7 Edição - Tomo II - Completa

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Os artigos publicados nesta edio, foram apresentados na

COMISSO ORGANIZADORA DA
I JORNADA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
Jucilaine Biberg - UMinho Portugal
Larissa Coelho - UMinho Portugal

Natlia Carvalho - UMinho Portugal


Pietro Sarnaglia - UMinho Portugal

COMISSO CIENTFICA DA
I JORNADA INTERNACIONAL DE DIREIROS HUMANOS
Ana Catarina Marinho UMinho Portugal
Jucilaine Biberg - UMinho Portugal
Larissa Coelho - UMinho Portugal

Natlia Carvalho - UMinho Portugal


Pietro Sarnaglia - UMinho Portugal
Sayuri Fujishima UMinho Portugal

Ficha Tcnica

EDITOR:
Ribamar Fonseca Jnior
Universidade do MInho - Portugal
DIRETORA COORDENADORA:
Karla Hayd

Vol. II Ano II N 7 Tomo II


Maio Agosto 2014
Peridico Quadrimestral
ISSN 2182 598X
Braga- Portugal
4700-006

Universidade do MInho - Portugal


CONSELHO EDITORIAL:
Bendita Donaciano
Universidade Pedaggica de Moambique - Moambique
Camilo Ibraimo Ussene
Universidade Pedaggica de Moambique - Moambique
Cludio Alberto Gabriel Guimares
Universidade Federal do Maranho - Brasil
Claudia Machado

Indexador:

Universidade do MInho - Portugal


Carlos Renilton Freitas Cruz
Universidade Federal do Par - Brasil
Diogo Favero Pasuch
Universidade Caxias do Sul - Brasil
Fabio Paiva Reis
Universidade do MInho - Portugal

O contedo dos artigos de inteira responsabilidade dos


autores.

Permite-se a reproduo parcial ou dos artigos aqui


publicados desde que seja mencionada a fonte.

Hugo Alexandre Espnola Mangueira


Universidade do MInho - Portugal
Karleno Mrcio Bocarro
Universidade Humboldt de Berlim - Alemanha
Valdira Barros
Faculdade So Lus - Brasil

Revista Onis Cincia, Vol II, Ano II, N 7 - Tomo II,


Braga, Portugal, Maio Agosto, 2014. Quadrimestral

DIVULGAO E MARKETING:
Larissa Coelho
Universidade do MinhoPortugal

www.revistaonisciencia.com
[email protected]
Tel.: 351 964 952 864

DESIGN GRFICO:
Ricardo Fonseca Brasil

SUMRIO

TOMO II

NOTA DO EDITOR ............................................................................................................. 05


NOTA DA COMISSO ORGANIZADORA ............................................................................ 06
APRESENTAO ............................................................................................................... 08

DIREITO DA CRIANA E ADOLESCENTE


O DIREITO CONVIVNCIA FAMILIAR DE CRIANA E ADOLESCENTE
SILMARA VIANA DA SILVA .............................................................................................. 09

DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE HUMANA


A DISCRIMINAO DE TRABALHADORES PORTADORES DE HIV
ELSA SILVA ....................................................................................................................... 25
DIREITOS HUMANOS EM FIM DE VIDA: O DIREITO AO ACESSO A CUIDADOS PALIATIVOS
GISELA PATRCIA DUARTE DE ALMEIDA ......................................................................... 42
NAVEGAR PRECISO, VIVER NO PRECISO. O DIREITO IDENTIDADE DE GNERO E A
FALCIA DO DETERMINISMO BIOLGICO.
PIETRO VIEIRA SARNAGLIA............................................................................................. 66

DIREITOS HUMANOS E PROTEO INSTITUCIONAL


O PRINCPIO FUNDAMENTAL DO ACESSO JUSTIA EM UM JUDICIRIO MODERNO NO
BRASIL
ADRIANA LEMES FERREIRA ............................................................................................ 83
CONSTITUIO BRASILEIRA, DIREITO COMPARADO LATINO-AMERICANO E HIERARQUIA
DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
FLVIA DE VILA ............................................................................................................. 89

DIREITO AO AMBIENTE: UM DIREITO DE TODOS, UM DEVER DE CADA UM


INS LANDOLT FERREIRA GOMES ABRUNHOSA .......................................................... 106
A HUMANIZAO DO DIREITO CONSULAR
JEISON B. DE ALMEIDA ................................................................................................. 119
OBSERVATRIO DOS DIREITOS HUMANOS: A NO-VIOLNCIA EM AO
LUS FILIPE GUERRA ...................................................................................................... 139
A EXPERINCIA DA DEFENSORIA PBLICA NA EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS DE
CRIANAS
MRIO LIMA WU FILHO ............................................................................................... 146
FMI E O BANCO MUNDIAL A PROMOO OU COERO DA DEMOCRACIA E DOS
DIREITOS HUMANOS
SAYURI ARAGO FUJISHIMA E PIETRO SARNAGLIA .................................................... 169

NOTA DO EDITOR

O conjunto de trabalhos que consubstancia esta 7 edio da revista Onis Cincia,


primeiro e segundo tomo, traduz, em particular, o resultado das reflexes dos
mestrandos, mestres e estudiosos sobre Direitos Humanos, apresentadas na I Jornada
Internacional de Direitos Humanos da Universidade do Minho, na discusso de temas
especficos, reverberando-os na comunidade acadmica em busca de solues para os
graves problemas que afligem esta temtica.
Neste sentido, a Revista Onis Cincia, quando procurada pela Organizao da I
Jornada Internacional de Direitos Humanos para ser parceira neste projecto, com a
publicao dos artigos que nela foram apresentados, imediatamente aceitou a ideia, por
vir ao encontro daquilo a que nos propusemos quando h dois anos lanamos a Revista:
abrir, manter e se consolidar como um frum de reflexo e difuso dos trabalhos de
investigadores nacionais e estrangeiros, contribuindo, nos diferentes campos do
conhecimento das cincias sociais, trazendo para o debate temas e enfoques que
possam enriquecer a discusso sobre os mais diferentes aspectos desse importante
campo das cincias.
Com a publicao desta coletnea, a Revista Onis Cincia pretende sinalizar a
todos os investigadores, mestrandos ou doutorandos, ou queles que esto directamente
envolvidos em investigaes, assim como os responsveis por Programas de Psgraduao e instituies em geral, que estamos abertos, como veculo de comunicao,
para a publicao do resultado de todo o processo de escrita/pesquisa/autoria de
investigaes nas Cincias Sociais.

Ribamar Fonseca Jnior


Editor

NOTA DA COMISSO ORGANIZADORA

A I Jornada Internacional de Direitos Humanos Temas e Perspectivas na


Contemporaneidade foi realizada nos dias 25 e 26 de Outubro de 2012, no Auditrio
Nobre da Escola de Direito, Braga, Portugal. De iniciativa da turma do Mestrado de
Direitos Humanos (MDH) 6 edio, do ano 2011/2012, o evento teve como objetivo a
promoo da teoria e prtica dos temas relacionados com os Direitos Humanos.
Com a colaborao dos autores e todos os presentes buscou-se debater,
medida que os temas foram sendo apresentados, os aspectos e a multidisciplinariedade
temtica existente nos estudos dos Direitos Humanos, divulgando assim comunidade
acadmica e sociedade civil os diversos trabalhos desenvolvidos acerca da temtica
central. Desta forma foi proposto um dilogo entre o mundo acadmico e jurdico, s
demais cincias e sociedade em geral que tambm lidam com as mesmas questes.
Durante o evento se manteve um clima gratificante, tanto no decorrer das
discusses quanto ao longo de dois dias com grande participao de docentes, discentes,
pesquisadores e profissionais em geral, vinculados rea dos Direitos Humanos e da
sociedade civil, provenientes da UMinho e de diversas instituies de ensino superior,
houve tambm uma forte presena da comunidade bracarense. E neste sentido, de
suma importncia a divulgao dos artigos, que compem 7 Edio da Revista Onis
Cincia, para que o leitor possa avaliar a relevncia dos assuntos apresentados e
estudados, para que sirva como contribuio realizao de novas pesquisas.
Agradecemos a todos aqueles que contriburam para a realizao desta I
Jornada Internacional de Direitos Humanos, destacando o apoio dado pela Universidade
do Minho, Escola de Direito e seus docentes, o centro de pesquisa Direitos Humanos
Centro de Investigao Interdisciplinar, a Fundao para Cincia e Tecnologia (FCT), s
editoras Quid Juris, Juru, Professora Ms. Olvia Gomes que nos brindou com o
lanamento de seu livro Violncia Domstica e Migraes, floricultura Flor das

Travessas, as empresas do ramo da restaurao Quinta do Xisto e Mercado das Tapas, a


Braga 2012 Capital Europeia da Juventude, a Guimares 2012 Capital Europeia da Cultura,
Cruz Vermelha Portuguesa Delegao de Braga, design Helena Mota, equipe da
Revista Onis Cincia na figura do seu editor e especialmente aos mestrandos da 6 edio
do Mestrado em Direitos Humanos/UMinho que de diferentes formas nos acompanharam
ao longo da organizao e realizao desta Jornada.
Comisso Organizadora
Braga, outubro de 2014.

APRESENTAO

Os textos que agora se publicam foram apresentados na I Jornada Internacional de


Direitos Humanos organizada na Universidade do Minho.
Esta Jornada, que ocorreu nos dias 25 e 26 de outubro de 2012, no edifcio da
Escola de Direito da Universidade do Minho, surgiu de uma iniciativa dos estudantes do
Mestrado em Direitos Humanos, que quiseram organizar um evento que lhes permitisse
mostrar o trabalho feito no Mestrado em prol do estudo da situao dos direitos humanos
no mundo. Assim que esta iniciativa dos alunos foi comunicada Comisso Diretiva do
Mestrado, foi de imediato por ns acolhida com entusiasmo.
A nossa tarefa consistiu, no entanto, apenas num apoio discreto organizao,
porque o trabalho de realizao desta Jornada, de divulgao e de coordenao dos
trabalhos foi todo dos estudantes, que imprimiram ao evento um dinamismo e uma
juventude muito particulares. O Mestrado em Direitos Humanos tem, por isso, uma dvida
de gratido para com os organizadores, sendo justo prestar aqui uma homenagem ao
trabalho da Larissa Coelho, da Natlia Carvalho, da Jucilaine Biberg e do Pietro Sarnaglia.
Enquanto parte da direo do Mestrado em Direitos Humanos cabe-nos agora a
tarefa de contagiar os estudantes dos anos seguintes com o entusiasmo gerado por estas
Jornadas de modo a conseguir que esta iniciativa adquira alguma regularidade e continue
a ser ponto de encontro e oportunidade de convvio e troca de ideias entre pessoas, de
origens, de formaes e atividades profissionais diversas, que partilham os interesses
comuns.
Andreia Sofia Pinto Oliveira
Diretora do Mestrado em Direitos Humanos

O DIREITO CONVIVNCIA FAMILIAR DE CRIANA E


ADOLESCENTE

SILMARA VIANA DA SILVA 1


[email protected]

RESUMO

A convivncia familiar um direito humano consagrado na Conveno sobre


os Direitos da Criana, acolhido na Constituio brasileira junto a outros importantes
princpios fundamentais dos direitos da criana, que marcam o incio da doutrina da
proteo integral. a partir da vida saudvel no ncleo familiar que crianas e
adolescentes levam para a vida adulta as noes de cidadania, de respeito e de convivncia
harmnica na esfera social. Para que a criana tenha garantido o direito convivncia
familiar e comunitria imprescindvel o apoio da famlia, da comunidade e do Estado,
entretanto, apesar da moderna legislao a pobreza, a desigualdade social e outros fatores,
tem sido barreiras de difcil transposio para efetivao do sagrado direito convivncia
familiar indispensvel para criar, educar, proteger e garantir o desenvolvimento das
crianas em condies de dignidade.

PALAVRAS - CHAVE: Criana; Adolescente; Direito; Convivncia Familiar.

INTRODUO

O presente trabalho aborda a relevncia da concretizao dos direitos de


crianas e adolescentes convivncia familiar e comunitria a partir das transformaes
histricas ocorridas no contexto da sociedade aps o advento da Conveno sobre os
Direitos da Criana, aprovada pela Assemblia Geral da ONU, em 1989, e ratificada por
193 pases numa clara demonstrao universal por mudanas nos direitos da criana.

Bacharel em Direito pelo Centro Universitrio do Norte - UNINORTE, Mestranda em Direitos Humanos
pela Universidade do Minho - UMINHO ([email protected]).

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

No Brasil, a Conveno foi ratificada e positivada em 1990, no mesmo ano em


que foi promulgado o Estatuto da Criana e Adolescente, transformando-se no marco
histrico da mudana de paradigma com o reconhecimento de que a criana um ser muito
especial, com caractersticas biopsicossociais especficas, com delicadeza de corpo e
esprito, merecedor de respeito e dignidade humana, e na linguagem jurdica sujeito de
direitos prprios com o direito a ter sua opinio devidamente considerada.
O reconhecimento da criana e do adolescente como sujeitos de direitos o
resultado de um processo construdo e marcado por transformaes ocorridas na sociedade
e na famlia. Tem origem nas lutas emancipatrias pela garantia dos direitos humanos e
positivados em importantes documentos internacionais vinculativos de proteo e garantia
dos direitos de crianas e adolescentes.
Para que a criana tenha concretizado o direito convivncia atravs dos
princpios estabelecidos na Conveno sobre os Direitos das Crianas e na Constituio
brasileira em condies de exequibilidade, deve-se criar mecanismos de proteo e
garantia para romper com prticas deletrias herdadas da doutrina anterior; devem ser
levado em conta a criana com a qualidade de sujeito de direitos; fazer valer o seu interesse
superior e, sobretudo, dar o devido respeito e o tratamento com a dignidade que se deve ter
todas s crianas, indiscriminadamente, especialmente quelas excludas do direito
convivncia familiar e comunitria.
Apesar de garantidos os direitos em vrios documentos, o Estado tem dado
pouca ou nenhuma importncia na implementao das polticas de fortalecimento da
famlia, como forma de garantir a permanncia da criana no seio da sua famlia. Fatores
como a pobreza e a desigualdade social tem sido um dos grandes responsveis para que
crianas tenham direito a convivncia familiar e comunitria, pois atravs de um
conjunto articulado de aes que a famlia, a sociedade e o Estado, devem exercer e
garantir o cumprimento desses inalienveis e imprescritveis direitos de crianas e
adolescentes.

1. A CRIANA COMO SUJEITO DE DIREITOS

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

10

O reconhecimento de crianas e adolescentes como sujeitos de direitos


resultado de um processo histrico muito recente, mas marcado por profundas
transformaes ocorridas no Estado, na sociedade e na famlia 2.
Conforme Aris, por muitos sculos as crianas foram vistas a partir de um
olhar adultocntrico o adulto considerado o centro do universo com isso cabia criana
e ao adolescente subjugados a um status inferior em satisfazer as vontades dos adultos.Na
idade mdia, por exemplo, a criana era compreendida como um adulto em miniatura, eralhe exigido realizar as mesmas atividades destinadas aos adultos, no se dispensava
nenhum tratamento diferenciado em razo de sua fragilidade fsica, sobre seus ombros
pesavam a mesma carga de trabalho.
Existia um sentimento pouco afetuoso com a criana, durante os primeiros anos
de vida, o adulto brincava com a criana, como se fosse um brinquedinho, ou um animal de
estimao, no se dispensava tratamento atencioso s crianas. Se nessa fase a criana
morresse, como acontecia com muita freqncia, pela falta de cuidados indispensveis,
algumas pessoas poderiam ficar desoladas, no entanto, a regra geral era a de no dar tanta
importncia, pois afinal de contas essa criana seria substituda por outra em seu lugar que
nasceria em breve 3.
A preocupao em reconhecer a criana com a qualidade de um ser especial,
sujeito de direitos, merecedora de proteo e cuidados especiais surgiu efetivamente a
partir da dcada de 80 do sculo XX, apesar de antes constar na Declarao de Genebra de
1924 sobre os Direitos da Criana, na Declarao dos Direitos da Criana adotada pela
Assemblia Geral em 20 de novembro de 1959, reconhecida na Declarao Universal dos
Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos, em particular nos
artigos 23 e 24, e no artigo 10 do Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais.
A Conveno sobre os Direitos da Criana, adotada pela ONU em 1989 e
ratificada pelo Brasil em 1990, destaca-se por ter sido o tratado internacional com o maior
nmero de ratificaes, contando at a presente data com 193 Estados-partes, deixando de
forma bastante clara o desejo por mudanas nos direitos das crianas construdos
lentamente e de forma silenciosa com os documentos que antecede a Conveno.
2

BRASIL. Plano Nacional de Promoo e Defesa dos Direitos de Crianas e Adolescentes Convivncia
Familiar e Comunitria. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Braslia DF, Conanda, 2006.p.28.
3
ARIS,Philippe. A Criana e a Vida Familiar no Antigo Regime. 2. ed., Rio de Janeiro, Antropos , 1981. p.
10.

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

11

Para Piovesan, esse novo paradigma fomenta a doutrina da proteo integral


criana e ao adolescente e consagra uma lgica e uma principiologia prpria voltada a
assegurar a prevalncia e a primazia do interesse superior da criana e do adolescente, e
ressalta a qualidade de sujeitos de direitos, tendo em conta sua peculiar condio de seu
desenvolvimento fsico e moral 4.
A Conveno sobre os Direitos da Criana reafirma o princpio da dignidade da
pessoa humana e traz um catlogo abrangente de direitos a serem garantidos com
prioridade criana e ao adolescente, abarcando todas as reas definidas como direitos
humanos. O reconhecimento da criana e adolescente como sujeitos de direitos, a serem
protegidos e garantidos pelo Estado, com prioridade absoluta em face de outros
importantes titulares de direitos, esclarece Santos, implica no apenas a sua consagrao
como direitos fundamentais, direitos humanos, mas a primazia de proteo tem como
corolrio a valorao e a dignidade da pessoa humana, no caso, pessoas humanas
especiais 5.
Sobre o princpio da dignidade da pessoa humana, vale ressaltar o ensinamento
como escreve Sarlet:
Consagrando expressamente, no ttulo dos princpios fundamentais, a dignidade da
pessoa humana como um dos fundamentas do nosso Estado democrtico (e social) de
direito (artigo 1, inciso III, da Constituio brasileira), o nosso Constituinte de 1988 a
exemplo do que ocorreu em outros pases, na Alemanha -, alm de ter tomado uma
deciso fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificao do exerccio
do poder estatal e do prprio Estado, reconheceu categoricamente que o Estado que
existe em funo da pessoa humana, e no o contrrio, j que o ser humano constitui a
finalidade precpua, e no o meio da atividade estatal 6.

O fato de crianas e adolescentes terem direitos significa que so sujeitos de


direito, titulares das obrigaes assumidas na Conveno, na Constituio e no Estatuto da
Criana e Adolescente (Lei 8.069/90) por parte da famlia, da sociedade e do Estado.
Para proteger a criana e o adolescente na famlia e na comunidade, ou prestarlhes cuidados alternativos temporrios, quando afastados do convvio com a famlia de
origem, conforme consta no Plano de Promoo, Proteo e Defesa dos Direitos de
Crianas e Adolescentes, so, antes de tudo e na sua essncia, para alm de meros atos de
generosidade, beneficncia, caridade ou piedade, o cumprimento de deveres para com a

PIOVESA, Flvia.Temas de Direitos Humano.3. ed., So Paulo, Saraiva, 2009. p. 281.


SANTOS, Eliane Araque, Criana e Adolescente: sujeitos de direitos, Revista Incluso Social, v.2, n. 1,
2007, p. 130- 134.
6
SARLET, Ingo Wolfang.Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de
1988.3 ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004, p. 65.
5

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criana e o adolescente e o exerccio da responsabilidade da famlia, da sociedade e do


Estado 7.

2. A FAMLIA COMO NCLEO ESSENCIAL

A Conveno sobre os Direitos da Criana traz no prembulo a ideia de que a


famlia o lugar privilegiado e o mais adequado ao desenvolvimento da criana e do
adolescente. Esta idia est expressamente contida no artigo 227 da Constituio
Brasileira, ao atribuir dever a famlia, a sociedade, e ao Estado para assegurar, com
absoluta prioridade, o direito convivncia familiar e comunitria, e no Estatuto da
Criana e do Adolescente particularmente nos artigos 19 ao artigo 52, segundo a qual toda
criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua famlia e,
excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a convivncia familiar e comunitria,
em ambiente livre da presena de pessoas dependentes de substncias entorpecentes 8.
A Conveno sobre os Direitos da Criana, adotada em 1989 pelas Naes
Unidas, reconhece, em seu prembulo, que a criana, para o pleno e harmonioso
desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da famlia, em um ambiente
de felicidade, amor e compreenso. A famlia tida, ento, como o grupo fundamental da
sociedade e ambiente natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros,
e em particular das crianas 9.
No Brasil, tanto a Constituio quanto o Estatuto da Criana e do Adolescente
determinam como dever da famlia, em primeiro lugar, da comunidade, da sociedade, e do
Estado assegurar a crianas e adolescentes os direitos fundamentais, incluindo, entre eles, o
direito convivncia familiar e comunitria 10. Esse ltimo expresso da seguinte forma:
toda criana ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua famlia e,
excepcionalmente, em famlia substituta 11.

BRASIL, Presidncia da Repblica, Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Plano Nacional de
Promoo, Proteo e Defesa dos Direitos de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e
Comunitria, Conselho dos Direitos da Criana e do Adolescente, Braslia DF, CONANDA, 2006. p. 28.
8
Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990, que dispe sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente e d outras
providncias.
9
Conveno sobre os Direitos da Criana, adotada pela Assemblia Geral nas Naes Unidas em 20 de
Novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil atravs do Decreto n 99.710, de 21 de Novembro de 1990.
10
Constituio da Repblica Federativa do Brasil, artigo 227,e Estatuto da Criana e do Adolescente, artigo
40.
11
Estatuto da Criana e do Adolescente, artigo 19.

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

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A sociedade brasileira passou no ltimo sculo por profundas transformaes


econmicas e sociais e um grande crescimento demogrfico. A famlia movida por novos
valores sociais tem ganhado diferentes arranjos, entre relaes de consanguinidade,
afinidade e descendncia, tais desideratos no a enfraquecem, no lhe retira a qualidade de
ser a base da sociedade. Sob seus mais variados arranjos a famlia continua a receber a
indispensvel proteo do Estado, com a reafirmao do texto contido no prembulo que
abre a Conveno dos Direitos da Criana, convictos de que a famlia, elemento natural e
fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus
membros, em particular as crianas, deve receber a proteo e a assistncia necessrias
para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade 12.
A partir da dcada de 1950, os novos valores em torno do conceito de famlia
foram introduzidos com a acelerao da urbanizao e o crescente processo de
industrializao. Por sua vez, fatores como as mudanas no iderio feminino de 1960
interferiram profundamente nas relaes culturais de gnero. Acrescente-se ainda o fato de
que a crise econmica, iniciada nos anos 1980, provocou o desemprego em massa do
homem adulto e a consequente intensificao da participao feminina no mundo do
trabalho, causando forte impacto sobre a dinmica intrafamiliar 13.
Diante das mudanas ocorridas na sociedade brasileira, resultou na diminuio
do tamanho das famlias e na diversificao dos arranjos familiares que se observam hoje,
com destaque para o aumento do nmero de famlias monoparentais; famlia composta
pelos cnjuges e filhos de casamentos anteriores; de famlias compostas por membros de
vrias geraes; dos domiclios multifamiliares, com vrias famlias juntas; alm da
tradicional ou natural.
Com relao ao conceito de famlia, h que se ressaltar que a famlia como
padro ou natural raramente corresponde diversidade vivenciada na realidade social.
Entretanto, com frequncia o modelo tradicional de famlia que orienta as polticas e as
leis, e tambm a maior parte dos registros histricos e estudos cientficos 14.
A instituio familiar na contemporaneidade baseada no afeto, pois se
apresenta com uma diversidade de organizaes no contexto histrico, social e cultural, e
12

Conveno Sobre os Direitos da Criana de 1989.


SILVA, Enid Rocha Andrade (coord.).O direito convivncia familiar e comunitria: os abrigos para
crianas e adolescentes no Brasil. Braslia, IPEA/CONANDA, 2004. p.214.
14
FUKUI, Lia. Famlia: conceitos, transformaes nas ltimas dcadas e paradigmas. In SILVA, L. A.
Palma e; STANISCI, S. A. e BACCHETTO, S. Famlias: aspectos conceituais e questes metodolgicas em
projetos. Braslia, MPAS/SAS, So Paulo, FUNDAP, 1998. p. 16-17.
13

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

14

que o modelo ideal de famlia um mito, devido complexidade e riqueza dos vnculos
afetivos. Portanto, seja qual for o arranjo na famlia que a criana cresce e se desenvolve,
o papel da famlia servir, apoiar, confiar, ajudar, orientar e aconselhar uns aos outros.
Assim a famlia poderia ser a equipe afetiva mais forte e satisfatria constante na vida de
cada um dos seus integrantes 15.
A primeira definio que surge dessa realidade social que, alm da relao
parentalidade/filiao diversas outras relaes de parentesco compem uma famlia
extensa, isto , uma famlia que se estende alm da unidade pais/filhos ou da unidade
casal, estando ou no dentro de um mesmo domiclio: meio-irmos, avs, tios e primos de
diversos graus 16.
Os Estados democrticos de direito tem na famlia a unidade bsica da
sociedade e, como tal deve ser privilegiada. Por expresso constitucional a famlia deve
receber proteo e apoios completos independentemente da formao que possam adquirir
ou se ajustar. A proteo, a educao e o desenvolvimento da criana so, em princpio,
responsabilidade da famlia. O Estado e suas instituies devem respeitar os direitos da
criana, assegurar o seu bem-estar e dar assistncia apropriada aos pais tendo em conta e
sem interferncia no modelo de famlia em que vivem, para que possam crescer em um
meio seguro e estvel, em um ambiente de felicidade, amor e compreenso, tendo em
mente que em diferentes sistemas culturais, sociais e polticos existem vrias formas de
famlia.
Diante do exposto, apesar do reconhecimento sociolgico e cultural sobre os
novos arranjos familiares, o reconhecimento jurdico e as polticas governamentais de
incluso das famlias ainda se encontra impedimentos para a concretizao plena dos
direitos das crianas convivncia familiar.

3. A CRIANA: SUAS VULNERABILIDADES E O RISCO SOCIAL

A vulnerabilidade geralmente est ligada a pobreza e as desigualdades sociais,


para Castel a infncia baseia-se na seguinte formula: infncia + pobreza = risco = perigo. A

15

TIBA,
Iami.
Famlia
fechada
para
balano.
UOL,
Educao.
Disponvel
em:
<http://educacao.uol.com.br/> [19/09/2012].
16
NASCIMENTO, Marcio do. Convivncia Familiar e Comunitria uma Questo de Prioridade Absoluta.
Disponvel em: <http://www.mp.go.gov.br/> [18/09/2012]

Revista Onis Cincia, Braga, V. II, Ano II N 7 Tomo II, maio / agosto 2014 ISSN 2182-598X

15

infncia pobre vem se constituindo e sendo compreendida como um problema poltico e


econmico, que exige esforos no sentido do seu ordenamento e controle 17.
Com a entrada em vigor do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) em
1990, introduzida a doutrina da proteo integral, em consonncia com os direitos
assegurados e protegidos na Conveno, superando a doutrina de situao irregular
vigente anteriormente, poca em que no Brasil a infncia era dividida de duas formas, de
um lado crianas inseridas na famlia e de outros menores irregulares, envolvidos com a lei
penal; os rfos e os abandonados em situao de risco, em total vulnerabilidade.
Embora o Estatuto da Criana e Adolescente no utilize o termo risco 18, o
artigo 98, nas disposies gerais relativas s medidas de proteo, postula que as medidas
de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os direitos reconhecidos
nesta lei forem ameaados ou violados, levando a pensar que havendo ameaa de
violao, existe um perigo, uma probabilidade, uma incerteza, ou seja, risco.
Assim a ameaa est calcada em uma suspeita de violao de direitos, tanto
que, na interpretao de Gomes Costa 19, as medidas de proteo especial direcionam-se
queles que se encontram em situao de risco social e pessoal, sublinhando que, neste
caso, estas medidas no se referem ao universo da populao infantojuvenil, mas se
voltam, especificamente, para a chamada infncia em situao de risco, isto , para
aquelas crianas ou adolescentes que se encontram em circunstncias particularmente
difceis da vida.
O ambiente mais adequado para o desenvolvimento intelectual, moral,
educacional e social da criana a famlia. Por isso, o Estado e a Sociedade tm sua
parcela de responsabilidades assumida na Constituio, lhes cabe o dever 20 de promover
programas e aes polticas de proteo a permanncia das crianas na famlia ou sua
reinsero daquelas considerada sem situao de risco pessoal ou social.

17

CASTEL, R. A gesto dos riscos da antipsiquiatria ps-psicanlise. Rio de Janeiro, RJ, Francisco Alves,
1987. p. 195.
18
Conforme Cavallieri, no anteprojeto do ECA, constava a expresso situao de risco, sendo que, no
entender do desembargador Amaral e Silva esta deveria ser retirada, uma vez que repetia a idia de situao
irregular do Cdigo de Menores.
19
COSTA, A.C Gomes da. possvel mudar: A criana, o adolescente e a famlia na poltica social do
municpio. So Paulo, Malheiros, 1993.
20
Art. 227 daContituio da Repblica Federativa do Brasil.

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16

Esses deveres so baseados em quatro importantes princpios fundamentais


destacados da Conveno 21: o princpio da no discriminao, consagrado no artigo 2,
todas as crianas so iguais, independentemente de qualquer considerao de raa cor,
sexo, lngua, religio, opinio pblica ou outra da criana, de seus pais ou representantes
legais, ou da sua origem nacional, tnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou
de qualquer outra situao; princpio do interesse superior, plasmado no artigo 3, segundo
o qual dever os interesses protegidos da criana ter prevalncia sobre outros importantes
sujeitos de direitos; princpio da dignidade vida, sobrevivncia e ao desenvolvimento,
estabelecido no artigo 6; princpio pelo respeito as opinies da criana, contido no artigo
12, a criana livre para exprimir a sua opinio que dever ser devidamente tomada em
considerao, deve ser assegurada a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e
administrativos que lhes digam respeito.
A relao entre vulnerabilidade e direitos para crianas e adolescentes expressa
a ideia da inteno de bloquear as aes que os impedem de experimentar o bem-estar na
infncia. Deste modo, preciso rever as formas de realizao da proteo social,
utilizando-se da segurana jurdica para viabilizar a produo de bem-estar tanto no espao
pblico quanto domstico. Trata-se de direcionar a poltica social para a reduo dos
fatores de vulnerabilidade que ameaam o bem-estar da populao infanto-juvenil.
Entre os fatores de vulnerabilidades das crianas e adolescentes pode-se
destacar quatro 22: a) pobreza; b) baixa escolaridade; c) explorao do trabalho infantil e d)
privao da convivncia familiar e comunitria.
A segurana transmitida na convivncia familiar e comunitria, que, se vivida
de forma saudvel crucial para oferecer as bases necessrias ao amadurecimento e
constituio de uma vida adulta tambm saudvel, uma experincia que deve ser
garantida pelo direito da criana e adolescente. Por isso, a privao do direito
convivncia familiar e comunitria, assim como a pobreza, a excluso da escola e a
explorao do trabalho, traduz-se em crianas e adolescentes desprotegidos.

4. PROTEO CRIANA E ASSISTNCIA ESPECIAL DO ESTADO

21

Estes quatros princpios gerais foram assim definidos pelo Comit dos Direitos da Criana da ONU e
destinam-se a auxiliar a interpretao da Conveno como um todo.
22
UNICEF. O direito de ser adolescente: oportunidade para reduzir vulnerabilidades e superar
desigualdades, Fundo das Naes Unidas para a Infncia. Braslia, DF, 2011. p.29.

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17

Conforme descrito no estudo, h casos em que a criana poder estar em perigo


pessoal ou social, e nestes o Estado e a Sociedade passam a desempenhar papel
importantssimo na vida da criana por fora da responsabilidade assumida pelos Estados
partes na Conveno dos Direitos da Criana e, principalmente, decorrentes dos princpios
adotados na Constituio Brasileira.
Nestes termos, a criana e o adolescente tm o direito proteo de todos, da
famlia, do Estado e da sociedade. Este direito proteo emerge quando seus direitos so
violados ou negligenciados por omisso do Estado, por erro ou falta dos pais ou
responsveis ou quando crianas e adolescentes tm um comportamento que pode lhes
causar um dano ou pr em perigo a sua sade ou risco de morte 23.
No que diz respeito ao princpio da prioridade absoluta, do princpio do
superior interesse e da garantia de outros importantes direitos da criana e do adolescente,
o Estado deve se responsabilizar por oferecer servios adequados e suficientes a preveno
e superao das situaes da violao de direitos, possibilitando o fortalecimento dos
vnculos familiares e scios comunitrios. O apio s famlias e a seus membros devem ser
concretizado na articulao eficiente da rede de atendimento das diferentes polticas
pblicas garantindo o acesso a servios de educao, de sade, de gerao de trabalho e
renda, de cultura, de esporte, de assistncia social, dentre outros 24.
A Conveno contempla no artigo 20, que a criana que for privada do seu
ambiente familiar tem direito a proteo e a assistncia especial do Estado; quer dizer, que
os Estados signatrios devem asseguram a tais crianas uma proteo alternativa nos
termos da sua legislao nacional. A proteo alternativa pode incluir entre outras formas
de colocao familiar: a adoo ou quando se mostrar necessrio a colocao em
estabelecimentos adequados de assistncia as crianas.
No direito brasileiro est previsto no Estatuto da Criana e do Adolescente pelo
menos quatro possibilidades alternativas de convivncia familiar e comunitria que so: a
adoo, a guarda, tutela e o acolhimento institucional 25.

23

DEFENSORIA PBLICA. A Defesa dos Direitos Fundamentais de Criana e do Adolescente. Anais da


Defensoria Especializada de Infncia e Juventude. Belo Horizonte, 2011, p.5.
24
BRASIL, Presidncia da Repblica, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Plano Nacional de
Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria,
Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, Braslia - DF, Conanda, 2006, p.65.
25
ASSOCIAO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS, Adoo passo-a-passo. (Cartilha) Braslia, AMB,
2007. Disponvel em: <http://www.amb.com.br/> [19/07/2012].

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18

Quanto ao instituto da adoo, toda criana ou adolescente cujos pais so


falecidos, desconhecidos ou foram destitudos do poder paternal ou poder familiar tm o
direito a crescer e se desenvolver em uma famlia substituta e, para estes casos, levando em
conta o princpio do superior interesse, deve ser priorizada a adoo que lhes atribui uma
condio de filho e a integrao numa famlia definitiva.
A palavra adotar vem do latim adoptare, que significa escolher, perfilhar, dar o
seu nome a, optar, ajuntar, escolher, desejar. Do ponto de vista jurdico, a adoo um
procedimento legal que consiste em transferir todos os direitos e deveres dos pais
biolgicos (poder parental) para uma famlia substituta, conferindo para os adotados todos
os direitos e deveres de filho, quando e somente forem esgotados todos os recursos para
que a convivncia com a famlia original seja mantida 26.
A adoo uma medida excepcional, conforme artigo 41 do Estatuto da
Criana, que garante o direito fundamental das crianas e adolescentes convivncia
familiar e comunitria, e que deve priorizar as reais necessidades e o interesse superior da
criana e do adolescente prevista no artigo 28 do ECA.
preciso mudar o paradigma tradicional segundo o qual a adoo tem a
finalidade precpua de dar filhos a quem no os tm, pois que no deve estar, centrada no
interesse dos adultos, na ordem jurdica vigente a criana que tem o direito a uma famlia.
Essa medida de garantia de convivncia familiar irrevogvel e irretratvel,
constitui medida de extrema importncia para a formao da criana e/ou do adolescente
que est sendo inserido em um novo ncleo familiar. Ademais, atravs desse processo, o
filho oriundo da adoo passa a ocupar posio de igualdade entre os filhos,
desvinculando-se da famlia biolgica 27.
Com o intuito de agilizar os processos de adoo e minorar o tempo de espera,
mormente para proteo do melhor interesse da criana e do adolescente o legislador no
Estatuto da Criana e do Adolescente previu no artigo 50 a criao de um cadastro
estadual de crianas e adolescentes em condies de serem adotados, e de pessoas e casais
habilitados para a adoo.

26

BRASIL. Presidncia da Repblica, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Plano Nacional de
Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria,
Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, Braslia - DF, Conanda, 2006, p.68.
27
BRASIL.Presidncia da Repblica, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Plano Nacional de
Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria,
Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, Braslia - DF, Conanda, 2006, p.68.

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19

Entretanto, o cadastro tem-se revelado contrrio aos interesses superiores de


crianas, a medida em que so os adotantes quem fazem as escolhas e por circunstncias
diversas tm sido preterido: os grupos de irmos; as crianas maiores de trs anos de idade
e adolescentes; aquelas com deficincia ou com necessidades especficas de sade; os
afrodescendentes ou pertencentes a minorias tnicas, negando a esses grupos de excludos
o direito convivncia familiar e comunitria 28.
O instituto da guarda uma medida legal temporria e revogvel, prevista nos
artigos 33 ao 35 do Estatuto da Criana e do Adolescente, que visa proteger crianas e
adolescentes que no podem ficar com seus pais e que a adoo no se revela no interesse
superior da criana. A guarda a medida de proteo em que, os cuidadores, ou seja, a
famlia em sentido extenso, parentes prximos ou pessoas de extrema confiana, adquirem
a partir da convivncia com a criana ou adolescente, que no pode ficar com os seus
genitores, uma responsabilidade parental temporria.
Na espcie, os vnculos familiares ficam preservados, a guarda no altera a
filiao, tampouco o registro civil, e pode ser modificada a qualquer momento por deciso
judicial. O guardio fica responsvel pela assistncia moral, material e educacional da
criana at completar 18 anos, ou seja, o guardio torna-se seu responsvel legal por prazo
determinado 29.
Pode a guarda da criana ou adolescente decorrer de procedimento prvio
adoo, como um estgio de convivncia, ou em decorrncia de fatos contrrios aos
interesses dos genitores, nos casos fortuitos ou fora maior, com vigncia at cessar os
motivos que justificaram a concesso da guarda ou, ainda, at a criana completar a
maioridade civil 30.
A tutela outro instituto que visa garantir a convivncia familiar criana,
corresponde ao poder institudo judicialmente a qual nomeia um tutor para proteger e
administrar os bens das pessoas menores de 18 anos de idade e que se encontram em uma

28

BRASIL. Presidncia da Repblica, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Plano Nacional de
Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria,
Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, Braslia - DF, Conanda, 2006, p. 68.
29
SCUSSEL, Renato Rodovalho, et all., Adoo Orientaes as Gestantes: Guarda e Tutela, Primeira Vara
da Infncia e da Juventude do Distrito Federal, Braslia/DF, SECOM, s/d. Disponvel em:<
www.tjdft.jus.br/> [10/08/2012].
30
SCUSSEL, Renato Rodovalho, et all., Adoo Orientaes as Gestantes: Guarda e Tutela, Primeira Vara
da Infncia e da Juventude do Distrito Federal, Braslia/DF, SECOM, s/d. Disponvel em:<
www.tjdft.jus.br/> [10/08/2012].

