O documento descreve a abertura do primeiro teatro lírico no Porto em 15 de maio de 1762. João D'Almada e Melo, governador do Porto na época, foi responsável por inaugurar este teatro, trazendo a cidade os prazeres das artes. O teatro recebeu sua primeira companhia de ópera italiana e marcou o início da apreciação da música lírica no Porto.
O documento descreve a abertura do primeiro teatro lírico no Porto em 15 de maio de 1762. João D'Almada e Melo, governador do Porto na época, foi responsável por inaugurar este teatro, trazendo a cidade os prazeres das artes. O teatro recebeu sua primeira companhia de ópera italiana e marcou o início da apreciação da música lírica no Porto.
O documento descreve a abertura do primeiro teatro lírico no Porto em 15 de maio de 1762. João D'Almada e Melo, governador do Porto na época, foi responsável por inaugurar este teatro, trazendo a cidade os prazeres das artes. O teatro recebeu sua primeira companhia de ópera italiana e marcou o início da apreciação da música lírica no Porto.
O documento descreve a abertura do primeiro teatro lírico no Porto em 15 de maio de 1762. João D'Almada e Melo, governador do Porto na época, foi responsável por inaugurar este teatro, trazendo a cidade os prazeres das artes. O teatro recebeu sua primeira companhia de ópera italiana e marcou o início da apreciação da música lírica no Porto.
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Singularidade que enchia de dor quem ouvia cantar divinamente a
pobre louca! Dor e espanto daquela formosura de cadver entoando,
ora triste ora alegre, os cantares monsticos da semana da paixo, ou as seguidilhas voluptuosas de Espanha. As senhoras Cunhas entrajavam-na primorosamente; e ela deixava-se vestir com marmrea quietao. Ia com elas sala, sentava-se ao piano, erguia-se para sentar-se no canap, e no respondia a pergunta nenhuma, salvo as da famlia que ela denominava os seus querubins. E, no concurso de cavalheiros que afluam a ouvi-la, havia um de apelido de Melo e Npoles que se entrou duma paixo invencvel daquela mulher morta, que tinha uma hora de ressuscitada, quando as teclas do piano a galvanizavam. Este cavalheiro chorava na presena e na ausncia dela. Votou a Deus que lhe levantaria um templo, se alvorecesse luz de razo naquela eterna noite. Como Francisco da Cunha usava chamar-lhe a sua sereia, Joaquina era assim conhecida de fidalgos e humildes em Viseu. Diziam: a SEREIA apareceu ontem na sala; a SEREIA teve um acesso depois que cantou. E o povo, na sua linguagem cndida e pitoresca, dizia: Vimos hoje a SEREIA numa janela do palacete: olhava para o cu que parecia uma santinha.
Em noites de lua cheia, J se no ouve o cantar Daquela triste Sereia!
Oh pobre rapariga cada, J sobre ti se fecharam Os abismos desta vida!
Diz-me, diz-me, lua cheia, Choras tu na sepultura Daquela pobre Sereia?
Em que finar se vo findos Aqueles cabelos douro, Aqueles olhos to lindos!
guas malditas, pudeste, To linda e nova, mata-la, Matar a pomba celeste!
Ai! pobre anjo da m sorte! Descansa, em fim, que no voltas Desses abismos da morte!
Nos cus passa a lua cheia Para ouvir os teus cantares, E tu no voltas, Sereia!
Mas um raio de luz pura Coa-se atravs dos vidros Sobre a tua sepultura.
Estes melanclicos tercetos, escritos h cem anos, que significado tiveram? Encontrei-os num livro manuscrito datado de 1768. Em cinquenta pginas de prosa do mesmo manuscrito, descobri o segredo dos versos. CAPTULO I
Estamos no dia 15 de maio de 1762. Naquele tempo, os dias de maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, h cem anos, aparecia quando o calendrio a dava. Ningum saia da sua casa s cinco horas duma tarde clida de maio, com um casaco de reserva no brao para resistir ao frio das sete horas; nem o paralta portuense levava escondido na copa do chapu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante. O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrnomos. A gente ditosa, que ento viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotao dos planetas; e os sbios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estaes. Quem, face da folhinha, se vestisse de fresco em maio, podia sair rua trajado de holandilha ou vareja, que no entraria em casa a espirrar constipado pela sbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sbios, os sbios da cincia, e a cincia dos factos repetidos. Depois, porm, daquela poca, desconcertaram-se os sistemas das regies altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar no fim do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estaes proceda de causas que, passado um indeterminado perodo, cessem de existir. Ningum se lembrou ainda de conjeturar que as vaporaes constantes das fornalhas e o fluido eltrico de que o ambiente est saturado, possam ter infludo na substancia dos slidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de atuarem sobre a terra. Se algum sbio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta a minha hiptese original, ficvamos convencidos ns de que a civilizao do fumo e a dos arames eltricos, a final, acabariam de todo com a primavera. Em compensao, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de maio, haviam de inventar uns foges cmodos para o nosso uso em Julho. De mais disso, o Porto da primavera de 1762, gozava-se de ar impregnado de aromas, porque, naquela era, grande numero de ruas que hoje respiram vapores nocivos pelos frreos pulmes dos seus edifcios e fbricas, eram quintas, arvoredos, jardins, ourelas e marginados verdejantes de lmpidos regatos, que os duetos atuais do gaz degeneraram em gua poluda dessas dezenas de chafarizes em que tragamos peonha. No era, todavia, o sol nem os aromas que extraordinariamente alegravam as famlias mais gradas da cidade do Porto, no dia 15 de maio de 1762. As bandeiras que tremulavam, brandamente assopradas por olorosas brisas, por sobre os balces e rtulos das janelas da rua Chan e Corpo-da-Guarda, significavam algum grande jubilo nacional, que certamente no era casamento de rei, nem nacimento de prncipe. Mais que no comum das famlias burguesas, brincava o contentamento nas ridentssimas filhas do Chanceler governador das justias Francisco Jos da Serra Craisbeeck de Carvalho, nas graciosas e fogosas meninas do governador general da Provncia Joo DAlmada e Melo, nas sobrinhas do Cabo-mor Miguel Jos de Moura, nas duas loiras irms do senhor de Quebrantes e Gaia-pequena lvaro Leite Pereira, e muitas mais, assim formosas que bem nascidas. E, depois, que trfego este de costureiras que vo e vem; de alfaiates azafamados que sobem e descem duns palcios para outros? Porque est a praguejar aquele fidalgo impaciente contra os desgraciosos anis da sua cabeleira, enquanto a esposa vocifera contra a modista ignara que lhe estreitou as anquinhas, deixando-lhe quase molduradas na seda flexvel as magras formas da natureza sovina? Porqu tudo isso? Toda esta azfama desusada na cidade com os seus luxos e fidalgas folias? que, na noite daquele dia, acendia-se no Porto, pela primeira vez, uma das mais refulgentes lmpadas do altar da civilizao. que naquela noite memoranda o burgo de D. Moninho Viegas entrava em comunho de delicias das artes encantadoras com as primeiras cidades da Europa. Digamo-lo d uma vez, em respeito ansiedade da leitora: abria-se naquela noite o primeiro teatro lrico do Porto. Muitos anos antes, no reinado de D. Pedro II, por ocasio das projetadas npcias de uma filha do algoz e sucessor do infeliz Afonso VI, estiveram em Lisboa cantores italianos da comitiva do duque de Sabia para solenizarem com as suas tramoias lricas os festejos de um casamento que nunca se realizou. O publico, porm, espantado e depressa aborrecido da estranheza do espetculo, rompeu s gargalhadas quando a dama arquejava abraada ao tenor lagrimoso guinchando na sua desabrida aflio. Era resultado desta selvageria, decorreram bastantes anos sem que capital voltassem companhias de canto, sendo tantas as que muito aplaudidas funcionavam nos teatros da Europa, e na Itlia principalmente. S decorrido largo espao de tempo, que no seria menos de noventa anos, apareceu em Lisboa a celebrada Zamparine, ajustada por um banqueiro da cria romana. Podemos conjeturar, sem ofensa de ningum, que foi o Porto quem deu o exemplo de apurado gosto cidade de Ulisses nesta notvel conquista do progresso. Demonstram-no as datas: abriu-se o teatro italiano do Porto em 1762; e a Zamparine, com a sua companhia, cantaram em Lisboa no ano 1770, oito anos depois que o Porto lhe castigara delicadamente o descoco de rir-se a capital, quando as prima-donas e tenores soluavam as suas notas orvalhadas de lgrimas mais ou menos equvocas. No que eu presumo que Lisboa levou vantagem terra querida de D. Joo 1., foi na capacidade e talvez ornato do seu teatro. Zamparine cantou no palco da rua dos Condes, ali mesmo naquele cotovelo da rua, onde o leitor j ouviu, por dita a sua, a pera bufa de Manoel Mendes Enxundia, ou a Ave do Paraso, e outras que tais visualidades desgraadas, para as quais toda a compaixo se faz necessria. Zamparine! Chiatini, infeliz tenor, que pedias nas arias que te pagassem, e os empresrios ofendidos te levavam, no fim de cada recita, para o hospital dos doudos! egrgias memrias, se vs direis que aquele palco havia de ser cortado de alapes, por onde agora existem cabeas de jacars, de hipogrifos, de drages e diabos de todos os feitios! O brao poderoso que fez erguer de arruinados casebres um teatro, cujo peristilo modesto abona a arquitetura econmica de h cem anos; a vontade soberana que moveu o senado portuense a contribuir com o mximo das despesas para uma inovao, que devia de ser medianamente simptica aos laboriosos mercadores e industriais da cidade do trabalho, era um s homem, um dos maiores vultos daquela poca. Chamava-se Joo DAlmada e Melo; governava por esse tempo militarmente o Porto; e trs anos depois governava as justias, presidia no municpio, presidia na marinha, era conselheiro do soberano, e tenente general dos seus exrcitos. Todos estes ttulos so, porm, deslumbrados pela gloria de ter inaugurado o espetculo lrico, numa cidade que, cem anos depois, carece de recursos para sustentar uma companhia de cantores rebocados no refugo dos outros teatros. A decorao cnica do teatro do Corpo da Guarda, se acreditamos o folhetinista contemporneo, seria exagerado patriotismo encarecermo-la. Para execuo da primeira pera, o pintor, que devia ser dos no somenos da poca, fez uma sala regia bem guarnecida de colunas vistosas, e nesta sala correram todas as peripcias do drama, sem que a inverosimilhana danificasse os intentos e efeitos do poeta metrificador e do poeta musical. Denominava-se a pera no trascura-to, como quem diz O descuidado. Pargholesi era o maestro. No entrecho predominava o gnero cmico. A prima-dona chamava-se Giuntini. Os de mais cantores e cantoras no faz meno deles o folhetinista o patriarca dos folhetinistas em Portugal, padre Francisco Bernardo de Lima, que ento escrevia a Gazeta literria, obra de tal cunho, que daria hoje em dia nome e honra a quem assim a escrevesse. E j que digo da mais antiga critica de teatro lrico escrita pelo primeiro folhetinista, aqui o lano de contar-se posteridade que foi ainda o governador geral da cidade do Porto, Joo dAlmada, quem fundou a Gazeta literria em 1761, e galardoou o admirvel talento e a copiosa e variadssima instruo de Francisco Bernardo de Lima. Do quanto aquele famigerado homem protegeu as letras, sem desfalcar no cumprimento de muitssimas obrigaes que lhe corriam por conta e responsabilidade, bastam a dizer-mo dezasseis peas literrias entre panegricos, odes, clogas e sonetos com que quinze literatos de maior polpa, conglobando-se num s livro, fizeram estrado passagem do heri para o templo da memria. Temos glorificado bastantemente com o nosso turbulo de incenso o criador do teatro lrico no Porto. Agora, visto que a sua excelncia, o governador, e a sua excelncia o chanceler, e as suas excelncias os desembargadores j saltaram das carruagens, das estufas, das cadeirinhas, caleches, e faetontes, e se refestelaram nas duas ordens de camarotes, tempo de tambm entrarmos, posto que o infortnio de nascermos cem anos depois, fizesse que no fossemos convidados pelos escudeiros do galhardo governador a comparecermos com a nossa casaca de seda, com a nossa marrafa, com o nosso dinheiro, e com a nossa admirao no teatro lrico do Corpo-da- Guarda. A leitora, primeiro que tudo, manda-me comprar o libreto da pera, que foi impresso e dedicado quela fidalga do n. 2 da ordem, que se chama Sra. D. Ana Joaquina de Lancastre. Fui oficina do capito Manoel Pedroso, e pesarosamente soube que se venderam ou distriburam todos os exemplares por ordem do governador. No entanto, como no camarote do juiz de Fora est o padre Francisco Bernardo de Lima, redator da Gazeta literria, vou pedir-lhe que me conte o enredo, e virei depois esclarecer a curiosidade de V. Exa. que muito me desvanece. Eis-aqui a noticia que me deu o eloquente padre, tal qual a reproduziu no numero do peridico do ms seguinte: A pera tem por fim o mostrar as funestas consequncias que resultam para um particular, quando inteiramente se descuida dos negcios, de cujo bom xito dependa felicidade da sua casa. Tinha o descuidado e negligente Felisberto, que a primeira personagem desta composio dramtica, um litigio com um conde, sobre soma de trinta mil ducados, que era a maior poro do seu capital; mas ele, s com o sentido na sua comodidade particular, ia perdendo o seu negocio, ao mesmo tempo que o roubava um procurador a quem tinha confiado a demanda. Toda a famlia de Felisberto fazia o mesmo que o procurador; porque Aurlia Orfan, que assistia na casa do descuidado, namorando-se do ambicioso Comelio, que s a pretendia pelo dote, juntamente com o procurador, fizeram assinar um papel a Felisberto, que por preguia o no quis ler, no qual se obrigou este a dar-lhe trinta mil ducados, dizendo-se-lhe que este papel era necessrio para sair bem a sua demanda; mas antes disso, Lizaura, filha de Felisberto, tinha-lhe feito assinar outro papel em que lhe deixava todos os seus bens, a fim que ela se casasse com o seu amante Dorindo. O criado Pasquino e a criada Purpurina aproveitaram-se da mesma negligencia para, da mesma sorte, se casarem. Depois de alguns episdios, em que Felisberto conserva sempre o caracter de um homem amigo s do seu descanso, e inteiramente inimigo do trabalho, se declara Cornlio por amante de Aurlia, e mostra a Felisberto a obrigao que este lhe tinha feito; mas ao mesmo tempo mostra Dorindo o seu papel, que se prefere ao outro por estar feito antes do de Cornlio. Perdoa a todos Felisberto, que at se contenta de que casem os criados, que tambm tinham abusado do bom e culpvel gnio de Felisberto. Disse, e acrescentou: Olhe que de um sujeito muito interessado em Paris em saber a urdidura das peras, disse um critico espirituoso: to estpido que vai pera para ver o enredo / Seja o que for, satisfiz a curiosidade de V. Exa. Enquanto ao desempenho da pera no direi o meu parecer, porque outro folhetinista, noventa anos depois, analisou detidamente o espetculo, com sobeja graa e conhecimento da cena. V. Ex. dobra esta pagina, e vai numa nota final satisfazer plenamente o seu desejo. No lho conto eu, porque refazer o que est bem feito destrui-lo. No Biblifilo Josef, que subscreve o jovial folhetim, apresento eu leitora o elegante prosador Jos Gomes Monteiro. CAPTULO II
A noticia da inaugurao do teatro de canto no Porto, um ms antes da primeira rcita, alvoroara algumas famlias das vilas circumpostas magnifica cidade, na rea de dez lguas. O juiz de Fora de Amarante, Antnio de Sousa Pereira, amantssimo de musica, e instado por uma a sua cunhada, que comeava a cantar com deliciosa voz, obteve com muita antecipao o camarote n. 7 da 2 ordem. Oito dias antes da abertura do teatro, j. O juiz de Fora estava no Porto, tratando de se trajar dignamente a si, sua mulher e cunhada, de modo que as damas portuenses no se desdoirassem de concorrer com as provincianas ao mais lustroso congresso daqueles tempos. De feito, se alguma sensao desagradvel causou a famlia de Sousa Pereira foi a da inveja, em muitas senhoras que, ainda invejosas, primavam em beleza. Da esposa do juiz diremos apenas que era bela, para nos no minguarem as frases sacramentais no elogio da sua irm Joaquina Eduarda. Observada da plateia, a formosa cabea desta menina, que teria ento dezoito anos, era um busto de Pigmalio, no aviventado pelo amor ardente do seu autor, mas por influxo radioso da vida dos querubins. Realavam quase nada os pentes de oiro cravejados de prolas, porque a alvura da fronte os desluzia, bem que o loiro dos opulentos cabelos fosse causa a refulgirem menos os adornos. Era duma candidez ebrnea. Os olhos, posto que grandes, mal se viam de assombrados pelas convexas e cabidas plpebras. O coral fendido dos finos lbios poderia estilar o nctar mortal das paixes, se no fosse formado por algum beijo de arcanjo, que lie viera roubar a alegria da terra levando-lhe no oculo as melhores e mais puras alegrias da alma. Joaquina Eduarda parecia triste, introvertida em preocupaes intimas; porm, quando a Giunlini espedia em trilos vibrantes as frases musicais mais expressivas da paixo, Joaquina espertava, estremecia, e maquinalmente juntava as mos para aplaudir. Num entreato, ao camarote do juiz de Fora de Amarante foram alguns magistrados, e cavalheiros da provncia, cumprimentar a famlia de Sousa Pereira, sujeito aparentado com ilustres casas dentre Douro e Minho. O velho Pedro de Vasconcelos, de Braga, tambm foi, e levou na sua companhia um filho natural e nico, muito querido o seu, acadmico do quarto ano do curso jurdico na universidade de Coimbra. O rapaz, como qualquer estudante e no dos menos travessos fidalgos em Coimbra e Braga, agiu no camarote com um acanhamento de menino do coro; e, para ajustar os pontos da analogia com a candura serfica de um minorista, esteve sempre fito na cunhada do juiz de Fora, como o outro estaria enlevado num retbulo de alguma santa das mais formosas; salvo quando Joaquina, por acaso, ou acidentalmente, lhe relanceava os olhos indescritveis de fascinao e magia. Desceu plateia Pedro de Vasconcelos com o seu filho Gaspar. O velho ria-se dos trejeitos do bufo; o rapaz no despregava os olhos do camarote; e Joaquina Eduarda, a espaos no longos, desfechava sobre a face arrobada de Gaspar uma flecha das maviosas pupilas, que fariam lembrar os relmpagos rutilantes em cu azul, ao fechar-se um dia calmoso de Julho. O juiz de Fora segredou a esposa algumas palavras. A esposa inclinou-se irm, e disse-lhe: Olha que no parece bem estar assim uma menina a olhar para um homem. Eu para quem olho?! perguntou Joaquina, confessando a culpa no rubor e contrafeito sobressalto. Eu bem vejo, e o teu cunhado tambm viu. A menina voltou o rosto para o palco, deteve-se com gesto de amuada alguns minutos; depois esqueceu-se, e olhou outra vez. A irm sorriu-se de m catadura, e murmurou: Queira Deus... O teu cunhado, se o zangas, no volta mais aqui, nem a parte nenhuma. No sabes o gnio dele?.. e as recomendaes do mano Sebastio? Tornou a amuar Joaquina Eduarda, e nunca mais baixou os olhos sobre a plateia. Concludo o espetculo, o magistrado tomou pelo brao as duas senhoras, que entraram em cadeirinhas e partiram, enquanto ele ficou esperando no ptio o regedor das justias para lhe dobrar uma cortesia at aos joelhos. Convm saber alguma coisa do juiz de Fora e a sua famlia. Estava ele ouvidor em Viana em 1758. Ali vivia, no ultimo quartel da vida, um fidalgo com poucos bens de fortuna, e muitas feridas no servio da ptria. Era o capito de cavalaria Ferno Cazado Godim, neto do doutor Maral Cazado, o qual fora irmo duma celebrada viva de quem rezam as crnicas dos herosmos de portuguesas. Costumava Ferno mostrar a quantas pessoas se honravam com a sua amizade um livro impresso em 1625, e escrito pelo padre Bertolameu Guerreiro, da Companhia de Jesus, no qual livro vinha contada a faanha da sua tia-av pelo seguinte teor:... Para estimar foi a contenda que entre a natureza e a honra findou no peito de uma dona vianesa, que tem pouca razo de envejar o valor das matronas romanas. Tendo na sua casa um s filho, em cuja companhia tinha a sua consolao e governo, se viu com ele em grande fadiga: apertava o amor de me para ele no ir armada (*) apertava o da honra para no ficar na terra. [(*) Esta armada destinava-se a ir expulsar os holandeses das praas assaltadas e tomadas no Brasil em 1624.] No meio desta batalha, entra o filho pela casa, acompanhado de amigos e parentes para a consolarem de ficar alistado no servio da jornada: com o fogo no corao e gua nos olhos, lhe lanou mil bnos, rejeitando os alvios que lhe davam da sua saudade: dizendo, que ainda que no negava o efeito de me em ficar sem filho, estimava t-lo para nesta ocasio fazer dele sacrifcio honra, que o era servir ao seu rei em tal jornada. Era esta Dona me do capito Joo Cazado Jcome, que na jornada o foi do navio S. Bom-Homem. (*) [(*)Jornada dos vassalos da coroa de Portugal, para se recuperar a cidade do Salvador, na Bahia de todos os Santos, tomada pelos Holandeses, a oito de Mayo de 1624, e recuperada ao primeiro de Maio de 1625. LxPor Mattheus Pinr. Ano de 1625.] Esta pgina do feito brioso da irm do seu avo era a consolao do velho, visto que dos feitos dele nem gloria sabida nem merces pecuniosas adquirira para poder legar aos filhos. Ferno Cazado, ao tempo que Sousa Pereira chegara a Viana ouvidor, tinha duas filhas, e ura filho ento reitor nas proximidades de Barcelos ao sop da serra de Air. O magistrado, j pendendo aos quarenta anos, afeioou-se filha mais velha de Ferno, e casou com ela sem grandes prlogos de galanteio. Passado um ano, Sousa Pereira foi transferido juiz de Fora para Amarante, e Joaquina Eduarda, meigo amparo e alivio do seu pai, ficou naquela melanclica estreiteza de gozos infantis, at que o velho se finou santamente nos braos dela e nos do filho clrigo. Recolheu o padre Sebastio Godim reitoria, e levou consigo a irm. Herana quase nenhuma teve que administrar-lhe, porque o melhor dos bens de Ferno foram em vida repartidos entre a filha casada com o ouvidor, e o patrimnio clerical de Sebastio. O restante, que o velho destinava ao dote da segunda filha, levou-o a pertinaz e mortal enfermidade de um ano. O padre Sebastio prezava em extremo a sua irm. Por amor dela alfaiou modesta, mas asseadamente, a pobre casa da residncia reitoral. Comprou-lhe cravo para aprender musica e canto, com um proprietrio de Barcelos, que professara aquelas artes na capela do Sr. D. Joo V. Mais dano correu, se no alegre, pelo menos bonanosa a vida de Joaquina Eduarda. O irmo, algum tanto desvanecido com a fidalguia dos seus avs, apenas aceitava a convivncia de pessoas da sua plana. Dizia ele que a plebe lhe no aborrecia, seno porque era vil dos instintos, que a bruteza da nenhuma educao asselvajava mais. Sem embargo, como pastor dalmas, cumpria zelosa e evangelicamente os seus deveres. Quis, ao comear as suas funes paroquiais, dirigir uma escola para desbastar nos mocinhos a rusticidade dos pais; porm, ao segundo ms de ensino, os pais levavam de fora os filhos para a lavoira, alegando que se comia bem, e bebia, e governava cada qual a sua vida sem saber ler nem escrever. Joaquina Eduarda, sem demover-se pelo exemplo do irmo, chamou a si algumas rapariguinhas de lavradores para lhes ensinar prendas das mais necessrias. Poucas acudiram ao convite, e, logo depois, assim que a sfara das colheitas comeou, retiraram-se todas. Algumas pessoas nobres de Barcelos visitavam de longe a longe o reitor, no tanto porque ele era bom sacerdote, mas principalmente porque tinha os apelidos dos Cazados e Godins. Pde muito bem ser que outro motivo atrasse residncia de Bastuo alguns visitantes de costumes suspeitos. Se a hiptese aceitvel, pouco tempo c prestou a conjeturas, porque os hospedes retiraram, to de pressa viram no rosto do reitor a gravidade e desconfiana. Maria Amlia, a irm de Joaquina, dois anos depois do apartamento, escreveu ao irmo padre rogando-lhe que deixasse ir a sua irm fazer-lhe companhia por alguns meses em Amarante. No deu o padre a permisso, que Joaquina secretamente desejava. Disse que no podia desfazer-se e privar-se do nico bem que Deus lhe concedera, na saudada que, por obedincia filial, sacrificara o seu corao; e acrescentou, em carta ao seu cunhado, que Joaquina era inocente como as boninas as suas irms daqueles prados e vales; e que o ar dos povoados a poderia empestar e fenecer como sucede s flores dos montes transplantadas para os jardins. Magoou-se o juiz de Fora com aquela observao. Pois que!dizia ele Joaquina na minha companhia estar menos resguardada e defendida que em companhia do irmo?! Pois eu tomo a peito provar a meu cunhado que me no assustam as suas reflexes. Dai a pouco, apareceram inesperados na reitoria o juiz de Fora e a sua senhora. Correram quinze alegres dias em passeios, musicatas, e pecarias no rio Cavado. Findo este prazo, Antnio de Sousa Pereira instou o seu cunhado a que deixasse ir a mana Joaquina passar o inverno em Amarante. O padre, confiando nimiamente na amizade da irm, cedeu nela a deliberao. Joaquina hesitou por delicadeza cora o mano; todavia, quando o cunhado se fez interprete do seu silencio, calou-se condescendendo. Entristeceu-se profundamente o padre; ma no a contrariou; apenas disse: Tens razo: o inverno aqui muito desagradvel. Voltars com as flores e com as aves, minha irm. Vieram aves e flores; mas Joaquina no voltou. Seriam amores que a prendiam vila de Amarante, que, naquele tempo, tinha em si muitas famlias nobres, das mais qualificadas na fidalguia do norte? No eram amores: era, por ventura e com desculpa, a gloria de ver-se admirada como portento no canto, e como professora no cravo. O culto sua singular formosura era incenso que a no aturdia nem lhe inclinava o animo isento a algum dos turibulrios. O juiz de Fora, posto que se comprazesse na esquivana da cunhada, desejaria que ela se no dificultasse ao galanteio de rapazes fidalgos e ricos, a fim de poder escolher marido como lhe convinha na sua carncia de bens de fortuna. Porm, aconselhada pela irm a condescender discretamente s instancias delicadas dos gals, Joaquina Eduarda respondia: Por interesse sou incapaz de mentir a algum destes homens; e por amor... digo-te a verdade: ainda no encontrei pessoa que possa despertar-mo. Oxal, redarguia Maria Amlia, que no venhas a encontrar o despertador em algum rapaz pobre e mecnico... Se isso acontecesse, replicava a menina, maior desgraa me no desse Deus. O padre recebia a substancia deste e doutros dilogos semelhantes. No se afligia nem contentava; todavia, inquietavam-no pressgios funestos, que ele desvanecia atribuindo-os ternura com que estimava a sua irm. Passado um ano e meio de ausncia, foi o reitor visitar a sua famlia, no intento de voltar com Joaquina Eduarda. Assistiu a algumas assembleias, que se faziam em diferentes casas, revessadas s noites. Presenciou o cortejo que rodeava a sua irm, aplaudida, festejada, e aclamada rainha de todas as festas. Em verdade disse ele ao cunhado Joaquina uma alma extraordinria para se no ter embriagado com os fumos da lisonja! Supunha eu que todas as mulheres deviam sucumbir, mais ou menos nobremente, a esta guerra que o mundo faz tranquilidade dos coraes! um assombro! dizia Antnio de Sousa; mas, por isso mesmo, receio que alguma paixo a surpreenda inconvenientemente. Estas mulheres de condio muito afidalgada e rebelde em amores, so como as pessoas muito saudveis: chega uma hora em que a primeira doena mata umas, e o primeiro amor perde as outras. Pois se receia isso, meu amigo acudiu o padre intendo que o melhor deixar-ma levar para o esconderijo da minha aldeia. Isso de mais! exclamou o cunhado Pois o mano j viu que s pessoas muito saudveis as resguardassem num hospital para esquiva-las primeira doena? Mas que analogia h entre o hospital e a minha aldeia?! H! a sua irm, passando desta vida agitada e satisfeita, para o ermo e silenciosa monotonia do campo, cai-lhe numa tristeza inconsolvel, e comea a pedir ao corao o segredo da sua cura. Ento que o temermo-nos dalguma impresso funesta. Valha-me Deus! retorquiu o reitor isso um sofisma, meu caro doutor! E, se o argumento colhe, mau foi tira-la duma quieta vida, e da ignorncia destas folias que tornam perigosa a mudana para a solido. Bem sei, bem sei. O que o mano quer levar a sua irm, e eu no tenho corao que o contradiga. J agora deixe-a estar mais um ms. Vai abrir-se o teatro de canto no Porto, e eu estou comprometido a leva-la a esta festa, a mais preciosa para quem divinamente canta como ela. Depois, tanto Joaquina como Maria Amlia querem visitar a tia Joana, freira do Santa Clara, que elas nunca viram. Estaremos um ms no Porto; iremos de l a Barcelos; e Joaquina, visto que o mano assim o quer, fica na sua companhia alguns meses, e voltar no inverno para Amarante, se eu ainda la estiver servindo. Acordaram nisto. CAPTULO III
J se viu que o juiz de Fora experimentou no teatro o primeiro desgosto, enquanto a desconfiar da sua cunhada. Gaspar de Vasconcelos, bem que filho de um rico fidalgo, no era dos pretendentes do agrado de Antnio de Sousa. O pai destinava-o a casar-se com uma prima carnal. Se o filho contrariasse o destino, que lhe davam, perderia a estima do velho, e, como ilegtimo, no haveria sequer alimentos da casa paterna. O juiz de Fora sabia tudo isto cabal e juridicamente. O simples caso de Joaquina Eduarda encarar no rapaz com ateno desusada, pouco devera inquietar o espirito do cunhado, se no fosse aquele preconceito da fatalidade da primeira impresso na alma das mulheres refretarias aos galanteios de que o maior numero delas se pagam e desvanecem. v Na noite seguinte do teatro, deu o regedor as justias um baile em honra de Joo DAlmada. Joaquina Eduarda cantou: apresentaram-lhe duas arias do II trascura-to Leu-as magistralmente, cantou-as de modo que, sem encarecimento, a reputaram superior Giuntini no apaixonado das notas maviosas, e na fora com que expedia as graves. Foi o encanto da noite, dos olhos, e dos coraes a prendada menina. Gaspar de Vasconcelos no tinha j corao em que outra esperana ou pensamento coubessem. O valor de Joaquina Eduarda figurou-se-lhe tamanho a ponto de j ele imaginar que o seu pai se desvanece- ria, podendo ter aquela menina como esposa do seu filho. E, autorizado pelo afeto com que o velho indulgenciava certas liberdades, disse ao ouvido do pai: Se eu casasse com uma divindade como aquela... O que? interrompeu o fidalgo bracarense Faz-te palerma!. Nem pensar nisso! A tua mulher a tua prima. Gaspar sorriu-se dissimuladamente, e disse: Eu estava a gracejar... Pois sim; mas com o corao e com mulheres daquelas no se. graceja, ouviste? cunhada do meu amigo Antnio de Sousa, filha de um homem de bem, e finalmente capaz de fazer perder o juzo queles que o tem no seu lugar. O rapaz dava os ouvidos s reflexes do pai, e no desfitava olhos de Joaquina. Pedro assestou-lhe tambm a enorme luneta de aro de prata, e murmurou: Ela parece que est a olhar para ti! Querem vocs ver que temos historia! Ora tem coisas o pai!. Ao mesmo tempo, o juiz de Fora segredava esposa: Isto no tem jeito!. L esto eles em contemplao!. No saias do lado da tua irm. Repara tu que esto aqui mais de vinte homens fascinados de Joaquina, todos abastados e das primeiras casas. Pois observa que a tola no corresponde ao cortejo de nenhum!. Eu vou sentar-me ao p dela disse a dama, um tanto admirada de que o marido no desse tento de que andavam ali tambm uns vinte homens a olhar para ela. Saram do centro da sala os homens para darem praa ao espetculo magnifico do minuete, que era ento a nova e suprema expresso do belo no bailado, arte em que portuguez.es no primavam. Saiu sala em p de dana Gaspar de Vasconcelos, emparceirado com uma filha do regedor das justias. Rompeu a musica, e logo ele comeou por dificuldades que excedem todo o louvor. Reinava o espanto nos espectadores. Gaspar adquirira em Coimbra aquela prenda em que sara primor. O prprio bispo, conde de Arganil, o mandava algumas vezes convidar para na sua presena e na de alguns gravssimos doutores, executar as maravilhas do minuete a solo. Era uma gloria nacional o rapaz em Coimbra e Braga; mas, daquela noite em diante, o Porto subscreveu, admirao universal das duas mais cultas cidades do reino. Joaquina Eduarda corava de entusiasmo quando viu Gaspar nos braos de Joo DAlmada e Melo, cabea bem formada, que naquela hora o nctar de Terpscore desconcertou. Os aplausos gerais celebravam o grupo sublime do velho sargento- mor abraado ao rapaz. Gaspar na dana, e Joaquina Eduarda no canto, eram o assumpto do dia seguinte. No obstante, Antnio de Sousa metia a riso os trejeitos, convulses, e pulos de Gaspar, na presena da cunhada. A menina ouvia-o com silencioso despeito, e o juiz picava o olho mulher. Passadas duas noites, repetiu-se a rcita. Pedro de Vasconcelos no quis ir ao camarote do seu amigo com o filho. Aproveitou a oportunidade de estar o rapaz no camarote do regedor das justias, e foi s. Joaquina pregara os olhos embelezados no camarote do regedor das justias, enquanto o velho de Braga entretinha o cunhado; mas o cunhado ouvia o pai, e via o filho. Despediu-se Pedro de Vasconcelos; e Antnio de Sousa, acompanhando-o, travou- lhe do brao, e saiu com ele a passear no estreito ptio do teatro, ptio a que no chamo vestbulo por no desfeitear a arte dos Afonsos Domingues. Falemos como velhos amigos, disse o juiz de Fora. Que sempre fomos acrescentou o fidalgo. Eu descobri que a minha cunhada no indiferente ao seu filho. Tambm eu descobri isso. Pagam-se na mesma moeda. necessrio cortarmos desde j esta inclinao, a menos que Vossa Senhoria no ordene o contrario. Isto que franqueza. Pois ento franqueza e mais franquezadisse o velho, apertando-o nos braos O doutor, meu velho amigo, no se ofende se eu lhe disser que preciso acabar com esta inclinao... De modo nenhum me ofendo. O meu rapaz, como sabe, filho natural, e eu de propsito no requeri perfilhao; porque, se ele me andar ao arrepio da minha vontade, os meus bens vo a quem tocarem. Quero que ele case com uma filha da minha irm; e estou espera que a pequena tenha a idade para requerer as dispensas. Isto negocio tratado; porque assim o meu vinculo vai a minha sobrinha, e o rapaz, deste modo, sucede-me na casa; seno, nada feito. Muito bem: gostei ouvi-lo assim falar. Eu j sabia isso; mas quis obter a ultima certeza. Fez Vossa Senhoria muito bem, doutor. Eu c pela minha parte j disse ao rapaz o que tinha a dizer-lhe; e, se no fossem uns negcios que trago aqui na Relao, ia-me j embora amanh com ele, porque, se vai a dizer verdade, a sua cunhada o que eu tenho visto de rapariga perfeita; e, se ela quiser marido rico e to fidalgo como ela, no tem mais que escolher. E desculpe, doutor. Separaram-se. Antnio de Sousa entrou no camarote, e achou l Gaspar de Vasconcelos. Tratou-o com urbanidade, mas muito carregado de aspeito. Saiu o rapaz; e o juiz, passados minutos, disse: Amanha necessrio erguer cedo, e enfardelar a troixa. Vamos embora? disse D. Maria Amlia. Vamos para Barcelos; mas antes de entrarmos nas liteiras, tu e a tua irm ireis visitar ao convento de Sta. Clara a lia Joana, que j est prevenida. Joaquina Eduarda no volveu sequer a cabea, para que lhe no vissem o rubor, nem o espelhado das lagrimas. Ao correr do pano sobre a ultima cena, enquanto a irm lanava aos ombros um manto encapuzado, e o cunhado procurava a bengala debaixo da cadeira, Joaquina fitou os olhos em Gaspar, e ousou enviar-lhe um gesto de adeus com a cabea, um adeus que, na tristeza do rosto, dizia para sempre. Gaspar levou a mo ao peito sem dar tino do acto. O pai, que estava de atalaia, reparou no caso, e disse: Que diabo de geringona essa?! Ai! que o rapaz traz-me a cabea a juros! Anda dai, meu patacoada! Parece que nunca viste mulheres! CAPTULO IV
