que fra ella Re-
ligiosa mui observante. Tambm no desconhecer
que uma grande parte das suas paginas deixem de ser
A MULHER EM PORTUGAL 93
cantos elevados a Deus, e dedicatrias a toda a Corte
celeste. No: mas teremos occasio de vr que a freira
exaltada era tambm mulher da terra, e que, se a
Dominicana tinha o Ceo at mesmo no appellido claus-
tral, nem por isso deixava de pizar o caminho d'este
mundo.
A Rainha D. Luisa de Gusmo, contempornea de
ambas, e amiga to intima de Soror Erigida de Santo
Antnio, admirava tambm o talento de Soror Violante;
e s vezes a visitava; mas quando que a Rainha se
lembraria de enviar assumptos, quasi motes, Abba-
dessa das Inglezinhas, como tantas vezes os mandou
freira da Rosa, para poetar sobre elles ? Tambm,
por outro lado, no quer isto dizer que esta grade do
convento das Dominicanas fosse, no ponto a que me
refiro, a grade dramtica do mosteiro de Santa Clara
de Coimbra.
A grade dramtica, no o convento.
A grade n'aquelles tempos era uma espcie de ins-
tituio social, uma diverso. Raro seria o mosteiro,
em que uma parte das freiras, no pertencesse s fa-
milias da Corte, ou classe mais achegada a ella. O
parentesco attrahia as famlias, e estas attrahiam ou-
tras. De fora, os visitantes amiudados; de dentro, ju-
ventude e belleza; narravam-se as historias do dia, as
anecdotaS; os acontecimentos pblicos, as scenas dos
lares, e no se iam as visitas sem os fartos chs e a
infinita doaria, que Ferraris e Baltresquis no foram
capazes de imitar.
Mas eu ia dizendo a grade dramtica de Santa
Clara de Coimbra, querendo referir-me s tardes po-
ticas de Soror Maria de Jesus.
94 A MULHER EM PORTUGAL
O caso foi este
:
O Conde da Feira tinha duas parentas professas no
mosteiro de Santa Ciara de Coimbra. Duas, no
para admirar; no menos de dez fillias fez professar
nos conventos de Bragana o Tenente General Fran-
cisco Xavier da Veiga Cabral da Camar ! Foram
dez!!
Como contrapezo s duas irms, foi tambm lanada
na balana claustral uma sobrinha d'ellas, menina de
quatro annos, filha e neta de titulares, para as tias a
educarem n'aquelle ambiente, e seguir depois a vida
monstica. Aprendeu a tocar e cantar, noviciou, e,
passado o anno da prova, fez a sua profisso. At aqui
tudo corria muito bem; mas o que as freiras lhe no
ensinaram, foi exactamente o que ella aprendeu por
sua conta, ou por conta do seu talento.
Um bello dia achou-se poetisa, sem o saber.
As tias nas suas cellas escutavam as poesias da me-
nina; e se no batiam com as mos, applaudindo
theatralmente, eram os coraes que lhes batiam de
alvoroo. Foram passando palavra s outras Religiosas,
e as cellas das nobres parentas do Conde da Feira
alargaram a sua plata. Quanto mais exaltavam a jo-
ven Maria de Jesus, mais ella poetava. Yia-se que ti-
nha mais geito para os madrigaes, do que para as ma-
tinas.
Ora succedia que celebre grade de Santa Clara
concorriam de ordinrio visitantes illustres. Ao princi-
pio eram os do costume; e constando-lhes a habilidade
da joven Madre, iam-lhe pedindo que recitasse. No se
fazia rogada. Os que primeiro a ouviram, foram con-
tando a novidade aos amigos. Desejavam estes que os
A MULHER EM PORTUGAL 9o
apresentassem. Vinham ainda mais. Correu por toda a
cidade a fama de que uma freira bonita, fidalga, e ta-
lentosa, poetava na grade de Santa Clara. Foram tam-
bm apparecendo lentes, e outros cavalheiros que no
pertenciam Universidade. As tardes a grade povoava-
se. Alastrava-se ento por ella o sussurro da especta-
tiva, e a curiosa impacincia dos que ainda a no ti-
nham ouvido, porque ainda se no resolveu o proble-
ma (nem por ventura se resolver nunca) de qual seja
mais apetitoso: o prazer que pela primeira vez se gosa,
ou a repetio do que j se gosou.
Finalmente, sente-se pelo corredor o ruido dos pas-
sos e o som de vozes ; abre-se a porta, e seguindo as
tias desponta a joven poetisa, D. Maria de Jesus, que,
terminados os comprimentos, se ergue, e lana a reci-
tao intervalada com as felicitaes e os commentos
laudatorios. Umas vezes recitava poesias soltas, outras
vezes lia as suas comedias, ou discorria sobre qualquer
matria.
Mas no ha felicidade que dure sempre. Sons de
surda murmurao principi?ram a correr pelo mosteiro.
Soror Maria de Jesus quanto mais poetava na cella e
recitava na grade, menos se lembrava dos encargos da
sua profisso. A grade agrilhoava-lhe o corpo ; mas o
espirito fugia-lhe para um horizonte que ella entreso-
nhava.
Se julgam exagerao, venham a terreiro as prprias
palavras do insuspeito chronisla da Ordem francisca-
na, que dizem assim
:
Com os applausos foi admittindo desvanecimento, e
com a vangloria se foi empenhando mais na poesia,
06 A MULHER EM PORTUGAL
fazendo comedias e versos a vrios assumptos, cujos
empregos a distrahiam totalmente das obrigaes do
seu estado.
(*)
As freiras mais reformadas abriram-se ento com as
tias, pronunciando respeitosamente a palavra relaxa-
o do estado; e .pediram-lhe que cessasse a invaso
d'aquella grade, e a causa que a motivava. As tias,
cada vez mais gloriosas do seu sangue, fizeram ouvi-
dos de mercador, e a mimosa sobrinha continuou a
carreira dos seus triumphos.
Um dia as religiosas do mosteiro de Santa Clara de
Coimbra viram deslisar ao longo dos corredores uma
figura desconhecida, mas grave e pausada. Vinha des-
cala
;
envolvia-a um habito de tosco borel : sobre a
cabea, uma toalha liza ; e velando-lhe o rosto um veo
grosseiro. Penetraria a furto no convento alguma es-
tranha ? Affirmaram-se mais de perto. Era Soror Alaria
de Jesus.
A poetisa evolara-se. Principiava a penitente.
II
Se a grade de Soror Violante do Ceo no mosteiro
da Rosa de Lisboa no era a grade de Soror Erigida
de Santo Antnio, tambm no era a da joven parenta
dos Condes da Feira em Santa Clara de Coimbra, co-
mo acabamos de ver.
A grade da Rosa era uma das principaes grades da
(') Tomo V, pag. 723.
A MULBER EM PORTUGAL 97
nobreza. El-Rei D. Joo IV, a Rainha D. Luisa, e
o Prncipe D. Theodosio, ouviam a Soror Violante do
Ceo as poesias, cujos assumptos lhe tinham dado.
Tratava-se do Infante D. Duarte ? entoava a monja
sentido canto sua morte.
Vencia-se a batalha de Montes-Claros? exaltava a
gloria das armas portuguezas.
Publicava-se um livro de Antnio de Sousa de Ma-
cedo ? cantava-lhe as Flores de Hespanha e Excellencias
de Portugal.
Fallecia na flor dos annos a gentil filha de D. Fillip-
pa de Vilhena? pintava-lhe o encanto da formosura, e
lastimava-lhe a desdita da sorte em alevantados sone-
tos.
Cantou os Reis e as Rainhas, os consrcios e os fal-
lecimenlos Reaes, a Condessa da Ericeira, D. Isabel
de Castro, D. Leonor de Tvora; cantou, em summa,
as glorias e as tristezas da Corte.
Mas quem era Violante do Ceo?
Foi filha de Manuel da Silveira Montesino, e de He-
lena Franco; viu a luz em Lisboa a 30 de Maio de 1601,
e professou no convento das Dominicanas da Rosa a 29
de Agosto de 1630. Sabe-se que aos dezasseis annos
tinha composto a comedia La tramformacion por Dios,
e aos dezoito a sua segunda comedia Santa Engracia,
cuja representao teve por espectador a Filippe III no
anno de 1619 ejn que veio a Lisboa. Ainda escreveu
mais duas comedias. Da sua vida anterior profisso,
nada mais conheo, apezar de investigaes reiteradas,
porque em silencio ficaram os seus contemporneos
Lavanha, D. Francisco Manuel, Faria e Sousa, e ou-
tros, que de tantos louvores a coroaram como poe-
98 A MULHER EM PORTUGAL
tisa, mas que to pouco disseram delia em quanto
mundana.
Sabe-se que tocava harpa admiravelmente, e que no
canto se acompanhava a si mesma. No logrou possuir
a brilhante educao de D. Bernarda de Lacerda, e
de Soror Brgida de Santo Antnio, suas amigas; e
de no ser culta nas sciencias, nem versada nos se-
gredos dos poetas, pede modesta desculpa n'um dos
seus sonetos ; mas de sobra possuia intelligencia natu-
ral, e um delicado sentimento, que perfumou as suas
poesias.
Ill
Foram as suas obras principaes as Rymas varias,
colleco de epistolas, sonetos, romances, e canes,
mandada imprimir pelo Conde Almirante, e o Parnaso
Lusitano, em dois volumes, publicado em 1733, e onde
tambm se incluram outras obras suas que andavam
impressas em separado. Foi premiada esta poetisa em
vrios certames poticos.
Baseiam-se os seus versos, em grande parte, em as-
sumptos divinos, mas tambm em grande parte se re-
ferem a assumptos profanos ; e at mesmo no titulo de
um dos- seus livros principaes, o Parnaso Lusitano, se
accrescenta : de divinos e humanos versos. Aquelle
corao sentia o que era humano.
Nos vinte e seis romances, ou poemetos, das suas
Rimas varias a autora abre o vo sua alma aTectuo-
sa, e pinta o corao nas suas diversas paixes. D'esses
romances, em versos hespanhoes, transplantarei dois re-
A MULHER EM PORTUGAL 99
sumidamente, na minha humilde prosa, para se conhe-
cer a feio litteraria de Soror Violante
:
o RETRATO
Est s. Tem diante de si o retrato d'elle ; e enca-
rando-o amorosamente pergunta-Ihe:
Como poderei deixar de me lembrar do meu idolo,
se da sua gentileza s a imagem fiel? Que importa que
o padecimento me definhe, se s vendo-te, retrato, te
escuto dizer-me que sofl"ra e me cale? Ha seis annos
que s o allivio dos meus males, sem do peito de Sil-
via te apartares um momento. No, no me fugirs
como Silvano; aqui te retenho captivo, sem mulher ne-
nhuma te possuir. Se estou s, acompanhas-me; se me
queixo, consolas-me,
j
com a eloquncia muda,
j
com
o benigno semblante. Que duvida pode haver, de que
o teu dono quizesse que eu o adorasse, quando, ne-
gando-me tudo, me concedeu a sua imagem?
o CORAO
Volta-se para o corao, e exclama-lhe:
Pobre corao ! j que a sua mo te fere, torna a ser
meu, pois dono que nega prmios, no ha duvida de
que te d castigos. Chega a ser delirio um amor no
correspondido. Que phases diversas admiro nos actos
d'Elle 1 se uns me traspassam de pesares, grandes aUi-
vios me causam outros. Haver algum na terra, a
quem no assombre um semelhante labyrinto, quando,
100 A MULHER EM PORTUGAL
no momento em que antevejo glorias, Elle me d mar-
tyrios? Foge pois, corao, para escuro abysmo, que a
morrer de duvida prefiro morrer de esquecimento.
Mas no, corao infeliz. Se antes queres ser maltra-
tado do que fugir-lhe, ento occulta os anhelos do teu
amor immenso, e, vencido, sofre, ama, e vive es-
cravo.
Outra amostra:
Que suspenso, que enleio, que cuidado,
este meu, tiranno deus Cupido,
pois tirando-nie enifim todo o sentido,
me deixa o sentimento duplicado ! . .
.
E' um soneto, em que a autora pede ao Amor que
cesse to formoso encanto, porque basta menos rigor
para quem d'elle no se defende.
Estas e outras poesias do mesmo gnero sahiram
de corao profano ; ainda no so da freira ; so da
mulher.
No teor do fogoso madrigal a Lisardo, lamentando
a fuga do amante, havia apparecido o soneto invocan-
do Elysa ; faz introduco aos sonetos profanos, aos
romances em que a poetisa descreve a sua paixo, e
aos outros cantos do seu livro. N'esse soneto diz
ditosa Elysa que vae ser chronista dos seus trium-
phos; que solemnisar as glorias da mesma Elysa,
aquella que deve a essas glorias a sua dor; e que jun-
tamente vae cantar aquelle por quem chora, querendo
a sorte que a sua prpria penna lhe seja homicida.
Como se v, a poetisa sacrificada aos victoriosos
A MULHER EM PORTUGAL 101
amores de uma Elysa qualquer, de cuja felicidade, de
mais a mais, vae ser a cantora.
IV
Mas (pergunta-se) a poetisa do soneto e do livro
um ente imaginrio, ou a prpria poetisa, a mesma
Violante? Quem foi a dona d'aquelle retrato? quem
foi aquella apaixonada em abandono ? aquella ciosa to
elevada em pondonor, como ardente ainda no seu sen-
timento ?
Professando no convento dominicano da Rosa aos
vinte e nove annos, Soror Violante do Ceo escreveu,
n-um dos seus primeiros sonetos da clausura, o se-
guinte:
Se cantei assumptos profanos, e no s a Vs,
Objecto Divino, bem castigado est o meu erro na
publicao d'elle mesmo (Soneto m).
Segue lastimando que chegue depressa a ser abor-
recido quem ainda com mais extremo fora amado; que
o mrito seja condemnado ao esquecimento s por um
aggravo supposto, e no por um delicto que se deves-
se primeiro averiguar; e brada ao Senhor, que bem
diferente o seu amor por ella, do que fora o amor
humano (Sonetos lxii e lxiii).
Vae ainda mais adiante; e com uma tristeza magoada
lamenta que, ofendendo-a desperdiassem o seu de-
sinteressado aTecto (Soneto lxv); mas que, j desen-
ganada, quer morrer para o mundo e viver para Deus
(Coro VI dos Romances de Therpsicore).
Na presena d'estas approximaes, parece innega-
102 A MULHER EM PORTUGAL
vel que houve para Violante uma grande ingratido,
que a levou a abandonar o mundo, e a recollier-se ao
claustro. E se ainda confrontarmos esta serie de quei-
xas com os poemetos anteriormente citados, poderemos
perguntar se nas entrelinhas d'aquelle Retrato, e dos
outros Romances, no estaria descripta a poetisa, ou
se ella no faria mais do que pintar um quadro de
imaginao.
Parece-me, com os documentos vista, que efecti-
va mente feriu a alma de Violante um immenso e im-
merecido desgosto, que lhe desfez os castellos de fe-
licidade em que esperava tocar; mas no se me afigura
provado que no decorrer do seu livro pozesse ella em
absoluto a pintura de si prpria.
A vida iim sonho
redarguiu o De-
sembargador.
tornou D. Feliciana.
108 A MULHER EM PORTUGAL
Olhem se o Duarte de S a ouvisse ! . .
.
Com D. Loureno de Almada, foi na egreja de Odi-
vellas. Estava este fidalgo no meio da porta, e embar-
gando a vista. Diz-lhe ella
:
Ah ! snr. D. Loureno !
j
que de Almada, pas-
se para a outra banda.
Almada, todo cavalheiro, passou logo para a outra
banda, sem alis ter de atravessar o Tejo.
Das procisses de desaggravo nos trs dias de en-
trudo, s ia ver a de tera feira, por ser mais appa-
ratosa, e a acompanhar com todo o luzimento el-Rei e
a Corte. De manh, para a procisso ; de tarde, para
o entrudo portuguez de ha dois sculos, correcto e au-
gmentado pela ardente cabea da phantasiosa Feli-
ciana.
Esta mulher, que fazia gala dos seus repentes api-
mentados, e que parecia no mirar a outro alvo seno
s festividades religiosas e s diverses profanas, re-
unia a um immenso talento uma erudio vastssima
;
e se um dia lhe dava para distillar o corao em ver-
sos, e outro para a sua correspondncia impregnada
de graa, outro dava-lhe tambm para compor livros.
Barbosa, na Bibliotheca Lusitana, relata que D. Fe-
liciana de Milo compz muitos versos, em que a ele-
gncia competia com a agudeza ; e Diogo Ayres de
Azevedo, no Portugal Illustrado, diz que o seu Trata-
do sobre a existncia da pedra philosophal fora escripto
com madureza to profunda, que elle, por si s, podia
qualificar o elevado juizo da auctora.
A MULHER EM PORTUGAL 109
Cumpriu a fogueira nacional o seu proverbial dever,
extinguindo as obras d'esta escriptora original ; e s
nos resta em manuscripto uma parte da sua corres-
pondncia ! Oxal, como se l n'uma das cartas sua
amiga D. Margarida, que ella tivesse feito o dito ver-
dadeiro, quando lhe dizia
:
Segurem-se os fiscaes, com que, se me der a ocio-
sidade para o tinteiro, no mande imprimir os meus
escriptos a Veneza, porque no disse, nem direi nun-
ca, cousa que desminta nunca o nome de D. Feli-
ciana.
Infelizmente, o que ella chamava a ociosidade para
o tinteiro no a perseguiu ; e dos seus manuscriptos,
que no viajaram at s typographias de Veneza, s
se salvou, como acima disse, parte das suas cartas.
III
Um dia el-Rei disse-lhe
:
Eva.
E a mysleriosa engeitada tornou-lhe logo:
Que pretende ?
continua a pergun-
tar mellifluamente, e como quem tinha os oliios bai-
xos, a Porteira.
Jurei, rainha me
;
jurei cidade de Lisboa
;
em-
penhei a minha f a um povo ; cumprirei a minha pa-
lavra.
O preo das lagrimas por que esta palavra fora em-
penhada no encontra avaliao no corao humano.
Chegou o ultimo dia, e o ultimo momento. Pairava
sobre todos o silencio de um acontecimento soltmne.
Aquelles vinte dias haviam estreitado os laos dos que
at ah se no conheciam. As despedidas, principalmente
das damas, estavam sendo sentidssimas de parte a
parte ; mas o que a todos cortou o corao, foi, no ter-
reiro apinhado de povo, e tudo a postos, damas e se-
nhores com seus trajos de viagem, andas abertas, ca-
vallos que relinchavam de impacincia, moos de estribo,
escudeiros, pagens, verem todos a me e a filha sem
se poderem desenlaar dos braos, despedindo-se em
soluos, como se cada uma d'ellas receasse que fosse
aquelle abrao o derradeiro. Ningum pronunciava uma
A MULHER EM PORTUGAL 131
palavra, mas todos rodeavam aquellas duas atribuladas
que se unificavam no sacrifcio.
O Conde de Vimioso, que dirigia a comitiva portu-
gueza, contristado no se atrevia a pedir Infanta a
ordem da partida: a Camareira-mr da Rainha D. Leo-
nor menos animo tinha de fazer egual pedido sua r-
gia Ama. Que admira estivessem suTocadas de oppres-
so as damas da Rainha, D. Maria Mayor, D. Maria
Manuel e suas filhas D. Joanna, D. Isabel
e D. There-
sa, quando at o esplendoroso D. Cristoval Osrio,
para quem o mundo no era seno o theatro do pra-
ser, e o tempo o dia em que se estava, parecia suc-
cumbido ! ? quando at a arrebatadora D. Filippa de
Mendoa pedia por ventura s suas primeiras lagrimas
o desafogo da sua primeira dr?!
iS"aquelle momento solemne, em que as duas comi-
tivas, como n"uma s, se achavam paralysadas, foi a
Infanta quem, n"um arranco, ajoelhando e beijando a
mo sua doce me, deu o signal decisivo: e obede-
cendo todos machinalmente quelle gesto, as duas co-
mitivas partiram em direces contrarias.
Nos ltimos dias, Lisboa auciava. Cumprir a Infanta
o seu juramento? Conseguiria a Rainha leval-a com-
sigo? Dividiam-se as opinies; levantavam-se apostas;
o desenlace era o thema da agitao geral.
Finalmente, a Infanta est para chegar. Chegou.
