A Tradição Cética - Danilo Marcondes
A Tradição Cética - Danilo Marcondes
A Tradição Cética - Danilo Marcondes
A TRADIO CTICA
No devemos pensar que a seita dos cticos est h muito extinta. Ela floresce hoje em dia tanto quanto
antes e praticamente todos aqueles que se consideram um pouco mais hbeis que a maioria, achando que
nada os satisfaz na filosofia comum, e no encontrando nenhuma outra verdade, refugiam-se no ceticismo.
RiDescartes, Resposta s Zas.Objees, Meditaes, 2a.ed (1642)
Danilo .Marcondes
Departamento de Filosofia - PUC-RJIUFF
tradio, seu sentido, suas rupturas internas e suas ramificaes que pretendo examinar em
seguida.
Um bom ponto de partida para se tentar uma caracterizao desta distino acerca
dos vrios sentidos de "ceticismo" o texto do prprio Sexto Emprico, nossa principal
fonte de conhecimento do ceticismo antigo. Em suas Hipotiposes Pirrnicas (doravante
H.P.), logo no captulo de abertura (I,I}, dito que:
2
parece razovel manter 'que h tres tipos defilosofia: a dogmtica, a acadmica e a
ctica.
Portanto, segundo a interpretao de Sexto, h uma diferena fundamental entre a Academia
de Clitmaco e Carnades e o Ceticismo. O ponto mn
que enquanto o acadmicos afirmam ser impossvel encontrar a vefdd, os cticos; Qor
assim dizer "autnticos", seguem buscando: Alis, o termo "skepsis" significa literalmente
"investigao"," indagao". Ous~ja, a afrtmao de que a :verdade seria inapreensvel j nao
caracterIzaria mais uma posio ctica, mas sim uma forma de dogmatismo negativo. A
.
--.--
e Clitmaco (175-110
Academia'. Com Filon de Larissa (c. 110 a.C) a Academia abandona progressivamente o
ceticismo (4a. Academia). Conhecemos esta doutrina sobretudo
a partir do dilogo
li\lIO
no , uma vez Que este Qrinc io p'ressuQosto peIa simples existncia do iscur.so
si@!t}cativo (i.,l006a5-22). Os argumentos de Aristteles em defesa do Princpio da NoContradio mostram a existncia se no do ceticismo, ao menos de elementos cticos nos
filsofos pr-socrticos e nos sofistas. A desconfiana em relao aos dados sensoriais, a
questo do movimento na. natureza que toma o conhecimento instvel, e a relatividade do
conhecimento s circunstncias do indivduo que conhece, so alguns destes temas, que
reaparecero, p.ex., sistematizados nos tropos de Enesidemo (H.P.I,cap.XIV).
No entanto, de fato Pirro que identificado como o iniciador do Ceticismo.
Conhecemos sua filosofia apenas atravs de seu discpulo Tmon, de quem sobreviveram
alguns fragmentos, j que o prprio Pirro jamais teria escrito uma obra filosfica. Pirro
pertence assim quela linhagem de filsofos, tais como Scrates, para quem a filosofia no
uma doutrina, uma teoria, ou um saber sistemtico, mas principalmente uma prtica, uma
atitude, um modus vivendi. Tmon relata as respostas dadas por Pirro a tres questes
1A
distino entre Mdia e Nova Academia, encontrada na Antigidade, no mais comumente aceita pelos
fundamentais:
cofiliecer a natureza das coisas, (levemos evitar assumir QoslQes acerca <isto. 3
consegncias
trangijiaaoe.
dessa
nossa
atituoe?O
Estoicismo e Epicurismo,
atingir a ataraxi(imp.ertUroofiilidoe},-alcanando
Segundo uma tradio, mencionada por Digenes Larcio, Pirro e seu mestre
Anaxarco de Abdera, teriam acompanhado os exrcitos de Alexandre at a ndia. Neste
perodo teriam entrado em contato com
DS
gjmnosojjstti
quanto
4listanciamento e da indiferena..s sensaes. Esta seria uma p'ossvel origem clS nOQes
acompanhado por seus discpulos ~ que ilii a sua atituoe de duvidar e suas sens-ese
sorte de pengos, como ser atropelado ao atravessar a rua,
ou cair num Qrecipcio
Outra tradio, tambm citada por Digenes Larcio, entretanto, mantem quePirro
teria vivido como cidado exemplar, tendo sido muito respeitado e chegando a sumo
sacerdote de sua cidade de lis. O Ceticismo no implicaria assim em uma ruptura com a
vida prtica, mas apenas em um modo de viv-Ia com moderao (metriopatheia)
tranqilidade.