Triste foi o despertar de Joaquina Eduarda, se por ventura dormiu. Amaldioada hora em que vim ao Porto! dizia ela entre si. J o amor lhe doa tanto, que mais quisera no ter conhecido a formosa luz desse mortfero raio! Enfardelada a bagagem, saram as senhoras em cadeirinhas a visitar a tia D. Joana, religiosa professa de Santa Clara, que nunca tinha visto Joaquina. Era a tia Joana uma serva de Deus, e exemplar esposa de Jesus Cristo. Para ali entrara aos quinze anos, e nunca mais vira o sol seno atravs de grades. Vivera ditosa, e no compreendia o desgosto dalgumas freiras, que invejavam a liberdade das andorinhas. Encantada da formosura da filha do seu irmo, exclamava: Deu-te o Senhor essa beleza angelical, porque te quer para as suas divinas npcias. Vem para mim, Joaquina, vem; e, se o corao te levar para o esposo, veste o habito. Se tens bonitas prendas, como toda a gente diz, a quem melhormente as dars seno ao autor delas? Sers a mais rica em dotes, entre as suas esposas. Resolve-te, minha pomba do cu. Se estas grades te entristecem, vers como o amor de Deus tas ilumina depois. Eu pensarei, minha tia disse Joaquina Eduarda; por enquanto no decido do meu futuro. Espero que ele seja mau; porm, o ser freira, sem decidida vocao, preparar o pior dos futuros. Assim , menina, assim ; mas eu pedirei ao Senhor que te mova, e a sua divina inspirao te ser depois contentamento sem fim. Isto aqui dentro, filha, um mundo pequeno: h bom e mo; os bons coraes melhoram-se, e os maus pervertem-se. Resultado triste das profisses involuntrias... Vai pensar e orar, para que Deus te guie por graa de um dos seus anjos. Prolongou-se a visita nestes serficos discursos da freira, at que Antnio de Sousa chegou, e logo depois as locomotivas estrondosas. As senhoras desceram a embarcar nas liteiras. Joaquina circunvagou os olhos pelo rocio do mosteiro, e avistou encostado ao arco da Porta do Sol Gaspar de Vasconcelos, cobrindo meio rosto com um leno branco em que as lagrimas se embebiam. Tinham sido as campainhas das liteiras, que avisaram o rapaz. Abalado pelo agudo pressentir da amante, desceu rua a interrogar os liteireiros, e soube que pertenciam ao juiz de Fora de Amarante. Deps na mo condescendente do arrieiro um cruzado novo, e pediu-lhe espera dalguns minutos enquanto ele escrevia duas palavras, para serem entregues, quando fosse possvel, mais nova das duas senhoras. Negociada felizmente a proposta, Gaspar escreveu no balco duma tenda poucas linhas, que fechou com um fragmento de hstia, e, com outro cruzado novo, entregou o bilhete. Partiram as liteiras caminho de Barcelos. Antnio de Sousa nem palavra disse com referencia pertincia do bracarense, que ele, indignado, vira encostado ao arco. Exultou o padre Sebastio Godim, quando a casa se lhe encheu de luz com a presena da irm. O sacristo, sem consultar o reitor, foi dar trs repiques nos sinos e sinetas do presbitrio. Os rapazes da aldeia deram de mo lavoira, e saram rua com rebecas e zabumbas. O mordomo de S. Clemente perdeu o amor a trs mil seiscentos ris, e pegou lume a dose dzias de fogueies que tinha comprado para a festa do santo no domingo prximo. Apinhou-se a freguesia alvoroada em volta da residncia, e beberam-se alguns canecos de vinho, que mandou comprar o juiz de Fora. E Joaquina Eduarda, que to querida era daquele povo, estava triste e aborrecida. Para se furtar da vida. Fico ao p de Barcelos, na freguesia de Bastuo. Como hei de eu v-lo, sem ser descoberta? No sei. Tenho um irmo que h de ser mais severo que um pai. No me esquea, e esperemos a sorte. J. Eduarda. Depois disto, e entregada prosperamente a carta ao liteireiro, transfigurou-se o rosto amargurado de Joaquina. Desbordava-lhe a exaltao do seio aos lbios e olhos. Sorria a todos, acariciava o irmo, cantava modilhas populares no seu desafinado manicrdio, fazia passos do solo ingls, e gesticulava remedando a Giuntini e as truanices do bufo da pera. Antnio de Sousa estava pasmado; Sebastio Godim aquinhoava daquele doudo contentamento; e a irm, que j se tinha mostrado enfadada dos enojos de Joaquina, dizia ao marido: Desconfio deste sbito contentamento! Aqui h historia... Que historia! H a versatilidade prpria das mulheres! dizia Antnio de Sousa Esqueceu-se do rapaz! o que . Ainda bem. Aqui h historia, Antnio! instava a senhora Fia-te em mim, que sou mulher. Por isso mesmo que no h historia! disse sorrindo o magistrado Vocs so uns evangelhos muito apcrifos para que a gente se fie. No rias. Lembra-te que Joaquina desapareceu daqui um grande pedao. Passou duas vezes pela sala muito cabisbaixa e pensativa. Dei tento de ela ir duas vezes ao quintal... E dai? Estar o Gaspar por ai escondido? Valha-te Deus!.. No sabes que pai ele tem! Pensavas que o rapaz atravessava dez lguas atrs das liteiras sem ser visto!... Ento outra coisa: historia to certo hav-la, como dois e dois.... Serem quatro tolices que tu dizes. Assim rematou Antnio de Sousa, quando a sua cunhada entrou abraada no irmo. Raras intermitncias de tristeza assaltaram o jubiloso espirito de Joaquina. Os oito dias, que Antnio de Sousa passou na reitoria, correram sem que a sua cunhada revelasse leve pesar de ver partir a irm para Amarante. O juiz discretamente referiu ao reitor o acontecido com o sujeito de Braga, as inquietaes que este episodio lhe dera, e por amor disto a pressa com que viera entregar-lhe a irm. Sebastio Godim agradeceu a historia, e mais ainda a restituio da sua filha, como ele dizia, para encarecer o muito que estremecia Joaquina. Agora juntou Antnio de Sousa o mano acautele-se e previna-se. De qu? interrogou com sorriso de galhofa o padre. De alguma correspondncia ou visita inconveniente... O rapaz tem ares de afouto, e ela no me parece que seja das mais tmidas. O mano ri-se? Olhe que estes casos no se levam assim... Chama-se ele?perguntou o padre. Gaspar, filho do Pedro de Vasconcelos, de Braga. Bem sei: este Vasconcelos era um bom amigo do meu pai. No creio que desta famlia possa surdir a desonra da minha; e menos receio que a minha irm se descuide de ser honesta. Em fim, eu c estou... Se ela tinha sado vitoriosa das sedues dos gals amarantinos, e vinha agora nestes inocentes vales, sombra do seu irmo, destruir o bom conceito que tem ganhado!.. No pensemos nisto, que me faz mal.... Retiraram o juiz de Fora e mulher para Amarante. Joaquina Eduarda disps de pouqussimas lagrimas na despedida, e assim recompensou liberalmente os secos olhos da irm. Esta senhora, bem que linda e grandemente mimosa de encantos, desde certo tempo cobrara no sei que louca emulao da irm. Quando Joaquina chegou a casa dela, a esposa do juiz frua a nota de primaz nas formosuras daquela vila; porm, o eclipse fora total com o aparecimento da mais nova. E, posto que a dama casada no queria cativar algum com as suas graas, doeu de que lhas vissem com indiferena. Mulheres! a serpente sempre a sob-rojar-se por entre as mais virtuosas! Isto assim d explicao do ar despeitoso com que as vimos no teatro e sales do regedor das justias, e melhor esclarece a economia de lgrimas com que se despediram... para nunca mais se verem. Mais satisfeitos que nunca, douraram-se os dias de Joaquina e do seu irmo. O padre surpreendeu-a com o brinde de um piano forte, o primeiro talvez que viera a Portugal, daqueles que inventara poucos anos antes o celebrado Silberman. Deu- lhe tambm cadernos italianos de musicas modernas. Quanto ele poder poupar em ano e meio, tudo empregar na realizao daquele desejo da sua irm. E, ao v-la, to distrada com musica e flores, o reitor censurava no intimo, e com desagrado, as suspeitas caluniosas de Antnio de Sousa e da mulher. Uma tarde, sentados na ourela verdejante do crrego, chamado rio Real, conversavam sobre os casamentos deparados em Amarante irm. Joaquina ria-se, recordando os dizeres requebrados daqueles sujeitos, e a desgraciosa ternura de tais aleijados pelo magano Cupido. Ria o padre da linguagem pitoresca da irm; e, azado a oportunidade, pela primeira vez falou em Gaspar de Vasconcelos. Vestiram-se de purpura e seriedade as faces at ali joviais de Joaquina, e ento observou o reitor: Este nome alterou-te, minha irm?! Foi uma saudade e mais nada respondeu ela No me censures por isso, que este sentimento no indigno de almas bem formadas. Pois eu no te censuro disse suavemente Sebastio E, a censurar-te, seria por ocultares do teu nico amigo esse incidente de nenhuma importncia. Pois por ele no ter importncia to ocultei. A sada era engenhosa; e, por muito engenhosa, sugeriu precaues ao padre. No tardou motivo de suspeita. Sebastio Godim voltava um dia da igreja a buscar a caixa das hstias, que lhe esquecera, e encontrou nas vizinhanas da residncia um homem estranho que mal disfaradamente, ao avistar o padre, se ecoou por um quinchoso, que conduzia estrada. Trajava jaqueta, chapu derrubado, e denotava homem da ultima plebe. Aventou o padre, naquele desconhecido, um enviado de Gaspar de Vasconcelos. Calou-se, porm. Lanou inculcas e pesquisas. Colheu midas informaes. Aquele homem j trs vezes tinha vindo amanhecer freguesia, e parava porta do reitor, hora em que este dizia a missa. Fez-se triste o padre. s perguntas da irm, sinceramente sentidas e desconfiadas, Sebastio respondia com um tingido ar de contentamento, e algumas frvolas explicaes da sua melancolia. Estavam espias embuadas nos atalhos convizinhos do paal e casa do reitor. Um dia, foi avisado o padre, quando se estava revestindo. Desparamentou-se, saiu da igreja, e meteu por caminho diverso. Surgiu de repente quina do cunhal da casa, e viu retirar-se o mesmo homem debaixo duma janela. Desandou em redor do paal, e saiu-lhe frente. Acercou-se do homem, lanou-lhe a mo lapela da jaqueta, e disse-lhe: A carta que levas! No te demores em darma, seno quebro-te os braos. Est aqui, senhor disse o homem aterrado, e entregou-lha. Espera! juntou Sebastio Godim. Leu a carta, dobrou-a, voltou-se placidamente ao criado de Gaspar, e disse-lhe: Vem comigo, que no te fao mal. O homem seguiu-o. Espera-me aqui disse o padre entrando ao quinteiro da residncia. Subiu ao seu quarto, e escreveu em meia folha de papel: A carta dirigida por Joaquina Eduarda ao Sr. Gaspar de Vasconcelos fica em poder do filho de Ferno Cazado Godim. Saiu ao patamar, chamou o criado, e disse-lhe: Entrega isto a quem te mandou. Joaquina Eduarda, atravs da vidraa do seu quarto, vira o homem, e exclamara: Virgem Santssima, que ser isto? O sacerdote voltou ao templo: ajoelhou a reconciliar-se aos ps doutro sacerdote, e foi para o altar. Disse o ajudante da missa que o Sr. reitor, naqueles espaos do sacrifcio em que o ministro se enleva contemplativo, as lagrimas lhe rolavam das faces, e caiam sobre a vestimenta. hora de almoo, Joaquina faltou mesa. Sebastio perguntou pela sua irm. Responderam-lhe que a menina estava fechada por dentro, e o quarto s escuras. Chamem-na ordenou o padre. Passados minutos saiu Joaquina casa de jantar. Trazia os olhos roxos de chorar. Almoa, se podes, Joaquina disse Sebastio. No posso: deixa-me voltar ao meu quarto. Vai, que eu logo procuro-te. Ergueu-se da mesa o sacerdote, e foi rezar no brevirio. Depois, bateu porta do quarto da sua irm, sentou-se ao p do leito em que ela estava sentada, e disse-lhe: No e o caso para tamanha aflio. A tua carta a Gaspar exprime grande amor, e mais nada. Isto apenas um erro: crime no o h. Reprovo o teu procedimento; mas no te lano da minha alma. Venho perguntar-te se tens fora para romper esta impensada aliana com o homem a quem escreves. Se a no tens, mal de ti! Andas com os olhos tapados em volta de um abismo. Este homem quer perder-te. E porque no h de querer ser o meu marido?! perguntou ela animada pelo ar indulgente do irmo. um filho natural, que cair sobre as palhas da misria, se desobedecer ao pai. Dentro de alguns meses, Gaspar de Vasconcelos estar casado com uma prima, ou perdido. falsidade! exclamou ela. No digas isso ao teu irmo que nunca mentiu, Joaquina. Ento estas cartas?! clamou ela, saltando do leito, e tirando dentre a roupa duma gaveta quatro cartas... Dizem-te essas cartas que ser o teu marido Gaspar? interrompeu Sebastio. L-as tu. No preciso: segue-se que ele quem te mente, e infame em enganar-te. Enganarem-me a mim estas cartas!. Oh! tu no sabes quanto eu sou amada!. L, meu querido irmo, l estas cartas! Nem tocar-lhes. Pois tu no intendes que eu possa ser verdadeiramente amada? bradou ela com orgulho. Pde ser que o sejas... E eu me arrependo de ter chamado infame a esse homem. Pde ser que ele medite em sacrificar-te sua paixo e sua indigncia. De qualquer dos modos, mau homem. Pergunto de novo: tens foras para te desligares desta fatal priso? Joaquina meditou instantes, e respondeu soluante: No tenho t O irmo levantou-se, e saiu do quarto. Meia hora depois, saia no caminho de Braga. Pedro de Vasconcelos quando soube que tinha na sua sala um filho de Ferno Cazado Godim, houve grande jubilo, e mandou por na mesa mais um talher, e recolher a gua sua cavalaria. Eu volto daqui a pouco no caminho da minha casa disse o padre Exponho em pouco tempo a razo da minha vinda. Vossa Senhoria pai, e eu sou irmo. Vontade e autoridade de pai podem muito, a de irmo pouqussimo. Tenho uma irm alucinada de amor ao Sr. Gaspar, filho de Vossa Senhoria O Sr. Gaspar est no caso de ser esposo da minha irm, com o beneplcito do seu pai? No, senhor: j respondi o mesmo ao seu cunhado juiz de Fora! Bem: venho pedir a Vossa Senhoria que defenda a minha irm da seduo do seu filho. Venho pedir-lhe que o reduza aos seus deveres, j que eu no posso iluminar as trevas do engano, que ele lanou no espirito da minha pobre irm. Pois o malvado continua? exclamou o velho O patife desonra-me? quer seduzir a filha de Ferno Godim? J respondi a Vossa Senhoria Agora recebo as suas ordens, e vou-me s minhas obrigaes. A reitoria pobre, e no tenho coadjutor que mas faa. Pois nem ao menos me aceita um jantar? Aceito-lhe a boa vontade, e deixo-lhe em paga triste paga! impressa na memria a tristeza de um irmo infeliz. V descansado, Sr. reitor concluiu o velho que eu sei ser pai com o meu filho; mas, se ele deixar de ser filho, serei algoz. CAPTULO V
A mesma sombra afetuosa voltou ao aspeito do padre, que sorria a Joaquina Eduarda. Correspondia ela com ar de amargurada s alegres expresses com que o irmo parecia desafia-la aos contentamentos antigos, e pedir-lhe perdo da ter salvado de um perigo. Malogrados os esforos que pusera, recalcando no peito a dor de se ver assim vitimado para uma saudade, Sebastio desistiu de recuperar a ditosa vida que se lhe afigurar duradoura at doce paz da velhice. Ento foi o cavarem-se-lhe as faces, o reconcentrar-se na angustia silenciosa, e o viver com a irm na dolorosa mudez de duas pessoas que violentadas sustentam e sofrem os dolorosos liames da convivncia. Joaquina, encerrada no seu quarto, contou por lagrimas os arrastados minutos de trinta dias. J no esperava, nenhum acaso lhe prometia novas de Gaspar. Sabia que ele devia estar j em Coimbra: pensava em escrever-lhe; mas no tinha pessoa de quem confiasse uma carta, e menos ainda quem do correio lhe trouxesse a resposta. A este tempo o reitor recebeu carta de Pedro de Vasconcelos, assegurando-lhe que o filho estava a concluir a formatura na Universidade, e lhe jurara nunca mais inquietar a Sra. D. Joaquina, nem responder s cartas, se as recebesse. E conclua: Rogo-lhe muito encarecidamente que me avise, caso o meu filho quebrante o seu juramento. Despiram-se as arvores, nublou-se o cu, esfuziavam as ventanias de Novembro, toldou-se o cristal do Cavado, encharcaram-se as vrzeas marginais dos ribeiros. A tristeza de Joaquina aumentou. J no tinha as tardes e alvoradas do estio a dulcificarem-lhe o agro das suas preocupaes. Reclusa no seu quarto, ou passeando na sala escura da residncia de velhas e nuas paredes, faltava-lhe ar e sol ao qual muitos pesares, como chumbados na alma, se diluem. Foi num daqueles dias, em que o desejo da morte assalta as pessoas infelizes e solitrias, que Joaquina, abraando-se ao irmo surpreendido, exclamou com a voz entrecortada de soluos: Eu quero entrar num convento, meu querido irmo. A tia Joana de Sta. Clara pediu-me muito que fosse para a sua companhia. A santa senhora est pedindo a Deus que me inspire; e este forte desejo, que me impele, obra divina. Sebastio Godim demorou alguns segundos a resposta, inclinando o rosto macerado sobre o peito. No me dizes nada? instou ela. Digo-te que vs, minha irm. Queres professar? Como tenho um ano de noviciado, sobra-me tempo de estudar-me e deliberar-me. Por enquanto no que penso to somente em me recolher para uma cela, orar, e chorar. Amanh iremos para o Porto, Joaquina, se o tempo consentir. Eu vou rogar um padre que me tome conta da freguesia. Escuso dizer-te que, no caso possvel de te enganar essa tua vocao, querendo tu voltar a esta casa, avisa-me, que eu irei logo buscar-te. Observo-te, minha irm, que nos conventos chora-se pouco, e no se ora muito; pelo menos a eficcia das oraes, nos tempos correntes, moderada. Parece acertada a resoluo de entrares em Sta. Clara, se o teu fim distrares-te. L vers muita frivolidade, muita vaidade, muitas paixes ruins, muitssima hipocrisia ao decair da vida, e rarssimos exemplos de sincera virtude. Se estes poderem mais em ti que os maus exemplos, abriga-te no seio da nossa tia, e esconde-te l. Se os maus exemplos te seduzirem, de nada valer o resguardo e conselhos da tia Joana. Seja como for, Joaquina. No serei eu que embarace a tua determinao. J disse, amanh iremos, ou no primeiro dia estiado da chuva. Deu-se pressa Joaquina em arranjar os seus bas, e andava muito alegre nesta azfama. O padre conheceu a transfigurao moral da irm, e disse entre si: Est alegre!. Medita alguma loucura... Pensa que do convento lhe ser fcil corresponder-se com Gaspar... Vou desengana-la... Tirou da algibeira interior do capote uma carta, e disse: Joaquina, h quarenta dias que eu voltei de Braga, e no mais te disse palavra respeito a Gaspar. Deves saber que eu fui perguntar a Pedro de Vasconcelos se o seu filho poderia ser o teu marido. Respondeu-me que no. Pedi-lhe que empregasse o rigor de pai em desvia-lo do caminho da tua desgraa. No se baldaram os meus rogos. Eis-aqui a carta que Pedro de Vasconcelos me escreve. L, Joaquina. Leu, e quando chegou aos termos: nem responderia s cartas, se as recebesse, s faces dela ressumaram diversas cores, nos lbios desfranziu um sorriso inqualificvel, e logo se abriram nestas palavras: Que me importa a mim o vil?. Que me no responda quando eu lhe escrever. Eu escusava de saber isso, mano Sebastio. Se sou desgraada, resta-me a dignidade. Um sentimento nobre de amor no estraga os brios. Eu sei o que valho. Menos orgulho, Joaquina! disse branda- mente o padre Temos visto cabeas coroadas mergulharem na lama das ms paixes. Nem dotes, nem formosura nem fidalguia tero mo de ti, quando tiveres de cair. Cair! exclamou ela Tu julgas de mim muito pouco, Sebastio! Amar cair? fechar os olhos para no ver a voragem; cobrir os abismos de tapetes de flores. No receies. Tive sempre abertos os olhos quando amava; e, se os ento fechasse, abri-los-ia agora para nunca mais se fecharem. Assim seja; concluiu o irmo. Ao segundo dia, estiou o tempo, e jornadearam para o Porto. Obtidas as licenas mediante a solicitao da religiosa de Sta. Clara, Joaquina Eduarda entrou no convento. Ao despedir-se do irmo, debulhou-se em lgrimas, e rompeu num soluar de ultimas agonias. Era grande angustia e assombro este inesperado lance para Sebastio Godim. Queres tu voltar, Joaquina? balbuciava ele sufocado. No... disse ela Eu sinto-me passada de mil dores! Pede Deus que me salve ou que me mate. CAPTULO VI
Ao oitavo dia de convento, Joaquina Eduarda comeava a achar assaz aborrecida a sua tia Joana com a superabundncia de santos e santas das suas relaes. virtuosa criatura da velhinha afigurava-se-lhe que os papas no tinham canonizado gente bastante para enchimento do seu corao devoto! Esgotados os bem- aventurados do padre Feo e do Ribadeneira, soror Joana do Rosrio rezava s almas de todas as religiosas daquele e doutros conventos, falecidas em cheiro de santidade. No principio, Joaquina, mais delicada que devota, comungou do fervor da tia; mas, ao cabo da primeira semana, tinha os joelhos macerados, o corao estril de piedade, e a cabea atordoada do resmonear montono da tia, e duma aluvio de nomes de mrtires, de virgens, de confessores, de doutores, e de freiras mortas e milagrosas, com as respetivas histrias. Emancipou-se ao oitavo dia, dizendo que no podia continuar nas rezas, sem prejuzo da sua sade. A tia Joana dissaboreou-se disto; mas no a contrariou. Ser quando poderes, Joaquininha disse ela com evanglica mansido e bom juzo. Estavam no convento umas religiosas de pouco tempo, e novias recm-chegadas que lastimavam a situao de Joaquina em companhia da beata. Uma e outra lhe diziam: Pobre menina! ao cu vai a senhora, mas da terra pouco tempo h de gozar- se! Reparta melhor o seu tempo. Passeie, divirta-se, coma, durma e reze, que as horas chegam para tudo, e ainda fica tempo de se ganhar o cu. Mais vale uma hora de orao voluntaria, que uma pregao de quatro horas a todos os santos e santas do reino da gloria. Havia tal qual sensatez e conformidade com o pensar de Joaquina Eduarda naquelas tentaes. No foi mister repetirem-lhas; e, como prova de agradece-las, afeioou-se s religiosas que professavam o racional sistema da diviso do tempo. A tia Joana desagradou-se da intimidade da sobrinha com as religiosas mais desempoeiradas do convento. Fez-lhe praticas um tanto enfadonhas, e cessou de admoesta-la, vendo que se fazia aborrecida. s freiras de m nota convidaram uma tarda sua recente amiga a ir com elas para uma grade chamada de galhofa. Joaquina desejosa de distrao, foi grade. Concorriam galhofa dois padres loyos, um arcediago, dois cavalheiros de cabelos brancos trescalando pivetes, e um acadmico da universidade que viera a ferias de natal. Uma das freiras ardia de amores do arcediago, outra de um loyo, e a terceira do outro frade. Os cavalheiros almiracados eram pretendentes a duas religiosas quarentonas, que, de amuadas, por motivos desconhecidos da minha perspiccia, no foram grade. O acadmico era irmo duma novia, que a prevista mestra do noviciado no deixara concorrer com as freiras doudas. O aparecimento de Joaquina Eduarda lanou o espanto naqueles arraiais de amor. Loyos, arcediago, cavalheiros e acadmico, estavam todos embevecidos nela, com roaz desgosto das outras senhoras. H meses, disse um dos cavalheiros, que eu vi esta senhora no teatro italiano e no baile do regedor das justias. E a ouvimos cantar divinalmente juntou o outro No Vossa Senhoria cunhada do juiz de Fora d'Amarante, Sousa Pereira? Sou. E chama-se Vossa Senhoria? perguntou o acadmico. Joaquina Eduarda Cazado Godimdisse ela. a mesma! exclamou o estudante Mal diria eu!. Que mal diria o Sr. Castro? perguntou um padre loyo. Que vinha encontrar aqui uma senhora por amor de quem tem estado s portas da morte o meu condiscpulo Gaspar de Vasconcelos!. Iluminaram-se radiosos os olhos de Joaquina, e volitou-lhe flor dos lbios um riso de cruel contentamento. E Vossa Senhoria sorri-se? observou o acadmico. No sei porque deva chorar! disse ela com jovial desplante Eu no creio nas enfermidades do Sr. Gaspar de Vasconcelos... Creia-me, minha senhora! Juro-lhe pela memria da minha me que o meu condiscpulo chegou a Coimbra, ido de ferias, com febre, e nunca mais se levantou da cama. Eu, como particular amigo e confidente dele, ouvi-lhe duzentas vezes a triste historia dos seus amores; e, se V. Exa. no me cr, e consente que eu exponha tudo que sei acerca da mal fadada paixo de Gaspar... No necessrio interrompeu elaAgora deveras lastimo a enfermidade do seu amigo, e sinto ser eu causa dos seus desgostos; mas bem vingado est ele, que os meus no tem sido menores, e a minha alegria acabou desde a primeira e fatal hora em que o vi. Por causa dele, estou neste convento, onde voluntariamente me recolhi, persuadida que a felicidade j impossvel para mim, e muito possvel, e certa, e at prxima para ele. Agora, peo licena para retirar-me, porque me sinto bastante triste para poder tomar quinho nos divertimentos de V. S. Ergueu-se. fez uma cortesia da melhor sociedade, e retirou-se, deixando-os a eles estupefactos, e s freiras satisfeitas. Fechada na sua cela, Joaquina Eduarda chorou, leu as cartas de Gaspar, e beijou-as com aqueles trejeitos infantis que ensina a paixo. Passados poucos dias, o acadmico voltou ao convento, e anunciou-se Sra. D. Joaquina Eduarda. Correu pressurosa ao locutrio a menina, e aceitou uma carta de Gaspar de Vasconcelos, prometendo entregar no dia seguinte resposta ao mesmo encarregado da ditosa misso. Gaspar justificava-se at superfluidade. A sua paixo levara-o aos braos da morte. Preferira agonizar em silencio, a matar-se de um golpe das suas prprias mos. Esmagado pela prepotncia do pai, que lhe pusera ao peito o punhal da misria, nem sequer o cu lhe sugeria meio de fazer chegar uma carta s mos da mulher por quem morria. Que, naquela cerrao absoluta, partira para Coimbra, a fim de acabar sem ver o tirano pai beira do seu leito de paroxismos. Neste propsito, e conflito entre as foras da idade e a mortal desesperao, houvera noticia da existncia da sua amada no convento de Sta. Clara, e do que ela ao seu respeito dissera, frases empeonhadas que ele agradecia, porque lhe aproximavam a morte. No entanto, pedia ele a Joaquina Eduarda que lhe escrevesse uma palavra de perdo, perdo para a sua perversa alma que ousara inquietar os dias ditosos de um anjo de inocncia. Com os olhos embaciados das pertinazes lagrimas, Joaquina vazou ao papel quanto amor cabe e queima em peito virgem de mulher. No era perdoar: era suplicar-lhe a vida, o amor, a esperana, o cu, e o inferno com ele. CAPTULO VII
Gaspar de Vasconcelos, recebida a carta de Joaquina, sentiu aquelar-se o pulso, refrigerar-se o crebro, e encher-se-lhe a alma de luz. Saltou do leito, pegou da pena, e esperou debalde uma ideia das mil que lhe marulhavam na cabea vertiginosa. Deps a pena, contou o dinheiro que tinha, chamou a servente, e mandou-a alugar cavalo para o Porto. Uma hora depois galopava desfilada pela Sofia, com assombro dos estudantes que o consideravam tsico, nas ultimas vacas. Chegou ao Porto, e entrou de noite na estalagem da rua de S. Sebastio. Ao outro dia escreveu duas linhas a Joaquina, consultando-a sobre a maneira de procura-la. A reclusa, palpitante de alegria, disse-lhe que procurasse a sua amiga Eugenia de Pombeiro. Esta Eugenia de Pombeiro era a sua confidente de quarenta e oito horas. Rebuado no farto reguingote de castorina cora carapua de rebuo, entrou Gaspar ao prtico de Sta. Clara, e recebeu a chave duma grade, em que a Sra. D. Eugenia de Pombeiro o ia receber. Encontrou Joaquina Eduarda, que tremia e chorava. Era a primeira vez em que se viam de feio a poderem proferir a primeira palavra amorosa. O silencio de ambos exprimia o mais alto amor. A palidez do rapaz revelava o atroz suplicio da saudade desesperanada. As faces emaciadas da reclusa, de leve purpuradas de pudor e exultao, testemunhavam os desmaios da passada saudade, e o estremecer da paixo naquela hora. Gaspar tartamudeava, e Joaquina deixava apenas ouvir o arfar do corao sob os relevos tufados do peitilho de estofo escuro. Devo-te a vida.. balbuciou o acadmico Bem-dita seja a hora em que veio aqui o meu condiscpulo! A no ser este feliz acaso, eu morria nas dores ignoradas, na tormentosa anci de querer e no poder dizer-te que morria de saudade. Porque me no escreveste daqui? Como havia de eu de supor que ainda te lembravas de mim? disse ela maviosamente Eu vi a carta que o teu pai escreveu a meu irmo. Prometias no s esquecer-me, seno desprezar-me at ao excesso de no responder s minhas cartas. Como havia de eu escrever-te, Gaspar? Por muito que te amasse, qual mulher, ainda a menos honesta e briosa, te escreveria? E tratavas de me esquecer? Tratava, para me no deixar sucumbir para uma saudade que me no merecia tamanho ingrato... Mas perdoemo-nos um ao outro. Acordemos do negro sonho de trs meses. Como vieste aqui? no receias o teu pai? O meu pai no saber que eu vim. Tenciono no procurar ningum. Demoro-me trs dias. O pai pensa que eu estou de cama. Para ir daqui estalagem ningum me v. Fao caminho pelos becos da S, e deso rua de S. Sebastio. E tu consentirs que eu venha aqui todos os dias? Magoa-me a pergunta! que mais posso eu desejar! E o futuro, meu Gaspar? o futuro? Tenho pensado... Sabes que eu sou filho natural? Sei tudo, sei as condies tristes que te impe o teu pai para lhe sucederes na casa... no me fales nisso que me estala o corao! H outra mulher que j te conta pelo seu esposo. Deixa-la contar. Nunca o serei. Nunca o sers?! exclamou vivamente Joaquina. No! Juro-to pela hstia consagrada! No! Se o meu pai me deserdar, lutarei brao a brao com o infortnio. Vou concluir a minha formatura. De alguma coisa me h de servir o diploma de bacharel. Ganharei a vida como os que se formam para viverem das letras. Se vs que eu te mereo, sers a minha esposa. Pde ser que o meu pai me perdoe a desobedincia; porm, se me lanar de si com a crueldade de que eu no o julgo capaz, serei digno d e ti e de mim: trabalharei, repartirei contigo, e saberei suportar as necessidades com honra e orgulho. Veja-te eu ao meu lado, Joaquina!. Veja-me eu por tuas mos coroado e galardoado dos sacrifcios a que o mundo mais importncia d! Ters coragem, Gaspar?! perguntou ela, estendendo-lhe os braos atravs das grades inflexveis. Se terei coragem! O que no fosse coragem, seria infmia! Que tempo esperarei nesta soledade, meu amor? Alguns meses. Depois da formatura, vou a casa. hei de sondar o meu pai; hei de fazer quanto puder para que a minha prima seja a primeira a detestar-me. Se, todavia, se baldarem estes planos, preciso chamar a mim a coadjuvao de algum que nos desempea o caminho de casamento. preciso que o meu pai o no suspeite. Ele pode muito na vontade do arcebispo, e dos desembargadores eclesisticos. Pela luta a peito descoberto no conseguiria eu nada. Quero ver se o nosso casamento se faz clandestino. Progrediu o dialogo at que a confidente Eugenia veio ofegante porta da grade avisar Joaquina que a tia Joana a andava procurando, porque estava o jantar na mesa. Ao meio-dia! exclamou Gaspar. V tu que suplicio! disse ela sorrindo Janto ao meio-dia! Despediram-se, com promessa para o dia seguinte s quatro horas da tarde. Repetiram-se as duas visitas concedidas, retificaram-se os juramentos, trocaram-se tranas de cabelo, enxugaram-se as ultimas lagrimas ao incndio da esperana. Gaspar voltou Universidade, arquitetando castelos por todos os horizontes e nuvens do cu, que lhe parecia de primavera, acidentalmente criada para uso dele. Joaquina Eduarda fechou-se no seu quarto a escrever incansveis paginas, que iam ser em Coimbra a leitura preciosa e exclusiva do rapaz que, a falar verdade, no sabia uma lei do Digesto, nem um artigo das Decretais. CAPTULO VIII