Ento Lisboa inteira, alvoroada, e avaliando o des-
pedaamento d'aquelle corao no cumprimento da pa-
lavra que lhe dera, recebeu-a na vibrao do delirio.
No momento em que estes factos occorriam em Lis-
boa, o que que se passava para alm de Badajoz?
132 A MULHER EM PORTUGAL
A me fechava com chave de oiro o seu amor In-
fanta. Invadindo-a logo uma febre, Do a poderam levar
a mais de trs legoas da cidade; e exalou o ultimo
suspiro em Talavera a 25 de Fevereiro de 1558, quinze
dias depois de se separar da filha. A dr da separao
despedaou-a.
Cumpriram ambas a sua palavra : a Infanta, voltan-
do; a Rainha, morrendo.
Se a Infanta D. Maria no houvesse at ali conquis-
tado a admirao do povo, bastaria este facto para lhe
decifrar o caracter. Ao verem-n-a sacrificar tudo ao
cumprimento da sua palavra, dil-ahia insensvel quem
no lhe soubesse adivinhar os extremos da doura.
Tendo-lhe sido posta casa independente aos dezas-
seis annos, apenas, mais moa que as suas damas e os
seus seus servidores, era ainda quasi uma creana, e
na compostura e dignidade mais parecia uma dona. E,
se bem que um livro genealgico pertencente a Ma-
nuel Severim de Faria mencione que um illustre moo,
Jorge da Silva, fora mandado prender por D. Joo III,
pela sua dedicao Infanta, no s indicio nenhum
apresenta a Historia, que demonstre haver sido essa
dedicao correspondida pela sizudissima Princeza, mas,
pelo contrario, nem houve a supposta dedicao de
Jorge da Silva Infanta D. Maria, filha d"el-Rei D. Ma-
nuel, nem elle foi preso por motivo de amores, antes
pela sua cooperao na fuga de seu tio o Cardeal D.
Miguel da Silva, que havia cabido no desagrado de D.
A MULHER EM PORTUGAL 133
Joo III. E se uma Infanta D. Maria intercedeu por el-
le, como se diz, ou ha confuso entre o nome idntico
da filha d'el-Rei D. Manuel, e da d'el-Rei D. Joo, ou
a qualquer outro motivo, alheio a affeio amorosa, se
deve a proteco da nossa douta Infanta. Esta narrati-
va da segura Historia Genealgica, derivada da chro-
nica de Francisco de Andrade, desfaz o engano e o
precipitado lapso do anonymo livro de linhagens,
repetido menos consideradamente por Juromenha.
Foi correndo o tempo; e se no Reino as classes to-
das tinham os olhos no pao da Infanta D. Maria, nas
Cortes estrangeiras o seu nome grangeava justa fama,
e era citado entre os das Princezas europas, como
uma das que mais se extremavam por dotes excepcio-
naes. Em carta de 21 de Janeiro de 1557 dizia o Em-
baixador de Castella D. Sancho de Crdova ao Impe-
rador Carlos V:
a Infanta uma pessoa de grande entendimento e
cordura; mui repousada; fala pouco, mas tudo que
diz cheio de acerto, e consideram-se as suas deter-
minaes como se no fossem de mulher moa, que
hoje as resolva, e amanh as revogue.
O prprio facto de ser promettida a tantos Prnci-
pes, e ver frustrado o consorcio com todos, lhe creava
sympathias, pelo que, em realidade, devera sentir no
verdor da vida um corao to feito para amar, to di-
gno de ser amado, e que o destino fechava a sete cha-
ves com a crueldade de um tiranno. Foi um mal para
o seu corao, talvez ; mas foi um bem para a gloria
dos seus feitos, porque, assim como a abelha vai de
134 A MULHER EM PORTUGAL
todas as flores extrahindo o sueco para fabricar o
mel, assim aquella alma ia collocando em cada uma
das suas obras uma parcella do seu amoravel senti-
mento, que podia ser comprimido pelas convenincias
da politica, mas no podia ser suffocado pelas leis da
natureza.
II[
Seu irmo D. Joo III respeitava-a desde muito me-
nina, e a sciencia admirava-a como uma sabia.
Vamos vel-o.
Havia D. Joo III transferido a Universidade para
Coimbra, reformando-a amplamente. Deu-lhe gosto
o visital-a, e foi, acompanhado da Rainha D. Ca-
tharina, do Prncipe D. Joo, e tambm da Infanta
D. Maria.
E' o dia 6 de Novembro de 1550. Despovoa-se a ci-
dade, e corre, com os seus trajos festivos e a sua ex-
pansiva alegria, para a estrada de Lisboa.
No meio d'esta turbamulta, que brilhante cavalgada
aquella, de tantos senhores pintalgados de variega-
das cores? a Universidade, toda no maior luzimento,
que sae a esperar a Familia Real.
Prximo ao logar de S. Martinho do Porto apearam-
se todos, e do seu lado el-Rei e a Famiha Real sahiram
das andas, e a
p
receberam a Universidade. Quando
o Reitor, Frei Diogo de Mura, ia a ajoelhar, D. Joo
III acolheu-o nos braos, e apertou-lhe as mos com
affecto. Eram bons amigos desde que o nomeara mes-
tre de seu filho natural D. Duarte. Terminado o beija-
mo, o prstito proseguiu.
A MULHER EM PORTUGAL 135
Ao chegar el-Rei margem do Mondego, retumbou
nos ares uma exploso de applausos. Era a Academia,
que orlava a immensa ponte, do principio ao fim, e de
um e outro lado, acclamando o Reformador da sua
Universidade.
A tradicional e manuelina ponte, sellada com a es-
phera do Rei Venturoso, era uma instituio. Hoje a
Academia tem como centro o seu club aristocrtico,
onde, como em Cortes, advoga os seus direitos, resol-
ve os seus actos. D'antes, nos tempos absolutos, o seu
club era a democrtica ponte, com o ceo por tecto, o
sol por testemunha, e aos ps as doiradas areias do
incomparvel Mondego. Esta ponte era a grande praa
da revoluo, onde aquelle vulco de mil cabeas cham-
mejava nas occasies criticas ou solemnes, onde se
amuava, fazia as pazes, confidenciava as suas aventu-
ras, planeava dehrios, e se expandia nos enthusiasmos
ardentes da generosa mocidade. Hoje a feio acad-
mica foi pelos ares ; a civihsao, fazendo das suas,
deitou a baixo o vetusto monumento, e substituiu-o
por um imbrglio, espcie de longo crcere, sem ele-
gncia, nem vista, nem poesia, nem ar, verdadeiro
parto de uma cabea prosaica. Ns, os que ainda a
vimos, 6 n'ella folgmos, consagremos uma saudade
histrica ponte de Coimbra.
Mas, n'aquella tarde de 6 de Novembro de looO, a
verdadeira ponte era uma festa de enthusiasmo, como
acabamos de ver. Apoz a recepo acadmica veio a da
cidade, toda vistosos arcos, ricas colchas nas janellas,
as senhoras com os seus trajos luzidos, e o povo en-
chendo as ruas com a sua anciosa curiosidade e as
suas ondas de encontres. Assim atravessou a Familia
136 A MULHER EM PORTUGAL
Real a cidade baixa, at se defrontar com o mosteiro
de Santa Cruz, onde ia pousar.
Chegada porta principal da egreja, por entre as
alas dos numerosos collegios, d'entre os quaes se dis-
tinguia o de S. Paulo, de moos-fidalgos, com as suas
lobas de castanho escuro e as suas bccas roxas, foi
recebida pelos setenta Cnegos Regrantes, tendo frente
o Prior D. Filippe Pegado. Concludo o Te-Deum a
grande instrumental, seguiram pelo claustro dos jar-
dins para verem o interior do mosteiro, e entrarem na
habitao que lhes eslava preparada.
IV
Em Coimbra a Infanta D. Maria attrahia as atten-
es. Com que enthusiasmo no assistiu na sala dos
capellos solemnidade do recebimento Real ! Com que
alegria no tornou a ver o celebre bispo de Coimbra
D. Joo Soares, festejando-o muito, e avivando lembran-
as do tempo em que elle, ainda simples Frei Joo,
fora seu professor de historia sagrada e de philoso-
phia superior ! No dia 10 presenceou o acto final de
Theologia feito pelo talentoso quintannista D. Sancho
de Noronha.
As tardes eram destinadas admirao dos formo-
sos arrabaldes.
A Familia Real foi recebida pelo Corpo docente com
todas as mostras de respeito; mas os Lentes beijaram
a mo Infanta menos anciosos de conhecerem a irman
d'el-Rei, do que de renderem admirao erudita
Princeza. Uns recitaram-lhe discursos em sua honra,
A MULHER EM PORTUGAL 137
na lingua latina, portugueza, e italiana ; outros entre-
garam-lhe os que de ante-mo haviam escripto; ainda
outros Jhe ofifertaram exemplares das suas obras. Foi
um d"estes o afamado lente de Cnones, Doutor Mar-
tim de Aspicuelta, que lhe dedicou a sua notvel pro-
duco O Jiibilm; e foi tanto mais honroso para a In-
fanta o apreo em que a tinha este sbio, quanto d'elle
falaram com extrema admirao, entre outros, nacio-
naes e estrangeiros, Andr de Rezende, Frei Luiz de
Sousa, e o nosso Antnio Vieira; este exclamou do
plpito, que Martim de Aspicuelta ensinara em Portu-
gal com assombro de todas as Universidades. Outro
oferente de obras foi o celebre lente de Direito civil,
Doutor Manuel da Costa.
To penhorada Geou a Infanta D. Maria com estas
provas de affecto, que em honra da Universidade fun-
dou em Coimbra o collegio de S. Francisco para trinta
alumnos, e dotou no do Espirito Santo uma seco des-
tinada a filhos de fidalgos pobres. Querendo egualmente
contemplar as classes populares, mandou, quando re-
gressou a Lisboa, compor e traduzir livros de moral e
educao, distribuindoos pelas freguezias.
VI
O facto predominante, que mais propriamente d lo-
gar n'este meu escripto Infanta D. Maria, a sua
academia litteraria.
Saiamos alm-muros da capital, e, junto ao mosteiro
de Santa Clara, entremos no admirvel pao da filha
de D. Manuel.
138 A MLLHER EM PORTUGAL
Verdadeira Corte se poder considerar aquelle pao,
onde, segundo um escriptor do lempo, morava aquella
que, para se dizer egual a todas as Rainhas da Eu-
ropa, no carecia seno do nome de alguma d'ellas.
Com razo testemuniiou este facto Damio de Ges.
Era uma Corte ; e para servir a filha de D. Manuel fo-
ram-lhe destinados os fidalgos da primeira nobreza, e
por damas as filhas dos mais distinctos titulares do
Reino.
Logo no pateo agglomerava-se multido de povo,
uns aguardando o despacho dos seus peditrios, outros
para os entregarem ao Mordomo-substituto, Joo de
Mendona Caso ; ainda outros, em que predominavam
as mulheres, para verem se era dia em que a Infanta
sahisse com o seu luzido prstito.
Subindo-se a escada, viam-se as paredes, de ambos
os lados, cobertas de vistosos azulejos. Na primeira
sala tambm de azulejos, representava se uma batalha
nas suas principaes peripcias, trabalho nacional fabri-
cado nas officinas de Lisboa debaixo da proteco de
Santa Justa e Santa Rufina. N'esta sala e na immediata
esto porteiros da canna, escudeiros, pagens, e outros
officiaes de servio.
Na seguinte, forrada de magnficos pannos de .-Vrrs,
passeiam, um tanto buliosos, os moos-idalgos Manuel
de Mendona, que vir a morrer gloriosamente em Al-
cacer-Kibir, Fernando da Silva, futuro Capito general
do Algarve, e o romntico apaixonado de certa ioven
dama, que, professando n'um convento, o arrastar
tambm clausura, convertendo-o em erudito Lente
de Theologia e pregador de grande fama, Antnio de
Mendoa.
A MULHER EM PORTUGAL 139
Xa sala seguinte, ostenta a sua imperiosa figura
Ferno da Silveira, filho do Coudel-mr, praticando com
o Mordomo-mor de Sua Alteza D. Af^onso de Noronha,
progenitor dos antigos condes de Linhares.
A estas horas, ainda bem cedo, pois que era um dos
seus hbitos o aproveitamento do tempo, a Infanta,
apz a sua Missa, e a sua primeira refeio, achava-se
j
no seu luxuoso gabinete de trabalho, sentada em
alta cadeira artisticamente esculpida e ornada das suas
armas. Tinha defronte de si o seu bufete italiano, for-
mosa obra do sculo. O pavimento ricamente alcatifado.
Na parede fronteira destacava-se o retrato, em corpo
inteiro, da Rainha D. Leonor. Na do lado direito um
bello movei de bano, incrustado de mosaicos de Flo-
rena, em que a Infanta guardava a sua correspondn-
cia reservada. Na parede lateral fronteira um grande
quadro da Virgem ; e entre esse quadro e o bufete, so-
bre um movei poisa um riqussimo cofre de prata de
besties, todo em figuras de relevo, contendo a im-
mensa preciosidade de brilhantes, e de muito variadas
jias, umas prprias, e outras presentes da Rainha.
Sobranceiro ao movei que encerrava a sua corres-
pondncia, via-se o retrato, em meio corpo, da pobre
Infanta D. Maria, sua sobrinha, filha d'el-ReiD. Joo III,
em cuja companhia se creara como irman, sob a direc-
o da Rainha D. Catharina. Casara a sobrinha aos
quinze annos com o prncipe D. Filippe de Castella,
para morrer aos dezassete. Quantas vezes, recordao-
do-se d'aquelles trs festivos saraus de Almeirim, onde
ambas danaram tanto, por occasio do casamento d'essa
mesma sobrinha, se lhe no avivava a saudade de quan-
do vira partir para sempre a companheira da sua ver-
140 A MULHER EM PORTUGAL
de juventude! Um dos documentos desta saudade,
reenviado de Madrid apz a morte da Princeza, ali
o tinha dentro d'esse movei; e, porque pinta bem
o corao da Infanta, aqui o publico pela primeira vez;
se do cofre no posso tirar o original, da Bibliotheca
de vora extraio a copia:
No poder eu dormir esta noite com algum pouco
de repouso,
se no
escrevera esta para beijar as mos a Vossa Alteza
pela merc que me fez com os seus recados, e mui-
tas graas a Nosso Senhor por ver a Vossa Alteza
n'aquelle logar que no mundo merecia. Eu estou to
fora de mim, e com tamanha saudade, que Vossa Al-
teza me far merc de me levar em conta a lettra e
palavras, pois no podem ser tantas que abastem
para dizer o que sinto em me ver sem Vossa Alteza,
e para no lhe dar trabalhos de ler mais, acabarei.
Beijo a mo de Vossa Alteza. A Infanta D. Maria.
Ha pintura mais viva do corao da Infanta do que
esta carta, que denota o que seriam as outras?
VII
Para acompanhar a Infanta, e receber-lhe as ordens,
achava-se trabalhando n'um bordado, cuja luz era en-
fraquecida por cortinados de seda, a sua Camareira-
mr, D. Constana de Gusmo. Invocando qualquer
pretexto amoravel, entrava uma ou outra vez a sua
velha aia, que lhe queria como a filha, D. Elvira de
Mendona.
A MULHER EM PORTUGAL 141
Ao lado esquerdo da Infanta sentara-se n'um tambo-
rete, com permisso especial, o primeiro Vedor d'aquella
opulentssima fazenda, Joo Rodrigues de Beja.
Era o Vedor um homem de altura mean, grosso sem
ser anafado, cabellos brancos de si mesmo encaracola-
dos, fronte elevada, olhos pequenos mas vivssimos, e
intelHgentes; nos lbios
fum
ligeiro sorriso, natural e
bondoso. J velho, mas muito jovial, e toda a sua pes-
soa um modelo de apuro. Respeitvel por edade e ca-
racter, lograva o dom especial de attrahir logo pri-
meira vista. Era de perspiccia immediata, e de manei-
ras finssimas. No meio porm d'este caracter sizudo.
ao Vedor, que fora um galante na sua mocidade, fica-
ra-lhe um platnico geito, de que nunca logrou liber-
tar-se. O seu porte era honestssimo; mas no podia
ver uma dama formosa sem lhe aprazer o tel-a visto.
Folgava de admirar o pomo na arvore. Este geito, que
nem todos por ventura se acharo com animo de cen-
surar, tornava-o indulgente como elle em breve o mos-
trar. Tinham-lhe nascido as barbas no pao; fora
j
Vedor do Infante D. Luiz, e pegara ao collo na peque-
nina Infanta D. Maria, que veio a dedicar-lhe uma con-
fiana iUimitada. Correndo por elle todas as pesquizas
da pobreza recolhida, lia de cr a vida piedosa da In-
fanta. Sabia, como ningum, da tempera d'aquella alma,
no s na liberalidade com que dava, como no prazer
intimo com que o fazia. Conhecendo-a profundamente,
consagrava-lhe um enthusiasmo, que tocava na devo-
o: e a Infanta a elle uma como amisade filial, apre-
ciando-lhe as quahdades, e folgando de lhe ouvir a
conversao, amena e chistosa, mas sempre reverente.
Havia principiado o despacho. A Infanta, depois
152
A MULHER EM PORTUGAL
de
praticar algum tempo com o Vedor na administra-
o da sua fazenda, passou a examinar a um e um,
com atteno extrema, os requerimentos e memoriaes
das viuvas, dos orphos, dos mendigos, da grande po-
breza de Lisboa, de que uma parte, como vimos, aguar-
dava no vasto pateo a inesgotvel caridade da ilha de
D. Leonor. margem d'esses papeis, ia designando
os soccorros, conforme a commiserao ]h'o dictava.
Durante este exame particular, a Camareira-mir, cor-
tezan finissima, e de grande feio, fez signal ao Ydor.
Este, pedindo vnia Infanta, dirigiu-se
p
ante
p
a
D. Constana, ^que toda curiosa (como foi sempre uso
tradicional nos paos) lhe pediu novidades, em voz
baixa, e assim estiveram ambos palacianamente pa-
lestrando, n'um amvel tiroteio, segundo se perce-
bia.
A Infanta, olhando e sorrindo poisou a penna. O Ve-
dor correu logo ao seu posto.
Procurem-lhe
j
na visinhana uma ama, que a
venha alleitar.
E de novo para o Ydor, graciosamente:
Mas que ?
... No me compete a mim . .
.
dizia de
si para si a joven Bernarda:
da Eleonora
de Fonseca Pimentel
In
8.
de 31 pag.
u
210 A MULHEK EM PORTUGAL
O segundo e ultimo acto passa-se no Terreiro do Pao,
no dia da inaugurao da estatua equestre. V-se a
grande praa magnificamente adornada: a estatua do
Rei e o busto do Marquez de Pombal ornados de tro-
pheos. A vista apparatosissima. Funda-se a pea na
guerra entre a Inveja, com os seus sequazes, e a Vir-
tude, com os seus gnios. Ha coniliclo, vencendo a
Virtude, e sendo a Inveja forada a cahir liumilhada
ao
p
do busto de l*ombal. Apparecem ento succes-
sivamente os grandes coros. O das Nymphas do Tejo
canta em louvor das industrias; depois o das Bellas-
Artes allude reforma da Universidade: o das divinda-
des marinhas da sia, ao estado vigoroso daquelle
continente; o das divindades marinhas da Africa, s
leis que aboliram a escravido no Ueino; o das divin-
dades (la America, egualdade entre os sbditos bra-
zileiros e portuguezes. Um coro geral, composto de
todos os coros indicados, entoa gloria ao Rei, ao Mi-
nistro, e ao renascimento do Povo. Os versos d'esta
composio patritica so de uma expresso elevada,
6 to sonoros, que s vezes parecem musica.
Leonor Pimentel dedicou a sua pea ao Marquez de
Pombal. De todas as dedicatrias que o grande Minis-
tro recebeu, foi talvez esta a mais desinteressada.