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das situaes de risco listadas pelo artigo 98 do Estatuto da Criana e do Adolescente 31. A
tutela somente pode ser conferida a um adulto civilmente capaz, na falta permanente dos
pais, devido destituio do poder familiar ou falecimento, at que o tutelado complete a
maioridade civil. Encontra fundamento nos artigos 36 a 38 do ECA. A tutela assim como a
guarda, podem ser revogadas 32.
Por fim, a institucionalizao, forma menos indicada de convivncia familiar,
por isso, excepcionalssima, a medida de proteo que indique o afastamento da criana e
do adolescente de seu contexto familiar, por suspenso temporria ou ruptura dos vnculos
atuais do poder parental. Assim, deve ser aplicada apenas em casos onde a situao de
perigo pessoal ou social afete a integridade do desenvolvimento da criana e do
adolescente, quando se deve pensar no afastamento temporrio ou definitivo de sua
famlia de origem 33.
Na famlia, a criana mantm os contatos mais ntimos, j que o primeiro
grupo social a que ela pertence, nenhum outro ambiente que no seja a famlia, por melhor
estruturado que possa parecer, possui condies para o seu desenvolvimento psicossocial,
conforme afirma Symanski, uma instituio no substitui uma famlia, mas com
atendimento adequado, pode dar condies para a criana e o adolescente desenvolverem
uma vida saudvel no futuro 34.
As instituies de acolhimento de crianas e adolescentes podem ser
governamentais ou no-governamentais geridas com recursos pblicos ou privados. Seus
objetivos sociais so exclusivamente destinados a receberem crianas e adolescentes
desprotegidos, vtimas de maus-tratos, em estado de abandono pessoal ou social e
decorrente de destituio judicial do poder paternal 35.
Quando esgotados todos os meios de manuteno da criana e do adolescente
na famlia e na comunidade, o acolhimento em instituio indicado de forma temporria
e com a maior brevidade, para que volte ao convvio familiar de forma clere ou at o
31

Conforme o art. 98 do ECA as medidas de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os
direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaados ou violados: I - por ao ou omisso da sociedade ou do
Estado; II - por falta, omisso ou abuso dos pais ou responsvel; III - em razo de sua conduta.
32
SCUSSEL, Renato Rodovalho, et all., Adoo Orientaes as Gestantes: Guarda e Tutela, Primeira Vara
da Infncia e da Juventude do Distrito Federal, Braslia/DF, SECOM, s/d. Disponvel em:<
www.tjdft.jus.br/> [10/08/2012].
33
RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalizao de crianas no Brasil: percursos histrico e desafios
do presente. Rio de janeiro, Editora PUC Rio, Loyola, 2004.p.48.
34
SYMANSKI, Heloisa. A relao famlia/escola: desafios e perspectivas. Braslia, Plano, 2001.
35
SILVA, Enid Rocha Andrade (coord.).O direito convivncia familiar e comunitria: os abrigos para
crianas e adolescentes no Brasil. Braslia, IPEA/CONANDA, 2004, p.215.

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momento em que os familiares possam recuperar sua capacidade de acolher a criana de


volta, ou ainda, caso isso no seja mais possvel, at que a criana possa ser colocada em
uma famlia substituta 36.

CONSIDERAES FINAIS

Podemos observar no contexto da evoluo da sociedade que a famlia lugar


essencial a humanizao e a socializao de crianas e adolescentes.
Diante de todas as conquistas na seara dos direitos de crianas e adolescentes,
entendemos que existe uma importante e vlida preocupao com a efetivao desses
direitos, atravs da aplicao dos princpios da prioridade absoluta, da proteo integral e
do interesse superior de crianas e adolescentes.
Crianas e adolescentes tm direito a uma famlia, cujos vnculos devem ser
protegidos pela sociedade e pelo Estado. Nas situaes de risco e enfraquecimento desses
vnculos familiares, as estratgias de atendimento devem esgotar as possibilidades de
preservao dos laos afetivos antes da institucionalizao nas entidades de acolhimento.
No caso de ruptura desses vnculos o Estado o responsvel pela proteo das
crianas e dos adolescentes, incluindo o desenvolvimento de programas, projetos e
estratgias que possam levar constituio de novos vnculos familiares e comunitrios,
propiciando as polticas pblicas necessrias para a formao de novos vnculos que
garantam o direito a convivncia familiar e comunitria.
Apesar dos avanos introduzidos pelo Estatuto da Criana e do Adolescente,
observa-se em grande parte a omisso e fragilidade das polticas de fortalecimento dos
vnculos familiares, existe ainda resistncia por parte do governo a implementar a doutrina
da proteo integral que tem a convivncia familiar e comunitria seu marco fundamental.
preciso rever prticas que continuam a violar e negar o direito a convivncia
de crianas e adolescentes, estimulando-se a implementao de polticas pblicas para
fortalecimento dos vnculos familiares e, quando isso no for possvel, a passagem da
criana nas instituies de acolhimento seja efetivamente brevssima no sentido de que
possam ser integradas em uma nova famlia.

36

SILVA, Enid Rocha Andrade (coord.).O direito convivncia familiar e comunitria: os abrigos para
crianas e adolescentes no Brasil. Braslia, IPEA/CONANDA, 2004, p.225.

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24

A DISCRIMINAO DE TRABALHADORES PORTADORES DE HIV


ELSA SILVA 1
[email protected]

RESUMO

No presente artigo comearemos por dizer o que o HIV/VIH, para depois


analisar a doena no contexto laboral, nomeadamente no que diz respeito aos direitos e
deveres do trabalhador infetado e aos direitos e deveres do empregador. A abordagem deste
tema passar essencialmente pela anlise de alguns princpios fundamentais da nossa
Constituio e do Cdigo do Trabalho, desde logo os princpios da dignidade da pessoa
humana, da igualdade, da integridade fsica e moral, da reserva da vida privada e da no
discriminao. Ser debatida qual a posio que o trabalhador infetado deve tomar e se este
pode ou no desempenhar as suas funes sem criar um risco para os que o rodeiam. Por
sua vez, ser tambm debatida qual a posio que o empregador deve adotar e se este pode
exigir informaes da vida privada do trabalhador, nomeadamente no que diz respeito a
questes de sade.

PALAVRAS-CHAVE: VIH/SIDA; direitos e deveres do trabalhador; posio do


empregador; segredo mdico.

I.

INTRODUO

O HIV (Human Immunodeficecy Virus), em portugus VIH (Vrus da


Imunodeficincia Humana), um vrus que enfraquece o sistema imunitrio do corpo
humano, ou seja, o sistema de defesa do organismo vai ficando desprotegido contra as
vrias agresses externas, como infees microbianas e determinados tipos de cancro, e
conduz, por fim, ao aparecimento da AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome), em

Licenciada em Direito pela Universidade do Minho, Ps-Graduada em Direitos Humanos pela


Universidade do Minho, encontrando-se atualmente a escrever a Dissertao com vista obteno do grau de
Mestre em Direitos Humanos, tambm na Universidade do Minho. Inscrita na Ordem dos Advogados como
Advogada-Estagiria desde Dezembro de 2011, encontrando-se atualmente a estagiar num escritrio de
advogados em Fafe.

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portugus SIDA (Sndrome da Imunodeficincia Adquirida), que a ltima fase do vrus


HIV.
Estima-se que atualmente cerca de 38 milhes de pessoas no mundo estejam
infetadas com o vrus VIH/SIDA e, desse nmero, pelo menos 26 milhes so
trabalhadores, com idades compreendidas entre os 15 e os 49 anos, ou seja, adultos em
idade produtiva e reprodutiva.
O preconceito em relao ao VIH faz com que as pessoas tenham receio de
conviver com portadores do vrus, no s o empregador mas tambm os colegas de
trabalho. Existe medo da doena e, consequentemente, do seu portador, motivo pelo qual
a seropositividade tem sido e continua a ser um fator de discriminao entre os seres
humanos.
A discriminao de que os portadores do vrus VIH so alvo vai contra
diversos princpios consagrados na Constituio da Repblica Portuguesa (CRP), no
Cdigo do Trabalho (CT) e no Cdigo Civil (CC), sendo o primeiro desses princpios a
dignidade da pessoa humana, do qual decorrem os princpios da igualdade, da integridade
fsica e moral, da reserva da intimidade da vida privada, e da no discriminao. So,
contudo, muito poucos os pases cujas leis probem especificamente a discriminao com
base no VIH.
Em Portugal, surgiu em 2004 o projeto da Plataforma Laboral contra a SIDA,
como a resposta necessria e urgente dos intervenientes do mundo do trabalho aos
desafios colocados pela infeo pelo VIH/SIDA 2. Este projeto tem vrios parceiros, desde
logo, a Associao Empresarial Portuguesa (AEP), a Associao Industrial Portuguesa
(AIP), a Confederao dos Agricultores de Portugal (CAP), a Confederao do Comrcio e
Servios de Portugal (CCP), a Confederao da Indstria Portuguesa (CIP), a
Confederao do Turismo Portugus (CTP), a Confederao Geral dos Sindicatos
Independentes (CGSI), a Confederao Geral dos Trabalhadores Intersindical (CGTP-IN),
a Confederao Nacional dos Jovens Agricultores de Portugal (CNJAP), a Organizao
Internacional do Trabalho (OIT), a Unio Geral de Trabalhadores (UGT), a Unio dos
Sindicatos Independentes (USI) e a Comisso Nacional de Luta Contra a SIDA (CNLCS).

Cf. SILVESTRE, Antnio Melio (coord.), Plataforma Laboral Contra a SIDA: a resposta do meio
laboral ao VIH-SIDA. 1 ed., Lisboa, Comisso Nacional de Luta Contra a SIDA, 2005, disponvel
em<http://www.act.gov.pt/(ptPT)/SobreACT/CooperacaoParcerias/Paginas/PlataformaLaboralcontraaSida.
aspx> [12.01.2012], p. 10.

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26

Estes parceiros tentam conciliar os interesses do empregador e do trabalhador, de forma a


fazer face infeo pelo VIH/SIDA.
Em contexto laboral, o VIH/SIDA deve ser encarado como qualquer doena
grave existente no local de trabalho. Os trabalhadores infetados no devem ser
discriminados com base no seu estado de sade, pois isso dificulta o seu tratamento e o
combate na preveno do vrus, alm de lesar princpios e direitos fundamentais do
cidado 3. Mais informao sobre a doena aumenta a capacidade dos trabalhadores se
protegerem contra a mesma e pode at levar a uma mudana de atitude e de
comportamento.

II. PROTEO

CONFERIDA

PELA

CONSTITUIO

DA

REPBLICA

PORTUGUESA E PELO CDIGO DO TRABALHO

A Constituio da Repblica Portuguesa, enquanto fonte de Direito do


Trabalho, contempla um conjunto de normas e princpios relativos ao trabalho, que se tm
designado por Constituio laboral ou Constituio do trabalho 4. Estando os princpios
fundamentais do Direito do Trabalho contidos na CRP, esta Constituio laboral aponta a
necessidade de recolocar a pessoa humana no centro do ordenamento jurdico e coloca
indiscutivelmente como questo central do Direito do Trabalho o respeito pelos direitos
dos trabalhadores 5.
As leis laborais no podem violar o disposto na Constituio, devendo ser
interpretadas em conformidade com a mesma. Ora, a nossa Constituio proclama desde
logo a dignidade da pessoa humana, que se encontra consagrada no seu artigo 1. 6. A
dignidade da pessoa humana foi proclamada oficialmente por diversas constituies
europeias aps a Segunda Guerra Mundial, como reaco contra os regimes totalitrios
que precederam o conflito 7, sendo este o valor principal do nosso ordenamento jurdico,
3

Nesse sentido, cf. SILVESTRE, Antnio Melio (coord.), Plataforma Laboral Contra a SIDA, op.
cit.,p.22.
4
Cf. GOMES CANOTILHO, J. J. E MOREIRA, Vital, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada,
Vol. I, 4 ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 702 ss.
5
Cf. ABRANTES, Jos Joo, O Cdigo do Trabalho e a Constituio, in Antnio Moreira (coord.), VI
Congresso Nacional de Direito do Trabalho - Memrias, Coimbra, Almedina, 2004, p. 154.
6
Artigo 1 da CRP: Portugal uma Repblica soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na
vontade popular e empenhada na construo de uma sociedade livre, justa e solidria.
7
Cf. RODRIGUES, lvaro da Cunha Gomes, Consentimento Informado Pedra Angular da
Responsabilidade Criminal do Mdico in Guilherme de Oliveira (coord.), Direito da Medicina I, Coimbra,
Coimbra Editora, 2002, p.16.

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logo os direitos fundamentais, em que essa dignidade se traduz, no podem deixar de


prevalecer sobre outros bens 8.
Outro dos princpios fundamentais do sistema jurdico portugus o princpio
da igualdade, previsto no artigo 13. da CRP, que consagra:
1. Todos os cidados tm a mesma dignidade social e so iguais perante a lei.
2. Ningum pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito
ou isento de qualquer dever em razo de ascendncia, sexo, raa, lngua, territrio de
origem, religio, convices polticas ou ideolgicas, instruo, situao econmica,
condio social ou orientao sexual.
Este princpio contm no seu n. 1 uma clusula geral, segundo a qual a lei tem
de ser aplicada a todos os seus destinatrios do mesmo modo; e no seu n. 2 uma clusula
especfica, uma vez que se baseia em clusulas de desigualdade especficas 9. Mas os
fatores indicados no n. 2 no tm um carcter exaustivo, tm sim carcter meramente
exemplificativo, sendo igualmente ilcitas todas as diferenciaes de tratamento que se
fundem em outros motivos que sejam contrrios dignidade humana.
O princpio da igualdade consiste em tratar por igual o que essencialmente
igual e em tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade no probe
que a lei estabelea distines, probe sim as distines arbitrrias e sem fundamento e
probe tambm que se d um tratamento igual a situaes diferentes, proibindo ainda toda e
qualquer discriminao 10, isto porque o princpio da igualdade ter de ser aplicado mesmo
entre iguais, enquanto proibio de discriminaes que atinjam intoleravelmente a
dignidade humana dos discriminados 11.
Um tratamento diferenciado no ser, partida, inconstitucional se se fundar
numa distino objetiva das situaes, se tiver um fundamento razovel e se obedecer a um
fim legtimo, sendo certo que o tratamento diferenciador tem de ser idneo realizao
desse fim.
Mas o princpio da igualdade encontrava j consagrao na Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, que dispe no seu artigo 1. Os homens

Cf. ABRANTES Jos Joo, O Cdigo do Trabalho e a Constituio, op. cit., p.155.
Cf. QUEIROZ, Cristina M. M., Direitos Fundamentais (Teoria Geral), Coimbra, Coimbra Editora,
2002, p. 109.
10
Nesse sentido, Acrdos 433/87, 181/87, 39/88, 371/89, 169/90, 186/92, 226/92 do Tribunal
Constitucional, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/home.html [17.01.2012].
11
Cf. VIEIRA DE ANDRADE, Jos Carlos, Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de
1976, 4 edio, Coimbra, Almedina, 2010, p. 262.
9

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nascem e so livres e iguais em direitos. As distines sociais s podem fundamentar-se na


utilidade comum, e na Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que dispe
no seu artigo 1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Dotados de razo e de conscincia, devem agir uns para com os outros em esprito de
fraternidade e no seu artigo 7. Todos so iguais perante a lei e, sem distino, tm
direito a igual proteco da lei. Todos tm direito a proteco igual contra qualquer
discriminao que viole a presente Declarao e contra qualquer incitamento a tal
discriminao.
no princpio da igualdade que se funda a proibio da adoo de
comportamentos discriminatrios por parte do empregador e a obrigao de igualdade no
acesso ao emprego e no trabalho, como consagram o artigo 24. do CT no seu n.1, O
trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de
tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, formao e promoo ou carreira
profissionais e s condies de trabalho, no podendo ser privilegiado, beneficiado,
prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razo,
nomeadamente, de ascendncia, idade, sexo, orientao sexual, estado civil, situao
familiar, situao econmica, instruo, origem ou condio social, patrimnio gentico,
capacidade de trabalho reduzida, deficincia, doena crnica, nacionalidade, origem
tnica ou raa, territrio de origem, lngua, religio, convices polticas ou ideolgicas e
filiao sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos; e o
artigo 25., tambm no seu n.1, O empregador no pode praticar qualquer
discriminao, directa ou indirecta, em razo nomeadamente dos factores referidos no n.
1 do artigo anterior, ressalvando contudo no seu n2 que No constitui discriminao o
comportamento baseado em factor de discriminao que constitua um requisito justificvel
e determinante para o exerccio da actividade profissional, em virtude da natureza da
actividade em causa ou do contexto da sua execuo, devendo o objectivo ser legtimo e o
requisito proporcional.
Alm disso, o trabalhador deve ver respeitados os seus direitos de
personalidade, sendo o primeiro destes direitos o direito reserva da intimidade da vida
privada, previsto no n. 1 do artigo 26. da CRP, que estabelece A todos so reconhecidos
os direitos identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, capacidade civil,
cidadania, ao bom nome e reputao, imagem, palavra, reserva da intimidade da
vida privada e familiar e proteco legal contra quaisquer formas de discriminao; o

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artigo 16. do CT, estabelece no n. 1 que O empregador e o trabalhador devem respeitar


os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar
reserva quanto intimidade da vida privada e no n2 O direito reserva da intimidade
da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgao de aspectos atinentes esfera
ntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e
sexual, com o estado de sade e com as convices polticas e religiosas; e ainda no
artigo 80. do CC, que consagra no seu n.1 que Todos devem guardar reserva quanto
intimidade da vida privada de outrem.
A CRP consagra ainda o direito integridade fsica e moral, previsto no artigo
25., cujo n. 1 estabelece A integridade fsica e moral das pessoas inviolvel; direito
este que tambm vem consagrado no artigo 15. do CT, segundo o qual O empregador,
incluindo as pessoas singulares que o representam, e o trabalhador gozam do direito
respectiva integridade fsica e moral.

III. A POSIO DO TRABALHADOR

O candidato a emprego/trabalhador no obrigado a informar o empregador


sobre circunstncias que no interfiram na sua aptido para exercer determinadas funes,
designadamente informaes sobre a sua vida privada (artigo 16. do CT) e sobre a sua
sade (artigo 17. do CT), pois efectivamente, deve considerar-se que existe um direito ao
silncio do candidato ao emprego sobre aspectos da sua vida que no tenham relevncia
directa para a aquisio do posto de trabalho 12. Contudo, o trabalhador tem o dever de
informar o empregador sobre qualquer circunstncia que possa ser prejudicial para o
exerccio das suas funes, como estabelece o n. 2 do artigo 106. do CT, O trabalhador
deve informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestao da actividade
laboral, no s no incio do contrato mas tambm durante a sua vigncia.
A qualidade de seropositivo nem sempre implica a impossibilidade da
prestao de servios, uma vez que o trabalhador pode desempenhar as suas funes sem
criar um risco para as pessoas que o rodeiam. claro que necessrio ter certos cuidados,
principalmente quando a profisso acarreta um maior risco de contaminao, como o
caso de enfermeiros, dentistas ou cirurgies, que se encontram em contacto permanente
com sangue ou fluidos corpreos. Nestes casos, a discriminao ainda maior, seja no
12

Cf. LEITO, Lus Manuel Teles de Menezes, Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2008, p.241.

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aceso ao emprego, no exerccio de funes ou na resciso do contrato de trabalho. A


discriminao de que o trabalhador possa ser alvo deve ser evitada pois em consequncia
da mesma ele pode esconder ainda mais o seu estado de sade e no procurar tratamento
adequado, correndo-se o risco de novas infees.
Daqui decorre que o portador do vrus pode e deve ter uma atitude responsvel,
tomando medidas que previnam e impeam que o vrus se transmita. No entanto, o
portador do vrus pode encontrar-se durante um largo perodo de tempo sem que se registe
qualquer sintoma, apesar de j ser seropositivo, o que faz com que possa haver
transmisso do vrus sem que uma pessoa tenha sintomas 13.
No caso do VIH, os riscos de contgio por parte do trabalhador infetado so
perfeitamente controlveis e este pode exercer diversas atividades. Se o trabalhador est
apto a desempenhar as suas funes, no lhe deve ser vedado o acesso ao emprego ou a
continuidade/manuteno do mesmo. Contudo, o trabalhador infetado com o vrus pode
ver a sua capacidade de trabalho reduzida, o que constitui uma barreira ao normal
desempenho das suas funes 14.

Essenciais para que se crie um ambiente de confiana e para que as pessoas


queiram saber se so portadoras do vrus VIH/SIDA so a garantia da confidencialidade
mdica e a proteo de dados pessoais. O teste/despiste do VIH/SIDA deve resultar sempre
de um consentimento claro e voluntrio e tem de ser realizado por algum qualificado para
o efeito, em condies de estrita confidencialidade. O Cdigo Deontolgico da Ordem dos
Mdicos, revogado em 2008, consagrava no seu artigo 85. o segredo mdico enquanto
condio essencial para a relao mdico-doente; e consagrava no seu artigo 6. a
proibio da discriminao no exerccio da atividade mdica 15.
No caso da medicina do trabalho, o mdico tem uma dupla responsabilidade,
na medida em que tem uma relao com o doente e outra com uma pessoa ou instituio a
quem presta tambm servios clnicos. Nestes casos, embora o mdico se encontre
13

Cf. RUEFF, Maria do Cu, Pessoas com HIV/SIDA e Mdico com Dupla Responsabilidade (MDR),
in DUQUE, Vitor M. Jorge Duque, PEREIRA, Andr Dias, A infeco VIH/SIDA e o Direito, Santarm,
Sida-Net, Associao Lusfona, 2010. Disponvel em <http://www.aidscongress.net/[email protected]>
[10.01.2012], p.58.
14
Cf. SILVESTRE, Antnio Melio, (coord.), Plataforma Laboral Contra a SIDA, op. cit., p.21.
15
Artigo 6 do Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos (revogado em 2008): O mdico deve
prestar a sua actividade profissional sem qualquer forma de discriminao;
Artigo 85 do Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos (revogado em 2008): O segredo mdico
condio essencial ao relacionamento mdico-doente, assenta no interesse moral, social, profissional e tico,
que pressupe e permite uma base de verdade e de mtua confiana.

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vinculado ao doente, encontra-se tambm vinculado a um terceiro (na maior parte dos
casos a entidade patronal), com quem tambm mantm uma relao profissional. Por este
motivo, a relao que se estabelece com um terceiro relativamente relao mdicodoente pode vir a colocar o profissional de sade numa situao de concurso e (ou) conflito
de deveres 16.
O Novo Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos, consagra no seu artigo
97. que O Mdico encarregado de funes de carcter pericial, tais como servios
biomtricos, Juntas de Sade, Mdico de Companhias de Seguros e Mdico do Trabalho,
deve submeter-se aos preceitos deste Cdigo, nomeadamente em matria de segredo
profissional, no podendo aceitar que ponham em causa esses preceitos, daqui
decorrendo que mesmo que o mdico se encontre vinculado a um terceiro deve respeitar o
segredo profissional, sobe pena de incorrer no crime de violao de segredo, previsto e
punido no artigo 195. do Cdigo Penal (CP), que estipula que Quem, sem consentimento,
revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razo do seu estado, ofcio,
emprego, profisso ou arte punido com pena de priso de 1 ano ou com pena de multa
at 240 dias.
Mas, se o mdico se encontrar perante um conflito de deveres, a lei penal prev
a excluso da ilicitude, nos termos do artigo 36., n.1 do CP, No ilcito o facto de
quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurdicos ou de ordens legtimas da
autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que
sacrificar.
Por sua vez, a recolha de sangue para rastreio do vrus VIH/SIDA no mbito de
um exame mdico constitui uma ofensa integridade fsica da pessoa em causa e, se for
efetuada pelo mdico sem o consentimento do paciente, estamos perante o crime de
intervenes e tratamentos mdico-cirrgicos arbitrrios, previsto e punido no artigo 156.
do CP, que consagra As pessoas indicadas no artigo 150. 17 que, em vista das finalidades
16

Cf. RUEFF, Maria do Cu, Pessoas com HIV/SIDA e Mdico com Dupla Responsabilidade (MDR),
op. cit., p.60.
17
Artigo 150 do Cdigo Penal: 1 - As intervenes e os tratamentos que, segundo o estado dos
conhecimentos e da experincia da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com
as leges artis, por um mdico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com inteno de prevenir,
diagnosticar, debelar ou minorar doena, sofrimento, leso ou fadiga corporal, ou perturbao mental, no se
consideram ofensa integridade fsica.
2 - As pessoas indicadas no nmero anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem
intervenes ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo
de grave ofensa para o corpo ou para a sade so punidas com pena de priso at 2 anos ou com pena de
multa at 240 dias, se pena mais grave lhes no couber por fora de outra disposio legal.

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nele apontadas, realizarem intervenes ou tratamentos sem consentimento do paciente


so punidas com pena de priso at 3 anos ou com pena de multa.
Os testes e exames mdicos, em contexto laboral, vm regulados no artigo 19.
do CT e so objeto de vrias restries, pois fazem parte da esfera da vida ntima do
trabalhador, sendo que o seu acesso ou divulgao no viola apenas o direito
privacidade, mas tambm a integridade moral ou fsica do trabalhador 18. O artigo 19.,
n.1 consagra que Para alm das situaes previstas em legislao relativa a segurana e
sade no trabalho, o empregador no pode, para efeitos de admisso ou permanncia no
emprego, exigir a candidato a emprego ou a trabalhador a realizao ou apresentao de
testes ou exames mdicos, de qualquer natureza, para comprovao das condies fsicas
ou psquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a proteco e segurana do
trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigncias inerentes actividade o
justifiquem, devendo em qualquer caso ser fornecida por escrito ao candidato a emprego
ou trabalhador a respectiva fundamentao, daqui resultando a proibio de realizao
de testes ou exames mdicos, de qualquer natureza, para comprovao das condies
fsicas ou psquicas do candidato a emprego ou do trabalhador, ou seja, no lcito
estabelecer testes que destinem a verificar se o trabalhador ou no seropositivo.
Contudo, devemos ter em ateno a parte do artigo que diz quando
particulares exigncias inerentes actividade o justifiquem, que o caso de atividades
mdicas ou de enfermagem, como reconhece o Conselho Nacional de tica Para as
Cincias da Vida quando defende que,
[na] prtica de certas actividades e em determinadas situaes, o teste da SIDA
deve ser exigvel s seguintes pessoas: profissionais de sade, que entrem em
contacto directo com rgos ou lquidos biolgicos humanos; dadores de sangue,
de esperma, de tecidos e rgos, grvidas, sobretudo as que pela sua histria
clnica (por exemplo de prostituio ou de toxicodependncia), se revelem de
alto risco e com probabilidade de terem sido infectadas pelo vrus HIV 19.

Por sua vez, artigo 19., n.3 do CT consagra que O mdico responsvel pelos
testes ou exames mdicos s pode comunicar ao empregador se o trabalhador est ou no
apto para desempenhar a actividade, sendo tambm nesse sentido o n.2 do artigo 17. do
CT, mas esta regra pode ser ultrapassada se o trabalhador autorizar, por escrito, a
divulgao de informaes relativas ao seu estado de sade.

18
19

Cf. LEITO, Lus Manuel Teles de Menezes, Direito do Trabalho, op. cit., p. 171.
Relatrio Parecer sobre a Obrigatoriedade dos Testes da SIDA 16/CNECV/96.

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O Cdigo Penal de 1982 inseriu o consentimento do ofendido no elenco de


causas que excluem a ilicitude (artigo 31., n.2, al .d) e artigo 38.) 20, mas traou como
seus pressupostos formais a capacidade natural para consentir, a seriedade e liberdade
do consentimento e a anterioridade do consentimento ao acto 21. Tambm o Novo
Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos estabelece no seu artigo 38. o dever de
esclarecimento do paciente, devendo o consentimento ser sempre livre, esclarecido e atual.
Mas o consentimento informado est consagrado, desde logo, no artigo 3., n.2 da Carta
dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia, que estabelece No domnio da medicina e
da biologia, devem ser respeitados, designadamente: - o consentimento livre e esclarecido
da pessoa, nos termos da lei; e no artigo 5. da Conveno dos Direitos do Homem e a
Biomedicina, que estabelece Qualquer interveno no domnio da sade s pode ser
efectuada aps ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e
esclarecido.

IV. A POSIO DO EMPREGADOR

O empregador, na escolha do trabalhador, deve ter em considerao a sua


aptido para exercer determinada funo, no devendo atender a outros elementos que no
tenham qualquer relao com a funo a ser desempenhada. Deve tambm adotar medidas
contra a discriminao em relao aos trabalhadores portadores de VIH, partindo do
princpio de que o trabalho no gera risco de contaminao ou transmisso do VIH, e no
deve permitir qualquer prtica que discrimine os trabalhadores infetados pelo vrus. Um
trabalhador infetado pelo VIH no deve ser tratado de forma menos favorvel em relao,
por exemplo, a outro trabalhador que sofra de uma doena grave, nomeadamente no que
diz respeito a remunerao, subsdios e adaptao do local de trabalho, sendo certo que,
como defendido na Plataforma Laboral Contra a SIDA,

20

Artigo 31., n.2, al.d) Cdigo Penal: 2 - Nomeadamente, no ilcito o facto praticado: () d) Com o
consentimento do titular do interesse jurdico lesado.
Artigo 38. do Cdigo Penal: 1 - Alm dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento
exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurdicos livremente disponveis e o facto no ofender
os bons costumes. 2 - O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade sria,
livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado at
execuo do facto. 3 - O consentimento s eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e possuir
o discernimento necessrio para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta.
21
Cf. RODRIGUES, lvaro da Cunha Gomes, Consentimento Informado Pedra Angular da
Responsabilidade Criminal do Mdico, op. cit., pp. 26/27.

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[os] governos, os empregadores e as organizaes de trabalhadores devem tomar


todas as medidas necessrias para garantir que os trabalhadores infectados pelo
VIH, ou doentes de SIDA e suas famlias, no sejam excludos da plena
proteco e prestaes dos sistemas de Segurana Social e de regimes
profissionais existentes 22.

A intromisso do empregador na vida privada do trabalhador no admissvel,


sendo somente lcitas actuaes que visem garantir a segurana, higiene e sade do
trabalhador e colegas de trabalho 23.
Daqui decorre que o empregador deve respeitar a reserva da intimidade da vida
privada do trabalhador, como denota, desde logo, o n. 2 do artigo 16. do CT (j referido
anteriormente); e a alnea a) do n. 1 do artigo 17. do CT O empregador no pode exigir
a candidato a emprego ou a trabalhador que preste informaes relativas: sua vida
privada, salvo quando estas sejam estritamente necessrias e relevantes para avaliar da
respectiva aptido no que respeita execuo do contrato de trabalho e seja fornecida por
escrito a respectiva fundamentao, ou seja, o empregador no pode exigir ao trabalhador
informaes sobre a sua vida privada, a no ser que estas sejam relevantes para avaliar a
sua capacidade para cumprir as funes que lhe esto destinadas. O trabalhador no pode
ser discriminado devido aquisio de certas doenas que no perturbem a prestao do
seu trabalho, encontrando-se o seu estado de sade protegido, a no ser que se revele
prejudicial para a prestao do seu trabalho. O estado de sade do trabalhador faz parte da
sua vida ntima, merecendo por isso uma proteo absoluta, a no ser que tal informao
seja absolutamente necessria para avaliar a aptido do trabalhador para desempenhar
determinada funo.

O empregador deve respeitar os princpios da igualdade, da no discriminao


e da confidencialidade e deve zelar para que o ambiente de trabalho seja saudvel, tendo
em considerao a preveno, assistncia e apoio; no s em relao ao trabalhador
infetado mas em relao a todos os outros. dever do empregador garantir a segurana, a
higiene e a sade do trabalhador no local de trabalho, em observncia do disposto no n. 2
do artigo 281. do CT, O empregador deve assegurar aos trabalhadores condies de
segurana e sade em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as
22

Cf. SILVESTRE, Antnio Melio (coord.), Plataforma Laboral Contra a SIDA, op. cit., p.110.
Cf. MARTINEZ, Pedro Romano, Consideraes Gerais Sobre o Cdigo do Trabalho in Antnio
Oliveira (coord.), VI Congresso Nacional de Direito do Trabalho - Memrias, Coimbra, Almedina, 2004, p.
51.
23

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medidas necessrias tendo em conta princpios gerais de preveno, o que tem como
objetivo prevenir os riscos profissionais e promover a sade dos trabalhadores.
No exerccio de qualquer atividade profissional existe um certo risco, por mais
pequeno que seja, de infeo por VIH, cabendo ao empregador, ponderando os diferentes
bens em jogo, adotar medidas preventivas. Nas atividades em que h um maior risco de
contgio tem de haver uma grande ponderao: por um lado, existe o direito dos
trabalhadores sua intimidade e ao acesso e estabilidade no emprego, mas, por outro lado,
h tambm a necessidade de evitar a transmisso do vrus. As profisses que comportam
risco de contgio so aquelas que envolvem uma alta probabilidade de contgio, como o
caso de profisses mdicas. Nestes casos, admite-se uma conduta preventiva, embora no
se admita, como bvio, uma conduta discriminatria.

V. CASOS CONCRETOS

Analisaremos em primeiro lugar um caso em que foi diagnosticada


seropositividade para o VIH a um mdico-cirurgio 24 pelos servios da medicina do
trabalho, tendo sido tal situao comunicada Diretora do Hospital em que o mesmo
exercia as suas funes. de questionar aqui, desde logo, a legitimidade de submeter o
mdico-cirurgio a um teste para o VIH no mbito da medicina do trabalho, tendo em
considerao o seu direito reserva da intimidade da vida privada, consagrado nos artigos
26. da CRP, 80. do CC e 16. do CT. No entanto, como estamos perante um profissional
de sade, que poder entrar em contacto com rgos ou lquidos biolgicos humanos, uma
vez que estamos perante um mdico-cirurgio, poderia admitir-se a realizao de tal teste.
No se sabe se o mdico da medicina do trabalho acedeu ao estatuto serolgico
do mdico-cirurgio com ou sem o consentimento deste, caso em que incorreria no crime
de intervenes mdico-cirrgicas arbitrrias, previsto e punido no artigo 156. do CP, ou
se foi o mdico-cirurgio que deu o seu consentimento para a realizao do teste. De
qualquer das formas, o mdico da medicina do trabalho estava obrigado ao sigilo mdico, o
que no respeitou, indo comunicar Diretora do Hospital o estatuto serolgico do mdicocirurgio, violando assim o disposto no artigo 19., n.3 do CT e o disposto nos artigos 67.
e 68. do Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos, entretanto revogado, sendo tal
24

Nesse sentido, Cf. DIAS PEREIRA, Andr Gonalo, Cirurgio Seropositivo. Do Pnico ao Direito,
Lex Medicinae Revista Portuguesa de Direito da Sade 4:8 (2007). Disponvel em
<https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/2797> [10.01.2012].

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conduta punida nos termos dos artigos 192. e 195. do CP. O mdico da medicina do
trabalho apenas deveria informar a Diretora do Hospital da aptido ou no aptido do
mdico-cirurgio para exercer as suas funes, embora a ilicitude da sua conduta possa ser
excluda tendo em ateno o conflito de deveres em que o mdico da medicina do trabalho
se encontrava: de um lado, o dever se sigilo mdico relativamente ao estatuto do mdicocirurgio; de outro lado, o dever de zelar pelas melhores condies de funcionamento da
instituio de sade onde desempenha a sua actividade 25.
O mdico-cirurgio, alm de exercer funes cirrgicas exercia tambm
funes de investigao e ensino, de gesto e administrao e ainda servios de consulta
mdica, sendo certo que o seu estatuto serolgico em nada influenciava o exerccio destas
ltimas.
Cabia ento ao Conselho de Administrao do Hospital apurar quais as funes
que o mdico-cirurgio estaria ou no apto a desempenhar, de forma a no colocar em risco
a sade dos pacientes. O Conselho de Administrao tem tambm de respeitar o dever de
confidencialidade e o dever de no discriminao, devendo ainda promover e apoiar a
requalificao profissional do jovem mdico, nomeadamente no reforo das suas
competncias na rea da consulta mdica, nas tarefas de ensino e investigao e nas
funes de gesto e administrao da sade 26.
Num segundo caso, analisaremos a situao de um cozinheiro (doravante
designado por A) que comeou a trabalhar num hotel em 1997, exercendo no incio as
funes de cafeteiro e passando mais tarde a exercer funes de cozinheiro. Em Outubro
de 2002 foi-lhe diagnosticada tuberculose, motivo pelo qual esteve cerca de um ano de
baixa mdica. Em Dezembro de 2003 voltou ao servio e foi enviado ao mdico do
trabalho do hotel, que pediu ao mdico assistente do cozinheiro mais dados sobre a sua
situao clnica. O mdico assistente informou o mdico da medicina do trabalho de que A
era VIH positivo, mas que estava apto para retomar a atividade laboral e no apresentava
qualquer perigo para os colegas. No entanto, o mdico da medicina do trabalho
considerou-o inapto para exercer as suas funes a ttulo definitivo.
Em 2004, a gerncia do hotel enviou uma carta a A comunicando-lhe a
caducidade do contrato de trabalho por inaptido para o exerccio das funes

25

Cf. DIAS PEREIRA, Andr Gonalo, Cirurgio Seropositivo. Do Pnico ao Direito, op. cit., p.10.
Cf. DIAS PEREIRA, Andr Gonalo, Cirurgio Seropositivo. Do Pnico ao Direito, op. cit.,pp.
22/23.
26

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correspondentes respetiva categoria profissional. A considerava que tal despedimento


havia sido ilcito, pois encontrava-se totalmente apto para exercer as funes de cozinheiro.
Segundo a gerncia do hotel, quando A se apresentou ao servio demonstrava
sinais de grande debilidade fsica, o que no lhe permitia desempenhar as suas funes,
motivo pelo qual foi enviado ao mdico da medicina do trabalho, que o considerou inapto
para exercer as suas funes, como j foi referido. No tendo outras funes que pudesse
atribuir a A, a gerncia entendeu que o contrato havia caducado pela impossibilidade deste
desempenhar as suas funes deciso esta que nada teve a ver com o facto de A ser VIH
positivo, facto que a gerncia do hotel desconhecia.
A recorreu ento aos tribunais de forma a contestar este despedimento,
chegando a causa ao Supremo Tribunal de Justia 27. Contudo, todas as instncias
entenderam no haver qualquer discriminao em relao a A em virtude do seu estatuto
serolgico nem qualquer ofensa sua integridade pessoal, uma vez que o contrato de
trabalho havia efetivamente caducado em virtude da impossibilidade de A desempenhar as
suas funes.

VI. CONSIDERAES FINAIS

Embora o vrus VIH se tenha verificado inicialmente em homossexuais,


consumidores de drogas injetveis e pessoas submetidas a vrias transfuses de sangue, o
certo que o vrus pode afetar qualquer pessoa, independentemente da idade, raa, sexo,
estado clnico e hbitos sexuais. O vrus VIH afeta pessoas de todos os continentes e dos
mais diversos setores da sociedade.
At data, a medicina ainda no encontrou um tratamento que se mostre eficaz
no combate a este vrus, embora em alguns portadores do VIH a doena no se manifeste
to rapidamente e estes sobrevivam durante muito tempo.
A transmisso do vrus d-se atravs do contacto sexual (smen), de
transfuses de sangue e de seringas infetadas, embora j se tenha verificado a presena do
vrus na saliva, no suor e nas lgrimas. Pode ocorrer a transmisso vertical, de me para
filho, durante a gestao ou na fase da amamentao. A infeo pelo VIH/SIDA no se
transmite por contactos laborais, sendo certo que o contacto social com pessoas infetadas
no implica risco de contgio. O vrus no se transmite atravs do trabalho nem da partilha
27

Acrdo do STJ de 24.09.2008, Documento n SJ20080924037934.