O fundamental, portanto, da lio do Ceticismo inaugurado por Pirro seu carter
essencialmente prtico e sua preocupao tica. Trata-se assim de um "ceticismo prtico", a
filosofia ctica sendo um modo de se obter a tranqilidade pela via da ataraxia, algo que se
consegue por uma determinada atitude de distanciamento, segundo uma interpretao mais
radical, levando indiferena, ou segundo outra interpretao alternativa, exercendo a
moderao.
curioso que o termo "acadmico" tenha acabado por tornar-se, embora de forma
imprecisa, .sinnimode "ctico'". uma vezquePlato
Isso tem feito com que os principais historiadores do ceticismo sejam sempre muito ciosos
da necessidade de se distinguir claramente o Ceticismo Acadmico do Ceticismo Pirrnico.
Nem sempre, entretanto, este cuidado foi observado na tradio e uma das principais e mais
influentes tentativas
de refutao
do ceticismo na Antigidade,
o dilogo Contra
Academia, a Academia entra em uma fase ctica sob a liderana de Arcesilau (315-240 a.C')
e posteriormente de Carnades (219-129 a.C'), conhecida por Nova Academia. Como
explicar esta relao entre a Academia como legtima sucessora dos ensinamentos de Plato
e continuadora do Platonismo e a filosofia ctica tem sido objeto de vrias divergncias por
parte dos principais historiadores da filosofia antiga. J Aulus Gellius (sc.Il) em suas
clebres Noctes Atticae (XI, 5), mencionava a discusso sobre se haveria ou no uma
diferena entre a Nova Academia e o Pirronismo como uma controvrsia antiga.
com Arcesilau que a Academia entra em uma fase ctica. H controvrsia entre os
principais historiadores e intrpretes do Ceticismo Antigo sobre se teria ou no havido uma
influncia direta de Pirro sobre Arcesilau. Sexto Emprico (H.P.I,234) refere-se antiga
anedota que caracterizava Arcesilau como uma quimera, uma figura monstruosa resultante
da combinao das seguintes partes: Plato na frente, Pirro atrs e Diodoro Cronus? no
meio. O inverso dificilmente admissivel, uma vez que Pirro j havia falecido quando
Arcesilau assume a liderana da Academia ( c.270 a.c.). Alguns intrpretes simplesmente
consideram mais plausvel que o Ceticismo Acadmico tenha uma origem independente,
derivando-se do pensamento do prprio Plato.
De fato, em um texto annimo do sc.VI, intituIadoIntroduo
Plato
7;
Filosofia de
Em sua discusso acerca das coisa, dizem, ele [plato] usa certos advrbios
indicando ambivalncia e dvida, p.ex, "provavelmente" e "talvez", e isto uma
caracterstica no de quem sabe, mas de. algum que no consegue apreender
nenhum conhecimento preciso C.). Argumentam, em segundo lugar, que na
medida em que ele procura estabelecer vises. contrrias acerca das mesmas coisas,
claramente defende a sua inapreensibilidade - p. ex. procura estabelecer posies
contrrias ao discutir a amizade no Lisis, a temperana no Carmides, a piedade no
Eutifron (...). Em terceiro lugar, dizem que ele considera que no h conhecimento,
como fica claro na medida em que refut todas as definies de conhecimento no
Teeteto. Seu quarto argumento que se Plato considera que o conhecimento de
dois tipos, um proveniente dos sentidos, outro do pensamento, e que ambos
falham, ento claro que ele defende a inapreensibilidade (...). O quinto argumento
que ele prprio aiz em seus dilogos "Eu no sei nada e no ensmo naoa, tudo
gue ao levantar problemas".