D'ella trasladarei algumas palavras, para dar ideia dos
enthusiasticos sentimentos da auctora na presena do
Portugal novo:
Eu no pude conter, senhor, o meu enthusiasmo e
admirao por to grandes progressos, e pela firmeza
com que os vejo realisar n"uma nao cm que no
<s-nasciy mas de que sou filha. Inspirada d'estes factos
a presente pea dramtica, que dedico a V. Ex.*
A MULHER EM PORTUGAL 211
N'estes meus versos sou apenas interprete das since-
ras vozes que um to grande dia, e um to grande
acontecimento o da inaugurao da estatua teem
excitado nos coraes dos vossos admiradores, e dos
verdadeiros cidados, a quem a distancia tem impe-
dido de participar das publicas demonstraes da Pa-
tria. E se, por um lado, vol-os apresento com a con-
fuso que me produz a prpria fraqueza, e o respeito
que devo a to grande pessoa, por outro lado realiso-o
com a firmeza que sente dentro em si quem diz a
verdade Assim, confio que vos dignareis de
acceitar os humildes sentimentos, com que tenho a
honra de confessar-me de V. Ex.^
Npoles, 15 de Maro de 1777.
Devotssima, obrigadissima, e obsequiosssima serva.
Leonor da Fonseca Pimentel.
Com que nobre orgulho se refere D. Leonor nao
em que no nasceu, mas de que filha !
111
De dois modos se interessava Leonor IMmentel pela
terra longnqua : j
noticiando o desenvolvimento ci-
viiisador da sua adoptiva Itlia, como para o incutir
na sua Ptria verdadeira; e j
pedindo novas dos pro-
gressos da mesma Ptria.
Assim, n'uma das cartas ao Bispo Cenculo, em
1785, promettia-lhe a prxima remessa da nova e mo-
numental obra de Filangieri Sciencia da legislao, que
estava electrisando todos os espritos amantes da Hu-
manidade, e enviava-lhe alguns livrinhos de poesias
212 A MULHER EM PORTUGAL
suas. O final da carta acaba de lhe pintar o cara-
cter:
Que faz entretanto
volve o Arcebispo
deixe a menina
estar, que eu o direi ao sr. Marquez.
A meu pae? exclama D. Leonor de Almeida,
A MULHER EM POKTLGAL 233
com um sobresalto de alegria, ao ouvir falar do seu
saudoso pae.
ao sr. Mar-
quez de Pombal.
N'um repente a joveu Alorna, convertendo o alegre
sobresalto num irapeto de clera, dispara queima-
roupa ao Arcebispo estupefacto estes dois tiros de Cor-
neille:
Le cour d'lonore est trop nohie et trop frane,
Poir craindre ou respecter le bourreaii de sou sang.
No se descortinou bem a raso por que o Arcebispo
se no deu por ferido ; mas Leonor conservou os seus
lindos cabellos, e os seus vestidos attentatorios.
IV
Solta aos vinte e oito annos com sua me, e seu pae,
ao subir ao throno a Rainba D. Maria I, D. Leonor
trazia de Chellas, por primcias, as poesias, no direi
mais bem cinzeladas, mas as mais amorosas da sua
vida. Os primeiros versos de uma poetisa de talento
rescendem s flores de laranjeira de uma noiva. Aquel-
las poesias eram o borboletear da inspirao, eram as
vozes da sua vaga esperana entremeadas com a me-
lancolia do seu captiveiro.
O palcio do Marquez de Alorna recebia nobremente
nacionaes e estrangeiros. Entre estes foi ali apresenta-
do um militar Allemo, o Conde de Oeynbausen, primo
234 A MULHER EM PORTUGAL
e ajudante do recem-chegado Conde de Lippe. O moo
Conde viu diante de si uma joven senhora, com uns
cabellos, que, se tinham meltido medo ao Arcebispo,
no mettiam nenhum aos ajudantes do Austraco Ma-
rechal, com uns olhos brilhantes que pareciam falar,
elegante, seio to arrebatador como indiscreto, com a
nobre distinco que era to sua, talando seis lnguas,
tocando, cantando, poetando, perfumando graciosa o
lar de seus pes. O pobre Conde cahiu-lhe aos ps, e
jurou-lhe que para a esposar tudo abandonaria por ella,
at a prpria Religio, como electivamente abandonou,
fazendo se catholico.
Certo que ningum sabe para que est reservado.
A joven poetisa tinha escripto a outra joven poetisa (a
sua amiga Natrcia) uma epistola, que, nada mais e
nada menos, dizia assim:
Deixa-lc disso, aniiiia : no me prei:iies.
Amor para mim uma chiniera.
Em meu peito de certo no prospera
mais que a lei da razo, que tu no segues.
Sou de composio muito exquisita :
no creio nos amores d'esta terra,
e declaro aos amantes maior guerra
quando de amor minha alma necessita.
Quem vs tu que merea ser amadOj?
Qual, do culto de Amor digno herophante,
no ter co'as fraquezas de inconstante
os augustos myslerios profanado ?
A MULHER EM PORTUGAL
23o
Amor em mim no e, (juai tu o sentes,
um clamor, um tumulto dos sentidos;
eu tenho esses escravos submettidos
a leis mais elevadas, mais decentes.
Sinto amor, como toda a terra sente
as foras que a manteem, foras diversas;
amor me faz fu;^ir de almas perversas;
por amor husco lem vo) uma innocente.
De opinies cobardes governados,
os homens ho de rir d'estas doutrinas;
ho de rir os peraltas e as meninas.
Queres que adore um d'esses malcreados ?
Ah I pobre Leonor ! pobre Alcippe ! O moo que te
cahia aos ps no era de certo um makreado; mas no
dia seguinte ao leu sim, como te no perguntaria a
tua amiga Natrcia, com as mos enlaadas nas tuas,
e com um sorriso que te faria sorrir tambm, se o
amor
j
no era para ti uma chimera, se ainda no
acreditavas nos amores deste mundo, se no vias
algum elle que merecesse ser amado, e se, rindo os
homens por ventura das tuas doutrinas, te no rias
tu muito mais da lua formosa epistola, que a brisa do
teu amor levava pelos ares, fazendo-te crer, emfim,
que havia pelo menos um (seja-nos consolao ! ) que
merecia ser amado!. .
.
O mundo abriu-se de par em par para a nova Con-
dessa. Acompanhando o marido para Venna (l'Austria,
onde elle fora collocado pelo nosso Governo como En-
236 A MULHEK EM PORTUGAL
viado exlraordiiario, receberarn-n-a com enUiusiasiiio.
Nas dilfereites crles da Europa, om que residiu, i'e-
lacionou-se com os grandes i)oetas, os sbios, e artis-
tas. O prprio Papa Pio VI, que pessoalmente a conhe-
ceu na Corte de Vienna, em tanla admirao a leve,
que depois se carteou do Vaticano com ella.
A Condessa e Madama de Stael eram de molde para
mutuamente se avaliarem. Na Legao de Londres,
onde estava nosso Ministro o moo Conde de J*almella,
reuniram-se ambas, e agradabilissimo seria vr discu-
tirem politica e lilteratura a poetisa portugueza e a
auctora da Corinna (talvez a prpria Corinna em carne
e osso, no palcio do supposto Lord Nelvilj.
Teodo herdado, pelo fallecimento do nico irmo, o
titulo e a casa de Alorna, regressou ptria, e o seu
palcio de Lisboa foi um centro litlerario. Como ou-
tr'ora a tinham admirado e cantado Filinto Elysio e
Bocage, assim agora a rodeavam as poetisas suas ami-
gas, e os homens notveis nas lettras e artes. Viam- se
ali o Conde de bidos, o Visconde de Balsemo, D.
Gasto da Camar, Gonalo Vaz de Carvalho, o Conde
de Mello, e outros. No faltou Herculano, que a appel-
lidou de mulher extraordinria, e que no Panorama de
1844 escreveu ter-lhe devido incitamentos, quando,
ainda no verdor dos annos, dava os primeiros passos
na estrada das lettras. Tambm ali no faltou Casti-
lho, a quem a .M.irqueza tanto distinguia, desde muito
novo, qne era elle um dos ntimos, recebido na sua
A MULHER EM PORTUGAL 237
camar quando nos ltimos tempos
j
no podia sahir
do leito.
Com um s dos primeiros no chegou a ter convivn-
cia. E quem se imagina que fosse? Garrett.
Nas ultimas vezes que a sua avanada edade lhe per-
mittiu sahir, assistiu na S ao Te-Deum pela chegada
da Rainha a Lisboa em 1833, e depois a um baile para
festejar o termo da' guerra civil. Era n'este baile. Seu
neto, D. Carlos de Mascarenhas, constando-lhe que
Almeida Garrett a no conhecia pessoalmente, seguiu
acompanhado do grande poeta, e, beijando respeitosa-
mente a mo Marqueza, disse-lhe:
Quem s ?
disse eu.
Francilia.
E foi descendo.
medida que fui seu canto ouvindo,
foi-se a minha tristeza desfazendo.
Estes versos animavam a proverbial modstia de
Francilia; e prova-o na sua Epistola
TRANCILIA A ALC11'PE
Se musa de Francilia dada a gloria
de erguer na voz da lyra o nome egrgio,
o nome illustre da extremada Alcippe.
se Cantora immortal, irman de Phebo,
pode ser grato o som de humilde canto,
Alcippe, honra de Lysia, acolhe meiga
a pura offrenda da singela musa.
Versos, que o corao remette aos lbios,
fdhos da Natureza, eia, auimae-vos !
da gratido nas azas cor de neve
adejae, versos meus, de Alcippe aos lares!.
A MULHER EM PORTUGAL 243
V-se que impresso salutar produzia na nobre ti-
midez de Francilia a animao da Marqueza. E que
profundo contraste entre as existncias de ambas ! A
Marqueza teve por theatro o mundo, e viu-o aos seus
ps; D. Francisca, a no ser no curto espao da sua
felicidade conjugal, viveu recolhida: no austero lar pa-
terno durante a mocidade, e depois no desconsolo da
viuvez. A meninice passou-lhe entre caricias de cora-
es amigos, mas era-lhe vedado dessedentar a inspi-
rao, que lhe despontava ardente ; lia apenas, e a
furto, Cervantes e Cames. No admirou monumentos
grandiosos, nem estudou costumes novos ; no ouviu
rebentar um vulco de ideias dos lbios de uma mu-
lher que se chamou Madama de Stael, se bem que a
adivinhasse com o seu prprio talento, quando nos
deu a traduco da Curinna; no falou com o Rei Car-
los III, nem com Luiz XYI, nem com a Imperatriz Ma-
ria Theresa, nem se carteou com os Papas ; e todavia,
sem estes deslumbramentos, que no criam o talento,
mas que o desenvolvem, a que havia de vir a ser
Franciha devaneava em silencio antes de poetar, que
j
poetar no corao. Amava o seu amor, como es-
creveu Frederico Souli n'um dos seus romances mais
famosos.
Em Paris assisti uma noite, no theatro francez, a um
formoso drama de Scribe, em que a joven e talentosa
Maria Royer (fallecida no verdor dos annos) represen-
tava de cega. A infeliz amava um oiicial de marinha.
Um moo medico amigo de ambos opera-a. Valeria re-
cobra a vista, passa na escurido o tempo necessrio
;
chega o dia prprio, tem diante de si os dois moos,
ambos da mesma edade, entrajados do mesmo modo,
24
i
A MULHER EM PORTUGAL
e muito queridos ambos para ella, um pelo amor, o
outro pela amisade. -lhe tirada a venda; e n^esse
repente, com um olhar elctrico para ambos, lana-se
nos braos do seu noivo. Adivinhra-o, conhecra-o
com os olhos da alma.
Assim Francilia adivinhou por instincto o homem que
ella amava, um official de marinha tambm, como o
estremecido de Valeria.
No teve outro amor na sua vida. Este amor abriu-
Ihe as portas do mundo, quasi a enlouqueceu, e ma-
tou-a.
Esteve casada dezasseis annos D. Francisca Possollo
com o nico homem a quem estremeceu: Joo Ba-
ptista Angelo da Costa. Foi ao longo d"este periodo,
principalmente, que ella compoz os seus versos colli-
gidos no livro Francilia pastora do Tejo, e que publi-
cou em 1816. Escreveu outras obras, onde ha, segundo
a apreciao de Castilho na Noticia litteraria, que pre-
cede a Pluralidade dos mundos, clareza, facilidade, e
muito menos desconhecimento da riqueza da lingua-
gem, do que poderia esperar-se. Favoreceu-a mais a
natureza do que a arte.
O Visconde de Castilho, Jlio, descrevendo os seres
semanaes de Franciha, frequentados pelos talentos de
maior nomeada em politica, lettras, e artes, e onde ha-
via musica, dana, conversao viva, e representaes
theatraes, diz n'um dos seus livros to sos e to por-
tuguezes
:
Foi a senhora D. Francisca Possollo (Francilia, pas-
tora do Tejo, era, moda do tempo, o seu nome ar-
cadico) uma alma vibrante, daquellas em quem do
ceccho os acontecimentos grandes do mundo exterior;
A MULHER EM PORTUGAL 20
espirito verdadeiramente alto, activo, ousado, irre-
quieto; corao potico e bom, cheio de lagrimas
para todos os infortnios, e de enthusiasmo para to-
dos os rasgos nobres. (')
Devo bondade da Ex.'"'' Snr.* D. Clementina da
Costa, digna sobrinha da fallecida poetisa por seus al-
tos talentos, e pelo culto que presta s Artes, o conhe-
cimento de muitos manuscriptos em diversos gneros,
de que depositaria.
Nas Epistolas que esta poetisa escreveu, ao uso do
seu tempo, ha uma suavidade de sentimento prpria
do meigo corao que as escrevia. Restam egualmente
numerosos sonetos, e entre elles uma colleco (im-
pressa) dos que se recitaram no theatro de S. Carlos
por entre delirantes manifestaes, apoz o juramento
da Carta em 1826. Junto aos sonetos encontram-se
tambm outros cnticos patriticos dedicados aos he-
roes que implantaram a nova civilisao portugueza.
Vibra em todos estes cnticos, sabidos do intimo, um
horror politica oppressora, e um ardente enthusias-
mo pela formosa aurora, que promettia nao o rei-
nado da justia pela liberdade.
il
Disse eu que entre a existncia das duas poetisas
houvera grande contraste. E verdade que ambas el-
las, Alcippe e Francilia, casaram por amor, e ambas
perderam os maridos prematuramente. Mas, ainda as-
(') Memorias de Castilho T. I, Cap. XXVIII.
246 A MULHER EM PORTUGAL
sim, a Marqueza teve filhos; e se padeceu uma enor-
me dr, o dever materno deu-Jhe foras para no sos-
sobrar.
A Francilia duas vezes eriu a sorte : vuiva e sem
filho
!
Foi ijuasi instantaneamente, numa noite, que a morte
lhe roubou o marido. Tel-o so, entre os braos
!
volverem minutos, e vtM-o morrer ali!... quasi que
no se concebe. Nem uma palavra d"elle ! nem o con-
forto da companhia dum filho ! s6 a solido repentina,
*e a prpria vida affluindo toda ao pensamento, n"aquelle
crebro que no logrou a ventura de estalar !. .
.
Mas foi-lhe estalando o corao. Ainda Francilia vi-
veu mais sete annos at ao de 1838, em que, tendo
sido levada para uma sua quinta no Cartaxo, terminou
o martyrio da sua saudade.
Nos primeiros tempos da viuvez havia-se encerrado,
entre prantos e recordaes, na prpria camar onde
perdera o marido; depois estivera annos sem sahir da
casa que habitava ; e assim viveu na exaltao da sua
dr agudissima. Acordou-a a poesia. Escreveu nume-
rosos sonetos, allusivos vida feliz que lhe fugira en-
tre saudades. Dirigiu-se a Castilho, de quem era en-
thusiasta, e alternou-se entre ambos uma serie de
Epistolas, tendo por assumpto o fatal acontecimento.
Onze foram as que ella enviou ao poeta; podem con-
siderar-se um livro de fogo. essa a grande obra que
ella deixou, superior colleco dos seus versos ; um
estudo da alma. Possue este manuscripto o meu ex-
cellente amigo Visconde de Castilho, a cuja bondade
devo o conhecimento delle, e a permisso de transcre-
ver um extrato. Nesta obra a conveno da escola des-
A MULHER EM PORTUGAL
247
apparece; a rcade transforma-se na mulher verdadeira,
que repassa de sentimento os seus versos. O obrigado
cortejo dos zephyros, das nymphas, dos satyros, eva-
pora-se; e se algum nume, ou algum fado ainda ap-
parece, isso devido antes memoria, do que ao intento.
Em logar de investir com as montanhas para escalar
o Pindo, desce ao fundo do corao, e l encontra a
verdade. Se por vezes o estyio se derrama, talvez
porque a dr, desabafando, d margem expanso,
que se precipita ; e os seus versos, se por um lado lhe
saem impregnados de tristeza, por outro vibram de
energia. Hasga o prprio peito, e canta a sua dr, que,
parecendo individual, a dr de todos os amantes, que
saibam amar como ella. Com a sua poesia, que geme
e se extorce, geme e extorce-se o corao humano.
Expressa ella a verdade, que a arrasta quasi loucura.
Ella mesma nos pinta, sem o ito na publicidade, o
quadro da sua alma. Como que divisa o esposo, e
pretende restituil-o vida com os seus beijos. Depois,
dr aguda succede a dr concentrada; v-o em sonhos,
e estende-lhe os braos, mas de balde. Yolta-se para
as artes, mas s encontra nellas a lembrana da sua
existncia venturosa e desfeita.
E diz assim, n'este limitado extracto, que pela vez
primeira v a luz:
Dezfez-se o encanto I ah ! sim, desfez-se o encanto,
que a meus olhos to hella apresentava,
to aprazvel, a existncia minha!
Tudo, tudo perdi I o esposo ! o amante I
o meu .Jonio, o meu bem, que era no mundo
um modelo de anglicas virtudes,
raras, bem raras em to frrea edade.
248 A MULHER EM PORTUGAL
Se viras como eu soflro. . . ah I no dissera;
no ousaras dizer: oSupporta a vida- .
Considera-me um pouco (v
se o podes ).
Olha a sceua horrorosa, que incessante,
no silencio da noite, e a toda a hora.
a memoria funesta me apresenta,
e do meu soffrimenlo a extenso mede I
Considera-me um pouco, junto ao leito
do terno esposo meu, atormentado
de repentina dr, activa, estranha,
(assustadora no) afilicta, inquieta,
sem descanso velando o meu esposo I
Imagina o momento doloroso I . .
.
Quando um heijo suave compensava
meu continuo desvello. e mais tranquillo.
.
(Numes, que horror!) o vi cahirsem vidai.
Oh I momento fatal I como possivel
que um lance to cruel vencer podesse ?
Desesp'rada porm, em fria, ein gritos,
o que disse, o que hz, no sei narrar-te.
O tino recobrando, achei-me (ai triste I)
sobre o leito da morte, ao peito unindo
com frentico amor, (juasi em delirio,
em gemidos, em ais, o brando peito
do esposo extincto, e sempre idolatrado I
culpando os Cos I culpando a Natureza !
e sobre meigos lbios, j
cobertos
da pallidez mortal, frios, gelados,
com meus beijos ardentes procurando
sua alma receber, ou transmittir-lhe
no fogo de meus ais, de meus suspiros.
A MULHER EM PORTUGAL 29
do meu peito o calor, e a minha vida I
Ai I como te detesto e te maldigo,
bar])ara compaixo, que me arrancaste
ao meigo esposo meu, aos meus amores I
que me tolheste o bem, cruel mas doce,
de exhalar so])re o peito inanimado
do terno idolo meu o inlausto alento I
Barbara compaixo, quantos tormentos,
se tu no foras, evitado houvera I
Eu vivo ainda ; eu vivo ; mas que importa?
S pela dr conheo que in{'a existo.
Repetir-me ousars que chore e viva ?
que assim o quer o esposo?! Oh ! no te illudas.
Despojado da vida o meu amado
tornar-se-hia um tiranno?! Elle que outr'ora,
to meigo, to sollicito, evitava
t do pezar a sombra ao triste objecto
do seu constante amor, elle quizera
que envolvida na dor e na amargura
a vida conservasse ? I Oh I no te illudas,
nem busques illudir-nie. Ouve-me. e julga.
Alta noite,
j
quando, fatigada
de penosa viglia, um leve sonho
no regao me acolhe, quantas vezes
aos olhos d'alma se me offrece o esposo,
triste, abatido, no gentil semblante
outr'ora to risonho conservando
um ar, celeste, sim, mas consternado,
eclypsados co'as sombras da saudade
os olhos divinaes, o gesto amvel;
2o0 A MULHER EM PORTUGAL
e estendendo-nie os braos docemente,
como que a elles me convida e chama.
Revelaes de amor no te parece
c|ue so estas, em vez das ({ue me indicas ?