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de instalaes de trabalho, no se transmite atravs da partilha de roupas, de refeitrios ou


de casas de banho, nem mesmo atravs de abraos ou beijos. A relao diria com pessoas
infetadas pode ser perfeitamente normal, no importando qualquer risco de contgio se
certos cuidados forem tomados.
Esse mais um motivo para que o trabalhador infetado no seja discriminado e
para que se faam os possveis para que este se integre no local de trabalho. Isto porque
devemos encarar o portador do vrus HIV/SIDA como uma pessoa portadora de uma
deficincia irreversvel no sistema de imunodeficincia humana, que necessita de se
integrar, cabendo tambm ao Estado o desenvolvimento de uma pedagogia que sensibilize
a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com tais cidados 28.
certo que, na formao do contrato de trabalho, tanto o empregador como o
trabalhador devem reger a sua conduta pelas regras da boa-f, e se o trabalhador sabe ser
portador do vrus VIH, embora no seja obrigado a informar a entidade patronal sobre o
seu estado de sade, deve faz-lo. Essa atitude, por si s, criaria um vnculo de confiana
entra as partes, embora o medo da reao da entidade patronal possa levar o trabalhador a
esconder o seu estado. O sentimento de preconceito em relao aos portadores do vrus
VIH frequente, mas se as pessoas estiverem informadas sobre a doena, isso no s vai
prevenir novas infees como vai atenuar a discriminao existente.

BIBLIOGRAFIA
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28

Cf. RUEFF, Maria do Cu, Segredo Mdico e VIH/SIDA: Perspectiva tico-Jurdica, Acta Mdica
Portuguesa, v. 17, n. 6, 2004, p. 5. Disponvel em: <http://www.actamedicaportuguesa.com/pdf/200417/6/451-464.pdf> [8.01.2012].

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DIREITOS HUMANOS EM FIM DE VIDA: O DIREITO AO ACESSO


A CUIDADOS PALIATIVOS

GISELA PATRCIA DUARTE DE ALMEIDA 1


[email protected]

RESUMO

No decorrer da investigao, pode-se constatar que na sociedade portuguesa existe um


longo caminho a percorrer na sensibilizao para as questes relacionadas com o fim da
vida humana, as quais no podero ser apenas remetidas para o contexto dos cuidados de
sade, mas debatidas na comunidades locais. Considera-se que existe a necessidade de uma
educao para a morte e para a sensibilizao da sociedade para a importncia do respeito
pelos direitos humanos em fim de vida. Sendo que, no meu ponto de vista, em Portugal
necessitamos de construir uma cidadania participante na coisa pblica, o cidado deve ser
visto como a fora motriz da mudana. Neste sentido, as redes de vizinhana e amizade,
num momento de crise econmica, no podem resvalar para a crise da cidadania.

PALAVRAS-CHAVE: Vida; Morte; Direitos Humanos em Fim de Vida; Cuidados


Paliativos; Dignidade Humana; Dilemas ticos.

1. DILEMAS TICOS EM FIM DE VIDA


Asclpio ensinava que a medicina s existe para as pessoas
que, por sua natureza e regime, tem sade e adoecem por contrair
uma doena. Ela libertava-as das doenas ordenando-lhes que
no mudassem a sua vida habitual. Quanto aos indivduos
inteiramente minados pela doena, no tentava prolongar-lhes a
sua vida miservel. Naqueles em cujos corpos existia um estado de
molstia permanente Asclpio no propunha sequer qualquer tipo
de tratamento, com infuses a purgas A medicina no teria
capacidade para ajudar ainda que fossem mais ricos que o Rei de
Midas
(Plato, Republica, Livro III)

Ps-Graduada em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da


Universidade de Coimbra. Mestranda em Direitos Humanos pela Escola de Direito da Universidade do
Minho.

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Os dilemas ticos relacionados com o prolongamento artificial da vida humana


so questes muito importantes para o progresso da civilizao.
Os avanos tecnolgicos nos domnios da biomedicina permitiram que o curso
do fim de vida se modificasse, neste sentido, a natureza deixou de constituir o nico arbitro
entre o viver e o morrer (ARCHER, 2001).
Com o consecutivo avano das novas tecnologias aplicadas rea da sade, a
possibilidade de prolongamento da vida ir continuar a crescer, o que levar ao aumento
dos dilemas criados pela extenso do sofrimento humano.
Na actualidade necessrio interrogarmo-nos sobre a possibilidade de
manipulao da vida humana, com o problema de chegar ao inadequado domnio da
tcnica e a um subsequente desmoronamento da tica.
Existe um longo trabalho a fazer a nvel social, para levar crescente
compreenso de que morrer com dignidade uma decorrncia do viver dignamente e no
meramente sobreviver. No se pode continuar a ignorar a existncia de dor, do sofrimento
e do modo de morrer.
Perante esta pequena exposio, interessa reflectir na questo do avano da
tecnologia aplicada ao ser humano relacionada com a possibilidade de permitir uma melhor
qualidade de vida a cada ser humano, visto como um ser Biopsicossocial. Poderemos
utilizar a tcnica de forma indiscriminada e sem reflexo sobre a situao especfica de
cada pessoa? Estaremos a contribuir para uma melhor qualidade de vida?

1.1. O DIREITO VIDA

O direito vida aquele que assume o primado perante todos os outros direitos
e considerado como um limite aos avanos cientficos.
A Constituio da Repblica Portuguesa assume no Ttulo II- Direitos,
Liberdades e Garantias, no seu Captulo I- Direitos, Liberdades e Garantias pessoais, como
valor democrtico do Estado o Direito Vida (Artigo 24.), na alnea 1 refere que a vida
humana inviolvel. Referindo na alnea 2 do mesmo artigo que em caso algum haver
pena de morte.
A Declarao Universal dos Direitos do Homem refere no artigo 3. que Todo
o Homem tem direito Vida, liberdade e segurana pessoal. Toda a pessoa tem direito
vida, durante o ciclo vital, independentemente dos momentos ou dos estdios em que se

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encontra. Devendo ser atribuda vida de qualquer pessoa igual valor, devendo o cuidado
pessoa ser isento de qualquer discriminao econmica, social, poltica, tnica, ideolgica
ou religiosa (Cdigo Deontolgico do Enfermeiro).
Refere-se ainda nesta matria o artigo 2. da Conveno para a Proteco dos
Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Relativamente s aplicaes da
Biologia e da Medicina, adoptada pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa em
Novembro de 1996 e posteriormente ratificada em Portugal considera que os interesses e
o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre os interesses da cincia e da
sociedade.
Reconhecer a dignidade da pessoa humana exige o respeito pelos seus direitos,
perspectivados na sua indivisibilidade. Este conceito encontra-se ainda intrinsecamente
ligado ao dever de uma crescente humanizao dos Cuidados de Sade.

1.2. O DIREITO SADE

A Organizao Mundial de Sade (OMS), em 1948, definiu sade como sendo


um estado completo de bem-estar fsico, mental e social e no unicamente como a ausncia
de doena ou enfermidade.
Este conceito de sade da OMS historicamente conceituado, teremos tambm
de considerar que a cada poca corresponde o seu prprio conceito de sade, reflectindo
neste os conhecimentos biolgicos da poca, a relao da pessoa com o corpo e o grau de
representao de cada funo do corpo. Temos tambm de ter em considerao o
entendimento que a sociedade tem sobre a morte e da forma como esta se comporta perante
a mesma.
O conceito de doena pode ser entendido luz de um determinado estdio de
conhecimento mdico. A doena construda a partir de um conjunto de sintomas
manifestado pelas pessoas.
Este direito encontra-se consagrado na Constituio da Repblica Portuguesa,
no artigo 64., no nmero 1, referindo que Todos tm direito sade e o dever de a
defender e promover.

1.3. A VIDA E A MORTE COMO COMPONENTE DA VIDA HUMANA

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A morte constitutiva da vida, desde que nascemos que


estamos a morrer.
(Sneca)

Falar do conceito de morte na sociedade actual como sendo uma sociedade de


bem-estar e hedonista no se trata de uma tarefa fcil (BRITO, 2002). Este autor reflecte
aqui a ideia de que a morte foi como que afastada da vida, da sociedade algo que se
remete para um lugar afastado da sociedade feliz e de consumo. interessante ainda a
seguinte reflexo, h duas dcadas atrs a grande maioria das pessoas morria em casa, na
sua camaactualmente o mais comum morrer na cama de um hospital. J dizia o poeta:
Mudam-se os tempos/ Mudam-se as vontades.
Muitos consideram que na vida de todos os dias no de deve ter em conta a
morte porque o agir exige esforo, e para qu esforar-me se um dia hei-de ser em p,
cinza e nada (BRITO, 2002, citando Florbela ESPANCA).
A morte algo inapreensvel, que no dominamos e os temas desta natureza
no so fceis de encarar porque nos escapam. Com a modernidade e o processo de
racionalizao e desencantamento, como nos diz Max Weber, em que se privilegia a razo
instrumental, as pessoas habituaram-se a ter tudo mo, a ter tudo ao seu dispor. E se algo
resiste ao esforo do domnio humano e no se submete aos projectos, ento a inicia-se um
processo que leva sua desvalorizao e apagamento, tudo se faz para que se deixe de
contar, de existir. Como o caso da morte, em que se pretende reduzir a um problema
mdico a ser tratado (BRITO, 2002).
Como dizia Kant, todo o conhecimento tem a sua origem na experincia,
embora tal no signifique que o conhecimento dependa estritamente da experincia. Posto
isto, podemos dizer que temos experincia da morte? Temos a experincia da morte dos
outros, pois na morte dos outros que revemos a nossa mortesendo a nica que podemos
tematizar.
Importa assim abordar sucintamente o conceito de morte como sendo a
cessao das funes irreversveis das funes do tronco cerebral, sabe-se que a mesma
pode acontecer no fim de um processo de doena mais ou menos longo, ou de forma
sbita.
Referindo ainda que a paragem da funo cardiocirculatria e respiratria, por
si s, no significa a morte de uma pessoa (Conselho Nacional de tica e das Cincias da
Vida no seu Parecer 10/95).

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A morte corporal a desorganizao das clulas, dos tecidos e dos rgos pela
falncia dos grandes sistemas de integrao e associao, o que sugere a importncia da
prevalncia e o reforo das relaes humanas e interpessoais, nas fases do processo da
morte, assim como ao longo de toda a vida (SERRO, 1998, citado por BRITO, 2002).
De acordo com Brito (2002), a realidade da generalidade dos hospitais
portugueses constrangedora, no existindo espao nem privacidade no processo de morte.
E por outro lado, ocultado ao doente que este se encontra em fase terminal, no sabendo
lidar com ele, as relaes com os familiares e com os profissionais de sade em muitas
situaes quebrada. O que leva a que a morte no seja a consumao da vida, mas antes a
extino da vida.
Posto isto, remete-se para reflexo do leitor este ponto dizendo que,
actualmente, humanizar o processo de morte um bem necessrio para que se saiba
distinguir entre o curar e a paliao dos sintomas.

1.4. A CINCIA E A REANIMAO


A Reanimao Cardiorrespiratria e a Deciso de No Reanimar

Com o avano das tecnologias aplicadas Medicina, nomeadamente na


especialidade de Medicina Intensiva, chegamos a um patamar de conhecimento em que nos
permitido salvar a vida de pessoas que se encontravam num processo irreversvel de
morte.
No ano de 1965, Jude e Elam defenderam que o fundamento da reanimao
cardio- respiratria (RCR) era o doente ser recupervel, desde esta data as suas
indicaes tm sofrido grandes modificaes: inicialmente concebida para vtimas de
acidentes agudos, rapidamente resvalou para uma teraputica sistemtica e indiscriminada
de todos os doentes em paragem cardio-respiratria (PCR) (SOCIEDADE PORTUGUESA
DE PEDIATRIA, 2006).
Os novos avanos criaram alguns problemas ticos, entre os quais, a
determinao de morte cerebral e a legitimidade para iniciar ou suspender os meios de
manuteno das funes vitais.
A Comisso de Cuidados Intensivos do Hospital Geral de Massachussets, em
1970, definiu o conceito de deciso de no reanimar (DNR), que culminou em 1974 com a
proposta de uma poltica de DNR pela Associao Americana de Cardiologia, procurando

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clarificar e uniformizar a actuao clnica (SOCIEDADE PORTUGUESA DE


PEDIATRIA, 2006).
Recentemente, o Conselho Nacional de tica e das Cincias da Vida no seu
Parecer 11/95 relativamente DNR, que tica a interrupo de tratamentos
desproporcionados e ineficazes mais ainda que causam incmodo ou sofrimento ao doente,
pelo que essa interrupo, ainda que v encurtar o tempo de vida, no pode ser considerada
eutansia.
Segundo o princpio bsico da reanimao todas as vtimas de uma paragem
cardio-respiratria devem ser reanimadas, a menos que haja uma deciso prvia para no
reanimar. Contudo, em condies ideais em reanimao, s se tentariam reanimar doentes
com elevada probabilidade de retorno a uma vida de relao digna e funcionalmente
equiparvel que tinha antes da situao de paragem cardio-respiratria (CARNEIRO,
2001).
O European Resuscitation Council (2006) refere que menos de 20% das
vtimas de paragem cardiorrespiratria (PCR) em meio hospitalar tero alta para o
domiclio. Por outro lado, a maioria dos doentes sobrevivem quando tiveram uma PCR
presenciada.
O European Resuscitation Council (2006), no que se refere deciso de no
reanimar, refere que existem situao de no reanimar quando: 1- O doente tenha
manifestado previamente a vontade de no ser reanimado; 2- existncia de uma elevada
probabilidade de a vtima no sobreviver mesmo se forem institudas manobras de
reanimao.
Sublinha ainda que os profissionais no reconhecem facilmente as situaes,
em que a tentativa de reanimao no est indicada, pelo que muitas reanimaes so
inapropriadas.
Este foi o problema que identificou-se na prtica, considerando que em muitas
situaes a reanimao ftil.

1.5. ASPECTOS LEGAIS

Neste captulo pretende-se fazer referncia legislao considerada pertinente


para nortear os profissionais de sade na sua deciso.

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A obstinao teraputica uma atitude inadequada, envolvendo meios


extraordinrios e desproporcionados ao benefcio esperado. Que conduzem a sofrimentos
desnecessrios e gratuitos aos doentes sempre que exista uma alta probabilidade de que
desta interveno no resulte um prolongamento da vida autnoma e consciente. Por outro
lado, cabe ao profissional de sade fazer cumprir o direito vida e qualidade de vida da
pessoa.
Na dificuldade de estabelecer um critrio preciso, rigoroso e bem justificado
clinicamente, podero muitas vezes surgir muitos dilemas ticos. E no que se relaciona
com o presente ensaio, a deciso de no reanimar impe muitas questes ticas
relacionadas com o no proporcionar suporte de vida.

Cdigo Penal (2007), Livro II- Parte especial; Ttulo I- Dos Crimes contra as Pessoas;
Captulo I- Dos Crimes contra a Vida

Artigo 133. (Homicdio Privilegiado): refere que quem matar outra pessoa dominado por
compreensvel emoo violenta, compaixo, desespero ou motivo de relevante valor social
ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, punido com pena de priso at 5
anos.

Artigo 134. (Homicdio a pedido da vtima), nmero 1- quem matar outra pessoa
determinado por pedido srio, instante e expresso que ela lhe tenha feito punido com
pena de priso at trs anos; nmero 2- a tentativa punido.

Artigo 135. (Homicdio ou ajuda ao suicdio), nmero 1- quem incitar outra pessoa a
suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse fim, punido com a pena de priso at trs anos,
se o suicdio vier efectivamente a ser tentado ou a consumar-se; nmero 2- se a pessoa
incentivada a ou a quem se presta a ajuda for menor de 16 anos ou tiver, por qualquer
motivo, a sua capacidade de valorao ou de determinao sensivelmente diminuda, o
agente punido com pena de priso de um a cinco anos.

Artigo 150. (Intervenes e Tratamentos Mdico - Cirrgicos)


1- As intervenes e os tratamentos que segundo o estado dos conhecimentos e da
experincia da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo

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com a leges artis, por um mdico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com a
inteno de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar a doena, sofrimento, leso
ou fadiga corporal, ou perturbao mental, no se consideram ofensa integridade
fsica.
2- As pessoas indicadas no nmero anterior que, em vista das finalidades nela
apontadas, realizem intervenes ou tratamentos violando as leges artis e criarem,
desse modo, um perigo para a vida ou perigo grave ofensa para o corpo ou para a
sade, so punidas com pena de priso at dois anos ou com pena de multa at 240
dias, se pena mais grave lhes no couber por fora de outra disposio legal.

Artigo 156. (Intervenes e tratamentos Mdico- Cirrgicos arbitrrios)


1- As pessoas indicadas no artigo 150. que, em vista das finalidades nele apontadas,
realizarem intervenes ou tratamentos sem consentimento do paciente so punidas
com pena de priso at trs anos ou com pena de multa.
2- O facto no punvel quando o consentimento:
a) S puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave
para o corpo ou para a sade; ou
b) Tiver sido dado para certas intervenes ou tratamento, tendo vindo a realizar-se
outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da
experincia da medicina como meio para evitar o perigo para a vida, o corpo ou a
sade; e no se verificarem circunstncias que permitam concluir com segurana que
o consentimento seria recusado.
3- Se, por negligncia grosseira, o agente representar falsamente os pressupostos do
consentimento, punido com penas de priso at seis meses ou com penas de multa
at 60 dias.
4- O procedimento criminal depende de queixa.

Importa ainda referir o Artigo 149. (Consentimento), do Cdigo Penal, uma


vez que qualquer acto mdico deve ter por base um consentimento da pessoa e no caso de
esta no se encontrar em condies de o manifestar, deve se obter o consentimento do seu
representante legal.
1- Para efeito de consentimento a integridade fsica considera-se livremente
disponvel.

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2- Para decidir se a ofensa ao corpo ou sade contraria os bons costumes, tomam-se


em conta, nomeadamente, os motivos e os fins do agente ou do ofendido, bem
como os meios empregados e amplitude previsvel da ofensa.
Ainda no que se refere nos mecanismos de tutela com vista proteco do
Direito Vida considera-se importante ter em ateno os seguintes documentos, de acordo
com Vital MOREIRA e J.J. Gomes CANOTILHO (2007).

O DIREITO VIDA NO DIREITO PORTUGUS:

Legislao:

Cdigo Penal, artigos 131 e seguintes, 140. e seguintes, 184. e seguintes e 358.;

Lei n. 6/84, de 11-05 (Excluso de ilicitude de interrupo da gravidez); Lei n.


8/97, de 12-04 (Incrimina condutas susceptveis de criar perigo para a vida e
integridade fsica, decorrentes do uso e porte de armas e substncias ou engenhos
explosivos ou pirotcnicos);

Lei n. 12/93, de 22-04, e Decreto-Lei n. 244/94, de 26-09 (colheita e transplante


de rgos e tecidos); Lei n. 90/97, de 30-07 (altera os prazos de excluso de
ilicitude nos casos de interrupo voluntria da gravidez); Lei n. 12/2001, de 29-05
(contracepo de emergncia).

Jurisprudncia: Acrdos nmeros 25/84 e 85/85 (licitude do aborto).


Pareceres: Procuradoria-Geral da Repblica, P000311982 (aborto, interrupo voluntria
da gravidez/direito vida/proteco constitucional dos nascituros; Pareceres, Vol. II, pp.17
e seguintes).

O DIREITO VIDA NO DIREITO INTERNACIONAL:

Declarao Universal dos Direitos do Homem, artigo 3., artigo 6. e o seu


Protocolo Adicional com vista a abolio da Pena de Morte, artigo 11.; Conveno
para a preveno e represso do crime de genocdio, de 01-12-1948; Conveno
Europeia dos Direitos do Homem, artigo 2. e os seus Protocolos nmeros 6 e 13.

Jurisprudncia: Acrdo do Tribunal dos Direitos do Homem de 29-04-2002, caso Pretty


vs. Reino Unido.

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O DIREITO VIDA NO DIREITO EUROPEU:

Legislao:

Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia, artigo 2.; Deciso do


Conselho de 03-12-1998 (que confere Europol para tratar das infraces
cometidas ou susceptveis de serem cometidas, no mbito de actividades de
terrorismo que atentem contra a vida, a integridade fsica, a Liberdade das pessoas
e os bens). Tratado da Constituio Europeia, artigo II- 62..

Jurisprudncia: Acrdo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29-04-2002,


caso Pretty vs. Reino Unido (ajuda ao suicdio).

Pareceres: Conselho Econmico e Social sobre A Unio Europeia e os aspectos


externos da poltica de direitos humanos (97/C 206/21); sobre Para uma Carta
dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia (2000/ C 367/08).

1.6. DIREITOS DO HOMEM E DA BIOMEDICINA


(Artigo 4.- Obrigaes Profissionais e regras de conduta)

A Conveno dos Direitos do Homem e da Biomedicina data de 1997,sendo


tambm conhecida como Conveno de Oviedo. Esta foi ratificada por Portugal em 2001.
Importa incluir esta Conveno na abordagem sobre a Deciso de No
Reanimar, uma vez que, aps o julgamento de Nuremberga, a comunidade humana
considerou uma obrigao regulamentar a prtica da experimentao em seres humanos,
em particular no que respeita obteno de consentimento informado.
Em causa encontrava-se a violao de alguns direitos fundamentais, colocando
em dvida a essncia da dignidade humana.
O autor, Nunes (2003), no seguimento desta reflexo coloca a seguinte
questo: Mas pode perguntar-se, desde logo, qual a fundamentao da tica numa
sociedade plural e secularizada? A doutrina dos Direitos Humanos, em todas as
sociedades de tradio judaico-crist, evoluiu ao ponto de conferir uma autonomia quase
limitada ao ser humano individual.
Sendo uma noo que se encontra expressa na Declarao Universal dos
Direitos do Homem, deve ser determinante em toda a reflexo tica em torno das cincias

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da vida. Qualquer interveno na rea da sade, incluindo a investigao, deve ser


efectuada na observncia das normas e obrigaes profissionais, bem como pelas regras de
conduta aplicveis ao caso concreto. (Artigo 4. da Conveno para a Proteco dos
Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Relativamente s Aplicaes da
Biologia e da Medicina).

1.7. CONVENO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM

No que se refere s questes relacionadas com as decises tomadas no decorrer


do fim de vida a Conveno Europeia dos Direitos do Homem no Ttulo I- Direitos e
Liberdades, no seu artigo 2. - Direito Vida, faz referncia s seguintes consideraes:
1- O direito de qualquer pessoa vida protegido pela lei. Ningum poder ser
intencionalmente privado da vida, salvo em execuo de uma sentena capital
pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena de lei.
2- No haver violao do presente artigo quando a morte resulte do recurso fora,
tornando absolutamente necessrio:
a) Para assegurar a defesa de qualquer pessoa de uma violncia ilegal;
b) Para efectuar uma deteno legal ou para impedir a evaso de uma pessoa detida
legalmente;
c) Para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreio.

JURISPRUDNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM


Acrdo Pretty vs Reino Unido (IV Sesso)
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem refere-se obrigao do estado de
proteger a vida, no considerando que o artigo 2. possa conter o aspecto negativo deste
direito. O que faria com que o artigo 2., sem distoro de linguagem, fosse interpretado de
modo a conferir um direito diametralmente oposto, o direito a morrer. Considerando que
no seria vantajoso criar um direito de autodeterminao neste sentido, o de atribuir a
todos os indivduos o direito de escolher a morte em vez da vida. Consequentemente, no
seria possvel deduzir do artigo 2. um direito a morrer, seja um acto particular ou com a
assistncia de uma autoridade pblica.
No que diz respeito ao artigo 3., o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
sublinha que o governo no infligiu qualquer tratamento inaceitvel requerente; a mesma

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no refere no ter recebido tratamentos adequados por parte dos servios mdicos do
Estado. A requerente considera como um tratamento desumano e degradante o facto de as
autoridades do Estado no permitirem que o seu marido lhe d ajuda no suicdio
(responsabilizando o Estado).
Admitir a obrigao positiva que a requerente coloca sobre o Estado
reivindicando a que o mesmo admitisse actos com vista interrupo da vida, obrigao
que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considera que no pode ser interpretada
no artigo 3..
A requerente impedida por lei de exercer a sua vontade de forma a evitar o
que para si um fim de vida indigno e penoso. O Tribunal considerou que no pode excluir
que tal facto representa um atentado ao direito da pessoa ao respeito pela sua vida privada,
como est descrito no artigo 8. 1 (BERGER, 2007).

2. DIGNIDADE HUMANA

Na abordagem do primado do Ser Humano sobre a Tcnica, imprescindvel


falar de Dignidade Humana, a qual extremamente bem referenciada no Parecer
26/CNECV Reflexo tica sobre a Dignidade Humana, do Conselho Nacional de tica
para as Cincias da Vida (CNECV). Neste parecer o CNECV analisa o conceito da
dignidade humana nas suas componentes filosficas, biolgicas e nas suas implicaes
ticas.
Quando nos debruamos sobre a Conveno Europeia dos Direitos do Homem
sabemos que a mesma est eticamente fundamentada luz do conceito de Dignidade
Humana. Uma vez que esta Conveno assume que: Decididos, enquanto Governos de
Estados Europeus animados no mesmo esprito, possuindo um patrimnio comum de ideias
e tradies polticas, de respeito pela liberdade e pelo primado do direito, a tomar as
primeiras providncias apropriadas para assegurar a garantia colectiva de certo nmero de
direitos enunciados na Declarao Universal (BARRETO, 2005).
Ao assentar na base do respeito pela Declarao Universal dos Direitos do
Homem, de 10 de Dezembro de 1948, texto Portugus publicado em dirio da Repblica, I
Srie, n. 57, de 9 de Maro de 1978, importante referir a nfase atribuda no seu
Prembulo Dignidade Humana: Considerando que, na Carta, os Povos das Naes
Unidas proclamam, de novo, a sua f nos direitos fundamentais do homem, na sua

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dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direito dos homens e das mulheres
e se declaram resolvidos a favorecer o processo social e a instaurar melhores condies de
vida dentro de uma liberdade mais ampla (BARRETO, 2005).
Considerando pertinente referir o conceito de liberdade, no sentido de que a
liberdade do profissional de sade em tomar uma deciso perante a pessoa em fim de vida
dever respeitar a liberdade de deciso da mesma e da sua famlia.
A liberdade humana sei o que : verdade da conscincia como Deus. Por ela
chego facilmente ao direito absoluto; por ela sei apreciar as instituies sociais.
Sei que a esfera dos meus actos livres s tem por limites a esfera dos actos livres
dos outros, e por limites factcios as restries a que conviesse submeter-me para
a sociedade existir e para eu achar nela a garantia do exerccio das minhas
liberdades (Alexandre HERCULANO citado pelo Prof. Doutor CANOTILHO,
1997).

A noo de dignidade humana pode variar consoante as pocas e os locais, a


ideia central que actualmente possumos e admitimos na civilizao ocidental, que
constitui a rbase dos textos fundamentais sobre Direitos Humanos (26/CNECV/99). Os
Direitos Humanos so a expresso directa da dignidade da pessoa humana, a obrigao dos
Estados de assegurarem o respeito que decorre do prprio reconhecimento dessa
dignidade (26/CNECV/99, citando LENOIR e MATHIEU, 1998).
A abordagem da dignidade humana faz-se sobretudo pela negativa, ou seja,
pela negao da banalidade do mal; o confronto com situaes de indignidade ou de
ausncia de respeito que se tem em considerao o tipo de comportamentos que tm de ser
respeitados.
A dignidade humana um conceito evolutivo, dinmico, abrangente. Lenoir e
Mathieu, referindo a Declarao Universal dos Direitos do Homem, e tendo em conta o
alargamento do conceito de dignidade, referem os princpios que lhe esto associados: o
princpio da no discriminao; o direito vida; a proibio de tratamentos cruis,
desumanos ou degradantes; o respeito pela vida privada e familiar; o direito sade; a
liberdade de investigao (em respeito com a dignidade da pessoa humana).
Estes so conceitos muito importantes a ter em considerao quando se fala no
cuidar e na tomada de decises em fim de vida.
Importa ainda referir a noo de tica de responsabilidade de Hans Jonas, que
se centra no cuidado, que nos pe no centro de tudo o que nos acontece e que nos faz
responsveis pelo outro (B. SOUSA SANTOS).

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3. OS CUIDADOS PALIATIVOS COMO UM DIREITO HUMANO

A palavra paliativo provm do verbo latino palliare, que significa, cobrir


com capa, deste modo o que paliativo pretende atenuar, aliviar, apresentando uma
eficincia apenas temporria.
Os cuidados paliativos tendem a incidir no sobre a causa da doena, pois
pressupe no existir a possibilidade de cura, mas sobre o tratamento dos sintomas,
respeitando a dignidade e a promoo da qualidade de vida da pessoa que sofre de doena
grave e/ou crnica incurvel.
Centrando-se na ideia expressa por Cicely Saunders, fundadora da primeira
unidade inglesa de cuidados paliativos, no ano de 1967, considerando que:You matter
because you are. You matter to the last moment of your life and we do all we can, not only
to help you die peacefully, but also to live until you die.
Para que as pessoas que necessitam de cuidados paliativos tenham acesso aos
mesmos, necessrio a criao em todo o territrio nacional de unidades de cuidados
paliativos.

4. CUIDADOS PALIATIVOS MORRER COM DIGNIDADE

Os cuidados paliativos assim como so definidos pela Organizao Mundial de


Sade (2002), estes so cuidados de sade que no tem por objecto uma doena especfica,
nem apenas a doentes em fase terminal, tendo como objectivo a satisfao das
necessidades decorrentes da progresso de doenas graves e/ou crnicas e incurveis.
Estes cuidados podem prolongar-se, em muitos casos, ao longo de semanas,
meses ou anos.
O objectivo da sua prestao o de permitir a cada um terminar os seus dias
docemente, tranquilamente, liberto das suas dores, rodeado dos seus, num clima de paz e
de ternura; de no apenas tratar a dor, mas tambm escutar, dialogar, sentar-se
cabeceira do leito de quem vai morrer, aceitar falar com ele sobre os seus medos e tentar
compreend-lo (HENNEZEL, 2004).
De acordo com Helena Pereira de Melo (2010), a lei portuguesa deveria consagrar
expressamente que: Os profissionais de sade utilizam todos os meios disponveis para
assegurar a cada um uma vida digna at morte.

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5. OS CUIDADOS PALIATIVOS NO DIREITO PORTUGUS

5.1. O DIREITO A CUIDADOS PALIATIVOS

Os cuidados de sade devem assegurar a cada um uma vida digna at ao fim


atravs do direito sade.
O direito sade, de que todo o ser humano titular, como j foi referido
anteriormente, encontra-se consagrado na Constituio da Repblica Portuguesa e na
Conveno sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina, sublinhando que as partes
contratantes devero adoptar medidas adequadas para que seja assegurado um acesso
equitativo aos cuidados de sade de qualidade apropriada (artigo 3., Conveno sobre os
Direitos do Homem e da Biomedicina).
A prestao de cuidados paliativos integra-se no contedo do direito de cada
cidado prestao de cuidados de sade, sendo da responsabilidade do Governo
Portugus garantir que este tipo de cuidados se encontra acessveis a todas as pessoas que
necessitam devendo os cuidados paliativos serem considerados uma prioridade de sade
pblica (de acordo com o Conselho da Europa, Recomendao Rec (2003) 24 do Comit
de Ministros aos Estados Membros sobre a Organizao dos Cuidados Paliativos, de 12 de
Novembro de 2003).
A Professora Helena Pereira de Melo, refere que para que sejam o direito das
pessoas com doena incurvel a acederem a cuidados paliativos imprescindveis para o
controlo dos sintomas e para desfrutarem de um elevado nvel de bem-estar fsico,
psicolgico, social e espiritual, sugerido que no artigo 64. da Constituio seja alterado
na perspectiva de incluir cuidados de medicina paliativa. Propondo a seguinte redaco
para o n. 3 do mesmo artigo: Para assegurar o direito proteco da sade, incumbe
prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidados, independentemente
da sua condio econmica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa, de reabilitao
e paliativa.

5.2. A REDE DE CUIDADOS PALIATIVOS

A criao da rede de cuidados paliativos essencial para o acesso aos mesmos


em todo o territrio nacional.

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De acordo com a minha viso uma viso de quem presta cuidados de sade a
pessoas que necessitam destes cuidados especficos , a actual prestao de cuidados
paliativos continua a ser insuficiente em Portugal; existem diferenas no acesso e na
qualidade de cuidados prestados, que em certo modo, podem ser consideradas
discriminaes injustas em funo do estado de sade (artigo E da Carta Social Europeia
Revista e na Lei n. 46/2006, de 28 de Agosto, que probe e pune a descriminao em razo
da deficincia e da existncia de risco agravado para a sade).
Actualmente existem 2000 camas montadas no pas em cerca de cem unidades, segundo
Ins Guerreiro, coordenadora da Unidade de Misso para os Cuidados Continuados
Integrados.
Contudo considerando que morrem em Portugal, por ano, cerca de cem mil
pessoas, fcil constatar que o nmero de camas existentes insuficiente para fazer face s
necessidades de cuidados da pessoa em fase terminal.
Por outro lado, uma vez que este tipo de cuidados so financiados, em parte,
pelas receitas dos jogos sociais (artigo 3. do Decreto Lei n. 56/2006, de 15 de Maro,
que regula a distribuio dos resultados lquidos dos jogos sociais explorados pela Santa
Casa da Misericrdia de Lisboa), de acordo com Helena Pereira de Melo, parece-nos que
poderiam ser fixadas metas quantitativas anuais em matria de prestao de cuidados
paliativos mais ambiciosas do que as fixadas no Programa Nacional de Cuidados
Paliativos, aprovado pelo Despacho do Ministrio Da Sade de 15 de Junho de 2004
(ponto IV do referido Programa).

5.3. A LEI DE ACESSO A CUIDADOS PALIATIVOS

Existem diversos instrumentos jurdicos que em Portugal se aplicam


prestao de cuidados de medicina paliativa. Contudo, a tutela que lhes dispensada , no
entanto, dispersa e fragmentria.

O Plano Nacional de Luta Contra a Dor, aprovado por Despacho Ministerial de 26


de Maro de 2001, tendo como objectivo o alvio da dor aguda ou crnica de
qualquer causa. Contudo, no abrange o tratamento da angstia e depresses
causadas pela doena grave e incurvel.

A Resoluo do Conselho de Ministros n. 129/2001, de 2 de Agosto, aprovou o


Plano Oncolgico Nacional 2001-2005, cujo captulo VIII definiu objectivos a

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alcanar em matria de cuidados paliativos e medidas a adoptar para a sua


concretizao.

O Plano Nacional de Sade 2004 2010, segundo o qual cuidados paliativos


constituem uma rea prioritria de interveno. Para concretizar o disposto nesse
documento foi elaborado por um grupo de peritos no mbito da Direco Geral de
Sade o j aludido Programa Nacional de Cuidados Paliativos; onde se prev uma
abordagem

especfica

dos

cuidados

paliativos

prestar

por

equipas

multidisciplinares com formao prpria para o efeito.

O Decreto Lei n. 101/2006, de 6 de Junho, que cria a Rede Nacional de Cuidados


Integrados, no mbito da qual se prev a prestao de cuidados paliativos.
Facilitaria a aplicao das normas nele contidas a adopo de um diploma legal que
assegure o respeito pelos direitos das pessoas no acesso aos cuidados paliativos.

6. O DIREITO AO ALIVIO DA DOR COMO UM DIREITO HUMANO

A OMS preconizou o efectivo controle da dor e dos seus sintomas comuns e


paliativos como das mais importantes prioridades no sistema se sade, estimulando que
cada governo o inclua no seu sistema de sade, de avaliar a dor e outros sintomas e
melhorar a qualidade de vida dos doentes sendo a humanizao uma ferramenta mestre
para a obteno do trabalho adequado (WHO, 1999).
A humanizao evoca que o alvio da dor e o controle dos sintomas em
cuidados paliativos devem comear desde o diagnstico da doena crnica (ou no) at
fase avanada.
Humanizar a garantia de atender as necessidades destes doentes. Os
indivduos so singulares e no podemos pedir que respondam da mesma forma s nossas
intervenes, nem que mantenham uniformemente respostas a longo prazo. Tratar um
doente requer consider-lo como um todo, nas suas dimenses biolgicas, psicolgicas,
familiares, sociais, econmicas e todas as que esto nas relaes estabelecidas entre os
sistemas envolvido. No basta controlar os sintomas, mas tambm o doente e os sistemas
que com ele interagem.
A humanizao envolve observar todos os aspectos do "adoecer", o respeito, as
crenas e fragilidades dos doentes e familiares, alm da tica nas actividades tcnicocientficas.

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O sofrimento humano e as percepes da dor precisam ser humanizadas, para


isso tem que existir comunicao sem ela no h humanizao, pois esta depende da
capacidade de ouvir e do dilogo.
A tecnocincia torna-se desumana porque v o doente como um mero objecto
despersonalizado de uma investigao fria e objectiva.
O processo de humanizao deve ser monitorizado, gerido pelos indicadores
tangveis, como o consumo de morfina, a reduo do quadro lgico (dor), pois estes
indicadores tm como finalidade nortear os gestores de forma objectiva, avaliar as
actividades existentes e acrescentar todas as aces necessrias para melhorar a assistncia
oferecida aos doentes e seus familiares, envolvendo toda a equipa multidisciplinar neste
melhoramento.
A humanizao em cuidados paliativos e dor tem o desafio de cuidar com
competncia humana e cientfica, reivindicando a necessidade de cuidar de forma
imperativa, porque a dor uma experiencia multidimensional e de alta complexidade.
Constatamos que passamos por uma profunda crise de humanismo. Fala-se muito de
ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos, mas sem alma e ternura humana. A
pessoa humana vulnerabilizada pela doena deixou de ser o centro de atenes e passou a
ser instrumentalizada em funo de determinado fim, pode ser objecto de aprendizagem,
cobaia de pesquisa, todavia, as pessoas tm dignidade que tem que ser respeitada.
vital a adopo de polticas de assistncia e cuidado que honre a dignidade
do ser humano doente.

O acesso ao alvio da dor como um Direito Humano (baseado no relatrio da Human


Rights Watch)

Posto isto, considerar o acesso ao alvio da dor como um Direito Humano um


imperativo no que respeita a proporcionar pessoa uma melhor qualidade de vida.
A frase introdutria do relatrio da Human Rights Watch de uma enorme riqueza
conceptual que nos permite abordar de forma pormenorizada a questo do acesso ao alvio
da dor como um direito de todos os cidados:

Tratamento da Dor, Cuidados Paliativos e Direitos Humanos


1- A sade como um Direito Humano;

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2- Tratamento da dor e Direito Sade;


3- Tratamento da dor e o Direito de no ser submetido a tratamentos cruis,
desumanos e degradantes.

Obstculos ao fornecimento de tratamentos de alvio da dor e cuidados paliativos


1- Sistema de oferta funcional e eficaz (avaliao das necessidades nacionais; garantir
uma distribuio eficaz);
2- Adoptar polticas em matria do tratamento da dor e de cuidados paliativos;
3- Falta de formao/ informao aos profissionais de sade;
4- Regulamentao do controlo de drogas ou de prticas de aplicao das mesmas
muito restritivas;
5- Reaces relativas ao receio de sano legal;
6- Os custos para a Sade.