possvel, portanto, interpretar o pensamento de Plato como contendo elementos
cticos", e esta interpretao que prevalece na Academia durante o perodo compreendido
entre as lideranas de Arcesilau e Clitmaco. Estes elementos seriam essencialmente: 1) o
modelo da dialtica socrtica encontrado sobretudo nos dlogos Oa rimeira fase, os
chamados "ilogos socrticos", em que temos a oposio entre argumentos gerano o
irtt1uncia da discusso
eeteto, sem que se chegue a neiliuma aefrnio aceityel Trrata-se, certamente, de uma
leitura parcial e seletiva, mas que no entanto prevaleceu neste perodo, tendo grande
influncia no desenvolvimento do pensamento do Helenismo.
polmica com a filosofia estica. Os esticos foram de fato os principais adversrios dos
acadmicos, Arcesilau polemizandocom
partida da disputa entre o Estoicismo .eo Ceticismo Acadmico parece ter sido a questo do
critrio de verdade que serviria de base para a epistemologiaestica.
Os cticos levantavam
imune ao
kataleptik
(termo de difcil traduo, podendo talvez ser entendido como "apreenso cognitiva") como
base de sua teoria do conhecimento.
considerada como
com
os
esticos
e, sobretudo,
em
seu
questionamento
dos
critrios
10
r;,
ao
conhecimento, uma vez que nenhuma satisfar o critrio de validade. Assim, Arcesilau
estende e generaliza a noo estica de suspenso, adotando-a como caracterstica central e
defrnidora da atitude ctica.
o Ceticismoll
secm:acterizaria, p'_o_ffil=n~to=_;;;..;;..;;;;;=.-,==,
critrio para a deciso sobre qual a melhor destas teorias, j que os critrios dependem eles
prprios das teorias, todas se. encontram no mesmo plano, dando-se. assim a isosthenia, ou
eqipolncia. Diante da impossioilidde de aeciir, o ctico suspenele o juzQ e"..,-!a~o~~
....
desco1:5re-e livre elas . _quietaes. Sobrevem assim a tranqUilidade almejada'. Temos
portanto o seguinte esquema (H.P.I,25-30),
das
ztesis
(busca) ~
diaphonia
(conflito)
isosthenia
(eqipolncia)
poche
'\
11
interpretar; no s porque no deixou nada escrito, mas devido sua aparente ambivalncia.
Seu principal discpulo Clitmaco observava que apesar de longos anos de convivnc~a com
ele, jamais conseguira de fato entender qual a sua posio.
O desenvolvimento que Carnades deu s posies de Arcesilau tem, no entanto,
grande importncia, uma vez que pode ser considerado uma das primeiras formulaes do
probabilismo-". Diante da impossibilidade da certeza devemos adotar como
provvel (pithanon, que Ccero traduz por "probabile"). Camades (RP.I,
226-:229,.
Contra os Lgicos 'I, 166)chega mesmo a introduzir uma distino em tres nveis ou graus:
o provvel, o provvel e testado (penodeumenas, i.. "examinado de modo completo"), eo
provvel, testado e irreversvel ou indubitvel (aperispatouss. a necessidade de adoo de
algum tipo de critrio que levaa Nova Academia a esta formulao; porm, segundo Sexto
(id.ib.), isto equivale a uma posio j prxima do dogmatismo, ou seja, da possibilidade de
adoo de um critrio de "quase-certeza" .
12 Embora nem todos os intrpretes concordem com isso, p.ex. Bumyeat em um texto indito "Camades
was no probabilist", citado por D.Frede (1990).
13 "A suspenso [poche] um estado mental de repouso [stasis dianoias] no qual no afirmamos nem
negamos nada" (H.P.l, 1O).
10
impossvel encontrar a verdade (v. acima, p.I). Desta forma, o recurso ao probabilismono
se torna necessrio; no havendo motivo para a adoo de um sucedneo do critrio estico
de deciso.
ao ceticismo antigo e discusses de questes cticas esto, salvo algumas excees, ausentes
da filosofia medieval'".
surpreendente, portanto, que praticamente desconhecido por mais de 10 scuios
durante quase todo o perodo medieval o ceticismo venha a ressurgir com fora total no
incio do pensamento moderno, podendo mesmo ser considerado uma das principais raizes
da filosofia moderna'>, Sem pretender uma anlise mais detalhada deste perodo devido a
sua grande riqueza e complexidade, gostaria de indicar alguns dos possveis fatores que nos
11
ajudam a entendera
incio da Modernidade.