Sombra amada I no tardo a acompanhar-te.
Manes do esposo, eu vou, eu vou seguir-vos.
O tempo dizes tu ! No, no o espero.
O tempo muito pde; mas no pde
de foras exhaurida a natureza
esp'rar o tempo; e, dado que o podesse,
loi mui profundo o golpe; ah ! mui profundo !
diicil cura o tempo lhe acharia.
Esta obra, de que apenas fao um limitadissimo
extracto, no um romance de imaginao, ilbo apenas
do talento; so as prprias lagrimas choradas, as pr-
prias dores que palpitam na tribulao, como as de
Mademoiselle de lEspinasse, ou de Alexandrina de la
Ferronnays. Marca esta serie de epistolas a feio
potica do talento feminino que as escreveu, direi me-
lhor, que as arrancou do prprio peito; e revela que
muita vez no a alta de intelligencia, mas a tran-
quilidade da alma, que deixa dormir a inspirao, do
mesmo modo que no tanto o deslizar de um rio, como
o tumultuar do Oceano, que arroja o pensamento para
devassar o desconhecido.
CAPITULO IX
Tirce (A Condessa do Vimieiro D. Thereza de Mello Breyner)
Ora aqui esl outra poetisa da Corte, que se dissera
verdadeira mimosa entre ellas : D. Theresa Josepha de
Mello, da casa de Ficalho, nascida em 1739, e Condessa
do Vimieiro pelo seu casamento em 1766 com o Conde
deste titulo. vr como a roda litteraria do tempo a
considerava. As poesias de Alcippe e de Natrcia en-
grinaldavam-n-a de nomes suaves e aTectuosos, des-
crevendo-lhe os dotes physicos e os moraes, e avaliando
a sua individualidade potica principalmente pela face
da natureza.
Natrcia n'uma das suas epistolas, dirige-lhe algumas
quadras enthusiasticas; e d'eDtre grande numero de
poesias de Alcippe tendo Tirce por assumpto, ha um
grande idyllio, em que a Marqueza enfeixa os dotes da
intelligencia e do corao da poetisa.
Um dia o auctor do Hyssope, entrando no seu es-
232 A MULHER EM PORTUGAL
criptorio, encontrou um invlucro sobrescriptado a elle.
Abriu-o. Era uma ode Rainha.
O auctor ?
perguntou elle de si para comsigo,
procurando a assigoalura.
A ode vinha anonyma ! Diniz da Cruz bateu na testa.
A testa respondeu-lhe o que quer que fosse. O poeta pega
logo na penna, e escreve quatorze linhas, d'aquellas,
que, segundo o creado de Boileau, revelavam no amo
indcios de alienao mental, por no chegarem ao ex-
tremo da folha; sobrescripta-as, e manda-as ao seu des-
tino.
Decorridas horas, no palcio dos Condes do Vimieiro
a gentil dona da casa encontrou tambm um invlucro
sobre a sua secretria. Abre-o desprevenida, sobresalta-
se, interroga a assignatura. Quem com ferro mata, com
ferro morre. A assignatura em branco I A poetisa l o
que se segue
:
Se essa que em Lysia pulsa lyra nobre,
logo que abrindo as azas cruza o vento
em altos voos sobe ao firmamento,
e de brilhante luz toda se cobre,
em vo aos nossos olhos lioje encobre
a mo que o fere o altisono intrumento ;
o som divino, o majestoso accento,
que teu, que lu o tocas, nos descobre
Cantas, e ser no queres conhecida ?
Crs, talvez, occultando o nome ufana,
que e de Breyner a voz desconhecida ?
Quanto, ah I quanto o conceito teu enganas !
Alta cidade sobre um monte erguida
como esconder-se pode t vista humana ?
A MULHEU EM PORTUGAL 2o3
Este louvava s: mas havia quem, depois de louvar
pedisse.
Diz o meu bom amigo o Visconde de Castilho Jlio
nas Memorias de seu Pae
:
Um grande poeta, Mcolao Tolentino de Almeida, o
polidssimo cinzelador da quintilha satyrica portugueza,
e um dos nossos mais puros escriptores.
verdade; mas tambm, um dos nossos mais puros
pedinches (no que alis no pretendo lanar vituprio
epocha dos nossos Mece7ias). Ora invocando a moda,
e como caracterstica do tempo, exclama Nicolau To-
lentino Condessa
:
Aos ps da illistre Vimieiro um dia
lacrimosas quintilhas recitava,
e o digno corao que as escutava
da causa por que o fiz se condoia.
Na sizuda atteno com que as ouvia
j
por bera pago o triste auctor se dava,
mas a tanto favor se adiantava,
que at a proteco lhe permittia.
Nobreza, discreo, semblante, agrado,
so contra a m fortuna tantas lanas,
que me supponho quasi despachado.
Mas se at faltam estas esperanas,
vou ser na escola,
j
desesperado,
em vez de mestre, Ilerodes das creanas.
O que elle depois nunca chegou a dizer, que eu
saiba, foi se a nobre poetisa o poude proteger de modo
a corresponder sizuda atteno com que lhe ouvia as
quintilhas, ou se o deixou cingir a coroa Real de He-
2o
A MULHER EM PORTUGAL
rodes, nico delicio que a virtuosa senliora levaria aos
ps do confessor.
E uma vez que me cahiu mo o nosso Tolentino,
seja tambm recordada a sua memoria com estas pa-
lavras, que, se elle houvesse logrado ll-as, lhe in-
demnisariam as agruras do professorado, que foram o
seu tormento, palavras do nosso Garrett, o qual, de-
pois de o apreciar, conclue
:
Confesso que de todos os poetas que meu triste
mister de critico me tem obrigado a analysar, nico
este em cuja causa me dou por suspeito, tanta a
paixo, a cegueira, que tenho pelo mais verdadeiro,
mais bom homem de todos os nossos escriptores.
Ommitto Bocage, Domingos Torres, e Filinto.
No logra a exagerao potica conquistar todos os
foros da verdade, mas pde ser para ella um argu-
mento, como o atalho pedregoso um caminho para o
ponto demandado; isto, quando a exagerao potica,
unanime e sincera, d as mos prpria expresso dos
sentimentos pessoaes, e tradio successiva.
Correu plcida a existncia d"esta senhora, sem a
agitao da sua contempornea Alorna, nem a violncia
apaixonada da sua outra coeva Possollo. Na Corte ro-
<leava-a o respeito, que a sua auctoridade, temperada
por um trato suave, lhe attrahia; na sociedade admi-
ravam-lhe a erudio variada; e os homens de lettras
laureavam-n-a por seu talento, como vimos. Vivia
grande parte do tempo dentro da sua afamada bi-
A MULHEll EM PORTUGAL
ZOO
bliotheca, uma das mais valiosas pelo numero e im-
portncia das obras, e dedicava natureza uma quasi
paixo. Adorava o campo nos thesouros dos arvoredos,
fructos, e flores, e no menos pela meditao que elle
lhe proporcionava, para elevar o seu espirito potico
s regies, em que, desprendido da terra, elle se
apura num amor sincero a tudo quanto ha grande.
Por isso lhe clamava Alcippe, numa das poesias em
que to minuciosamente a descrevia:
Amor, Tirce, no
,
qual tu o sentes,
doce clamor da .sabia Xatureza
;
um rapaz, que flechas traz pendentes,
filho da liberdade e da vileza.
Em parte do vero, e em todo o correr do outomno,
era-lhe prazer a sua campestre vivenda perto de Al-
coentre. Era ali que se expandia vontade. Ali desen-
volvia, com espirito pratico, todos os melhoramentos
agricolas (e vel o-hemos ainda n'este capitulo, por um
acto honroso e curiosissimo que porei diante da vista
do leitor). Ali folgava tambm de descanar da vida
tumultuosa da Corte, como, d'entre outras passagens,
o prova no IdyUio a Lilia
:
A fonte, o prado, o rio, o brando vento,
mesmo o balir do gado repetido,
no peito me infundia to suave
to serena alegria, qual na Corte
nunca pude provar, por mais que fosse
astuta em fabricar prazeres novos
essa arte que do fausto se alimenta
quando as hericas scenas representa.
2o6 A MULHER EM PORTUGAL
Hospedava tambm no meio dos gosos campestres
as suas amigas, mimoseando-as com os seus versos,
por entre as gentilezas com que as recebia. D"entre
elles vejo um soneto manuscripio, dedicado formosa
Condessa da Atalaya, quando esta senhora, na primeira
vez que ali foi, lhe gabou a sua admirvel vivenda.
As poesias da sr.^ Condessa do Vimieiro foram prin-
cipalmente buclicas. No se imprimiram, mas salvou
uma parte delias o erudito Antnio Ribeiro dos Santos,
archivando copias na Bibliotheca Nacional de Lisboa.
(*)
Corre por estas poesias campestres, a par de certo
desalinho, prprio de quem pouco emendava antes da
correco final para o publico, uma grande suavidade
de expresso e doura de sentimento, e como um es-
pirito impregnado dos doces rumores da natureza nas
suas variadas manifestaes.
N'um dos Idyllios apparece uma bella descripo ao
viro (como dizia Garrett em taes casos) da extenso
d'aquelles sitios. A vasta campina em que Daliso canta,
alcatifam-n-a matizes diversos; o sol doira a pedregosa
altura do Tagro monte, em quanto os seus raios, re-
flectindo nas alvas paredes de Tagarro, ora tocam no
altivo pinheiro, ora relambem as rasteiras e
j
des-
maiadas vinhas. Ao longe a frondosa Alcoentre apre-
senta com modesta jactncia os vestgios da gloria ga-
nhada em novos mundos. No horizonte as nuvens
rasgam-se, anciosas de no roubarem vista a curiosa
Torre-Bella. Vae o olhar declinando at de todo se
(1) So: dois Idyllios, uma descripo de tempestade, um ter-
ceiro Idyllio a Lilia; testemunho de gratido; uma Epistola em
tercetos, italiana; dez Sonetos, e um Madrigal.
A MULHER EM POIITLGAL 237
perder, voltando a estender-se por um cerro rodeado
de manchados rebanhos. O quadro apparece harmo-
nioso no seu conjuncto, pela justa variedade dos seus
elementos.
in
Mas quem diria, quando a vemos seguir com tanto
gosto na poesia campestre, que a obra principal da
Condessa havia de ser a sua tragedia Osmia ?
No dia 10 de Maio de 1785 a Academia Real das
Sciencias abria concurso, com premio, para a apre-
sentao de uma tragedia de assumpto nacional, at o
dia 13 de maio de 1788.
Trs produces acudiram. Apreciadas por aquella
douta corporao, a Academia, pronunciando o seu jul-
gamento, concedeu o premio tragedia Osmia, pela
sua versificao mais igual dizia a consulta pela
unidade da aco, e pelos caracteres das pessoas se
conservarem fielmente at o fim da catastrophe.
Restava saber-se o nome do auctor, para lhe ser
conferido o premio. Aberta a cdula competente, qual
no foi o pasmo da Academia f ?
Lembrado estar o leitor, de que ha pouco se disse
que mais de um facto honroso e curiosssimo provaria
a dedicao da Condessa do Vimieiro aos interesses
agrcolas. Na cdula, em vez do nome da auctora, lia-
se esta declarao: Que se por ventura coubesse o
premio tragedia Osmia, fosse conferido o valor d"elle
Memoria que melhor indicasse um remdio para a
ferrugem que damnificava as oliveiras, e que fosse, ao
o8 A MULHER EM PORTUGAL
mesmo tempo praticvel sem despeza grave nem cui-
dados excessivos.
Em vista d"esta notvel e generosa recommendao,
a Academia propoz como premio extraordinrio, equi-
valente ao que fora destinado para a tragedia coroada,
uma medalha de ouro no valor de cincoenta mil ris,
premio que foi julgado na sesso publica de 4 de Ju-
lho de 1791. Veio a saber-se depois, e est provado,
que a Osmia fora composta pela sr.'' Condessa do Vi-
mieiro,
Impressa por ordem da Academia no anno de 1795
e esgotadas duas edies, a mesma Academia ordenou
em 4835 que se reimprimisse em terceira edio, como
actualmente corre.
Sismondi disse o seguinte d'esta tragedia:
N'este gnero de composies, em que as mulheres
raras vezes se teem estreado, a Condessa de Vimieiro
apresentou as qualidades que distinguem o seu sexo,
uma grande pureza de gosto, uma grande delicadeza
de sentimentos, e o interesse da paixo de preferen-
cia ao das circumstancias
. . . No desfecho, como em
toda a pea, seguiu as regras do Theatro francez,
parecendo na vivacidade do dialogo ter tomado antes
por modelo a Voltaire, do que a Corneille e llaci-
ne. (^)
de certo honrosa para a auctora, e para ns, a
imparcial apreciao do critico suisso. Disse muito,
mas veremos que no disse tudo.
(1) Sismondi
diz a Condessa
com o seu alto espirito
escreve ella
use uma febre com esta violncia dura uns poucos de dias,
288 A MULHER EM PORTUGAL
ano resistem as minhas foras. E o que seguiu? an-
cias, que a energia da penna mais eloquente tentaria
em vo descrever. Com laes recordaes, qual seria
a commoo da minha alma ao vr n'este II de Fe-
vereiro amanhecer um dia to risonho. Dia formoso
!
disse-lhe eu : e con-
versmos sobre alguns assumptos. Nunca os seus olhos
me pareceram to expressivos, animados de doura e
sensibilidade. Era a despedida do seu ultimo dia. Dei-
Ihe um pouco de leite, que bebeu, e foi o ultimo ser-
vio que lhe fiz. Foi o seu ultimo alimento aquelie leite
recebido de minha mo, como de mim recebera o pri-
meiro ao entrar na vida. Depois, deixou de falar, nun-
ca mais recobrou os sentidos, e todos os soccorros fo-
ram infructuosos. Em pouco tempo achou-se-lhe ro-
deada a cama de mdicos e de outras pessoas de ami-
sade. Um sacerdote amigo administrou-lhe a Extrema
Unco, e acompanhou-o com as suas oraes. Durante
estes actos orava eu ii'um canto do quarto aos ps de
um Crucifixo. De repente o pranto e os gritos das mi-
nhas sobrinhas annunciaram o seu ultimo suspiro. .an-
cei-me sobre o seu corpo
;
parecia-me que lhe susti-
nha a vida. Os olhos estavam ainda abertos; s no
olhavam
j
para mim, nem fasiam caso das minhas la-
296 A MULHEH EM PORTUGAL
grimas ! e eis aqui o signal por onde se poderia bem
reconhecer a morte d"eile. Antes de me arrancarem de
ao
p
daquelle corpo, que foi o meu idolatrado com-
panheiro de vinte e cinco annos, fiz cortar uma ma-
deixa dos seus cabellos, seu nico resto : e, como se o
Universo desapparecesse para sempre aos meus olhos,
voltei para o
p do Crucifixo, a unir-me com o seu es-
pirito na presena de Deus.
Esta me perdia o seu filho, verdade : mas cabia
vencida gloriosamente.
Acabamos de ver como ella o disputou morte, na
creao, nos estudos, nos cuidados. Foi uma lucta dia
a dia ; dir-se-hia uma lucta de fera contra fera ; e se
no havia foras humanas que o podessem salvar, sou-
be reunir todos os milagres maternos para lhe prolon-
gar a existncia.
No posso resistir a apresentar um dos ltimos qua-
dros d*este livro formoso: a descripo que ella dei-
xou do quarto do filho:
O quarto que foi habitado pelo meu caro filho apre-
senta-me o quadro dos seus tiabalhos e do ructo
delles: o passado, e o futuro! o interminvel futuro
de uma feliz eternidade ! O arranjo d'elle, o mesmo
que na sua \\a, no tem mudana seno no sitio da
cama: no logar d'ella est um altar. Ao entrar a por-
ta, abranjo o quadro da sua vida e morte, da minha
felicidade, e de todas as angustias do meu corao,
dos seus trabalhos, e da esperana do premio 'e\-
les; a sua livraria, uma pequena estante feita pela
sua mo, em que costumava pr o livro quando estu-
dava objectos de meditao : o tinteiro, a penna, a
A MULUER EM PORTUGAL
29'
cadeira chegada meza, e sobre ella os cadernos de
Mechanica em que andava trabalhando; tudo alH sup-
pe a sua presena. S Elle falta!.
. . Ali foi o seu
estudo mil vezes interrompido com as nossas doces
conversaes. Ali o vejo sentado a estudar no sitio
do costume, e, parando com o estudo mmha che-
gada, olhar para sua me com o seu ordinrio ar de
riso carinhoso. Oio-lhe a voz, recordo-me do obje-
cto de algumas d'essas conversaes. Isolada n'este
logar, acho nelle todas as memorias, e no o troca-
ria por todos os palcios do mundo. Este logar, tes-
temunha das consolaes que eu gosei na sua doce
companhia, foi o theatro de scenas e de angustias,
que a linguagem humana no pde descrever. Ali,
tive o primeiro presentimento da perda deste filho,
que absorvia todo o meu corao; a dr das dores
estava reservada para mim! A sua enfermidade dei-
xou-lhe todo o vigor de espirito, com a probabilidade
de uma morte prxima, que ns ambos reconhecia-
mos. ramos a mutua companhia um do outro, pois
que, excepo de duas ou trs pessoas, no queria
ver mais ningum. Quantas vezes me dizia: No es-
tou bem, seno com minha me! E eis aqui, na terna
e continua companhia d'estes trs mezes, a prepara-
o com que os nossos coraes se achavam dispos-
tos para a ausncia final. Ah! minha pobre me (di-
zia-me elle quando entrevia a morte) quanto d me
faz! No ha feies mais perfeitamente pintadas n'um
retrato, do que esto na minha alma as feies d'elle,
a sua voz nos meus ouvidos, os seus gestos, todas as
suas maneiras, presentes ao meu corao... Quando
algum novo cuidado d'esta triste vida vem atacar o
298 A MULHER EM PORTUGAL
meu corao, deso ao seu quarto, e, na falta do seu
cconselho, invoco a sua memoria, abrao-me aos seus
vestidos, e algumas vezes chego a proferir: Que me
(uJizes? Corro aos ps do Crucifixo no sitio em que
elle expirou, e a minha dr exhala-se em abundantes
lagrimas. .
. Ah! quem pensara, durante a nossa com-
panhia sobre a terra, quando algumas vezes orava-
mos ambos juntos, quem pensara que elle primeiro
do que eu partiria d'este mundo !. . .
Ceclia. y>
No saciado do bem, tinha aquelle espirito vivssimo
destinado um dia semanal para reunir em casa as pes-
soas das suas relaes, fazendolhes ento uma confe-
rencia sobre os deveres da mulher nas diversas con-
dies de filha, esposa, e me, e variando os assumptos
alis tendentes a um plano.
Teve esta senhora uma longussima correspondncia
com as senhoras Viscondessa de Alcobaa, Condessa
da Quinta das Cannas, D. Anna Maria do Carmo Pes-
soa, D. Maria Antnia da Fonseca e Castro, e outras
damas, todas
j
agora fallecidas; com ellas, claro,
desappareceram tambm as suas cartas. Salvaram-se
unicamente quatro, dirigidas sr.^ D. Clementina da
Silva Monteiro. Per estas cartas, escriptas com pureza
de dico, e finura de conceitos, v-se como ella estu-
dava os negcios pelas suas varias faces.
Limito-me a uma pequena citao da de 31 de Agosto
de 1837. A sua joven e estremecida sobrinha D. Hen-
riqueta fora pedida em casamento para o irmo da sua
referida amiga. O noivo todo apaixonado e impaciente,
almejava pelo casamento, mas os dois pes entendiam
interpor um praso rasoavel, sem ahs atinarem bem
no modo. Para harmonisar as vontades oppostas, es-
crevia ella, tia da noiva, sua amiga irman do noivo:
Ns mulheres entendemo-nos melhor do que elles
se entendem. Talvez que o noivo se v esquecendo
302 A MULHER EM PORTUGAL
d'esta excessiva pressa, sem se lhe combater formal-
mente a vontade; e sendo assim, ns cficimios, para
fazer ento o que melhor convier.
Por este modo, juntava uma prudente sagacidade a
um grande uso do mundo. Toda esta carta de uma
preciosa naturalidade.
Nos ltimos tempos, minguando-lhe as foras, fez da
sua camar um centrosinho de lettras, e ali recebia os
prosadores e poetas da sua intimidade. Finalmente,
obedecendo lei humana, falleceu em 1859, com se-
tenta e cinco annos, na mesma cidade que fora teste-
munha das suas felicidades, e dos seus infortnios.