Situaes Problema: O caso do Uganda e do Vietname quebrar o ciclo vicioso do


tratamento insuficiente da Dor
(Relatrio da Human Rights Watch- Figura da Pgina 23).
Imperativo para reflectir sobre este assunto:
Pendant deux jours, jai eu une douleur atroce dans le dos et aussi sur le devant du corps.
Jai cru que jallais mourir. Le docteur a dit quil ny avait pas besoin de me donner des
mdicaments pour la douleur, que ctait juste un hmatome et que la douleur disparaitrait
toute seule. Jai cri toute la nuit.
Un Indien dcrivant son sjour lhpital immdiatement aprs un accident survenu sur
un chantier de construction, au cours duquel il a subi un traumatisme de la moelle pinire.

Le cancer nous tue. La douleur me tue parce que depuis plusieurs jours jenai pas pu
trouver de morphine injectable nulle part. Sil vous plait Mr. le Secrtaire la Sant, ne
nous laissez plus souffrir
Petite annonce publie dans un journal colombien en septembre 2008 par la mre dune
femme atteinte dun cancer du col de lutrus.

Les mdecins ont peur de la morphine Les docteurs [au Kenya] sont tellement habitus
aux patients qui meurent dans la douleur () quils pensent que cest comme a quon doit

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mourir. Ils sont mfiants si vous ne mourrez pas comme a [et pensent] que vous tes
mort prmaturment.
Un mdecin dun hospice du Kenya.

7. CONCLUSO

A suspenso ou absteno de tratamento, ou a administrao de medicamentos


com a finalidade teraputica est fora do mbito da eutansia; sendo a morte superveniente
uma consequncia esperada mas no desejada (no intencional). Na perspectiva tica, a
complexidade da situao agrava-se quando se proclama a morte directa e intencional:
sempre ilegtima mas deixar morrer seria aceitvel nalgumas circunstncias
principalmente quando a inteno aliviar o sofrimento ou providenciar a analgesia
necessria.
Existem argumentos ticos vlidos a favor e contra a prtica da eutansia,
sendo estes:
- Argumentos contra: O carcter sagrado da vida humana, integridade da profisso
mdica e abuso potencial (slippery- slope);
- Argumentos a favor: respeito pela autodeterminao da pessoa e alvio da dor e
do sofrimento.
De acordo com o mais recente estudo sobre a eutansia realizado na Holanda
por Van der Heide et al., evidencia uma evoluo positiva no que diz respeito ao controlo
da eutansia voluntria, mas permanecem algumas dvidas sobre outras decises mdicas
em fim de vida, como sendo a sedao com morfina (pretendendo o alvio da dor e do
sofrimento, no se trata de uma morte intencional, mas sim com efeito subsidirio em
relao ao objectivo principal que o alvio do sofrimento atravs da sedao.
Posto isto, ser necessrio a adopo de um diploma especfico em matria de
cuidados paliativos que consagre os direitos referidos ao longo do trabalho assim como os
seguintes direitos:
- O direito a assistncia psicolgica;
- O direito a assistncia espiritual;
- O direito de recusa de tratamento;
- O direito a acompanhamento por familiares e amigos;
- O direito ao repouso;

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- O direito a formular directivas antecipadas de vontade;


- O direito ao apoio domicilirio.
Deste modo iria contribuir para que cada um de ns seja em alguma medida
dono da sua prpria morte. No sentido de organizar a sua prpria morte, de a tornar
numa morte oportuna e numa boa morte.
Como nos refere Helena Pereira de Melo (2010), se eutansia significa
etimologicamente boa morte`, parece-nos que ningum se opor a ela no sentido proposto:
o de assegurar a cada pessoa os cuidados paliativos indispensveis para que viva o melhor
possvel, sem sofrimento e sem dor, at ao termo da sua vida biolgica.
O respeito pelo Direito Vida impe o respeito pela Dignidade ao longo da
Vida e no seu termo, para isto pretende o presente projecto, ser um contributo para a
discusso pblica e implementao de mudanas nos cuidados de sade pessoa em fim de
vida.

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NAVEGAR PRECISO, VIVER NO PRECISO. O DIREITO


IDENTIDADE DE GNERO E A FALCIA DO DETERMINISMO
BIOLGICO

PIETRO VIEIRA SARNAGLIA 1


[email protected]

RESUMO

Sendo evidente a percepo de que ns, seres humanos, somos incompletos,


fcil perceber a necessidade da resultante de uma busca por aperfeioamento com o
objetivo de se alcanar a completude e a realizao plena de uma identidade. Sob tal
aspecto no se pode falar em identidade plena sem que se considere as questes que
envolvem o sexo, o gnero e o desejo, bem como sua manifestao atravs da prtica
sexual. Nessa busca, o processo de construo da identidade individual est sujeito a
sofrer rupturas, visto que no existem garantias de que o resultado de nosso
desenvolvimento restar suficientemente harmnico com os padres vigentes de modo a
garantir a aceitao e reconhecimento desta identidade pela sociedade, que ainda hoje se
mostra limitada a conferir legitimidade somente s categorias historicamente concebidas (e
opostas) de homem e mulher. O fato flagrantemente constatado de que uma parcela
significativa de indivduos no pode se adequar a esta diviso dplice, os probe de
adquirir uma identidade que efetivamente se preste a finalidade de identificar. A anlise da
relao entre sexo, gnero e seus reflexos sobre a construo da identidade de um sujeito,
bem como a resposta dada pela legislao portuguesa pertinente (Lei n 07/2011) o tema
motivador deste trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; dignidade humana; gnero; sexo; transexualidade;


direitos da personalidade.

1. INTRODUO
1

Advogado; Graduado em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto; Mestrando em Direitos
Humanos pela Universidade do Minho. ([email protected])

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Antes de adentrar precisamente no tema objeto de estudo deste trabalho que


visa expor e analisar os aspectos sociais e antropolgicos do direito identidade de gnero
e sua relao com a legislao portuguesa que trata o assunto, nomeadamente a Lei
07/2011, faz-se necessria uma breve explicao dos motivos pelos quais o mesmo foi
nomeado desta forma.
A conhecida expresso navegar preciso, viver no preciso foi usada
originalmente pelo general romano Pompeu 2 (106-48 a.C.) e est relatada na obra de
Plutarco intitulada "Vida de Pompeu" 3. Ela foi empregada no intuito de demonstrar que a
arte de aventurar-se pelos mares apoiava-se na exatido aritmtica com que se dava o seu
fazer. O ato de navegao, na altura, j era auxiliado por instrumentos tecnolgicos que lhe
garantiam exatido, ou seja, a preciso de navegar. Em contraponto, o general acreditava
que a arte de viver era incerta, sujeita a ocorrncias imprevisveis, portanto, para ele,
viver era impreciso. 4
Porm, foi na voz do poeta portugus Fernando Pessoa (1888-1935), muitos
anos mais tarde, que a frase, tornada poesia 5, ganhou a fama e a proporo significativa
que hoje possui.
Nas palavras de Fernando Pessoa o significado atribudo originalmente
passagem viver no preciso alterado para se impor novo sentido, qual seria o da real
necessidade de se viver. Para Pessoa criar preciso. A necessidade de criar, em sua
percepo supera at mesmo a necessidade de se viver, uma vez que para ele h mais valor
no legado deixado tido como construo cultural do ser humano - do que na prpria vida
em si condio natural de existncia deste.
Aqui, entretanto, modifica-se ainda mais o conceito da sentena que d nome a
este ensaio acadmico. A passagem potica entendida como justificativa e hiptese deste
trabalho, no qual navegar preciso denuncia a necessidade de aventurar-se pelos
2

A frase original, dita pelo general romano Pompeu aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar
durante a guerra, foi "Navigare necesse; vivere non est necesse" - cf. Plutarco, in Vida de Pompeu.
3
Informao em disponvel em <<http://www.fpessoa.com.ar/poesias.asp?Poesia=036>> (21/01/2012).
4
Edgar BELLE Um olhar intertextual em: Navegar preciso, viver no preciso, Caderno de PsGraduao em Letras, So Paulo 2004, p. 97.
5
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
Navegar preciso; viver no preciso.
Quero para mim o esprito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver no necessrio; o que necessrio criar. Fernando PESSOA, Obra potica. Organizao de
Maria Aliete Galhoz. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

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caminhos da pesquisa questionando valores e conceitos tidos como irretocveis e


colocando em cheque tambm arranjos sociais e comportamentais amplamente aceitos pela
maioria das pessoas que se vem submetidos a tais estruturas.
Por viver no preciso adentra-se efetivamente no tema em anlise para
defender que a construo e reconhecimento de uma identidade (de gnero) processo
individualizado de cada sujeito, que se d ao longo de sua vida por meio de suas
experincias, e no comporta ou no deveria comportar submisso a categorias
genericamente pr-determinadas.
importante destacar, porm, que no se pretende neste trabalho, traar uma
definio do que seja gnero ou que ele venha a significar. Furtamo-nos em faz-lo, pois
travar tal discusso, alm demandar uma erudio acadmico-filosfica demasiado ampla,
exigiria um esforo de pesquisa e argumentao que supera em muito os limites deste
trabalho. 6

2. INCOMPLETUDE, INSATISFAO E IDENTIDADE DE GNERO

A incompletude humana pode ser percebida e verificada por meio de nossa


constante insatisfao; da perene necessidade em vermos atendidos nossos desejos
ilimitados. Em termos econmicos bsicos, a relao entre a escassez dos recursos
disponveis e nossas necessidades inesgotveis que justifica o nosso estado de
permanente insatisfao. 7
A incompletude, porm, no se traduz somente sob o aspecto econmico, nem
se limita a uma caracterstica exclusivamente humana. Est, pois, presente tambm em
qualquer outro ser vivo, uma vez que sob determinado aspecto, todos eles so
invariavelmente imperfeitos, portanto, passveis de melhora. A incompletude aqui
entendida como o prprio inacabamento do ser 8.

Para uma anlise dos diversos conceitos historicamente atribudos ao termo Gnero ver, Joan Wallach
SCOTT,. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. Educao & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n
2,jul./dez. 1995, pp. 71-99.
7
"A economia a cincia que estuda as formas de comportamento humano resultantes da relao existente
entre as ilimitadas necessidades a satisfazer e os recursos que, embora escassos, se prestam a usos
alternativos". Lionel Charles ROBBINS In http://netopedia.tripod.com/diversos/definicoes_economia.htm
(22.01.2012)
8
Joo
Incio
KOLLING

A
Incompletude
Humana,
disponvel
em
http://www.unilasalle.edu.br/lucas/assets/upload/INCOMPLETUDE_HUMANA.pdf (18.11.2011)

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Nesses termos, o que ento nos diferencia dos demais viventes (e nos torna
insatisfeitos diante de tal condio) o fato de somente ns, humanos, termos conscincia
desse inacabamento. Neste sentido, Joo Incio Kolling afirma que sob uma viso
antropolgica considera-se que os outros animais j nascem satisfeitos, pois possuem uma
predisposio inata adequada a realizao das necessidades de sua espcie. [N]ingum
precisa ensinar ao filhote de Joo-de-barro a fazer curso de engenharia e de arquitetura a
fim de edificar sua casinha de barro. Ele j nasce naturalmente equipado com esta
capacidade (nasce satisfeito) 9.
, portanto, a constatao da incompletude e no a prpria incompletude em si
que nos torna insatisfeitos e, consequentemente, nos motiva a buscar um aperfeioamento.
Nas palavras de Paulo Freire seria uma agressiva contradio se, inacabado e consciente
do inacabamento, o ser humano no se inserisse num permanente processo de esperanosa
busca 10.
Mas que implicaes esse processo de busca teria sobre a identidade de um
sujeito? Que relao haveria entre identidade e gnero? A realizao de uma identidade de
gnero seria mesmo uma construo cultural baseada em nossas experincias? Ou haveria
uma essncia inata; natural; prvia ao fazer cultural capaz de justificar certa identidade?
Provar a noo de que o desenvolvimento de uma identidade de gnero assume
carter acidental por ser resultante de uma complexa busca pela plenitude e satisfao
no se tratando meramente de uma caminhada reta; com destino certo e biologicamente
determinado uma proposta ambiciosa, muitas vezes ignorada no seio de uma sociedade
que se constituiu baseada nos princpios da matriz heterossexual 11 e da regulao
binria da sexualidade 12.
A ideia de que sexo e gnero constituem realidades distintas, e que este (o
gnero) fruto de uma construo cultural, nos induz ao lgico raciocnio de aquele (o
sexo) seria, por sua vez, uma realidade natural. Tal lgica, que trabalha com a noo
9

Joo Incio KOLLING, op. cit. p. 04, parnteses no original, interpelao nossa.
Paulo FREIRE - Pedagogia da indignao: cartas pedaggicas e outros escritos, So Paulo: Editora
UNESP, 2000, p. 114.
11
A matriz heterossexual corresponde grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos,
gneros, e desejos so naturalizados. Este conceito em Monique Witting denominado contrato
heterossexual, para Adrienne Rich, heterossexualidade compulsria. Judith BUTLER Problemas de
Gnero: feminismo e a subverso da identidade. Trad. Renato Aguiar, Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2003, pp. 215, 216.
12
A regulao binria da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as
hegemonias heterossexual, reprodutiva, e mdico-jurdica. Judith BUTLER Problemas de Gnero, op. cit.
p. 41
10

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binria e oposta de natureza/cultura, foi assumida por algumas tericas feministas no


intuito de explicar e dar credibilidade distino sexo/gnero 13, ou mesmo, foi utilizada
para esclarecer a fonte da universalidade da subordinao feminina diante dos homens 14.
Mas o sexo seria mesmo um dado natural imutvel; uma atribuio biolgica
determinante? Ou no seria a prpria noo natural de sexo, e os significados que ela
assume, uma criao da cultura? Haver alguma caracterstica humana capaz de
permanecer puramente natural depois de interpretada e subordinada pela cultura? Que
relao se estabelece entre o par sexo/gnero diante do par natureza/cultura?

3. SEXO/GNERO, NATUREZA/CULTURA

Muitos (as) estudiosos (as), sobretudo os (as) que se dedicam ao feminismo,


tm dispensado esforos para explicar o gnero, sua relao com o sexo e com dado
biolgico correspondente, bem como sua submisso s categorias socialmente
constitudas.
Estabelecendo esta relao entre sexo e gnero, Judith Butler afirma que a
distino entre os dois conceitos foi originalmente concebida para questionar a concepo
de que o sexo biologicamente atribudo a um sujeito o seu destino. O afastamento dos
termos se presta a defender que, por mais que o sexo sugira ser irretratvel do ponto de
vista biolgico, o gnero, por sua vez, seria o resultado de uma construo cultural.
Consequentemente, as duas instituies estariam separadas de modo que no
poderia um ser concebido como implicao necessria do outro. Assim, Butler defende que
[o gnero] no resultado causal do sexo, nem tampouco to aparentemente fixo quanto o
sexo 15. Deste modo, a pretensa unidade e completude do sujeito se vem questionada por
essa diferenciao, que permite ao gnero manifestar-se como interpretao mltipla e no
definida do sexo.
Sendo o gnero os significados culturalmente assumidos de forma acidental e
no exata por um corpo sexuado, nada pode garantir que de determinado sexo tenha que
13

Judith BUTLER Problemas de Gnero, op. cit. p. 65.


Sherry B. ORTNER, Est a Mulher para o Homem Assim como a Natureza Est Para a Cultura? In A
Mulher, a Cultura, a Sociedade, coord. Michelle Zimbalist Rosaldo e Louise Lamphere, 1979, Ed. Paz e
Terra, 1979, p. 95. Neste artigo, Ortner explica que apesar de extremamente convincente, a associao das
mulheres natureza, dos homens cultura e as consequncias opressivas da resultantes se mostram um erro
de avaliao, pois que a prpria noo que distingue a natureza da cultura e lhes atribui diferentes valores,
tambm culturalmente criada.
15
Judith BUTLER Problemas de Gnero, op. cit. p. 24, interpelao nossa.
14

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surgir determinado gnero. Se ns aprofundarmos nessa distino, pode-se afirmar que


inexiste qualquer relao obrigatria de continuidade entre os corpos sexuados e os
gneros culturalmente construdos sobre estes corpos.
A crena na existncia de uma relao necessria entre um sexo e um gnero,
na qual o gnero reflete o sexo ou encontra nele o seu limite, , por fim, fruto da concepo
de que o sexo s pode ser inteligvel se inserido no sistema binrio que coloca em oposio
duas categorias fixas e determinadas e antagonicamente concebidas pela cultura que
sustenta est oposio.
Porm, no momento em que se teoriza a condio cultural do gnero como
sendo independente do sexo, conclui-se que homem e masculino podem, perfeitamente ter
significado tanto num corpo feminino como num corpo masculino, da mesma maneira que
mulher e feminino podem tambm significar tanto um corpo masculino como um
feminino 16.
Sendo ento o sistema binrio do sexo o que justifica uma pretensa
determinao biolgica do gnero, como seria possvel desvincular o gnero do sexo para
defender que o gnero seja culturalmente criado sem antes desconstruir a lgica que
estabelece a diviso bipartida das categorias sexuais?
Aps considerar a hiptese de que os fatos ostensivamente naturais do sexo
poderiam tambm ter sido produzidos discursivamente por meio de discursos cientficos
que atendiam a outros interesses polticos e sociais 17 Butler prope que se a
imutabilidade do sexo no constitui uma certeza, talvez a prpria noo de sexo, e sua
consequente estabilidade, sejam to culturalmente concebidas quanto ideia gnero.
A rigor, talvez o gnero no seja apenas um reflexo do sexo, exatamente
porque o sexo pode sempre ter sido o prprio gnero, ambos igualmente elaborados na
cultura, sendo, entretanto, aquele (o sexo) produzido e estabelecido como pr-discursivo

16

Judith BUTLER Problemas de Gnero, op. cit. p. 24.


Neste sentido, Joan Scott afirma: O gnero uma das referncias recorrentes pelas quais o poder poltico
foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere oposio homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo
o seu sentido. Para reivindicar o poder poltico, a referncia tem que parecer segura e fixa, fora de qualquer
construo humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Joan Wallach SCOTT. Gnero: uma
categoria til de anlise histrica. op. cit, p. 93. Ainda nesta linha, exemplificando como um dado natural
assume significado cultural direcionado, Simone de Beauvoir afirma que no momento em que o dado
fisiolgico (inferioridade muscular) assume uma significao, esta surge desde logo como dependente de
todo um contexto; a "fraqueza" s se revela como tal luz dos fins que o homem se prope, dos instrumentos
de que dispe, das leis que se impe. Simone de BEAUVOIR, O Segundo Sexo: Fatos e Mitos, 4 ed.,
Trad. Srgio Milliet, Difuso Europia do Livro: So Paulo, 1970, p. 55.
17

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pela prpria cultura. Deste modo, a distino entre sexo e gnero acabaria por ruir se
mostrando absolutamente inexistente 18.
Surge da que o gnero no representa para a cultura o mesmo que o sexo
representa para a natureza, pois a prpria noo de sexo seria tambm um resultado
discursivo por meio do qual a ideia de uma natureza sexuada dos corpos apresentada e
estabelecida como prvia cultura, ou, nas palavras de Butler, tida como uma superfcie
politicamente neutra sobre a qual age a cultura 19.
Nestes termos, o reconhecimento da dualidade do sexo como sendo prdiscursiva o que garantiria de modo eficaz e persuasivo a prpria estrutura binria do
sexo e sua convincente estabilidade interna, de modo a impedir a existncia legtima de
identidades que fujam a esta dualidade e pretendam se estabelecer de modo diverso.
Acreditar o sexo como instituio estvel e duplamente polarizada limitar a
identidade; sucumbir diante de toda a construo discursiva que institui a matriz
heterossexual como unicamente legtima, sem contudo, questionar a essncia e o propsito
dessa construo.

4. GNERO E IDENTIDADE

Mas que relao se estabelece entre identidade e gnero? O que podemos,


ento, entender como sendo identidade? Que fatores sustentam a premissa de que as
identidades so fixas, contnuas, duradouras e internamente coerentes?
A discusso sobre a identidade no pode estar dissociada da discusso sobre
identidade de gnero e isso se d por uma razo bastante simples: a identidade serve ao
bvio propsito de identificar pessoas, e pessoas s se tornam socialmente inteligveis
ao assumir um gnero que esteja de acordo com os padres reconhecveis de
inteligibilidade de gnero.
Padres reconhecveis so aqueles que mantm internamente uma coerncia
linear, contnua e invarivel entre sexo, gnero, prtica sexual e desejo. Porm, linearidade,
continuidade e imutabilidade no se constituem caractersticas lgicas analiticamente

18
19

Judith BUTLER Problemas de Gnero,op. cit. p. 25


Judith BUTLER Problemas de Gnero,op. cit. p. 25, itlicos no original.

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justificadoras da condio de pessoa, mas ao revs, so na verdade normas de


inteligibilidade socialmente institudas e mantidas artificialmente 20.
Como consequncia, caractersticas e comportamentos que revelem incoerncia
e descontinuidade, conceitos estes s existentes em funo dos seus opostos, so
sistematicamente proibidos e criados pela prpria lgica moral que pretende estabelecer
uma relao de ligao sem ruptura entre o sexo biolgico, o gnero culturalmente
construdo e a exteriorizao do desejo por meio da prtica sexual.
Esta concluso desenvolvida por Butler para responder a uma provocao
que ela mesma levanta ao questionar [em] que medida a identidade ideal normativo, ao
invs de uma caracterstica descritiva de experincia? 21.
Uma vez estabelecida esta lei que determina a obrigatoriedade da coerncia, o
complexo normativo cultural por meio do qual a identidade de gnero de torna possvel e
assimilvel obriga que identidades descontinuadas ou incoerentes no possam existir.
Se assumirmos que tais estruturais so legtimas, as identidades que se
constituem fora dela devero, por consequncia lgica, ser estendidas como ilegtimas. Se
a correspondncia por fim ela mesma o resultado de um raciocnio validamente lgico,
as identidades estranhas a ela devero ser obrigatoriamente entendidas como uma
falcia.
Sendo assim, uma vez negada a identidade de um sujeito em virtude da sua
incoerncia ou no correspondncia do sistema sexo/gnero/desejo/prtica como
classificar, reconhecer e enquadrar tal sujeito para da se extrair efeitos jurdicos? Quais
esforos legislativos buscam assegurar que tais sujeitos, excludos do vigente sistema de
significao de uma identidade, tenham uma identificao social legtima?

5. LEI N 07/2011 E IDENTIDADE DE GNERO.

Neste ponto do trabalho os termos sexo e gnero no sero mais utilizados


com o rigor terico apresentado anteriormente. O fato de assumirmos momentaneamente
os conceitos ordinrios de sexo e gnero, bem como sua submisso ao sistema binrio, no
deve ser entendido como desqualificador na argumentao desenvolvida at agora. Faz-se
20

Judith BUTLER Problemas de Gnero, op. cit. p. 38


Nas palabras de Beavouir no o corpo-objeto descrito pelos cientistas que exige concretamente e sim o
corpo vivido pelo sujeito. A mulher uma fmea na medida em que se sente fmea. Simone de
BEAUVOIR, O Segundo Sexo: Fatos e Mitos, op. cit. p. 58.
21

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necessrio tal desvio para que seja possvel, de modo coerente evoluir na discusso, uma
vez que ela agora se dar levando em conta o sistema sexual binrio para o qual a Lei n
07/2011 foi concebida.
Na data de 15 de maro do ltimo ano foi aprovada em Portugal a referida lei
que alterou o procedimento de reconhecimento da mudana de sexo e de nome prprio
no registro civil. A nova legislao sem qualquer dvida uma valiosa conquista para os
que defendem uma abordagem sobre as questes de gnero distinta da que se tem hoje, e
representa um expressivo avano em termos legais.
Em suma, a lei garante o direito ao reconhecimento da mudana de sexo e de
nome independentemente da instaurao de um procedimento judicial para esta finalidade,
bastando a submisso de um pedido devidamente 22 instrudo em qualquer conservatria
de registro civil.
Os direitos resultantes da Lei n 07/2011 tm significativos reflexos para
aqueles indivduos que sob seu amparo podero ver satisfeitas de modo muito menos
burocrtico sua pretenso de ajustamento entre a identidade pessoalmente entendida
como coerente 23 com suas personalidades (comportamento performtico) e aquela
socialmente atribuda a eles no momento do nascimento (que leva em conta basicamente o
dado biolgico presente).
Sob outra perspectiva, a permisso do Estado para que determinados sujeitos
possam cambiar de categoria sexual mais facilmente, pode ter um impacto positivo na
sociedade, na medida em que ir provocar uma maior discusso do tema que
convenientemente permanece relegado a estreitos nichos acadmicos ou entidades
particularmente interessadas.
Entretanto, por mais bem intencionados que tenham sido os motivos que
levaram criao de Lei n 07/2011 nos termos que se deu, uma anlise pouco mais
aprofundada da norma revela que suas vantagens terminam nos aspectos acima citados, ou
que inversamente, nem estes persistiriam, pois a lei poderia vir a causar um prejuzo maior
que os benefcios auferidos.

22

Os requisitos a serem apresentados no momento da instruo no sero objeto de anlise neste trabalho,
pois suscitam tambm inmeras consideraes, que possivelmente sero abordados em um trabalho
autnomo.
23
Conforme afirmado anteriormente, a noo de coerncia s pode adquirir significao quanto inserida no
sistema sexual binrio. Portanto, vale tambm para este termo a mesma ressalva adotada quanto s
expresses sexo e gnero.

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Inicialmente, cabe considerar que a mencionada lei somente se aplica a


transexuais, ou seja, queles que desejam transformar o seu sexo, qualquer outro indivduo
que, mesmo estando insatisfeito com a sua identificao civil, no queria se submeter a um
procedimento cirrgico de reatribuio sexual, est impedido de pleitear o direito com
fundamento nesta lei. Este pormenor exclui de pronto todos os transgneros de se
beneficiarem da Lei n 07/2011 para fins de argumentao consideraremos transgneros
aqueles que transformam 24 apenas o seu gnero, mas mantm o rgo sexual dado
biologicamente.
Diante disso imprescindvel discutir: quais os fatores que poderiam justificar
esta excluso, se no a prpria ideia de que o reconhecimento de uma identidade sexual
(neste ponto de discusso, ainda no se concebe uma identidade baseada no gnero) deve
prestar obedincia a uma determinao que leva em conta a simples presena de certo
rgo genital?
Este esquema baseado ainda no determinismo que agora no biolgico, mas
que se constitui igualmente controverso num determinismo cirrgico somente prestigia
uma ideia que vem tentando ser combatida por muitos tericos, e tambm aqui neste
trabalho.
O fundamento sobre o qual se estabelece a razo de ser dessa norma nestes
termos no pode ser outro que no os j apresentados conceitos de diviso binria, estvel
e contnua do sexo. Por mais contraditrio que possa parecer, o elemento racional
orientador de uma lei que permite que um homem seja legalmente reconhecido como
uma mulher por fim a prpria noo de heterossexualidade compulsria.
Mas no seria ento o rgo sexual dotado de algum valor normativo
suficientemente relevante a ponto de justificar sua gravao num documento? O sexo, aqui
entendido como decorrncia lgica do rgo genital, afinal, capaz por si s de
identificar algum? E como provar, do ponto de vista prtico, que o rgo sexual no
condio necessria nem suficiente para concretizao de uma identidade?

5.1 Desconstruo do Determinismo Biolgico: Da Teoria Prtica

24

Conforme amplamente discutido nos captulos anteriores, incorreto afirmar a possibilidade de uma
transformao ou mudana do gnero, uma vez que este uma construo aleatria, mutvel e no linear. A
descontinuidade no pode ser entendida como um fenmeno externo que subordina o gnero para modificlo, pois na verdade se trata da prpria essncia do gnero.

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75

Cotidianamente, lidamos com diversas pessoas que presumimos por estarmos


inseridos numa estrutura binria serem homens ou mulheres. 25 Dessa classificao
sumariamente concebida dos sujeitos surtem diversos efeitos e padres comportamentais
que se traduzem deste um trivial aceno de cabea at a efetiva proibio de entrada e
permanecia em determinados locais.
Porm, para que possamos em nosso dia-a-dia avaliar, julgar e classificar os
sujeitos segundo o seu sexo no necessrio que se lance mo da verificao de um
registro documental, muito menos, que se comprove a presena deste ou daquele rgo
sexual.
A anlise e identificao (instantnea) do outro como pertencente a este ou
aquele sexo se d por via da observao do comportamento performtico do sujeito
analisado e a consequente associao deste comportamento a uma das categorias sexuais,
por parte de quem avalia 26.
Alm disso, considerando o ocorre na prtica, apenas em alguns casos nos
quais no possvel a anlise do comportamento performtico pelo sujeito avaliador, ou
como ocorre em diversos procedimentos burocrticos que o sexo deve ser provado
por meio de um suporte documental. Ainda assim, na grande maioria desses
procedimentos, a apresentao de documentos no tem por objetivo final a comprovao
efetiva do sexo. Esta serve antes de tudo, seno exclusivamente, para atender a
exigncias do prprio sistema burocrtico, que numa detida anlise pode ser tambm
considerado como parte integrante das estruturas de poder que se prestam a confirmar os
falaciosos conceitos de estrutura binria e naturalizao do sexo 27.
Sendo ento questionada a existncia de uma condio natural, contnua e
imutvel que permita fixar o sexo como contendo uma essncia prpria e independente das
interpretaes culturais que por fim acabam por justific-la, no h razo para que

25

[] basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de
indivduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupaes so manifestamente
diferentes: talvez essas diferenas sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo que por
enquanto elas existem com uma evidncia total. Simone de BEAUVOIR, O Segundo Sexo: Fatos e Mitos,
op. cit. pp. 09 e 10.
26
Neste sentido, se apropriando e desenvolvendo um conceito lanado originalmente por Nietzsche, Judith
Butler afirma que no h identidade de gnero por trs das expresses de gnero; essa identidade
performaticamente constituda, pelas prprias expresses tidas como seus resultados. Judith BUTLER
Problemas de Gnero, op. cit. p. 39. Aspas e itlicos no original.
27
A oposio binria e o processo social das relaes de gnero tornam-se, ambos, partes do sentido do
prprio poder. Colocar em questo ou mudar um aspecto ameaa o sistema por inteiro. Joan Wallach
SCOTT. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. op. cit, p. 93.

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determinados sujeitos permanecerem classificados e divididos por critrios que no tem o


condo de refletir a realidade.
Como demonstrado teoricamente, mesmo que se assuma por um instante a
validade e estabilidade da lgica binria do sexo, ainda assim os fundamentos sobre os
quais se deu a criao da Lei n 07/2011 - que chegou a ser noticiada como a lei para
transexuais mais liberal do mundo" 28 so incapazes de encerrar um nico silogismo
vlido que no se revele diante do mnimo questionamento uma verdadeira falcia.
Mas se do ponto de vista terico resta provada a inadequao desses
fundamentos, como racionalizar esse discurso e extrair dele exemplos prticos que
confirmem a falibilidade da lgica binria e do determinismo, seja ele biolgico ou
cirrgico? Como provar, tambm atravs que exemplos prticos, que no s os transexuais,
mas tambm os transgneros deveriam possuir o direito de ter seus novos nomes e sexos
reconhecidos num documento?
Pois bem, se pacificamente aceito que o sexo determinado pela gentica
no o destino necessrio de uma pessoa e a prpria Lei n 07/2011 se harmoniza com
essa ideia ao oferecer suporte legal para a mudana de sexo pode-se entender ento que
tambm pacfica a ideia de que a simples presena de pnis/vagina no seja
imprescindvel para tornar qualquer um homem/mulher de forma definitiva.
Partindo desta premissa, cabe questionar: se aceito e legalmente
reconhecido que o sexo biologicamente imposto no tem fora vinculativa suficiente para
encerrar uma identidade, ento porque o sexo cirurgicamente construdo o teria? A resposta
a tal questionamento est sem dvida baseada no fato de que na segunda hiptese, o sujeito
pde optar livre e conscientemente por determinado sexo. Sendo assim, no haveria mais
conflito e resolvido estaria o problema da identidade de gnero.
Porm, se num caso a presena de certo rgo sexual no suficiente para se
impor ao sujeito uma determinada identidade e noutro caso o , em verdade, conclui-se que
o rgo sexual por si s indiferente ou insuficiente para tal determinao, pois, em ltima
anlise, o que legitima uma ou outra identidade sexual 29 a aceitao desta identidade
e no a mera existncia desta ou daquela genitlia.

28

Nuno Miguel ROPIO Portugal com a lei para transexuais mais liberal do mundo, publicado em
18.11.2010 em <<http://www.ilga-portugal.pt/noticias/186.php>> (18.12.2011)
29
Personalidade e identidade sexual aqui so entendidas como crena no pertencimento a uma das categorias
sexuais binariamente considerados, trata-se mesmo, de acreditar-se homem ou mulher.

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Contrariamente, porm, poder-se-ia ainda sustentar que do mesmo modo que o


rgo sexual isoladamente no define uma personalidade sexual 30, tambm somente o
elemento volitivo seria insuficiente para o seu reconhecimento. Haveria de se ter ento
uma coincidncia entre a personalidade aceita e o sexo socialmente entendido como
correspondente a tal personalidade. Infelizmente para os entusiastas desse raciocnio, ele
tambm no pode prosperar. O erro deste entendimento pode ser facilmente demonstrado
se imaginarmos a hiptese inversa da sugerida anteriormente.
A ttulo de exemplo suponhamos que algum nascido com genital masculino se
identifique perfeitamente com o sexo masculino e deste modo, assuma o gnero para o
qual estava socialmente predisposto a assumir. Imaginemos ainda que este homem seja,
numa hiptese aberrante, submetido a uma cirurgia de mudana de sexo contra a sua
vontade. Aps o procedimento cirrgico, possuindo agora uma vagina, passar ele a ser
uma mulher? Obviamente no. E porque, no? Primeiramente deve-se considerar que este
homem, no exemplo, foi vtima de um crime de leso corporal gravssima, e por bvio no
dado ao Estado legitimar o resultado de ato criminoso ou mesmo impor uma sano
vtima deste crime.
Porm, se analisarmos a questo de modo mais aprofundado fcil perceber
que muito embora a resposta agora siga um caminho pouco mais complexo, o fundamento
permanece o mesmo. A rigor diferentemente do que ocorre no crime de homicdio, por
exemplo, em que a concordncia da vtima irrelevante para a configurao do crime o
procedimento cirrgico de reatribuio sexual por si s; isoladamente analisado; no se
constitui crime. Trata-se meramente de um procedimento cirrgico regular. Tal interveno
cirrgica s passa a assumir um carter delitual quando realizado contra a vontade do
paciente/ vtima.
Deste modo, mesmo tendo agora uma vagina, no se tornar ele uma mulher
essencialmente por no se reconhecer assim. Do mesmo modo, no deixar de ser
homem somente pelo fato passar a possuir um rgo sexual tipicamente associado s
mulheres.
Deste modo, pode-se mais uma vez afirmar que a razo pela qual este homem
que agora possui o rgo sexual tipicamente associado s mulheres no ser reconhecido
como mulher, reside essencialmente no fato de ele, em seu foro ntimo, no se reconhece

30

Vide nota anterior.

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como pertencente ao sexo feminino; por que ele em qualquer momento optou livre e
conscientemente por se tornar uma mulher.
Como se pode perceber, em ambos os casos citados a identidade sexual e
ainda mais a identidade de gnero no reside na presena de um ou outro rgo sexual,
mas sim na auto-imagem que cada sujeito tem de si, da porque resta invlido qualquer
raciocnio que sustente no poderem os transgneros usufruir das prerrogativas conferidas
pela Lei n 07/2011. Exigir que se possua um determinado rgo sexual para ser
reconhecido como pertencente a determinado sexo contradizer a lgica que acaba de ser
demonstrada.
Alm disso, como se sabe, as diferenas biolgicas entre homens e mulheres
no se encerram na presena de pnis/vagina. Segundo a Lei n 07/2011 para que os
transexuais femininos sejam reconhecidos legalmente como homens no necessria a
retirada de outros rgos exclusivamente femininos tais como tero e ovrios, ento por
que persiste a necessidade da construo de um genital? Qual a razo motivadora deste
apego ao rgo sexual?
A diferenciao estabelecida pela Lei n 07/2011 mostra-se ainda mais
equivocado quando se leva em considerao que os prprios transexuais, j se acreditam
como fora do sexo de origem e pertencentes ao sexo de destino antes mesmo da
realizao do procedimento cirrgico de reatribuio sexual. Alis, ao que tudo indica
justamente a crena no pertencimento ao sexo binariamente oposto o que justifica a
necessidade dos transexuais se submeterem ao procedimento cirrgico. Deste modo, o
desejo 31 em possuir um novo aparelho genital se revela meramente uma conseqncia de
uma identidade de gnero que o indivduo j possui e no um pr-requisito fundamental
para o reconhecimento desta.
Por fim defende-se que fato de o transgnero no desejar modificar seu genital,
no suficiente para mant-lo preso identificao tipicamente correspondente a ele,
pois, se assim fosse, deveramos defender tambm que o homem forosamente operado
fosse identificado como mulher, pois o que se tem em ambos os casos uma identificao
do sujeito no correspondente com o rgo tipicamente associado a ela.
31

Isto no um desejo, um problema srio que tem de ser resolvido com ajuda mdica. Esta declarao
uma jovem transexual chamada Andreia que se alto define como sendo uma Rapariga Transexual, de 17
anos, numa luta pela sua identidade. Sou sensvel, afectuosa, desprotegida, mas lutadora. A minha vida
feita de sonhos e esperanas, mas quero acreditar que um dia vou poder viver como qualquer outra pessoa.
Quero acreditar que daqui por pouco tempo serei capaz de ME ser, por inteiro! disponvel em
<<http://andreia-sonhos.blogspot.com>> (26/01/2012)
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79

Outros aspectos na Lei n 07/2011 so igualmente controversos e passveis de


discusso, porm, mais uma vez, evoca-se a brevidade deste trabalho para postergar tal
anlise para outra ocasio.

6. CONSIDERAES FINAIS

Pretender questionar estruturas to fixamente enraizadas como as noes de


mulher e homem; natureza e cultura e ainda tentar adequ-las, mesmo que precariamente a
um sistema poltico-jurdico pouco flexvel que somente comporta pequenas mudanas que
se do numa velocidade diminuta, se revela um desafio intrigante e estimulante.
Intrigante porque a todo tempo suscita dvidas e questionamentos que colocam
em cheque as mais elementares certezas e geram, por mais paradoxal que possa parecer,
um agradvel desconforto ao desconstruir premissas bsicas do comportamento e
entendimento humano e substitu-las por outras, mais complexas, porm mais justas e
inteligveis.
Estimulante porque a cada velho conceito derrubado se apresentam novas
concepes capazes de revelar um universo de possibilidades inexploradas, e permite
interpretar os sujeitos e a prpria sociedade de um modo inovador.
No incio deste trabalho foi apresentada uma passagem potica que tinha por
objetivo chamar a ateno para as novas descobertas a que a pesquisa pode ns levar, e em
harmonia com essa proposta serve a concluso deste trabalho. Pois aqui se pde defender
que as categorias de sexo hoje ainda entendidas como manifestaes precisas de uma
ordem biolgica so na verdade apenas alegorias problemticas incapazes de explicar
satisfatoriamente os sujeitos que se subordinam a elas.
Estabelecer de modo claro e inteligvel as relaes e as diferenas ou
ausncia delas entre sexo e gnero, teve neste trabalho o objetivo de esclarecer o quanto
contraditrio atribuir-se tratamento legal diferenciado a transexuais e transgneros,
principalmente no que se refere a questes relacionadas identidade.
Por fim, a partir da anlise da Lei n 07/2011 de 15 de maro a qual se teve
que voltar momentaneamente a assumir a existncia de uma estrutura binria
reconhecemos que houve uma positiva inovao no sentido da desburocratizao do
procedimento de reconhecimento de novo nome prprio e novo sexo no registro civil, o
que representa um significativo avano se comparada com a realidade anterior.