Tolera facilmente a saudade o corao feliz e seguro da leal remunerao de quem ama. Joaquina Eduarda, quando se no deleitava escrevendo a Gaspar, foliava e travesseava com as novias e religiosas mais fogosas. A tia Joana, cada vez mais desafeta ndole da sobrinha, carecia j de pacincia para indulta-la conta de rapariga criada por bailados e teatros. Primeiro, as reprimendas tinham a brandura crist de uma santa Tereza de Jesus; depois, j iam molestando com os espinhos da severidade; ultimamente degeneraram em rabugem, como l diziam da santa algumas dzias de pecadoras, que, chegadas idade de D. Joana, enganaram o demnio, e morreram como predestinadas, segundo consta dos fastos legendrios de Sta. Clara. fora de martelada pela tia, Joaquina calejou. Fugia dela; mas, se era apanhada em corrimaas e alaridos pelo pomar ou no mirante, ou sada das grades de galhofa, respondia-lhe com desabrimento, e dizia: Tenho dezoito anos. A santa velha, interrogada pelo sobrinho, acerca , do comportamento da irm, respondia: Ela por c vai indo; mas ser bom, sobrinho, que no te esqueas de pedir sempre a Deus que a tenha da sua mo. Instava o reitor pela enunciao destas palavras; e a tia Joana juntava: Joaquina est nova, e quer folgar. Freira que tu no deves esperar que ela seja. Sebastio Godim atribua ao beatrio da velha tamanha austeridade de conceito; ora, como ele no desejava que a sua irm fosse freira, nem tinha bastante com que dota-la, inquietou-se quase nada com o parecer da tia Joana. Chegada a Pscoa, voltou Gaspar ao Porto, onde passou as ferias, com o mesmo recato e prudncia. Eugenia de Pombeiro prestou-se a coadjuvar diariamente duas felicssimas horas dos dois prximos noivos. Amavam-se j com a seguridade, confiana e liberdade de esposos separados por seis palmos de parede-mestra interposta a duas r\as de bom ferro sueco. Mas os coraes saltitavam por aquelas grades, como um casal de canrios nos poisadoiros da gaiola. No havia nada a juntar aos protestos feitos e planos combinados. O casamento havia de fazer-se, o mais tardar, no agosto prximo, dois meses depois de concluda a formatura do nubente. D. Joana sabia miudamente os passos da sobrinha. Delatavam-na as mulas da formosura dela, as trs freiras amadas dos loyos e do arcediago; mas dizia a velha de si para consigo: Se ela aqui dentro no procede bem, que far l fora? Vamo-la sofrendo, a ver se Deus lhe d juzo. Perguntou ela sobrinha quem era o cavalheiro que a procurava. um morgado da Amarante respondeu Joaquina. Vem passar o tempo laia dos freirticos dos meus pecados! No, minha senhora: o seu intento casar comigo, se eu me deliberar a casar com ele. Pois, se ele homem temente a Deus, e remediado, casa, casa, minha menina, que esta vida de convento no te serve, nem tu agradas s senhoras virtuosas desta casa. Ora!.. as senhoras virtuosas.. acudia Joaquina galhofando. Tu zombas, porque as no conheces. A gente com quem vives essa intendes tu s mil maravilhas. Ah! Joaquina, Joaquina! no sei o que me adivinha este corao!.. Vises da minha tia!. Ai! meu irmo! se tu vivesses!. Estava eu muito feliz na companhia dele. Tambm digo, menina, porque serias mais honesta. Pois eu sou desonesta? A tia, com toda a sua virtude, vai-me insultando.. replicou Joaquina impando de orgulho e clera. No te insulto: profetizo-te grandes desgraas, se no te emendas. Ouviu Joaquina a profecia como se a esttica e mumificada velhinha se lhe afigurasse uma Cassandra de mosteiros. Foi dali em grande corrida para o mirante onde a esperava uma chusma de grrulas senhoras que, voz em grita, aplaudiram a chegada de Joaquina. O divertimento, daquela tarde, era ouvir a musica de duas serenatas fluviais, como justo que denominemos dois concertos musicais em dois barcos, alternando-se nas delicias das rebecas, violas e flautas. Estas festas vinham ali onde agora atravessa a ponte pensil, galantear algumas das freiras do mirante. A orquestra era executada magistralmente por frades da Serra, que vinham a ser os galanteadores, acamaradados naquela inocente folia com outros santos vares oratorianos e loyos. As religiosas acenavam, e os cenobitas, os acetas, alargando os cilcios de sobre os rios por breve espao, acenavam tambm com lenos brancos. Neste sobremodo potico divertimento de frades e freiras, apareceu a casta lua a divertir-se tambm. A loira princesa dos astros retratava-se nas suas lmpidas, por no poder vir pessoalmente abraar os. frades, que tanto se esmeravam em acatar as freiras, irms dela na castidade. Em seguida lua, chegou um barco, batendo a compasso rijo e rpido o bracejo dosaremos. Este barco atracou um dos dois mosteiros flutuantes, e logo do interior saram quatro homens que bateram nos crzios da Serra com tamanho e desaforada fora, que os ecos da quinta do bispo, na margem direita, responderam toada cava das pauladas que deslombavam os frades. Depois, atracaram o barco dos loyos e congregados que aproavam ourela direita do Douro, e ai, apesar da desesperada defesa, os braos agressores provaram que eram muito mais expeditos na segunda sova. As freiras tinham fugido acossadas pela grita daquela refrega naval, e pelo tilintar da sineta gemedora que as chamava ao coro. Soube-se depois que os piratas da musica fradesca eram quatro militares, que serviam cavalheirosamente um quinto, a quem um frade loyo roubara a sua freira clara. Naqueles heroicos tempos o cime saia com faanhas deste jaez: o exercito batia- se com os frades, hasteada a bandeira do amor num e noutro campo. Hoje, consoante diz o Sr. A. Herculano, vem ai o frade brincar com o soldado. O cercilho e o bigode jogam o futuro sobre o tambor posto em cima da ara. mau acabarem as freiras enquanto se no extinguirem o cercilho, o bigode e o tambor. CAPTULO IX
De sobra estava D. Joana informada acerca do estudante que requestava a sobrinha. Magoou-se entranhadamente da mentira, e cobrou mais desafeio incorrigvel rapariga. Entraram com ela arrependimentos e escrpulos, j por ter sido grande parte na ida de Joaquina para o convento, convidando-a e acariciando- a; j por se no explicar claramente ao sobrinho. Assediavam-na as freiras austeras, pedindo-lhe que tirasse dali aquele mau exemplo doutras seculares, e brao poderoso do inimigo para perdio das novias. Contavam-lhe que na cidade ia um falatrio vergonhoso conta da pancadaria que os frades levaram, e dizia-se que Joaquina Eduarda tinha um grande quinho naquela desordem, por amor da qual o bispo andava s ms com o Joo de Almada, governador das armas. As santas criaturas para chegarem mais de pronto razo, como vimos, abordoaram-se calunia. A parte, que Joaquina Eduarda tivera no desastre dos loyos, congregados e crzios, foi meramente a de rir muito e zombar indiscreta das monjas que se doam das contuses dos frades. Tudo, porm, serviu de afiar os escrpulos da velha. Esta carta escreveu ela ao padre Sebastio Godim: Meu sobrinho. Acabou-se-me a pacincia, e a esperana na reforma da tua irm. Deus me testemunha do muito que espacei esta resoluo, e da mgoa com que obedeo agora religio, dever e caridade. Joaquina Eduarda, como j te disse, nos primeiros oito dias foi uma maravilha de sisudeza e gravidade. Rezava todas as noites comigo, e no faltava a hora nenhuma do coro, sendo dispensada de l ir. Depois, sem mais nem para que, deu em se aborrecer da orao, e nunca mais lhe vi contas nem livro nas mos. Comeou a andar ao tanas por grades de galhofa em companhia dalgumas religiosas que so a vergonha do habito e do convento. E eu, sobrinho, a repreend-la ora com brandura, ora com aspereza; mas pregar no deserto. Depois que eu soube, circunstanciadamente, que ela tinha chichisbu que passava as tardes na grade, e vinha a isso de Coimbra, onde est a tomar gro de licenciado, no pude ter-me que no a repreendesse muito, at porque me mentiu sem necessidade. No fez caso, mandou-me tratar das coisas do cu, e no me intrometer na vida das raparigas. Acho que ela tem razo; mas eu tambm a tenho para a no querer comigo, que hei de responder por ela primeiro a Deus, depois a este convento, e por fim minha conscincia. certo a necessidade que tomes conta dela, porque h menos perigo em guardar uma menina mal ajuizada numa aldeia que num convento. Se ela algum dia se reduzir aos seus deveres, e ao respeito que deve ao nome do seu pai e da sua me, que era uma santa, volta com ela ento, e eu lhe restituirei a minha amizade. Se, contra o meu parecer, quiseres que ela se conserve aqui, em tal caso, Sebastio, eu fao de conta que no tenho sobrinha. Devo dizer-te que as mesadas, que me enviaste, e eu guardava por no carecer delas para alimentar a tua irm, no pude deixar de lhas dar para vestidos e adornos proibidos, que, com mgoa o digo, ela usa contra os estatutos desta casa, respeito ao trajo das seculares. No tem rei nem roque. Enfim, esta menina tem condo de sorte m. Deus te guarde, e lhe valha, e a todos ns. A tua tia afetiva e obrigada Joana do Rosrio. Esta m nova encontrou Sebastio Godim enfermo. Esmagou-o este mais que todos pungente desgosto. Abrasaram-no mpetos imprprios do seu ministrio. Se ele, naquela hora pudesse renunciar as ordens, e aspar das mos consagradas o cunho indelvel do sacerdcio, iria a Coimbra desintestinar os fgados do acadmico. Tremulo de clera, escreveu a Pedro de Vasconcelos nestes termos: Gaspar mentiu como vilo. No pode ser filho de Pedro de Vasconcelos. me devia de iludir Vossa Senhoria para poder dar nome ao filho dalgum lacaio. Lamento-me de ser padre. Mal hajam os acasos da vida e da fortuna que me agrilhoaram honra e brios s colunas do altar! Sem mais. Sebastio Cazado Godim. O arrependimento sobreveio logo; mas a carta ia j de caminho, e o portador corria, que assim lho ordenara o reitor. A enfermidade agravou-se com maus sintomas. Umas senhoras de Barcelos avisaram Joaquina Eduarda do perigo do irmo, e pediram-lhe que viesse ajuda-lo a morrer ou a convalescer. Afligiu-se extremamente Joaquina, mostrou a carta freira, queria partir logo; mas faltava-lhe quem a acompanhasse. Ao mesmo tempo, Gaspar de Vasconcelos dizia-lhe de Coimbra: Est aqui o meu tio frei Joo de Vasconcelos, que vem buscar-me de ordem do meu pai. O teu irmo escreveu para l uma carta infernal. Sabe-se tudo. Tenho a cabea perdida, e morro s com a ideia de que hei de passar no Porto sem ver-te. Este frade no me deixa, e ele ai vem dizer-me que esto as carruagens prontas. Tem compaixo do teu infeliz Gaspar. Ficou passada de novas e mais dolorosas lanadas a secular. Desconfiou da tia como denunciante, e insultou-a. Raivou contra todas as inimigas, e pediu aos cus que arrasassem o convento, aquele covil de hipcritas e intriguistas! Soror Joana rezava a Magnificai, e benzia-se a cada injuria que a sobrinha ejaculava dos fumegantes lbios. Ei-la, pois, em angustiosas e desesperadas aperturas. Nem tia, nem irmo, nem irm, nem cunhado, nem sequer o conselho alentador de Gaspar! ao seu ver, o casamento projetado desfaz-se. Pedro de Vasconcelos vai violentar o filho a casar com a prima, ou o encarcera na cadeia, ou o desampara descrio da misria. O irmo ressentido e intolerante, por ter sido escarnecido pela deslealdade dela, vai tambm despreza-la, ao tempo que a tia insultada a est abominando, e que todo o convento conspira a expulsa-la como doida furiosa. Sente-se j torcida e sovada aos ps da desgraa; mas no Joaquina mulher que se roje aos ps da tia ou da prelada, e das religiosas ofendidas. Cai, soobra, prostra-se no leito devorada de febre; mas no desprende um gemido, que comisere a freira. Rejeita alimentos, e consolaes da velha criada que a serve. Responde em gritos estridentes s raras amigas que ousam, a despeito da comunidade, procura-la. D. Joana entra, forada pela caridade no quarto dela, e diz-lhe: Venho trazer-te o perdo. Quando lho eu pedir! exclama a febricitante, e volta-se contra a parede batendo com a fronte no tabique. Sai a velha aterrada, e escreve ao sobrinho, entre outras lastimas, esta frase terminante: A pobre menina ensandeceu. Que faremos duma douda nesta casa? Vem depressa livrar o convento desta aflio! Estamos todas consternadas! Oito dias depois, Joaquina recebeu notcias de Gaspar. O rapaz, logo que chegou presena do pai, leu o insultante bilhete que Sebastio Godim tinha escrito. Abaixou a cabea com resignao de mrtir; porm, o pai, no contente daquele flagcio sua prospia, quebrou-lhe nos braos uma grossa bengala da ndia, e preparara-se para escadeira-lo com um tamborete de coiro, quando frei Joo de Vasconcelos, piedoso monge de Tibes, cobriu com o habito misericordioso o sobrinho, exclamando: Irmo Pedro, esse bater assaz brutal! Lembra-te das palavras do divino Mestre a outro Pedro!. Entre parntesis: a narrativa de Gaspar no era assim minudenciosa; mas o rigor cronolgico requer que eu, neste lano, adicione as minhas informaes particulares concisa noticia do acadmico. Era seguida, o velho declarou que no queria mais ver o infame que o desonrava. Fr. Joo levou consigo o rapaz para outra sala, e ordenou-lhe que sem demora se recolhesse para uma quinta em S. Joo de Rei, para onde iria com um servo da confiana do seu pai. Rapaz, juntou o benedictino, se no tomas tento com a tua vida, ests perdido! Olha que o teu pai nomeia a sobrinha sucessora dos vnculos, e tu ficas sem um ceitil. Agora, o que segue textual de Gaspar: Aqui estou neste ermo, sem ningum que me veja as lagrimas. Abafo, tenho o inferno no corao!. Quero morrer, e falta-me animo para voltar contra mim este punhal, nico amigo que me resta!. E recebers tu esta Carta? Eu dei quanto dinheiro tinha ao caseiro, e ainda lhe pedi com as mos postas que me no atraioe. Adeus, adeus, infeliz! No cessa de entrar aqui o espio, que o meu pai mandou comigo. Como hei de eu receber notcias tuas? No me escrevas por correio. Oh! que horror de vida este!
Cada vez mais golpeada e mais ao desamparo de amigas, desejava Joaquina Eduarda que o seu irmo a levasse. Parecia-lhe que j a liberdade do convento lhe era intil, e que mais provavelmente poderia de casa do irmo fazer chegar uma carta a Gaspar. Como a engenhosa desgraa arma traas de se mascarar com os trajos da prospera fortuna, quando Joaquina pensava em escrever ao irmo, apareceu ele, alvoroado com a ultima noticia de D. Joana. Atormentava-o a demncia da pobre menina; j ele a si se arguia de nimiamente zeloso do corao da irm, de intolerante com a talvez involuntria cegueira dos dezoito anos, e precipitado na denuncia acrimoniosa a Pedro de Vasconcelos. Isto lhe deu vigor e anci de ir buscar a irm. Temia-se ela de desabridas repreenses, quando lhe anunciaram o irmo. Entrou na grada tremer. Levava as faces e olhos to desfeitos e macerados, e os cabelos em tal desalinho, que o reitor intendeu que Joaquina veramente ensandecera. Falou-lhe amorosamente, e ela, amolecida pelo tom da fraternal piedade, debulhou-se em lagrimas. Os soluos embargavam a voz do padre, enquanto ela, animada pela compaixo estranha, e carecedora de olhos amigos que a vissem chorar, desafogava em gritos a agonia que lhe serrava o peito. Queres sair hoje mesmo, Joaquina? perguntou Sebastio. Hoje mesmo, se te mereo piedade. Piedade e estima, infeliz irm! No tens me nem pi... Ningum tenho, seno a tua comiserao e misericrdia... Aborrecida de maus e de bons... At a tia Joana, que chamam c a predestinada, tem-me feito quanto mal pode... Que mal lhe faria eu a esta hipcrita?. Cala-te, Joaquina! interrompeu brandamente o padre. Hipcrita, sim! digo-o sem medo de te ofender, porque sei que tu o no s. uma coisa vil a denunciao de atos que no desonram! Se eu amava um homem to desgraado como eu, e lhe cedia da minha vida quanto honestamente podia ceder-lhe, porque foi esta impostora apunhalar-te o corao, e cobrir-me a mim de toda a casta de aflies!. Julgou ela que cumpria um dever...disse o reitor. Que dever, Sebastio? Porque no cumprem as santas desta casa o dever de expulsarem daqui as freiras professas, que passam as tardes com os cnegos e com os frades, e com os militares? Eu, que no fiz voto nenhum, e tenho dezoito anos, sou desonesta porque amo um rapaz, que quer ser o meu esposo; e elas Est bom, Joaquina cortou o padre No prpria a ocasio para dilatarmos estas praticas. Enquanto preparas a tua bagagem, faz saber tia Joana que eu desejo v- la... Que embustes no vais ouvir! acudiu Joaquina Eduarda. Bem: ouvirei sem me dispor contra ti. Vai, e demora-te o menos possvel, que ainda hoje partiremos. conversao de Sebastio com a sua tia foi fria e refolhada. Comeou ela carpindo-se da loucura da sobrinha; e, como o padre lhe asseverasse que felizmente a irm gozava perfeito entendimento, a freira lamentou que ela tivesse uma ndole endiabrada. muito nova.. disse ele. muito malcriada, e o que ela emendou soror Joana do Rosrio Leva-a, leva-a... A isso vim, minha tia; e tambm a agradecer os benefcios que lhe fez, e a pacincia com que a suportou. Tem de ser muito desgraada, digo-to eu t s vezes as pessoas virtuosas, com as suas demasias, concorrem a apressar e a promover a perdio das que apenas venialmente pecam... Achas que eu fui demasiada? No, minha senhora; foi o que so todas as pessoas devotas e erradas na justa apreciao da caridade. Ora essa!. No se moleste, minha tia; eu quero dizer que se a religio deve ser uma cruz sem alivio, para que necessria a caridade?! Se tudo justia, podemos banir a palavra misericrdia... Vens ensinar-me os meus deveres de crist? Louvado seja o Senhor!. Ele sabe o que eu sofri com a tua irm. So louros que a minha tia tem no cu. Brincas comigo, sobrinho? Eu nunca digo nada a brincar, minha tia. O dialogo terminou com poucas frases mais, em que de parte a parte a caridade no era muita. CAPTULO X
Sebastio Godim, avisado do destino e castigo que recebera Gaspar de Vasconcelos, impe-se o dever de no falar nele a sua irm, e de escrever a Pedro, desculpando-se das contumlias do seu bilhete. O orgulhoso fidalgo no abriu a carta do padre, e disse ao portador: Desprezo o vilo que insultou as cinzas da me do meu filho; diz l que se Gaspar fosse filho d:um lacaio, j l tinha ido com a arma do seu oficio sacudir-lhe a poeira da chimarra. Sebastio Godim ouviu este recado, pouco mais ou menos reproduzido, e disse entre si: Eu merecia isto!. Agora, assim castigado, estou mais desoprimido da conscincia. Reanimaram-se as faces aradas de Joaquina Eduarda. A esperana enflorava-lhas de novo, desde que um pobre, a quem ela, desde menina, esmolava, lhe prometeu ir a S. Joo de Rei levar uma! carta, com todo o recato. Passados dias, o mendigo voltou reitoria, para uma hora convencionada, e recebeu a carta com generosa gratificao. Neste tempo, estava j relaxada algum tanto a espionagem de Pedro de Vasconcelos. O rapaz tinha licena de ir caa, sob condio de no demorar-se mais de duas horas diariamente no monte: clausula que o obrigava a no jornadear mais duma lgua, e a sentinela avisaria, se fosse transgredida. O mendigo chegou ao anoitecer a S. Joo de Rei, e pediu gasalhado ao caseiro dos Vasconcelos. Pernoitou no palheiro, e espertou antemanh com os olhos fisgados nas junturas da porta. Ao repontar do sol, ouviu o latir de ces de caa, e logo enxergou o fidalgo, que de olhos baixos, e muito triste sombra, passava frente do palheiro, afastando os ces que lhe pulavam ao peito. Abriu de sbito o pedinte a porta, e relanceou os olhos s janelas da casa nobre. Como no visse ningum, acenou a Gaspar, que se avizinhou com um pressgio na alma. O mendigo deixou cair uma carta ao cho, e desviou-se murmurando: Seja pelo divino amor de Deus. O Senhor lhe d no cu tantos sculos de gloria como os minutos que eu dormi no seu palheiro. Gaspar apanhou sofregamente a carta, escondeu-se a l-la entre um bosque de carvalhos, e dali, rodeando por longe, foi sair ao mendigo no recosto de um outeiro. Conversou largo tempo com o pobre. Fez-lhe repetir muitas vezes quanto sabia de Joaquina, desde que ela entrara na reitoria, at ao momento em que lhe dera a carta. Conseguiu que o mendigo se detivesse at ao outro dia numa freguesia prxima, e marcou-lhe o local da serra onde deviam encontrar-se. Ao dia seguinte, o portador tomou conta de um volumoso mao de papeis: eram as muitas paginas que o rapaz escrevera em vinte dias de tortura. Duas semanas volvidas, apareceu o mendigo na reitoria: azou-se-lhe o lano de entregar a papelada. Joaquina, alvorotada de jubilo, encarava to agradecida e afetuosa no velho maltrapido, que se no anojou de lhe apertar a mo. Est, portanto, reatada a correspondncia: a mo da insidiosa desgraa soldou os fusos quebrados daquela cadeia, cuja ultima argola... Deus sabe em que ignominias e catstrofes est chumbada! Quando aos dois malsorteados amantes comeava alvor de esperanas, depois de um ms de escuras angustias, chegou a S. Joo de Rei o frade de Tibes com jovial caro. Boas novas, Gaspar! exclamou ele Fiz descer o teu pai l dos pncaros do seu agastamento. Est outro homem... Sempre pai! O sangue brada!. Com que, rapaz, necessrio que venhas hoje para Braga, e te ponhas em joelhos aos ps do teu pai, pedindo-lhe perdo... Parece continuou o frade atentando no rosto inaltervel, seno constrangido, do sobrinho ... parece que te no alegrou esta noticia?! No alegra nem entristece disse Gaspar. burro! exclamou frade Joo, esmoncando o esturrinho do nariz rubro Ento que belzebu queres tu, seno a amizade do teu pai?! To desgraado hei de eu ser com ela como sem ela. O meu pai quer dispor de mim como de um cavalo sobre o qual se lanam ricos arreios. Faz de conta que eu sou um prego em que se dependura um apelido. No quer saber se eu tenho alma, se tenho corao, s tenho pensamento. O dilema este, meu tio: se caso com a minha prima, sou um infeliz abastado; se no caso com a minha prima, sou um infeliz pobre. Aqui o argumento, a distino, a estrema o ouro. Querem que eu ame uma mulher detestada, somente porque ela pode cobrir a cabea de prolas... E as prolas atalhou o benedictino a falar verdade, so, no dizer de frade Tom de Jesus, a sarna das ostras. Mas, sobrinho, no se trata de prolas nem de mulheres... que o inimigo as subverta todas. O ponto que tu peas perdo ao teu pai, e depois o tempo abrir caminho. Gaspar reagia ao largo discorrer do frade, porque j lhe era pouco menos de aprazvel a vida naquela soledade, desde que ali chegara a carta de Joaquina Eduarda, e a esperana de outras. Em pouco estava o melhorar-se a desdita do rapaz! Dous meses antes, quando ele a via na grade de Sta. Clara, se antevisse uma tal vida, julg-la-ia incomportvel infortnio. A ida para Braga era o mesmo que renunciar a facilidade de corresponder-se com Joaquina; e, de mais disto, era ir por peito para uma luta cruel com o pai, por causa da prima. No obstante, desobedecer a frade Joo, naquele conflito, era desobedecer ao pai, e dar margem a suspeitas de que a vida na quinta lhe era satisfatria. A cena estava preparada. Fr. Joo entrou com o sobrinho na sala de espera; Gaspar ficou sentado num escabelo, e o frade foi ao interior da casa. Dali a coisa de cinco minutos voltou sala, fingindo que enganava o irmo, e o irmo fingindo que vinha enganado. Gaspar levantou-se, e o velho fez um esgar de espanto, e exclamou: Que vejo?! o teu filho que te pede perdo. Gaspar, dando passos com o mais natural desentusiasmo que um drama joco-srio, aproximou-se do pai, dobrou o joelho direito, e disse: Perdo. Sai da minha vista, ingrato! bradou Pedro de Vasconcelos. Irmo Pedro! acudiu frade Joo, alongando o brao estatuariamente Depois da justia a misericrdia. O teu filho pecou; s tu igual a Deus: perdoa. E vem ele arrependido, e disposto a mudar de vida? Responde tu, Gaspar! disse o frade. Sim, senhor tartamudeou o rapaz. Levante-se! disse o pai I para o seu quarto. Gaspar saiu da sala cabisbaixo. Fr. Joo voltou-se para o mano Pedro com gesto grave, e disse-lhe: Olha que ns ainda no jantamos. V l se a cozinha respira alguma boa nova... Ests contente, Pedro? Estou! estou! exclamou o velho com os olhos afogados em lgrimas Assim que o vi, tive guinas de abraar-me nele! Eu quero-lhe das entranhas!. a minha vida toda este rapaz!.. Est bom, no chores, homem! atalhou frei Joo, limpando os olhos ao leno do tabaco Chama a capitulo o que estiver na dispensa, e v se se amanham por l umas frigideiras, que eu ando arrenegado por elas. Quantas me mandas para Tibes todas me come o dom abade. CAPTULO XI
Ao terceira dia de reconciliao, Gaspar, engenhando astuciosos rodeios, pediu ao pai se o deixava ir passar o restante do estio na quinta de S. Joo de Rei. Que gosto esse, rapaz?! perguntou o insuspeitoso velho. a caa. Habituei-me caa, e faz-me muita falta. Pois isso no te contrario eu; vai; e espera alguns dias, que eu vou tambm l passar uma temporada. Gaspar fez-se amarelo, e disse: Em que h do pai entreter-se? Aquilo to s e triste! No se v ningum com que Vossa Senhoria possa conversar... Converso contigo, e no tenho pouco que conversar... Antes de ir preciso que vs visitar a Vila-Verda a tua prima e a tua tia, que j te no viram h seta meses. No ser melhor na volta da quinta?observou timidamente o rapaz. No, senhor: o melhor agora... Ai! que tu, Gaspar! disse com mau sorriso o velho No acabas de cair em ti... Isso injustia, meu pai.. acudiu o imprudente, emendando as repugnncias do corao. Ora, vamos! No acabes de me matar prosseguiu com brandura o velho D-me o prazer maior da minha vida, minha esperana querida de vinte anos, desde que tu nasceste e que a tua tia casou. H quatorze anos que a tua prima veio a este mundo, e desde ento a minha alegria pensar que os netos da minha irm e os meus ho de ser senhores desta casa... Eu no estorvo a sua vontade, meu pai; todavia, creio que a sua inteno que eu termine a minha formatura. Nada, no . Formatura para qu? De que te serve a ti o curso jurdico? Tens sabedoria que farte para ser o que o teu pai e avs foram: um fidalgo independente. Mas eu tinha tantos desejos de seguir a carreira da magistratura... E quem h de administrar a tua casa e a grande casa da tua mulher? A magistratura boa para filhos segundos, e nem sempre. A conscincia sofre grandes unhadas, filho. O teu tio avo Gabriel Pereira de Castro, chanceler-mor do reino, os ltimos anos da sua vida, viveu-os cortados de remorsos por ter dado uma sentena iniqua contra um tal Fulano Soliz que se deixou morrer por suposto crime de desacato para no descobrir o nome da freira com quem corria amores. Foge de sentenciar, meu filho. No queiras ser vitima nem sacrificador da justia. Recolhe-te tua casa com a tua mulher e a tua descendncia, e deixa l o mundo com as suas misrias. A vida melhor que eu conheo, Gaspar, um homem alegre no seio da sua famlia, ou ento frade em ordem abastada. V tu o teu tio frade Joo que santa conscincia!. E que santo estomago! acrescentou Gaspar, sorrindo. Dizes bem; e que santo estomago. Pois ai est! Aquilo e que viver, quando se no tem preciso de transmitir bens de fortuna e apelidos gloriosos para uma honrada posteridade. O gro de licenciado em leis de que te serve a ti? Deixa-te de quebrar a cabea com a livralhada. J sabes que chegue para falar seja de quem for. Tratemos agora em comear teor de vida mais solida. To abstrado estava o rapaz que deixou palavrear difusamente o pai, acerca das solidas delicias do matrimonio. Naquele quarto de hora de introverso, Gaspar delineou um plano extremo, heroico, e o pssimo de quantos o seu mau anjo podia sugerir-lhe. E saiu do seu enleio com muita luz e alvoroo nos olhos, como se ideasse alguma honrada traa, que j a conscincia lhe estivesse encarecendo com alegrias do cu. Dias depois, Gaspar e o pai saram para a quinta de S. Joo de Rei. Estava a expirar o prazo em que o mendigo prometera voltar. O dessossegado amante receava que o confidente se houvesse antecipado a rogos de Joaquina Eduarda. Chegou a almejada carta no dia imediato ao da partida. Pedro de Vasconcelos dormia o sono matinal quando o filho, no mais afogado da carvalheira, lia as interminveis e ainda assim to breves paginas do dirio dela, escrito por noite alta, a salvo dalguma surpresa do irmo. Na carta de Joaquina estavam umas palavras que eram o aplauso ao projeto de Gaspar: Fujamos: onde poder ser, unamo-nos, e depois Deus ser por ns. Se o teu pai nos no perdoar, pode ser que o meu irmo ou o meu cunhado nos deem abrigo. O que no entrava no plano do rapaz era o abrigo esmolado do padre ou do juiz de Fora. Abraaram-se, pois, os dois alvitres no essencial, deferindo Gaspar a execuo para dois meses depois, que tanto era necessrio conjuno de certos acessrios favorveis ao expediente. Joaquina achou eterna a demora; porm, conformou-se. Pedro de Vasconcelos preparava uma surpresa ao filho. No dia em que o rapaz fazia anos, ao romper da manh chegaram quinta os criados carregados de vitualhas. Depois chegou frade Joo com mais seis frades, encavalgados em mulas. Seguiram-se algumas das melhores famlias de Braga, parentas dos Vasconcelos. E a ultima famlia que apeou de uma lustrosa e dourada liteira era a irm de Pedro e a sua filha, a Sra. D. Paulina Roberta. Estava na flor dos quinze anos: era j alta de peitos, bem conformada, sadia, escarlate, fogosa, e no despicienda em sentido nenhum. Abraou-se no primo, e exclamou: Ah o seu ingrato, voc porque no tem ido a Vila-verde? Chegou de Coimbra, e no deu parte me nem a mim! Desculpa-me, Paulina disse Gaspar Cheguei adoentado, e vim aos ares do campo. Ento porque no foste para onde ns fomos? replicou a graciosa menina. A convivncia com um doente deve ser muito importuna, prima! Ora! vai-te fava! Entre primos no h essas cerimonias. A menina foi mudar de vestido. Pedro de Vasconcelos disse ao filho: No a achas muito galantita e desembaraada? Est uma mulher de encher o olho! disse frade Joo com aplauso dos outros frades. Ento que dizes tu, Gaspar? instou o pai. A que respeito? Onde est a tua cabea, homem?. Querem vocs ver que o deus Cupido j o deixou atravessado da doce frecha. As damas riram muito da graa mitolgica de Pedro de Vasconcelos, que no sabia de fabula muito mais. Perguntava-te eu insistiu o velho se no achas a Paulina muito galante e esperta... Acho, sim: est muito desenvolvida e bonita respondeu Gaspar com mal sopeada displicncia. Pois ali a tens, que, para alm do mais, segundo diz a me, uma excelente senhora de casa. Que mais pode querer um homem? Est prximo o casamento? perguntou uma fidalga velha. No pode ter grande demora, prima Genoveva respondeu frade Joo A propsito de casamento... Lembra-se a prima dos nossos vinte anos?. Olhe que estiveram as coisas muito dispostas para termos a esta hora filhos e netos casadoiros!. Tolices do primo Joo! disse a risonha Sra. D. Genoveva, exalando por entre o sorriso um suspiro consagrado s reminiscncias dos seus vinte anos. Foram festejadas pelo auditrio estas galhofas dos dois primos, e logo outra dama perguntou: O noivo vai para Vila-verde, ou vem a noiva para Braga, primo Pedro? H de vir a noiva para Braga, que eu no me separo do rapaz. J agora, o fim da vida quero passa-lo com filhos e netos. Est to calado o primo Gaspar! observou uma senhora de vinte anos. Que quer a prima que eu diga? Que esteja contente, e que fale. Por ventura estou triste?!. O silencio a linguagem dos coraes felizes. Assim, assim, Gaspar acudiu o jubiloso pai Assim que eu te quero ouvir falar... Ai vem Paulina... Olha como ela vem brilhante, a feiticeirinha! Que , tio? perguntou a menina. Ests uma bela rapariga!. Ora! murmurou a pudenda Paulina, abraando-se numa das mais novas do rancho para esconder o rubor, posto que relanceasse a vista a Gaspar a fim de ver se ele reparava no rubor dela. Gaspar, no entanto, estava conversando com um frade literato acerca de estudos universitrios. Passaram casa do almoo, e depois saram a passear nas sombras da quinta. D o brao a Paulina disse Pedro ao filho. No remate do passeio sombreado de parreira, os dois primos acharam-se sozinhos, e sentaram-se nos bancos rsticos que ladeavam uma fonte. Esta frescura agradvel, Paulina disse Gaspar. Isso : faz muito calor disse Paulina. Eu gosto muito do campo; disse o inspirado rapaz. E eu gosto mais da cidade. A aldeia aborrece logo. Tomara-me eu em Braga! H l tanta senhora, tantas brincadeiras e jogos! L em Vilaverde aquilo um fastio de morte. A me senta-se nas escadas da capela a conversar com a gente do campo, e entretm-se; e eu no sei o que hei de fazer. Porque no ls, prima? Ora! j li dez vezes os Contos do Trancoso, e no sei que hei de ler mais, se no forem livros de reza. Porque no ls a Menina e moa, que uma historia muito bonita, e o Palmeirim, e o Clarimundo? J l tive esses livros, que mos levou o primo Villas-Boas de Barcelos. So muito tristes aquelas lastimas da menina que foi levada da casa dos seus pais. Eu antes quero casos alegres; e tu? O meu gnio triste, prima Paulina. No gosto disso, Gaspar. Quando eu era pequenina, e tu foste para os estudos, ainda me lembro que andavas a correr comigo s costas. Lembras-te? Lembro. Ainda sei o lugar onde brincvamos l na quinta. s vezes ia l sentar-me sozinha, e lembrava-me de ti com tantas saudades!. Aquele tempo no volta... Sim; a infncia como esta gua que est descendo da bica, e nunca mais sobe. Mas, passados os gozos da infncia, vem os da mocidade; vo-se os da mocidade, e sucedem outros. Podes ser muito ditosa toda a tua vida, prima. E tu no? Eu, sabe Deus o que serei. A me disse-me... Paulina reteve-se, e corou. Que te disse a me, prima? Disse-me... Ora... no digo... tu sabes o que ... Ah! sim... j sei... falou-te da nossa unio. Foi isso. Creio que essa a vontade das nossas famlias. E a tua? Tambm. Quando ? Passados poucos meses. Quantos? perguntou ela trejeitando amoravelmente. Dois ou trs. Ai! tanto! E depois vou para tua casa, no vou? Sim: e a inteno do pai. Passeemos, prima? Pois sim; mas... estvamos aqui to bem nesta sombrinha! Vamos ao jardim que tem l umas dlias bonitas. Vamos. E, como o brao esquerdo de Paulina Roberta lhe ficava muito perto do corao, a menina automaticamente pesava um pouco mais sobre o brao do primo. Pedro de Vasconcelos observava-os com enchentes de gaudio. Remoavam as faces alegres do bom pai. Ento pensou ele que a imagem de Joaquina Eduarda fora de todo em todo banida do corao do filho. E, todavia, Gaspar sentia-se beliscado de remorsos de ofender, posto que involuntariamente, a mulher da sua alma, a formosa, ao lado de quem Paulina Roberta perdia muito, se no tudo, da sua graa e regular compostura. Correu delicioso o dia. Os noivos foram brindados tantas vezes quantas instalaes de lombo e frigideiras os beneditinos desobstruram com catadupas de vinho. Paulina Roberta saiu dali meiga e saudosa como se acordasse nos braos do filho da citrea deusa. Pobre menina.. CAPTULO XII