Vlll
Que mar tempestuoso o mar da vida I
escreveu num dos seus melhores sonetos o joven poeta
a quem a escriptora veio a ligar a sua sorte. Mal pen-
saria o poeta, n'aquelle momento da sua verde moci-
dade, que n'este conceituoso verso resumia a tempes-
tuosa vida de sua mulher !
Prosadora admirvel, corao feito para a felicidade,
viu desapparecer, como nuvem que o vento desfaz, o
marido na ardncia do mutuo affecto, a filha no vio
das graas infantis, o filho na flor da juventude, creado
com o sangue do seu amor, e obra do seu espirito pela
educao. Yiu encantados os seus dias pelos incessan-
tes cuidados com que elle a estremeceu. Viu esse filho
ennobrecido pelo talento, e viu-o cahir no sepulcro exa-
ctamente quando a Universidade lhe ia collocar sobre
A MULHER EM PORTUGAL 303
a fronte a coroa dos seus trabalhos gloriosos. Aquelle
filho era a corda que lhe vibrava no corao. Quebrada
a corda, o corao estalou-lhe.
Alma elevada, que, apesar de tanto padecer, ainda
poude servir a familia, e servir a sociedade, mulher
martyrisada de tantas dores, e purificada em tanta re-
signao, a sua memoria ser glorificada pelos que a
souberem comprehender.
CAPITULO XII
D. Maria Rita Chiappe Cadet D. Antnia Gertrudes Pusich
So estas ! So ellas ! . .
.
E abraa-as, ao estrpito de uma das nossas gran-
des ovaes portuguezas.
A talentosa poetisa (vergonha para o paiz o con-
fessal-o) veio a morrer quasi pobre ; mas quando um
publico sincero d uma tal prova de estima intelli-
gencia e ao corao, offerece a riqueza da sua justia
ao caracter que a sabe apreciar. D. Antnia Pusich,
que presava mais esta riqueza do que a outra, dizia
depois
:
E o dinheiro?
Ahl o dinheiro!
E o dinheiro desde meio sculo at hoje? E os mi-
lhes, em todo este decurso de tempo, para as refor-
mas do exercito, que estremece, cheio de brios, por
no poder desaffrontar a Ptria, tanta a mingua das
foras nacionaes!
E os milhes para a nossa gloriosa marinha, que
(apesar desses milhes) se v forada a presencear en-
tre lagrimas o roubo s nossas possesses de alem-mar?
E os milhes para os nossos caminhos de ferro?
para as nossas estradas ordinrias ? para tantos assum-
A MULHER EM PORTUGAL 36o
ptos em que o oiro tem sido, umas vezes dispendido
com justia, outras malbaratado sem conta ?
No, no o dinheiro que desde meio sculo nos
faltou para o deramamento da instruco, e para novas
fontes do trabalho. O que nos tem faltado, n'esta serie
de reformas vaporosas, que da instruco publica teem
feito um escarneo, apenas a comprehenso do que
seja instruco publica. O que nos tem faltado o arro-
jo da iniciativa contra a ranosa chaleza da rotina, e a
fora herclea na rigidez do brao. O que nos tem fal-
tado a prohibio de que a instruco publica seja a
manta de retalhos, d'onde tire cada interesse partid-
rio ou particular um pedao para se cobrir. O que nos
tem faltado a convio de que a instruco publica,
nas suas infinitas manifestaes, deve hoje ser entre
ns, no a accumulao estril da papelada, mas uma
monstruosa revoluo, que reconstrua a Ptria, desde
os seus fundamentos da educao e do trabalho, trans-
formando um povo que vegeta, n'um povo que viva.
PARTE II
I
Voltando a pagina, encontramos, como natural, a
iniciativa particular esforando se por derramar a ins-
truco profissional.
Ora aqui est um instituto deveras sympathico:
Sabemos todos o que so actualmente as creadas de
servir: enxames de impossveis, entrando azafamadas
nos escriptorios, sahindo d'elles, no se conservando
36G A MULHER EM PORTUGAL
nas casas, exigindo dias semanaes para seu recreio, e
no inspirando a minima confiana. Surgiu uma ideia
redemptora; e a sr. Viscondessa de Carvallio, que tan-
tas vezes apparece n'estas lidas benficas, disse cora-
sigo:
Fundemos uma associao protectora para educar
costureiras e creadas de servir.
Bella semente esta ideia, principiada a realisar em
1883, e com to bons fructos!
Devi benemrita sr.^ D. Maria da Purificao Jos
de Mello, Secretria da Associao, ser-me dado ver
miudamente o instituto. Vl-o em geral facultado a
quantos o desejem.
Vi e observei a singeleza, a modstia, do estabeleci-
mento. Nada de francez, de musicas, de tendncias
ambiciosas. Est ali a verdadeira costureira ; est ali a
verdadeira creada de servir. Mira-se ao comportamento
moral, simples leitura e escripta, e logo aprendi-
sagem do trabalho de uma casa, a todos os servios
domsticos, a talhar, costurar, fazer vestidos, lavar,
engomar, pentear, cosinhar, e ao tratamento nas doen-
as. Ha cuidado especial em educar o espirito para ga-
rantir uma segura confiana.
No queremos unicamente fazer boas serviaes
diz a Associao;
Sou portugueza.
E accrescentou logo, com um ligeirssimo sorriso,
que mal poude comprimir:
diz
o
professor Buttler n"um seu Relalorio
^encheriam um
-volume
!i>
Calcule-se a quanto subiro os milhes ap-
plicados para o ensino profissional da mulher.
A MULHER EM PORTUGAL 38
1
Citarei a Rssia, to desptica na politica, mas
j
to adiantada na instruco! Ressalta-nos d'entre as
escolas profissionaes para a mulher o formosissimo In-
stituto particular de Kharkow. Fundaram-n-o sessenta
professoras, e dedicaram-lhe o seu trabalho pessoal.
Milhares de mulheres teem sahido d'este estabeleci-
mento para professoras, ajudantas de cirurgia, aias de
creanas, e outras pioisses. Peo atteno para um
ponto original e importantissimo : esta Sociedade faz
leituras publicas s classes populares, sendo um dos
intentos principaes julgarem as leitoras, pelas impres-
ses do momento, as apreciaes feitas pelo auditrio.
Uma grande Commisso de professoras escreveu ento
um livro, resumindo as observaes feitas por ellas du-
rante as leituras, e segundo as conversaes que pro-
vocaram
;
comprehende esse livro a analyse de 2:500
obras, e tem por titulo : <s-Qm dar a ler ao povo?)) A
questo principal era saber praticamente se se devia
crear uma lilteratura especial para o povo, ou se as
obras da litteratura geral seriam accessiveis s classes
populares. Duas correntes se formaram na opinio: a
primeira, em favor da creao de uma litteratura espe-
cialmente popular, teve por si, entre outras cultas in-
teUigencias, o grande litteralo Tolstoi. Teve tambm a
seguuda muitos partidrios illustres, que entendiam
deverem-se fazer conhecidas do publico as obras-primas
da litteratura russa, e estrangeira, embora se resumis-
sem, e at se mutilassem s vezes. Esta questo de
primeira ordem para a vida social de cada nao. .1
tentativa das professoras demonstrou que a litteratura
geral apreciada pelas classes populares. Este assum-
pto foi largamente exposto no excellente Relatrio da
382 A MULHER EM PORTUGAL
sr/"" Christina Altchewsky, apresentado no Congresso
e Paris por occasio da Exposio universal de 1889.
VII
No pretendi seno apontar estes exemplos estran-
geiros, que nos servissem de comparao com o estado
do ensino profissional da mulher portugueza. Acaba-
mos de ver como elle est atrazado! Uso de uma ex-
presso de galantaria quando digo atrazado. Melhor
direi, com as cartas na meza: no o possumos. A
administrao central da inslruco publica durante
meio sculo tem-n-o deixado jazer no mais completo
abandono. Em geral, na prpria classe elevada, a
tendncia nacional pende muito mais para uma instru-
co de ornato do que para um ensino de utilidade pra-
tica !
Como vimos at aqui, e ainda depois continuaremos
a ver nos Institutos de regenerao de Lisboa e Braga,
na caridade da iniciativa particular que poderemos
encontrar um desenvolvimento mais largo do ensino
profissional para a mulher. Honra lhe seja ! Mas o que
existe n'este gnero, e to glorioso para o paiz, tor-
na-se relativamente uma victoria em contraposio ao
que no possumos. E todavia, quanta dedicao ! quan-
tos esforos e sacrifcios no est pondo por obra o
elemento feminino, para fundar e sustentar estes esta-
belecimentos redemptores ! Sim, dedicao e sacrifcios,
por parte d'estas hericas damas, sacrifcios que bem
deveriam ser imitados por um immenso numero, mudo
espectador d'este movimento admirvel. Porque (urge
A MULOER EM PORTUGAL 38)i
dizel-o) esta iniciativa de umas, e esta cooperao das
outras, abrange, no ha duvida, um grupo numeroso
;
mas quando o analysamos na pratica d'esses esforos
e nos servios com que a mulher advoga a causa do
seu sexo, vemos que esse grupo lucta s por si pr-
prio, e no v ao seu lado um reforo de auxiliares,
que distribua tambm uma parle dos seus haveres, e
empregue os seus servios pessoaes n'este assumpto
vital para a nao.
Ah ! minhas senhoras ! lanae os olhos para estas
classes desvalidas, que no sabem trabalhar, que no
teem que fazer, ou que, pelo atrazo das industrias na-
cionaes, nunca podem chegar a reunir economias para
os dias nefastos da sua impossibilidade. Das vossas co-
roas de brilhantes, vs, que sois nobres, e dos vossos
dias de trabalho, vs, que pertenceis s variadas clas-
ses laboriosas, arrancae algumas jias e ?lguns servi-
os, para augmentardes os institutos profissionaes,
fontes de riqueza para a mulher. DesHza
j
um modesto
rio de amor e beneficncia ; convertei-o num mar, vs
que o podeis fazer, do meio d'esses theatros, onde vos
divertis, do centro d"esses campos, onde o sol vos al-
lumia a fronte, que a fome no enruga. No deixeis
succumbir as vossas iniciadoras compatriotas na lucta
do bem, em que se empenham! no deixeis estagnar
os seus benficos esforos ! Que no se vejam sempre
os mesmos nomes nos documentos da cooperao cari-
tativa, nem se oiam sempre as mesmas vozes bra-
dando ! Foi feita para mais alguma cousa do que para
gosar, a mulher abastada
;
quanto mais a rica ! Diz-se
que o homem tem debaixo dos ps o campo da honra
para batalhar em favor da justia. Vs, se no sois
384 A MULHER EM PORTUGAL
soldados da guerra, cumpre-vos serdes todas (como
j
vae sendo um grande numero) as guerreiras da bene-
ficncia, n'este campo, da honra tambm, onde, se no
ha Imprios para conquistar, ha outra victoria mais
gloriosa : fazer recuar a misria, e dar ao ente fraco o
thesouro do trabalho.
CAPITULO III
A mulher nas suas condies educativas
Foram os primeiros annos da nossa epocha liberal
uma transio da sociedade que desabava para a so-
ciedade que renascia. Uma batalha destroa em algu-
mas horas um exercito inimigo, e at aniquilla uma
causa ; uma sociedade no desapparece como as visua-
lidades scenicas.
A epocha liberal recebia ainda os costumes da vs-
pera, mas ia alteral-os paulatinamente, como prprio
da organisao humana. O regimen absolutista desco-
nhecia a vida social e democrtica, e as classes esta-
vam distanciadas por barreiras, que no se transpunham.
A sociedade alta dividia-se em grupos, conforme os
laos do parentesco, formando cada grupo uma reunio
differente. Os no parentes (cognominados oitos e no-
ves) gosavam, como os Brbaros entre os Romanos, do
direito de cidade, pelas prendas ou pelos haveres. O
386 A MULHER EM PORTUGAL
bemdito ouro, sempre adorado, como o bezerro em
todos os sculos f at mesmo a troco de serem calca-
dos os mais melindrosos preconceitos I. .
.
Mas ento as paixes nos nossos theatros? a feira
das nossas Avenidas? O menino alado sacudiria as
azas e desappareceria sem victimas? Por Yenusl (per-
doe-se-me esta invocao, que, por uma Vnus que eu
invoco, andavam ento muitas pintadas nos tectos das
salas)! para no desapparecer o menino alado, l es-
tavam os primos e as primas.
Hoje anceiam todos por casar, e casam e brilham
;
no sei bem como, mas casam e brilham. Ento, os
filhos segundos no casavam; assentavam praa em In-
fanteria i ou em Gavallaria
4, ou refugiavam-se nas
Conesias da Patriarchal (o que no os impedia sempre
de se irem apaixonando pelas primas). Para estas, coi-
tadas, as Conesias eram a clausura, a escravido na
casa fraterna, ou o casamento de encommenda. Mas
em quanto no luzia o casamento de encommenda,
apertavam os primos e as primas as mos nas contra-
danas, e escreviam-se mutuamente cartas romnticas
de dezasseis paginas e com linhas atravessadas, o que
fazia trinta e duas, em papel arrendado, enfeitado de
coraes atravessados de settas. Feitas as contas, cada
um d'aquelles ardentes folhetos se podia resumir em
duas linhas : Amo at morte, e morro de cimes
toda a vida. As quadrilhas francezas, novidade da
moda, eram marcadas pelos condescendentes, que,
para fazerem a bocca doce aos apaixonados, e s vezes
a si mesmos, multiplicavam o grand' chaine, e o grand
rond,
j
se sabe para qu.
No entrudo, a loucura nacional. Na Quaresma, como
A MII.HEU I:M POHTliAL 38:
no se danava, os afamados jogos de prendas, para
saber cada um por que estava na berlinda (convertida
em carta de amores) ; e cavatinas, e mais cavatinas, da
Clara de Rosemberg, da Festa da Rosa, e da Ita-
i
liana em Argel >
O immortal e perigoso Te souviem-
tu, Marie chegaria brevemente, mas ainda era suspeito.
Na Semana Santa os Ollcios em grande orchestra ter-
minados de madrugada. Na S, tudo quanto havia co-
nhecido em Lisboa ; ia-se ah ou\ir principalmente o
solo do Miserere, cantado a primor, e que ficou tradi-
cional : Ensinarei aos mpios os teus caminhos, e os
mpios se convertero para Ti.
Em educao publica feminina brilhavam duas in-
stituies ambulantes : uma, sobre o burrinho mais pa-
cato da Capital, a outra no mais inoffensivo cavallinho
do mundo. No primeiro, equilibrava-se na sua cadeiri-
nha, desde a manhan at noite, a popular e ancian
Madame Collao, com os seus britanico-amarellos cara-
coes. No outro, erguia-se, com o seu sorriso doce, um
dos artistas mais sympathicos, e ainda conhecido da
actual gerao, o Manuel Innocencio. A primeira cor-
ria os palcios a ensinar as hnguas ; o maestro ensinava
piano. Quando, cada dia, se encontravam pelas ruas
n'aquelle corropio os dois coUegas, sorriam-se um para
o outro, como se dissessem
:
C andamos no fadrio
!
Senhora que se presasse nunca punha os ps na
rua. As carroagens paravam s portas das lojas, vindo
os caixeiros mostrar as fazendas, e os ourives as jias.
A neve, tomavam-n-a dentro das mesmas carroagens,
porta do ainda existente botequim do Terreiro do
Pao.
388 A MULHER EM PORTUGAL
Para as classes medias o refresco era n*esse mesmo
Terreiro do Pao, no Ces das Columnas, onde se sa-
boreava o bello caramello, merguliiado em agua fresca
repenicadamente apregoada. Theatros, roupa de Fran-
cezes. O de S. Carlos, fechado nos ltimos tempos,
para evitar conspiraes. Nos da rua dos Condes e
Salitre, nenhuma familia sizuda podia ir assistir quel-
les equvocos repertrios (decentes, ainda assim, se os
compararmos aos que hoje formam, em grande parte,
o curso de educao moral das famlias).
A epocha liberal veio transformar o que fica indi-
cado. O enxame dos emigrados importou ideias e cos-
tumes novos ; depois o carro marchou por si mesmo.
lei de todos os sculos a transformao ; mas o que
mais varia e a forma. vida da famiha succedeu a
pouco e pouco a vida social ; as classes alias foram
descendo proporo que as classes baixas foram su-
bindo. Surgia e entremeava-se a burguezia. A classe
financeira luzir depois.
Assim como mantilha succeder o nacionalissimo
capote-e-leno, do mesmo modo deu este a si prprio
os foros archeologicos. Hoje uma senhora nas ruas
differena-se da sua creada, quanto a vesturio, em
andar esta com o trajo da sua ama em segunda edio
no correcta e augmentada, mas impressa em typo sa-
fado. Poucas cidades tanto como a nossa se teem ni-
velado nos costumes sociaes. No louvo, nem censuro;
descrevo'
A onda irrompeu ento. As ruas de Lisboa viram-se
atravessadas por um carrinho guiado por um cavalheiro
de sorriso immortal, levando sentado ao seu lado es-
querdo um lacaio. Para que a palavra soasse mais
A MULHER EM PORTUGAL 3 89
constitucionalmente, os lacaios passaram promoo
de grooms. Aqiielle cavalheiro era o primeiro Ministro
e Presidente da Camar dos l'ares. O exemplo do Du-
que de Palmella, exemplo que no era seno o dos
Prncipes da Europa, foi seguido pela primeira classe.
Abria-se S. Carlos, e principiaram as grandes bata-
lhas de palmas, pateadas, e partidos. A S. Carlos fez
logo concorrncia o theatro da rua dos Condes, que se
arvorou em moda. Estreiara-se ali uma Companhia fran*
ceza de declamao, introduzindo a nascente escola ro-
mntica. Toda a gente conhecida ia ali vr brilhar a
primeira dama dramtica, madame Charton. Emilio
Doux, actor mediocre dessa mesma Companhia, mas
d'am talento inissimo para director e ensaiador, creou
ali em seguida (e pertence-lhe essa gloria) a primeira
companhia portugueza, de Dias, Epiphanio, o grande
e mallogrado Ventura, e Emilia das Neves, ao mesmo
tempo que Almeida Garrett fundava naquella mesma
scena o moderno theatro portnguez, com o seu Auto
de Gil Vicente. O Conde do Farrobo, assumindo as
duas emprezas por um acto de bizarria digno da sua
alma grandiosa, deslumbrava o publico apresentando
em S. Carlos as operas e danas com uma riqueza de
espectculo, como nunca mais a capital presenceou, e
mandando representar no mesmo S. Carlos pela com-
panhia portugueza, com egual deslumbramento, os
dramas, D. Joo de Marana, O Ultimo dia de Veneza,
e outros. Ao mesmo tempo institua duas vezes a opera
cmica em Portugal : uma na rua dos Condes, outra
no seu prprio theatro das Laranjeiras.
Despontavam as funces. O Duque de Palmella,
Presidente do Conselho, abria o seu novo palcio do
390 A MULHER EM PORTUliAL
Calhariz, dando um baile de conciliao, para o qual
convidava as familias constitucionaes, e as realistas.
Sob a sua presidncia iniciava-se o afamado Club do
Carmo com os celebres bailes da segunda feira de en-
trudo, que chegaram ao nosso tempo. Instituia-se a
Assembla Philarmonica para os seres musicaes, e
a Assembla Ingleza para bailes esplendidos.
Dentre os bailes, porm, surgiram uns, que logra-
ram levar a sua fama prpria Paris: os do Marquez
de Vianna. O seu palcio do Rato era um deslumbra-
mento de luxo, luzes, musica, dana, de tudo quanto
podia estontear os phantasiosos espritos da juventude,
presidindo a tudo o bom-gosto, que dinheiro nenhum
consegue, porque o bom-gosto um condo mysterio-
so. Ali, destacando-se de todos, ostentava-se o vulto es-
culptural da sr."" Infanta D. Anna, o ramalhete das me-
ninas Kruzes, o collo arrebatador de D. Marianna Pon-
te, o talento gentil, que se revelava na fronte expres-
siva de D. Sopbia Jervis, a graciosa Condessa de
Mello, uma das mais sympathicasintelligencias da nossa
terra, e (para no estender citaes) dzias de borbo-
letas, com os seus sorrisos de esperana, e o bulcio da
sua verde mocidade.