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Porm, constatou-se principalmente que mesmo a lei tendo sido concebida para
suprimir iniqidades no que diz respeito ao reconhecimento da identidade de um indivduo,
este conjunto normativo ainda se funda e insiste em legitimar verdades culturais e sociais
que so, por fim, a razo da existncia e permanecia dessas mesmas iniqidades.

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O PRINCPIO FUNDAMENTAL DO ACESSO JUSTIA EM UM


JUDICIRIO MODERNO NO BRASIL

ADRIANA LEMES FERREIRA 1


[email protected]

A insatisfao da sociedade com o Judicirio muito elevada, conforme


pesquisa feita pela Ordem dos Advogados do Brasil, da Seccional do Estado de Gois, que
demonstrou que de 520 pessoas entrevistadas, 66,9% consideraram o funcionamento do
Judicirio ruim ou pssimo 2. perceptvel os problemas do sistema judicirio brasileiro,
que conta com um nmero de juzes inferior ao ideal para a quantidade de procedimentos
ajuizados, alm de sofrer com a ausncia de uma estrutura de apoio adequada ao trabalho
das decises judiciais 3. A sociedade vem assistindo constante ineficincia dos tribunais,
ao mesmo tempo em que clama por uma melhor prestao jurisdicional, a exemplo da
dificuldade de acesso ao Judicirio, o que gera uma carncia social.
Apesar de ser um direito fundamental, o acesso justia est muito aqum do
ideal, o que corrobora para um descredito no sistema judicirio por parte da sociedade
civil. Uma pesquisa feita em 2010, pela Fundao Getlio Vargas (FGV), divulgou os
ndices da confiana judicial perante a populao, 88% das pessoas avaliam que o
Judicirio resolve os conflitos de forma lenta ou muito lenta. Para 80%, os custos para
acessar a Justia so altos ou muito altos e 60% dos entrevistados acreditam que ela nada
ou pouco independente 4.
O acesso justia uma das garantias bsicas prevista na Constituio da
Repblica Federativa do Brasil de 1988, que foi promulgada aps um perodo de intensa
1

Bacharel em Direito pela Universidade Paulista UNIP, Brasil. Ps-graduada em Direito Pblico
Material pela Universidade Gama Filho, Brasil, 2009. Ps-graduanda em Direito Civil e Direito Processual
Civil pela Universidade Cndido Mendes, Brasil. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do
Minho, Portugal.
2
Cf. MARTINS, Janana - Pesquisa aponta insatisfao com Judicirio, Jornal Opo, 09.02.12
disponvel em: http://www.jornalopcao.com.br/posts/ultimas-noticias/pesquisa-aponta-insatisfacao-comjudiciario, acesso em 18.09.2012.
3
Cf. CALGARO, Cleide A reforma do Poder Judicirio: chegada de um novo direito, in Seminrio
Virtual mbito Jurdico: Reforma do Judicirio, 23 a 25 de Maro de 2004. Disponvel em
<http://www.ambito-juridico.com.br/> acesso em 22.02.2012.
4
Cf. CASTRO, Fabricio de FGV: populao considera Justia lenta, cara e parcial, Estado
02.08.2010, disponvel em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,fgv-populacao-considera-justica-lentacara-e-parcial,589426,0.htm, acesso em 02.02.2012.

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represso ditatorial, perodo em que houve a supresso de vrios direitos fundamentais. A


Constituio simbolizou a nsia de mudana em favor de um maior equilbrio no mbito
social, poltico e institucional, o que justifica a presena de um extenso catlogo de direitos
fundamentais na Carta, que tem por fundamento a liberdade, justia e paz 5.
O acesso justia uma das garantias prevista no rol do artigo 5 da
Constituio Brasileira, estabelecido no ttulo dos direitos e garantias fundamentais e, em
especial, no captulo de direitos individuais e coletivos; ou seja, faz parte da lista dos
direitos que devem ser garantidos pelo Estado a todos os cidados. Os direitos
fundamentais que garantem a dignidade da pessoa humana completam os princpios
constitucionais que abrangem as exigncias de justia e dos valores ticos, conferindo o
valor do sistema jurdico brasileiro.
Relevante dizer que a Constituio no tem como escopo assegurar um
direito abstrato de acesso Justia 6, pois, o acesso no se traduz apenas na possibilidade
de provocar a mquina judiciria, mas tambm no direito de acompanhar todo o
desenvolvimento do procedimento e do processo no tribunal.
Para que haja o verdadeiro e efetivo acesso justia necessrio um maior
nmero de pessoas admitidas a demandar e a defenderem-se adequadamente, alm de
diminuir a distncia entre o cidado comum e o poder judicirio.
Uma iniciativa que visa melhorar o acesso do cidado justia promovida
pelo Movimento Nacional pela Conciliao, que teve incio em 2006, coordenado pelo
Conselho Nacional de Justia 7, atravs de campanhas que buscavam promover uma melhor
prestao jurisdicional.
o Estado que exerce o poder de dizer o Direito e resolver os litgios.
Contudo, por vezes, a interveno estadual no consegue eliminar as tenses entre as
partes, no havendo, portanto, um acordo social entre elas. por isso que Hans Kelsen
aduz que o anseio por justia o eterno anseio do homem por felicidade, uma vez que
afirma que justia felicidade social, a felicidade gratuita por uma ordem social, mesmo
no podendo existir a felicidade de ordem justa, isto , que proporcione felicidade a
5

Cf. PIOVESAN, Flvia - O direito internacional dos direitos humanos e a redefinio da cidadania no
Brasil, disponvel em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo3.htm, acesso em
28.08.2012.
6
Cf. TAVARES, Andr Ramos - Curso de Direito Constitucional, 4 edio, So Paulo: Editora Saraiva,
2006, p. 630.
7
Cf. NASCIMENTO, Meirilane Santana Acesso Justia: abismo, populao e Judicirio, in mbito
Jurdico, Rio Grande, XIII, n. 74, mar. 2010, disponvel em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7498, acesso em 18.09.2012.

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todos 8. Sendo assim, podemos entender que existe uma impossibilidade de satisfao de
todas as vontades das partes em conflito.
Podemos concluir que a pretenso da realizao da justia ainda uma busca
do equilbrio de interesses entre todas as partes que compem o quadro da lide. Apesar
disso, ressalte-se que no fcil atingir a satisfao de duas pessoas com interesses
distintos. Por isso, o que visa o direito o equilbrio e a eficincia na resoluo do conflito
e no a satisfao plena das partes.
No entanto, exige-se uma mudana cultural para a construo de uma
democracia com maior participao cidad na administrao da justia, alm da aceitao
do Estado em incentivar e promover, cada vez mais, os meios alternativos de resoluo de
conflitos, promovendo formas cleres, informais, econmicas e justas de realizao da
justia. Ocorre que tais problemticas so abordadas pela maior parte da doutrina como
crise no Judicirio brasileiro.
Para o Judicirio, ainda faltam meios materiais e condies tcnicas que torne
possvel a compreenso, em termos de racionalidade subjetiva, dos litgios inerentes a
contextos socioeconmicos cada vez mais complexos 9. Nessa lgica, os meios alternativos
de solues de controvrsias so, na atualidade, um caminho indispensvel na busca pela
simplificao da justia, desobstruindo os Tribunais e reduzindo o nmero de demandas.
A carncia no Judicirio tambm est relacionada crise do prprio Estado.
Diversas formas de ultrapassar esses obstculos foram buscadas na doutrina, tendo sido
apresentadas algumas das seguintes vantagens para os meios alternativos de resoluo de
disputas: custos baixos, celeridade, informalidade.
No obstante, os meios de resoluo de litgios extrajudiciais constituem um
meio alternativo para reduzir a carga de processos ajuizados cotidianamente. A conciliao,
a mediao e a arbitragem esto conquistando um lugar cada vez mais relevante, uma vez
que so procedimentos de natureza consensual que funcionam como alternativa, pois
envolvem a interveno de um terceiro neutro e imparcial face contenda, assim
orientadas por uma forma no jurisdicional de composio, superam o tradicional
monoplio Judicial.

Cf. KELSEN, Hans - O que justia?: a justia, o direito e a poltica no espelho da cincia. Traduo de
Lus Carlos Borges, 3 ed., So Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p.2. (What is justice?).
9
Cf. FARIA, Jos Eduardo A crise do Judicirio no Brasil: notas para a discusso. In: SARLET, Ingo
Wolgang. Jurisdio e direitos fundamentais. Anurio 2004/2005. Porto Alegre: Livraria do
Advogado/Ajuris: 2005, pp. 8-9.

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Destaque-se, ento, a diferena entre tais formas extrajudiciais de resoluo de


conflitos: a conciliao traduz-se na interveno de uma terceira parte, alheia ao conflito,
que auxilia os litigantes a encontrarem uma plataforma de acordo visando resolver a
disputa; a mediao tambm se traduz na interveno do terceiro neutro, entretanto, faz-se
atravs da apresentao s partes de uma recomendao ou proposta de acordo da sua
autoria; j a arbitragem representa a submisso de um litgio de fato ou de direito, ou de
ambos, a um tribunal arbitral, composto por uma ou mais pessoas, ao qual as partes
atribuem o poder de emitir uma deciso vinculante, ressaltando-se que o rbitro decide
com base no direito ou segundo juzos de equidade 10.
Os processos alternativos de resoluo de conflitos contribuem para garantir a
efetivao do direito justia, uma vez que o sistema judicial no detm capacidade para
responder de forma justa, clere e eficaz todos os processos que so intentados nos
tribunais.
Sendo assim, temos a mediao como o mais novo prottipo de resoluo de
litgios por meio da organizao do dilogo entre as pessoas, ajudando-as a restabelecer a
relao social, a prevenir e a solucionar os litgios. Destaca-se esta figura por ser um
mecanismo diferente do modelo tradicional de justia, cuja tendncia de vislumbrar o
mundo por uma tica judicial, imutvel, condicionada priorizao de peas processuais.
O que se prope no simplesmente a alterao legislativa, mas uma
adaptao da organizao social atravs da implantao de uma poltica pblica voltada
soluo e preveno de litgios e para incluso e pacificao social, para a educao e
formao de uma cultura de paz, construindo assim um ambiente para o desenvolvimento
da participao poltica, cvica e, por consequncia, para a construo da paz. A mediao,
nesse sentido, alm de atuar na busca destes objetivos, um instrumento importante, pois
possibilita a participao individual que resulta em cidadania.
Desta sorte, somos a concluir que o exerccio da cidadania e o acesso justia
possvel atravs do instituto da mediao, visto que a mediao no apenas resolve o
conflito, mas tambm educa, facilita e ajuda a produzir decises sem a interveno estatal.
Assim, os indivduos tm autonomia na tomada das decises.
importante destacar que comungamos da opinio de que os processos de alta
complexidade no fazem parte do rol dos processos a serem dissipados por uma justia
10

Cf. PEDROSO, Joo - O acesso ao direito e justia: um direito fundamental em questo. Coimbra:
Observatrio Permanente da Justia Portuguesa/Centro de Estudos Sociais, 2002, p. 75.

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extrajudicial, afinal, por mais bem preparados que sejam os mediadores, esta preparao
no voltada para a resoluo de casos complexos, uma vez que resolver litgios
complicados tornaria tambm justia alternativa um meio moroso.
Assim a mediao emerge no apenas como um mtodo alternativo de acesso
justia, mas como um instrumento eficaz de proteo de direitos fundamentais.

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Editora Saraiva, 2006.

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CONSTITUIO BRASILEIRA, DIREITO COMPARADO LATINOAMERICANO E HIERARQUIA DOS TRATADOS DE DIREITOS


HUMANOS NO BRASIL

FLVIA DE VILA 1
[email protected]

Segundo Maral (2008), o Direito produzido de maneira autoritria em


sociedades nas quais tanto a educao quanto o exerccio da cidadania no tornam efetiva a
participao crtica dos cidados, pelo livre exerccio de sua racionalidade e autonomia.
Esta a realidade do Estado brasileiro, responsvel pela instituio do Estado Democrtico
de Direito neste territrio, que, mesmo depois da edio da Constituio da Repblica
Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), ainda no permite que prticas emancipatrias
ocorram no mbito de seus poderes institudos. Isto, porque, conforme enfatiza Maral, o
Colonialismo portugus deixou marcas socioculturais profundas no pas, que se
impregnaram na tradio jurdica brasileira e ainda hoje so [...] responsveis pela escassa
participao cidad no processo de efetivao do Estado Democrtico de Direito no
Brasil.
Primeiramente, Maral (2010, p. 9) identificou o [...] idealismo dogmtico e
dedutivista [...] como fator que se reflete no modo de pensar e operar dos agentes do
Direito brasileiro, tanto no que diz respeito sua formao educacional quanto na atitude
adotada em relao reproduo de frmulas legais arcaicas e interpretaes judicirias
deficientes. O segundo fator, a [...] postura parasitria e frequentemente ilegal de agentes
pblicos [...], relaciona-se com a postura dos administradores estatais, que se comportam
como senhores da coisa pblica e beneficirios ltimos dos fins do Estado. Deste modo, os
cidados so encarados como seres desprovidos de autonomia, relegados a coadjuvantes no
exerccio da cidadania ou mesmo coagidos por pessoas que utilizam do aparato legal para
se portarem de maneira [...] autoritria, formal e cartorial [...].

Mestre em Direito e Relaes Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Doutora de Direito Pblico pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC/MG), pesquisadora
e professora do Ncleo de Relaes Internacionais da Universidade Federal de Sergipe. Email:
[email protected]

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Por fim, Maral (2010, p. 9) chama a ateno para a presena do ardiloso [...]
paternalismo

simbitico

entre

Estado

governados,

largamente

difundido

estruturalmente reforado pelas prticas sociais, econmicas, jurdicas e polticas


brasileiras [...], pelo qual a apatia e o descrdito dos cidados so fomentados. Nesta
perspectiva, o Estado encarado como um utpico provedor, do qual tudo se pode esperar
em termos de promessas proclamadas, mas no cumpridas e muito menos cobradas. Deste
modo, torna-se cmodo ao cidado simplesmente aguardar, portanto sem exercer seu
direito de reivindicao, por solues pouco realistas para problemas eminentemente
pblicos, enquanto a impunidade dos administradores fica sem apurao.
Desta maneira, continua Maral (2010, p. 10), o eminentemente formal Estado
Democrtico de Direito, institudo no pas, acarreta a [...] descrena do cidado e
mediao providencialista dos agentes pblicos: tanto o cidado como o agente pblico
conhecem o jogo que esto jogando e acreditam-se ganhadores [...]. E, ainda conforme
Maral (2010, p. 10), a experincia construda pelo cidado, que sempre conviveu com
prticas e linguagens que refletem esta mentalidade sociocultural, a ele se revela e
convence que de nada adiantaria se posicionar ativamente ou se comprometer com atitudes
garantidoras da mudana de suas condies desfavorveis, o que perpetua a anulao da
incapacidade de o modelo institucional efetivar direitos. Assim, o to prolatado Estado
Democrtico de Direito, que se diz consagrado pela Constituio Cidad de 1988, torna-se
simulacro da real situao do pas, que ainda a dessa retroalimentada e alimentadora
simbiose.
O mesmo se pode dizer em relao efetividade dos Direitos Humanos no
Brasil, que esto previstos em tratados internacionais, dos quais o pas faz parte de maneira
apenas formalizada, mas cujos empecilhos para a efetiva aplicao advm das mais
diversas frentes. Mesmo assim, pouco a pouco, se percebem brechas neste sistema,
principalmente causadas pela engajada atuao de alguns setores da sociedade civil, em
articulada conjugao com presses externas, muitas delas provenientes de organismos
internacionais de Direitos Humanos.
Um exemplo das contradies que o Brasil apresenta no mbito da proteo de
direitos diz respeito participao brasileira em fruns e organizaes internacionais sobre
Direitos Humanos, bem como no que diz respeito adoo de tratados internacionais que
versam sobre a matria. Canado Trindade (2000, p. 35) afirma que, no plano das relaes
internacionais, percebe-se a ativa participao dos representantes brasileiros na redao de

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instrumentos internacionais de Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que, no plano


interno, tais tratados no eram adotados em razo de desrespeitos aos Direitos Humanos
que ocorriam no pas. Loureiro, por sua vez, (2004, p. 22) enfatiza as presses que o pas
comeou a receber principalmente dos Estados Unidos em razo do redimensionamento da
poltica externa norte-americana ocorrida durante o governo Carter.
No mbito das Amricas, a proposta de criao de um tribunal que tivesse
competncia para julgar os Estados no que diz respeito a violaes de Direitos Humanos
foi brasileira, apresentada na IX Conferencia Internacional Americana, ocorrida em
Bogot, no ano de 1948. Esta proposta se transformou na Resoluo XXI da OEA, que
dispunha sobre a necessidade da criao de rgo judicial internacional para tornar
adequada e eficaz a proteo jurdica dos direitos humanos internacionalmente
reconhecidos.
Por ocasio da V Reunio de Consulta dos Ministros de Relaes Exteriores,
ocorrida em Santiago do Chile em 1959, o representante brasileiro apresentou projeto de
resoluo com finalidade de fortalecimento da democracia nas Amricas, sustentando a
superioridade da lei sobre os governos, bem como a incorporao da Declarao
Americana de Direitos e Deveres do Homem, de 1948, ao direito positivo dos Estados. O
Brasil tambm se manifestou em favor da celebrao de uma conveno que tivesse o
propsito de proteger regionalmente os Direitos Humanos (CANADO TRINDADE,
2000, p. 40).
Desta reunio, originou-se a Comisso Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), criada pela Resoluo VIII, que, em razo de seu estatuto, de 1960, tinha poderes
limitados para a promoo e proteo dos Direitos Humanos. Assim, na VIII Reunio de
Consulta de Ministros das Relaes Exteriores, ocorrida em Punta del Este, em 1962, por
meio da Resoluo IX, estipulou-se que houvesse ementa ao tratado constitutivo da OEA,
o que veio a ocorrer na II Conferncia Interamericana Extraordinria, realizada no Rio de
Janeiro, em 1965. Nesta ocasio, foi adotada a Resoluo XXII, que ampliou os poderes da
Comisso para inclusive receber peties ou comunicaes sobre violaes de direitos
humanos. Em todas estas situaes, o Brasil sempre foi considerado um dos grandes
interlocutores em favor dos Direitos Humanos, tendo inclusive defendido a posio de que
acordos regionais e universais de Direitos Humanos coexistiriam em harmonia
(CANADO TRINDADE, 2000, p. 39-48).

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Contudo, depois do Golpe de Estado de 1964, o Brasil procurou manter sua


tradio de grande interlocutor pela defesa dos Direitos Humanos nas Amricas, porm
adaptando tais expedientes a sua situao interna. Este paradoxo, segundo Carvalho Ramos
(2012, p. 202), pode ser esclarecido pela tentativa das ditaduras em comunicar uma aspecto
de normalidade para os demais pases da sociedade internacional, o que legitimaria seu
poder e daria apoio para sua perpetuao. Para isto, seria necessrio [...] mimetizar o
discurso de respeito a direitos humanos e democracia, mesmo sem qualquer inteno de
p-lo em prtica.
Deste modo, na Conferncia Especializada Interamericana sobre Direitos
Humanos, ocorrida na cidade de San Jos, na Costa Rica, em 1969, o Brasil foi um dos
maiores defensores da criao da CADH, mas apresentou a proposta de clusula facultativa
de reconhecimento da jurisdio da CorteIDH, constante do art. 62 do texto da conveno,
que no permite o reconhecimento automtico da jurisdio da Corte a partir do momento
da ratificao ou da adeso do Estado ao tratado. No mbito da Assembleia Geral da OEA,
por exemplo, em 1979 o Brasil fez reservas em relao a atribuies que seriam conferidas
Comisso Interamericana de DH para que tratasse de matrias de cunho econmico,
social e cultural em nome da no interveno em assuntos internos (CANADO
TRINDADE, 2000, p. 49, 58).
A respeito das posies brasileiras em foros multilaterais de Direitos Humanos,
o Brasil se mostrava um participante ativo, como na I Conferencia Mundial de Direitos
Humanos da ONU, ocorrida em Teer, em 1968, da qual resultou a Proclamao de Teer e
29 outras resolues sobre a matria. Todavia, a incongruncia da atuao internacional
brasileira em relao aos Direitos Humanos, a despeito de sua ativa participao
internacional, fez com que o pas apresentasse posies dbias perante a Comisso de
Direitos Humanos da ONU. Ou seja, ora o Brasil reafirmava sua suposta convico nas
obrigaes internacionais do pas frente aos Direitos Humanos, mas ora tambm defendia
que caberia aos Estados a responsabilidade exclusiva sobre a matria (CANADO
TRINDADE, 2000, p. 55-57).
A posio paradoxal brasileira tambm era constatada em razo da ausncia de
vontade poltica para que houvesse a adeso do pas ao PIDCP, ao PIDESC e CADH,
dentre outros tratados, apesar do parecer emitido por Canado Trindade, ao Ministrio das
Relaes Exteriores, declarando que no havia qualquer impedimento constitucional e
relembrando s autoridades brasileiras sobre a participao ativa de seus representantes em

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foros nos quais estes documentos foram negociados (CANADO TRINDADE, 2000, p.
57).
Somente nos primrdios do processo de redemocratizao do Brasil, em 1985,
que o presidente Jos Sarney assumiu publicamente o compromisso de aderir a tratados
de Direitos Humanos, o que de fato comeou a se concretizar em 1998, como se ver mais
frente. Apesar disso, o texto constitucional de 1988 no disps diretamente sobre o
processo de aprovao de tratados desse tipo, portanto ficando considerado anlogo ao da
legislao ordinria e herdando, assim, todos os entraves burocrticos que tornaram o
processo legislativo bastante moroso no pas. No inicio dos anos 90, aps a mobilizao da
opinio pblica, o pas aderiu CADH e aos pactos internacionais de 1966, alm de outros
documentos internacionais importantes (CANADO TRINDADE, 2000, p. 57-72;
CARVALHO RAMOS, 2012, p. 203).
A nova ordem constitucional brasileira, apesar de no conter um artigo sobre a
hierarquia de tratados internacionais de Direitos Humanos, disps sobre uma clusula
aberta, pela qual os direitos dos cidados brasileiros no se esgotariam no texto da
constituio. No mbito formal, a CRFB/88 contm extenso rol de direitos e garantias
constitucionais, que abarca vrios artigos e numerosos incisos. Desde seu art. 1, a
cidadania e a dignidade da pessoa humana, dentre outros, so fundamentos do Estado
Democrtico de Direito. O contedo conceitual tanto de cidadania quanto de dignidade da
pessoa humana abrange, em tese, os preceitos jurdicos estipulados nos artigos posteriores,
a exemplo do art. 5, cujo caput e maioria dos incisos estipulam formas de exerccio da
cidadania e maneiras de desenvolvimento de linguagem, bem como prticas associadas
dignidade da pessoa humana. Contudo, enfatiza-se, a prpria CRFB/88, no seu art. 5, 2,
determina que os dispositivos expressos no diploma constitucional no esgotam os direitos
dos cidados brasileiros, que podem recorrer a tratados internacionais, dos quais o Brasil
faa parte, para integralizar tanto a linguagem quanto as prticas cidads do pas.
Este regime, chamado de paridade constitucional entre normas constitucionais
e tratados internacionais sobre os Direitos Humanos, no mbito material, tambm se
estende para o aspecto formal, em razo do art. 5, 3 da CRFB/88, acrescido ao texto
original pela Emenda Constitucional n 45, de 30 de dezembro de 2004, que assim dispe:
Os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos
respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais.

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Desta maneira, segundo Mazzuoli (2009, p. 751-752), os tratados de Direitos


Humanos aprovados no Brasil antes da Emenda Constitucional n 45, apesar de no terem
passado por procedimentos mais rgidos para sua aprovao, gozam do regime
constitucional previsto pelo legislador originrio, pelo qual o sistema usual de aprovao
de tratados seria utilizado, mesmo sem a exigncia de qurum qualificado e de votao em
dois turnos. Consequentemente, e em razo do 2 do art. 5, estes tratados seriam
constitucionais no s em relao ao contedo mas tambm no que respeita forma,
configurando-se verdadeira emenda Constituio.
Ainda de acordo com Mazzuoli (2009, p. 752-767), aqueles que fossem
ratificados pelo Brasil aps a edio da Emenda Constitucional n 45, s poderiam ser
formalmente constitucionais se aprovados pelo qurum exigido no 3 do art. 5 da
CRFB/88, mas, mesmo no aprovados pelo qurum especificado, ainda assim teriam
contedo constitucional em razo da paridade constitucional estabelecida pelo 2 desse
mesmo art. 5. Atualmente, a Conveno Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficincia e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York no dia 30 de maro de
2007 e promulgado no Brasil pelo Decreto Executivo 6.949, de 25.8.2009 (publicado no
DOU de 25 de agosto de 2009), o nico tratado internacional que passou pelos
procedimentos especiais, previstos pela Emenda Constitucional n 45.
Contudo, esta orientao de Mazzuoli no a mesma acolhida pelo Supremo
Tribunal Federal, que tem divergncias sobre a matria desde os primeiros anos de
vigncia da CRFB/88. Em razo da ausncia de dispositivo que mencione a hierarquia
normativa dos tratados internacionais no texto constitucional brasileiro, desde a edio da
Constituio o Supremo Tribunal Federal (STF) determinara que os tratados internacionais,
que vinham sendo incorporados ao ordenamento jurdico interno, teriam status equivalente
ao de lei ordinria, pois o qurum de votao aplicados aos tratados coincide com os da lei
ordinria, em razo da aplicao do art. 47 da CRFB/88 2.
importante destacar que at 1977, o posicionamento do STF era no sentido
de

dar

primazia

ao

tratado

internacional

quando

em

conflito

com

norma

infraconstitucional. Contudo, a partir de 1977, o SFT tem adotado o sistema de paridade


legal, segundo o qual Tratado e lei interna tm o mesmo status de lei ordinria, valendo-se
2

Na ausncia de outro dispositivo constitucional especfico sobre a aprovao de tratados, aplica-se o art.
47, contido no ttulo IV, Da organizao dos poderes, do Cap. I, Do Poder Legislativo, da seo I, Do
Congresso Nacional, cuja redao a seguinte: Salvo disposio constitucional em contrrio, as
deliberaes de cada Casa e de suas Comisses sero tomadas por maioria dos votos, presente a maioria
absoluta de seus membros.

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dos critrios cronolgico (lex posterior derogat priori) e/ou de especialidade (lex specialis
derogat legigenerali) 3. Desta maneira, era possvel que ocorresse o chamado treaty
override, doutrina desenvolvida a partir do entendimento da Suprema Corte dos Estados
Unidos, nos anos 50 e 60 do sc. passado, a respeito da clusula de supremacia da
Constituio contida no art. 6, 2 do texto constitucional estadunidense 4.
Contudo, uma polmica se instaurou quando o Brasil aderiu CADH, em
1992, tambm denominada Pacto de San Jos da Costa Rica, tratamento mais usado pelo
STF. De acordo com o art. 7, 7 da CADH, a possibilidade de priso por dvida s
poderia ocorrer em razo de dbito alimentar, o que se confrontava frontalmente com o
disposto no inciso LXVII do art. 5, pelo qual a priso civil por dvida poderia ocorrer no
s devido a obrigaes alimentares, como tambm para quem se encontrasse na situao de
depositrio infiel. As decises do STF nestes casos foram taxativas, determinando que o
sistema constitucional brasileiro no admitisse que tratados internacionais tivessem
paridade constitucional, apesar de o constituinte originrio se ter expressado no sentido
oposto.
A deciso do Habeas Corpus 77.631-5, de 1988, em que estava em discusso o
mencionado art. 7, 7 do Pacto San Jose da Costa Rica face ao art. 5, inciso LXVII da
CRFB/88, que havia recepcionado o Decreto-lei n 911/69, este regulamentando a priso
civil por dvida de inadimplente alimentcio e devedor infiel, foi bastante questionada
poca em que foi proferida. A deciso final do caso, exarada em 1998, sentenciou que a
norma internacional estava prejudicada por se tratar de norma geral e hierarquicamente
3

O Recurso Extraordinrio n 80.004, de 1977, determinou que a Lei Uniforme de Genebra (LUG), que
entrou em vigor com o Decreto 57.663, de 1966, havia sido revogada por lei posterior, o Decreto-lei 427/69
exigia aval aposto na nota promissria, uma exigncia formal que no constava da LUG.
4
Antes da Primeira Guerra Mundial, os debates sobre a supremacia dos tratados, em relao
Constituio, eram frequentes no Congresso Norte-americano. A argumentao defendida pelos Estados da
federao norte-americana era a de que no cabia ao governo federal firmar tratados em relao a matrias
contidas na 10 Emenda Constituio, que estipula que os poderes governamentais no listados no texto
constitucional so poderes dos Estados da federao. No caso Missouri v. Holland (1920), que envolveu a
validade de um tratado entre Canad e Estados Unidos sobre a regulao da caa de aves migratrias, o
Estado de Missouri, local de maior concentrao destes animais, arguiu que o tratado feito pelo governo
federal havia invadido os poderes reservados aos Estados da federao pela 10 Emenda. Neste caso, o juiz
Oliver Wendell Holmes defendeu o posicionamento de que poderia haver situaes em que, no caso do
interesse nacional, atos do Congresso poderiam no ser aptos a lidar com tais questes, mas tratados seriam.
Holmes, portanto, sugeriu que as restries constitucionais ao treaty making power no seriam as mesmas
referentes separao de competncias entre os entes federados. Assim, os poderes dos Estados federais no
seriam uma limitao inerente ao poder de se firmar tratados. Esta polmica ressurgiu no caso Reid v. Covert
(1957), em que os dependentes civis de militares americanos no exterior tm direito a julgamento civil.
Nenhum tratado poderia conferir poderes ao Congresso ou a qualquer parte do governo fora dos limites da
Constituio. Este caso determinou a Supremacy Clause em relao aos efeitos dos tratados, comparados
normativa infraconstitucional interna (HALL, 2005, p. 1026-1027).

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inferior norma especial da CRFB/88 e do Decreto-lei n 911/69. Assim, e reiterando, o


Pacto de San Jos no poderia revogar a CRFB/88, por ser norma hierarquicamente
inferior. Tambm no poderia revogar o Decreto-lei n 911/69, mesmo tendo status de lei
ordinria, pois, e apesar de sua adeso ter sido em data posterior da sua recepo,
representaria uma norma geral, ou seja, que expandia direitos e no os limitava por ser
especfica, como no caso da legislao infraconstitucional que regulamentava a questo do
depositrio infiel.
A deciso deste caso, o primeiro a ser julgado depois da adeso do Brasil ao
Pacto de San Jos, serviu de precedente para os demais, pelo qual o STF passou a adotar
tanto o critrio cronolgico quanto o da especialidade para determinar a validade de
tratados internacionais no Brasil, ignorando o j mencionado art. 5, 2, bem como o 1
daquele mesmo dispositivo legal, pelo qual as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais teriam aplicao imediata. Este entendimento perdurou at que a edio da
Emenda Constitucional n 45 obrigou a sua reviso, conforme ser visto adiante.
Retomando a anteriormente mencionada promessa do presidente Jos Sarney
adeso de tratados de Direitos Humanos, logo no incio do processo de redemocratizao
em 1985, da em diante essa questo comeou a ser viabilizada no mbito do poder pblico
federal e o primeiro deles (a Conveno contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruis,
Desumanos ou Degradantes) foi ratificado em 1989. Contudo, e apesar de a postura das
relaes internacionais brasileiras sinalizar para o resto do mundo que o Brasil passaria,
daquele momento em diante, a dar prevalncia aos Direitos Humanos, conforme disposio
do art. 4, II da CRFB/88, esta no era a realidade domstica quanto aos ento recmaprovados tratados de Direitos Humanos. Ademais, convm destacar que, no mesmo ano
em que a deciso do STF sobre o status normativo CADH foi emitida, o Brasil passou a
reconhecer, por meio do Decreto Legislativo n. 89, de 03 de dezembro de 1998, a
competncia obrigatria da Corte IDH, em todos os casos relativos interpretao ou
aplicao da CADH, desde que ocorridos a partir do citado Decreto, de acordo com o
previsto no pargrafo primeiro do seu artigo 62.
Consequentemente, esse posicionamento de mbito interno do STF, mas
enquanto rgo encarregado de interpretar a Constituio, desferiu duro golpe contra a
prpria ordem constitucional brasileira. Mais uma vez, os brasileiros receberam a
mensagem, do mximo rgo oficialmente institudo como assegurador de direitos e
garantias prprios do Estado Democrtico de Direito, de que a luta por prticas que

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incentivassem a cidadania se definharia na encurralada burocracia dos concernentes


trmites jurdico-legislativos.
Esta incoerncia brasileira, em relao a normas de Direitos Humanos, j
poca se contrastava com os novos diplomas constitucionais de outros pases latinoamericanos, ou com reformas constituintes que integravam os Direitos Humanos aos textos
constitucionais. Quase todas as constituies latino-americanas, exceo de Cuba, Chile,
Mxico e Panam, contm clusulas abertas que, a exemplo do art. 5, 2 da CRFB/88,
declaram que os direitos contidos no mbito do texto constitucional no excluem outros
enumerados em tratados de Direitos Humanos. Muitas delas se utilizam de expresses, tais
como direitos inerentes ou inalienveis, derivadas de concepes jusnaturalistas.
Entretanto, o STF brasileiro continuou margem destas discusses,
defendendo a teoria da paridade legal dos tratados de Direitos Humanos no Brasil, at que
a Emenda Constitucional n 45, de 2004, produziu grande alteraes no texto
constitucional, promovendo a denominada reforma do judicirio, e introduzindo novos
pargrafos ao art. 5. Conforme pesquisa de Cunha (2010, p. 58-67) 5, apesar de os
internacionalistas brasileiros, como Piovesan (2006), Canado Trindade (1991) e Mazzuoli
(2002), dentre outros, terem alertado para o fato de que tratados versando sobre Direitos
Humanos possuem status diferenciado na ordem constitucional brasileira, este
entendimento no era compartilhado pela maior parte da magistratura, inclusive dos
ministros do STF. Esta Corte considerava que qualquer tratado, incluindo os de Direitos
Humanos, poderiam ser revogados tacitamente quando a lei lhe sobreviesse e lhe fosse
contrria, em razo de lhe aplicarem as teses sintetizadas nos brocardos latinos
anteriormente mencionados lex posteriori derogat priori e lex specialis derogat legi
generali.
Contudo, a alterao constitucional de 2004 reacendeu os debates entre os
magistrados sobre o status hierrquico dos tratados de Direitos Humanos no Brasil.
Segundo LAFER (2005, p. 16), a incluso do 3 ao art. 5 teria sido a maneira encontrada

Pesquisa resultado do Projeto de Iniciao Cientfica (ProPic) da Universidade Fumec, de Belo


Horizonte, Brasil. A pesquisa foi conduzida entre os anos de 2009 e 2010 e coordenada por Flvia de vila,
denominado A hierarquia dos tratados internacionais: a teses da supralegalidade das leis e o princpio da
dignidade da pessoa humana. Seus resultados foram publicados por Brenda Cunha no livro coordenado pela
Universidade Fumec de divulgao de pesquisas selecionadas, que foram conduzidas na instituio naquele
perodo.

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pelo legislador para introduzir uma lei interpretativa, destinada a acabar com controvrsias
jurisprudenciais e doutrinrias sobre a aplicao do 2 do artigo 5.
Em 2008, o Recurso Extraordinrio 466.343/SP, relatado pelo ministro Cezar
Peluso e julgado em 3 de dezembro, determinou que o Pacto de San Jos da Costa Rica
tenha nvel hierrquico diferenciado em relao s leis ordinrias. A maioria dos ministros
do STF acompanhou o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, que defendeu a teoria da
supralegalidade. Divergiu desta opinio o voto-vista do Min. Celso de Mello, que adotou a
paridade constitucional, baseado no art. 5, 2 da CRFB/88, acompanhado apenas pelos
ministros Cezar Peluso e Menezes Direito. Desta forma, a partir desse julgamento, foi
abandonado o posicionamento que igualava os tratados internacionais ao nvel da
legislao ordinria, mas conferido ranqueamento hierrquico aos tratados de Direitos
Humanos condizente com o texto constitucional brasileiro.
Neste caso, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello apresentaram
interpretao sistemtica dos artigos 5, LXVII, 1, 2 e 3 da CRFB/88, bem como do
art. 7, 7 do Pacto de San Jose da Costa Rica, e do art. 11 do PIDCP, este que dispe
sobre a proibio da priso em razo de descumprimento contratual. Especificamente sobre
a alienao fiduciria, foi analisado o Decreto-Lei 911/69, que at ento regulamentava o
art. 5, inciso LXVII, que permitia a priso civil por dvida. Este tipo normativo previa a
equiparao do devedor-fiduciante ao depositrio infiel para fins de priso civil.
Para o relator, ministro Cezar Peluso, no era necessria a discusso sobre o
status normativo do Pacto de San Jose, pois a CRFB/88 somente teria excetuado a
proibio da priso civil por dvida do inadimplente de obrigao alimentar e de
depositrio infiel, no do alienante fiducirio. Por esta razo, a equiparao prevista no art.
4 do Decreto-Lei 911/69 a tornava inconstitucional, visto que o depositrio infiel no teria
prerrogativas prprias do direito de propriedade, pois o alienante continuaria sendo
proprietrio, embora limitado em seu domnio. Com base neste entendimento, e no
querendo se comprometer com o status dos tratados de Direitos Humanos no Brasil, o
ministro defendeu que o Decreto-Lei 911/69 seria inconstitucional. O ministro Joaquim
Barbosa, que acompanhou o voto do relator, utilizou dos mesmos argumentos,
acrescentando que, com o advento do Pacto de San Jos da Costa Rica, teria se tornado
ainda mais insustentvel a tese que acolhia a priso civil nos casos que envolvem alienao
fiduciria em garantia, com base na proibio taxativa do art. 7, 7, que contraria
frontalmente o Decreto-Lei de 1969.