Contente da sua irm, e solicito em diverti-la de lembranas perigosas, Sebastio Godim frequentava com Joaquina Eduarda a fidalguia de Barcelos, onde, no seculo passado, residiam relquia do antigo e luzido grupo de solares que ali viveram vida de corte. Renasceram para a peregrina cantora as ovaes e glorias d'Amarante. Para os tristes e apaixonados cantava ela mais meiga e mais do corao em Barcelos. Dantes era a arte: a voz que a si prpria se estava ouvindo; agora falava o sentimento: a alma que consigo mesma dialogava. Acenderam-se paixes sbitas nos peitos de numerosos morgados, e de muitssimos filhos segundos destinados a frades. Aos primeiros, fechavam-se os olhos de Sebastio Godim; mas sobre os segundos lanava precavida ateno. Porm, Joaquina Eduarda no via uns nem outros. Um dos mais soberbos de prospia e haveres pediu-a como quem de antemo entende que seria um dever oferecer-lha. O padre, lisonjeado e alegre com a proposta, revelou-a irm, que para logo, dando aos ombros, disse: o mais parvo de todos... Logo vi que seria o mais audaz. Audaz! redarguiu o irmo pois no sabes que dos Correias de Lacerda, senhores de Fareles, e que teve um tio secretario de estado? No sabia, nem isso me faz alterar o juzo que fao do homem. Em suma, Sebastio, eu estou bem: no caso. Est bom, menina; disse o padre nem eu te aconselho, se te repugna o sujeito. O fidalgo de Fareles, quando soube que a irm do reitor o rejeitara, pediu perdo aos manes dos Lacerdas e Correias de haver cado em tamanha vilta; e, para estrondear uma vingana monumental, foi a Lisboa, e voltou de l casado com uma dama descendente do rei godo Ramiro pelo pai, e do rei godo Recaredo pela me. A vingana cumpriu-se em trinta dias. Joaquina Eduarda, quando viu a descendente dos dois monarcas, disse: Muito feios deviam de ser os reis godos! Estas coisas referia ela miudamente a Gaspar de Vasconcelos na sua regular correspondncia bimensal. E, sem embargo, do tom zombeteiro com que Joaquina metia a riso os seus pretendentes, Gaspar torcia-se de cimes, e exprobrava-lhe que ela se andasse recreando, enquanto ele se comprazia na solido e ermos desconversveis de toda voz humana. Por amor destes queixumes, Joaquina resistiu com dissimulados incmodos aos convites do irmo, e encerrou-se entre as suas arvores. CAPTULO XIII
Na carta da primeira quinzena de Setembro de 1763, dizia Gaspar que recebera ordem perentria do pai, j impaciente, para recolher a Braga. Pelo qu, o mendigo, quando levasse para ali a correspondncia, no fim do ms, o esperasse Senhora de Guadalupe. Miudezas so estas necessrias a quem l convicto da veracidade da historia. Vamos a isto! disse Pedro ao filho, assim que ele chegou A tua tia insta pela brevidade do casamento, porque Paulina est doente de saudades. Tens varinha de condo, rapaz! Apaixonaste-a logo. Tais coisas lhe disseste... Eu no lhe disse nada, meu pai! Faz-te tolo! tomou alegremente o velho Imagino o que tu lhe dirias, magano! Eu j de l venho... O caso que a menina, desde que foi aos teus anos, segundo me diz a minha irm, no falia seno em ti, e emagreceu. Vamos a terminar isto. A dispensa est requerida h trs meses: deve estar a chegar. Assim que ela vier, conclui-se este negocio. Negocio!. murmurou o rapaz. Casamento, digo eu: e porque disseste negocio tu?. Por nada... achei a palavra nada potica... Ns no estamos a fazer versos agora, rapaz! Que tem que ver com isto a potica? Hs de sempre ter um pedao de tolice na cabea, homem! Bem faz teu tio frade Joo que te chama s vezes burro!. Ora, pois. Estamos decididos? Estamos: a vontade do meu pai. E a tua? Tambm.. gaguejou Gaspar. Falia claro: se no queres, no queres! retorquiu mal assombrado o velho Teremos ns ainda o demnio tentador a perseguir-te? No, senhor. O pai est anojado sem razo. Eu que disse para tanta ira? Pensei que.... Vamos l... Desculpa esta rabugice... o medo de te ver infeliz que me faz injusto s vezes... Gostas da tua prima, rapaz? Gosto muitssimo. Assim que se responde. Queres casar logo que chegue a dispensa? Quando o pai quiser. Acabou-se. Amanh vai passar o dia a Vila-verde; vai dar sade tua noiva. Gaspar passou o dia em Vila-verde, e achou a prima a ler o Clarimundo de Joo de Barros, depois de ter lido o Palmeirim do Morais. A menina, para enfrear o tdio que lhe faziam estas leituras entumecentes, lembrava-se que o primo lhe inculcara os livros. Em verdade, estava ela mais desfeita de rosto e pisada das olheiras. Gaspar, como artista, achou-a quase galante; mas, como amante de Joaquina Eduarda, pareceu-lhe a prima pouco menos de detestvel. A desgraa punha-lhe as mos nos olhos ao malfadado rapaz! Paulina era engraadinha, afora trs vnculos, e um doce corao. Passou o dia a ler com ela o Clarimundo. Gaspar declamou este relano de capitulo: ... E chegando (Clarimundo) a Clarinda, foi tamanha a turvao nela, que lhe caram as luvas das mos. Clarimundo ainda que no menos a tinha, abaixou-se por elas, e quando lhas deu fizeram to grandes mudanas nos rostos, que qualquer que nisso olhara conhecera as suas vontades. E porque o tempo no consentia mais, passou por ela, e foram falar a Lindarifa.... Eu gostava de me chamar Lindarifa interrompeu Paulina. Gaspar sorriu-se, e continuou: ... Foram falar a Lindarifa, e trs eles Fendibal, que sentiu naquele momento uma novidade na alma... Gosto desse dito: uma novidade na alma atalhou a menina e juntou: tambm eu senti... e susteve-se. Gaspar encarou-a com tristeza de bom corao, e prosseguiu: Nem Lindarifa sentiu menos esta primeira vista, pelo que Deus tinha ordenado ou se fez; porque o falso amor mais se esmera em vontades livres e soberbas contra ele, que naquelas que lhe so sujeitas; de maneira, que nos faz esquecer honra, parentes, fazenda, e a nossa prpria natureza por seguir a quem nunca conhecemos, sem a lembrana destas coisas terem tanta fora que possa resistir a esta que nos fora. Que quer dizer isso, primo Gaspar? perguntou Paulina. A tua inocncia no pode intender estas frases, prima... Quer dizer que h paixes que arrastam desgraa. Isso sei eu. Sabes? Ainda h meses me contou a me que uma prima dela fugiu com um capito, e depois acabou muito pobre a pedir por Lisboa. E a tua me no lhe valeu prima? Acho que no. Ento fora melhor que te no contasse a historia da sua prima... Porque?! Porque te ensinou que havia neste mundo o mal, sem te ensinar que havia tambm a virtude da caridade. Pareces o tio frade Joo a pregar, primo! disse a menina cascalhando alegres impulsos de riso. Gaspar concebeu fundo menospreo do entendimento de Paulina, e fechou o livro. Dai a pouco jantaram; passearam depois; e, ao entardecer, o rapaz despediu-se a trasbordar de! aborrecimento. Perguntou-lhe o pai mil coisas da sua noiva. Gaspar disse que vinha encantado dela. O velho esfregava as mos, e exclamava: No to dizia eu!.. Aquela menina a tua felicidade em todos os sentidos! Tomramos ns c a dispensa!.. Passados alguns dias, Gaspar, depois de ter dito que estava morto por se ver casado com a sua prima, falou assim ao velho: Meu pai, tempo de descobrir-lhe um segredo, que por indiscreto pejo tenho calado. Que ? Nos meus dois ltimos anos de Coimbra confesso que procedi com pouqussimo juzo. Arrastado pelo mau exemplo de estudantes ricos e libertinos, gastei mais dinheiro do que o meu pai me dava. Contrai dividas, e a honra exige que eu as pague, porque e j tempo, e a vergonha incomoda-me. Ora eu te digo: atalhou o pai quando estavas na quinta, vieram aqui ter duas cartas para ti. Como eu andava desconfiado, suspeitei que fossem de certa pessoa, e abri-as. Uma era de um alquilador que te pedia trinta e quatro mil ris, e outra de um estalajadeiro, com a conta de oitenta mil e seis centos ris. Estas contas mandei pagar sem nada te dizer. Se no deves mais, podes dormir sossegado. Devo muito mais disse o rapaz com os olhos baixos Devo a pessoas briosas que no me pedem o dinheiro; e por isso mesmo mais me obrigam e confundem. Devo, pouco mais ou menos, mil e duzentos cruzados a estudantes de principais famlias do reino. muito dinheiro! gastaste dessipadoramente, rapaz! Pacincia... pagarei essas contas. Diz a quem que deves. Devo a D. Francisco de Portugal da casa de Vimioso e Valena, e a D. Pedro de Mascarenhas, filho do marques de Fronteira. Mandarei pagar. Se o pai me quer fazer a vontade num desejo nobre, permita que seja eu o portador das dividas. Pois hs de ir a Coimbra?! Que tem isso? Vou despedir-me para sempre dos lugares saudosos da mocidade, e abraar os dois amigos a quem devo a fineza de nunca me pedirem o seu dinheiro. Ento, quando queres ir? Em Outubro na abertura das aulas. E demoras-te? Seis dias de jornada, e dois em Coimbra, oito dias. Est bom. Irs. No dia seguinte, Gaspar de Vasconcelos foi a Tibes, e disse ao tio frade Joo: Meu tio, venho pedir-lhe um importante favor. Que queres? Pede l, rapaz; mas olha se podes primeiro comer alguma coisa... Queres lombo de vaca? ou arroz de pato? No, senhor, j jantei. Ento saibamos o que queres. Primeiramente pedir-lhe segredo sobre o que vou dizer-lhe. Se o segredo no fizer implicncia com a honra.. estipulou o frade. No faz. Se mo asseveras, prometo segredo. Eu devo bastante dinheiro em Coimbra. Desbaratei em dois anos, afora as mesadas, dois mil e quatro centos cruzados. Ui! clamou frade Joo homem! em que afundiste dois mil e quatrocentos cruzados?! Joguei. burro! pois tu jogas?! No jogo: joguei. Endividei-me, e quero pagar dentro de quinze dias. Tive vergonha de dizer a meu pai quanto devia, e pedi-lhe mil e duzentos; e venho pedir ao tio outros mil e duzentos cruzados, com a condio de pagar-lhos depois do meu casamento. O pouco que eu tenho, rapaz, teu ou ser disse o magnnimo benedictino Esse dinheiro conta com ele. E com o segredo... Isso est tratado. Quando vos casais? Espera-se a dispensa. Eu vou a Coimbra pagar as dividas, e, na volta, naturalmente, casamos. Ah! tu vais a Coimbra?.. Eu quero dar uma prenda tua noiva. Hs de comprar-me no Porto algum objeto douro: pode ser uma gargantilha com uma cruz de diamantes, coisa de valor de cinquenta mil reis, pouco mais ou menos. Assentaram nisto. Gaspar disse ao pai que o tio Joo lhe encomendara do Porto uma gargantilha para a prima Paulina. Nesse caso, disse o velho, tambm quero que compres um anel com um bom brilhante com que a brindes, obra ai de duzentos mil reis. Somou Gaspar de Vasconcelos as quantias que tinha a liquidar, no acto da partida, e perfez a de reis 1:180$000. Feita a operao aritmtica, foi escrever mais um perodo na carta a Joaquina Eduarda. Rezava assim: Os recursos, com que havemos de passar um ano, j eu tenho certos. Neste ano, dar o mundo muitas voltas, e uma delas ser o reconciliar-se o pai connosco, e abrir-nos a casa e os braos. Agora o que eu espero para marcar o dia da partida, que tu, minha querida esposa, me esclareas sobre a hora, e mais circunstancias da tua fuga. A mim o mais acertado parece-me que irem os cavalos do Porto para Barcelos, e aproximarem-se de noite reitoria para tu no andares muito tempo por maus caminhos. Nesta ultima carta, que me escreveste, noto na tua linguagem certa melancolia. Falas-me do teu irmo com saudade, e de no sei que pressentimentos amargos! V tu que diferena de ti para mim, ingrata! Eu de mim no penso em pai, nem em futuro. Vejo-te somente, formosa luz da minha vida; e tua luz todas as desgraas possveis me parecem delicias CAPTULO XIV
Tratadas as combinaes da fuga, e avizinhado o dia almejado de longe, e formidvel ao perto, Gaspar no podia explicar-se o quer que era de susto, amargura e desalento que lhe esfriava a resoluo. Encarava os olhos do pai, e escondia o aparecimento das lagrimas; olhava para dentro de si, e via-se deforme e suja na conscincia e na honra. Mas a este titubar dos espritos acudia o corao, lampejava a imagem de Joaquina Eduarda, e logo os olhos se enxugavam, a conscincia retraia-se, e a honra escurentava-se desluzida pelos incndios do amor. Ao mesmo tempo, a irm de Sebastio Godim, cada vez mais estremecida dele, e cativa da magnnima alma com que o seu benfeitor fingia ter-se esquecido das leviandades dela, olhava-o com to piedoso e quebrado lume de olhos, que o padre, por vezes, lhe perguntou: Que tristeza revela a tua vista! Que tens tu, irm? Vontade de morrer! disse ela, depois de muito instada. Por Deus! clamou consternado o irmo que h de novo na tua vida? Ainda, pouco h, to contente, e folgada por esses campos, e j agora desejosa da morte!. Bem no queria eu que deixasses de conviver com as famlias de Barcelos!. No podes com esta solido, Joaquina. Eu bem no sei. Queres outra sociedade, outras comoes... No, meu irmo, no quero. Pois ento confessa-te ao teu amigo. Que tens? Um desgosto inexplicvel... uma enchente de lagrimas no peito... Preciso chorar... Deixa-me chorar, e no faas caso disto. E chorava a ss, enquanto o anjo da desgraa lhe no passava pelos olhos a mo refrigerante, e no afogava no seu tremedal o anjo bom que lhe feria a ela o peito com o toque espertador das suas azas. Depois, era o desapertar-se o peito em douras de amante e de esposa, em esperanas de longa vida, com os honestos contentamentos da felicidade conjugal. Mas ento que intervalos negros so estes em almas que tanto se entreamam e uma noutra se absorvem?! J o poeta Andrade Caminha perguntava: Maravilhas do amor quem as intende? Os segredos do amor quem os alcana?
Posto que, no caso sujeito, os segredos so mais da Providencia que do amor. Gaspar de Vasconcelos recebeu as verbas que perfaziam a quantia de trs mil e tantos cruzados. O velho madrugou para despedir-se do filho. O filho refez-se de animo para no delatar a sua comoo ao despedir-se do pai. Oito dias, ouviste? Nem mais um! disse Pedro de Vasconcelos. Oito dias.. confirmou o filho. A fatalidade sorriu-se. Chegado ao Porto, Gaspar impontou para Braga o mochila com as bestas, expediente louvvel para no fatigar os cavalos que o seu pai estimava. Depois com outros cavalos, foi amanhecer para uma aldeola de poucos fogos, chamada Fameleo, nome de um tamanqueiro, que muitos anos antes edificara ali o primeiro cardenho de uma florente terra, que hoje se chama Vila-Nova de Famalico. Aqui se agasalhou Gaspar, at ao escurecer, na, pousada dos almocreves; e por volta de meia noite, chegou a Barcelos. Deu folga e comer aos cavalos por espao de hora. Em seguida, meteu por caminhos decalcados e barrocais at ganhar o alto da serra d'Air. Desceu ao vale, e parou entrada duma aldeia, onde se lhe deparou o conhecido mendigo, sentado nos degraus de um cruzeiro. Apeou Gaspar, deu as rdeas ao arrieiro, mandou que o esperasse, e desceu com o guia por um estreito quinchoso, que terminava no terreiro duma casinha, cuja porta se abriu, assim que os passos se aproximaram. Gaspar entrou casa duma tecedeira, que lhe ofereceu um banco para sentar-se, e disse: Agora vou eu a mais o meu homem buscar a menina, que est espera. Isto para bom fim, no , fidalgo? Decerto respondeu Gaspar. No que, se no fosse, eu no me metia nisto, que o Sr. reitor punha-me nas gals a mais o meu homem. Eu sou a tecedeira do Sr. reitor, e a menina, h dias, pediu-me para eu a ir buscar quando o fidalgo c viesse ter, e ela c mandasse este homem dizer-mo. J sei isso, j sei atalhou Gaspar Vo buscar a senhora, que so horas, e o caminho muito mau para virem depressa. No que a gente no vem pela estrada. Atravessamos umas veigas que vo dar ao passal do Sr. reitor, e a menina salta pela janela da cozinha. Saram. Gaspar, gratificando generosamente o mendigo, disse-lhe: Quando souberes que eu voltei a Braga, aparece-me que no tornas a pedir esmola. Irs feitorizar uma das minhas quintas com um bom salario. O pobre beijou-lhe as mos, e foi sua vida, contente de haver conspicuamente desempenhado at ultima a sua misso entre dois amantes daquela natureza. Ficou sozinho o rapaz encostado ao tear da tecedeira, com os olhos fitos na lua que resplendia com a diurna claridade das noites de Outubro. Lembrou-lhe o pai, e confrangeu-se-lhe alma. Viu-o, quela hora, dormindo os plcidos sonos do homem bom, seno era que algum sonho acerbo, por amor do filho, o agitava. Mas Joaquina Eduarda!.. Que a imagem de um pai dormindo comparada realidade duma formosa mulher amada e apaixonada? Joaquina Eduarda!.. Aquela mulher linda, singularmente linda do teatro italiano! Aquela que todos amavam no baile do Governador das justias!. Aquela que transportava as almas nos seus cantares! Aqueles altos espritos da secular de Santa Clara, que o humilhavam a ele, menos eloquente, menos gracioso que ela. Defrontem uma mulher assim com a imagem de um pai que dorme, e diga a arte, e diga a natureza quem levar a melhor sobre o corao de um rapaz de vinte anos. Volvida meia hora, s duas e trs quartos da manh, ouviu Gaspar um fremir de folhagem seca. Parece que j a virao lhe chegava tpida e balsa mica do respirar da ofegante fugitiva. Desceu o rapaz ao terreiro da casa, e viu nas sombras das arvores prximas um perpassar de viso beatifica, e logo ouviu, num como suspirar de brisa entre murtas, o seu nome. Correu com os braos abertos, e apertou Joaquina Eduarda quase esvaida no delquio da ventura, que reduz a alma a pouco menos de aniquilada. Sentou-se no combro do terreiro, com ela sobre os joelhos, e pediu uma gota de gua tecedeira. Joaquina, reclinando o pescoo, voltou o rosto lua, que a beijou com o mais claro dos seus raios. Oh! que formosa! que divina! entre si pensou Gaspar, quase subjugado pelo instinto esquisito dos beios no inexcedvel prazer do oculo, do primeiro oculo, quero eu dizer, na face virgem deles, ou muito beijada dos querubins e mais potestades invisveis. Foi quebranto de momentos o esvaimento de Joaquina Eduarda. Partamos? disse ele. Sim, e j! Eu tenho tanto medo nossa m estrela. vamos depressa! instou ela. Gratificada fidalgamente a tecedeira... (porque no, se as peas lhe pejavam todas as algibeiras ao fidalgo?!), levou ele a amada quase em braos, e sentou-a nas andilhas do possante cavai lo. O arrieiro bracejando rompeu frente, e Gaspar seguia Joaquina, que os caminhos vedavam-lhe ir de par com ela. Rompeu-lhes a aurora na Isabelinha. Dai entraram por atalhos escusos cobertos de pinhais, at cortarem estrada de Vila do Conde, evitando assim encontro de pessoas conhecidas na estrada real de Braga. J por noite chegaram ao Porto, e recolheram-se cautelosamente para uma estalagem de Vila-Nova de Gaia. CAPTULO XV
Saiu do leito Sebastio Godim, consoante costumava, ao aclarar da alva, para rezar matinas e laudes. Feita a orao, disse criada que mandasse tocar missa. A criada resmungou o quer que fosse. O reitor perguntou: Que diz voc, mulher? Estou c a pensar com a janela da cozinha... Que tem a janela da cozinha? Achei-a aberta. que voc a no fechou. Isso fechei eu... Assim se fechem as bocas dos nossos inimigos. Seria o vento que a abriu disse o padre. Vento no lhe vejo jeito!. Fosse o que fosse; falta alguma coisa? Que eu saiba, no, Sr. reverendo reitor. Ento deixe l isso, e mande tocar missa. O padre agasalhou-se no capote de portinholas, e foi indo para a igreja, onde tal qual vez o esperavam as confessadas. De feito, deteve-se at s oito, confessando. Estava a revestir-se para ir ao altar, quando a criada rompeu pela igreja acima, e de azoada que ia nem se lembrou de ajoelhar e benzer-se frente do altar mor. Caso estranho que levantou borborinho na igreja. Entrou lvida na sacristia a antiga serva e afilhada de Ferno Cazado Godim, exclamando: A menina fugiu! O qu? disse o padre, deixando cair a casula das mos. Est o quarto aberto, e um papel escrito em cima do bofete. Deus me valha! murmurou surdamente o padre; e, voltado ao sacristo, disse: V avisar o povo que eu, por motivos urgentes, no posso hoje celebrar missa. Despiu-se, e saiu pela porta da sacristia, com os dedos das mos enclavinhados sobre o seio. E foi pela janela da cozinha que fugiu... dizia a criada, seguindo-o, com as mos postas na cabea, e dando ais profundos. Sebastio entrou no quarto da irm, e foi direito ao bofete. Leu o seguinte: Perdoa tua desgraada irmzinha, que no pode vencer-se. Escrevo-te cega de lagrimas. Neste momento s a morte podia salvar-me de um crime. S assim poderia expirar nos teus braos, e no leito da nossa me. Perdoa-me, Sebastio, que eu amava muito, amava sem refrigrio o homem que padeceu muito por mim, e me fez padecer quanto pode uma grande paixo contrariada por todos. No me consideres perdida, meu irmo. Espero ainda entrar aqui, bem quista do mundo, e de ti, com o meu marido que tu hs de amar como a irmo. Outra vez te peo perdo, em nome de Deus e da minha fragilidade. Joaquina. Perdida! prostituda! exclamou ele a minha irm prostituda! Oh! que infame homem aquele que pode desgraar aquela criatura! E voltando-se hirto e desfigurado criada, gritou: Mande aparelhar a gua, enquanto me visto. Dai a minutos galopava a esporeada gua no caminho de Braga. Sebastio apeou porta de Pedro de Vasconcelos. Subiu, sem se anunciar; entrou numa sala e noutra, desvairado, olhando aos lados, at que Pedro inadvertidamente se encontrou de frente cora ele. O Sr. padre Sebastio.. tartamudeou o velho. Que do seu filho? perguntou o padre. O meu filho foi antes de ontem para Coimbra. O seu filho raptou-me esta noite a minha irm. Qu! bradou um rouquejar inexprimvel o fidalgo raptou... Onde est o seu infame filho, Sr. Pedro de Vasconcelos? repetiu Sebastio, com os braos erguidos em convulses. J lhe disse... que hei de eu dizer-lhe?. Mentiu-me o ladro; matou-me o amaldioado!. E, bradando, atirou-se sobre uma cadeira, quase desfalecido. Sebastio levou as mos ao rosto, e murmurou: Pobre velho!. mas eu sou mais desgraado!. A desonrada a minha irm, o desonrado sou eu!, so os ossos do meu pai!. E, debruado sobre Pedro de Vasconcelos, que abafava em soluos, tomou-lhe as mos, e entre si dizia: O meu pai no conheceu a angustia desta hora!. Graas, meu Deus, por mo terdes levado deste mundo, antes de ver uma filha perdida! Pedro ergueu-se amparado pelo padre, e disse com tardas vozes: Como sabe que o maldito raptou a sua irm? Ela o declara respondeu Sebastio, mostrando a carta. Pediu o velho ao padre que lesse a carta; e, depois de ouvi-la, disse: Vou dar providencias. Quais, Sr. Vasconcelos? s do meu dever. hei de pensa-las... As do cristo dever sei eu que no carece V. S. de pensa-las disse o reitor. Quais so? No lhes impedir o casamento... Perdoar ao seu filho, salvar a minha irm, e eu, se Vossa Senhoria Os desprezar, os receberei casados na minha casa, e dar- lhes-ei duas partes da minha subsistncia. Pois d.. exclamou o velho que eu no tenho filho. Que me importa que eles casem?! Como quiserem...Refletiu instantes, e disse com malicioso sorriso: Ento o Sr. padre Sebastio sabe onde eles param, para lhes levar o aviso de que podem casar? Isto cheira-me a tramoia! Ergueu-se de golpe o filho de Ferno Cazado, e disse: Est explicada a infmia do seu filho! Explicou-a o Evangelho de Jesus: o fruto da arvore infame. Disse, e saiu sem voltar rosto s bravas e impotentes contores do fidalgo esmagado por duas enormes angustias para um tempo. Deteve-se Sebastio em Braga algumas horas, colhendo vans informaes do local onde Gaspar pudesse estar escondido. Esfriado o mais ardente da alucinao, reconheceu o padre que o raptor no vinha aproximar-se das primeiras iras do pai. Desapertou a alma custa de tirar muito pelas lagrimas, e foi caminho da sua reitoria. hora em que ele vertia novas lgrimas frente do leito da sua me, e da sua irm, dormia ela o seu matinal e primeiro sono na estalagem de Gaia. E contava Joaquina Eduarda, dois anos depois, que vira, em sonhos, o irmo ajoelhado frente do leito da sua me, pedindo virtuosa alma, que mo do Senhor voara daquele leito, que levasse para si a filha. CAPTULO XVI
Gaspar de Vasconcelos e Joaquina Eduarda no se afadigavam nas jornadas: dir-se- ia que passeavam aprazivelmente no pais, posto que as carrancas do inverno mal quadrassem a excurses buclicas de amantes ditosos. Ao fim de trs dias chegaram a Coimbra. Gaspar apresentou-se ao bispo, beijou-lhe reverentemente o anel, e disse-lhe: Venho ajoelhar perante V. Ex. reverendssima, suplicando o sacramento do matrimonio para mim e uma senhora que me acompanha fugitiva da sua famlia. No sois aquele estudante que danava o minuete da corte? perguntou o bispo. Sim, senhor. Oh! exclamou o prelado impossvel o que pedis! Impossvel?! Sim: j recebi avisos do arcebispo de Braga; j todos os bispos devem de estar prevenidos. E o mais que o corregedor do crime desta comarca j tem ordem do regedor das justias para a captura de Gaspar de Vasconcelos. Ausente- se de Coimbra, sem demora. Gaspar decorou. Lembrou-lhe Joaquina no lance da captura, e saltaram-lhe as lagrimas. Condoeu-se o bispo-conde, e disse-lhe: No vades pela estrada real... Que destino levais? para onde ides? Nem eu sei, senhor!. A melhor e mais segura terra e Lisboa: pode ser que l encontreis no patriarca o beneficio que eu vos no posso fazer; e talvez que os avisos no chegassem ainda ao cardeal. Apressai-vos na retirada daqui, e sede feliz, que eu duvido que possa s-lo um filho desobediente. Voltou temeroso hospedaria o rapaz, e relatou em ancis o acontecido a Joaquina Eduarda. Enfardelaram de afogadilho as malas, e saram. Duas horas depois o meirinho do corregedor fazia buca na estalagem; e, voltando a avisar o magistrado, recebeu ordem de os perseguir no territrio da comarca. Os fugitivos, obedientes ao conselho do bispo, saram da estrada guiados por condutor liberalmente pago at aos arrabaldes de Leiria. Dai, fiados em novo guia, venceram os pontos perigosos; e, com quatro dias de jornada, chegaram a Lisboa. Gaspar de Vasconcelos contava com a proteo de alguns condiscpulos, filhos de valiosos fidalgos de Lisboa. Procurou um dos mais arquitetos famlia Pombal, e solicitou a licena para o casamento. O patriarca, j prevenido pelo arcebispo bracarense D. Gaspar de Bragana, denegou a licena e invetivou os protetores do mau filho, que deixara o pai em trances de morte. Verdadeiramente se infere desta rede to depressa urdida, qual era o valimento de Pedro de Vasconcelos com a igreja e com a magistratura, e no menos se delatam as abrasadas entranhas com que perseguia o filho. Aconselharam-no os amigos a que sasse de Lisboa, antes que o chanceler houvesse denuncia da sua chegada. Gaspar, judiciosamente receoso da captura, e instado por Joaquina Eduarda, que mais queria o sossego sem as bnos nupciais, que a perspetiva da cadeia ainda mesmo no gozo do sacramento deliberou entrarem Espanha, e repousar-se enfim de sustos, que lhe agorentavam as delicias do corao. A cidade mais convizinha, mais prpria a devaneios amorosos, e mais potica residncia de amantes, sorriu ao rapaz e o chamou a si: era Sevilha. Foram, pois, alegres e descuidados de corregedores e meirinhos, com um passaporte, inventado em Lisboa, no qual os viandantes se chamavam Carlos e Carolina, naturais de Lisboa, casados, e mercadores. Mobilaram modestamente uma casa nos arrabaldes, acenderam o fogo, e ali passaram o restante inverno, muito ss, muito queridos, muito estranhos s coisas da ptria e aos desgostos dos seus . Leram D. Quixote, e o Gro Tacanho, e Lazarilho de Tormes, e Gusmo d lfar ache, e o Diabo coxo. Riram muito nas noites de Dezembro e Janeiro com a chvena de chocolate ao lado, e a lenha a crepitar no fogo. Quando a leitura os enfastiava, abria-se o piano, ou dedilhava na guitarra o rapaz, que em Coimbra gozara a primazia da fazer falar e chorar. Joaquina ou cantava as modinhas portuguesas, ou as seguidilhas espanholas com aquela voz dulcssima que transportava o senhor da sua alma. s vezes, tocava ela o minuete, e Gaspar executava o passo, como no baile do regedor das justias; e Joaquina Eduarda perdia-se na musica, de enlevada na agilidade graciosa dos saltos. Ora, se a felicidade no era aquele viver, se aquelas delicias no eram o prazer novo que o sibarita no chegou a descobrir, ento no sei eu que haja gozar neste mundo!. Espertaram as aves, degelaram-se os gomos das arvores, tapizaram-se os prados de boninas, o Guadalquivir espelhou-se para retratar as formosas sevilhanas. Saram os amantes do seu esconderijo, e andaram pela cidade a ver os quadros notveis, os palcios, os jardins, os monumentos, as decoraes majestticas da velha Hspalis. Em alguma dessas paragens encontraram uma famlia portuguesa da Beira, de apelido de Cunhas, Tvoras e Noronhas, aparentada com Tvoras, e fugitiva de Portugal, desde 1758, poca do suplicio dos duques dAveiro, Tvoras, e Atouguias. Facilmente se relacionaram. Francisco da Cunha Noronha e Tvora tinha senhora e filhas. Vivia com medianas posses, hauridas de alguns parcos bens que a sua mulher linha em Castela. Os grandes haveres dele no reino tinham sido confiscados, bem que o fidalgo visiense fosse de todo estranho tentativa de regicdio contra D. Jos 1. Na hiptese de que os seus patrcios eram o que eles diziam ser filhos de mercadores de Lisboa, que viajavam recreativamente hesitaram, por algum tempo, os Cunhas em se relacionarem com intimidade de visitas; porm, a precipitao de Gaspar denunciou a fidalguia da sua origem, quando, numa pratica sobre a restaurao de 1640, e da parcialidade do clero a favor dos interesses de Castela, disse ele que odiava o seu tio-av D. Francisco Pereira Pinto, bispo do Porto, por no querer exercer o bispado com a nomeao, que j tinha do usurpador Filipe, confirmada pelo legitimo rei. Francisco da Cunha pediu explicao deste parentesco; e o rapaz, que j se no temia da perseguio, e algum tanto se desvanecia com ser considerado nobre, relatou particularmente ao fidalgo beiro a sua epanfora amorosa. Vem a ponto a nossa admirao sincera: Cunha Noronha e Tvora hesitava em receber na sua sala o filho do mercador casado com a filha doutro mercador; e facilitou a sua casa e intimidade das suas filhas ao descendente do bispo, sem embargo da sua desonesta convivncia com uma senhora raptada! Incongruncias das raas ilustres, posto que Francisco da Cunha era bom homem, e a sua famlia uma santa gente, meninas bem ajeitadas e virtuosas, que no sabiam ler nem escrever nem contar. Mas no eram insensveis s delicias do canto. Abraavam-se em Joaquina Eduarda a beija-la, quando ela cantava as seguidilhas, mormente umas,, cuja letra aprendera na Gitanila de Miguel Cervantes Saavedra, romancinho donde pode ser que Victor Hugo haja talhado a sua Esmeralda da Notre Dame de Paris. A musica sara do engenhoso talento de Joaquina Eduarda como enxame de borboletas dentre perfumadas moitas de flores. letra dizia assim:
Gitanica, que de hermosa Te pueden dar parabienes, Por lo que de piedra tienes Te lama el mundo preciosa
Desta verdad me asegnra Esto, como en ti vers, Que no se apartan jams La esquiveza, i la hermosura.