Estava aberta, finalmente, a vida publica da nova
epocha nacional.
U
A sociedade portugueza principiava a transformar-se
nos seus costumes, e assim veio seguindo durante
meio sculo at o nosso tempo.
A (juesto moral da mulher depende, na mxima
A MULHER EM POUTUiAL i91
parte, da questo moral-social. Vejamos, por isso, ra-
pidamente, o estado actual, como necessrio undo do
quadro, centro essencial da sociedade feminina.
Oue temos diante de ns ?
Instituio nenhuma pode resistir ao tempo. Servios
importantes deve Portugal ao systema parlamentar ; e
para o attestar bastaria, como sua pagina de ouro, de
1842 a 1846, a misso desempenhada pela Gamara
dos Pares, que precedeu a revoluo do Minho, para
cujo resultado tanto concorreu a mesma Gamara com a
sua enrgica independncia. Mas o systema parlamen-
tar (foroso dizel-o) tem decaindo successivamente,
e d'elle no resta seno a sombra, no complexo das
suas condies.
Fulguram nas legislaturas talentos brilhantissimos;
as sciencias e as lettras so ali representadas com sum-
ma distinco, sendo at de um dos seus mais levanta-
dos espirites estas imparciaes palavras
:
No s nosso o deleito ; est-se sentindo em to-
dos os Parlamentos do mundo
;
e se as
discusses insensatas, se as manobras indecorosas
a
esto deshonrando por toda a parte o Parlamentaris-
mo, mais contribue ainda para o desacreditar o obs-
truccionismo, que est sendo o caracterstico do nosso
paiz.
O Parlamentarismo est viciado na sua origem, e
nos seus resultados. Quem ignora que as eleies pe-
ridicas hajam sido ura foco de corrupo moral? mas,
peor ainda : esta corrupo imprime a sua intluencia
oas condies geraes, contaminando os espiritos para
392 A MULHER EM PORTUiAL
as outras relaes da sociedade. O Parlamentarismo
cahiu no descrdito publico pelo seu estado interior,
pelo theatral apparato com que attrae o publico em se
esperando scenas de doestos pessoaes, ao passo que
v desertas as tribunas quando se trata de questes
serias. Em no menor descrdito cahiu, por se ver
que, em grande parte, o interesse particular, a anci
de carreiras, e a convenincia partidria, so elemen-
tos em que elle praticamente se baseia. A prova capi-
tal da sua decadncia, tem-n-a o Parlamentarismo em
si prprio. Por uma espcie de conveno tacita entre
os partidos, tomam-se
j
como principio corrente as
successivas dictaduras, e combatem-n-as todos com as
mesmas palavras, entrelinhadas com os mesmos sorri-
sos.
Isto no quer dizer que o systema parlamentar deva
perecer. Tal como est, que tem os seus dias conta-
dos. Desempenhou-se da sua misso. Uma reforma es-
sencial, que lhe revitalisasse a existncia, poderia por
ventura tornal-o ainda proveitoso para as instituies
politicas da nao.
A que vem estas consideraes ? entram como con-
sequncia do meu projecto de esboar aqui o quadro
da desmoralisao que tem empeonhado o paiz.
III
Tambm se encontra viciada uma das instituies
mais sympathicas do systema liberal. para entriste-
cer o presenciar at onde se tem abysmado o Jury eu-
A MULHER EM PORTUGAL 393
tre ns I Uma serie de decises absolutrias tem indi-
gnado a conscincia publica, invertido todos os princ-
pios de justia, e dado carta de alforria aos criminosos,
absolvendo o assassinio, sanccionando o roubo, derru-
bando os fundamentos da ordem social, e auctorisando
o exemplo do mal, que o mximo perigo que pode
existir n'uma nao. A receita absolutria
j
no illude
a ningum. Testemunhas que faltem, ferias que se
aproximem, preparo dos empenhos doirando a tendn-
cia geral para a absolvio, tudo so delongas que vo
arrefecendo a opinio publica.
O favoritismo no provimento de empregos, as pre-
ferencias contra aptides comprovadas, o sophisma dos
concursos, tudo so pontos aceitos do modo mais na-
tural.
Na questo dos concursos, preparam-se scenas chis-
tosissimas. D'entre muitas, indicarei uma ao acaso.
Abre-se concurso para um logar de primeiro official.
Um dos concorrentes excede com provas brilhantes os
seus companheiros (o Jury assim o declara com justi-
a). porm nomeado outro. Abre-se depois concur-
so para um logar de segundo official ; concorre tam-
bm o brilhante candidato preterido ; mas d'esta vez
apresenta as suas provas inferiores s de outros can-
didatos, e elle o provido; de modo que as conve-
nincias preteriram o mesmo candidato quando fora o
melhor, e nomearam-n-o quando teve quem lhe levas
se a palma! Aiada assim.. . salvou-o a alchimia offi-
cial.
394 A MULHEK EM PORTUGAL
IV
Os theatros devem-se considerar, no o pallido refle-
xo da vida, como o livro, mas a prpria vida, real e
palpitante. Tudo o indica. No a simples descripo
no gabinete de estudo, ou no camarim solitrio ; so
os sentimentos e as paixes communicando-se, exci-
tando-se pela convivncia da multido, pelo brilhantis-
mo das luzes, pela exploso dos applausos, ou pela
electricidade do riso ; e por ser tudo isto, que o
mais perigoso excesso de todas as manifestaes do
pensamento reside no Theatro
;
por ser tudo isto, que
o centro mais importante para a formao e desenvol-
vimento dos costumes reside na scena. Para a educa-
o nacional, o Theatro mais do que a Escola, oLy-
ceu, ou a Universidade; o instituto geral e social
para ambos os sexos, e para todas as edades. Esta
grande instituio, no Reino todo, congregando as clas-
ses, em centros attractivos, no encontra meio termo
;
pode ser a instituio mais moralisadora, ou a mais
perigosa.
Ora pergunto a quantos espritos justos e srios haja
neste paiz, que so ainda felizmente em grande nu-
mero :
Os theatros em Portugal, e sobretudo em Lisboa,
elevam o espirito publico, ou, pelo contrario, reflectem
immoralidade e menos decncia? Concorrem para a
confraternisao das classes, ou apresentam focos de
reciproca animadverso ? Os personagens apresentados
multido so generalidades apenas, ou so photo-
A MULHER EM PORTUGAL
395
graphias de individuos existentes? No so estes ali
cobertos de ridculo V No se invocam leis imprprias
de um povo civilisado, para oTender todos quantos,
pelo facto de serem cidados, teem direito ao respeito
geral
?
E a uma tal escola de educao, menos moral e me-
nos decente, levam os pes, no correr de cada anno
(sem pressentirem o perigo), suas mulheres e suas fi-
lhas, que, por emenda peor do que o soneto, disfar-
am
j
por fim na sizuda simulao dos rostos, quan-
do as platas lanam o olhar para os camarotes nas
occasies criticas das peas, a impresso das scenas
escabrosas.
Bem sei que os theatros no devera ser egrejas,nem
as peas sermes, e que preceito theatral castiga-
remse os costumes rindo; mas entre a graa franca eo
riso indecoroso ha um abysmo. Este assumpto dos
theatros de certo um dos que mais teem concorrido
para o deterimento dos costumes, por serem os theatros
escolas geraes e permanentes.
Sobre estes elementos, ainda outros, que por sua in-
fluencia no so indifterentes para o estado geral.
Principiaram por poucos os suicdios ; agora ha dias
de dois, e de trs. O conhecimento d'elles imporia
para as famlias a revelao da fraqueza do animo do
suicida, que no teve o valor de arrostar com a ad-
versidade. O suicdio pode ser uma epidemia parcial
;
mas, graas a Deus, nem toda a gente se quer matar.
390 A MULHER EM PORTUGAL
O seu maior perigo publico a contaminao pelo
exemplo.
Invade-nos, por outro lado, o estrafigcirismo. A mu-
lher em Portugal tem de portugueza a terra que piza.
Em grande parte so estrangeiros os moveis das suas
salas, as alcatifas dos seus gabinetes, os livros que lhe
formam o caracter, os trajos com que se adorna, as
listas dos seus jantares. No sabe muitas vezes em que
lngua lhe falam, ou que linguagem l. Uma grande
parte dos nomes francezes, que, por decoro nacional,
ainda .e mascaravam de gripho, tomou
j o direito de
cidade. A lingua, que a grande raiz de um povo, est
tropeando, no s nas palavras, mas (o que ainda
peor) na construco. Se no quizer passar por uma
semsaborona nas salas, a mulher ha-de responder ao
espirito dos affectados, com o espirito, que tem tanto
de nacional como a prpria palavra substituda ao que
se chamava o chiste, a graa. Aformoseie-se nobre-
mente com a modstia, respeite-se no claro escuro da
sociedade, e arrisca-se a no casar com algum titulo
nobiliarchico, ou a no conquistar uma fortuna finan-
ceira Livre-se de ser bondosa, para no a accuzarem
de carecer dos espinhos com que as rosas teem o di-
reito de ferir.
\I
Para no me alongar, suspendo aqui este resumo do
quadro social, onde a contaminao do exemplo se
torna evidente.
E todavia, uma cadeira do nosso primeiro estabele
cimento scientifico ensina platonicamente s geraes
A MULHER EM PORTUGAL
397
que a Justia a base do Direito ! As geraes vem
para a vida publica, e vendo que a Justia se desfaz
como a bola de sabo, lanam-se na voragem do utili-
tarismo, para no cahirem na innocencia de se alimen-
tarem com sopas de honra.
neste centro social, n'uma desconsoladora situa-
o de rebaixamento moral, de falta de principios s-
lidos, de decadncia do caracter da nao, de pouco
apreo dignidade, de esmorecimento de crenas, de
reciproco azedume envernizado de amabilidade exterior,
e de ambies desregradas, a atropellarem os principios
elevados para chegarem mais depressa aonde os outros
chegaram primeiro, que a mulher se v collocada !
!
esta a influencia que ella involuntariamente recebe das
instituies, dos factos, dos exemplos, no podendo,
como no pde, desviar-se do centro em que vive !
!
Accresce ainda um facto, e este -lhe especial: o
abysmo do luxo. E quando assim me expresso, no
me refiro ao luxo em absoluto, s grandes riquezas,
mas sim ao desequilbrio entre os haveres financeiros
de toda a variada escala dos lares, e a necessidade,
embora ficlicia, da apparencia social.
Quem no conhece este cancro ?
Quem no v nos theatros, nas avenidas, nas ruas,
as nossas jovens concidadans, com os seus collos del-
gados, as suas cinturinhas esticadas, o seu andar pu-
lado e incerto, e sobretudo os seus rostos macilentos ?
v-se em tudo isso, no direi propriamente a fome,
mas o roubo do alimento necessrio \ida, n"um paiz
quente, doentio, e sem educao physica.
E todavia, ter alguma culpa a mulher portugueza
do complexo dos elementos que vieram formando, como
398 A MULHER EM PORTUGAL
OS negrumes que amontoam a tempestade, a situao
exposta ? Como sahir das encruzilhadas de um tal la-
byrinto ?
Aqui desafoga por momentos o espirito, no meio do
turbilho que nos rodeia.
uma lei social que nas civilisaes ha sempre uma
tendncia para reagir. Um dos grandes exemplos da
Historia encontramos, ao desabar o corrupto Imprio
Romano, na moralisadora seita do estoicismo. Cumpre
fugir da exagerao, quer no bem, quer no mal, e
mesmo no meio de trevas nunca perder a esperana.
No desconheamos no paiz uma grande parte d'elle,
em que a mulher, de todas as classes, honra o seu
sexo : mulher cuja famlia arde nos laos santos da
verdade e do amor : mulher em cuja vida brilham os
exemplos do bem ; mulher cujo caracter se no rebai-
xou; mulher em quem a dignidade e a educao se
elevam a principios, e se realisam como deveres. Re-
gosijemo-nos ! mas reconheamos (e o que desejo
frisar n'este assumpto capital) que um perigo enorme
reside na tendncia para o precipcio successivo da
sociedade, e que essa tendncia geral passa a influir
muito na mulher, principalmente quando a sua vida
social lhe tem aberto novos horizontes pela frequncia
dos theatros, dos circos, das exposies, dos concertos,
dos passeios, dos campos, das praias, e outros logares
concorridos.
Ao principio, nenhuma senhora entrava num ouwi-
btis: hoje entram nos americanos. Outrora nenhuma
senhora assistia aos espectculos seno em camarotes;
hoje. . . (e ns todos que o digamos, pobres victimas
dos chapeos e dos penteados) as plateias enchem-se
A MULHER EM PORTUGAL 399
de senhoras. No censuro nada d'isto; aproximo ape-
nas a sequencia dos factos sociaes, para comprovao
do assumpto que exponho.
VII
A quanto levo dito accresceu o resfriamento do ele-
mento religioso, e da educao moral.
Um poeta, cheio de talento, embora sceptico, mas
que chorava as lagrimas do seu scepticismo, cantou
esta confisso sincera, que transplanto do livro d'elle
pela bella nacionalisao que d'elle realisou Fernandes
Costa
:
J tudo sei ! Do mundo nos arcanos
no vejo escurido
o que chama niysterios sobrehumanos
o vulgo da raso.
AJas ah ! que quando exclamo satisfeito
J tudo a mente v,
Sinto aqui no meu intimo, no peito
um mal, um no-sei-qu. .
.
E o mesmo Bartrina accrescentou
:
Se no ha Deus, nem alma, nem tambm
outra vida melhor do que a terrena,
pergunto : Para que, porqu, e quem,
ao supplicio da vida nos condemna ?
400 A MULHER EM PORTUGAL
O imparcial poeta catalo, que era ao mesmo tempo
um erudito, imaginou a sociedade chegada ao momento
de saber tudo quanto humanamente se podesse saber;
mas, esgotada toda a sciencia, falta-lhe ainda alguma
cousa para alm d"ella ; e insaciabihdade do saciado
chamou a condemnao de no haver um Deus, uma
alma, e uma vida melhor.
VIII
Exposto o estado actual como fundo do quadro, e
vista n'elle a mulher, que no podemos arrancar da so-
ciedade para a coUocar no mundo dos espaos, no creio
que, para acudir s perniciosas influencias exercidas
nella, possa haver outro meio seno uma sohda educa-
o baseada no principio religioso e no elemento moral.
A nao que no se estribar no principio religioso,
uma nao cheia de perigos, porque, tendo a natu-
reza humana de equihbrar as suas foras moraes, co-
mo equilibra as suas foras physicas, carece d'um po-
der que se opponha s paixes, derivadas tambm da
mesma natureza. Sustentar o sentimento religioso
,
por conseguinte, sustentar uma lei natural de primeira
ordem ; afrouxal-o nos costumes pblicos arrancar
das relaes sociaes uma ancora de refugio.
No existe Deus, nem alma, nem conscincia, porque
nem os homens os vem, nem a experincia os palpa.
Mas o ente humano encerra um espirito (mortal mes-
mo, supponhmos). Pois bem. Este espirito, que nin-
gum viu nem experimentou, o nosso prprio tiranno,^
que nos diz
:
A MULHER EM PORTUGAL 401
05 degenerados
pag. 29.
406 A MULHER EM PORTUGAL
Fia consignada n'um canto da reforma dictatorial
de 1870 uma disposio, que valia por uma lei, e pela
qual todas as sobras annuaes dos diversos ramos da
instruco publica (e estas sobras elevam-se a contos
de ris) seriam destinadas a
....(M
E sobretudo, se os institutos primrios no so suf-
ficientes, com a organisao actual, para reunir a ins-
truco e a educao, urge uma grande reforma: a
separao delias duas.
At agora a educao no tem sido seno uma ser-
va da instruco. Quaesquer que sejam os sacriflcios.
indispensvel que cesse este enorme infortnio, e
que a educao, nos seus ramos, physico, moral, hy-
gienico, e domestico, adquira uma independncia pr-
pria, formando-se cursos especiaes nos centros mais
importantes, abrangendo esses cursos todas as ques-
tes d'estes assumptos, no em generalidades, mas
com amplos desenvolvimentos. Nos centros menos po-
pulosos, em que a emancipao completa no se possa
realisar, eleve-se mais a educao, e torne-se effectiva.
XI
No ver o actual estacionamento, e cruzar os braos
diante da rotina, em matria d"esta gravidade, um
perigo immenso.
No pde haver a preteno de educar de repente
O
Xota do editor.Este capitulo tinha n'este logar uma la-
cuna.
A MULHER EM POIITUGAL 407
todas as mulheres; mas haja esse desejo santo em
relao ao maior numero.
E em todo o caso, se a sociedade proseguir no de-
chvio, nem por isso terminar os seus dias; mas ter
ento de se reorganisar sobre bases novas e novos
costumes, que no supponho serem os do levantamento
do espirito e da dignidade humana.
CAPITULO IV
A mulher nas suas condies scientifcas
Quizera dar-lhes o meu humilde voto; e se a cons-
cincia no brigasse com o desejo, quanto folgaria de
ficar vencido diante da maioria que me supplantassef
PoYam-se as galerias da Gamara quando se aguar-
dam os discursos que levantam calefrios pela espinha
dorsal. Como no seria encantador ver, de um lado a
financeira Ministra, no meio de columnas de algaris-
mos, a desembaraar a meada da Directora Geral da
Contabilidade publica ; e do outro lado, sahir das ban-
cadas opposicionistas a aspiranta pasta, despedaan-
do com as delicadas mos a sua carteira, pedindo ao
boquiaberto continuo um copo de agua mais assuca-
rada do que as imprecaes dos seus lbios gentis,
despedindo settas de clera de uns olhos que no fo-
ram feitos para ella, tempestade dos applausos das
suas apaixonadas partidrias, leoas como a oradora I . .
.
A MULHER EM PORTUGAL
409
E no nos ser dado assistir a um espectculo des-
tes ! presencear os combates em que o sexo dbil veu-
cia, no pelo poder do numero, mas com as armas da
sympathia, cousa de que alis ainda no resam, por
ser desnecessrio, os regulamentos da Gamara ! Que
imprio no teria a maviosa voz feminina ! que incer-
tezas nos bancos ministeriaes ! quantos roubos parla-
mentares nas votaes perigosas ! E o grave Poder mo-
derador a ver dependente, s vezes de um olhar no
momento critico, s vezes de um capricho, o equili-
brio da sua esphera suprema
!
No tribunal havia de ser o caso ainda mais intrica-
do. As balas da palavra semelham-se s de papel. J
no fazem jorrar o sangue no cadafalso, ou, para dar
a cr verdadeira do costume nacional, correr na forca
o n da corda ; mas l est a Penitenciaria a negacear
de um lado, e a Costa d"Africa a attrahir do outro.
Teria um Jury attencioso a indelicadeza de dizer sitn,
quando uma gentil menina, entrajada em toga que lhe
ficasse a matar, lhe pedisse um no ? Quando pratica-
riam isso coraes de cavalheiros?
O Cdigo ! Quantos jurisconsultos presentes e futu-
ros no alirmaro que o supremo Cdigo o da ga-
lanteria ? O Cdigo ! Isso bom para os homens ! Na
grande revoluo juridica igualitria, outros factos, ou-
tros costumes. Pois no ha um elemento novo? haja
tambm novos motores.
E na monstruosa batalha triennal ? Custa a resistir
ao dinheiro, ao novo sino para a egreja da freguezia,
estradinha que nos leve o milho e a cortia ao ca-
minho de ferro; custa a resistir collocao do filho
bacharel; mas (confessemos a fragilidade humana)
10 A MULHER EM PORTUGAL
quem resistiria ao satnico papelinho fechado em qua-
drilongo, alvo, perfumado, contendo o nome de uma
dama, e olferecido por sua mo engraada, como quem
offerecesse uma esperana, dividida por mil, ver-
dade, mas sempre uma esperana?
Diz-se dos doentes, que basta o medico entrar no
quarto para receberem meia cura. O que sentiriam en-
to ao verem entrar a elegante Doutora ? cura comple-
ta. Mas tudo tem compensaes: se o doente logo as-
sim se curasse, a Doutora s receberia de cada doen-
te o honorrio de uma visita, o que lhe no daria lau-
tos jantares; e o boticrio. .
. morria de fome.
No falarei dos exrcitos femininos, apesar de nos
dizer uma das Encyclopedias mais importantes da me-
dicina que podem existir esquadres de mulheres,
como os das antigas amazonas, se a educao as adex-
trar para esse eTeito.