Encontramos na passagem do .pensamento .medieval para o moderno uma situao
caracterstica de crise, de conflito entre formas de se conceber o.pensamento, de se ver o
mundo, de se entender o ser humano. Podemos destacar sobretudo as seguintes:
1) A crise da escolstica aofinal da Idade Mdia (sc.XIV): crise precipitada pelo conflito
entre os seguidores do paradigma teolgico-filosfico
platnico-agostiniano
dominante
aristotlico-tornista,
na
fundamental neste perodo. _A noo de "homem medida" tem uma importncia central na _
discusso posterior na epistemologia ctica do critrio de conhecimento e na atribuio de
um valor central experincia humana.
3) A Reforma Protestante (sc.XVI): o movimento da Reforma iniciado por Lutero provoca
uma profunda ruptura no interior da religio crist que se divide entre protestantes
catlicos cada grupo reivindicando ser sua a forma autntica de viver o Cristianismo e de
interpretar as Sagradas Escrituras. Mais uma vez, tambm neste contexto a questo do
critrio de interpretao das Escrituras ser fundamental no estabelecimento
de uma
"
da
viso tradicional de cincia e no descrdito do saber antigo que ignorava esta nova
realidade. Do mesmo modo a Histria Natural ento conhecida no Ocidente Europeu em
nada contribui para a compreenso das espcies do Novo Mundo.
12
5)A Revoluo Cientfica inaugurada pela formulao por Nicolau Copmico (1543) de um
. modelo heliocntrico de Cosmo, em oposio ao modelo geocntrico em vigor desde a
Antiguidade e pela defesa por Galileu (1632) da teoria copernicana, com base agora em uma
. concepo de cincia experimental, o queaprofunda.a ruptura com a concepo tradicional
de cincia e abre caminho para a concepo de uma Cincia Nova.
e Montaigne
(1533-1595);
cientistas
como
Francisco Sanchez (1550-1623), mesmo telogos como Pierre Charron (1541-1603), sero
leitores e comentadores dos cticos antigos. As obras de Sexto Emprico so traduzidas para
o latim e editadas na Frana em meados do sculo XVI e isto abre caminho para a retomada
das questes e argumentos cticos que tero um papel central no desenvolvimento do
pensamento moderno, sobretudo quanto ao problema da possibilidade do conhecimento
cientfico e da necessidade de fundamentar e justficar qualquer pretenso cincia em novas
bases que no as da tradio aristotlica e escolstica. Mesmo filsofos como Descartes
(1596-1650)
que pretendem
refutar
o ceticismo,
defendendo
a possibilidade
do
16
13
formulao de uma filosofia crtica; que culmina com a obra de Kant(1724-1804). Podemos
ilustrar isso atravs da seguinte passagem da Critica da Razo Pura (A 769):
O ctico o mestre que fora o pensadordogmtico a desenvolver uma crtica
-rigorosa do entendimento eda razo [.;.Jenquanto que o procedimento .ctico
no capaz ele prprio de fornecernenhuma respostasatisfatrias questes da
razo, no obstante ele prepara o caminho tornando a razo mais circu, : -....
indicando as medidas radicais adequadas para mant-Ja dentro de seus legur.,...> _
domnios;
Charron, De La.Sagesse(1601)-e
XVII e XVIll. Trata-se do ceticismo fideista, --ou seja a utilizao de argumentos cticos
mostrando a incapacidade dea
17
Neto (1994).
,!J
'V
14
defesa de uma posio doutrinria, mas na busca d felicidade atravs da tranquilidade,
alcana da pela suspenso do juzo (poche).
4) O Ceticismo fidesta,
caracterstico
do pensamento
Referncias Bibliogrficas
Brochard,V(1969)
no.42.
Digenes Larcio(1988)
Vida e doutrina
Ceticismo", em O que nos faz pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia da PUCRio, n.8.
Marcondes.D. (1995) "H Ceticismo na Filosofia Medieval?" em L.A de Boni, Lgica e
Linguagem na Idade Mdia, EDPUCRS, P.A1egre.
Popkin,R
Protagonists"
em MSchofield,
M.F.Burnyeat,