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O ministro Cezar Peluso, que seguiu a fundamentao terica do voto do


ministro Celso Mello, conforme ser visto adiante, afirmou que a CRFB/88 apresentou
duas regras sobre a priso civil: a principal, que a probe, e a secundria, que abre a
possibilidade de exceo, significando que a Constituio apenas autoriza o legislador a
adotar a priso civil do depositrio infiel e do devedor de alimentos. Por outro lado, se o
legislador infraconstitucional, usando da competncia que lhe conferida pela
Constituio, na norma excepcional contida na clusula final do art. 5, LVII, optar pela
incorporao dos termos restritivos da Conveno ordem jurdica interna, observa-se que
ter adotado a regra principal, a da excluso da admissibilidade da priso civil do
depositrio. Por esta razo, seria indiferente a posio hierrquica dos tratados, pois tanto o
legislador infraconstitucional quanto o constitucional poderiam se utilizar da regra
principal, referente priso civil, que impede a restrio de direitos na maioria das
situaes, para tambm inadmitir seu emprego ao depositrio, qualquer que seja a
qualidade ou a natureza do depsito.
A ministra Carmem Lcia se utilizou de parte deste entendimento, declarando
que o devedor fiduciante no era depositrio. Contudo, sobre a hierarquia dos tratados de
Direitos Humanos no Brasil, a ministra defendeu que o art. 4 do decreto-lei n. 911/69 no
teria sido recepcionado pela Constituio. No seu lugar, teria sido acolhido o dispositivo do
art. 7, 7 do Pacto de San Jos da Costa Rica de maneira supralegal, em razo da
impossibilidade de se dar interpretao extensiva a tudo que limita a liberdade, como no
caso da priso por dvida.
J o ministro Ricardo Lewandowski entendeu igualmente que a alienao
fiduciria no se encaixa na exceo prevista no art. 5, LXVII e defendeu interpretao
proativa dos direitos fundamentais, para que os mesmos sejam efetivados. Entretanto, no
tratou com mais detalhes das questes ligadas hierarquia dos tratados de Direitos
Humanos no ordenamento jurdico brasileiro. Apenas acrescentou que os Direitos
Humanos no seriam numerus clausus, mas apertus. Citou a teoria geracional de direitos,
pela qual os direitos de quarta gerao estariam em pleno desenvolvimento, alguns j
internacionalmente em fase de reconhecimento, como os direitos paz, ao
desenvolvimento,

ao

patrimnio

comum

da

humanidade,

comunicao,

autodeterminao dos povos, ao desenvolvimento e ao meio ambiente. Tais direitos foram


considerados pelo ministro de difcil compreenso e, portanto, no passveis de lhes
atribuir status constitucional.

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Em seu voto, o ministro Carlos Britto tambm acompanhou o relator, ainda


fundamentando sua deciso no princpio da proporcionalidade, tambm invocado pelo
ministro Gilmar Mendes, bem como os princpios da dignidade humana e da prevalncia
dos Direitos Humanos, que constam da CRFB/88. O Pacto de San Jos seria, no entender
do ministro, uma norma supralegal tambm em razo da proibio do retrocesso, que no
permitiria lei ordinria recuar quanto tutela dos Direitos Humanos, comparados s
conquistas dos tratados internacionais.
Para o ministro Marco Aurlio, que em julgamentos anteriores sempre havia
sido contra a admissibilidade da priso civil do depositrio infiel, explicitou em seu voto
que, ainda que fosse possvel confundir a figura do devedor fiduciante com a do
depositrio infiel, o Brasil, como parte do Pacto de San Jos da Costa Rica, teria de fazer
cumprir seu dispositivo, que suplantou a legislao regulamentadora do texto
constitucional sobre a priso por dvida. Contudo, o tratado no estaria no mesmo patamar
dos dispositivos constitucionais em virtude de no ter sido submetido, por ocasio de sua
aprovao, s maiores solenidades envolvidas nos procedimentos referentes a emendas
Constituio.
O extenso voto do ministro Gilmar Mendes foi o que mais discorreu sobre a
questo da posio hierrquica dos tratados internacionais, em relao ao ordenamento
jurdico brasileiro, alm do voto proferido pelo ministro Celso Mello. Assim, confrontando
a questo do devedor fiduciante e a previso do Pacto de San Jos da Costa Rica, o
ministro enfatizou que as legislaes mais avanadas em matria de Direitos Humanos
probem expressamente qualquer tipo de priso civil decorrente do descumprimento de
obrigaes contratuais, excetuando-se apenas o caso de inadimplncia alimentar. Com a
adeso do Brasil aos documentos internacionais mais importantes de Direitos Humanos,
como o Pacto de San Jos da Costa Rica e o PIDCP, iniciou-se intenso debate sobre a
possibilidade de revogao, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso
LXVII do art. 5, especialmente da expresso depositrio infiel, e, por consequncia, de
toda a legislao infraconstitucional que nele se fundamentava direta ou indiretamente.
Segundo o ministro Gilmar Mendes, em razo do disposto no 2 do art. 5,
algumas correntes foram defendidas no mbito do direito brasileiro em relao ao status
dos tratados de Direitos Humanos, sendo elas: supraconstitucionalidade, defendida por
Albuquerque Mello; paridade constitucional, conforme Canado Trindade e Flvia
Piovesan; paridade legal com a lei ordinria, conforme precedente do Recurso Especial

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80.004 SE, de 1977, que teve como relator o ministro Xavier de Albuquerque; e a
supralegalidade, constante nas Constituies da Alemanha (art. 25), Frana (art. 55) e
Grcia (art. 28).
Com base no princpio da supremacia formal e material da Constituio sobre
todo o ordenamento jurdico, a tese da supraconstitucionalidade seria invivel por no
permitir o controle de constitucionalidade de tratados internacionais, apesar de no conter
clusula constitucional expressa sobre o assunto. Esta no seria necessria, porque o art.
102 da Constituio j estipula o controle de constitucionalidade de tratados internacionais.
O ministro Gilmar Mendes tambm citou o RHC 79.785/RJ, relatado pelo ministro
Seplveda Pertence no recurso de Habeas Corpus 79.785/RJ, decidindo que os
representantes brasileiros deveriam sempre observar a Constituio, de forma que os
tratados e convenes fossem celebrados em consonncia com o procedimento formal,
bem como respeitassem as limitaes materiais impostas pela Constituio brasileira,
especialmente quando se trata de direitos e garantias fundamentais.
No entender do ministro Gilmar Mendes, a ampliao inadequada do contedo
material, relativo aos Direitos Humanos, poderia ser perniciosa para o sistema jurdico
brasileiro, pois permitiria produo normativa alheia ao controle de sua compatibilidade
com a ordem constitucional interna e inviabilizaria o controle de sua constitucionalidade
pelo STF. Os tratados deveriam ser considerados como princpios interpretativos no
sentido de conduzirem os julgados a aplicarem a norma mais favorvel vtima, titular do
direito. Deste modo, tanto o Direito Interno quanto o Direito Internacional estariam
interagindo para a realizao de propsito convergente e comum em relao proteo dos
direitos e interesses humanos.
No que diz respeito paridade legal, o ministro Gilmar Mendes se pronunciou
no sentido de afirmar que a mudana constitucional de 2004 foi responsvel por evidenciar
o apego que existia no Brasil a uma tese que no mais prevalece na maioria dos pases e
que desrespeita o art. 5, 2 da CRFB/88. Alm do mais, o fato de o art. 27 da Conveno
de Viena, sobre Direito dos Tratados, impedir que os Estados invoquem disposies de seu
direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado, tornaria incua a teoria da
paridade legal. Em relao paridade constitucional, o ministro Gilmar Mendes considera
esta teoria como fonte de insegurana jurdica, no Brasil, pois, como h polmica sobre a
distino

do

contedo

material

referente

Direitos

Humanos,

bloco

de

constitucionalidade brasileiro sempre estaria aberto.

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101

Por fim, o ministro Gilmar Mendes acolheu a tese da supralegalidade em


relao ao carter especial que os tratados de Direitos Humanos tm frente ao ordenamento
jurdico nacional, o que os colocaria acima das leis ordinrias, sem afrontarem a
Constituio Federal. Entretanto, defendeu que os tratados mais importantes sobre os
Direitos Humanos, aprovados antes da Emenda Constitucional de 2004, sejam novamente
submetidos a processo de aprovao no Congresso Nacional, em virtude dos
procedimentos contidos no art. 5, 3 da CRFB/88, o que lhes conferiria status de emenda
constitucional. Deste modo, em razo da supralegalidade, toda normatividade
infraconstitucional conflitante com tratados internacionais de Direitos Humanos,
ratificados ou aderidos pelo Brasil, teria paralisada sua eficcia jurdica, o que tornaria
invlido o Decreto-Lei 911/69.
O voto-vista do ministro Celso de Mello acolheu o entendimento da paridade
constitucional, ao defender que o Poder Judicirio constitui o meio para garantir as
liberdades civis e os direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenes
internacionais subscritos pelo Brasil. Deste modo, o magistrado teria o dever de atuar
como garantidor da supremacia da Constituio, bem como das garantia das liberdades
fundamentais da pessoa humana, conferindo efetividade aos direitos fundados em tratados
internacionais de que o Brasil seja parte.
A CRFB/88, como resposta da sociedade brasileira ao totalitarismo que
desconsiderava direitos bsicos da pessoa humana, consagrou como princpios a dignidade
da pessoa humana, a prevalncia dos Direitos Humanos, o repdio tortura ou a qualquer
outro tratamento desumano ou degradante, e a impossibilidade de reviso constitucional
que objetive a supresso do regime formal das liberdades pblicas, dentre outros. Desta
maneira, conforme a orientao de Canado Trindade, Piovesan e Mazzuoli, reconhece-se
que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna,
paridade constitucional.
Assim, as convenes internacionais de Direitos Humanos, celebradas
anteriormente vigncia da Emenda Constitucional n 45, de 2004, como o Pacto de San
Jos da Costa Rica, revestir-se-iam de carter materialmente constitucional, compondo o
bloco de constitucionalidade brasileiro. Alm disso, sua promulgao, de acordo com a
ordem jurdica interna, lhes teria conferido status constitucional formal, em razo da
recepo operada pelo art. 5, 2 da CRFB/88. Para aqueles que venham a ser adotados
aps a incluso do 3 no art. 5, o ministro Celso de Mello entende que, devido vigncia

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de procedimentos diferenciados terem sido introduzidos no sistema constitucional


brasileiro, em relao a tratados de Direitos Humanos, devem seguir o iter determinado, a
fim de que possam ser considerados formalmente constitucionais.
Deste modo, situaes diferenciadas poderiam ocorrer em relao aos tratados
internacionais no que diz respeito sua natureza constitucional: se anteriores Emenda
Constitucional n 45, de 2004, seriam tanto materialmente quanto formalmente
constitucionais; se posteriores, somente seriam formalmente constitucionais se observados
os procedimentos do 3 do art. 5, mas teriam contedo constitucional em razo da
recepo do 2 do art. 5, por constiturem o bloco de constitucionalidade brasileiro.
Contudo, se porventura tais tratados viessem a restringir, suprimir ou modificar
de maneira gravosa as prerrogativas essenciais ou as liberdades fundamentais,
reconhecidas e asseguradas pelo prprio texto constitucional, a Constituio teria status
superior, em razo de as clusulas ptreas definidas no art. 60 da CRFB/88 limitarem o
poder reformador. Ademais, o exerccio do treaty making power estabelecido nos arts. 26 6
e 46 7 da Conveno de Viena, sobre Direito dos Tratados, no d discricionariedade ao
poder Executivo brasileiro, atuando como agente representante do Estado brasileiro na
esfera internacional, para adotar textos convencionais que estejam em desconformidade
com os limites do texto constitucional.
A Constituio, como lei fundamental do Brasil, ainda subordinaria todos os
tratados e leis celebrados pelo pas, atribuindo irrestrita precedncia ao texto
constitucional, exceo dos que versem sobre Direitos Humanos, de acordo com a
aplicao da prpria CRFB/88, pelos 2 e 3 do art. 5. Deste modo, o Decreto-Lei
911/69, em razo da incompatibilidade material com o texto constitucional, no teria sido
recepcionado pela ordem jurdica vigente 8.
6

O art. 26 da Conveno de Viena, sobre Direito dos Tratado, assim redigido: Pacta sunt servanda.
Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa f.
7
Segundo o art. 47 da Conveno de Viena, sobre Direito dos Tratados, Restries Especficas ao Poder
de Manifestar o Consentimento de um Estado. Se o poder conferido a um representante de manifestar o
consentimento de um Estado em obrigar-se por um determinado tratado tiver sido objeto de restrio
especfica, o fato de o representante no respeitar a restrio no pode ser invocado como invalidando o
consentimento expresso, a no ser que a restrio tenha sido notificada aos outros Estados negociadores antes
da manifestao do consentimento.
8
Contudo, apesar de o ministro no ter se referido no seu voto, a prpria Conveno de Viena sobre o
Direito dos Tratados de 1969, que positivou os dispositivos sobre o treaty making power advindos do
costume internacional, estabelece, segundo seu art. 27, que uma das partes no tratado no pode invocar [...]
as disposies de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra, tambm
contida no art. 46 do mesmo dispositivo legal, determina que disposies sobre o Direito Interno dos Estados
sobre sua diviso de competncias, via de regra, no podem ser invocadas para descumprimento de um
tratado internacional, a no ser que esta violao dissesse respeito a uma norma de importncia fundamental.

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O voto-vista do ministro Menezes Direito reproduziu voto anterior, que adotou


no Habeas Corpus 87585/TO, no qual defendeu que tratados internacionais de Direitos
Humanos tm superioridade jurdica face s leis internas, reconhecendo neles a
qualificao constitucional, desde que no venham a suprimir ou modificar, de maneira
gravosa, liberdades fundamentais reconhecidas e asseguradas pelo texto constitucional.
Para o ministro, no seria razovel considerar as relaes entre Direito Internacional e o
Direito Interno como subordinadas primazia absoluta de um ou de outro, em razo de
ambas possurem contedo material semelhante.
De acordo com a posio do ministro Menezes Direito, em razo de os Direitos
Humanos no estarem circunscritos unicamente a esferas domsticas, por se constituir
tema de legtimo interesse internacional, seria necessrio que o conceito de soberania, que
passa por processo de relativizao, admitisse que o indivduo devesse ter direitos
protegidos, no s internamente como tambm em esfera internacional, na condio de
sujeito de direito. Deste modo, o prprio constituinte teria reconhecido a importncia da
matria, lhe conferindo hierarquia especial frente ao ordenamento jurdico interno.
Esta polmica deciso do STF exemplifica os problemas que o Brasil tem para
a efetivao dos Direitos Humanos em seu territrio. A falta de fundamentao filosfica,
baseada nas prticas e necessidades da populao, gerou um arcabouo jurdico confuso e
desconectado das expectativas da sociedade. E isto quer dizer que a atuao jurdica no
Brasil se mostra incompatvel com as esperanas depositadas no texto constitucional de
1988, em relao conformao do Estado Democrtico de Direito, inclusive no que
respeita efetividade dos Direitos Humanos, principalmente no que se refere efetiva
aplicao das Sentenas da Corte IDH.

BIBLIOGRAFIA
CANADO TRINDADE, A. A. A proteo internacional dos direitos humanos:
fundamentos jurdicos e instrumentos bsicos. So Paulo: Saraiva, 1991.

Segundo interpretao de Macedo (MACEDO, 2011, p. 195), tal disposio no interessa hierarquia que
um tratado poder ter internamente, mas a seu cumprimento. Macedo (p. 197) ainda assegura que a exceo
do art. 46 no propriamente exceo, mas a nulidade que pode ocorrer em virtude de um consentimento
eivado de vcio, denominada ratificao imperfeita.

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CANADO TRINDADE, A. A. A proteo internacional dos Direitos Humanos


e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco dcadas. 2. ed. Braslia: Universidade
de Braslia, 2000.
CARVALHO RAMOS, A. D. Processo internacional de direitos humanos:
anlise dos sistemas de apurao de violaes ds direitos humanos e a
implementao das decies no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
CUNHA, B. G. D. A hierarquia dos tratados internacionais: a tese da
supralegalidade das leis e o princpio da dignidade da pessoa humana. In:
UNIVERSIDADE FUMEC Iniciao cientfica: monografas da Universidade
Fumec. Belo Horizonte: Universidade Fumec, 2010. p. 35-94.
LAFER, C. A internacionalizao dos direitos humanos: Constituio, racismo e
relaes internacionais. So Paulo: Manole, 2005.
LOUREIRO, S. M. D. S. Tratados internacionais sobre direitos humanos na
Constituio. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
MACEDO, P. E. V. B. D. Comentrios ao artigo 27. In: SALIBA, A. T. Direito
dos Tratados: comentrios Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados
(1969). Belo Horizonte: Arraes, 2011. p. 191-197.
MARAL, A. C. Metaprincpios do Estado Democrtico de Direito: um ponto
de vista pragmatista. In: MARAL, A. C. et al (org.). Os princpios na construo
do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 9-35.
MAZZUOLI, V. D. O. Direitos Humanos, Constituio e os tratados
internacionais: estudo analtico da situao e aplicao do tratado na ordem
jurdica brasileira. So Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
MAZZUOLI, V. D. O. Curso de Direito Internacional Pblico. So Paulo: LTr,
2009.
PIOVESAN, F. Direitos Humanos e justia internacional. So Paulo: Saraiva,
2006.

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DIREITO AO AMBIENTE: UM DIREITO DE TODOS,


UM DEVER DE CADA UM

INS LANDOLT FERREIRA GOMES ABRUNHOSA 1


[email protected]

RESUMO

Partindo do ponto de que a existncia humana seria impossvel se no fosse


enquadrada num meio ambiente com as mnimas condies de sustentabilidade, o Direito
do Ambiente deveria ser visto como um Direito Humano. De que valer falar em Direito
Vida se as bases da prpria vida esto na Natureza, ou ser que o Direito que nos d o
oxignio necessrio nossa respirao? Ou mesmo a gua que bebemos e os bens
alimentares de que precisamos? De facto, o Direito ao impor as suas normas de conduta
contribui em muito para a conservao destes bens, mas por si s no garante a sua
distribuio igualitria por todos os seres existentes escala planetria. necessrio
observar o Ambiente como fonte de todos os bens bsicos essenciais existncia e
sobrevivncia da espcie humana. pretendido salientar a importncia crescente do
Direito do Ambiente como um Direito Humano, sem o qual nenhum outro Direito se
poder concretizar. Assim , que sem um Ambiente sadio, a prpria existncia Humana
posta em causa e sem existncia Humana de nada serviro os Direitos Humanos (porque
no tero qualquer base de aplicabilidade). A resposta que os Estados tm dado a esta
problemtica ponto a ser analisado.

PALAVRAS-CHAVE: Ambiente, Sustentabilidade e Direitos Humanos

Direito do Ambiente um direito dos homens, inventado pelos homens e para


os homens.
A tutela do ambiente no poder nunca ser concebida de forma absoluta, mas
apenas em termos relativos, segundo nveis de tolerabilidade. Quanto ao conceito de
ambiente 2, podem adoptar-se duas perspectivas:
1

Licenciada em Direito e Formada em Registos e Notariado pela Faculdade de Direito da Universidade


do Porto, Ps-Graduada em Direito Administrativo, Formada em Medicina Legal e Mestranda pela Escola de
Direito da Universidade do Minho. [email protected]; [email protected]

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a) Conceito amplo de ambiente: inclu no s os componentes ambientais naturais,


mas tambm os componentes ambientais humanos (paisagem, patrimnio natural e
construdo e a poluio);
b) Conceito estrito de ambiente: centra-se nos componentes ambientais naturais (ar,
luz, gua, solo vivo e subsolo, flora e fauna).
A noo ampla de ambiente foi acolhida por numerosos textos legislativos. Ao
abarcar tanto os elementos naturais como os econmicos, sociais e culturais, o conceito de
ambiente vem a significar tudo aquilo que nos rodeia e que influencia, directa ou
indirectamente, a nossa qualidade de vida e os seres vivos que constituem a biosfera 3.
Desde h muito que parte da doutrina e algumas legislaes sentem a
necessidade de restringir a noo de ambiente por forma a torn-la operativa para o direito.
Assim se veio a defender uma noo estrita de ambiente, centrada nos componentes
ambientais naturais. A noo de Direito de Ambiente traz consigo implcito o respeito por
determinados princpios 4:
a) Princpio da preveno: importante na proteco do ambiente pois uma regra de
bom senso, aquela que determina que, em vez de contabilizar os danos e tentar
repar-los, se tente evitar a ocorrncia de danos, antes de eles terem acontecido. Em
muitos casos, depois de a poluio ou o dano ocorrerem, so impossveis de
remover; mesmo quando a reconstituio natural materialmente possvel,
frequentemente ela de tal modo onerosa, que esse esforo no pode ser exigido ao
poluidor; economicamente, o custo das medidas necessrias a evitar a ocorrncia de
poluio sempre muito inferior ao custo das medidas de despoluio, aps a
ocorrncia do dano; a provar esta ideia surgiu uma nova expresso Pollution
Prevention Pays (PPP) - que pode ser traduzido por a preveno da poluio
paga, significando que a preveno da poluio compensa.
A aplicao do princpio da preveno implica a adopo de medidas antes da
ocorrncia de um dano concreto cuja origem conhecida, com o fim de evitar a verificao
de novos danos ou minorar os seus efeitos. O princpio da preveno implica que seja dada
uma ateno particular ao controlo das fontes de poluio;
2

PEREIRA REIS. Lei de Bases do Ambiente Anotada e Comentada Legislao Complementar,


Coimbra: Almedina, 1992, p.25
3
PEREIRA REIS. Lei de Bases do Ambiente 1992, p.25.
4
CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes (coord.). Introduo ao Direito do Ambiente,Lisboa: Universidade
Aberta, 1998, p. 44 e ss; ARAGO, Maria Alexandra, O Princpio do Poluidor Pagador, Pedra Angular do
Direito Comunitrio do Ambiente, Coleco Studia Iuridica, n.24, Coimbra: Coimbra Editora, 1997.

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b) Princpio da correco na fonte: ideia de preveno dos danos actuando na sua


origem. Este um princpio que permite responder s questes de quem, onde e
quando deve desenvolver aces de proteco do ambiente. Visa pesquisar as
causas da poluio para, sempre que possvel, as eliminar ou as moderar, evitando
que a poluio se repita.
c) Princpio da precauo: o ambiente deve ter em seu favor o benefcio da dvida
quando haja incerteza sobre o nexo causal entre uma actividade e um determinado
fenmeno de poluio ou degradao do ambiente. Pode-se falar de uma espcie de
princpio in dbio pro ambiente, ou seja, na dvida sobre a perigosidade de uma
certa actividade para o ambiente, decide-se a favor do mesmo e contra o potencial
poluidor.
A aplicao deste princpio leva a que o nus da prova de uma aco em
relao ao ambiente seja transferido do Estado ou dos potenciais poludos para os
potenciais poluidores.
O campo de aplicao privilegiado do princpio so os acidentes ecolgicos,
impondo ao potencial poluidor o nus da prova de que um acidente ecolgico no vai
ocorrer e de que adoptou medidas de precauo especficas. O princpio da precauo
impe que actividades suspeitas de ter provocado um dano, ou de poder vir a provoc-lo,
sejam interditadas.
d) Princpio do poluidor pagador (PPP): consagrado no artigo 3. da Lei de Bases do
Ambiente sendo o poluidor obrigado a corrigir ou recuperar o ambiente,
suportando os encargos da resultantes, no lhe sendo permitido continuar a aco
poluente. O PPP o princpio que, com maior eficcia ecolgica, com maior
economia e equidade social, consegue realizar o objectivo de proteco do
ambiente.
Os fins que o PPP permite realizar so a precauo e preveno dos danos ao
ambiente e a justia na redistribuio dos custos das medidas pblicas de luta contra a
degradao do ambiente. Aos poluidores no podem ser dadas outras alternativas que no
deixar de poluir ou ter que suportar um custo econmico em favor do Estado que dever
afectar as verbas assim obtidas a aces de proteco do ambiente.
Se o valor a suportar pelos poluidores for bem calculado, atingir-se- uma
situao socialmente mais vantajosa: a reduo da poluio a um nvel considerado
aceitvel e a criao de um fundo pblico destinado a combater a poluio residual ou

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acidental, auxiliar as vtimas da poluio e custear despesas pblicas de administrao,


planeamento e execuo da poltica de proteco do ambiente.
Desta forma, acredita-se que os poluidores sero motivados a escolher entre
poluir e pagar, ou pagar para no poluir. O grande mrito do PPP criar verbas para o
Estado afectar ao combate poluio, evitando que os contribuintes tenham que custear
atravs dos impostos que pagam, as medidas tomadas pelos poderes pblicos para
proteco do ambiente.
Devero ser criados fundos alimentados pelos poluidores, dos quais sairo as
verbas necessrias realizao das despesas pblicas de proteco do ambiente poltica
do equilbrio do oramento ambiental que consiste na angariao coactiva de fundos entre
os poluidores permitindo assegurar equidade na redistribuio dos custos sociais da
poluio e proteco eficaz e econmica do ambiente.
e) Princpio da integrao: considerando que no h actividade humana que no seja
susceptvel de afectar de maneira directa ou indirecta, em menor ou maior grau, o
ambiente, compreensvel que as questes ambientais no possam ser apenas
preocupaes dos Ministrios do Ambiente.
este o sentido do princpio da integrao: uma poltica de proteco do
ambiente eficaz e preventiva implica a ponderao prvia das consequncias ambientais de
qualquer actividade humana. O ambiente deve ser um elemento de ponderao a ter em
considerao em decises relacionadas com o ambiente, mas tambm em decises sobre
matrias mediatamente relacionadas com o ambiente (agrcolas, de pescas, industriais,
comerciais, de transportes, de energia, de turismo, de consumo, emprego, educao, etc).
Por fora do princpio da integrao possvel fiscalizar a legalidade de uma
medida adoptada no mbito de qualquer outra poltica e sancionar o seu desrespeito.
f) Princpio da participao: ao nvel do Direito do Ambiente defende-se a
necessidade de os rgos e agentes administrativos intervirem com um papel activo
nas tomadas de deciso relevantes para o ambiente. necessrio prevenir os
atentados ambientais e garantir que os seus causadores sejam responsabilizados,
bem como permitir que os cidados possam ser ouvidos na execuo da poltica de
ambiente.
O princpio de participao est fortemente ligado ao direito informao, pois
s quando os cidados esto devidamente informados que podem ter a oportunidade de
exercer o seu direito de participao.

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g) Princpio da cooperao: pe em destaque o papel da Administrao Pblica em


matria ambiental. A cooperao que aqui est em causa tem a ver com as relaes
estabelecidas entre a Administrao e a sociedade civil.
Este princpio abrange tambm a cooperao internacional. O princpio da
cooperao transmite a ideia de que a proteco do ambiente no tarefa apenas do
Estado, reclamando a busca de solues ao nvel internacional, impondo a todos os Estados
o dever de colaborar entre si para proteger eficazmente o ambiente. No podemos ignorar a
transnacionalidade do fenmeno da poluio; no podemos ignorar que o ambiente um
bem de todos e que responsabilidade de todos proteg-lo, respeitando o direito de as
geraes futuras viverem num mundo so.
Nos finais do sculo XX, as preocupaes em torno da qualidade do ambiente e
da necessidade de proteger os componentes ambientais so sentidas de forma intensa por
toda a populao.
As notcias sobre a deteriorao crescente do ambiente em que vivemos e sobre
a necessidade de o preservar, sob pena de a nossa prpria existncia ser posta em causa,
esto na ordem do dia, sendo um dos objectos do discurso poltico. S desta forma se
consegue fazer alguma coisa para evitar a deteriorao do mundo em que vivemos.
imperioso lutar contra tais problemas para que todos possamos usufruir de um ambiente
de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado 5.
Em numerosos casos, o valor do progresso econmico e social tem que ceder
face necessidade de manter e restaurar um ambiente sadio. Houve uma tomada de
conscincia de todos sobre a necessidade de lutar contra tais problemas e de os tentar
resolver.
A viragem do milnio correspondeu a um perodo de mudana decisiva no
modo como as questes ambientais passaram a ser assumidas em todo o mundo. O ponto
central desta mudana ter sido o da capacitao pblica dos problemas ambientais. Em
Aarhus, cidade dinamarquesa, a Unio Europeia assinou uma Conveno dedicada a
estimular as formas de participao da sociedade civil no governo ambiental dos seus
pases, sobre trs pontos cruciais: acesso informao, participao pblica na tomada de
decises e acesso justia em questes ambientais. J ningum discute que a explorao
dos recursos naturais, ao ritmo a que se processa, levar ao colapso dos prprios suportes
da vida humana no planeta; que o desenvolvimento uma coisa diferente de crescimento e
5

Artigo 66., n. 1, da Constituio da Repblica Portuguesa

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que requer inteligncia para superar os efeitos perversos, que vo desde a destruio da
Natureza at ao agravamento da pobreza; que h um enorme abismo entre os pases ricos e
os pobres.
Hoje, a relevncia do ambiente tornou-se quase obrigatria ou recorrente em
quase todos os novos textos constitucionais. Esta universalizao no significa, s por si,
que a efectividade das normas se mostre muito forte ou idntica por toda a parte e sero
muito poucos os Estados que podero arrogar-se a qualidade de Estados Ambientais.
Enquanto reconduzveis a direitos, liberdades e garantias ou a direitos de
natureza anloga, os direitos atinentes ao ambiente so direitos de autonomia ou de defesa
das pessoas perante os poderes pblicos e sociais. Vinculam as entidades pblicas e
privadas.
Eles tm por contrapartida o respeito, a absteno, o non facere. O seu
objectivo a conservao do ambiente e consiste na pretenso de cada pessoa a no ter
afectado hoje o ambiente em que vive.
Como consequncia da considerao do ambiente enquanto bem jurdico
autnomo, resulta que determinados componentes ambientais outrora passveis de ser
utilizados por todos sem obedincia a quaisquer regras ou limites, so agora bens
juridicamente protegidos, os quais, so alvo de uma tutela jurdica que visa tornar a sua
utilizao e o seu aproveitamento mais racionais e equilibrados.
O ambiente deve ser tambm assumido como direito subjectivo de todo e
qualquer cidado individualmente considerado, pois apesar de ser um bem social unitrio,
dotado de uma indiscutvel dimenso pessoal.
H uma srie de ordens jurdicas nas quais o ambiente foi j reconhecido e
protegido como direito fundamental individual com suficiente dignidade para ser tutelado
pela prpria Constituio. Boa parte dos atentados ambientais nos nossos dias da
responsabilidade da Administrao Pblica pelo que em Portugal, tambm os indivduos
devem ter a possibilidade de accionar os mecanismos da responsabilidade por danos ao
ambiente e de serem titulares do respectivo direito de indemnizao em vez de se atribuir
s autoridades pblicas o monoplio do respectivo direito de indemnizao, o que deixaria
impunes muitos atentados ao ambiente causados pela prpria Administrao Pblica.
Torna-se necessrio consagrar ao lado da legitimidade do Estado e demais
entes da administrao, a possibilidade de os cidados, individualmente considerados ou

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associados, serem tambm titulares do direito de aco e indemnizao por danos causados
ao ambiente.
O nico modelo para as sociedades humanas se relacionarem duradouramente
com os ecossistemas no o da dominao, mas sim o da habitao. falsa a questo da
atribuio de direitos natureza. No podemos distribuir direitos a quem no os pode
exercer no nosso sistema jurdico. Na nossa condio de humanos, a nica coisa que
podemos realmente fazer no dar direitos natureza, mas sim impor deveres ao nosso
relacionamento com ela.
Compete ao direito construir um sistema humano adaptado complexidade da
realidade ambiental, conciliando interesses que so aparentemente incompatveis. No plano
inter-estadual global, a presuno da inesgotabilidade dos recursos naturais condiciona o
entendimento de que os elementos naturais so encarados como res comunis (coisa comum
ou domnio comum), ficando sujeitas ao princpio da liberdade de utilizao, uma vez que,
sendo infinitos, o seu uso ilimitado no poderia constituir qualquer tipo de problema.
Assim, dispensa-se qualquer tipo de gesto comum que organize os vrios usos privados.
O facto de o simples uso de qualquer tipo de dano provocado num bem
ambiental se repercutir de forma duradoura e cumulativa ao nvel global, abala toda a
estrutura do edifcio jurdico inter-estadual clssico.
Todos os documentos que conduziram ao conceito patrimnio comum da
humanidade esbarram num problema jurdico de base do direito internacional: ser de
todos, sem haver gesto do que comum, ser de ningum. O ambiente ajuda a cristalizar
a noo de que a humanidade tem um futuro comum.
O aquecimento global veio acabar com as fronteiras tradicionais da soberania
dos estados e justificar a afirmao de que desde o seu nascimento, o Direito do Ambiente
proclamou a sua vocao Universal, um direito aptrida por necessidade. Uma vez que o
ambiente consta da categoria de bens comuns, deve ser mencionada a norma que probe
actos de poluio sobre os trs espaos comuns ou qualquer acto de poluio de relevncia
internacional, isto , cujos efeitos se verifiquem em relao a uma generalidade de Estados.
Trata-se de uma norma costumeira mas que impe obrigaes erga omnes imediatas, dado
que um acto desta natureza provoca sempre um prejuzo directo em todos os estados, visto
que o ambiente um bem comum.
Qual o problema jurdico de base que continua por resolver? um problema de
gesto, coordenao e conciliao de domnios humanos, exercidos sobre um bem

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materialmente indivisvel e que requer uma gesto comum. O problema jurdico ambiental
um problema de conciliao das necessrias divises estaduais sobre um bem
materialmente indivisvel.
Os direitos nacionais aproveitaro as normas e os padres universais que
melhoraro os sistemas internos. No h outro campo do direito internacional que tenha
conhecido uma evoluo to rpida, com mutaes to profundas, quanto o direito
internacional ambiental. Mas o problema continua por resolver: o interesse individual dos
estados tem prevalecido sobre os interesses pblicos colectivos.
A questo de base parece-se a mesma que se colocou aos edifcios em
condomnio: a conjugao de interesses privados com a manuteno de interesses comuns,
os quais se exercem sobre um mesmo objecto materialmente indiviso. Tal como num
condomnio, tambm no planeta o interesse particular de cada um dos estados s poder
ser plenamente realizado se os interesses comuns estiverem salvaguardados e, os interesses
comuns s podero ser realizados se o interesse particular de cada um estiver garantido.
Nenhuma soberania subsiste por si s, e todas dependem do mesmo edifcio
planeta onde essas soberanias se exercem. Exige-se uma interaco comportamental entre
todas as soberanias do planeta, colocando todos numa mtua dependncia relativa
salubridade do edifcio comum. Em matria de interesses comuns, o no acatamento de
uma regra implica a violao de um direito individual comum a todos os outros estados.
A impossibilidade de diviso ou apropriao dessas partes, que circulam a nvel
planetrio, que implica que o exerccio de soberania sobre elas seja comum ou partilhado.
Este facto coloca todos os Estados na condio de serem simultaneamente soberanos dos
seus territrios e comproprietrios das partes comuns do planeta.
A afirmao de que determinados elementos do planeta devero ser
considerados como parte comum e como tal requerem uma administrao comum, ter de
ser aceite por todos como tal, carecendo de instituies sociais ou de uma organizao
social que os reconhea e legitime dentro da ordem da comunidade internacional.
Da manuteno e gesto das partes comuns depender a possibilidade de
manuteno da vida na terra. Uma sociedade constituda no s por aqueles membros que
esto vivos, como por todos os seus antecessores e sucessores. O propsito das sociedades
humanas realiza-se no bem-estar e prosperidade de todas as geraes.
No lcito que cada povo, na busca de melhores condies de vida para cada
um dos seus membros actuais e futuros, o faa de forma a comprometer o uso futuro das

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partes comuns, violando os direitos de todos os outros membros actuais e futuros da


comunidade global. Aqui se fala de desenvolvimento sustentvel como desenvolvimento
que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as geraes
futuras satisfazerem as suas prprias necessidades 6.
A responsabilidade pelo futuro passa pela aco da efectiva mudana da lgica
jurdica e econmica. O sistema produtivista de mercado contm um conflito imanente
com o objectivo da qualidade de vida ambiental. Partindo de um pressuposto errado, de
que os recursos seriam ilimitados ou inesgotveis no horizonte de longo prazo, nem a sua
poupana nem a preservao do ambiente justificava uma significativa preocupao com
problemas aparentemente externos.
A poluio revela-se como uma das mais importantes manifestaes da relao
entre a actividade econmica produtiva e a biosfera. necessria uma massiva
reestruturao do sistema econmico mundial de modo a evitar-se uma catstrofe ecolgica
a nvel global.
Os comportamentos que afectam negativamente o ambiente do outro lado do
planeta repercutem-se no todo global.
O protocolo de Quioto foi pioneiro na concepo de uma valorao econmica
ambiental, realizada atravs de direitos de poluio negociveis, que criam o direito de
cada pas poluir o ambiente, at um limite pr-determinado; o problema est no facto
das verbas provenientes desse uso privado de um recurso pblico no serem directamente
empregues na manuteno e melhoramento das partes comuns. E sem existir uma soluo
jurdica que garanta que as verbas provenientes do uso de bens comuns sejam utilizadas na
compensao e manuteno do Sistema Natural Terrestre, as solues econmicas de
incorporao dos custos ambientais no sistema produtivo estaro longe de comearem a
corrigir os danos j acumulados.
O modelo de condomnio a constatao de que os fenmenos complexos so
susceptveis de harmonizao e de compatibilizao com a nossa capacidade explicativa da
realidade.
A ideia de que existe uma dvida ecolgica entre os pases que realizaram um
maior uso dos bens comuns tem como fundamento o uso desigual que aconteceu entre as
economias ricas do norte e os pases do sul.
6

WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Our Common Future.


Oxford: Oxford University Press, 1987.

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O problema coloca-se a um nvel psicolgico, de aceitao de que


o ar que respiramos e a atmosfera que est em determinado
momento sobre o territrio do nosso pas, e a hidrosfera que
escorre na superfcie e no interior da terra, no so nossos, mas de
todos os cidados do mundo, actuais e futurose se o Condomnio
da Terra hoje um sonho, temos presente que todas as verdades de
hoje foram utopias de ontem 7.
Assim, temos como sendo os dez princpios do condomnio da Terra 8:
1) A crise ambiental mundial menos um problema do ambiente do que um
problema do Homem;
2) Resolver a crise ambiental mundial resolver o problema jurdico da coordenao
duma multitude de soberanias exercidas sobre reas do Planeta Terra
insusceptveis de diviso jurdica, mas das quais todas as soberanias so
dependentes;
3) S na definio e prossecuo do interesse comum ser possvel continuar a
garantir a cada Estado os seus direitos;
4) O projecto condomnio da Terra distingue as fraces estaduais das partes
comuns: cada condmino soberano dentro do seu territrio e detentor de uma
soberania partilhada das partes comuns do planeta;
5) So partes necessariamente comuns a Atmosfera e a Hidrosfera e presumidamente
comuns, a Biodiversidade;
6) O condomnio da Terra pressupe um regulamento que disciplina o uso e
conservao das partes comuns;
7) Existe um direito/dever igual no uso/conservao dos bens comuns;
8) Cada condmino comparticipar nas despesas necessrias conservao ou
fruio das partes comuns, de forma equitativa, no sentido de garantir a
coincidncia entre o ptimo social e o ptimo ecolgico;
9) Competir ao Administrador do condomnio receber todas as verbas provenientes
dos condminos e promover projectos de conservao e melhoramento das partes
comuns;
10) O condomnio da Terra compatibilizar os sistemas jurdicos e econmicos com o
Sistema Natural Terrestre.
7

MAGALHES, Paulo. O condomnio da Terra: das alteraes climticas a uma nova concepo
jurdica do Planeta, Coimbra: Almedina, 2007, p.141
8
MAGALHES, Paulo. O condomnio da Terra2007.