No falarei das engenheiras nem das theologas, nem
de outras carreiras, que, perante a instruco geral e
as funces publicas, pressupem a egualdade dos
sexos.
II
Ora essa egualdade, que entendo no existe; e
este o ponto fundamental da questo.
Tem o homem mais fora physica do que a mulher;
e, ainda que muitas provincianas do Minho logrem apre-
sentar maior robustez do que muitos homens da cida-
de, o facto deve-se differente educao. O que pre-
side fora physica deve presidir fora intellectual.
Querem abrir para a mulher todas as carreiras po-
A MULHER EM PORTLT.AL 111
lticas e scientificas ? abram lhas. Temos j
n'este mo-
mento uma senhora portugueza medica, D. Elisa Au-
gusta da Conceio de Andrade ; a primeira em Por-
tugal
;
concluiu o seu curso na Escola medico-cirurgica
de Lisboa em 1889; tem actualmente o seu consultrio
para senhoras e creaeas, e tem j
realisado operanes
no primeiro hospital do paiz.
No Porto frequentam a Escola medica trs senhoras.
As secretarias de Estado tambm talvez chamaro por
ellas: e j
ha exemplos: uma empregada na Chancel-
laria municipal de Moscow foi nomeada chefa de repar-
tio. (Verdade seja, que o escripto d*onde extraio
este facto accrescenta: por ter mostrado aptides ex-
cepcionaes.)
Querem experimentar? Abram no paiz carreira s
eleitoras, s elegveis, s medicas, s advogadas, s
mathematicas, s engenheiras, que preencham as suas
respectivas funces como o seu sexo rival. Se se
conseguir o resultado, dobram-se a intellgenca e o
trabalho da nao. Se falhar a experincia, no nas ex-
cepes mas na generalidade, a questo ficar encer-
rada. As famlias podero perder o seu dinheiro, as
emancipandas o seu tempo : mas qual a experincia
que no pague o seu tributo ?
Digo-o sinceramente : uma questo de factos. Exa-
minados elles, ha-de vencer um dos dois princpios;
pelo correr dos sculos, talvez; mas emfim: um d'el-
les ha-de vencer, e as opinies no luctaro mais.
Comtudo, assim como sinceramente digo que se faa
a experincia geral, tambm sinceramente supponho,
em meu humilde parecer, que a emancipao poltica
e scientifica no um princpio natural da mulher.
412 A MULHER EM PORTlfGAL
Outras carreiras Ibe podem ser destinadas, outras fon-
tes lhe devem ser abertas; esta, no. Creio que se Ibe
oppem a sociedade, e a natureza.
A questo preconisada por Stuardt Mill, o chefe, ou,
pelo menos, um dos eminentes chefes da emancipao
absoluta da mulher, tem por fundamento o deixar de
se basear na natureza humana. As qualidades intelle-
ctuaes da mulher, em geral, no so iguaes s do ho-
mem; so diversas; e este facto deriva-se da organi-
saco de cada sexo.
m
Vejamos se a emancipao absoluta da mulher se
deriva da natureza.
O snr. Daily, na Encyclopedia das sciencias medicas
de Dechambre, no pode esconder as suas aspiraes
favorveis emancipao feminina, e por isso o seu
testemunho imparcial.
Y-se obrigado a confessar que a organisao das
mulheres em tudo mais delicada que a dos homens,
porque os systemas lymphatico e cellular predominam
no organismo feminino. Diz que a situao da mulher
nas sociedades europas especial, no lhe permittin-
do o desenvolvimento intellectual das faculdades men-
taes, nem sequer o das aptides physicas alm da ge-
nital
; e lembra que em Dahomey as amasonas, em
numero de milhares, constituem um exercito valoroso:
mas accrescenta: sendo votadas ao celibato. Quer di-
zer : para a mulher ser levada po?^ natureza igualda-
de dos sexos, necessrio desnatnraUsal-a da sua mis-
A MULHER EM PORTUGAL 413
so capital. Sendo assim, o nico remdio para o gnero
humano no desapparecer da face da terra, seria pas-
sar para o homem o encargo da maternidade. No sei
se o homem estaria disposto a fazer essa figura inte-
ressante ;
mas se estivesse, a desigualdade ressurgiria,
apenas com a mutao dos sexos;
Querendo ainda lanar o brao a uma taboa de sal-
vao, Daily declara no se seguir que a actual forma
da civilisao europa em relao s mulheres no d
logar a outra.
Quanto ao tempo da reforma educativa, poderia
Daily encontrar resposta n'um livro portuguez ainda
de hontem, to imparcial como o seu.
Para que um processo de educao bem entendida
podesse mudar a face da Europa,
Os degeneradospag.
229nota.
414 A MULHER EM POUTUGAL
Vejamos em resumo o que nos diz o Dr. Virey a
respeito das diTerenas esseiiciaes entre a organisao
do homem e a da mulher; quanto baste para aclarar
o assumpto:
A differena da conformao physica dos sexos
anloga s funcrues de cada um d"elles, O homem
destinado pela natureza ao trabalho, ao mso ilo pe.ma-
mento, a servir-se da raso e do talento para susten-
tar a famlia de que chefe. No homem a capacidade
do crebro considervel, e contm mais massa ence-
phalica do que o da mulher. A mulher no possue a
perseverana, a alta capacidade, e a profundeza; d"isso
lhe resulta a sensibilidade affectuosa, que a faz inte-
ressar-se pela infncia e pelos cuidados do lar. vista
d"estas dififerenas, a constituio physica da mulher
destinada para essas funces por uma Sabedoria ma-
ravilhosa. O homem vive mais fora de si mesmo, gra-
as ao vigor dos seus rgos e extenso do seu pen-
samento. A mulher, mais concentrada em si pelos seus
affectos e pela sua sollicitude natural. Elle recebeu em
partilha o talento e a fora. Ella a doura do trato. O
homem imprime em tudo quanto executa um caracter
de raso philosophica. A mulher presta a todas as suas
aces o encanto do corao. A mulher amada. O
homem i'espeitado. A cansa (Teslos differenas, ne-
cessrio attribuil-a d constituio de cada um dos se-
xos.
No homem a vitalidade expande-se para a cabea,
em quanto a mulher concentra a sua na matriz. Como
as creanas, possue ella uma carne tenra, e rgos fle-
xveis, que cedem com facilidade aos impulsos. Como
segue mais as impresses physicas do que o encadea-
A MULHER EM PORTUGAL
415
mento das ideias, entrega-se mais s commoes do
que raso fria e severa
;
procura as graas e o espi-
rito de sociedade, que o homem substitue por um es-
pirito mais apto aos negcios, pela solidez do raciociuio
e pela extenso de vistas.
Toda esta assombrosa disparidade dos sexos leva a
pensar que elles teem originariamente um principio
de vida diverso, e uma essncia prpria a cada um^^j.
Ainda mais significativamente, se possvel, se ex-
pressa o grande anatomista e profundo observador al-
lemo Burdach no seu Tratado de Physiologia conside-
rada como sciencia de observao, quando tambm
apresenta a differena fundamental dos sexos segundo
a natureza. Pouparei ao leitor as bases technicas rela-
tivas aos systemas sseo, muscular, e nervoso, e resu-
mirei as consequncias naturaes que elle ueduz da ob-
servao comparativa, para provar as differenas entre
o crebro do homem e o da mulher:
No crebro feminino predomina a vida interior, em
quanto no do homem predomina o complexo das rela-
es exteriores ; e como a analyse prpria do enten-
dimento, e a synthese o do sentimento, a tendncia
do homem para analysar, e a da mulher para syn-
thetisar. Um procura a luz ; o outro tem realmente em
si o calor. A organisao do crebro corresponde a es-
tas relaes. Os lbulos que teem maior desenvolvi-
mento no homem so os anteriores, os dianteiros, e na
mulher os posteriores. O homem tem a parte anterior
(1)
Virey
Livro I
Seco III.
416 A MULHER EM PORTUGAL
da cabea mais longa, a fronte mais elevada e desen-
volvida do que a da mulher ; ao mesmo tempo que na
mulher o occipicio est de tal maneira saliente na par-
te superior do osso occipital, e posterior dos parietaes,
que basta s esta circumstancia para se reconhecer o
craneo feminino. A mulher concebe melhor a existn-
cia real, do que a ideal, e por isso tem mais propen-
so para tudo que seja exterior, e menos para as ideias
que pem a intelligencia em aco. Tem pouca espon-
taneidade de espirito. A sua imaginao viva e ar-
dente, mas no faz seno reproduzir ; em quanto a do
homem mais forte, e verdadeiramente productiva.
No se encontra no sexo feminino a faculdade creado-
ra que rompe novos caminhos, e penetra nas profun-
dezas da sciencia. A mulher comprehende rapidamente,
e julga bem, mais por instincto do que segundo a re-
flexo, e antes por inspirao, do que tendo a con-
scincia dos motivos. Possue a sagacidade, e sobretudo
a prudncia, que o talento de se saber guiar na vida.
O bom senso das senhoras idosas reconhecido geral-
mente, e por isso so consultadas nas circumstancias
diTiceis ; mas a mulher no possue o talento de racio-
cinar, a faculdade das altas abstraces, a aptido de
ver as cousas na sua generalidade absoluta e indepen-
dente de Ioda a especialidade empyrica. Para que a
mulher se apodere de uma verdade, necessrio que
seja uma verdade intuitiva; e sempre que o descobri-
mento de uma verdade exija combinaes de racioc-
nios, e uma cadeia laboriosa de juizos, a mulher deixa
logo de estar no seu campo, ao contrario do homem,
que emprehende a demonstrao, e no quer d'ella sa-
hir. A essncia da mulher a delicadeza e a doura
;
A MULHER EM PORTUGAL 417
no homem dominam tudo a fora e a espontaneida-
de (1).
pois facto provado pela sciencia a desigualdade do
corpo humano nos dois sexos, quanto aos ossos, aos
msculos, e aos nervos. Ora as funces do crebro
dependem essencialmente d'estes elementos; e por isso
estas funces teem de acompanhar a desigualdade das
causas. Onde se viu que duas machinas, uma forte,
outra fraca, podessem apresentar um producto igual?
IV
A este fundamento natural accresce outro, que, em-
bora derivado tambm da natureza, se relaciona prin-
cipalmente com o estado social, devendo produzir con-
sequncias differentes
:
A mulher, tendo a imaginao mais ardente, com-
move-se com mais facilidade. Tudo quanto depende da
imaginao e da sensibilidade encontra eccho em seu
peito. A sua alma eleva-se pelo principio religioso ; a
crena encontra n"ella guarida : a mulher sorri aos sor-
risos das creanas ; encantam-n-a as flores ; afavel
para com os animaes, compadecida dos desgraados,
enthusiasta dos feitos hericos. Quantos amores no
teem provindo instantneos das aces valorosas ! O
gladiador da antiguidade era uma fascinao para a
(')
Burdach
Tomo I.
27
418 A MULHER EM PORTUGAL
mulher, como ainda hoje o o toureador, no por ma-
lar, mas pela franqueza com que expe o peito mor-
te. Igualmente significativo, mas ainda mais nobre, o
alvoroo com que recebe em seus braos o ferido nas
batalhas, quando a ferida foi consagrada Ptria. A
arte, nas suas variadas manifestaes, a imitao da
natureza pelo talento humano. A mulher
,
por assim
dizer, a arte viva, pelos encantos da sua formosura,
ou pela graa da sua elegncia, ou pela melodia da sua
voz, ou pela delicadeza do seu trato, ou pela doura
da sua companhia. EUa o elemento artstico da vida
;
cada uma na sua classe, entende-se, porque esphera
de cada famlia, e situao de cada homem, corres-
ponde cada mulher conforme a diversidade das posi-
es sociaes.
Tudo mostra no homem o positivo da vida ; na mu-
lher, a expresso do bello; e a harmonia do todo o
bem da humanidade.
Merece respeito a mulher, que, divergindo das suas
companheiras, se lanar nas carreiras publicas ou nas
scientificas : fal-o ella por impulso prprio, e porque a
sua educao a isso a encaminhou, e as suas faculda-
des intellectuaes tomaram um determinado rumo. No
faz essa mulher pequeno servio civilisao appli-
cando-se ao desenvolvimento do progresso. Mas como
a verdade universal no essa, respeito tanto mais
essa mulher, quanto no entra na generalidade. Assim
como ha diTerena entre o poeta e o poetastro, assim
existe entre a sabia e a sabichona. Molire no pintou
uma Stael nem uma Girardin; pintou a presumida, que
em logar do talento tem apenas a sombra d"elle, com
a vaidade de mais, e a modstia de menos.
A MULHEK EM PORTUGAL 419
Cumpre mulher educar o homem, no lhe cumpre
ser educada como elle. indispensvel que exista a
igualdade dos sexos, mas por um principio natural, e
no artiflcial. Mesmo quando a natureza lhe no ve-
dasse as qualidades politicas e scientificas, a mulher
que seguisse essas carreiras masculinisar-se-hia, teria
de endurecer o corao para affrontar o duro corao
do seu adversrio, teria de ennodoar-se nas intrigas
eleitoraes, de corromper-se na lucta pratica das assem-
blas politicas, de converter as doces qualidades do
sentimento no rancor das paixes, que ainda duplica-
riam de azedume enxertadas na fogosa imaginao de
que dotada. facto histrico averiguado, que, nas
tempestades revolucionarias a mulher se torna mais
vingativa e sanguinria do que o homem, exigindo mais
sangue, e excitando a atrocidades. Bem sei que nem
todas as mulheres se lanariam nas carreiras politicas
e scientificas ; mas a influencia anti-natural da que as
seguisse recahiria sobre a sociedade.
Como que esta mulher incutiria na familia os
grandes princpios da generosidade, do juizo impar-
cial? Como transmittiria a affabilidade e a doura, se
ella haveria de ter forrado o corao de qualidades op-
postas, sob pena de ser uma pohtica intil, ou uma
sabia pouco positiva ? Quando casada, e me, faria do
lar o seu reinado, se a vida teria de lhe ser toda ex-
terior e mundana ?
Remdio prompto :
diro
Para que se fize-
ram os collegios ?
Sim, os collegios realisam um nobre e grande ser-
vio no ensino, na ordem, na emulao; mas na educa-
o necessrio o perfume do corao materno. Onde
420 A iULHEK EM PORTUGAL
estaria ento aquelle mutuo accordo entre a geradora
e o gerado, entre a arvore e o fructo, sem aquella
transmisso dos exemplos ? sem aquella convivncia
nos annos das provas, que a mais alta de todas as
sciencias, e o mais eBcaz de todos os conselhos ?
A mulher-homem ! E este o progresso que viria
melhorar a humanidade, e que, em logar de fazer do
lar um centro de amor, o converteria em discusso
material, sem o formoso contraste entre as quahdades
viris do homem, e os dotes sensveis da sua compa-
nheira, da me de seus filhos ! Progresso, que nos
recuaria at epocha pre-historica, se verdade o
que nos dizem os antropologistas.
O professor Hackel, por exemplo, declarou que a
forma mais simples e mais antiga da reproduo fora
o hermaphrodsmo ; e, para defender o principio de que
o gnero humano era composto s de um sexo, ainda
ha pouco um illustrado doutorando, hoje Dr. Eduardo
Abreu exarou nas suas theses : que o antepassado pri-
mitivo do homem era um ser hermaphrodito.
Esta emancipao absoluta comprehendia-se ; mas,
confessemos que um sexo nico seria em verdade a
mais detestvel semsaboria que a terra podesse pre-
sencear. Se a these do sbio doutorando exprimiu real-
mente um facto, por antiga lei da natureza, superior a
ns, no lhe faamos ns uma parodia pelos costumes
sociaes, parodia que est em nossa mo evitar. E o
que succederia, se contrarissemos a desigualdade mo-
ral dos sexos, que aHs realisa a harmonia da egual-
dade humana.
Assim como indispensvel conservar e apurar a
raso, do mesmo modo indispensvel conservar e
A MULHEIl EM POIITUGAL 421
apurar o sentimento, o sentimento forte, o dos gran-
des actos, das grandes dedicaes, no o sentimenta-
lismo romanesco. Pois bem : o sentimento humano
um thesouro preciosssimo ; e a chave d'esse thesouro
o corao da mulher. Tudo que tender a comprimil-
na sua effuso, ou a desvial-o do seu fim, uma
desgraa social. No se deixe elle suffocar pelo positi-
vismo das sciencias. Para o endurecer c estamos ns.
CAPITULO V
A mulher artista
Nota do editor. D'este capitulo que to importante promet-
tia ser, nada existe escripto, seno um fragmento relativo a
Emilia das Neves. O trabalho do illustre auetor tinha-se limi-
tado por em quanto reunio de apontamentos.
No dia 16 de Agosto de 1838 corria em Lisboa uma
admirao geral. Que tora ?
Na vspera Um auto de Gil Vicente de Garrett res-
taurava o Tieatro portuguez ; e no drama estreava- se
uma menina de dezoito annos, que a dotes physicos
extraordinrios realados por uma voz privilegiada,
como nunca se conhecera outra, reunia mais que o
talento, o gnio, que viria a fazer d'ella um assombro.
Na sua primeira noite de theatro, aquelia que se
chamava Emilia das Neves principiou por onde os
A MULHER EM PORTUGAL 423
grandes talentos acabann. Depois, foi de triumpho em
triimpho.
A gerao actual uo conheceu Emilia das Neves. A
culpa foi da actriz, que no se retirou da scena quando
viu que principiava a decadncia. No dado ao ho-
mem nem mulher forar a lei natural. O tempo, ini-
migo implacvel, no d quartel. A paixo que esta
notvel mulher consagrava ao Theatro foi ao mesmo
tempo a sua gloria, e a sua inimiga. Dotada da imagi-
nao mais phantasiosa que era dado conceber n"este
mundo, no poude vencer a sua paixo.
Flagellada de inimigos e inimigas, tantos quantos lhe
invejavam a superioridade incontestvel, no chegava
a causar lastima, pois que as ruins invejas s merecem
o desprezo.
Diziam alguns que Emilia das Neves no servia se-
no para os melodramas de alapes e de reconheci-
mentos. Ah ! vissem elles a encantadora ingnua do
Auto de Gil Vicente, do Alfageuie, do Gnio da Noite, e
da Camar ardente ! vissem-n-a elles nos papeis ligei-
ros e risonhos, no e em Maria, a guar-
dadora de perus! vissem-n-a elles nas altas e finssimas
comedias As duas educandas, A filha
do Regente! vis-
sera-n-a elles em comedias de gnero, como no assom-
broso papel do moo D. Joo V da pea de Rebello da
Silva, e no mais assombroso e immortal das Proezas
de Bichelieu ! Tinha todas as cordas mais variadas aquelle
bello espirito : desde este mesmo papel do joven Duque,
at aos papeis de mais alto gnero, como os da
Adriana Lecouvreur, da Mdith, da Mulher que deita
cartas, e tantos outros !
No teve instruco esta mulher. Nos primeiros an-
424
A MULHER EM PORTUGAL
nos da sua carreira dramtica, decorava os papeis por-
que lh'os liam
; e depois que aprendeu a ler
; mas
Dunca se aventurou a escrever uma carta pelo prprio
punho. No sabia historia, seno a das peas que re-
presentava. O seu Conservatrio foi a sua inspirao.
Decorava todos os seus papeis, como lhe era necess-
rio
;
mas nunca estudou nenhum. Ficava de bocca
aberta quando ouvia dizer que a Rachel e a listori
destinavam a estao calmosa para crearem qualquer
dos papeis com que esses grandes talentos admiraram
o mundo.
Nas suas escripturas exigia a condio de que no
fosse scena pea nenhuma sem o intervallo de vinte
dias de ensaio ; e isto, porque as peas que ella sai-
vava se succediam sem interrupo umas s outras.
Quando ella ensaiava a Judith, houve quem lhe le-
vasse livros apropriados para ella estudar o caracter e
a epocha da protagonista. Dias depois, perguntou-se-lhe
pelo resultado ; tinha principiado a ler, mas perdera a
pacincia, e adeus caracter e epocha da protagonista 1
Foi para a scena, e o correr de Dezembro de 1860 foi
uma serie de triumphos, que ainda esto na memoria
de alguns.
No estudava, mas adivinhava. O talento estuda ; o
gnio adivinha. Dois exemplos : Ristori, e Emilia.