Entre pobres, i aditares Como naci tal beleza? O como cri tal pieza El humilde Mananares?
Dizes la buena ventura! Y dasla mala contino, Que no vn por un camino Tu intention, i tu hermozura!
De cien mil modos hechizas, Hables, cales, cantes, mires, te acerques, retires, El fuego de amor atizas.
Nesta ultima copla cantada com feiticeira galanteria, Gaspar tinha inveja dos beijos com que as meninas Cunhas pediam a Joaquina a repetio. E o pai das meninas, batendo as palmas, exclamava: Viva a sereia! Viva a sereia! CAPTULO XVII
Francisco da Cunha instava Gaspar a escrever ao pai. No sabia o rapaz de que expresses pudesse engenhar uma carta para o seu pai. O corao contente do gozo que frua, negava-lhe incentivos para sinceramente confessar-se ru de culpas que to doces lhe eram. A gaveta do contador ainda tinha ouro, que Joaquina administrava com discreta economia. Mas o futuro, Sr. Gaspar? observava-lhe o Cunha Que h do meu amigo fazer, quando se lhe exaurirem os recursos que trouxe? Espera que o seu pai o venha procurar? Nem ele sabe onde eu estou. E, se souber, cr que ele solicite a reconciliao? De modo nenhum. Ento espera que o seu pai falea nestes prximos meses? E, se falecesse, deixar-me-ia excludo da herana. Pois ai tem! Pense no seu futuro com esta senhora. O amigo escreva ao pai, e ela ao irmo. Tratem de obter licena para se reabilitarem perante Deus e da sociedade, e muito principalmente para terem a subsistncia certa, e defendida de contingncias desagradveis. Joaquina Eduarda escreveu ao irmo poucas palavras em que revelava certo bem- estar na posio que escolhera. Dizia ela: No te peo piedade que no h para que a merea; qualquer que seja o meu destino, jamais a pedirei; porque, se fiz mal, justo que me aguente com os efeitos. O que te peo perdo das mgoas que te causei, meu bom mano. E este perdo, peo-to enquanto sou feliz. Se alguma imprevista calamidade me esmagar, no pedirei nem sequer perdo... Gaspar escreveu uma longa carta, friamente pensada, com todos os lugares patticos d uma engenhosa retrica. Raro romancista lhe ganharia em frieza de animo na redao da sua comovente narrativa. Partiram as cartas. Pedro de Vasconcelos, quando lhe entregaram a volumosa missiva, carimbada em Sevilha, e reconheceu a letra do filho, mal podia sust-la nas mos convulsas. Resolveu queima-la fechada. Vacilou ao p da fogueira, e apertou-a com frenesi, como se dentro daquele macio de papel viesse o pescoo do filho. Abriu-a, depois de esconder-se s atenes do capelo e dos criados. Leu, sem laivos de comoo. Apertou-a entre os dedos para espedaa-la; mas susteve-o a ideia de mostra-la ao mano frade Joo. Veio frade Joo de Tibes, chamado com urgncia. Leu a carta em tom declamativo, releu fragmentos, que lhe tocavam, todos encomisticos, bufou como quem suspira, e disse: No sei o que te hei de dizer, mano Pedro. Tu s pai: faz o que quiseres e entenderes. Eu c, como tio ofendido, e cristo caritativo, perdoo-lhe... Ele a ti que mal te fez? atalhou Pedro, irritado. A mim... Afalar verdade... nenhum. Ele que diz que eu fui para ele sempre bom. Cumpre saber que o honrado frade cumpriu a promessa de no revelar que emprestara mil e duzentos cruzados ao sobrinho. Pedro ignorava esta ribaldaria do filho. Eu, c de mim, bradou o fidalgo no lhe respondo. Diz-lhe tu, se quiseres, que eu morri para ele. Isso suprfluo. Se lhe no respondes, entendido est que morreste para ele, mano Pedro. Escuso eu de lhe dar parte. Ento que quer esse vilanaz? perguntou Pedro ao frade, como se os essenciais relanos da carta carecessem de clareza. Quer licena para casar, e perdo de no casar tua vontade. E pede-me licena o bigorrilhas? Sabe que eu no quero, e intenta obrigar- me a querer?. Esta de cabo de esquadra, mano Joo. Pedro! redarguiu o benedictino muito bem sabes que eu fui a Coimbra buscar o rapaz, que eu fui leva-lo quinta de S. Joo de Rei, e finalmente no perdi lano de lhe pregar a convenincia de casar com a nossa sobrinha Paulina. isto verdade ou no? : quem to nega? Ora bem: Eu, no meu modo de ver as coisas luz da filosofia crist, intendo que o domnio dos pais sobre os filhos no pode estender-se at ao corao, salvo quando a paixo solta e desenfreada os leva a praticar atos e alianas desonrosas para os seus pais. Contrariar um rapaz em matria de casamento com fulana para o casar com sicrana, o mesmo que priva-lo de ser bom marido da primeira, e obriga-lo a ser mau marido da segunda. A rapariga, com quem teu-filho quer casar, segundo tu mesmo me disseste, filha de um antigo fidalgo de Viana do Minho. Como aliana de sangue, visto est que no suja o teu; como aliana de haveres, questo e essa muito outra, que no tem que ver com a moralidade do acto... No te estejas a atrigar, mano Pedro, que eu vou concluir. O teu e o meu bom pai, que Deus haja na sua presena, exercitou em mim o absoluto imprio que tu quiseste exercitar sobre a sensibilidade afetiva do teu filho. Assas lembrado deves estar que eu amei com singular afeto uma rapariga de mediana extrao. O pai, quando me conheceu inclinado naquele rumo, chamou-me a contas, e disse-me: casar com a prima Genoveva, e j, ou entrar no convento de Tibes, e j! Pois seja para o convento de Tibes, e jrespondi eu. Qual foi o resultado, mano Pedro? Fizeram-me um pssimo frade; a conscincia mo diz; podendo ter eu sido um excelente marido, se me deixassem casar com a mulher da minha seleo. Historias! exclamou Pedro de Vasconcelos Se casasses com a filha do chapeleiro, a esta hora que serias tu? O pai dos netos do chapeleiro, um valdevinos sem respeito nem dinheiro. Assim s sempre o filho de Simo de Vasconcelos, e vestes o habito que os filhos segundos da casa dos teus avs vestiram sempre, exceto os que morreram armados na Africa e ndia, que foram muitos. Se no foste bom frade, se no s dom abade de Tibes, como foram os teus tios, e porque no tens querido fazer as asneiras com cautela e manha como os outros. Em fim, mano Joo, eu no me estou a afligir conta deste amaldioado rapaz. No quero saber dele. Paulina a minha herdeira. Procuro-lhe marido, na roda dos parentes, e hei de achar-lho digno e excelente. L est a pobrezinha cheia de paixo: o meu dever remediar o mal que fiz. Bem. No queres mais nada de mim? No. Fica-te com Deus, e lembra-te sempre que s pai. Ao outro dia, foi Pedro de Vasconcelos a Tibes. De que bordo ests? perguntou frade Joo. Pensei toda a noite. As tuas palavras: lembra-te sempre que s pai abalaram- me. Graas a Deus! E ento? Escreve ao rapaz; diz-lhe que venha para casa. E a mulher? A mulher.,. Sim: que h de ele fazer rapariga? Que a meta num convento. Os conventos no so recoletas de convertidas, mano Pedro. E quem te diz a ti que ela quer entrar em convento? Pois ento que v p-la na casa donda levou. Valha-te Deus! exclamou frade JooAgora vejo que as minhas palavras te abalaram inversamente do que eu desejava! O que o teu filho pede licena para casar. No na dou j disse! bradou o fidalgo E tu, Joo, pareces-me um homem sem juzo nem probidade. Merces, mano Pedro! disse seraficamente o frade Pois deixa em paz o homem sem juzo nem probidade. Pedro de Vasconcelos voltou-lhe as costas, e saiu. Sabido , portanto, que no teve resposta a carta de Gaspar. Quanto de Joaquina Eduarda, a historia mais breve. Sebastio leu as poucas linhas da sua irm] chorou, dobrou a carta, e continuou a rezar o oficio da nossa Senhora nos versculos, que diziam: Deus noster refugium et virtus: adjutor in tribulationibus, quce invenerunt nos nimis. Propterea non timebimus de um turbabitur terra et transferentur montes in cor maris.(*) Finda a reza, escreveu: Filha da minha santa me e do meu virtuoso pai! A misericrdia do Senhor se amerceie de ti. Padre Sebastio.
[(*)O nosso Deus refugio e esforo: favorecedor nas tribulaes, que com excesso nos tem assalteado. Por isso muito temeremos, ainda que seja comovida a terra, e os montes transferidos ao meio do mar.] CAPTULO XVIII
No se afligiu Gaspar com o j esperado silencio do pai; nem Joaquina Eduarda se comoveu grandemente das breves e compungentes palavras do irmo. Reinava ainda o ouro e o contentamento. Joaquina estava sendo uma nova maravilha na cidade que proverbialmente o . Endeusavam-na homens e mulheres. Queriam-na nas suas tertlias as principais famlias para quem o ignorado enlace dos dois prendados e gentis filhos de Portugal era honestssimo. Gaspar esse ento, por amor da leveza dos ps no minuete, andava nas palmas. Os calcanhares, to fatais para Aquiles, eram nele dons para muitos amores e triunfos, se ele tivesse coraes sobresselentes para regalo das requebradas sevilhanas. Derivaram alguns meses, e o ouro ia escasseando, e Francisco da Cunha, a quem os meios faltavam para poder abrigar das privaes aquela descuidada gente, redobrou de instancias com o rapaz para abrandar o pai. J tenho pensado nisso disse Gaspar com sincera gravidade Eu comeo agora a ver a ladeira, e escondo de Joaquina estes pensamentos; mas ela adivinha-os, e comea a entristecer-se. O meu pai no me respondeu. Quem sabe se ele ter morrido? Vou escrever a meu tio frade Joo. Apesar do propsito, Gaspar envergonhava-se de escrever ao tio, por causa daqueles mil e duzentos cruzados, que prometeu pagar, quando casasse com a prima Paulina. Aguilhoado, porm, pelos ditames da necessidade ameaadora, escreveu. Fr. Joo de Vasconcelos condoeu-se das, por ventura, encarecidas lastimas do sobrinho. Respondeu, referindo-lhe a prtica e diligencias que fizera com o inflexvel irmo. Acabava por lamentar o seu destino, e chorava-se por no ter mais dinheiro que umas vinte peas, que lhe mandava, prometendo martelar ainda no animo duro do pai. Gaspar acreditou nas virtudes do tio Joo, e reforou a gaveta esvaecida de calor mineral. Escreveu outra carta ao pai. O benedictino, desta vez, no foi consultado. Pedro de Vasconcelos, ouvida a pitonissa da sua chamada honra, escreveu: Receberei Gaspar na minha casa; mas solteiro. Prontifico-me a dar criatura, que ele tem consigo, uma penso anual que a sustente num recolhimento, enquanto a sua famlia a no sustentar. Ou isto, ou nada. No respondo a mais carta nenhuma, contrria ao que levo dito. Braga, 20 de Janeiro de 1765. Pedro de Vasconcelos. Gaspar desfez com os dentes esta carta. Joaquina apenas pode ler a palavra: recolhimento. Pediu e implorou explicao daquele termo. Gaspar, muito suplicado, reproduziu o resumo da carta. Joaquina, sem leve trejeito de dor ou espanto, disse: Onde o teu pai escreveu recolhimento deveria por sepultura local em que eu lhe seria muito menos dispendiosa. Aceso em ira, o arrebatado rapaz replicou ao pai deste teor: Gaspar, filho de Alaria Pereira, responde ao sedutor de Maria Pereira, que menos vilo que o seu pai. Sevilha 31 de Janeiro de 1765. Ao ler estas linhas, Pedro de Vasconcelos sentiu nas fontes as garras da morte, e no seio as do remorso. De feito, Maria Pereira tinha sido seduzida, e a vingana da pobrezinha estava ali escrita naquele papel. Pesou-lhe na cabea a clava de ferro que faz dobrar os joelhos. O velho caiu para orar; mas o demnio da ira amparou- o na queda, ergueu-o, e assoprou-lhe alma incndios de furor. Corre alucinado de sala em sala; manda chamar o corregedor do crime, e pergunta- lhe se pode fazer prender o filho em Sevilha. O magistrado cita-lhe os tratados negativos, e ministra-lhe boas doutrinas. Exaspera-se o velho, ruge, tarda-lhe a lngua, lesa-se-lhe o brao que vai levantar amaldioando o filho, e cai abatido pelo primeiro insulto apopltico. chamada a medicina, e logo a religio, representada pelo benedictino. Ceda enfermidade, aquietasse o espirito, e passados quinze dias, Pedro de Vasconcelos levanta-se convalescente. Fr. Joo vira a carta do sobrinho. Escreveu-lhe muito de espao; a ultima linha dizia: cada vez te considero mais perdido, meu desgraado Gaspar! Vo correndo os dias. Entrou a tristeza as portas da casinha em que, quinze meses antes, os arrobados amantes pensavam que se alojara com eles a eterna alegria. Surpreendiam-se num olharem-se mutuamente com lagrimas. Abraavam-se, infundiam-se animo, fantasiavam esperanas vindas de acasos, acasos vindos de Deus, de um Deus benigno que eles imaginavam amparador de duas pessoas boas e infelizes que se amam. J as noitadas por salas os entediavam, e com pretextos fugiam delas. Francisco da Cunha adivinhava a mgoa que os nobres peitos calavam. E confrangia-se de compaixo, porque estava pobre, e de Portugal, onde ele solicitava a liberdade dos bens e prova da sua inocncia, no recebia alguma nova que o habilitasse a dizer queles infelizes: Vinde para a minha casa. E os dias iam correndo, e as migalhas daqueles trs mil e duzentos cruzados j no abonavam a sustentao de um ms. Gaspar abraou-se no fidalgo da Beira, e disse-lhe sufocado de soluos: Diga-me em que hei de ganhar dinheiro? Na ptria diria: aqui, no sei. Pergunta essa que eu tenho feito a mim mesmo, algumas vezes, quando as minhas filhas esto remendando a minha roupa branca, e lavando noite os vestidinhos com que aparecem no dia seguinte. Mato-me! exclamou de golpe Gaspar. Misria! redarguiu Francisco da Cunha Seja homem, senhor! Espere... Eu vou escrever ao seu pai. No lhe responder disse o rapaz. E eu no me ofenderei. Nada se perde, e podemos ganhar. Eu no aceito a proposta vil de fechar num recolhimento Joaquina, quando ele a repita. Pde ser que venha outra mais aceitvel. Espere. O Sr. Gaspar est em extremo apuro? No, senhor. Ainda no temo a fome alguns meses. Joaquina j fechou o piano e quer vende-lo. Arrancou do pescoo e orelhas o ouro, e quer vende-lo. Eu vendo tudo para ampara-la... Vendo-me a mim! Que desesperao a sua!. atalhou o expatriado Bem se v, amigo, que est pouco apalpado pela desgraa. No sabe ainda o que a perspetiva duma forca, e depois o desterro com esposa e trs filhas criadas na suprema abundancia, e de repente lanadas na pobreza!.. Alente-se, Gaspar! E o mais que o rapaz entrou na sua casa animado. Quando chegou sala, viu um homem ao lado de Joaquina Eduarda, contando duzentos duros. Era o comprador do pianoforte, que o tinha vendido por quatrocentos. O comprador saiu, e Gaspar murmurou com o peito varado de angustia: Vai-se o teu piano? Que tem isso, Gaspar? Ouvirs a minha voz desacompanhada de musica. E hs de gostar dela ainda assim. Ora escuta... E, a sorrir, cantou uma copla da seguidilha dileta, cuja toada inventara nos dias felizes:
De cien mil modos echizas, Hables cales, cantes, mires, te acerques, retires, El fuego de amor atizas.
E, estreitando-o muito ao seio, exclamou: Tu choras, fraco? CAPTULO XIX
O amor d-se mal nas casas ameaadas de pobreza. como os ratos que presentem as minas dos pardieiros em que moram, e retiram-se. A comparao por de mais plebeia em matrias to afidalgadas como so estas do corao; todavia, imolemos a polidez verdade. O amor de condio muito desprendida dumas baixezas que ns rasamente chamamos almoo, jantar, ceia, aconchego, comodidades, e guarda-roupa abundante. Assim que ele d tento de que o seu vizinho, chamado espirito, pensa distraindo naquelas coisas vulgares, comea a enfastiar-se, a franzir o sobrolho, a estorcer-se, a ver por onde h de fugir. O amor quer o monoplio das faculdades da alma. Se o intelecto o desdenha para se exercitar era estudos graves, o caprichoso arrufa-se, e vinga-se dos sbios fugindo para os coraes dos tolos, que, tal qual vez, se senhoreiam dos espritos das mulheres dos sbios, desastre de que o sapientssimo Marco Aurlio se queixava numa carta sua muito desonesta mulher Faustina. Cito um imperador para consolao da gente m, ignorante dos eminentes camaradas de infortnio, que a historia lhe oferece. Quando este despeito se d com as inteligncias absorvidas pela paixo do saber, que far com os nimos preocupados do prosasmo da receita e despesa? Est este lameiral chamado terra infamado de misrias que fazem chorar. Mulheres sem honra nem po; criancinhas sem me nem cama; homens sem corao nem remorsos; Lages salpicadas de sangue de desesperados que se matam; bancas de anfiteatros cobertas de cabeas separadas dos troncos; hospitais que sorvem podrido e revessam Cadveres. A gente v isto, e passa. No se inquirem causas. A filosofia viu tudo, e disse: corrupo congenial da humanidade. A religio viu, e disse: Caridade e misericrdia. Os poetas viram e disseram: Manon Lecaut, Cludio Gueux, Margarida Gauthier. A filantropia viu e disse: No faamos nada a favor dos que pendem misria, mas d-se-lhes asilos e po, depois que tombarem no abismo. Filsofos, religiosos, filantropos e poetas param em volta dos monturos sociais a contemplarem as fezes. E, porque o aspeto da desgraa tem tal qual magnitude, embora repulsiva, os contempladores no esquadrinham de tamanhos efeitos uma causa, ao dizer, insignificante. Pois eu encaro em tudo isto, e lembra-me o que pensava Francisco da Cunha Noronha e Tvora, observando a sombra triste de Gaspar e as cores quebradas de Joaquina Eduarda: o amor que vai fugindo vanguarda da pobreza. Estes pedaos esfacelados da humanidade, estas mulheres que se laceram e no choram, estas criancinhas acamadas na rua que acalentam a fome ao rugido noturno das carruagens que rodam, tudo isto que est a pedir uma providencia melhor, so as ruinas dumas galerias luxuosas donde o amor fugiu, quando a misria assalteou os vestbulos. Tudo isto uma agonia horrendssima de coraes que amaram, de filhinhos que no acharam leite em seios onde os coraes tinham morrido na garra do desespero. Oh! que escarnio seria a dadiva do viver, se no viesse com a certeza da morte! As caricias que Joaquina recebia do seu amado algoz eram j aquecidas pela memria da paixo extinta. E no se iludia ela. Quem pode enganar a mulher que comea a desconfiar da felicidade no amor? Joaquina Eduarda de si mesma se espantava, sentindo-se transportada pela tristeza aos braos de uma saudade que a levava aos loureirais do paal do seu irmo, s florestas solitrias e rumorosas das margens do Cavado! Tinha dor e pejo deste sentir. Calava-o, sufocava-o, e to depressa olhava em fito os olhos tristes de Gaspar, que assim aquela amada e maldita saudade lhe tirava do peito ancis sem desafogo. E passaram dois arrastados meses nesta mtua e aflitiva contemplao, raras horas cortadas de intermitentes alegrias, emprestadas pela esperana do bom sucesso da carta que Francisco da Cunha escrevera a Pedro de Vasconcelos. O fidalgo bracarense, prestando homenagem aos herldicos apelidos que assinavam a carta, respondeu. Aps breves linhas, em que historiava o procedimento ingrato e ignbil do filho, trasladava o bilhete petulante com que ele respondera proposta. Depois, acrescentara: Diga-me V. Exa. que homem de bem consentiria que outro homem de bem lhe pedisse por tal filho? Francisco da Cunha ocultara esta resposta de Gaspar, e replicou em mais pungitiva suplica. Pedro de Vasconcelos no respondeu; mas o frade de Tibes, conhecedor desta correspondncia, enviou ao sobrinho vinte peas, havidas de emprstimo do dom abade, e escreveu-lhe: No contes com o teu pai, nem se canse o honrado Cunha. A tua prima vai casar. Os vnculos dos Vasconcelos vo para o teu primo Lopo de Vilar de Frades. O teu pai reserva os bens livres, e falia em recolher-se a Tibes, depois das escrituras nupciais. Ontem me disse ele: Se esse desgraado voltar aqui um dia, e eu tiver falecido, deixarei a no teu poder dinheiro com que ele possa dotar-se e professar ri um convento. Ao menos que v para onde resgate a alma das penas eternas. Que hei de eu fazer-te, infeliz? J me lembrou ir falar com o irmo dessa senhora; mas disseram-me que ele sara da reitoria, e se recolhera ao convento de S. Domingos, com o propsito de vestir o habito. V tu, Gaspar, quantas mudanas, quantas infelicidades, procedidas duma cegueira, que a desgraa te arranca dos olhos agora com ferro em brasa. Se essa menina quisesse voltar para o convento de Santa Clara, eu iria ao Porto intender-me com a virtuosa tia, e moveria neste negocio o bispo D. Antnio de Sousa, que foi da minha criao neste mosteiro. Querers tu leva-la a essa grande prova de juzo, e compaixo pela sorte de ambos? Responde-me... Joaquina Eduarda viu a carta, e disse: Porque me mostras esta carta, Gaspar?. Queres que eu faa a vontade ao teu tio? No respondeu o rapaz, com menos intimativa do que esperava Joaquina. Esse no dos lbios acudiu ela um sim do corao?!. Que suspeita essa to injusta! balbuciou Gaspar. Que grande desgraada eu sou! exclamou Joaquina soluando nas palmas das mos, com que tapava o rosto. O rapaz abraou-a com estremecida piedade, e no proferiu mnima palavra consoladora. Diz ao teu tio que no quero entrar no convento! exclamou ela de sbito, desatando-se-lhe dos braos. Direi...; mas porque te afliges assim? que culpa tenho eu desta proposta do meu tio? Nem eu te culpo! disse ela muito quebrada e quase desfalecida s tambm muito desgraado, meu pobre Gaspar!.. Sei avaliar as tormentas que vo na tua alma... A chegada de Francisco da Cunha interrompeu este coloquio dilacerante. Joaquina levantou-se, e entrou no seu quarto. Chorou, enquanto a febre lhe no queimou os olhos. Quando Gaspar a procurou na alcova, e a quis tirar sala onde o fidalgo desejava v-la, Joaquina Eduarda j no podia segurar-se em p. A febre aturdia-lhe a cabea e abrasava-lhe as faces. CAPTULO XX
Se Gaspar necessitasse duma alma consoladora, e pudesse com ela suavizar as raladoras consumies, Joaquina Eduarda no era certamente dotada da ndole branda e paciente que santifica os anjos da bonana beira das almas atormentadas. Sobejavam-lhe a ela dores, saudades, remorsos, e pressentimentos terrveis: carecia de paz e coragem para ser ameigadora de sofrimentos alheios. Logo que o homem, em cujos ombros a dbil criatura se amparava, desfaleceu, natural que Joaquina sucumbisse com ele. Se Gaspar, fingidamente ao menos, sustentasse exteriores animados, ela, como todas as mulheres, faria milagres de fora e conformidade. Na posio de Joaquina Eduarda, nenhuma mulher seria mais animosa, entrevendo j o abandono, a misria, ou a esmola recebida, num convento, de mo inimiga, que assim lhe pagava a desonra e o silencio. Iniquamente Gaspar intendia que a pobre menina devia ser menos egosta do seu bem-estar, e condoer-se de quem por amor dela sacrificara tanto. O desvairado rapaz no via ali naquele leito a mulher que tantos maridos ilustres desviara com o seu desdm para guardar-lhe para ele, e incondicionalmente, um corao com todas as fibras intactas; no via ali a esconder o rosto em lagrimas na dobra da coberta aquela mulher que parecia a divinizao da beleza, e o galardo dos olhos que a fitavam, e por bem pagos se davam de que ela se deixasse contemplar. No. O que ele via era a mulher que o fascinara e perdera. E oh baixssima vileza da alma do homem! j ele se espantava da sua fascinao e da cegueira com que se deixara perder! E mais ainda. O desgraado lembrava-se da sua prima Paulina. Ama-la no podia; mas ouvia uma estpida voz interior a dizer-lhe que devia conformar-se vontade do pai, e aceitar uma esposa, que lhe no seria jamais na vida empeo aos gozos da mocidade. E, no entanto, Joaquina, enleada tambm nos seus pensamentos, recordava-se da infncia, das caricias maternais, das barbas brancas do seu pai, do cadver que lhe tiraram dos braos, da ternura do irmo, dos silncios daquela aldeia que ela, noite alta, quebrava com as melodias da sua voz. E, ao cair destes sonhos onde levantava a saudade, via-se num leito em alcova triste, e aos ps desse leito via ura homem com a fronte escondida entre as mos. Gaspar! dizia ela maviosamente. Que , menina? Tens saudades do passado? E tu?. Tenho. Pois no hei de ter?.. Quando ramos ambos felizes... E mais tu pensavas que o no eras... Dizias-me que o inferno se te abrisse aos ps, se eu me desencontrasse do teu caminho... E que mal fizemos, meu amigo... Tanta gente a querer salvar-nos... Como o arrependimento te punge!.. atalhou magoado o rapaz. E a ti, no, Gaspar?. Que silencio!. Ento porque te ofendes?! Tu no compreendes a minha vida, Joaquina?! perguntou ele de sobressalto e num tom de repreenso. Compreendo, compreendo, Gaspar... No te irrites. Parece que me queres fazer responsvel das ms entranhas do meu pai!. Eu no... Vs que as minhas tristezas, meu suplicio incessante, a falta de meios... e acusas-me porque eu no sei como se pode viver sem recursos... O que eu sei que se pode morrer sem eles disse Joaquina serenamente, abrindo um sorriso de sincera resignao. Oral., que resposta!. resmungou ele acremente. Joaquina suspirou, e expediu um ai mal abafado com a roupa que puxou para o rosto. Condoeu-se penetrantemente Gaspar: acurvou-se sobre o leito, e beijou-lhe os olhos, proferindo suplicas de perdo com as mais veementes expresses da alma que se confessa desonrada e desprezvel. Joaquina sorriu-lhe cariciosamente, e murmurou: No te aflijas com o futuro que eu morro cedo. Depois irs para o teu pai, e ele te restituir o amor e os bens. Espera mais algum tempo, que eu tenho a alma da minha me empenhada no meu resgate e no teu. E desejas morrer, Joaquina? exclamou ele com imensa dor. Desejo morrer, antes que me mates o corao. Quero morrer a amar-te... e pressgio que, se viver alguns meses, acabarei odiando-te. Porque? Porque me hs de abandonar, e hs de faze-lo sem motivo que te absolva. Dantes me dizias que te no fazia medo o infortnio; desafiavas a desgraa a experimentar a tua dedicao. Tinhas valor, quando ele era desnecessrio. Hoje, nem queres ver se podemos descer devagar ao fundo do abismo... aterras-te e precipitas-me contigo. Pois que hei de eu fazer?! Diz-me o que hei de eu fazer, Joaquina? clamava ele com as mos postas. No sei... no sei.. murmurou ela ansiadssima Quem me dera morrer, meu Deus! Uma ideia feliz! exclamou Gaspar de Vasconcelos com veemente vivacidade Uma inspirao!. Ns podemos viver trabalhando; mas havemos de sair de Sevilha. Aqui, onde representamos e convivemos com as primeiras famlias, no faremos rir o mundo com a mudana de vida; mas iremos para outra cidade. Eu ensinarei dana, e tu piano e canto. Lutemos, Joaquina; sejamos nobres aos olhos um do outro, com tanto que a sociedade ignore os nossos apelidos. Tens coragem? Tenho! disse ela com transporteReanima-te, meu amor, que a tua enfermidade o nico impedimento que nos atalha. Eu estou boa daqui a horas. Olha... no te parece que estou mais febril?! E ters tu valor para prova to cruel, Gaspar? Poders sofrer os dissabores da dependncia... tu!.. afeito s pompas, representao, liberdade!.. Tenho. Vou dar esta boa nova ao nosso amigo Cunha. Deixo-te menos infeliz?. Deixas-me alegre, meu Gaspar!. Vejo que s um homem dalma!. Francisco da Cunha escutou o plano, que o entusiasta expendia com jbilos de bom corao. Sorriu-se e disse: mais um elo que a desgraa est forjando para a cadeia de duas nobres vitimas. No se iludam, pobres rapazes; no se iludam. A Sra. D. Joaquina Eduarda ao quarto servio que fizesse no solar dalguma soberba espanhola, e ao quarto menospreo que lhe fizessem os lacaios das educandas, preferia morrer. E o Sr.? Pelo amor de Deus!, o homem que escreveu ao seu pai um bilhete, cujo traslado eu vi, poder tolerar que o pajem dalgum degenerado neto de Gonalo de Crdova lhe venha dizer que espere no ptio enquanto o aprendiz de dana no acorda?! No se enganem, os meus desditosos amigos!. Gaspar no replicou. Voltou com alma espedaada ao leito de Joaquina Eduarda, e disse-lhe: Francisco da Cunha despersuadiu-me. Pensemos noutro expediente. CAPTULO XXI
Nenhum expediente de servir premiou a laboriosa imaginao de Gaspar de Vasconcelos. Todavia, Francisco da Cunha, que no pensava menos que o seu deplorvel amigo, saiu com o seguinte alvitre, comunicado a Gaspar, a ocultas de Joaquina Eduarda. bom, dizia o fidalgo, que ela o ignore enquanto o meu amigo se no resolve a pratica-lo. Cumpre-lhe, no extremo em que est, romper por um acto extremo, Sr. Gaspar. O seu pai est muito ofendido: Vossa Senhoria justificou a severidade dele, ultrajando-o; e desarmou as pessoas que lhe quisessem agora irrogar a ele demasia de severidade. Benefcios de medianeiros loucura espera-los. Terceiras pessoas no vingam obra proveitosa neste caso. Resta um recurso: ir o Sr. Gaspar lanar-se aos ps do seu pai. Por motivos insignificantes, disse o rapaz, me quebrou ele nos braos uma bengala. E depois abraou-o, e presou-o com mais ternura. Que tem que ele lhe quebre outra bengala nos braos, com a condio do remir desta m posio? E que espera V. Exa. do meu pai? Que o deixe esposar esta menina, e os acolha na sua companhia. No viu que ele deu a casa para um sobrinho, e vai recolher-se a Tibes, e reserva o preo do meu cativeiro num convento? Esses desgnios vai o meu amigo destruir com a sua presena. Respeito o seu alvitre; mas espero dele mais um lance miservel da minha infernal vida. Se eu tivesse alguma confiana no seu juzo, replicou o velho, desistia do meu projeto; porm, como no tenho nenhuma, insisto em que o tente. Cumprirei, se Joaquina o no contrariar. A minha mulher que se encarrega do propor Sra. D. Joaquina Eduarda. A menina vem ser da minha famlia, enquanto o Sr. Gaspar estiver ausente. Ns a distrairemos com as esperanas que j se me antolham realizadas prosperamente. Alm de que, na hiptese de que o Sr. Pedro de Vasconcelos rebelde s suas suplicas, Vossa Senhoria Lana mo de um recurso desprezado. Comove o seu timo tio frade Joo a que lhe d ou lhe empreste recursos para concluir o seu curso jurdico. Assim que o meu amigo obtiver o gro, j pode ganhar po mais ou menos abundante na ptria. Se eu alguma hora l tornar, e readquirir os amigos que tive, conte com a minha proteo para entrar na carreira da magistratura. No se lhe aclaram mais bonanosos os horizontes do futuro? Diga l. O meu pai perseguir-me- enquanto eu no abandonar esta pobre menina. No ouso aconselha-lo a que minta ao seu pai disse pausada e reflexivamente Francisco da Cunha seno dir-lhe-ia que a Sra. D. Joaquina Eduarda teria um talher entre os das minhas filhas enquanto Vossa Senhoria carecesse de meios para sustenta-la independente do seu pai. Beijo-lhe as mos, meu honrado amigo exclamou Gaspar, abraando-o com a efuso do reconhecimento. Vai a Braga, no vai? atalhou animosamente o fidalgo. Se Joaquina consentir... A esposa de Francisco da Cunha passou a manh do dia imediato com a enferma. Empregou habilmente rodeios que modificassem a impresso da surpresa. Joaquina ouviu-a primeiro com sobressalto, depois com uma serenidade mais dorida que a inquietao. Escutou as ultimas expresses, e disse: Ele vai; mas no volta aqui. Jesus! que ideia! exclamou a dama A senhora tem receios muito injustos deste cavalheiro! No dele que eu receio... da fatalidade do meu destino. Mas que v, que me diga, sem temor de magoar-me, que vai. Entrou ao quarto depois Gaspar de Vasconcelos, com os olhos hmidos. Joaquina acercou-o de si, e disse-lhe: Vais fazer um enorme sacrifcio: pes debaixo dos ps do teu pai o nosso pobre orgulho. No importa. Se tens fora, eu a terei para sofrer na minha alma as dores humilhantes da tua. Eu queria dizer-te que por amor de mim no te aviltasses at haveres pejo da tua queda; mas temo magoar-te, Gaspar... temo, seno dizia-te: se a tua felicidade est em me abandonares, abandona-me; obedece ao teu pai. V que me apunhalas o corao! interrompeu Gaspar, beijando- lhe as mos. Ento perdoa-me. Vai, e cumpre o que a tua alma te mandar... Mas eu fico doente, meu querido amigo; fico doente, e muito s neste mundo... Tomarei eu a ver-te, Gaspar?. Terei eu morrido, quando voltares?!. E, sentando-se na cama, rompeu num chorar que lhe cortava os fios da vida. E o consternado rapaz de joelhos sobre o leito, com a face dela estreitada ao seio, articulava umas vozes que os soluos entrecortavam. O primeiro homem e a primeira mulher, que sofreram aquelas angustias, que perguntas fariam ao criador? Provavelmente estas, que so de um santo: Porque no morri eu dentro do ventre da minha me? Porque no pereci tanto que sai dele? Porque foi concedida luz ao miservel, e vida aos que esto em amargura de animo? Por acaso tens tu olhos de carne? Ou vs tu as coisas como os homens? CAPTULO XXII