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Foi necessrio que as alteraes climticas se tivessem transformado numa


realidade visvel para que a crise global do ambiente ganhasse o estatuto de fenmeno
crucial para a humanidade contempornea. A leitura dos mais recentes relatrios e
trabalhos cientficos sobre o estado do clima e os cenrios da sua evoluo causam
fundadas inquietaes.
A poltica de ambiente atravessa todo o tecido social tornando-se inseparvel
do tipo de funcionamento do sistema poltico. esse o horizonte de totalidade poltica
integrada que recebe a designao de desenvolvimento sustentvel. A entrada em cena de
uma nova mentalidade, que olhava para a natureza como objecto de domnio e conquista,
foi acompanhada, a partir da Revoluo Industrial Inglesa com a efectivao concreta
dessa inteno de apropriao do mundo natural. Durante 250 anos a industrializao do
mundo prosseguiu sem trguas, com o seu surto de destruio ecolgica.
A tomada de conscincia da crise ambiental obriga a profundas deslocaes
no corpo das cincias e nos seus conceitos. O que est em causa o reinventar radical do
relacionamento humano com a natureza. A crise do ambiente obriga-nos transmutao de
todos os valores.
A humanidade tem hoje uma conscincia clara do carcter global da maioria
esmagadora das grandes questes da agenda ambiental. Porm, a gravidade da situao
ambiental continua a ser a nota dominante. Politicamente, acentuou-se o abismo entre os
pases desenvolvidos e em vias de desenvolvimento.
A globalizao de muitos dos mais cruciais problemas ambientais no esvazia
a necessidade das agendas nacionais em matria de poltica pblica de ambiente. A poltica
de ambiente hoje uma designao que envolve a intranquilidade fundamental da nossa
poca: habitamos na clivagem entre o colapso e o desenvolvimento sustentvel. As
alteraes climticas so uma sntese da crise global do ambiente. A nossa poca carece
de um excesso de aco e de um profundo dfice de reflexo e imaginao. A crise da
imaginao crtica projecta-se nas limitaes e insuficincias das polticas pblicas de
ambiente, tanto no plano nacional como internacional.

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A HUMANIZAO DO DIREITO CONSULAR

JEISON B. DE ALMEIDA 1
[email protected]

RESUMO

O processo de humanizao do Direito Internacional Pblico. A Conveno de


Viena sobre Relaes Consulares de 1963. Artigo 36 da CVRC e a assistncia consular ao
preso estrangeiro. Os precedentes da Corte Internacional de Justia: Caso Breard, LaGrand
e Avena. A assistncia consular ao preso estrangeiro como um direito individual. O
precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Opinio Consultiva de n. 16. A
Assistncia consular ao preso estrangeiro como um direito humano.

INTRODUO

Aps o fim da Segunda Guerra Mundial, a sociedade internacional


experimentou o gradual processo de humanizao do Direito Internacional Pblico DIP.
Este processo que teve incio com a Carta de So Francisco, estatuto normativo da
Organizao das Naes Unidas, vem dando centralidade aos direitos humanos na anlise
do DIP. O Direito Consular, como um dos ramos mais bem desenvolvidos do DIP, no
poderia ficar margem deste processo de humanizao, e ter um contedo estanque
baseado na interestatalidade e reciprocidade das relaes consulares.
Neste desiderato, o presente artigo proporciona uma avaliao histrica do
processo de formao do Direito Consular e seu recente processo de humanizao, tendo
em vista os reclamos da sociedade internacional perante o Tribunal Internacional de Justia
e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade do Minho, Portugal, com perodo de estudos
Erasmus no Mster de Estdios Internacionales na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.
Licenciado em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso, Brasil. Advogado e professor
universitrio. Contato: [email protected]

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I FORMAO E DESENVOLVIMENTO DA INSTITUIO CONSULAR

So trs os principais pontos de vista sustentados pelo jus-internacionalistas


sobre a origem da instituio consular. Uma primeira perspectiva, inicia o estudo e
reconhece em instituies da Antiguidade a origem da instituio consular. Candioti, por
exemplo, identifica nos sentimentos de bondade, compaixo pelos dbeis e desamparados e
na hospitalidade a origem remota da instituio consular 2. Zourek relator especial da
Comisso de Direito Internacional das Naes Unidas para a elaborao da Conveno de
Viena sobre Relaes Consulares , tambm confia na Antiguidade a origem da instituio
consular 3. No mesmo sentido, Brito como Sorensen 4, Korovin 5 e Martins 6 observa que
na Antiguidade, com a proxenia grega, que verdadeiramente nasce a instituio
consular 7.
Por outro lado, existem autores que sustentam que a origem da instituio
consular deu-se no sculo XI, com o inicio das Cruzadas, embora reconheam que existem
algumas semelhanas com as instituies da Antiguidade. Neste sentido, Rivier aponta que
a instituio consular medieval e moderna, e surgiu principalmente atravs das relaes
comerciais, no entanto, reconhece que instituies da Antiguidade grega e romana guardam
analogia com a instituio consular 8. Na doutrina espanhola, Torroba Sacristn sustenta
que ainda que haja semelhanas entre a proxenia e certas formas que o ofcio consular
2

Aduz o cnsul argentino que: La institucin consular tiene sus orgenes remotos en los sentimientos de
bondad, de conmiseracin, por las desgracias de los desamparados y los dbiles, que se manifestaron en todas
las pocas y hasta en los pueblos ms crueles. Es hija, como he dicho, de los sentimientos humanos ms
nobles: la proteccin al desdichado y la hospitalidad. CANDIOTI, Alberto M. Historia de la institucin
consular en la Antigedad y en la Edad Media. Buenos Aires: Editora Internacional, 1925, p. 8.
3
Even in the ancient days of slavery, trade relations between different peoples gave rise to institutions
which may be considered as the forerunners of modern consulates. The merchants of those days went after
trade in foreign countries which often were very far away and had very different laws and customs; hence
their desire to have their disputes settled by judges of their own choice administering their own national
laws. ZOUREK, Jaroslav. Consular Intercourse and Immunities. Yearbook of the international law
commission, New York, vol. II, 1957, p. 73. No mesmo sentido, para Antokoletz, a instituio consular
destinada a proteger o comrcio e os interesses dos nacionais tambm tem origem na Antiguidade,
especificamente, o autor cita a proteo dada aos estrangeiros na ndia e Egito. Cf. ANTOKOLETZ, Daniel.
Manual diplomtico y consular: para uso de los aspirantes y funcionarios de ambas carreras. Tomo II.
Buenos Aires: La Facultad, 1928, p. 12.
4
Cf. SORENSEN, Max. Manual de Derecho Internacional Pblico. Trad.: Dotacin Carnegie para la Paz
Internacional. Mxico, D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 1973, p. 404.
5
Cf. KOROVIN, Y. A. (dir.). Derecho Internacional Publico. Versin espaola de Juan Villalba. Mxico,
D.F.: Editorial Grijalbo, 1963, p. 312.
6
Para a autora portuguesa, a instituio consular remonta aos proxenes da Grcia antiga. MARTINS,
Margarida Salema DOliveira. Direito Diplomtico e Consular. Lisboa: Universidade Lusada Editora, 2011,
p. 121. (Aspas no Original).
7
Cf. BRITO, Wladimir. Direito Consular. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 16.
8
Cf. RIVIER, Alphonse. Prncipes du Droit des Gens. Vol. II. Paris: Arthur Rousseau, 1896, p. 522.

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chegou a se revestir, no h entre os proxenes e os cnsules atuais qualquer encadeamento


histrico 9. Cabe mencionar autores como Satow e Sen, que embora reconheam na Idade
Mdia o verdadeiro incio da instituio consular, iniciam o estudo da mesma na
Antiguidade grega e romana 10.
Por fim, alguns autores tambm estabelecem a origem da instituio consular
no sculo XI, mas desconsideram qualquer contribuio ou relao com as instituies
surgidas na Antiguidade. Anziliotti, por exemplo, aduz que as instituies da Antiguidade
os proxenes, patronos, praetor peregrinus, recuperatores, etc. , que protegiam os
estrangeiros, revelam uma ideia distinta da que serve de base instituio consular de
nossos dias. Para o autor, naquelas instituies era o Estado territorial que, por meio de
rgos prprios, cuidava dos estrangeiros admitidos em seu territrio, e de acordo com a
teoria atual, o Estado nacional que protege os seus cidados, estabelecendo funcionrios
idneos no Estado estrangeiro onde aqueles residem 11. Para Contuzzi, uma instituio
semelhante aos consulados no funcionou nem sequer nos pases de civilizao mais
avanada no mundo antigo, as condies da sociedade internacional naquela poca no
dava ensejo a isto 12. Por derradeiro, h autores que em seu estudo da histria da instituio
consular, no fazem meno a qualquer instituio da Antiguidade, desconsiderando-as por
completo, tais como Cavar 13, Rousseau 14 e Colliard 15.

Cf. TORROBA SACRISTAN, Jos. Derecho Consular: Gua Prctica de los Consulados de Espaa.
Madrid: Ministrio de Asuntos Exteriores, 1993, p. 03. Com o mesmo raciocnio segue Maresca: No
obstante las innegables analogas, la figura jurdica del proxene no puede exactamente configurarse como un
anticipo de la del Cnsul moderno, no slo por la variedad de las funciones extraconsulares que
correspondan al proxene, sino especialmente, y sobre todo si se cuenta que aunque su misin era la de
mantener relaciones continuas con los nacionales de un Estado extranjero y con los rganos de dicho Estado,
no tena al menos normalmente relaciones directas con el mismo Estado y, en cualquier caso, no se
converta en rgano del mismo en el sentido moderno del trmino. MARESCA, Adolfo. Las relaciones
consulares. Traduccin: Hermino Morales Fernandez. Madrid: Aguilar, 1974, p. 14.
10
Cf. SATOW, Sir Ernest. Satows diplomatic practice. Edited by: Sir Ivor Roberts. Sixth Edition.
Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 249-250; SEN, B. A diplomats handbook of international law
and practice. 3rd ed. Dordrecht: Martinius Nijhoff, 1988, pp. 243-245.
11
Cf. ANZILOTTI, Dionsio. Curso de Derecho Internacional. Primera edicin. Trad.: Jlio Lopez
Olivan. Tomo I. Madrid: Editorial Reus, 1935, p. 242.
12
CONTUZZI, F. P. Trattato teorico-pratico di diritto consolare e diplomatico, apud VILARIOS
PINTOS, Eduardo. La institucin consular: debate conceptual abierto. In: Pensamiento jurdico y sociedad
internacional Estudios en Honor del Profesor D. Antonio Truyol y Serra. Vol. II. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1986, p. 1229.
13
Cf. CAVAR, Louis. Le Droit International Public Positif. Tome II. Troisime dition. Paris: Editions
A. Pedone, 1969, p. 39.
14
Cf. ROUSSEAU, Charles. Derecho Internacional Pblico. Tercera Edicin. Barcelona: Ediciones
Ariel, 1966, p. 345.
15
Cf. COLLIARD, Claude-Albert. Instituciones de relaciones internacionales. Trad.: Pauline Forcella de
Segovia. Madrid: Fondo de Cultura Econmica, 1977, p. 245.

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Ante o exposto, concordamos que de fato, a origem da instituio consular


ocorreu na Idade Mdia, especificamente com a intensificao dos fluxos comerciais na
costa mediterrnica. No entanto, no ignoramos que as instituies da Antiguidade
contriburam para o desenvolvimento da instituio consular, de alguma forma, como, por
exemplo, na linguagem, pois, como nos ensina D. Luiz Carlos da Costa, a palavra Consul,
deriva do verbo consulere, de aconselhar e julgar, haja vista que entre os Romanos, os
consules eram os administradores da justia 16.
Cientes da importncia das instituies da Antiguidade, preferimos dividir a
analise da histria da instituio consular em dois grandes perodos: o primeiro, que
chamamos de proto-histria da instituio consular, abrange os institutos da Antiguidade e
da Alta Idade Mdia, que guardam semelhana e contriburam para a formao da
instituio consular; o segundo, que tem seu marco inicial a partir das Cruzadas (sculo
XI), tem como contedo a origem da instituio consular e seu ulterior desenvolvimento
at sua codificao em um diploma com aspirao universal, dizer, a Conveno de
Viena sobre Relaes Consulares de 1963.
Em anlise perfunctria da proto-histria da instituio consular, identificamos
no Oriente Antigo, funcionrios do governo investidos na funo de proteger os interesses
dos estrangeiros. Na ndia, no perodo Brahmanico, existiam magistrados especficos a
cuidar para que os estrangeiros no sofressem qualquer tipo de injustia, e que zelavam da
sua sade quando ficassem doentes e em caso de bito, se ocupavam do enterro 17. J no
Egito, passada a poca teocrtica, os estrangeiros eram protegidos por um sacerdote
Agormono , que desempenhava funes judiciais, notariais e polticas a favor dos
estrangeiros.
No Ocidente, em Atenas, os estrangeiros dizer, os metecos 18 , que
exerciam atividades comerciais ou industriais, faziam-se representar pela figura dos
prostates, que posteriormente, devido o pouco interesse que revelavam no exerccio das
suas funes levou a que fossem substitudos por um magistrado especial, os Polemarcos,
que cedo cederam lugar aos proxenes 19. Com a ocupao da Grcia por Roma, os
16

Cf. COSTA, D. Luiz Carlos da. A instituio consular. Rio de Janeiro: Companhia Nacional Editora,
1889, p. 3.
17
Cf. CANDIOTI, Alberto M. Op. cit., pp. 14-15.
18
D'une faon gnrale, il n'y a aucune ambigut sur ce que les anciens entendaient par l'expression de
mtque. On sait que ce nom s'appliquait, dans les cits grecques, toute une catgorie d'trangers vivant,
dans chaque cit, ct des citoyens. Cf. CLERC, Michel Armand Edgar Anatole. Les Mtques athniens.
Reprint Edition. [s.l.]: Arno Press, 1979, p. 09.
19
BRITO, Wladimir. Direito Consular. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 16.

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proxenes tendem a desaparecer e a dar lugar ao patronato romano. O Patronus, que era um
magistrado, tinha a funo de proteger os estrangeiros sine civitate, atravs de um contrato,
que tinha por efeito estabelecer obrigaes bilaterais permanentes de dependncia e tutela.
Avanando para o segundo perodo de anlise histrica da instituio consular,
e seguindo as diretrizes de Ferreira 20 e Zourek 21, distinguimos a existncia de trs fases,
que demonstram a evoluo que vai caracterizar o cnsul moderno. A primeira fase a do
cnsul juiz e eleito (sculo XI a incios do sculo XIV). Nesta fase, em que subsistia o
princpio germnico da personalidade do direito, as organizaes comerciais que detinha
um alto grau de autonomia, nomeavam juzes para dirimir os conflitos dos mercadores,
independentemente da legislao do local aonde se encontravam. Esses juzes eram
denominados de cnsul-mercadores, juiz-cnsul ou cnsul do mar. Esses agentes
consulares eram, em geral, nomeados pela comunidade de mercadores no pas estrangeiro,
em outras palavras, o surgimento do consul electi. Ainda na Idade Mdia, pode-se citar o
surgimento de alguns cdigos martimos que continham as competncias dos cnsules,
destacam-se: a Tbua de Amalfi (sculo XI); as Regras de Olron (sculo XII).
A segunda fase corresponde ao do cnsul representativo do Estado e enviado
ao estrangeiro consul missus (sculo XIV at finais do sculo XVIII). Com a nova
estrutura poltica e econmica surgida com o fim da Idade Mdia e o movimento
renascentista, a figura do cnsul passa a ter uma nova configurao. De efeito, os cnsules
deixam de ser representantes das corporaes de mercadores sediados em cidades
estrangeiras, para serem representantes dos respectivos Estados, ou seja, passam a ser um
enviado oficial do seu Estado no estrangeiro, para representar os interesses dos seus
conacionais e do seu governo. O cnsul, nesta fase, passa a ser visto como um funcionrio
administrativo, e perde seu poder jurisdicional, principalmente, em virtude do surgimento
do princpio da territorialidade do Direito.
Por ltimo, a terceira fase do cnsul protetor dos interesses do comercio e
navegao do seu Estado e da proteo dos seus conacionais (a partir do sculo XVIII).
Com a intensificao no sculo XVI e XVII do estabelecimento de Misses diplomticas
permanentes, o cnsul que por um tempo chegou a gozar do status diplomtico
imunidades, privilgios e facilidades , vai perd-lo e deixar de ser representante do

20

Cf. BRITO, Wladimir. Op. cit., p. 33.


Cf. ZOUREK, Jaroslav. Consular intercourse and immunities. Yearbook of the international law
commission, New York, vol. II, 1957, pp. 72-77.
21

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Soberano e do Estado 22, para assumir a configurao que a actual, qual seja a de uma
instituio vocacionada para a defesa dos interesses comerciais, industriais e de navegao
do seu respectivo Estado e dos seus nacionais 23.
Nesta fase final de desenvolvimento da instituio consular, surgiram algumas
manifestaes internacionais de regulamentao da atividade consular, tais como o Tratado
de Cobden em 1960, entre Frana e Inglaterra, a Conveno sobre Agentes Consulares,
concluda em 1928 em Havana e a Conveno Europeia sobre as Funes Consulares
concluda em 1967, sobre os auspcios do Conselho da Europa 24.
Aps todo esse percurso histrico, a partir de 1949 a Comisso de Direito
Internacional se engajou no estudo e na elaborao de uma conveno de mbito universal
que regulasse as diferentes matrias do Direito Consular. Em 1955 foi nomeado como
Relator Especial o professor Zourek, cujo primeiro relatrio foi apresentado em 1957 25 e o
segundo em 1960 26. O projeto de artigos foi apresentado pela Comisso de Direito
Internacional Assembleia Geral das Naes Unidas, que decidiu, pela Resoluo 1685
(XVI), de 18 de dezembro, convocar uma conferncia internacional de plenipotencirios.
A Conferncia de Viena sobre as Relaes Consulares reuniu-se, entre 04 de
maro e 22 de abril de 1963 e no dia 24 do mesmo ms, foi assinada a Ata Final da
Conferncia, tendo a Conveno de Viena sobre as Relaes Consulares entrado em vigor
em 18 de maro de 1967. Aps sua entrada em vigor, o estatuto codificador do Direito
Consular vai perder sua caracterstica eminentemente interestatal, e passar a orbitar na
influncia gravitacional do Direito Internacional dos Direitos Humanos e experimentar o
processo de humanizao de suas normas, principalmente atravs das contribuies

22

Neste contexto, Sorensen aduz: El establecimento de misiones diplomticas permanentes en los


siglos XVIII y XIX llevaron a la autoridad consular a un eclipse transitorio; pero con la expansin del
comercio, el movimiento martimo y los viajes que sigui a la Revolucin Industrial, la apertura de China y
Japn y el establecimiento de regmenes extraterritoriales en esos pases, los servicios consulares volvieron a
tomar importancia. SORENSEN, Max. Manual de Derecho Internacional Pblico. Trad.: Dotacin
Carnegie para la Paz Internacional. Mxico, D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 1973, p. 404.
23
BRITO, Wladimir. Direito Consular. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 30.
24
Apesar de aberta para assinatura desde 1967, a Conveno Europeia sobre Funes Consulares s
entrou em vigor em 09/06/2011, aps sua quinta ratificao, realizada pela Gergia em 08/03/2011. Os outros
Estados que ratificaram foram: Noruega em 1976, Grcia em 1983, Portugal em 1985 e Espanha em 1987.
Cf. http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/ChercheSig.asp?NT=061&CM=8&DF=08/01/2012&CL=ENG, com acesso em
30/11/2011.
25
Cf. ZOUREK, Jaroslav. Consular intercourse and immunities. Yearbook of the international law
commission, New York, vol. II, 1957.
26
Cf. ZOUREK, Jaroslav. Consular intercourse and immunities. Yearbook of the international law
commission, New York, vol. II, 1960.

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jurisprudenciais surgidas a partir da ltima dcada do sculo XX, que sero mais bem
estudadas no cap. III, deste estudo.

II O PROCESSO DE HUMANIZAO DO DIREITO INTERNACIONAL


PBLICO

Embora alguns autores possam encontrar nos tratados de paz de Westflia, uns
dos precedentes histricos mais remotos do Direito Internacional dos Direitos Humanos 27,
certo que, as regras de Direito Humanitrio e o labor desenvolvido pela Sociedade das
Naes 28 e Organizao Internacional do Trabalho OIT (no perodo entre-guerras)
situam-se como os precedentes histricos mais concretos deste processo de
internacionalizao dos diretos humanos, ou, em outras palavras, de humanizao do
Direito Internacional Pblico 29.
Um dos principais idealizadores da Declarao Universal de Direitos Humanos
de 1948, Ren Cassin aduz um episdio que bem interpreta o estgio de proteo do
indivduo pelo Direito Internacional Pblico, no perodo entre-guerras. Segundo o autor, no
ano de 1933, frente a queixa da Polnia pela violao de um tratado de proteo de
minorias em Alta Silesia, Sociedade das Naes, o enviado de Hitler para deliberar na
assembleia daquela organizao, cujo volume de um revolver se notava em seu bolso, no
furor da discusso, disse: ustedes Sociedad de Naciones, no tienen por qu saber lo que
nosotros hacemos com nuestros socialistas, com nuestros pacifistas, con nuestros judos.
Nosotros somos libres de tratarlos como queramos. Todo eso no debe importales 30.
No obstante o valor histrico dos precedentes do entre-guerras, Ren Cassin
leciona que a verdadeira cruzada pelos direitos humanos, ocorreu na Segunda Guerra
Mundial 31. Neste desiderato, o genocdio realizado pela Alemanha nazista de Hitler, foi um
dos eventos histricos com maior poder de catalisao para a humanizao do DIP,
27

MAZZUOLI, Valrio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Pblico. 6. ed. So Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012, p. 830.
28
A pesar de que el Pacto de la Sociedad de Naciones no menciona ni una sola vez de manera explicita
los derechos humanos. GMEZ ISA, Felipe; ORA, Jaime. La Declaracin Universal de Derechos
Humanos. Bilbao: Universidad Desto, 2008, p. 22.
29
Cf. PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5. Ed. So Paulo:
Max Limonad, 2002, p. 125.
30
CASSIN, Ren. El problema de la realizacin efectiva de los Derechos Humanos en la sociedad
universal. In: Veinte aos de evolucin de los Derechos Humanos. Mxico, D.F.: Universidad Nacional
Autnoma de Mxico, 1980, p. 391.
31
CASSIN, Ren. Op. cit. p. 392.

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gerando intensa mobilizao da sociedade civil para a elaborao de uma bill of rights a
nvel internacional. Segundo Morsink, a partir do ano de 1940 a presso da sociedade civil
sobre as instituies estatais para a proteo internacional dos direito humanos se
acentuou, especialmente no ano de 1943, tendo como exemplo, o Pattener for Peace,
elaborado e distribudo em conjunto por judeus, protestantes e catlicos 32.
No entanto, a manifestao que contribuiu mais significantemente com esse
processo de tomada de conscincia para a internacionalizao dos direitos humanos,
durante a 2. G.M., foi o discurso do ento Presidente dos Estados Unidos da Amrica
EUA, Franklin Delano Roosevelt, ao Congresso estadunidense, em 6 de janeiro de 1951,
no qual expressa quais so as quatro liberdades fundamentais que deveriam ser garantidas
a todos seres humanos, que so: a liberdade de palavra e pensamento; liberdade diante da
necessidade; liberdade de religio; e liberdade diante do medo 33.
Com o fim da 2. G.M. e a criao da Organizao das Naes Unidas ONU,
que o DIP vai evoluir substancialmente. O ente humano, que outrora era considerado
como simples objeto do DIP, vai ganhar um novo estatuto e passar a ser sujeito de direitos,
merecendo, inclusive, proteo normativa na Carta de So Francisco. Apesar do avano da
Carta de So Francisco, o seu texto final ficou aqum do pretendido pelo ativismo
desempenhado pelas naes latino-americanas e ONGs que faziam parte da delegao
estadunidense, que almejavam, no incio, que houvesse um Bill of Rights na Carta.
Deste modo, , pois, com a criao da ONU, atravs da Carta de So Francisco,
que se d incio a humanizao do Direito Internacional Pblico, a romper com o conceito
de soberania estatal absoluta do Estado e expandir o rol de sujeitos do ius gentium clssico.
A referida Carta, em que pese no ter em seu bojo uma declarao de direitos humanos,
no se calou totalmente quanto a este assunto, pois, em seu artigo 68, conferiu ao seu
Conselho Econmico e Social, a tarefa de criar uma comisso de direitos humanos.
Neste contexto, criada a Comisso de Direitos Humanos, em fevereiro de 1946,
esta ficou encarregada de elaborar uma carta de direitos humanos. A tarefa designada, no
entanto, no seria das mais fceis. Em virtude do recente processo de humanizao do DIP,
a Comisso, inteligentemente, como afirma Gmez Isa e Felipe Ora, decidiu trabalhar, em
primeiro lugar, numa declarao de direitos, para, posteriormente sua aprovao, iniciar o

32

Cf. MORSINK, Johannes. The Universal Declaration of Human Rights: origins, drafting and intent.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999, pp. 1-4.
33
MORSINK, Johannes. Op. cit. pp. 2-4.

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labor de confeco de um tratado internacional que regulasse a matria com maior fora
normativa 34.
Deste modo, o fruto do primeiro labor desenvolvido pela Comisso de Direitos
Humanos, foi a elaborao da Declarao Universal de Direitos Humanos - DUDH, o
primeiro instrumento jurdico internacional, de carter geral, proclamado por uma
organizao de vocao universal ONU. Em que pese o rduo trabalho desenvolvido pela
Comisso de Direitos Humanos e seu Comit de Redao, em articular a disputa ideolgica
em um mundo polarizado entre socialistas e capitalistas, certo que a Declarao
Universal foi uma conquista da humanidade 35.
Com a aprovao da Declarao Universal de Direitos Humanos, a sociedade
internacional vai passar (e est passando) por um gradual processo de humanizao do
Direito Internacional. Deste modo, a partir da DUDH, outros tratados internacionais foram
aprovados no mbito da ONU. Fala-se do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos
e do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966,
alm de outros tratados que visam proteger determinado grupo social, e.g., Conveno
Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial (1968);
Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a mulher
(1979); Conveno sobre os Direitos das Crianas (1989), etc.
Neste processo de internacionalizao dos diretos humanos, no se pode
olvidar do labor realizado pelas organizaes internacionais de carter regional, ao criarem
tratados e tribunais vocacionados para a proteo internacional destes direitos.
Neste contexto, evidencia-se o Conselho da Europa, cujo Estados-membros
assinaram no dia 4 de novembro de 1950 a Conveno Europeia para Proteo dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais CEDH. Merrills leciona que o objetivo da
CEDH era estabelecer as fundaes para a nova Europa que esperavam construir sobre as
runas de um continente devastado por uma guerra fratricida de incomparvel

34

Cf. GMEZ ISA, Felipe; ORA, Jaime. Op. cit. p. 42.


de se notar, que mesmo antes de sua aprovao, a DUDH recebeu duras crticas, principalmente no
que se refere a sua preteno de declarar direitos universalmente vlidos. Pode-se citar, por exemplo, o
memorandum da American Anthropological Association AAA. Sobre o memorandum, Morsink aduz: The
anthropologist believed that the Human Rights Commission was in danger of making such ethnocentric
judgments in the International Bill of Rights. As they saw it, the primary task the drafters faced was to find
a solution to the following problem: How can the proposed Declaration be applicable to all human beings
and not be a statement of rights conceived only in terms of values prevalent in the countries of Western
Europe and America? (p.116). The AAA was worried that this problem had no a good solution. 35
MORSINK, Johannes. Op. cit. p. IX.
35

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127

atrocidade 36. A CEDH supervisionada por um rgo jurisdicional, o Tribunal Europeu


de Direitos Humanos - TEDH, que forma, o sistema europeu de proteo dos direitos
humanos, o mais plenamente desenvolvido, a nvel regional, que alm inspirar os outros
sistemas regionais (v.g., sistema interamericano e africano), influenciou sobremaneira a
humanizao do DIP, conferindo, inclusive, capacidade processual ativa para que o
indivduo possa reclamar a violao dos seus direitos humanos conferidos pela CEDH ao
TEDH, mediante o preenchimento de certos requisitos.
J o sistema interamericano de proteo dos direitos humanos composto,
principalmente, de quatro instrumentos: a Carta da Organizao dos Estados Americanos
(1948); a Declarao Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948); a Conveno
Americana de Diretos Humanos (1969), que criou a Corte Interamericana de Direitos
Humanos - CIDH; e o Protocolo Adicional Conveno Americana em Matria de
Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1988). Assim como o sistema europeu, o sistema
interamericano tem contribudo significantemente para a humanizao do DIP, destacandose o trabalho realizado pela CIDH em seus julgados.
Neste desiderato, conforme os ensinamentos de Mazzuoli, se o sistema
regional europeu de direitos humanos o que se apresenta mais evoludo e mais slido at
o presente momento, seguido do sistema regional interamericano, que se encontra em
posio intermediria, o sistema regional africano ainda o mais incipiente e frgil. Neste
contexto, ainda relativamente jovem, o sistema africano de proteo dos direitos humanos,
composto, principalmente, pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de
1981, que criou um rgo de proteo: a Comisso Africana dos Direitos Humanos e dos
Povos. Posteriormente, outro rgo de proteo da Carta foi criado, atravs do Protocolo
Carta, datado de 1988, que instituiu a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Todo este processo de normatizao dos direitos humanos, desde a Carta de
So Francisco, demonstra como o Direito Internacional Pblico vem se humanizando
gradualmente. O DIP, hodiernamente, preocupa-se, antes da pura relao interestatal, com
o indivduo e seus direitos j internacionalmente reconhecidos. Podemos refletir, pois, que
na agenda do Direito Internacional Pblico, encontra-se presente a preocupao com a
proteo do indivduo, como sujeito de direitos, e no como simples sditos de
determinado Estado, sem personalidade jurdica.
36

MERRILLS, J. G; ROBERTSON, A. H. Direitos Humanos na Europa: um estudo da Conveno


Europeia de Direitos Humanos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 9.

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128

E neste contexto de gradual humanizao do DIP, que Canado Trindade


revela, in verbis:
The intermingling between Public International Law and the International Law
of Human Rights gives testimony of the recognition of the centrality, in this new
corpus juris, of the universal human rights, what corresponds to a new ethos of
our times 37.

Ainda sob o discurso de Canado Trindade, podemos argumentar que qualquer


anlise do moderno Direito Internacional Pblico, sem considerar o ente humano,
pertencente ao passado e est em descompasso com o gradual processo de humanizao do
DIP 38, haja vista que, como diz o autor, os direitos humanos encontram papel central, o
novo ethos de nosso tempo, e o jurista, ao analisar o DIP, deve levar isto em
considerao 39.
neste contexto de reconhecimento dos direitos humanos pelos diferentes
ramos do Direito Internacional Pblico, que o Direito Consular Internacional vai ganhar
recente destaque. No prximo tpico analisaremos, a evoluo no reconhecimento de
direitos individuais (e humanos) por um ramo do DIP, que sempre foi caracterizado por seu
contedo estritamente interestatal.

III A HUMANIZAO DO DIREITO CONSULAR

Em que pese a Conferncia de Viena sobre as Relaes Consulares ter ocorrido


em 1963, dizer, quase quinze anos aps a aprovao da Declarao Universal de Direitos
Humanos, no contedo gerado pela mesma h pouqussimas menes aos direitos humanos
ou mesmo Declarao 40. Esta ausncia de referncia aos diretos humanos no discurso das
delegaes de diversos pases que se encontravam presentes na Conferncia de Viena de
1963, entendvel se analisarmos a instituio consular e seu desenvolvimento histrico,
sem qualquer influncia do processo de humanizao do DIP.
37

TRINDADE, Antnio Augusto Canado. The humanization of Consular Law: the impact of advisory
opinion No. 16 (1999) of the Inter-American Court of Human Rights on International Case-law and Practice.
Chinese Journal of International Law. (2007), Vol. 6, No. 1, p. 2.
38
Cf. TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Op. ci., p. 2.
39
Um exemplo deste reconhecimento da centralidade dos diretos humanos na anlise do DIP, est no voto
dissidente do Juiz da Corte Internacional de Justia, Canado Trindade, no julgamento da ao envolvendo a
imunidade de jurisdio dos Estados. Cf. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Jurisdictional
immunities of the State (Germany v. Italy: Greece intervening). Dissenting Opinion of Judge Canado
Trindade, (3 February 2012).
40
UNITED NATIONS. Conference on consular relations. Official Records. Vol. I, Summary records of
plenary meetings and of the meetings of the First and Second Committees. New York: United Nations, 1963.

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129

Como se pode denotar no desenvolver histrico da instituio consular, esta


voltada para regular as relaes estritamente interestatais. A proteo e assistncia
conferida pelo Direito Consular ao indivduo pautada em critrios de reciprocidade entre
os Estados. O Direito Consular, deste modo, no considerava os indivduos como sujeitos
de direitos para merecer proteo e assistncia, mas sim, como sditos de determinado
Estado, que por motivos reciprocidade, podiam receber a interveno do seu Estado de
nacionalidade para garantir o melhor aproveitamento dos seus interesses.
Em virtude desta caracterstica de interestatalidade do Direito Consular, que,
os delegados dos Estados participantes da Conferncia de Viena de 1963, podem ter se
esquecido de introduzir em seu discurso os diretos humanos. de se notar, que as poucas
referncias feitas aos direitos humanos, e em especfico Declarao Universal de Direitos
Humanos, so feitas em virtude da discusso acerca do artigo 36 da Conveno de Viena
sobre Relaes Consulares CVRC, artigo este que nos finais do sculo XX vai
protagonizar a humanizao do Direito Consular 41.
Aps a Conferncia e a aprovao da Conveno de Viena sobre Relaes
Consulares, esta manteve seu contedo interestatal, no absorvendo em sua interpretao o
crescente processo de humanizao do DIP. Foi somente no ano de 1979, que a sombra da
interestatalidade perdeu um pouco da sua densidade frente ao Direito Consular, diante da
demanda proposta pelos Estados Unidos da Amrica EUA, ao Tribunal Internacional de
Justia - TIJ, em desfavor do Ir, em que o pas estadunidense alegava que a violao de
alguns dos seus direitos consulares, tambm gerava a violao dos standards dos direitos
humanos 42.
No obstante, foi com a constante violao por parte dos EUA aqui o Estado
norte-americano aparece como descumpridor do Direito Consular , dos direitos
consulares convencionados no artigo 36 da CVRC e a discusso jurisprudencial e
doutrinria sobre o assunto, que contribuiu mais significantemente para a humanizao do
Direito Consular. As violaes dos direitos consulares pelos EUA inscritos no art. 36 da
CVRC geraram demandas de trs Estados distintos em dois tribunais internacionais.

41

Cf. UNITED NATIONS. Conference on consular relations. Op. cit., pp. 40, 47, 219.
Cf. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. United States diplomatic and consular staff in Tehran
(United States of America v. Iran). Memorial of the Government of the United States of America, (12 January
1980).
42

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A primeira demanda foi apresentada pelo Paraguai ao Tribunal Internacional de


Justia 43, ainda no ano de 1998, em virtude da priso do seu nacional em territrio norteamericano, o Sr. Angel Francisco Breard, que foi condenado a pena de morte sem ter sido
efetivado os direitos constantes no art. 36 da Conveno de 1963 44. O segundo Estado a
demandar internacionalmente os EUA pela violao dos direitos convencionados no artigo
36 da CVRC, utilizando-se do protocolo facultativo referente a jurisdio compulsria do
TIJ foi a Alemanha 45. A demanda alem Caso LaGrand foi proposta no dia de 02 de
maro de 1999 e foi a primeira a ter uma deciso de mrito sobre a controvrsia, haja vista
que o Estado paraguaio retirou sua reclamao em virtude da execuo a pena de morte do
seu nacional, antes do TIJ ter chegado a uma deciso final sobre o assunto.
Neste contexto, valendo-se da jurisdio contenciosa do Tribunal de Haia,
Mxico foi o terceiro Estado a demandar os Estados Unidos da Amrica pela sistemtica
violao da Conveno de Viena. O caso Avena, segundo Torres Cazorla, foi o que mais
contribuiu na discusso das consequncias da violao dos direito consulares. Para a
autora, o caso Bread apresentou o problema, que permaneceu pendente, haja vista a
desistncia do demandante; o caso LaGrand permitiu ao TIJ dar respostas claras petio
alem, declarando, ao final, que os EUA havia violado o Direito Internacional; j em
Avena, alm das questes suscitadas anteriormente, foi apresentada dvidas a respeito da
execuo das obrigaes internacionais pelo Estado demandando 46.
No obstante as aclaraes feitas pelo TIJ na anlise das demandas, como bem
interpretado por Monica Feria, uma questo balizou os argumentos das partes envolvidas
na controvrsia, para a autora:
Two opposite views of international law appeared from the arguments of the
parties. For the United States international law consist of a myriad of watertight
compartments: at the level of sources, treaty law and customary international
law have separate existences and thus on excludes the application of the other;
at the level of rights and obligations, inter-state relation can be isolated from
their bearing on individual rights; in respect of the different areas of public
international law, they may not converge, human rights law being like oil, never
43

Os Estados que assinaram o Protocolo Facultativo da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares,
para a Resoluo Obrigatria de Divergncias se submetem competncia do TIJ.
44
Cf. SANCHEZ RODRIGUEZ, Luis Ignacio. Sobre la obligatoriedad y efectividad de las medidas
provisionales adoptadas por la Corte Internacional de Justicia: a proposito de la demanda de la Republica de
Paraguay contra los Estados Unidos en el asunto Breard. Anuario Hispano-Luso-Americano de Derecho
Internacional, Madrid, vol. 14, 1999.
45
Cf. POZO SERRANO, Pilar. La sentencia de la Corte Internacional de Justicia en el asunto LaGrand.
Anuario de Derecho Internacional, Pamplona, vol. XVII, 2001.
46
Cf. TORRES CAZORLA. Maria Isabel. Tribunal Internacional de Justicia. Asunto Avena y otros
nacionales Mexicanos (Mxico c. Estados Unidos de Amrica) Medidas Provisionales: Providencia de 5 de
Febrero de 2003. REDI, Madrid, vol. LV, n. 1, 2004, p. 493.

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to mix with the water of consular relation or diplomatic protection. In contrast,


Germany took the view that a treaty provision is not self-sufficient but may
interact with other norms and sources in its application; that inter-state rights
and obligations can no longer be insulated from individual rights, and that the
interlocking of human rights law with other areas of public international law
corresponds to the reality of contemporary international law 47.

Apesar da anlise da autora se centrar nos argumentos despendidos no Caso


LaGrand, o mesmo raciocnio pode ser estendido s outras demandas propostas diante do
TIJ pela violao dos diretos consulares convencionados no art. 36 da CVRC. De fato,
Paraguai, Alemanha e Mxico em sua argumentao perante o TIJ exploraram a influncia
do Direito Internacional dos Direitos Humanos sobre o art. 36 da CVRC, a mitigar o
carter estritamente interestatal do Direito Consular. Os Estados, em tom unssono,
tambm alegaram que a garantia inscrita no art. 36, alm de conferir direitos aos Estados,
tambm confere ao indivduo, e que este direito conferido pela Conveno de Viena ,
pois, um direito humano e deve ser internacionalmente protegido.
No entanto, ao julgar as demandas, o Tribunal Internacional de Justia manteve
seu discurso conservador e no se pronunciou em tons claros sobre os argumentos dos
Estados demandantes, em relao a insero dos direitos conferidos aos indivduos pelo
art. 36 na linguagem dos diretos humanos. Por outro lado, avanou o Tribunal ao rechaar
a tese estadunidense de que o Direito Consular se inscreve somente no mbito das relaes
interestatais, decidindo, pois, o TIJ que a CVRC confere direito individuais subjetivos 48.
O verdadeiro reconhecimento do processo de humanizao do Direito Consular
ocorreu atravs da Opinio Consultiva de n. 16 da Corte Interamericana de Direitos
Humanos CIDH, emitida em 1 de outubro de 1999, que fora solicitada pelo Estado
mexicano, em desfavor dos EUA. A solicitao do Mxico, resumidamente, ambicionava
saber quais as consequncias sobre a violao dos direitos consulares convencionados no
art. 36 da CVRC, principalmente nos casos em que o estrangeiro preso condenado pena
de morte e qual a influncia do descumprimento na efetivao do devido processo legal.