Na Ristori, o estudo de ferro, desde as grandes sce-
nas ate aos mais ligeiros accessorios. Tudo formoso,
mas tudo pautado. Vl-a n'uma noite, era vl-a em todas.
Na actriz portugueza, o contrario : nenhum estudo;
pauta nenhuma ; cada noite uma diversidade ; era o
que lhe sahia do espirito. Ao par de uma incorreco
de linguagem ou de aco, um mpeto de alma, um
A MULHER EM PORTUGAL
425
gesto, um olhar, arrancados do corao, e que levan-
tavam a plata inteira, ou faziam estremecer as fibras
do espectador. Sahiam-lhe todos os cantos divinos d"este
grande instrumento que se chama a alma; e ella nem
tratava de o afinar.
Dizei ao mar que afine as suas ondas.
A natureza grande, mas livre. Assim era a inspi-
rao d"esta grande actriz. Tinha a harmonia do con-
juncto formada das prprias desegualdades do momento.
No pretendo em poucas paginas fazer o juizo cri-
tico d"esta actriz excepcional, que honrou a nao e no
ser substituida facilmente.
No permitia Deus que eu negue o talento da Flo-
rinda, da Barbara, da Delphina, da Soller (para no
falar das que ainda existem) : mas houve uma, que,
apesar da grande distancia na concepo geral, se
aproximou entre todas de Emilia das Neves. Creio
no estar longe da verdade mencionando s aquella
prola encantadora que se chamou Manuela Rey, se
no portugueza pelo- nascimento, ao menos por ado-
po e ensino. Pomba adorvel, sem condies para
actriz de alto drama, certo : mas toda mimo e sua-
vidade, toda amor e resignao, toda talento excepcional
N. B. Seguem-se mais alguns apontamentos soltos, sem va-
lia, e a consulta original do Conselho Dramtico, em 30 de Ju-
nho de 186o, propondo ao Governo que Emilia das Neves fosse
classificada oflcialraente como act7iz de mrito relevante. as-
signada a consulta por Antnio Augusto de Almeida Portugal
Corra de Lacerda, Joo de Andrade Corvo, Carlos da Cunha e
Meneses, Jos Maria Latino Coelho, Castilho, e Francisco Palha
de Faria Lacerda.
CAPITULO VI
A mulher na desgraa
Urge assentar a questo francamente.
A mulher o ente mais desgraado que existe.
No existe o absoluto na felicidade, porque em ne-
nhuma cousa existe. O que desejo assentar que nas
relaes sociaes entre o homem e a mulher ella im-
mensamente mais desditosa que o homem. Essa a
grande injustia sob que verga e vergar a nossa com-
panheira.
Esse facto exprime uraa injustia enorme ; o do-
mnio da fora sobre a fraqueza. Deve desapparecer,
pelo adiantar successivo da civilisao, e
j
ella o tem
modificado ao longo dos sculos. A mulher de ha trs
mil annos no a mulher de hoje ; tratemos de que
o seu estado melhore ainda, e muito mais.
A MULHER EM PORTUGAL 427
II
No nos illudmos. Vemol-a ostentando nos bailes os
seus trajos deslumbrantes, com a fronte coberta de
jias, sorrindo de amor, ou de desdm, e reinando pela
graa.
Vemol-a nos theatros, ouvindo nos camarotes as fi-
nezas acobertadas em generalidades, folgando de ouvir
na declamao ou na musica a imagem do sentimento
real, e s vezes folgando mais com a vida e o enthu-
siasmo que palpita na sala do espectculo, do que com
o prprio espectculo.
Vmol-a passar em revista as avenidas, recostada
negligentemente na sua carruagem; descontente dos
seus banquetes, que seriam a salvao de dzias de
famlias; aborrecendo os campos e as praias, que se-
riam a sade de tanta gente!
la tambm a mulher que no rica, nem bella no
sentido deslumbrante do termo, e que, sem aspirar s
grandezas do mundo, se contenta com a doce media-
nia. Tem a abastana relativa sua posio, amada
de seu marido, no lhe do desgostos os filhos, e o
seu lar, modesto mas tranquillo, v correr socegados
os dias da existncia. Quantas, n'esta e n'outras an-
logas circumstancias, tanta vez se podem considerar
mais felizes do que as ambiciosas do fausto, ou as que,
enfadadas d'elle,
j no sabem o que desejem, nem a
que aspirem!
Ha tambm, alem
doestas,
as que miram a collocar
na felicidade alheia a sua individual felicidade. A estas
428 A MULHER EM PORTUGAL
embriaga-as o bem. Encerram em si prprias o the-
souro das suas ambies. Se teem riquezas, repartem-
n-as; se no passam da mediania, repartem os seus
cuidados, o seu trabalho, e o seu exemplo.
Todos esses grupos que apontei representam, se-
gundo as leis sociaes, a felicidade relativa
doeste
mundo.
Mas, defronte da mulher feliz, que a minoria ain-
da assim, levanta-se a mulher desjracada !. . .
.
lU
Esta tem
j
antes de vir ao mundo o cunho da in-
felicidade.
Nasceu de unio illegitima. Foi exposta. Engeitada
de sua me, como sua me o fora, no teve pae que
a protegesse, nem me que a aninhasse, nem parentes
que a soccorressem, nem um beijo, nem uma caricia,
nem uma esperana ! Foi lanada numa roda ; a roda
girou; uma ama mercenria veiu buscal-a do dia se-
guinte, para ganhar com ella uns reaes amaldioados.
O que a espera? a alcunha de engeitada. Se no tem
a felicidade de morrer, ainda a espera a fome, a ver-
gastada, o servio superior s suas foras, e a negra
pagina do livro tenebroso.
As naes latinas, respeitando a ideia do caritativo
instituidor, viram a impossibilidade de sustentar a roda
fechada. O homicdio legal dos engeitados excedia to-
dos os hmites do possvel. Em Frana a mortalidade
das creanas expostas e entregues s amas era supe-
rior a 50 por cento
;
perto de cem mil creanas de pei-
A MULHER EM PORTUGAL 429
to devora a morte entre os maus tratos das amas. E
esta mesma Frana que restaurou ultimamente as ro-
das!
Em Portugal era um horror ! . . .
.
Mas se j
no temos a roda fechada, temos, por uma
necessidade absoluta, a roda aberta; quer dizer: ain-
da temos o engeitamento. N'este caso, o infanticidio,
crime geral, entenda-se, rodeado de circumstancias at-
tenuantes, para a creana uma libertao.
Escapou da morte? a creana converteu-se em me-
nina. A fera chamada homem querer fazer esposa da
que no pode ser ainda seno filha; querer fazer da
victima uma criminosa inconsciente. Espante-se, brade,
mas succumba ; a innocencia ser sacrificada s mos
desta fera que se chama o homem (mais do que fera
n'este caso, porque os prprios animaes respeitam a
fmea em quanto no chegou edade de lhes ser com-
panheira; duas vezes fera o homem, se, alem de vio-
lentar a innocencia, a contamina; trs vezes fera, se,
por fecho da sua obra, se faz assassino).
Se a boa sorte da creana a preserva d'este perigo,
se entra inclume na juventude, a mesma juventude
lhe abre aos ps outro precipcio. So doces as pala-
vras do amor; e um amante desalmado sabe calcular,
prometter, e sabe emfim armar o lao em que a vi-
ctima ha-de cahir entre esperanas.
Um silencio desusado no quarto da
apaixonada attrae a me, a me tantas vezes crimino-
sa pelos princpios que deixou de infiltrar, e pela ca-
rncia de conselhos dados entre afagos. noite. A ave
bateu as azas, e desaninhou. Consumou-se o rapto.
Ainda est salva, se era homem honesto o allucinado
430 A MULHER EM PORTUGAL
roubador : mas por um honesto, quantos malvados
!
IV
Ha os tratos s creanas, e os requentissimos tra-
tos s mulheres.
Ao par da mulher, que se lana ao mar, ou se ar-
roja para fora do comboio em rpido andamento quan-
do uma creana cae, e que a salva, arriscando a vida
em morte quasi certa, que vemos ns tanta vez ? mes
atormentando filhas menores,
j
com violncias corpo-
raes,
j
trocando constantemente a doura em doestos,
j
encerrando-as em crcere privado,
j
martyrisando-
as com fome,
j,
emfim, carregando-as de trabalhos
superiores s suas foras.
No chore, senhora
;
venha para o meu sto; ao
menos no ficar na rua.
E D. Carlota Joaquina, silenciosa, porque a actos
d'aquelles, e em occasiues d'aquellas, s se responde
com o silencio, seguiu a visinha, subiu, e deitando o
seu cobertor velho e rapado sobre umas palhas, a um
canto do sto, onde a caritativa inquehna, doente e ne-
cessitada, engommava como podia, deu graas a Deus
por lhe ter deparado uma alma que a recolhesse. Ali
dormitou as noites (victimas d'estas no podem dormir)
e ali recebia da que no podia reparth-, uma chicara
de caf ou um pedao de po, quando ella os tinha,
ou padecia a verdadeira fome quando, por mais doen-
te, ou por no ter quem a acompanhasse rua, no
podia mendigar nas casas outrora suas conhecidas.
Um dia, a visinha annunciou-lhe chorosa que nem es-
sas mesmas palhas poderia continuar a dar-lhe ; e na
freguezia passou-se contra a infeliz um facto brbaro,
que, por caridade christan, no lano n"este escripto.
O mundo o mundo.
Junto ao mal, o bem. Uma senhora benfica socegou
aquella alma aflicta, assegurando-lhe a renda de um
A MULHER EM PORTUGAL
433
quarto ; e um homem, que ainda outra vez nos appa-
rece aqui, Rosa Arajo, obteve do Congresso de bene-
ficncia um subsidio de quatro vintns dirios para a
filha de Casimiro. uma grande caridade ; mas o que
so 80 ris para uma doente, cega, impossibilitada de
trabalhar ? Escrevo aqui a sua morada : quarto da rua
da Atalaya n. 219,
2.
andar. Quem se compadecer
d'este enorme infortnio, que tem pedido a Deus a
morte como refugio, v visitar aquelle quarto mise-
rando, e aquelia alma penada, que teve por pae um
dos mais formosos talentos da nossa terra.
E depois de quanto fica exarado n'esses capitulosa,
respeito da exposio, dos maus tratamentos das fam-
lias, dos tratos, dos abandonos injustificados, das sedu-
ces, da fome, ainda se pergunta pelas causas dos
suicdios femininos!
Chegamos chaga da prostituio; a macula mais
horrivel da humanidade.
Nunca existiu sociedade sem esta chaga. Crenas
religiosas, esperanas immortaes, prohibies legisla-
tivas, punies severas, abusos das auctoridades, ar-
ruamentos designados como aos mouros, aos judeus,
e aos leprosos, vesturios vermelhos, maldies das^
famlias, tudo isso significa u ferrete da deshonra es-
tampado na fronte da mulher. Este contagio no co-
nheceu principio, nem talvez haja de ter fim.
Innocente como a pomba, abriu os olhos luz, e
entreviu o amor na virgindade da sua pureza. Por en-
436 A MULHEK EM PORTUGAL
tre os sorrisos da esperana, que o mais formoso dos
sonhos, sentiu estremecer todas as fibras ao olhar que
a fascinou. Desconhecendo os precipcios da vida, brin-
cou descuidada s bordas d'elie, como a creana com
o fogo. Attrahida pelas rosas, phantasiou o mundo todo
cr de rosa. Era tudo verdade quanto elle, o homem
amado, lhe dizia : que era formosa : que a vida era um
paraizo: que a amaria eternamente; que por eila mor-
reria
;
que a sua casa de ambos seria um encanto
;
que s do seu prximo emprego dependeria o casa-
mento
;
que a familia a atormentava
;
que no futuro
no veria ali dentro seno trevas, e s em desgostos
viveria
;
que no se lanar ella nos braos delle era a
prova da sua completa indifferena. E tudo isto era
dito (ou parecia dito) com tanta seriedade, tudo isto
acompanhado de to convicta intimativa, que um dia,
no momento fatal do espirito, no instante perigoso, a
pomba j
sem foras para o vo que a salvasse, enton-
teceu e resvalou.
O ladro fugiu.
Podia salvar-se ainda esta desgraada ; salvavam-n-a
os princpios moraes, os conselhos que lhe houvessem
dado, a carreira que lhe tivessem aberto, e os braos
da famiHa, que s foram feitos para agazalhar os que
n"ella nasceram. Mas: educao, nenhuma! carreira, a
fome ! familia, o espancamento em nome da moralida-
de, ou a expulso de casa, para invocao paternal da
honra, que o prprio invocador no soube defender I
A victima desappareceu da familia natural, em nome
do amor, para dar entrada n'uma familia mais vasta,
em nome da fome. Sobre um abysmo, outro abysmo.
Como esta mulher, mais cem, mil, milhes em cada
A MULHER EM PORTLGAL 437
gerao, milhes de milhes em todos os sculos. E
como este homem, mais cem, mil, milhes em cada
gerao, milhes de milhes em todos os sculos.
Ella, fraca e inexperiente ; elle, forte e seductor.
E na fronte d'esles milhes de mulheres, que no
souberam ou no poderara salvar-se, imprimiram o
ferrete, pelos costumes que elles prprios dictaram,
aquelles mesmos que as precipitaram ao abysmo.
A victima, com as suas circumstancias atenuantes,
luz do dia, uma infame ; o algoz, com as mais ag-
gravantes circumstancias, um galanteador, merece-
dor de felicitaes.
E ha justia na terra
VI
Vejamos agora dentre o cerrado da tempestade sa-
hir um raio de formosa luz.
a beneficncia estendendo a mo a esta immensa
desgraa. A chaga encontra um blsamo, no decerto
em toda a extenso d'ella, mas grande sem duvida.
Foi Braga que abriu o caminho, com o admirvel
CoUegio da Regenerao, fundado ha vinte e um n-
uos (em 1869), e protegido por uma Associao de
senhoras das primeiras cidades do Reino. Tem este
Collegio por fim abrigar as mulheres cabidas, e reha-
biUtal-as pela educao e pelo trabalho. Tem abrigado
at agora 464 desgraadas, existindo ahi annualmente,
termo mdio, 80 mulheres. Procura por tal modo des-
euvolver-Ihes no corao o sentimento do justo, bom,
e honesto, ensinando-Ihes e fazemio-lhes amar o traba-
438 A MULHER EM PORTUGAL
lho, e industriando-as nos diversos misteres que de-
vem completar a mulher, para lhe proporcionar os
meios de ganhar honradamente a vida. Ensina-lhes
(alm de outras disciplinas, e da educao moral e re-
ligiosa) a costurar, engommar, cosinhar, servios do-
msticos, todo o gnero de costura machina e mo,
tecer, fazer rendas, bordar, fiar, etc. Tem grandes of-
ficinas para estes trabalhos. Tambm tem o ensino
pratico da agricultura na cerca.
Nas exposies do Porto, recebeu Braga o primeiro
premio; depois, na de Lisboa em 1888, e na de Paris
em 1889, foi premiada com diplomas de mrito, e me-
dalhas de prata e cobre.
Finda a educao, umas alumnas so entregues,
completamente regeneradas, outras casam, ou vo ser-
vir, outras conservam-se no Collegio. Alm est uma
destas, dirigindo uma das seces.
Certo dia, uma virtuosa dama, a sr.* D. Barbara de
Proena, leu n'um jornal a noticia de que uma pobre
rapariga, desesperada da triste vida que levava, ahi
numa rua escuza de Lisboa, tomara veneno para se
libertar do infortnio em que andava desde os treze
annos. Tinha ento vinte. A caritativa senhora tomou
conta da infeliz, e mandou-a para este Collegio de
Braga. Tem hoje vinte e sete annos, formosa, de
sentimentos elevados; e fez tantos progressos na sua
educao, e trabalhou com to boa vontade, que se
tornou teceloa de primeira ordem, a ponto de merecer
pela reunio dos seus predicados, que lhe fosse entre-
gue a seco que habilmente dirige.
Educadas para ganharem honestamente a vida ficam
todas : regeneradas moralmente, calculam-se oitenta
A MLLHEU EM POUTKiAL 439
de cada cem: mdia melhor do que a da gente capaz
c de fora informa-me chistosamente uma das se-
nhoras de mais talento (jue me dado conhecer.
Mas o ponto negro de todas as instituies ! a min-
gua de meios. Ha um facto horroroso por entre tantas
aces bellissimas ; registal-ohei:
Corta o corao ver chegarem porta d'esta salva-
dora casa as arrependidas, e, fatigadas da vida disso-
luta de que foram victimas, implorarem com as lagri-
mas nos olhos a esmola do acolhimento que lhes pode
mitigar a fome, e da educao que as regenere I e ver
a Direco, pranteando talvez tanto como as desgraa-
das que a imploram, obrigada a recusar-lhes a entra-
da no estabelecimento. Ricos ! sahi um dia mais cedo
dos vossos banquetes, e trazei as vossas migalhas a
este salvador instituto.
VII
E todavia, ali est outro esforando-se por nascer, e
com intuito semelhante ao do Asylo acabado de men-
cionar.
O da Regenerao para mulheres
j
pervertidas;
este outro, inaugurado a 13 de Junho
doeste
anno de
1890, com sete meninas, denomina-se da Preserva-
o, e destinado a lanar mo auxiliadora s que
esto em risco de se perder.
Havia n'uma freguezia de Braga uma desgraada
mulher, que tinha quatro filhas : uma de
-18 annos,
outra de 16, outra de 14, outra de 11. Um malvado
MO
A MLLUER EM PORTUGAL
inlrometteu-se no lar cVaquella famlia, ganhando a
confiana da me e das filhas. O resultado foi a des-
graa da mais velha, a quem o scelerado roubou a
honia e a sade, vendo-se obrigada a dar entrada no
hospital. A mesma sorte ameaava as ires irmansres-
tantes
:
mas uma pessoa piedosa d'esta cidade empre-
hendeu arrancar da beira do abysmo as Ires desgra-
adas. Por meio de esmolas, que a muito custo pou-
ade obter, conseguiu internar n'um estabelecimento de
caridade as trs raparigas, com o fim de as educar
de forma a fazer d"ellas boas mulheres de trabalho.
Aconteceu, porm, que posteriormente appareceram
mais desgraadas nas circumstancias das trs referi-
*das. O vicio tem subido em escala tal, que nem se-
quer os pes poupam as filhas ! Nada menos de nove
desgraadas nas condies indicadas soilicitaram a
proteco e o agazalho das almas boas conlra a vo-
ragem do vicio que as ameaava. Era preciso esten-
der a mo aos fracos, sustel-os na queda, amparara
virtude.
Taes so as nobres palavras, com que sete senhoras
d'aquella cidade, agremiando-se em commisso fun-
dadora, justificam a fundao do nascente instituto, e
pedem para elle o bolo de 20 ris semanaes.
(*)
Pouco ha bateu-se ao porto do rico, lembrando o
Collegio da Regenerao, que mingua de meios des-
pede as desgraadas que lhe vo implorar abrigo.
(')
A primeira signatria a sr.^ D. Maria da Apresenta-
o Madureira e Costa, creio que lambem fundadora das oHci-
uas de S. Jos, ali; e o Director o sr. Padre Manuel Martins
de Aguiar.
A MULHER EM PORTUGAL
441
Agora bate-se porta do pobre, pedindo um vintm
semanal para a nascente instituio, que procura evitar
o abysmo, ensina o dever, e ministra o trabalho. K
ainda apenas uma dbil vergontea o Asylo da Preser-
vao
;
mas das vergonteas, cuidadas com amor, que
se fazem as arvores.
VIII
O formoso pensamento de regenerar e rehabilitar
pela educao e pelo trabalho mulheres perdidas, rea-
lisou-se egualmente na Capital: e a iniciao deveu-se
a uma alma caritativa, a sr.^ D. Thereza de Saldanha
e Castro (Penamacor), auxiliada por outras senhoras,
que todas fundaram a Associao de Santa Maria Ma-
gdalena.
Ha males que vem por bens. Um dia o poder pu-
bhco tirou-lhes para outro destino o ediicio que lhes
concedera.
~
Pois no ha-de acabar esta grande obra de bem
A sombra do claustro
Cap. I
As versejadoras da Corte 3G
Cap. lY
A senhora D. Filippa o2
Cap. V
J\o mundo
Cap. 1
A mulher artista
A"^
VI
L fora 463
Cap. X
e ultimo