Chegou portaria do convento de Tibes Gaspar de Vasconcelos, e perguntou por frade Joo. O frade da portaria reconheceu-o, e disse-lhe: Seja bem vindo o filho prodigo. Queira a vossa reverendssima chamar... O seu tio ou o seu pai? O meu pai est aqui?! exclamou Gaspar. H seis dias entrou para aliviar aos ps da cruz o fardo das angustias... Deus perdoe a quem lhe encheu a medida do sofrimento... Qual deles avisarei? O meu tio, se me faz o favor. Pois espere que vai abrir-se. Saiu o frade, e Gaspar entrou no ptio interior da portaria. Passados minutos, desceu frade Joo. Gaspar abraou-se-lhe nos joelhos, sem desatar palavra dos lbios convulsos. O frade alevantou-o, e levou-o consigo para a sua cela, silencioso como as imagens dos santos que pendiam em painis nas paredes dos longos dormitrios. Entrados cela, disse frade Joo: J sabes que o teu pai est aqui. As escrituras fizeram-se h nove dias para o casamento da tua prima. Quando, porm, avisaram Paulina de que estava marcado o dia das bnos, ela respondeu que no casava. O teu pai cobrou disto grandssimo desgosto, e para logo mandou preparar aqui a sua aposentadoria para o restante da vida. Encontras, pois, o pobre velho no acume das aflies, que lhe preparaste. Agora diz-me tu se lhe trazes alguma nova dor. Queres falar-lhe? Ele ignora que ests aqui. E falia de mim? perguntou Gaspar. Pouco e terrivelmente. Chama-te o azorrague da Providencia divina, o abutre que ele criou no corao para lho dilacerares febra a febra. V, pois,, nestas circunstancias, o que vens dizer a este moribundo. Venho pedir-lhe perdo balbuciou Gaspar, trespassado do terror que as expresses e gestos do venerando monge incutiam.. E depois?. Tu no vinhas aqui simplesmente pedir perdo ao teu pai. Vens pedir-lhe recursos? Falia verdade, que a deves amizade do teu tio. Sim, meu santo protetor, eu venho pedir a meu pai perdo, recursos, e misericrdia, porque a fome j bateu minha porta. Que fizeste irm de Sebastio Godim? Est em Sevilha. Recolhida? Em casa de Francisco da Cunha, daquele nobre sujeito que escreveu a meu pai. Vens, por tanto, pedir recursos para voltar a Sevilha? Que hei de eu fazer quela desditosa senhora, meu tio? No mo perguntes, desgraado. O que te eu direi que no queiras ver o teu pai, se lhe no podes dar uma nova consoladora. Mas eu quero v-lo, embora seja expulso da sua presena exclamou Gaspar. Vers... Mas no sei se o previna, se o surpreenda. Espera aqui: eu vou ao quarto do teu pai. Voltou, pouco depois, frade Joo, e disse: Dorme. Poderei v-lo? acudiu Gaspar. Podes, e at quero que ele, ao despertar, te veja. Entraram p ante p na cela. O velho dormia encostado a travesseiras altas sossegadamente com os braos cruzados. Uma das mos segurava umas folhas de papel manuscrito. Gaspar avizinhou-se subtilmente, e reconheceu a carta suplicante, a primeira que lhe escrevera de Sevilha. Foi-lhe de bom agouro este encontro. Contemplou as cavadas feies do pai, que, em dois anos, tinham precocemente envelhecido. As alvssimas barbas cobriam-lhe o peito. As costas das mos descarnadas, com os tendes encorreados sobre os ossos, eram cadavricas. As lagrimas derivavam a quatro nas faces do filho. E a conscincia dizia-lhe: O que tu fizeste do teu pai, e daquela mulher feliz e pura, e do irmo virtuoso e extremoso daquela mulher... e o que fizeste de ti, algoz de quatro existncias! Descerrou Pedro de Vasconcelos os olhos: encarou Gaspar; estremeceu; espancou da fronte a viso daquele sonho; seguiu os menores gestos do irmo e do filho; viu este que ajoelhava, e o outro que estendia o brao e abria a mo sobre a cabea do sobrinho. Que ?. que vejo eu?. exclamou Pedro# sentando-se de salto na borda do leito. o nosso Gaspar disse com alegre sombra frade Joo. E Gaspar, aproximando-se do pai, ia a tomar-lhe a mo. O velho saltou ao pavimento, desviou-se, e recuou ao filho que o perseguia de joelhos. Alto ai! bradou o velho, alongando contra ele os braos Que quer este monstro? que vem aqui fazer este parricida? Prosseguiu Pedro, interrogando frade Joo, e outros frades que tinham entrado, atrados pelos brados. Pedro! disse o benedictino Jesus Cristo no repulsava assim os pecadores... Sr. Vasconcelos, pois que isto? Perguntava um dos monges, postando- se direita do rapaz ajoelhado. Outro monge pegou da mo do velho, e disse: Esta mo no fere, abenoa: na casa do Senhor as tempestades da ira so sacrilgios. Deixem-me por caridade! exclamou o fidalgo Joo, pela boa sorte da tua alma te peo que me no percas a minha... Leva-me daqui esta infernal tentao. Eu no posso perdoar ao filho que me chamou arvore infame. Fora dos meus olhos! Fr. Joo tomou do brao do sobrinho, empuxou-o a si, e disse-lhe: vem. E, no dormitrio, continuou: Isto esperava eu; mas era inevitvel a exploso; agora esperaremos outro lano. Entraram na cela. Gaspar sentia na sua alma o brigar de dois sentimentos avessos: compaixo do seu alucinado pai, e clera de se ver to rancorosamente expulso. Excruciava-o j o arrependimento de sair de Sevilha. Ali, naquele horrente silencio do mosteiro, e tristeza do cubculo em que o tio o deixou, que as saudades de Joaquina Eduarda lhe alanceavam o corao. Figurava-se-lhe mudada para imprevisto inferno a sua vida, e j acorrentado ao poste de um crcere. Temia-se de algum tirano procedimento do pai, fazendo-o lanar em ferros. Ao par destes sobressaltos, lampejava-lhe perante os olhos a imagem de Joaquina, enferma, atribulada, e carecida da comiserao da famlia que lhe dera abrigo. Neste trance de incomportvel angustia, entrou frade Joo de Vasconcelos, dizendo: L deixei o dom abade com o teu pai. um santo varo que tem instinto do cu nas palavras que diz. Entretanto, conversemos, Gaspar. Ainda no percebi bem o teu intento nesta vinda. Tu que queres, filho? Pensas em te reconciliar com o teu pai? Pois decerto... se eu o conseguisse... Mas... essa senhora... que parte ainda tem ou ter na tua vida? Fala-me verdade como a Deus: ests solteiro? Como a Deus, lhe juro que estou. E pensas em casar com ela? Se o pai mo consentir... Ora ai est! Justo seria que o consentisse; mas no fales em tal... Se o teu pai te dissesse: recolhe-te minha casa de Braga; ests perdoado que farias tu? Que faria eu?, que faria? repetiu Gaspar sem poder estremar resposta das confusas ideias. Sim: pergunto insistiu o frade se voltarias para Espanha, ou chamarias a tua desgraada companheira para Portugal. Pois que poderia eu fazer seno uma dessas coisas? perguntou o rapaz aflitivamente. Em tal caso, a reconciliao seria de m f por tua parte, e o dio depois recrudesceria. Dou-te um conselho, infeliz rapaz: vai-te nas boas horas: no caves mais na sepultura do teu pai. Mas eu careo de subsistncia! bradou Gaspar com a ousadia que do as torturas Tenho fome, tenho direito a pedir a este homem, que me deu o nacimento, que no me deixe morrer de fome e vergonha. Falia menos rijo, sobrinho atalhou brandamente o frade Tu s ru, e assumes catadura de juiz. Humildade, humildade, seno est tudo entornado. Continuemos a conversar placidamente: senta-te, e no chores. Guarda as lagrimas para melhor azo. Ora, diz-me: essa senhora no est fatigada de ser infeliz? A Providencia ainda lhe no abalaria o animo para desandar deste mau caminho em que de mos dadas vocs se lanaram? Nunca te mostrou desejo de recolher-se num convento com a sua subsistncia segura, como tantas damas ilustres ho feito, como o fez no nossos dias aquela Sra. D. Mariana de Sousa, que houve dois filhos do infante D. Francisco , e morreu nas ruinas da sua cela de SantAna de Lisboa, quando foi do terramoto? Eu no sou o infante D. Francisco , meu tio contrariou Gaspar Sou um homem igual em nacimento a D. Joaquina Eduarda Cazado Godim, e valho menos do que ela, porque no tenho apelido de me... Eu no estou debatendo genealogias, rapaz retorquiu frade Joo com apostlica serenidade O sabido que no desistes de casar com ela... um dever, um preceito de Deus. . E mais te digo, filho, que se eu pudesse remediar as tuas necessidades, dizia-te: casa com a senhora a quem deves reparao. Mas tu que j sabes a minha pobreza fradesca, e por ventura sabers que devo o pouco com que te remediei as mais urgentes faltas, no para mim que vens, para o teu pai. Em verdade te digo que no sei artes nem eloquncia com que possamos traz-lo da braveza, em que o viste, aos teus interesses, e desejos, alis louvveis. Farei sentir ao prelado o teu intento; ele que se empenhe em tira-lo a limpo, que eu de mim no sei nem valho para tanto. Volto ao teu pai, e depois aqui. Olha l: queres tu jantar, homem? No me fale em comer, meu tio. Tu comers, filho. O estomago dspota entranha que protesta contra as paixes das outras. CAPTULO XXIII
O dom abade ordenou que fosses agasalhado na hospedaria do convento disse frade Joo, quando voltou O prelado quer que vs sua casa. Vem comigo. J sei o que vou ouvir, meu tio observou Gaspar Venham todas as angustias! Vamos. Ouvirs, e fars o que intenderes. ordem no dominicana. Espero que te no ponham no potro da tortura.. redarguiu frade Joo sorrindo, sem decompor a gravidade do aspeito. Acolhido benignamente pelo dom abade, que o conhecia desde menino, Gaspar, beijando-lhe a mo, disse: Espero que V. reverendssima no esteja do lado dos meus inimigos. Quem so os teus inimigos, pateta? Anda para aqui, senta-te ai, e conversa comigo enquanto frade Joo vai para junto do teu pai. Vamos a saber: a desgraa apalpou-te deveras, no verdade? Sou muito infeliz... Pois ento basta do ser. Entendes tu que a tua felicidade est em casar com a mulher que seduziste ou te seduziu? Responde. Devo faz-lo... E queres faz-lo? Certamente. Pois ento eu me responsabilizo pela inteira indiferena do teu pai neste casamento. Casa quando quiseres. Eu mesmo fao saber ao serenssimo D. Gaspar que o teu pai no impede, nem quer saber que impedimentos possam existir. Se vieste ao conseguimento disto, "venceste a demanda. Mas, Sr. D. Teotnio.. balbuciou Gaspar. Que , menino? Eu sou pobre como V. reverendssima sabe... E ento? Esperava que o meu pai se condoesse desta situao, e me desse as migalhas que lhe sobejam. So, por tanto, duas as pretenses com que vieste: licena para casar, e dinheiro para subsistir. isto? Sim, senhor. O segundo requerimento indeferido. O teu pai no te d nada. Positivamente? Positivamente nada. Bem! disse Gaspar erguendo-se de golpe No tenho que fazer aqui. Desejava despedi-me do meu tio, e retirar-me. Senta-te. Gaspar hesitou: o dom abade puxou-o pelo brao, e sentou-o. O teu pai no pode viver muito continuou o prelado Engana-o, que eu absolvo-te, homem. Diz-lhe que esqueceste essa criatura, contemporiza enquanto ele vive; e, falecido o teu pai, casa, porque ters grandes haveres, com que premiar a dedicao e o sacrifcio da senhora. Sacrifcio digo, porque mister que ela, no entanto, esteja recolhida em convento. Se lhe faltam meios, t-los-s abundantes que lhe ds. Entras na administrao dos bens do teu pai; sobejar-te-o recursos com que a tenhas mimosa em convento de primeira ordem. Que me dizes? Mentirei a meu pai respondeu sem espaar meditaes. a mentira louvvel, donde promanam trs boas aes: restauras a tal qual alegria do teu progenitor; sanas a chaga do remorso que te deve lavrar nas entranhas; e, dando desde j posio honesta senhora que amas, asseguras-lhe um porvir honrado, considerado, e abundante dos bens da fortuna. Ests, pois, resolvido? Estou, Sr. D. Teotnio; mas necessito que a vontade da minha pobre amiga se no revolte contra este alvitre. Se se revoltar, no te ama: quer perder-se e perder-te. No assim, perdoe-me reverendssima. assim, perdoe-me a vossa toleima. E, se te quer perder, tem tu dignidade que te salve. Escreve-lhe. Disse-me o teu tio frade Joo que est muito na vossa intimidade um honrado e sisudo fidalgo. D-lhe procurao para que ele corra l com as despesas do raciocnio se for necessrio convence-la em juzo de que o no tem. Respeite o infortnio, senhor! clamou com fidalga altivez o rapaz as suas palavras so facetas de mais quando se trata de uma mulher para cuja morte eu estou conjurando. A isso no respondo redarguiu severamente o dom abade. Mas perdoa. disse brandamente Gaspar. Perdoo. Se eu pudesse rir-me dos infelizes, no saia da minha casa a negociar estas transaes que destoam do meu oficio. O oficio dos virtuosos baixarem a todos os abismos donde saem gemidos disse Gaspar, abraando-o. Amanh espero conseguir que o teu pai te receba. Gaspar, fita-me bem!. Olha que eu vou mentir quele ancio. Faz que Deus me no puna o crime, pondo tu a virtude nos efeitos dele... Vai para a cela de frade Joo. Escreve, Tens o teu quarto na hospedaria. At amanh. Gaspar escreveu at noite alta. CAPTULO XXIV
Na vinda para Portugal, o saudoso viandante escrevera de todas as paragens a Joaquina Eduarda e a Francisco da Cunha. Sem embargo da veemncia amorosa das frases, Joaquina, de cada carta que lia, murmurava sempre: Ele no volta c. O fidalgo beiro argumentava com as rases tiradas do contexto mesmo das cartas. No volta c! recalcitrava a pobrezinha, com os olhos de vidente cravados numa viso hrrida que lhe vazava na alma as fases da desesperana, esta quinta-essncia dos tormentos dos condenados. Raros dias se levantava do leito, onde rodeavam as filhas de Francisco da Cunha. Joaquina, contemplando-as uma vez, disse: Que imensa caridade o poder da religio!. Como estes anjos de pureza se avizinham de mim... da mulher.... E sentiu-se como estrangulada. As meninas Cunhas inclinaram-se-lhe sobre o seio, e enxugaram-lhe as lagrimas. Contava ela os dias em que j podia ter a primeira carta de Braga. Chegaram duas muito volumosas. O prudente fidalgo leu primeiro a sua, e exultou. O plano de Gaspar, ideado pelo dom abade, pareceu-lhe excelente. Era pensamento que ele, pouco mais ou menos, j tinha aventado. Correu alegre a entregar a Joaquina Eduarda, que nesse dia se erguera menos alquebrada, a sua carta. Joaquina leu, e disse: Profetizei No volta c. No me enganei, meu Deus, no me enganei! Esta exclamao, com os braos estendidos ao cu, foi seguida de um sbito acesso de frenesi. E ento bradava: Convento!. convento!, a esmola do convento!. No quero! j disse que no quero!. Atira-se com uma mulher para dentro dumas grades com uma rao de po!. Para que? Para esquece-la!. Infame piedade!. Oh senhora! exclamou o velho, saindo-lhe de frente nas voltas vertiginosas que ela dava Atenda-me, Sra. D. Joaquina!. Eu sabia... sabia isto! prosseguiu ela, como surda e cega s vozes e movimentos do espavorecido fidalgo So os costumes da fidalguia!. Fecham-se na clausura as mulheres que estorvam os planos da riqueza e da representao. Isto atroz!. Mas eu no aceito a morte de agonias mais prolongadas. Morrer um instante. E, morrer sem o ferrete duma vil dependncia, morrer nobremente, morrer como ele, o ingrato, no pode viver!. No lho disse eu, Sr. Francisco da Cunha?, no lho disse eu?. O meu Gaspar no volta c!. E lanou-se ao seio do velho debulhada em lagrimas. Francisco da Cunha expendeu convencido quantas rases favoreciam o projeto de Gaspar. Leu-lhe a sua carta que, mais logica e concludentemente, esclarecia as vantagens de esperarem, pouqussimo tempo, uma felicidade segura. No tocante ao convento, dizia o rapaz que faria muito porque fosse Vairo, onde, todos os dias, se podiam trocar as cartas, e talvez falarem-se. Joaquina Eduarda, ouvidas com aparente serenidade a carta e comentrios do velho, disse com ar de zombaria: - Tudo isso que ai est escrito uma miservel embuada minha crena. Pois eu no dei direitos a ningum de julgar-me assim... Sr. Cunha, Gaspar respirou o ar da antiga liberdade, sentiu estremecer o corao s reminiscncias da sua mocidade... v-me aqui s suas sopas, meu benfeitor, e tem piedade, e talvez sente o desaire de me deixar assim... No auge da sua magnanimidade, d-me um convento, como Pedro de Vasconcelos dera h vinte anos um convento pobre seduzida, me daquele filho. Aqui tem o exemplo da virtude paternal! o que . Mas eu no sou Maria Pereira: sou Joaquina Eduarda, filha de Ferno Cazado Godim! Que delrio, menina! atalhou Frncico da Cunha Eu comeo a duvidar da sua raso! No duvide, por quem ! replicou a desvairada Eu s aceito a piedade dos meus. Vou escrever a meu irmo, minha irm, a meu cunhado e a minha tia. Eles que se combinem todos para me darem uma enxerga e um caldo... Mas no! bradou ela com exaltado exaspero No peo nada a ningum, no quero nada de ningum! Quero morrer, porque a minha vingana morrer!. As filhas e esposa de Francisco da Cunha seguravam-na naqueles mpetos em que os cabelos lhe saiam arrancados entre os dedos. Consideravam-na j atacada de loucura, e ora faziam p atrs de atemorizadas, ora com meiguices de muito amigas e impulsos de compaixo a tomavam nos braos. Ao cabo de infernizado debater- se, Joaquina Eduarda caia desfalecida para o seio delas. Esperavam as intermitncias do sossego para lhe abrirem o entendimento s rases plausveis de Gaspar. Pediam-lhe que animasse o seu extremoso amigo a no desistir do intento. Que no entrasse no convento, e vivesse em companhia delas, at hora em que a Providencia lhe recompensasse as dores da ausncia. Joaquina beijava as faces e mos das condodas senhoras, e murmurava: No me demoro neste mundo. A desgraa no h de gozar-se muito tempo da sua vitima. Resignam-se com o abandono as infelizes que perderam pouco; mas eu perdi o meu irmo... aquele santo!. Que escura vida lhe deixei!. Em que desamparo!. L est amortalhado no convento, donde v as janelas da casa onde nascemos. V a varanda em que o nosso pai se assentava olhando sobre o mar, contando das suas batalhas aos amigos e aos filhos. V de l a gelosia do quarto em que ele expirou. Fui eu que o fechei ali naquele sepulcro ao meu pobre Sebastio... E porque, meu Deus? porque me perdi eu assim!. A pertinaz surdez de Joaquina Eduarda a reflexes e alvios seria motivo de enfado para Francisco da Cunha, se nele o condoimento no excedesse a pauta ordinria da comiserao. CAPTULO XXV
Voltemos ao mosteiro de S. Martinho. Gaspar de Vasconcelos atirara-se vestido sobre o catre ao romper da manh, pontualmente quando os proverbiais sinos de Tibes comeavam a dobrar a finados. Naquela noite passara desta vida um monge. Triste alvorada aquela! O corao em trevas, o espirito quebrado da prostrao corporal, e aquele pungentssimo ulular do bronze, e a toada lgubre dos monges no saimento ao longo dos dormitrios. Gaspar abriu a janela da sua alcova, e sorveu ar com o peito em arquejos, como se o ambiente do quarto lhe empestasse os pulmes. O cu estava nubloso, e o vento sul regelava-lhe as faces, sem lhe refrigerar o ardor da cabea. A hospedaria tinha sada para a cerca, e l pelas clareiras do arvoredo se tinham passado alegres dias da meninice de Gaspar, quando o tio o levara a estudar humanidades naquele colmeal de cincias. O rapaz discorreu por entre as arvores, sem atentar nos lugares conhecidos, ou fugindo-os instintivamente. Figurava-se-lhe desterro, e paradeiro de condenados aquele ermo contemplativo do qual frade Bartolomeu dos Mrtires dizia que ali era o lugar de respirar e beber vida, louvando o criador de tudo. O criador, naquela hora, para Gaspar de Vasconcelos, era um princpio de ironia barbara, um arbitro de caprichosa flagelao. J o frio lhe coava aos ossos. Era de Dezembro a manh, e o vento ramalhava nos esgalhos desfolhados da mata. Fr. Joo entrara de manso casa hospedeira, para no despertar o sobrinho. Como o no visse, mandou-o procurar na cerca. Encontraram-no tiritando e encolhido no oco de uma arvore, onde, vinte anos depois, Francisco Justiniano Saraiva, que o leitor melhor conhece por frade Francisco de S. Luiz, ministro, patriarca, e cardeal, se comprazia de sestear nas tardes de Julho. Emerso do seu torpor, Gaspar foi conduzido cela do tio, que se espantou do rosto macerado do rapaz. Que olhar esse, Gaspar?! No dormiste? perguntou o frade. No dormi... Quem adormeceu docemente foi o frade que est sobre terra... Tomara eu tambm cair naquele sono... Pois eu no, rapaz disse frade Joo apesar da monotonia da minha j muito comprida viglia em redor das Lages da claustra... J fui saber do teu pai: encontrei l o dom abade; deixei-os ficar. O rostodo teu juiz pareceu-me de bom agouro. A nossa batalha apagar o feixe de raios que tu acendeste com aquela maldita carta!. Que demnio te inspirou aquilo?. Abriste a ferro o corao do velho, e verteste-lhe a peonha do remorso na chaga! Para que lhe falaste da tua me, cuja morte ele tanto chorou, e por tanto chorar te amava a ti como doudo!? Valha-te Deus!. Aquilo no se escrevia para um ancio de setenta anos, que muitas vezes acordava lavado em lagrimas, de sonhar com a tua me, o seu alecto nico neste mundo!. E, ainda assim, no me perfilhou! interrompeu Gaspar. E no sabes porque, homem? Eu lo digo: no foi a filucia do nacimento nem a transmisso dos vnculos que motivou essa aparente desconsiderao para contigo. Foi persuadir-se o teu pai que, no te legitimando, te dominava mais e tinha debaixo da mo, e assim evitava que a tua mocidade se desbaratasse em paixes ruinosas da alma e remordentes da conscincia na velhice. Esta foi a mal pensada precauo do teu pai. Oh! tu no sabes como ele te quis e quer! Poupa este resto de vida ao lastimvel velho. No sacrifiques tudo mulher, que amas; d ao teu pai um pouquinho do teu corao. Ela nova, e ele est beira da sepultura. Essa senhora que espere, enquanto o ancio se encosta ao teu seio filial! Os olhos de frade Joo reviam lagrimas. Gaspar no chorava; mas o abalo interno impelia-o a ajoelhar com sincera dor diante do pai. Joaquina Eduarda figurava-se- lhe vitima muitssimo menos credora de lastima, defrontada com o velho, em fins de vida, sem hora de contentamento, esperando a morte debaixo daquelas abobadas, cercado de homens j amortalhados. Nestas preocupaes, afervoradas pelo dizer pungente de frade Joo, o encontrou o recado do dom abade que o chamava ao quarto do Sr. Pedro de Vasconcelos. timo! exclamou o frade contentssimo timo! Viva a natureza e o dom abade que fizeram o milagre! Vamos, Gaspar. Abeirou-se o rapaz do leito do pai, que o fitava serenamente. Ajoelhou, beijou-lhe a mo, e balbuciou muito comovido: Meu pai, se pode perdoar-me.... Posso disse o velho O que eu no posso padecer por mais tempo. Se vens assistir ao meu trespasse com pena deste cadver que ests vendo, o Senhor te abenoe; se me reservas mais outro golpe. Deus te leve para longe da minha agonia. Juro-lhe, meu querido pai, que serei digno do seu perdo! exclamou sentida e conscienciosamente Gaspar. Sobre este Cristo! disse solenemente frade Joo tomando o crucifixo do oratrio. Juro! proferiu Gaspar, pondo a mo sobre a imagem. E, neste lance, a imagem de Joaquina Eduarda figurou-se-lhe ao lado da imagem do Salvador. Foi viso que lhe traspassou o seio, e nublou de negro a vista. Ajudai-me a vestir disse Pedro de Vasconcelos. Saiu do leito, sentou-se ansiado, e chamou para junto dele o filho, que o abraou pela cintura, ajoelhando-se. O velho inclinou o rosto fronte do filho, e chorou. Aproximou-se o dom abade com um solene passo, e disse: Ireis hoje para a vossa casa, os meus amigos. J mandei aparelhar a minha carruagem. No vos quero hoje aqui, porque dia triste; os responsrios e os sinos coisa importuna em Tibes. L para a primavera vinde aqui passar uma temporada, se quiserdes, com o vosso irmo e tio, e com toda esta fradaria que vos presa. Toca a vestir, Sr. Pedro de Vasconcelos, que vai o almoo para a mesa. CAPTULO XXVI
Recolhidos casa de Braga, ao segundo dia da festejada reconciliao, Pedro de Vasconcelos, falou ao filho desta forma: Gaspar, eu sei que a irm de Sebastio Godim est em Sevilha, favorecida pelo expatriado Francisco da Cunha, cujas virtudes admiro. No aprovo que essa senhora continue a viver na dependncia de um estranho. O dom abade disse-me que ela, aconselhada por ti, se recolheria num convento de Espanha ou de Portugal. Deixo tua escolha o convento, com tanto que no seja em Braga. Dirs o dinheiro que queres remeter a Francisco da Cunha para assegurar boa casa e tena abundante a essa senhora. No tenho a certeza, meu pai, de que ela aceite a proposta do convento disse Gaspar. Mal faz, se a rejeita volveu o velhoE, rejeitando-a, que fars tu? No posso responder-lhe, meu pai... Farei o que a sua boa alma me disser que faa. Esperemos a resposta. A resposta de Joaquina Eduarda eram quatro linhas includas na longa carta do fidalgo beiro. Diziam: Agradeo a piedade dos teus. No entro na clausura. No tenho corao que dar a Deus. Como no sou estorvo felicidade de ningum, deixem-me chorar livremente fora de ferros, e esqueam- me. A mim, para te esquecer, basta-me a separao duma pedra, que a porta da eternidade. Adeus, Gaspar. Alguns perodos da carta de Francisco da Cunha explicavam o laconismo acre de Joaquina. Rezavam assim: .... A primeira impresso da sua judiciosa proposta foi irritante; nem podia ser outra. O tempo e a reflexo espero eu que suavizem o espirito da Sra. D. Joaquina Eduarda. No cesso de aproveitar a oportunidade de advogar a causa de ambos. No prximo correio pode ser que eu lhe d melhores notcias. No desanime Vossa Senhoria no seu salutar projeto. Eu no vejo caminho mais desabafado por onde fujam desta angustiada situao. A Sra. D. Joaquina, a meu ver, escreve-lhe palavras aflitivas. Tenha pacincia: desconte-as na veemncia da paixo, e espere que os ventos caiam, e o corao acalme. Faz-me grande d v-la to quebrada de cores, e recolhida num cismar que dantes lhe no via; isto, porm, dor passageira. as minhas filhas prometem arranca-la da tristeza. Hoje tive animadoras noticias de Lisboa. O marques de Pombal mostra-se inclinado a ouvir os defensores da minha inocncia. Se os acreditar, mandar levantar o sequestro dos meus bens. Acontecendo isto, pedir-lhe-liei ao meu amigo que escolha o convento em Viseu, porque a Sra. D. Joaquina ser ali frequentemente visitada por a minha famlia. Se assim tivesse acontecido, Vossa Senhoria e ela teriam na minha casa, depois de legitimarem a sua unio, lugar de filhos. Gaspar mostrou lealmente as duas cartas ao pai. Leu Pedro de Vasconcelos as linhas de D. Joaquina Eduarda, e disse: caprichosa esta menina!. As mulheres que deveras amam costumam sacrificar-se mais. Pouco ou nada se lhe dava a ela que a pobreza e a ignominia te despenhassem! Gaspar no proferiu um monosslabo. Dai a pouco, o velho, que estivera lendo refletidamente a carta, continuou: Eram muito mais sinceras as minhas lagrimas e saudades, filho!. Que tom de orgulho!. Como no sou estorvo felicidade de ningum, deixem-me chorar livremente fora de ferros, e esqueam-me. Digna de ser esquecida a mulher que prefere chorar onde a vejam... fora de ferros. Que amor to avaro da paz, da honra, da felicidade do homem amado.. E o rapaz no contradizia nem com o gesto s reflexes algum tanto injustas do pai. Leu Vasconcelos a carta do expatriado, e confirmou o bom conceito que o fidalgo lhe merecia, lastimando no obstante que um pai de famlia, protegendo to afetuosamente uma menina fugitiva com um filho desobediente, estivesse dando um ruim exemplo de tolerncia a suas filhas. J Gaspar ouvia desagradavelmente as consideraes do velho, bem que proferidas com brandura e delicadeza, como se desconfiasse da cura radical do filho. Passaram alguns dias sem notvel sucesso. Veio nova carta de Sevilha, volvida uma semana. Francisco da Cunha lastimava-se de no poder arrancar Joaquina da solido do seu quarto, e receava desmancho no juzo da pobre senhora. Referia alguns dizeres disparatados dela, e acessos de raiva contra as prprias meninas que a rodeavam de caricias e desvelos, decaindo depois da exaltao, em ternuras e choro, pedindo de mos postas que lhe perdoassem. Gaspar no mostrou esta carta ao pai. Assaltaram-no ancis de fugir para Sevilha. Chegou a meditar no furto de poro grande de dobres, que deviam existir nos contadores do velho. Subjugou-lhe a reflexo os mpetos, a reflexo que j pode subjugar coraes aps dois anos de amor e de infortnio. Cogitou em lanar-se aos ps do pai, suplicando-lhe licena para casar com Joaquina Eduarda. Foi a Tibes, e confessou ao tio o seu intento. Fr. Joo levou-o ao quarto onde estivera o pai, tirou o crucifixo do santurio, e disse-lhe: Juraste sobre este Cristo! Qual Cristo?bradou blasfemando, Gaspar No h Deus! Este horror da minha vida a negao da Providencial.. Fr. Joo ps-lhe a mo na boca, e disse com solenidade majestosa, realada pelo habito: Essas impiedades nunca saram de boca de homem debaixo destas abobadas! Cala, cala, miservel, que s o mais eloquente testemunho de que h Deus! Cuspiste na cara do teu pai, perdeste uma mulher, envenenaste a vida inteira do irmo dessa mulher... e querias ser feliz? H Deus, h Deus, blasfemo! verme insultador! tomo de lama que ousas chegar face do Altssimo! Ajoelha, covarde nos infortnios que voltaste contra ti, ajoelha, e emudece a lngua impia! Resistes? no te prostras, alma embrutecida por paixes baixas? Eu peo a Deus que se digne perdoar-te! E ajoelhou frade Joo com o Cristo nas mos, e os lbios inclinados sobre a face ensanguentada da divina imagem. Bagas de suor frio ressumbravam do rosto de Gaspar. Foram cinco pavorosos minutos da sua vida aqueles! O rapaz achegou-se do tio, e quis levanta-lo nos braos. Parecia xtase o olhar contemplativo do monge no rosto de Jesus. No cedeu ao impulso, nem aos rogos. Gaspar retraiu-se um pouco transido de religioso terror. Passados minutos, ergueu- se o frade, e disse: Eu pedi a Jesus para que te resgatasse desse cativeiro da alma, ou ta separasse do corpo que ta quer perder. No, meu tio! exclamou Gaspar Eu quero salva-la! quero honrar a mulher que perdi... Mas matas o teu pai... responsabilidade desse delito involuntrio no me faria ru perante o tribunal divino. Ento os parricidas so laureados no reino da gloria? E os transgressores dos juramentos podem jamais nobilitar-se neste mundo? A argumentao do monge claudicava nestas duas interrogaes enfticas. Fr. Joo era mais sublime na orao que admirvel na dialtica. CAPTULO XXVII
O dom abade, ouvindo ler as cartas vindas de Sevilha, aconselhou friamente, obrigando o rapaz ao cumprimento da sua palavra. Prezava-se ele de conhecer bastante o corao dos homens, e alguma coisa o corao das mulheres; raso de ter entrado no mosteiro aos trinta anos, para no ver mais no mundo uma prfida alma que vestia peregrinas formas, e fizera barato delas s sedues doutro homem. Claro que o sexo das delicias e das perfdias no podia contar com um estrnuo defensor na pessoa monstica e avelhentada de D. Teotnio Moniz Barreto. Mulheres mortas de paixo, dizia ele que no conhecia nenhuma, tendo vivido dez anos na corte e na roda mais suscetvel de morrer de amores por iro ter objeto serio para distrao. Que esta doudice dos amores dizia ele, citando S de Miranda nasce da ociosidade e nela se mantm. Olha, Gaspar amigo continuava o dom abade, sacudindo a piparotes o tabaco da manga Eu entrei aqui neste mosteiro com uma cara de enforcado ao sair do oratrio. Pensei e todos pensaram que vinha largar quatro ossos que trazia a carregarem-me sobre a alma. Os primeiros quinze dias passei-os a caldos temperados com lagrimas. Ao cabo do primeiro ms, em vez das lagrimas, tomava a galinha com o caldo. No fim de trs meses fez-se-me uma pele nova e elstica, ao ponto de se me avolumar esta barriga, que vs, no fim do noviciado. Quando professei, rapaz, vivia to alegre que a minha vontade era subir ao minarete da torre, e gritar de l urbi et urbi que se fizesse toda a gente frade bento se queria ser fez. Dir-te-ei mais que eu era literalmente um asno. Fazia versos imitao dos do padre Chagas de infausta memria como poeta, e de eterna venerao como santo. Deliciava-me do ouvir encarecer o p duma mulher com aqueles versinhos, que eu achava invejveis e bastantes a criar a reputao de um Cames pico de ps pequenos. Olha que ainda me recordo!. Por mais que tenhas dito de um pequenino p, hs de ficar envergonhado disto: Instante de jasmim, conceito breve, tomo de aucena presumido, .. Suspeita de cristal, susto de neve. J chamaste para um p suspeita de cristal? e susto de neve? e instante de jasmim? Pois eu, meu homem, sou do tempo em que se amavam mulheres que tinham assim os ps, e pude esquece-las todas, e correr-me de pejo das parvoiadas que escrevi talhadas por estes moldes da Fnix renascida. Cheguei aqui abarrotado de estupidez, e encontrei grandes letrados, sbios herdeiros dos tesouros do grande seculo de D. Manoel e Joo 3. Comecei, a estudar as cincias desde o alfabeto; e, se no vinguei dar pela barba aos mestres, consegui renovar o corao em amor sabedoria, e olhar do outeirinho onde se alteou a minha alma instruda para as mesquinharias que deixei l em baixo na lama dos caminhos trilhados pelo comum dos homens. No vs tu pensar, rapaz, que eu te estou convidando a ser frade. Em tempo aconselhei o teu pai a que te deixasse criar e crescer muito entre ns, a ver se te afeioavas a estes costumes; porm, assim que te demos pronto de humanidades, parecias melro de bico amarelo que pilhou a porta da gaiola aberta. Bom foi que te revelasses a tempo, e mau foi que o tributo ao mundo to cedo e usurariamente o recebesse o desengano!. Ora pois, meu Gaspar, isto redunda em dizer que a Sra. D. Joaquina no morre de saudade. a minha opinio. Se to cedo recomeas a mortificar o teu pai com lastimas, eu no te quero ver mais, porque s mau homem, e mentiste-me. No sei que mais te diga, a no ser que esperes, e trates de procurar alguma diverso. Tens tu livros? Vai biblioteca, e escolhe por l. Sobre receitas para curar o amor rel o Ovdio, que catedrtico na matria, e o bispo Guevara que cita em abono das suas timas doutrinas Samocracio e Nigidio, que no escreveram nada, que se conhea. Se queres consultar os casos funestos do amor, estuda Hercules e Mitrida, Menelo e Dorta, Pirro e Helena, Alcibiades e Dorbeta, Demofonte e Filis, Anibal e Sabina, Roderico e Florinda, Antnio e Clepatra, Gaspar de Vasconcelos e Joaquina Eduarda. Enfim, menino, dice puer. Estuda nos livros, e em ti. E, se ainda te lembra o teu Virglio, aplica s mulheres o que o mantuano diz dos ramos da arvore consagrada Juno infernal: Primo avulso non dficit alter. Gaspar sorriu-se, e disse: Obrigado reverendssima, Sr. D. Teolonio. Se no vou feliz da presena de V. reverendssima, vou instrudo! Ento joga-me ironias, seu ingrato! acudiu de boa sombra o prelado. Ora venha merendar comigo e com o seu tio frade Joo na minha cela. Graas, Sr. dom abade. O meu pai espera-me com o jantar. Eu perdi o habito de merendar em Janeiro. Isso e epigrama ao estomago dos frades? disse o jovial D. Teotnio Pois vai com Deus, e volta com santa Maria, quando quiseres... Agora muito serio: juzo!. Seguiram-se-lhe ao desamparado rapaz dias de abafadora tristeza, e noites de cruelssima insnia. Difcil lhe era j trasladar ao papel as negruras da alma. Era um atormentar-se que lhe infernava todas as horas, e nem sequer lhe deixava uma com o preciso sossego para escrever. As noites, sobretudo, eram-lhe incomportveis, as noites infinitas, no seu quarto, sem voz humana que piedosamente lhe abrisse dalma torrentes de lagrimas, o sangue dela! Ouvia, apenas, no quarto prximo, o suspirar e gemer do pai, que tambm velava as noites, como todos os velhos, e mormente os tristes, que parecem estar esperando alvoroados o arraiar do dia eterno. Nas viglias de Pedro de Vasconcelos era grande parte o ver ele aumentar- se a tristeza do filho, o refugiar-se nas solides da casa, e o desmedrar cada dia a olhos vistos, passando alguns em que nem de leve provava alimentos. E compadecia-se. Mas no tinha o cu um anjo que baixasse ao corao daquele homem? No seria to de Deus o toque, a inspirao que o levasse a dizer ao filho: d-me essa pobre menina como filha! Vai traze-la, como sol da tua alma, s trevas desta casa e deste viver! Que eu no morra, sem que vos veja a estudar no meu rosto a alegria refletida da vossa, a conscincia radiosa da felicidade que vos dei! No: o anjo no desceu. Aquele homem devia contas a Deus, e precisava do suplicio de duas criaturas para salda-las. A expiao d um que delinquiu arrasta vitimas, que o exemplo despenhou. Altos segredos! CAPTULO XXVIII
Joaquina Eduarda recebia cartas breves, mas sucessivas. Transluzia nelas froixa luz de esperana, porque, em verdade, no sentimento de Gaspar pouquinha luz vasquejava. A morte do pai era um lampejo que, a intercadncias, lhe iluminava futuros. Mas moderadamente exultava o rapaz ao v-los a to incerto e rpido claro. J se lhe tinham esfriado na alma os entusiasmos. Quebrara-o a desgraa, e pode ser que tambm a insofrida, nica, e injusta carta de Joaquina. O infortnio no vingara totalmente acalcanhar-lhe o orgulho, que a desconsiderao da infeliz lhe ferira. No obstante, escrevia-lhe com a verdade e angstia da saudade e do remorso. As suspeitas de Francisco da Cunha eram acertadas. Joaquina desvairava por visualidades e delrios de conversaes com as filhas. Algumas vezes desatava em risadas convulsas, referindo casos jocosos do convento de Santa Clara, principalmente o da sova que levaram os frades no rio Douro, e outros episdios irrisrios dos amores das freiras. De sbito, passava descrio da sua fuga, e aos sustos da jornada por atalhos. Depois, pedia imagem do irmo que a no perseguisse, e a deixasse morrer encostada ao seio dele. Ria-se-lhe em seguida o semblante, e cantava as seguidilhas da Gitana do Cervantes. Por ltimo, caia em sncope, e adormecia ansiada. Ao despertar, tinha recobrado o juzo, e conversava com serenidade no menos temerosa que a excitao da loucura. A medicina contemplava o espetculo miserando, e dava aos ombros confessando- se ineficaz. S pode restaura-la a presena do homem que a reduziu a isto diziam os mdicos. As notcias so excelentes, Sra. D. Joaquina disse-lhe o fidalgo o seu futuro sogro est doem-te, e de presumir que no dure muito. Brevemente aqui nos aparece Gaspar. No volta aqui! disse ela Porque no vem ele? Se viesse j, ficavam sem recompensa os sacrifcios que ambos tm feito! Que uma demora de dois ou trs meses? Eu no julgo necessrio que a menina entre em convento. O melhor esperar na nossa companhia que ele venha. Provavelmente estaremos em Viseu, quando os estorvos desaparecerem. Robustea-se para irmos embora. Os meus negcios em Lisboa vo decidir-se favoravelmente. Deus permita! acudiu Joaquina Eu queria deixa-los muito felizes, quando morresse. So to dignos do serem! E s-lo-emos todos. Gaspar h de mudar a sua residncia para Viseu. Conviveremos l como convivemos aqui. E eu hei de cantar muito interrompeu ela, tirando alegres notas da voz sempre clara e forte, como no vigor da sade. Eram as trevas da demncia que lhe caiam na alma. E ento choravam as senhoras, e o velho fugia com o corao lanhado, j resolvido a pedir a Gaspar que, a todo o custo, viesse salva-la. Num destes trances, bateu porta de Francisco da Cunha um frade dominicano. Conduzido sala, disse: em casa de Vossa Senhoria que est uma senhora portuguesa chamada Joaquina Eduarda Cazado Godim? aqui onde est essa senhora. Vejo que a vossa reverncia portugus. Sou portugus, senhor. Ser-me- permitido ver Joaquina Eduarda, minha irm? A sua irm! exclamou Francisco da Cunha o irmo dela! O chorado daquela aflita alma!. Pois ela sabe que eu vivo?. No me ler ela j ouvido para me correr aos braos? A esta pergunta respondeu o cntico das seguidilhas. E frade Sebastio, com assombro, disse: Muito feliz ela que pode cantar!. Pensei que a viria encontrar muito quebrada pela desdita!. A sua irm tem intervalos de demncia, senhor; agora est numa dessas horas negras. Demncia! clamou o frade, com as mos postas Posso v-la, Sr. Cunha? Sim, senhor. Vamos. Avizinhou-se da alcova frade Sebastio. A douda encarou nele com os olhos cravados, e um jeito de afastar a cabea. Aproximou-se mais o irmo, e ela fugia- lhe ate encostar-se parede. Sebastio apenas disse: A minha irm! e caiu sobre uma cadeira, murmurando muito baixinho: Mataram-ma, est morta... j no ela! A minha irm! repetiu Joaquina Que voz!. que som de voz!.. Levantou-se o frade, tomou-lhe as mos ambas, e, por entre soluos, balbuciou: a voz do teu Sebastio! Joaquina, olha bem para mim... Eu sou o teu irmo, o teu querido amigo, o teu eterno amigo, o teu segundo pai, a voz misericordiosa do Senhor que te falia pela minha boca! Joaquina!. E ela, expedindo um grito estridente, atirou-se ao seio do irmo, arrancando vozes inarticuladas. Seguiu-se o habitual desfalecimento. Sebastio transportou-a ao leito, e sentou-se beira do travesseiro, com a barba ajustada ao peito, e as mos nas fontes. As senhoras olhavam-no com religioso respeito. Francisco da Cunha hesitava de esperta-lo daquela letargia. Volvida a si, Joaquina encontrou os olhos do irmo. Saltou do leito, e ajoelhou-se- lhe aos ps inclinando a face ao pavimento. Sebastio levantou-a, saiu com ela do quarto, sorriu com muitssima brandura, e disse-lhe: Aqui me tens, minha pobre menina. Queres voltar s nossas arvores do Minho? Vamos. Vem recomear a vida no teu paraso, que eu despirei este habito para tornar contigo s solides onde fomos felizes. Pois, sim: vamos.. murmurou ela com olhar espasmdico, e um sorriso pouco menos de idiota. Sebastio olhava fitamente nela com indizvel assombro. Aqueles gestos e ar da sua irm no tinham que ver com os espritos, vida e graas doutro tempo. Poucas mais palavras se trocaram os dois desaventurados. Fr. Sebastio saiu a hospedar-se no convento dos dominicanos, prometendo voltar no dia seguinte para combinarem o dia da partida. Joaquina ouviu isto insensivelmente, e j quando o irmo descia as escadas, dirigiu-se a ele para lhe beijar sofregamente as mos. tarde, Francisco da Cunha procurou o frade no convento, e disse-lhe: Venho visita-lo; mas um objeto mais importante que a cerimoniosa urbanidade me traz aqui. Peo licena para intervir nas suas deliberaes, respeito a levar para Portugal a sua irm. No pense V. reverencia que a Sra. D. Joaquina Eduarda esqueceu Gaspar de Vasconcelos... No?! interrompeu o frade Fui enganado ento... E eu refiro a Vossa Senhoria O que h passado. O prior do meu convento de Viana recebeu recado do dom abade de Tibes, para que eu lhe falasse num determinado dia. Muito longe de conjeturar esta chamada extraordinria, fui a Tibes, e ai soube da exposio do prelado que a minha irm estava em Sevilha e Gaspar em Braga; que a fome os tinha separado, e to somente uma maior desgraa os reuniria; e acrescentou que eu cristmente devia estender mo piedosa a minha irm conselho que eu dispensava. Ouvido isto, voltei a Viana a pedir licena ao meu prior para esta jornada, e aqui estou. O dom abade disse Cunha no mentiu, a meu ver. Foi omisso em explicaes, e V. reverencia pronto em interpretar o mais natural, quando estes desenlaces se fazem. A sua irm est, segundo o juzo dos mdicos, a decair em completa loucura; todavia, se Gaspar de Vasconcelos aqui viesse, a infeliz restaurava-se. Supondo que V. reverencia a conduz para o Minho, h grande perigo na reincidncia dos passados desatinos, porque, repito, no se separaram inimigos: houve uma conveno a que no faltou Gaspar; e da parte da sua irm uma suspeita que a reduziu lastima em que a v. Claro , penso eu, que ela ainda o ama muitssimo, e que o avizinharem-se um do outro nesta ocasio avizinha-los ambos de mais fundo abismo. Alm de que, a sua mana est em muito melindroso estado de sade; no a considero capaz de jornadear, nem V. reverencia est, julgo eu, nas especiais circunstancias de velar a convalescena duma louca, no falando no deperecimento das foras, e grave achaque de peito que vai declarando. Venho, pois, instar com o Sr. frade Sebastio a fim de que permita o demorar-se mais algum tempo a sua mana em companhia da minha mulher e filhas. Brevemente vamos todos para a minha casa de Viseu, porque muito prximo espero sentena que me restitui a ptria e bens. Logo que a Sra. D. Joaquina Eduarda se recupere, eu e alguma das minhas filhas vamos acompanha-la onde V. reverencia ordenar. Isto lhe peo em nome da raso e do melindre que requer o curativo desta senhora. Condescendo muito agradecido sublime caridade de Vossa Senhoria disse o frade No h duvidar: aproxima-los grave erro; a minha irm ficaria a trs pequenas lguas distante de Braga. Forra-me Vossa Senhoria mortificaes maiores, e pobrezinha d-lhe uma famlia que a defende nos seus caridosos braos. Em virtude disto, Sr. Cunha, irei amanh receber as ordens de Vossa Senhoria e despedir-me da minha irm. E no dispensaria V. reverencia despedir-se?. perguntou o fidalgo So aflies inteis. Eu lhe direi a ela que o seu irmo voltou a Portugal a preparar-lhe acomodaes, visto que as antigas j no existem. Esta esperana pode converter- se-lhe em pensamento fixo, e, como tal, divertir-lhe o animo da lembrana de Gaspar. Quem sabe se o melhor comeo de cura este? Experimentemos, Sr. frade Sebastio. Pois sim, meu respeitvel senhor; obtemperou o frade eu no irei despedir-me dela; mas Vossa Senhoria ter a bondade de lhe entregar este pouquinho dinheiro, que me desnecessrio na jornada e no convento E, dizendo, oferecia-lhe um embrulho de moedas douro. De que lhe serve o dinheiro a ela? atalhou o fidalgo, recusando aceita-lo Talvez dissessem a V. reverencia que eu vivia pobremente?.. certo: apenas livrei do sequestro uns bens insignificantes que a minha mulher herdara em S. Tiago, e deles temos vivido com severssima economia, e relativa misria. Sem embargo, os amigos de Lisboa, ao verem aproximar-se a restaurao dos meus haveres, ofereceram-me dinheiro, e eu j fiz os saques, por maneira que ouso pedir a reverencia que me no prive da satisfao de ter a sua irm por hospeda. Sebastio Godim inclinou a cabea, e apertou ao seio o magnnimo beiro, o tipo que ainda se no perdeu dos lusitanssimos fidalgos daquelas montanhas, gente de um corao to flor dos lbios e to lavada alma, que no os vedes sem estranheza, nem os deixais sem saudade. CAPTULO XXIX
Gaspar de Vasconcelos recebia esta carta dias depois: Meu amigo. Aqui veio frade Sebastio Godim, no propsito de levar a sua irm. Anunciaram- lhe o desamparo em que ela estava, e desligao de Vossa Senhoria Consegui que o excelente homem deixasse ficar a sua irm na nossa companhia at convalescer da enfermidade dalma e corpo. Obtive o consentimento, e frade Sebastio voltou ao seu mosteiro de Viana. Agora, Sr. Gaspar, corre-me obrigao rigorosa de lhe dizer que, enquanto o futuro no se prosperar, da honra de Vossa Senhoria no perturbar o sossego que por ventura os meus cuidados possam restituir aos atribulados espritos desta infeliz. Qualquer passo que Vossa Senhoria d, que no seja legitimado pelo casamento, inconvenientssimo, e despropositado. Causar o meu amigo a morte do seu pai, sem com isso ganhar o melhoramento da sua fortuna e da Sra. D. Joaquina, ser uma crueldade das que se no podem desculpar com a palavra amor. Pouco sei do corao dos homens; todavia, oferece-se-me tratar que Vossa Senhoria j no est cego desta paixo, porque a desgraa lhe iluminou os olhos. E, por tanto, conforme-se, e triunfe, como homem, dos seus instintos de piedade, que, no caso sujeito, so nocivos. No roube terceira vez a esta senhora o mais sagrado esteio, nico e s que ela tem o esteio fraternal. Breve iremos para Viana. as suas cartas em toda a parte as prezarei deveras, e mais gratas ho de ser-me quando Vossa Senhoria me disser que feliz, sem causar dissabores a ningum. Que a felicidade, custa de lagrimas alheias, uma traio aos nossos gozos: um licor saboroso em taa de prata, com as passas no fundo, passas que a final somos obrigados a tragar. Deus o guarde por muitos anos, meu estimado amigo, e sou, etc. Foi numa daquelas horas de torvo desesperar, que esta carta passou fechada das mos de Pedro de Vasconcelos s do filho. Leu-a o rapaz, e empederniu-se, cravando os olhos cegos de lagrimas no papel que no podia reler. O velho observava-o andado. Que ? perguntou o pai Que , filho? Deus no se compadecer de ti? Compadeceu!disse Gasparacabou tudo! Aqui tem... E, dando-lhe a carta, passou a fechar-se no seu quarto. Ai se deteve alguns minutos, e saiu de mpeto, com o rosto abraseado, em demanda do pai. Encontrou-o relendo a carta digamo-lo tristementecom intimo contentamento. Ps-se-lhe em joelhos o filho, e exclamou: Ainda tempo, meu pai! ainda tempo!.. Deixe-me casar com essa desgraadssima senhora. Pedro de Vasconcelos encarou-o sem vislumbre de piedade, solevou-se da cadeira em tremuras, e bradou com voz desencavernada: Casa! Casa na capela deste edifcio porque est o meu jazigo. Quero que se abra a minha sepultura ao mesmo tempo! Oh! que entranhas!..clamou Gaspar, e fugiu da presena do pai, bradando no interior do palacete: Que entranhas!. que corao de ferro!. Por noite alta, Gaspar de Vasconcelos ainda no tinha recolhido ao seu quarto, e o ancio passeava na vasta sala dos retratos, monologando frases incongruentes, e olhando como apavorado, para a sua sombra. A luz froixa de um castial verberava lampejos trmulos no retrato de Simo de Vasconcelos, pai dele. Acaso, circunvagando a vista, Pedro encontrou os olhos coruscantes daquele retrato, os quais o seguiam sinistramente de angulo para angulo do salo. Parou, contrrito e transido, o velho, preso daquela fascinao dos olhos penetrantes do seu pai. Ento lhe entraram como frecha na memria da alma os padecimentos daquele velho, nos seus ltimos anos, infligidos pela vida libertina do filho, pela desonra a que ele vitimara uma famlia honesta, roubando-lhe a filha nica, a me do filho que lhe era agora amor e flagelo. Fugiu dali, como a esconder-se no seu quarto, e na passagem, chamou para a sua beira o capelo, que pela primeira vez da sua vida fora interrompido no sono das duas horas da manh. O padre estremunhado ouviu-o trs quartos de hora em silencio. Que diz a isto, padre Joaquim? perguntou o velho: Arregalou o padre os olhos picos, e respondeu: Fidalgo, o melhor deixa-los casar. o que eu fazia no caso de Vossa Senhoria. V-se deitar! replicou o colrico Vasconcelos O capelo levantou-se, fez uma cortesia, e foi-se deitar, murmurando: Tanto se me d que casem como que os leve a breca! J se no pode dormir nesta casa! CAPTULO XXX
Ao romper da manh, Gaspar de Vasconcelos entrava na quinta de S. Joo de Rei, e escrevia ao pai estas linhas: Se o meu pai consente que eu me recolha para um quarto desta casa, aqui esperarei a morte. A rainha presena -lhe odiosa, porque eu no pude ainda reduzir a cinzas o corao. Eu de mim Iam bem me convenci de que o meu pai cruel, e no posso ama-lo. Reduza-me fome, se quer. Da misria me no temo eu j, porque sou sozinho a sofr-la. A desgraada achou um irmo, eu no achei ningum. Dizem-me que a minha me tinha um irmo, que fabricava chapus; se me faltar valor para sofrer a fome, irei pedir po ao irmo da minha me. Beijo-lhe as piedosas mos, senhor, como filho e escravo, Gaspar. Lida a carta, partiu, como era de esperar, um lacaio com a liteira para Tibes. Fr. Joo era o sempre invocado nas tragdias da famlia. De Braga, seguiu a liteira para S. Joo de Rei. Gaspar tinha ido para a serra, e recolheu por noite. Encontrou o tio a cear a mais gorda galinha da capoeira, e a laca de presunto menos entreveado. Sentou-se a n canto da casa, e assistia silencioso silenciosa deglutio do monge. Acabado o repasto homrico, e entoada a ao de graas, o frade disse ao sobrinho: Vamos l, se ests para conversar. Fecharam-se na sala. Fr. Joo disse, espevitando os dentes com um palito de marfim: Vi o teu pai na cama, vi a carta do Cunha, e vi a tua carta. O teu pai est ali, est na sepultura. D. Joaquina, mais dia menos dia, est com o irmo. Saibamos agora o que vai ser de ti. Aminha pacincia est quase esgotada. Tu s o homem mais trabalhoso que veio a este globo!. Que queres fazer? Quase nada: morrer. No se morre assim. Em Roma e Grcia antigas, morria-se por menos. Eu li Cato e Sneca. Cala-te, pago! tu devias ler o Evangelho. Tambm li essa historia: acho-a menos verosmil que Sneca e Cato. s um burro! Quem te deu as Cartas filosficas e as Cartas inglesas de Voltaire, que esto no teu quarto? Provavelmente comprei-as. Fizeste bem... Mata a f, e veremos o que te fica, desgraado! Fica-me a certeza. De que? Do nada. Isso muito saudvel... Vamos, porm, questo principal. Ficas aqui? Se o meu pai me no manda expulsar... No manda; pede-te, e no ordena, que vs para Braga. Se no ordena, fico aqui. E, se eu te peo que vs, Gaspar? Que vou eu fazer em Braga, meu tio? A vida l -me insuportvel. Aqui estou s, fatigo-me, despedao-me de rochedo em rochedo, atiro-me aos fraguedos dessas serras, e consigo adormecer de prostrado. Nem este desafogo me querem deixar? Fica, pobre rapaz! s digno de muitssima piedade!. Fica: eu de madrugada irei com essa m nova ao teu pai. E decorreram seis meses sem que Pedro de Vasconcelos avistasse o filho, com quanto lhe enviasse criados, cavalos, armas, e dinheiro superabundante. Gaspar via com indiferena estes preciosos enfeites das vidas felizes. Ao abrir da manh, com um pouco de po e queijo na bolsa de caa, galgava aos visos, dos montes, e por l se ficava at noite. De volta, ceava outro pedao de po e queijo; recolhia-se ao seu gabinete, e dormia escassamente. H muito tempo que no chorava. Um dia, porm, como encontrasse na serra o mendigo, que trs anos antes lhe trazia as cartas de Joaquina Eduarda, abraou-se nele em choro desfeito. Perguntou o pobre se a senhora tinha morrido. Morreu! disse Gaspar e apertou o passo para embrenhar-se num matagal. Neste tempo, Francisco da Cunha estava j redintegrado nos seus abastados haveres. O marques-rei mandara-o recolher e cobrar do errio o rendimento dos bens sequestrados em 1758. Ainda assim, o contentamento daquela famlia era agorentado pelo espetculo de um senhora douda, sem remdio, sem esperanas ao parecer dos mdicos. demncia de Joaquina Eduarda subiu de ponto, desde que o irmo, visto numa hora lucida, desapareceu, e os dias, e meses voltaram sem ele. Fez-lhe medo a minha desgraa! exclamava ela. A demasiada e indiscreta comiserao do fidalgo foi muito neste desastre. Se a deixasse ir com o irmo, se a deixasse chorar e recordar-se nas margens do Cavado, por "Ventura aquela alma voltaria luz; aqueles cruelssimos espinhos da sua vida reviariam ainda alguma flor das que se criam e medram ao orvalho de Deus. Inexorvel desgraa a daquela mulher, que at nas boas almas se insinuava, sob capa de caridade, para atira-la extrema baliza do seu imprio! Singularidade que enchia de dor quem ouvia cantar divinalmente a pobre louca! Dor e espanto daquela formosura de cadver, entoando, ora triste ora alegre, os cantares monsticos da semana da paixo, ou as seguidilhas voluptuosas de Espanha. As senhoras Cunhas entrajavam-na primorosamente; e ela deixava-se vestir com marmrea quietao. Ia com elas sala, sentava-se ao piano, erguia-se para sentar-se no canap, e no respondia a pergunta nenhuma, salvo s da famlia que ela denominava os seus querubins. E, no concurso de cavalheiros que afluam a ouvi-la, havia um de apelido de Melo e Npoles que se entrou duma paixo invencvel daquela mulher morta, que tinha uma hora de ressuscitada, quando as teclas do piano a galvanizavam. Este cavalheiro chorava na ausncia e na presena dela. Votou a Deus que lhe levantaria um templo, se alvorecesse luz de raso naquela eterna noite. Como Francisco da Cunha usava chamar-lhe a sua sereia, Joaquina era assim conhecida de fidalgos e humildes em Viseu. Diziam: a SEREIA apareceu ontem na sala; a SEREIA teve um acesso depois que cantou. E o povo, na sua linguagem cndida e pitoresca, dizia: Vimos hoje a SEREIA numa janela do palacete: olhava para o cu que parecia uma santinha. CAPTULO XXXI
Soube Gaspar de Vasconcelos que Joaquina Eduarda estava perdida. Esta nova j lhe no achou corao vivo. Foi colosso de ferro que lhe esmagou cabea e peito. Viram-no, uma noite sair de casa, os criados. Era j no inverno de 1766. Rugia a tormenta fora nos arvoredos. Os servos seguiram-no de longe, porque o temiam, e podiam segui-lo de perto, que a negrido do cu, o estridor do vento e das cachoeiras no os denunciavam. Viram-no subir uma encosta, ao cimo da qual se achava a lomba da serra, at decair sobre um barrocal profundo. Estugaram o passo, receosos de que o amo se despenhasse. Ele pressentiu-os, e aperrou uma clavina. Fizeram p atrs, e proferiram palavras suplicantes. Gaspar arrojou a clavina, e despenhou-se. Est morto! conclamaram todos, correndo borda do precipcio. Alguns mergulhavam a vista nas trevas, enquanto outros desceram a quebrada para rodearem o outeiro at entrarem garganta. No o viram, nem ouviram gemidos. Conjeturaram que o amo tinha ficado entre a penedia, que se interpunha a meio do alcantil, sobressaindo ao nvel da aresta. Desceram os mais corajosos retorcendo e cravejando os dedos nos sargaos, e fendas das rochas. Encontraram o corpo de Gaspar entalado na cavidade aberta entre duas fragas. Ergueram-no eles, e sentiram-lhe o calor do bafo. Escorria-lhe sangue da cabea e do pescoo. Uns correram a buscar cordas e escadas para guindarem o moribundo ou o cadver, enquanto outros foram chamar cirurgio, e avisar o pai. Foi custoso iar aquele corpo inerte, que, a cada empuxo que lhe davam, arrancava um grito rouco, e reversava golfos de sangue. Transportaram-no ao leito. O cirurgio curou-lhe as feridas principais, declarou, porm, que se no morresse logo, pouco viveria, porque tinha, entre o queixo inferior e a clavcula uma salincia, que o cirurgio denominou tumor sanguneo, e ns hoje denominaramos aneurisma. As fraturas da cabea, com quanto profundas, no lhe amolgaram o crebro. Gaspar assistiu com os olhos abertos e silencioso cura das feridas: no desprendeu sequer um suspiro, que parecesse gemido. Quando, porm, viu entrai o pai ofegante e quase em braos dos lacaios, fechou os olhos, e murmurou palavras ininteligveis. Em seguida ao pai entrou frade Joo, e chamou-o. Gaspar encarou nele, e disse: A expiao o maior. O seu Deus no est ainda satisfeito.. E fechou novamente os olhos, quando o pai se aproximou. Fr. Joo olhou para o espaldar do leito, e viu debaixo do travesseiro um livro, que tirou. Estava aberto, com uma pgina dobrada. Eram as cartas de Sneca. A pgina assinalada dizia: H nada mais insipido que ser delicado no morrer? Digno e generoso o homem, cujo acabar da sua mo est. Vede com que bravura se embebe um punhal! A coragem com que se ele despenha s profundezas do mar, ou de alto a baixo por sobre espantosos fraguedos! Quando todos os recursos lhe escasseavam, ainda tinha do seu com que dar-se a morte, para ensinar ao universo que o morrer est no querer. Pensem o que quiserem desta ao; mas concedam que a mais torpe morte prefervel mais brilhante servido. O frade fechou o livro, e disse entre si: Tinha perdido a f!. E no teve me, cujas oraes lhe lembrassem naquela hora!.. Pedro de Vasconcelos mandou sair os criados do quarto. Aproximou-se do filho, e disse-lhe: Casa com Joaquina Eduarda, e vem com ela para a companhia do teu pai. Gaspar, sem descerrar as plpebras roxas, disse: No escarnea sobre dois cadveres!. Joaquina Eduarda est morta, e eu vou morrer. Ela morreu?! exclamou o velho voltado para o irmo. Doida sei eu que est... Estar morta para a razo. respondeu o frade. E que me querem agora?perguntou Gaspar exagitado, revolvendo a lngua pelos lbios ressequidos Que me querem agora? Salvar-te a alma, se no podermos mais respondeu frade Joo. A alma! replicou o suicida, sorrindo ferozmente a alma este sangue maldito que me abrasa as artrias!.. Eu queria uma pessoa que me ajudasse a morrer! Queria a minha me!. Onde est a minha me, Sr. Pedro de Vasconcelos?. Onde est a filha do chapeleiro?, a Maria Pereira?!. Unja-me o rosto com algumas das lagrimas que ela chorou aos seus ps!. Jesus, valei-me! exclamou o velho. Gaspar! tem piedade! suplicou fervorosamente o frade. Pois deixem-me! deixem-me, que eu quero morrer desamparado como ela, sem pai, sem me, sem amigos! Pedro de Vasconcelos estrebuchava na sala prxima prostrado sobre um escabelo em ancis de morte. Fr. Joo ajoelhara aos ps do leito do sobrinho, e orava com a face de rojo. CAPTULO XXXII
Pedro de Vasconcelos e o irmo assentaram residncia em S. Joo de Rey. O pai escutava a respirao do inferno; do limiar da porta, encoberta pelo reposteiro, no passava. Os mdicos recomendaram-lhe a remoo de causas que excitassem o doente, sob pena de sobrevir uma febre traumtica. Ora, o aparecimento do pai incendia-lhe o rosto, e exasperava-o em contores e vertigens. Fr. Joo era o enfermeiro, e o apostolo. Ministrava-lhe os linimentos do corpo e da alma. Os primeiros iam operando eficazmente; os outros pareciam a semente da parbola que caiu sobre pedra. As chagas fecharam; mas o distendimento da artria subclvia no se retraiu. A aneurisma estava formada. Tinha ali a morte certa para uma hora imprevista. Poderia viver meses, ou ainda anos, se o no sobreexcitasse alguma forte comoo fsica ou moral. Ao fim de trinta dias, levantou-se. Fr. Joo, como lhe visse no rostoinslita serenidade, disse-lhe: O teu pai quer ver-te. Aqui estou s ordens de quem quiser ver-me respondeu Gaspar. No o trates com desabrimento observou o frade. O meu pai est castigado: necessrio que dois rus do mesmo crime se abracem, e no se dilacerem. Saiu o monge e voltou com o irmo. Gaspar levantou-se da poltrona, e inclinou a cabea perante o pai, que lhe incutiu d. Era a decrepitude repulsiva. J parece que as herpes lhe corroam as faces. Venho despedir-me de ti, filhodisse muito comovido o ancio tempo de acabar... Deixo-te, e vou para Braga. O filho apertou-lhe a mo compadecido, e murmurou: Adeus, meu pai. A tragdia est finda. Digamos agora como os autores romanos: aplaudi, homens! Se o meu pai me antecipar na sada deste mundo, rogo-lhe, em nome da minha me, que me deixe uma esmola com que eu possa recolher-me para um convento. Convento! exclamou frade Joo Por ventura desceu um raio da graa divina tua alma, Gaspar? No desceu raio de coisa nenhuma respondeu Gaspar Escolho o mosteiro porque l a solido e o esquecimento porque no verei l mais as testemunhas desta enorme calamidade, destes vestgios de sangue, que ho apagar- se porta do mosteiro dos paulistas da serra de Ossa. Serra de Ossa! contraveio o monge Que ideia essa? Convento pobre e austero... Que tenho eu com as riquezas dos outros conventos? Enquanto austeridade, eu no tenho j liberdade que sacrificar. Essa ideia h de desvanece-la a suplica do teu pai. Querers que eu ajoelhe aos teus ps? disse Pedro de Vasconcelos. No, senhor: no me humilhe, nem" me faa mais desgraado com a sua humildade, meu pai. Porque me no h de consentir que eu viva s, e procure num mosteiro um pouco de sossego para esta pobre alma? Embora o faas, meu filho; mas escolhe outra asa, e outro habito. Que faz a diferena das mortalhas?. Bem... eu tiro a partido que no seja Tibes, nem mosteiro em cidade. Irs para Grij... sers cnego regrante de S. Agostinho; mas enterra-me primeiro. Poupemo-nos, meu pai redargui Gaspar. Irei para Grij; e, se l o raio divino me iluminar, pedirei a Deus que lhe alongue os dias, e lhos doure de contentamentos. Pedro fitou os olhos aguados no irmo. Fr. Joo, como inspirado a sbitas, disse: Deixa-o ir, Pedro; deixa-o ir: Deus que o encaminha. E, com efeito, era Deus que o encaminhava... Em poucas horas se aviaram licenas para a entrada do novio no mosteiro dos Crzios de Grij. A fatal nova chegou quinta de Vila Verde, onde uma menina de dezanove anos, aquela Paulina Roberta, de to alegre condio e exuberante sade, se definhava e ia como anjo corrido da desgraa a esconder-se na sepultura. Ningum falara dela a Gaspar, nem ele perguntara pela doce alma que rejeitara o esposo eleito pelo tio. A me tinha-a entre os braos, e via de dia para dia o ir-se apagando a sua luz, a sua filha nica. Chegou, pois, a nova do destino de Gaspar a Valverde. Paulina pediu me, que a levasse a despedir-se do primo. E juntou: No lhe pedirei mais nada neste mundo. Entraram casa de Vasconcelos, quando Gaspar se despedia do pai e do tio. Fr. Mo, chamado fora, voltou a dizer que estava na sala a sua irm e Paulina, para se despedirem do primo e sobrinho. Gaspar entrou na sala; e, ao ver Paulina Roberta, estremeceu. Espantou-se! disse a menina sorrindo Admiras-te de me ver assim, Gaspar tambm tu ests muito mudado! Vejo que padeces, prima... Que ?-disse ele. H trs anos respondeu a me H trs anos que a vejo finar-se. Foste tu rompeu a me em gritos e lagrimas foste tu que mataste a minha filha!.. Oh me! exclamou a menina, impedindo-a de prosseguir. Em que a matei, minha tia?. objetou Gaspar Por ventura, Paulina... a minha me acudiu a menina que tem aquelas ideias... Que culpa tens tu na minha doena, primo? Me... pelo amor de Deus, no chore assim, que me faz piorar! Santo Deus! exclamou Gaspar com as mos agarradas na fronte Santo Deus, que mal fiz eu Providencia para perseguio to incansvel!.. E, como delirante, fugiu da sala, afogado de soluos, e desceu ao ptio, onde o esperava a liteira, e dois lacaios com os machos rdea. O esbofado frade Joo de Vasconcelos seguiu-o, e ajudou-o a embarcar na liteira. Quando saiu rua a locomotiva, abriu-se uma janela do palacete, e Gaspar ouviu a voz da prima, que lhe dizia: Primo, olha que eu vim para me despedir... E ento... adeus! o meu primo, adeus!. E recolheu-se, amparada nos braos da me. Sete dias depois deste transe, o cadver de Paulina Roberta descia ao jazigo da famlia, situado na capela daquele palcio. A me conseguiu do irmo que lhe cedesse um quarto, com porta para o interior do coreto donde os fidalgos assistiam missa. Duas vezes cada dia foi ela ver do rotulo do coro o mrmore que fechava os ossos de Paulina; mas, ao fecharem-se trs meses de saudade, a pobre me mudou de quarto para o leito glacial da Cilha. CAPTULO XXXIII
Fr. Sebastio Godim, no correr do ano de 1767, passou em Viseu duas temporadas, hospedado em casa de Francisco da Cunha. Eram sensveis as melhoras de Joaquina Eduarda. Os desvairamentos daquela abrasada fronte aplacavam-se quando a mo do frade lhe tocava; as sincopes eram menos espaosas, se a enferma caia extenuada nos braos do irmo. Esperanou-se a medicina, aconselhando frade Domingos a permanecer o mais tempo que pudesse junto da irm. Quisera ele transferi-la para a casa paterna de Viana; mas a famlia Cunha contradizia o intento alegando, com o beneplcito dos mdicos, que a desconvivncia duma famlia carinhosa lhe seria nociva ao progredimento da cura, e que a posio cativa do irmo a foraria soledade, e, pelo conseguinte, s reminiscncias agravadoras da loucura. Como disse, voltou segunda vez a Viseu o frade. Mais sensvel se manifestou a cura de Joaquina. Exultaram todos, quando ela, depois de estar-se recordando atentivamente com dois dedos ajustados aos lbios, perguntou de golpe: Mano Sebastio, que feito de Maria Amlia?! H muito tempo que no sei nada da minha irm... Est em Pernambuco, para onde o nosso cunhado foi despachado corregedor. Nunca te escreve? Tive uma carta. Pergunta por mim? Pergunta... O frade mentira discretamente. Maria Amlia, consciente da fuga da irm, recebeu ordem do marido para no mais falar dela, nem consentir que lhe falassem. Este requinte de honra no contrariou a esposa. Maria cumpria letra as ordens do marido, e apagara da sua alma os derradeiros vislumbres de amizade e piedade da irm. Comeou Joaquina, depois que o irmo a enganou, a recordar a beleza de Maria Amlia, o donaire da sua presena, as alegrias da sua vida, bem que tivesse um marido muito mais idoso. Notou os defeitos que maculavam algumas excelentes qualidades dela, e observou que a soberba de ser formosa a cegava a ponto de pensava que as outras mulheres eram to soberbas como ela. Estas reflexes justas indicavam inteireza e claridade de juzo. Fr. Sebastio deliciava-se, escutando-a. , verdade que, nalgumas conversaes, passava bruscamente do acerto ao disparate; ainda assim, as nevoas eram passageiras, e o espirito desnublava-se assim que o irmo a espertava daquele adormecer-se dalma em escuridade sbita. Decorridos dezoito meses, depois que Joaquina Eduarda passara de Sevilha para Viseu, frade Sebastio, confiado na quase completa cura da sua irm, tratou com Francisco da Cunha ir ao Minho, a fim de secularizar-se, reassumir a posse da sua reitoria, recompor como noutro tempo o interior da residncia, e levar a irm para si. O fidalgo acedeu, vencido pelas rases terminantes de frade Sebastio, tirando a partido que iria ele e uma sua filha acompanha-la, segundo estava prometido. Deliberado assim, por assentimento de Joaquina Eduarda, o frade despediu-se alegremente da irm, e foi ao Minho diligenciar as coisas que se retardaram trs meses. Em Fevereiro de 1768 avisou ele Francisco da Cunha de estar tudo a ponto de receber os seus presados hospedes e a sua pobre irmzinha. Escrevendo a Joaquina dizia ele : O tempo a est agreste; mas daqui a pouco florescem as tuas arvores. Mandei alimpar os canteiros que estavam a monte. L encontrei ainda as razes que tu semeaste h seis anos. Novamente as enterrei: quero que elas te festejem ainda, e te reconheam nesta primavera. Anda- se agora em construo d aquele tanque entre os loureiros, com que tu andavas sempre a fantasiar delicias. L para Junho j hs de t-lo rodeado de escabelos de cortia e coberto de maracujs. J sacudi o p do teu piano, que o reitor o meu substituto guardou, e respeitou com tal excesso de melindre que as aranhas urdiram pacificamente as suas teias em volta dele. Leu Joaquina, com lagrimas, estas cariciosas amizades do irmo, e sentiu ancis de se ver no seu ermo, a ss com o amparador, com o enviado do Senhor misericordioso. Preparou-se para a partida, com promessa de voltar a Viseu no inverno seguinte. Alguns cavalheiros concorreram a despedir-se de D. Joaquina Eduarda desde a antevspera da sada. Entre estes, faltou o mais assduo nos saraus de Francisco da Cunha, aquele Melo e Npoles em cujo seio almejara o primeiro amor formosa cantora, douda divina, que fazia chorar com os trenos de Jeremias, e rir com as seguidilhas de Miguel Cervantes. Perguntou Joaquina Eduarda por ele, em cujos olhos tantas vezes se vira espelhada nas Lgrimas. Disseram-lhe que vivia muito encerrado na sua camara, e muito dessaboreado da vida. Pois diga-lhe rogou ela ao cavalheiro interrogado que eu nunca me hei de esquecer de que o vi chorar por mim. E de que foi amada por ele como ningum mais o ser nem foi neste mundo juntou o cavalheiro. Joaquina espasmou os olhos no rostodo sujeito, e desatou uma casquinada de riso arrepiador, e logo exclamou: Amada! amada eu... Eu! Falarem-me a mim em amor!. Pois eu no me perdi?!, eu no fui atirada lama por aquele rapaz gentil que no voltou mais. O delrio prosseguiu. Recara a infeliz nos acessos desde muito apaziguados. Seguiram-se dias terrveis, e tornaram as desesperanas da cura. Dilatou-se a partida para mais tarde. J o padre Sebastio Godim se dispunha a voltar a Viseu, quando recebeu a fausta nova das melhoras da irm, bem que os mdicos davam como impossvel a perfeio da cura, conjeturando leso cerebral irremedivel. CAPTULO XXXIV
O novio de Grij passara o ano cio noviciado, entre os companheiros e os mestres, com a reputao e respeitos de um grande desgraado. O arcebispo bracarense D. Gaspar recomendara ao dom abade de Grij que se houvesse muito singularmente com aquele novio, no o compelindo a rezas e cerimonias. Acrescentava que era prudncia e caridade esperar que a divina Providencia influsse no animo de Gaspar de Vasconcelos o amor s coisas de Deus e vida propriamente. Com recomendao de tal porte, o novio nem levemente era espertado do seu torpor e abstraimento. Concludo o prazo do noviciado, Gaspar vestiu o habito, com a indiferena de quem muda de trajo. Acolheu-se outra -vez sua cela D. Gaspar, cnego regrante de Santo Agostinho. Depois de professo, poucos dias decorridos, recebeu carta de frade Joo de Vasconcelos, pedindo-lhe que acudisse ao chamamento do pai que estava em perigo de morte, com um terceiro insulto apopltico. O frade crzio, no mesmo ponto, pediu licena ao prelado, mostrando-lhe a carta do tio. Aprestou-se a liteira do mosteiro, e partiu. Aproximou-se do leito da agonia do pai, e ajoelhou, beijando-lhe a fronte. Ergueu- se, tomou da mo de um frade carmelita um livro chamado o Diretor fnebre, e folheou at achar a pgina intitulada: Do modo de ajudar a bem morrer. E leu, voltado para o crucifixo, que dois castiais iluminavam: Delicta juventutis, et ignorantias ejus, qucesumus, ne memincris, Domine: sed secndm rnagnam misericordiam tuavi metnor esto ilius in gloria claritatis tuce. (*) E prosseguiu, at ao final do psalmo: Retribue servo tuo.. [(*) No te lembres, Senhor, dos delitos e cegueiras da mocidade dele. Antes, conforme a tua grande misericrdia, lembra-te dele para o acolher ao esplendor da tua gloria.] Pedro cerrara as plpebras como para arrancar da vida. D. Gaspar aspergiu gua- benta sobre o leito e sobre os circunstantes. Os sinos dobraram agonia na igreja prxima, e logo em todas. O moribundo j no podia dizer a palavra Jesus, que o filho proferiu trs vezes. Aqui faleceu a coragem ao rapaz. Dobraram-se-lhe os joelhos, e inclinou-se com os lbios sobre os do pai que j no bafejavam. Ajoelharam todos, e frade Joo de Vasconcelos, com a voz convulsa entoou os formidveis versos do Responsrio: Subvenite sancti Dei, ocurrite Angeli Domini, sucipientes animam ejus. O fer entes eam in competiu Altissimi... (*) [(*) Vinde, santos de Deus, correi anjos do Senhor, a receber esta alma e a dep-la na presena do Altssimo.] Gessou o troar da agonia nas torres, e comeou o dobre a finados. CAPTULO XXXV
Quinze dias passados depois deste sucesso, saram de Viseu, em direitura a Barcelos, D. Joaquina Eduarda, Francisco da Cunha, e uma filha. A enferma cobrara muita lucidez de espirito na semana ultima e anterior jornada. O fidalgo saiu animado pelos mdicos, e mais ainda pela quietao e judiciosas ideias de D. Joaquina. Ao terceiro dia de jornada anoiteceu-lhes nos Carvalhos; e, como chegassem por volta das dez horas a Vilanova de Gaia, resolveram pernoitar na estalagem da terra, como coisa indiferente a viandantes que no tinham demora no Porto. Joaquina Eduarda reconheceu, logo entrada, a hospedaria em que pernoitara na primeira noite da fuga. Mostrou certa hesitao em subir as escadas, e um revolver temeroso de olhos, em que reparou a filha do fidalgo, que a levava pelo brao, ao lado da lanterna do estalajadeiro. Subiram ao sobrado da estalagem. Joaquina dispensou-se de cear, e recolheu-se ao seu quarto com uns ares de conturbao ou medo, cuja explicao ela no deu s reiteradas perguntas de Francisco da Cunha. Ora, o quarto que lhe deram, aconteceu ser pontualmente o mesmo em que tinha passado a primeira noite da fuga. Assim que entrou, e deu de olhos no leito, cobriu-os com as mos, e esteve assim quieta, imvel, largo espao naquela postura. Sentou-se, quando se sentia vergar ao cho desamparada, deixou pender os braos, e logo o rosto se lhe cobriu de gotas de suor frio. Os olhos no ousava ela ergue-los sobre o leito; mas, relanceando-os temerosa, aos ngulos da parede, viu um painel da Senhora das Dores. Ajoelhou; e, como no pudesse orar. abateu o rosto at ao pavimento, e abafou os gemidos colando os lbios tabua. Esforou- se para levantar-se e fugir daquele quarto. Erguida, sentiu um vgado que a fez cair sobre o leito. Ressaltou vertiginosamente como se a mordesse a farpa duma vbora e foi de encontro ao castial, que se apagou no roar do vestido. Palpando as paredes, e proferindo j palavras desatinadas, esbarrou com as mos no espaldar do leito, e refugiu gritando, at bater de costas na porta, que facilmente cedeu ao empurro. Acudiram ao ruido e aos gritos o fidalgo, a filha, e a gente da estalagem. Encontraram-na cada no corredor, com a face ensanguentada: ferira-se na chave de uma porta, quando a sincope a derrubou. Tomaram-na em braos a senhora Cunha com as mulheres da casa, e trasladaram- na para sobre o leito de que ela fugira. Com breve demora de letargo. Joaquina, espertando, circunvagou os olhos pvidos; e, como reconhecesse o local, escabujou nos braos da amiga, exclamando: Morro, morro aqui... No a entendiam; porque ela cessava de gritar a revolver-se, e dizia extravagancias com o seu timbre de voz natural, e cantava as seguidilhas gesticulando com os braos feio de bailarina sevilhana. Francisco da Cunha, prevenido pelos mdicos, saiu a comprar uma poo opiada, e ministrou-lha em ch. Joaquina Eduarda bebeu cantarolando, e ficou, dai a pouco, prostrada. A senhora Cunha passou a noite beira do leito, e o pai a passear no prximo corredor. Ai, pelo romper da manh, Joaquina levantou um alio choro, exclamando: E Gaspar nunca mais voltou!. meu amor, porque no quiseste mais saber de mim? maldito de Deus, e amado da minha alma, que no morreste de remorsos e piedade! Fez estranheza a Francisco da Cunha esta angustiadssima invocao ao homem de quem ela, raras vezes, articulava o nome, nos delivramentos. Ela ainda o ama! disse a menina, quase em segredo ao pai. Joaquina sorriu-se, e disse: Se eu ainda o amo!, amo, amo! o amor da mulher que deseja ver morto o seu algoz! Como o pensamento era absurdo, o fidalgo entendeu que o delrio continuava. Sobreveio uma febre ardentssima. O medico chamado ordenou uma copiosa sangria. Executou-se a sentena. Copiosamente dessangrada, Joaquina esvaiu-se to mortalmente ao parecer, que Francisco da Cunha gritou que a tinham assassinado. E no havia esperta-la daquela modorra. Chorava o velho, julgando-a a trespassar; a filha, abraada aquela, chamava-a a gritos, levantando-a para si. Os reagentes vitais deram-lhe sintomas de vida. Joaquina abriu os olhos, e murmurou baixinho: Estou melhor... Vamos embora, vamos para o meu irmo. E ter vigor para a jornada? perguntou o Cunha. hei de ter: os meus queridos anjos ho de ajudar-me a entrar na liteira... Depois... E, quando fazia um jeito de sentar-se, recaiu muito cortada de alentos, dizendo: No posso... Morrerei aqui?. Os mais hbeis mdicos do Porto, chamados pelo fidalgo, foram de parecer que a enferma no podia jornadear sem perigo certo. Contradizia o Cunha argumentando com dois anos de sofrimentos iguais, sem todavia seguir-se tamanho quebranto de foras. Foi a sangria que a reduziu a isto! exclamava o velho. Seria, no duvidamos diziam os mdicos mas o certo que a vida foge-lhe do pulso, e ns no temos outro indicador da fora vital. Deixe-a estar alguns dias... Mas ela quer partir j. No lhe faa a sua vontade. De Vilanova de Gaia, saiu um portador para Barcelos a chamar o padre Sebastio Godim. E, no entanto, Joaquina Eduarda pedia a brados que a tirassem daquela estalagem. Por volta do meio-dia; repetiu-se um mais longo delquio, piorado em sintomas de morte. E morrer sem confisso nem sacramentos esta senhora? perguntou a estalajadeira ao fidalgo. Eu no me posso convencer de que ela est perigosa; disse Francisco da Cunha porm, bom ser que se lhe ministrem os socorros da igreja... Que fazem bem, e no mal concluiu a mulher, e desceu ao ptio no propsito de mandar chamar o reitor. Neste comenos, parou porta da hospedaria uma liteira, com um passageiro em hbitos de frade crzio. Os liteireiros pediram po e vinho para os machos. O frade no queria apear, e pareceu estalajadeira que ele escondia o rosto entre os braos, cobrindo a cabea com as mos. Perguntou ela para um criado se a sua reverendssima era crzio, e como se chamava. o Sr. D. Gaspar de Vasconcelos respondeu o criado. Acercou-se da liteira, e disse-lhe: V. reverendssima vai doente? No, mulher, no vou. A estalajadeira disse de si para consigo: Eu j vi muitas vezes esta cara! Se V. reverendssima fizesse a esmola de apear um instantinho para absolver uma criatura que est em artigos de morte...continuou ela. Aonde? perguntou o cnego. L em cima num quarto. Vou mandar chamar o Sr. reitor; mas afigura-se-me que ele foi para a cidade. Eu vou disse D. Gaspar. Pois venha com a graa de Deus!. que pena me faz aquela senhora! ir-se to nova deste mundo!. Subiram. E o frade, ao avizinhar-se do quarto fatal, tremia como o condenado em presena do patbulo. A estalajadeira entrou adiante a anunciar a vinda de um Sr. frade crzio de Grij. Francisco da Cunha saiu porta a recebe-lo com as honras devidas a monge daquela categoria. indiscritvel o lance! Gaspar reconhece o fidalgo, e vibra dos lbios uma expresso, um som, uma conglobao de gritos inexprimveis num s grito. Francisco da Cunha reconhece-o, e estende-lhe os braos, clamando: No entre, no entre, por quem ! Pois que? tartamudeou Gaspar a minha suspeita certa?. Quem est a morrer, Sr. Cunha? Nisto, Joaquina Eduarda ressalta do leito como se um ferro ardente a trespassasse dos colches at ao seio. A horrorizada amiga quer segura-la, chamando o pai. Gaspar rompe ao quarto, levando frente de si o velho. Joaquina com os olhos a saltarem-lhe das orbitas, os braos estirados e trementes, a boca rasgada e aberta na expresso pavorosa do terror, corre para ele, exclamando: Acode-me!, acode-me, Gaspar! O frade recua; cinge-se hirto com a parede; arranca um rugido soturno que devia ser o nome daquela viso; carrega com as mos ambas sobre o corao, e resvala morto nos braos de Francisco da Cunha. Rompera-se a ultima membrana do saco aneurismtico: foi a onda de sangue represado que o afogou. CAPTULO XXXVI
Joaquina Eduarda foi arrancada de sobre o cadver, no qual enrocara os braos, e fixava os olhos com uma fixidez horrvel. Transferiram-na a outra alcova, inteiriada, rgida e fria como morta. O povo, alarmado pelos gritos da estalajadeira, entrava em chusmas at ao interior dos quartos. Ao convento de crzios da serra chegou a nova da morte do frade, e ao Porto o boato de um suicdio ou assassnio. Concorreram os crzios e os magistrados simultaneamente. Averiguada a morte instantnea de D. Gaspar de Vasconcelos, o cadver foi trasladado igreja do mosteiro da Serra. O corregedor, ouvindo a exposio de Francisco da Cunha acerca das antecedncias que prepararam aquela catstrofe, disse que mais felizes teriam sido os dois criminosos e j punidos amantes se ele os tivesse capturado ali naquela estalagem quatro anos antes; e que o no fizera por comiserao de D. Joaquina Eduarda que ele tinha conhecido e admirado em casa do seu colega o corregedor de Pernambuco Silva Pereira. Um respeitvel cidado de Vilanova, conhecedor da tragdia corrida na estalagem, e da curiosidade importuna da populaa, que no desistia de ver a senhora douda, por amor de quem morrera o frade, procurou Francisco da Cunha, e rogou-lhe que sem demora se passasse para a casa dele, que partia com os muros do convento das religiosas de Corpu-christi sobre o rio Douro. Aceitou o Cunha este valioso servio, e fez entrar Joaquina numa cadeirinha de mo. O atribulado fidalgo alimpava o suor da fronte, e dizia: Estas enormes desgraas acabam com a vida! Depois de sete anos de expatriao, venho gozar na ptria estas delicias!.. Joaquina Eduarda sara da cadeira como entrara: um autmato impassvel. Rodearam-na de compassivos afagos muitas famlias de Vilanova, porque o infortnio, aos olhos das pessoas mais superciliosas em pontos de honra, tinha santificado aquela mulher. A demente circunvagava os olhos por todas as fisionomias estranhas com um ar de desconfiana e susto; se, porm, encontrava os da menina Cunha, abria um sorriso de consolada segurana. Os mdicos recomendaram que a deixassem deitar e sossegar. Levaram-na para um quarto cujas janelas abriam sobre a praia. Lanaram-na sobre o leito, e ficou a ss com ela a filha de Francisco da Cunha. Pensava esta senhora que a sua amiga recair em profundo dormir; escutou-lhe a respirao serena e regular; e abriu subtilmente a porta da alcova para dizer ao pai que Joaquina adormecera. Voltou de novo ao alcance da respirao, e viu-lhe os olhos abertos. Ests melhor, filhinha? perguntou a menina. Que horrendo sonho!.murmurou Joaquina. Sonhaste?. Sonhei que o via morrer minha frente. A quem? Gaspar... Sonhei que o via morrer naquele quarto em que me ele disse: fulmine-me o cu, h hora em que eu me esquecer do que te devo. Sonhei que o vi morrer naquele quarto!. Como ele estava vestido!. que horrvel viso!. que rosto o dele!. estava velho!. eu ia para abraa-lo, e a dizer-lhe: acode-me, acode-me, e ento... caiu, caiu... morto!. fulminado!. Que sonho, meu Deus!. E aqui expediu um grito estridulo que incutiu pavor na senhora que a escutava lavada em lagrimas. Concorreu muita gente porta do quarto: as senhoras da casa entraram, e Joaquina exclamou: Que ?.. que me querem?, eu no o matei... Eu queria salva-lo!. Mostrou vontade de levantar-se, encarando sinistramente nas pessoas que se aproximavam do leito. Ajudou-a a menina Cunha. Avizinhou-se da janela que dava sobre o rio. Encostou a face vidraa, e comeou a cantar uma das lamentaes da Paixo de Cristo, como se elas entoavam no convento de St. Clara. Neste momento, viu ela um homem parado em frente da janela. Fixou-o, acenou- lhe com a mo, correspondendo cortesia do chapu. Voltou-se para dentro, e disse: aquele cavalheiro de Viseu que chorava por mim... Francisco da Cunha chegou vidraa, e conheceu o Melo e Npoles, o homem que faz lembrar aquele convencional que se apaixonou por Carlota, quando as pranchas do patbulo se pregavam. Outro infeliz! disse entre si o fidalgo, e perguntou a Joaquina Eduarda: Quer que o chame? No, que ele chora por mim, e faz-me compaixo.. disse ela comovida. Voltou-se de salto para as damas que se agrupavam no quarto, e perguntou: So visitas? h hoje baile?.. Eu vou cantar as seguidilhas todas que sei; mas a minha a mais graciosa. Gaspar gostava muito de ouvi-la... Ah! Esta exclamao fez pavor: foi o estalar derradeiro daquele peito! O corao devia diluir-se nesse instante, porque em seguida os olhos de Joaquina pareciam banhados de sangue. Correu de encontro porta, que Francisco da Cunha lhe impediu encostando-se, e afastando-a com gestos e palavras suplicantes. Retrocedeu para o leito a demente iluminada, como todos os loucos, luz da alvorada eterna. Debruou-se no leito, cravou os dentes na coberta, e gemeu em gritos longo tempo, at esmorecer extenuada e inerte. Deitaram-na. Cerrou os olhos, e disse mansinho: Quero dormir. A senhora Cunha sentou-se ao p do leito. Joaquina chamou-a; deu-lhe um beijo; beijou-a mais t.res vezes, e murmurou: So trs beijos para a tua me e irms. Nunca me chorem... O tempo de me chorarem... acabou. Filha... porque falias assim?! exclamou a menina tu no morres... Ai!, meu anjo do cu... morro, morro... Agora queria sossegar... E voltando-se para a parede, fechou os olhos, e fingiu um profundo dormir. A lagrimosa enfermeira acreditou-a. Era ao cair da noite. Decorreram duas horas, e Joaquina Eduarda ainda dormia. Chegaram-lhe a luz perto do rosto, viram-lhe a humidade das lagrimas, e pensaram que ela chorava sonhando. .Uma ds senhoras da casa disse hospeda que fosse tomar uma chvena de ch, enquanto ela ficava velando a sua querida enferma. Hesitou a menina Cunha; porm, muito rogada, obedeceu. Instantes depois, Joaquina Eduarda ergueu-se de sbito. A senhora, que a vigiava, espavoriu-se, e correu sala a chamar Francisco da Cunha e a filha. Quando entraram, viram aberta a janela que dava sobre o areal, e descobriram na escurido de fora um indeciso vulto correndo para o cais. Vai afogar-se! acudamos!exclamou Frncico da Cunha. Como a janela era baixa, o velho e o dono da casa saltaram por ela; mas, ao chegarem borda do cais, ouviram um estrugido de ondas, e repararam um vulto a estrebuchar flor de gua. Mas, j perto daquele vulto, enxergaram eles outro, cortando as ondas a uma velocidade espantosa. Vai algum salva-la?. Dou tudo que tenho a quem a salvar! exclamava Francisco da Cunha, ao tempo que das janelas da casa hospedeira saia um temeroso alarido de brados. Passado um quarto de hora de horrvel ansiedade, viram avizinhar-se do cais o nadador, com Joaquina Eduarda segura pelos braos em volta do pescoo. Vieram muitas luzes. Rodearam o corajoso homem que saia de gua com a suicida apertada ao seio. O salvador era Joo de Melo e Npoles; mas Joaquina Eduarda estava morta. CAPTULO XXXVII CONCLUSO
Ao fim da tarde do dia seguinte, o padre Sebastio Godim chegou ao Porto com o corao a desbordar de contentamento. Apeou entrada da ponte das barcas, para levar o cavalo rdea, e viu do lado dalm uma fileira de tochas, ao tempo que dobravam os sinos. Perguntou para um grupo de homens que estavam a olhar na direo das luzes, se tinha morrido algum de considerao em Vilanova. Um dos interrogados respondeu: Foi uma senhora que se atirou ao rio. Quem era? perguntou o padre ainda insuspeitoso. Era uma senhora do Minho, e pelos modos fidalga, que amava um frade de Grij, que hoje de manh morreu de repente no quarto dela na estalagem da Micaela de Gaia. Padre Sebastio perdeu a conscincia da sua individualidade naquele instante e em cinco minutos seguidos; todavia, maquinalmente, foi atravessando a ponte; e guiado pelo claro das tochas, parou porta da igreja. Entrou; encostou-se para um recanto do templo; ouviu os ofcios fnebres, e proferiu as palavras do ritual. Terminados os responsos, avizinhou-se do esquife, que se levantava pouco alta, descobriu o rosto da irm, beijou-lhe a fronte, cobriu- lhe o rosto; e murmurou: Dai-lhe, Senhor, eterno descanso. Indagou da residncia de Francisco da Cunha, e soube que ele partira para Viseu, logo que a defunta foi amortalhada, e pagas as despesas do saimento. No tenho precisos esclarecimentos do destino de Sebastio Godim. Sei, porm, que em 1778, dez anos depois, morreu no Bussaco um eremita com aquele nome e apelido. Doutros personagens, que mais ou menos entram na urdidura destas paginas torvas, no merecia a pena indagao. crivei que frade Joo de Vasconcelos se finasse muito velho, porque tinha contra a desgraa dos seus e desgostos prprios dois admirveis escudos: um era um leal e laborioso estomago; o outro era uma f solida na bem-aventurana dos que sofrem com pacincia e esperam em Deus. D. Maria Amlia voltou viva de Pernambuco, e casou em segundas npcias com um desembargador da Suplicao, e em terceiras npcias com outro desembargador da Suplicao. Dizia-se em Lisboa que D. Maria Amlia era um cabido de garnachas. Quando lhe falavam pessoas indiscretas das desgraas da sua irm, respondia: Consequncias inevitveis dos erros. Eu, de mim, tenho-me sujeitado a viver esposa de velhos, para ter juzo e considerao. Era tolo o raciocnio; mas os corolrios judiciosos. Maria Amlia quando enviuvou pela terceira vez, estava considerada e rica. No sei em que ano se foi para o cu aquela virtuosa matrona. Ora, Joo de Melo e Npoles, o salvador do cadver de Joaquina Eduarda, morreu na flor dos anos, depois de haver escrito os apontamentos essenciais desta historia, que foram encontrados na livraria do baro de Prime, fidalgo de Viseu, falecido h poucos anos.