47

TINTA, Monica Feria. Due process and the Right to Life in the context of the Vienna Convention of
Consular Relations: Arguing the LaGrand Case. European Journal of International Law, vol. 12, n. 2, 2001,
pp. 363-364.
48
Cf. ABALDE CANTERO, scar. El desarrollo progresivo del Derecho Internacional a la luz de las
decisiones de la Corte Internacional de Justicia en torno a la aplicacin del Convenio de Viena sobre
Relaciones Consulares. Algunas luces y no pocas Sombras. In: SOROETA LICERAS, Juan (ed.). La eficacia
del Derecho Internacional de los Derechos Humanos: cursos de Derechos Humanos de Donostia-San
Sebastin. Vol. XI. Bilbao: Universidad del Pas Vasco, 2011, pp. 52-59.

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132

Alm do Estado solicitante e solicitado Mxico e EUA, respectivamente ,


outras pases integrantes da Organizao dos Estados Americanos OEA apresentaram
observaes Corte, bem como algumas ONGs participaram do julgamento da Opinio
Consultiva na qualidade de amici curiae. importante salientar a participao desses
Estados e entidades, pois, a grande maioria deles, em suas observaes feitas, enxergaram
que o art. 36 da CVRC estava inscrito na linguagem dos direitos humanos e no marco de
proteo do devido processo legal 49.
A contribuio da Opinio Consultiva da CIDH foi importante ao confirmar
que o art. 36 confere direitos individuais e que esses direitos esto inscritos no marco do
devido processo legal. Em que pese as manifestaes dos Estados observadores e das
ONGs de que o art. 36 tambm se inscreve na linguagem dos direitos humanos, a CIDH
no foi to longe em sua anlise, em sua opinio final.
No entanto, o voto concorrente do juiz Canado Trindade foi o precedente com
maior poder de contribuio para a humanizao do Direito Consular, ao aduzir o juiz que:
La presente Opinin Consultiva refleja fielmente el impacto del Derecho
Internacional de los Derechos Humanos en el precepto del artculo 36(1)(b) de
la Convencin de Viena sobre Relaciones Consulares de 1963. Efectivamente,
en este final de siglo, ya no hay cmo pretender disociar el referido derecho a la
informacin sobre la asistencia consular del corpus juris de los derechos
humanos 50.

E continua o juiz em seu voto:


Es en el contexto de la evolucin del Derecho en el tiempo, en funcin de
nuevas necesidades de proteccin del ser humano, que, en mi entender, debe ser
apreciada la ubicacin del derecho a la informacin sobre la asistencia consular
en el universo conceptual de los derechos humanos. La disposicin del artculo
36(1)(b) de la mencionada Convencin de Viena de 1963, a pesar de haber
precedido en el tiempo los tratados generales de proteccin - como los dos
Pactos de Derechos Humanos de Naciones Unidas (de 1966) y la Convencin
Americana sobre Derechos Humanos (de 1969), - hoy da ya no puede ser
disociada de la normativa internacional de los derechos humanos acerca de las
garantas del debido proceso legal. La evolucin de las normas internacionales
49

Por exemplo, El Salvador assim se manifestou em suas observaes: las garantas mnimas necesarias
en materia penal deben aplicarse e interpretarse a la luz de los derechos que confiere a los individuos el
artculo 36 de la Convencin de Viena sobre Relaciones Consulares, por lo que la omisin de informar al
detenido sobre estos derechos constituye una falta a todas las reglas del debido proceso, por no respetar las
garantas judiciales conforme al derecho internacional; el incumplimiento del artculo 36 de la Convencin de
Viena sobre Relaciones Consulares conduce a la prctica de ejecuciones arbitrarias [] y, es necesario
asegurar, fortalecer e impulsar la aplicacin de las normas y principios de los instrumentos internacionales,
en materia de derechos humanos y asegurar el cumplimiento de las garantas mnimas necesarias para el
debido proceso. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinio Consultiva OC16/99, Solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos em 01 de outubro de 1999. San Jos, 1999. p. 12.
50
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Voto concurrente del Juez A.A. Canado
Trindade. Opinio Consultiva OC-16/99, Solicitada pelos Estados Unidos Mexicanos em 01 de outubro de
1999. San Jos, 1999, par. 1.

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133

de proteccin ha sido, a su vez, impulsada por nuevas y constantes valoraciones


que emergen y florecen en el seno de la sociedad humana, y que naturalmente se
reflejan en el proceso de la interpretacin evolutiva de los tratados de derechos
humanos 51.

De todo o exposto, flagrante o papel do art. 36 da Conveno de Viena sobre


Relaes Consulares no papel de humanizao do Direito Consular. E como bem fora
salientado pelo ento juiz da CIDH Canado Trindade, no se pode interpretar o Direito
Internacional Pblico sem considerar a centralidade dos direitos humanos, what
corresponds to a new ethos of our times 52, e neste contexto, interpretar o art. 36 sob um
enfoque estritamente interestatal, vivenciar o passado, em que o indivduo no detinha
personalidade jurdico-internacional.

CONSIDERAES FINAIS

certo que aps o conturbado perodo das grandes guerras do sculo XX, a
humanidade ansiava que a sociedade internacional buscasse proteger o ente humano, para
alm da soberania do Estado. Com o fim da 2. G.M. e a criao da ONU deu-se o primeiro
passo concreto para a proteo internacional dos direitos humanos. Posteriormente, com o
advento da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os sucessivos tratados
de proteo dos direitos humanos no sistema universal e nos sistemas regionais de proteo
sistema europeu, americano e africano , o Direito Internacional Pblico vai passar por
um processo designado como a sua Humanizao, dizer, o ser humano e seus direitos
internacionalmente reconhecidos passam a ter papel central e o DIP deve ser interpretado
conforme estes preceitos.
Com fora salientado nas linhas acima, o Direito Consular no poderia ficar
margem deste processo de humanizao. Neste contexto, a interpretao do art. 36 da
Conveno de Viena sobre Relaes Consulares de 1963 pelos tribunais internacionais,
especificamente, o Tribunal Internacional de Justia e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, tiveram um papel fundamental para a humanizao do Direito Consular.
Alm da contribuio dos tribunais internacionais, os prprios Estados que de
certa forma estiveram envolvidos com processo de interpretao do Direito Consular, seja
na qualidade de demandantes ou de observadores, pugnavam pelo reconhecimento de que
51
52

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Op. cit., par. 15.


TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Op. cit., p. 2.

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134

o art. 36 da Conveno de Viena sobre Relaes Consulares estabeleceu um direito


humano, ao afirmar que o estrangeiro preso tem direito notificao consular e a receber
assistncia do seu consulado.
Podemos concluir, pois, que o Direito Consular evoluiu substancialmente.
Outrora era considerado um ramo do Direito Internacional Pblico preocupado
exclusivamente em regular as relaes entre Estados, baseados em critrios de
reciprocidade, e a considerar o indivduo como um sdito, sem subjetividade jurdicointernacional. Hodiernamente, podemos argumentar que o Direito Consular passou a
orbitar sobre a centralidade dos direito humanos internacionalmente reconhecidos e que
imperativo na interpretao das suas normas, analisar a dimenso dos direitos humanos.

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138

OBSERVATRIO DOS DIREITOS HUMANOS:


A NO-VIOLNCIA EM AO
LUS FILIPE GUERRA 1
[email protected]

RESUMO

Observatrio

dos

Direitos

Humanos

(ODH)

uma

plataforma

interassociativa que se prope monitorizar a situao dos direitos humanos em Portugal a


partir de denncias concretas da violao dos mesmos, apresentadas por cidados e
organizaes no-governamentais ou relatadas na imprensa.
O ODH procede anlise dos casos denunciados, em face das normas jurdicas
internacionais e nacionais de proteo dos direitos humanos, e elabora relatrio em que se
pronuncia sobre a existncia ou no de infrao a estas, dando depois publicidade ao
mesmo, designadamente notificando as partes envolvidas e a comunicao social.
Considerando a funo histrica dos direitos humanos, o ODH s se pronuncia
sobre situaes que envolvam uma entidade pblica e um particular. Hoje, os direitos
humanos no tm uma vigncia universal efetiva, desde logo porque enfrentam o choque
da nova legislao securitria antiterrorista e xenfoba e dos efeitos da globalizao que
obriga os Estados a processos de ajustamento oramental. Por isso, a denncia sistemtica
das violaes dos direitos humanos tem sentido porque permite avanar na direo de
tornar os mesmos uma conquista cultural profunda, arreigada na prpria estrutura
psicossomtica do ser humano.
De facto, os direitos humanos no so um fim em si mesmo, mas sim um
instrumento jurdico para eliminar todas as formas de violncia (fsica, econmica, racial,
religiosa, sexual e psicolgica) que atingem o ser humano e esse o seu sentido e
fundamento. Eliminar a violncia que afeta o ser humano alinhar-se com a direo do
processo histrico, contribuindo para a superao da dor e do sofrimento. Estes sequestram
1

Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito do Porto da Universidade Catlica Portuguesa (1990),
Ps-Graduado em Cincias Jurdico-Empresariais pela mesma faculdade (2001), Ps-Graduado em Direitos
Humanos pela Escola de Direito da Universidade do Minho (2008), advogado (1993-2008), mediador de
conflitos (2002-2008) e juiz de paz (2008 at ao presente, no Julgado de Paz do Porto). Participante do
Movimento Humanista desde 1986 e fundador e dirigente do Partido Humanista de 1999 a 2009.
[email protected]

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a conscincia humana, absorvendo a energia psquica de que dispe e impedindo-a de


continuar o seu processo evolutivo mediante o resgate dos sinais do sagrado que chegam
da profundidade da mente.
Por seu lado, o ODH uma manifestao da metodologia de ao da noviolncia ativa, visando a transformao das leis e das prticas poltico-administrativas que
atentam contra os direitos humanos. O ODH entende que a formulao atual dos direitos
humanos imperfeita e no esgota a sua problemtica, mas reconhece que o seu cabal
cumprimento representaria um grande avano no sentido apontado.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos, cultura, no-violncia, sagrado.

1. INTRODUO

Observatrio

dos

Direitos

Humanos

(ODH)

uma

plataforma

interassociativa que se prope monitorizar a situao dos direitos humanos em Portugal a


partir de denncias concretas da violao dos mesmos, apresentadas por cidados e
organizaes no-governamentais ou relatadas na imprensa 2. No geral, essas denncias
chegam ao ODH atravs do seu site: www.observatoriodireitoshumanos.net 3. Atualmente,
o ODH agrupa o Centro de Estudos e Aes Humanistas 4, o Movimento SOS Racismo, a
Agncia Piaget para o Desenvolvimento e a Comisso Nacional de Legalizao de
Imigrantes, que configuram a sua Comisso Executiva, bem como algumas associaes
mais que no tm um papel to ativo na sua organizao e funcionamento 5.
O ODH procede anlise dos casos denunciados, em face das normas jurdicas
internacionais e nacionais de proteo dos direitos humanos, e elabora relatrios em que se
2

A gnese do ODH remonta, na verdade, ao curso de mestrado em Direitos Humanos da Escola de


Direito da Universidade do Minho, no ano lectivo de 2007/2008, dado ter sido durante o mesmo que a ideia
tomou forma, tendo vindo a ser apresentada publicamente nas Jornadas da No-Violncia, organizadas pelo
Movimento Humanista, em Maro de 2008, na Casa da Cultura de Paranhos, na cidade do Porto. A partir da,
foram feitos contactos com potenciais parceiros, posto o que, em Julho de 2008, foi efetuada uma conferncia
de imprensa de apresentao do ODH, na Casa do Livro, tambm na cidade do Porto.
3
No site possvel consultar os diversos relatrios j produzidos pelo ODH, destacando-se aqueles que
incidem sobre o direito sade e o direito segurana social, por serem aqueles cujas violaes so mais
denunciadas.
4
O autor deste artigo participa neste organismo do Movimento Humanista, pelo que o ponto de vista
adotado corresponde forma como a atividade do Observatrio dos Direitos Humanos concebida e
enquadrada no seio do mesmo.
5
Neste grupo avulta a Associao contra a Excluso e pelo Desenvolvimento, que tem canalizado para o
ODH diversas denncias sobre a situao da populao prisional, apesar de esta no participar na sua
Comisso Executiva.

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pronuncia sobre a existncia ou no de infrao a estas, dando depois publicidade ao


mesmo, designadamente notificando as partes envolvidas e a comunicao social, alm de
outras entidades nacionais com competncias para zelar pelo respeito pelos direitos
fundamentais dos cidados. O objetivo do ODH consiste no apenas em pressionar os
poderes pblicos para a correo da situao denunciada e prevenir violaes futuras do
mesmo gnero, mas tambm em contribuir para a sedimentao de uma cultura dos direitos
humanos no seio da sociedade portuguesa em geral e no mbito dos rgos de soberania e
Administrao Pblica, em especial.
Alis, considerando a funo histrica dos direitos humanos, o ODH s se
pronuncia sobre situaes que envolvam uma entidade pblica e um particular. Nesse
sentido, o ODH foi criado como uma frente de ao independente em relao aos poderes
pblicos, de forma a garantir a sua maior operacionalidade 6.

2. ATIVIDADE DO OBSERVATRIO DOS DIREITOS HUMANOS

Nesse sentido, vale a pena fazer uma breve inventariao dos casos analisados
pelo ODH, nomeadamente quanto temtica em causa, todos eles disponveis no referido
site. Em primeiro lugar, importa referir que a maioria das denncias que chegam a este
referem-se a situaes ocorridas no interior das prises, embora as mesmas nem sempre
configurem exatamente violaes dos direitos humanos e sejam difceis de comprovar.
Por outro lado, a maioria dos casos que foram entendidos como atropelos aos
direitos humanos inscrevem-se no domnio dos chamados direitos econmicos, sociais e
culturais, particularmente quanto ao direito segurana social e ao direito sade. No
obstante, no se pense que as violaes dos direitos humanos em Portugal se restringem ao
campo dos direitos econmicos, sociais e culturais, j que tambm ocorrem na esfera dos
direitos civis (ou dos direitos, liberdades e garantias, para usar a terminologia da nossa
Constituio).
Com efeito, o ODH teve ocasio de relatar violaes do direito de
reclamao/liberdade de expresso 7 (um cidado escreveu uma reclamao numa
Conservatria do Registo Predial e acabou condenado pela prtica de um crime de
difamao, na sequncia de queixa da funcionria visada, ao arrepio da jurisprudncia
6

Esta no a realidade da maioria dos observatrios sectoriais existentes em Portugal, normalmente


criados no seio dos ministrios respetivos.
7
Cfr. http://www.observatoriodireitoshumanos.net/relatorios/relatorio_r1_mar2009.pdf

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dominante no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, onde Portugal tem sido repetidas
vezes condenado por ponderar de forma inapropriada o valor do direito ao bom nome
perante a liberdade de expresso); da liberdade de manifestao 8 (os promotores de uma
manifestao no previamente comunicada nos termos legais foram condenados pela
prtica de um crime de desobedincia); ou do segredo de justia, como instrumento de
proteo do direito ao bom nome e do princpio de presuno de inocncia 9 (uma rusga
casa de habitao de um graduado da Polcia de Segurana Pblica foi acompanhada e
noticiada pela comunicao social).

3. A SITUAO DOS DIREITOS HUMANOS

Como se pode ver, para efeitos da sua atividade, o ODH no faz distino entre
o conceito de direitos humanos e o de direitos fundamentais, considerando pertinentes
todas as normas jurdicas que o Estado portugus est vinculado a observar no que respeita
proteo de uns e outros. Na verdade, trata-se de velar pelo respeito dos valores tutelados
pelas normas que protegem os direitos humanos no plano internacional e os direitos
fundamentais no plano nacional.
Hoje, os direitos humanos no tm uma vigncia universal efetiva, desde logo
porque enfrentam o choque no s do relativismo cultural 10, mas tambm da recente
legislao securitria antiterrorista e anti-imigrao 11, por um lado, e dos efeitos do

Cf.http://www.observatoriodireitoshumanos.net/relatorios/Relatorio_DireitoReuniaoManifestacao.
Cfr. http://www.observatoriodireitoshumanos.net/relatorios/relatorio_r2_out2009.pdf
10
O relativismo cultural nega o universalismo dos direitos humanos e interpreta-os como uma imposio
da cultura ocidental sobre os outros povos. Ainda que se admita que a gnese dos direitos humanos se d no
contexto cultural ocidental e que os mesmos foram recentemente instrumentalizados para efeitos de
intervenes armadas ditas humanitrias ou democratizadoras por parte de potncias ocidentais, o
reconhecimento das realidades culturais diversas no invalida a existncia de uma estrutura humana comum
em devir histrico e em direo convergente (SILO, Obras completas, Vol. I, Madrid, Ediciones
Humanistas, pg. 640), pelo que a universalidade dos direitos humanos depende do seu alinhamento com esse
processo histrico, como se explicita mais abaixo.
11
A legislao especial antiterrorista permitiu criar situaes de exceo aos princpios de direito penal
acolhidos nos prprios tratados internacionais de proteo dos direitos humanos, como acontece com a
proibio da tortura e de tratamentos cruis, degradantes ou desumanos, ou a limitao do tempo de deteno
sem culpa formada, de que a priso norte-americana de Guantnamo um dos exemplos mais marcantes no
contexto cultural ocidental. Por sua vez, os centros de deteno temporria de imigrantes em situao
irregular, onde os mesmos podem permanecer at seis meses a aguardar a concluso do seu processo de
expulso, no caso de alguns pases europeus, desafiam tambm aquelas mesmas normas. O mesmo se diga
das normas que limitam o direito ao reagrupamento familiar a um s cnjuge, ainda que o imigrante em
situao regular esteja validamente casado, luz da lei do seu pas de origem, com mais de uma pessoa,
impondo-se uma interpretao restritiva, conforme conceo crist dominante no ocidente, do direito de
constituio de famlia.
9

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142

processo de globalizao sobre os Estados nacionais, obrigados a processos de ajustamento


oramental que minam o Estado Social 12, por outro.
Por isso, a denncia sistemtica das violaes dos direitos humanos tem
sentido porque permite avanar na direo de tornar os mesmos uma conquista cultural
profunda, arreigada na prpria estrutura psicossomtica do ser humano 13, cuja restrio ou
violao produzir o repdio das maiorias.

4. O SENTIDO E O FUNDAMENTO DOS DIREITOS HUMANOS

Na verdade, os direitos humanos no so um fim em si mesmo, mas sim um


instrumento jurdico para combater todas as formas de violncia (fsica, econmica, racial,
religiosa, sexual e psicolgica) que atingem o ser humano, negando a sua intencionalidade,
e esse o seu sentido e fundamento. Eliminar a violncia que afeta o ser humano alinharse com a direo do processo histrico, contribuindo para a superao da dor e do
sofrimento.
Na verdade, de um ponto de vista existencial, a superao da dor e do
sofrimento constitui o projeto vital bsico do ser humano, guiando a sua ao e a sua
construo social, graas ampliao do horizonte temporal caracterstica da sua
conscincia. A dor e o sofrimento - que aparecem como consequncia, mas tambm como
causa da violncia existente 14 - sequestram a conscincia humana, uma vez que mobilizam
a energia psquica disponvel para atividade intelectual compensatria, impedindo-a, assim,
de continuar o seu processo evolutivo mediante a elevao do seu nvel de trabalho e o
resgate dos sinais do sagrado que chegam da profundidade da mente. Estes sinais surgem
como inspiraes (nomeadamente na Arte, na Cincia e na Filosofia) 15 ou como

12

Os deveres que constituem o correlato dos direitos econmicos, sociais e culturais, cabem normalmente
aos Estados, atravs das chamadas prestaes sociais. A perda de capacidade dos Estados para continuarem a
assegurar o cumprimento desses deveres, potenciada pela recente crise financeira internacional que obrigou
aqueles a intervirem no setor bancrio, pe em causa a universalidade dos direitos humanos, nomeadamente
com a extino, reduo ou privatizao dos servios pblicos respetivos.
13
Conhecendo a funo da imagem (no apenas visual, mas tambm auditiva, olfativa, gustativa e tctil)
e as cargas psicofsicas que a mesma mobiliza, possvel conceber que a violncia chegue a repugnar o ser
humano, j no apenas como mera rejeio moral, mas tambm com as concomitncias fsicas que a sensao
de asco pode produzir.
14
15

O sofrimento induz respostas violentas e estas, por sua vez, causam maior sofrimento a outros.
Cfr. SILO, Apuntes de psicologa, Rosario, Ulrica Ediciones, 2006, pp. 323-325.

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143

experincias fora do comum 16 e desvelam um Propsito, uma inteno evolutiva, que


permite forjar um sentido para a vida isento de toda a frustrao.
Neste momento histrico em que a fadiga da razo parece ir dar lugar
irrupo de neo-irracionalismos obscurantistas e/ou violentos, torna-se necessrio resgatar
e frequentar essa estrutura de conscincia inspirada que permitiu aquelas formidveis
intuies filosficas aos pensadores pr-aristotlicos que buscavam apreender diretamente
a essncia do ser 17. Essa busca propiciar a compreenso de que o destino do ser humano
dar vida conscincia de si mesma, possibilitando a configurao e a transcendncia do
esprito, e que tudo o que colabora nessa direo bom e o que se lhe ope mau,
registando-se como contradio e sofrimento.

5. A NO-VIOLNCIA ATIVA

Vista deste ponto de vista, a discusso atual sobre os direitos humanos resolvese sempre a favor da no-violncia, como valor universal conhecido em todas as culturas,
sob uma ou outra formulao 18. Assim, restringir os direitos humanos no ser aceitvel se
isso se traduzir em incremento da violncia fsica, econmica, racial, religiosa, sexual ou
psicolgica sobre o ser humano concreto, dado que constituir uma forma de involuo.
Nada obriga a uma cristalizao da formulao atual dos direitos humanos,
tanto mais que a mesma fica aqum daquilo que a humanidade aspira e merece neste
momento histrico 19. Porm, evidente que o respeito escrupuloso das normas respetivas
teria como resultado um grande e efetivo avano na direo mencionada.
16

s vezes adiantei-me a factos que depois aconteceram. s vezes captei um pensamento longnquo. s
vezes descrevi lugares que nunca visitei. s vezes relatei com exatido o que aconteceu na minha ausncia.
s vezes uma alegria imensa surpreendeu-me. s vezes uma compreenso total invadiu-me. s vezes uma
comunho perfeita com tudo extasiou-me. s vezes rompi os meus devaneios e vi a realidade de um modo
novo. s vezes reconheci como se visse novamente algo que via pela primeira vez.
... E tudo isso deu-me que pensar.
Dou-me bem conta que, sem essas experincias, no podia ter sado do sem-sentido (SILO. Obras
completas, Vol. I, op.cit., pg. 29).
17
Cfr. ORDEZ, Alicia, El oscurecimiento del ser en occidente, Centro de Estudios del Parque La
Reja, 2010, disponvel na Internet em www.parquelareja.org (consultado em 05/10/2012).
18
A no-violncia tem a sua melhor expresso na regra de ouro da tica, a qual no um exclusivo de
nenhuma cultura, embora esteja sujeita a diferentes formulaes, e que se pode sintetizar na frase trata os
outros como queres ser tratado. A ahimsa de Gandhi, o amor universal de Mo Tzu, o imperativo tico
kantiano, o ubuntu sul-africano, assim como certos mandamentos das grandes religies, so diferentes
tradues da mesma ideia.
19
Na realidade, a formulao atual dos direitos humanos responde problemtica de uma dada poca
histrica, deixando de lado questes como a liberdade de circulao interestadual, por exemplo, que no se
colocava ento, dada a baixa intensidade dos fluxos migratrios.

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Neste sentido, o ODH uma manifestao da no-violncia ativa como


metodologia de ao, visando a transformao das leis e das prticas polticoadministrativas que atentam contra os direitos humanos. Hoje, num contexto em que as
foras da violncia social so incrivelmente poderosas, a oposio s mesmas s pode
fazer-se por meio da no-violncia ativa, sob pena de grave incoerncia, que contribuiria
certamente para uma espiral violentista em que o ser humano concreto sairia sempre a
perder.
Neste contexto, a reivindicao a favor dos direitos humanos continua a ser
necessria, porque mostra aos poderes institudos que no tm o futuro controlado e que as
aspiraes profundas que levaram consagrao daqueles direitos, continuam bem vivas
no corao da humanidade, dando sentido e orientao construo social.

BIBLIOGRAFIA

ODH. Relatrios in Observatrio dos Direitos Humanos, disponvel em


www.observatoriodireitoshumanos.net (consultado em 05/10/2012).
ORDEZ, Alicia, El oscurecimiento del ser en occidente, Centro de Estudios del
Parque La Reja, 2010, disponvel na Internet em www.parquelareja.org (consultado
em 05/10/2012).
SILO, Obras completas, Vol. I, Madrid, Ediciones Humanistas, s/d.
SILO, Apuntes de psicologa, Rosario, Ulrica Ediciones, 2006.

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A EXPERINCIA DA DEFENSORIA PBLICA NA EFETIVIDADE


DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANAS

MRIO LIMA WU FILHO 1


[email protected]

RESUMO

Todas as pessoas tm o direito a serem esclarecidas e defendidas nos processos


judiciais e administrativos que lhes digam respeito, igual dignidade foi deferida de uma
maneira muito especial s crianas, pela manifestao dos 193 Estados que ratificaram a
Conveno sobre os Direitos da Criana. Para garantir o exerccio dos direitos
proclamados em condies reais de efetivao a Constituio da Repblica Federativa do
Brasil elegeu a Defensoria Pblica como sendo a instituio essencial funo
jurisdicional do Estado, com a incumbncia da orientao jurdica e a defesa, em todos os
graus, dos necessitados. Esse mister foi estendido pela norma fundamental e assegurado
pelo Estatuto da Criana e Adolescente s crianas e adolescentes que eventualmente se
encontrem em situao de risco pessoal ou social ou quando seus direitos so negados ou
violados. Com o objetivo de atender a essa demanda a Defensoria Pblica organizou o
atendimento atravs de Ncleos especializados dos Direitos das Crianas.

PALAVRAS-CHAVE: direito, criana, acesso, defensoria, proteo.

INTRODUO

Nos Estados democrticos de direito, todas as pessoas tem o direito


fundamental a um remdio contra os atos que violem os direitos fundamentais e a uma
audincia justa e pblica, de serem esclarecidas e amplamente defendidas nos processos
judiciais e administrativos que lhes digam respeito. Conforme ensina o mestre Canotilho, a
legitimidade do domnio poltico e a legitimidade do poder radicam na soberania popular e

Defensor Pblico do Estado do Amazonas, membro da Associao Brasileira de Magistrados,


Promotores e Defensores Pblicos da Infncia e Juventude, membro do Frum de Defensores Pblicos dos
Ncleos dos Direitos da Criana e Adolescente, [email protected].

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na vontade popular. O Estado Constitucional s constitucional se for democrtico. Da


que tal como a vertente do Estado de direito no pode ser vista seno luz do princpio
democrtico, tambm a vertente do Estado democrtico no pode ser entendida seno na
perspectiva de Estado de direito. Tal como s existe um Estado de direito democrtico,
tambm s existe um Estado democrtico de direito, isto , sujeito a regras jurdicas 2.
Esses direitos a um remdio fundamental esto contidos na Declarao
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e nas Constituies democrticas. No artigo 8.
da Declarao, por exemplo, estabelecido que toda pessoa tem direito a receber dos
tributos nacionais competentes remdio efetivo para os atos que violem os direitos
fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituio ou pela lei e, no artigo 10.
garante a toda pessoa o direito, em plena igualdade, a uma audincia justa e pblica por
parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do
fundamento de qualquer acusao criminal contra ele.
Igual dignidade foi garantida de uma maneira muito especial s crianas e
adolescentes, pela manifestao formal dos 193 Estados que assinaram e ratificaram a
Conveno sobre os Direitos da Criana. No artigo 3. os Estados assumiram o
compromisso de reconhecer o interesse superior da criana e garantir a proteo integral.
No artigo 40., sobre a administrao da justia, por exemplo, reconhecem criana o
direito s seguintes garantias: a) de presumir-se inocente; b) de ser informada das
acusaes contra si; c) de beneficiar de assistncia jurdica; e, c) e ter a sua causa
examinada sem demora por autoridade competente, independente e imparcial ou por um
tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presena do seu defensor.
Os direitos humanos de crianas proclamados na Conveno devem, ento, ser
efetivados, implementados, exercitados por quem possa legalmente exerc-los, entretanto,
nos casos de ameaa ou violao dos seus direitos dada a situao peculiar da criana de
pessoa em desenvolvimento, devido a incapacidade civil, impedimento legal ou quando h
conflito de interesses entre os genitores ou tutores, a Lei brasileira designa esse mister em
alguns casos ao Ministrio Pblico com marcante predominncia na conduta do Estado

A lio de Canotilho elucidativa, segundo este autor o Estado um Estado de direito democrtico.
Este conceito que seguramente um dos conceitos chave da CRP bastante complexo, e as suas duas
componentes ou seja, a componente do estado de direito e a componente do estado democrtico no
podem ser separadas uma da outra. O estado de direito democrtico e s sendo-o que democrtico.Cf.
Jos Joaquim Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, in
Jos Joaquim Gomes CANOTILHO - Direito Constitucional e Teoria da Constituio - 6 ed., Coimbra,
Almedina, 2002, p. 230/231.

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fiscalizador/acusador e, noutras questes Defensoria Pblica especializada no direito da


criana com prevalncia da conduta do Estado-defensor 3.
Assim, quem tem direito, tem o direito de efetiv-lo, de buscar a obteno de
soluo justa, essa uma premissa que decorre do princpio da efetividade, a garantia de
acesso ordem jurdica justa atravs do devido processo legal. Como anota Duarte, a
positivao, no Direito Brasileiro, da garantia do devido processo legal se deu na
Constituio da Repblica de 05 de outubro de 1988, cujo inciso LV do artigo 5. dispe
que ningum ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Para garantir o exerccio desses direitos proclamados na Constituio, em condies reais
de exequibilidade, requer a prevalncia de instituies democrticas, permanentes e
autnomas, com poderes constitucionais assegurados de forma a garantir o acesso justia,
o devido processo legal e o direito ampla defesa 4.
No Brasil, a Constituio elegeu no artigo 134. a Defensoria Pblica como
sendo o rgo do Estado responsvel pela orientao jurdica e pela representao das
pessoas economicamente carenciadas de recursos, afirmando a condio de instituio
essencial justia, responsvel por prestar os servios de orientao, representao e
defesa jurdica gratuita s pessoas que no podem pagar honorrios advocatcios e despesas
com o processo.
As atividades da Defensoria Pblica so distribudas em rgos de
administrao superior, rgos de atuao e rgos de execuo, estes divididos em
ncleos de atendimento, em vrias especialidades ou ramos do direito e, com atuao em
todos os graus de jurisdio. Entre os Ncleos especializados da defesa tcnica processual
e a promoo dos direitos, destaca-se os Ncleos dos Direitos da Criana e Adolescente 5.
Assim a Defensoria no se limita apenas ser responsvel pela orientao,
representao e defesa jurdica gratuita s pessoas que no possuem condies financeiras,
mas para alm dessas garantias fundamentais, suas funes se inserem no Sistema de
3

Anote-se que o prembulo da Conveno sobre os Direitos da Criana tem em conta que, como
indicado na Declarao dos Direitos da Criana, adotada em 20 de novembro de 1959 pela Assembleia Geral
das Naes Unidas, a criana, por motivos da sua falta de maturidade fsica e intelectual, tem necessidade de
uma proteo e cuidados especiais, nomeadamente de proteo jurdica adequada, tanto antes como depois do
nascimento.
4
Cf. Ronnie Preuss DUARTE - Garantia de Acesso Justia: os direitos processuais fundamentais,
Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.88.
5
Lei Complementar n. 80 de 12 de janeiro de 1994, organiza a Defensoria Pblica da Unio, do Distrito
Federal e dos Territrios e prescreve normas gerais para sua organizao nos Estados e, posteriormente
alterada substancialmente pela Lei Complementar n. 132, de 07 de outubro de 2009, incorpora inovaes
introduzidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004.

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Garantia dos Direitos da Criana e do Adolescente. Nesse caso, independe as condies


financeiras do titular do direito assistido, mas propriamente em razo da sua situao de
vulnerabilidade de crianas e adolescentes diante de atual ou iminente risco pessoal ou
social em que possam se encontrar.
Dessa maneira, o presente artigo visa enfocar a experincia do Ncleo dos
Direitos da Criana e do Adolescente da Defensoria Pblica do Estado no contexto do
Sistema de Garantias dos Direitos da Criana, luz de consideraes quanto a Conveo
sobre os Direitos da Criana, com destaque s inovaes da Constituio da Repblica
Federativa do Brasil e do Estatuto da Criana e Adolescente (Lei 8.069/90), diante da
crescente importncia desempenhada na promoo e defesa dos direitos especiais da
criana face a acentuada desigualdades sociais e a persistncia das prticas forenses de
resqucios autoritrios da extinta cultura da doutrina do menor irregular.
Nesse sentido, primeiramente se far uma abordagem sobre o Estado
democrtico de direitos e a nova ordem econmica e social introduzida na constituio
brasileira. Em segundo lugar, o destaque ser dado a doutrina da proteo integral, um
novo modelo de proteo com maior respeito aos direitos humanos na promoo e defesa
dos direitos da criana, que leva em considerao o interesse superior e a condio da
criana como sujeito de direitos, em substituio a extinta doutrina do menor irregular. Em
sequncia, ser demonstrada a forma pela qual a Defensoria Pblica do Estado se organiza
e tem atravs dos Ncleos dos Direitos da Criana e do Adolescente a concretizao da
garantia de acesso justia de criana e adolescentes que tiveram seus direitos ameaados
ou violados, e, por fim, a integrao da Defensoria no Sistema de Garantias dos Direitos da
Criana e do Adolescente.

1. O ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO

A expresso estado democrtico de direito surgiu no constitucionalismo da


Alemanha no sc. XIX. O professor Canotilho leciona que
o Estado de direito comeou por ser caracterizado, em termos muito abstrato
como Estado da Razo, estado limitado em nome da autodeterminao da
pessoa. No final do sculo, estabilizaram-se os traos jurdicos essenciais deste
Estado: o Estado de Direito um Estado Liberal de Direito. Contra a idia de um
Estado de Polcia que tudo regula e que assume como tarefa prpria a

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prossecuo da felicidade dos sditos, o Estado de Direito um Estado Liberal


no seu verdadeiro sentido 6.

Posteriormente, os Estados Liberais sofrem uma significativa mudana com


mitigao positiva em seu sentido original com o surgimento dos ideais sociais,
reproduzidos atravs das chamadas Constituies sociais a partir do incio do sculo XX.
Significativas alteraes ocorreram na concepo de constitucionalismo liberal-econmica
que cede lugar democracia social, com predominncia da interveno do Estado na
ordem econmica e social.
Sobre o direito como instrumento de conformao social nos Estados
democrticos de direito, anota Canotilho que o princpio da democracia econmica e social
constitui uma autorizao constitucional no sentido do legislador democrtico e os outros
rgos encarregados da concretizao poltico-constitucional adoptarem as medidas
necessrias para a evoluo da ordem constitucional sob a ptica de uma justia
constitucional nas vestes de uma justia social. Assim, o princpio da democracia
econmica e social impe tarefas ao Estado e justifica que elas sejam tarefas de
conformao, transformao e modernizao das estruturas e conmicas e sociais, de
forma a promover a igualdade real 7.
Conforme Duarte, a ideia de Estado de Direito prende-se exigncia de que
nele se observe um Direito justo, sendo dever do Estado a criao e a execuo do
Direito. Com efeito, o direito de acesso justia, uma emanao indissocivel do Estado
de Direito. No se pode falar, absolutamente, em Estado democrtico de direito e em
justia social, sem que aos cidados seja garantida, em toda sua plinitude, a possibilidade
de, por exemplo, em igualdade reais de condies, socorre-se dos tribunais para a tutela
das respectivas posies jurdicas subjetivas 8.
Explica Ferreira Filho que, aps terminada a primeira guerra elaborou-se em
1919, na cidade de Weimar, uma Constituio para a Alemanha Republicana, do qual o
ponto mais alto para a histria jurdica a parte II Direitos e Deveres Fundamentais dos
alemes, marcada por um novo esprito que se pode dizer social 9.

Cf. Jos Joaquim Gomes CANOTILHO - Direito Constitucional e Teoria da Constituio, op. cit. p.231.
Cf. Jos Joaquim Gomes CANOTILHO - Direito Constitucional e Teoria da Constituio, op. cit. p.

338
8

Cf. Ronnie Preuss DUARTE - Garantia de Acesso Justia, Coimbra, Coimbra Editora, 2007. p.88.
Cf. Manoel Gonalves FERREIRA FILHO - Direitos Humanos Fundamentais, So Paulo, Saraiva.
2006. p. 49.
9

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Esse novo modelo, esclarece Ferreira Filho foi seguido e imitado nas
constituies que pouco mais tarde se editaram na Europa e pelo resto do mundo afora,
chegando ao direito positivo brasileiro com a Constituio de 1934. a primeira das
Constituies Brasileiras que enuncia uma Ordem Econmica e Social, marcando o auge
do surgimento do Estado Social que consagrou direitos sociais de 2 gerao/dimenso. A
finalidade, ento, da nova ordem constitucional brasileira como de resto nos pases que a
adotaram, a de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades da coletividade,
compreendendo o direito ao trabalho, a habitao, sade, a educao, ao lazer 10.
Entretanto, no perodo de 1930 a 1945, conhecido no Brasil como a Era
Vargas, em referncia ao presidente Getlio Vargas que governou o Brasil por 15 anos
ininterruptos, tornou-se caracterstico um modelo de Estado autoritrio e corporativista, e
ao mesmo tempo, um Estado voltado criao de polticas sociais, contudo, se consolidou
uma poltica assistencialista e repressiva com negao, sobretudo, aos direitos da infncia e
a juventude, situao que vigorou nas constituies seguintes de 1937; 1946; 1967; 1969
at o advento da promulgao da Constituio Cidad em 1988, dando incio
verdadeiramente a era dos direitos econmicos e sociais, sobretudo com o advento do
Estatuto da Criana e Adolescente, em 1989, um conjunto normativo que d incio a
doutrina da proteo integral de crianas e adolescentes.
Para melhor entender o que vem a ser a doutrina da proteo integral de
crianas, hoje vigente, necessrio ser um breve histrico sobre a doutrina do menor
irregular. Apesar de j abolida tem repercusses deletrias at os dias de hoje. A
indigitada doutrina vigorou no Brasil at a entrada em vigor do Estatuto da Criana e do
Adolescente, no entanto, muitos de seus desdobramentos so ainda marcados por idias e
prticas do passado.

2. A DOUTRINA DO MENOR IRREGULAR

No perodo que antecede a doutrina da proteo integral, foi criado o


Tribunal de Menores, em 20/12/1923, na cidade do Rio de Janeiro, que na altura era a
capital do Pas. No ano seguinte, em 02/02/1924, toma posse o primeiro juiz de menores do
Brasil, o jurista Jos Cndido de Albuquerque Mello Mattos, idealizador do primeiro
Cdigo de Menores aprovado pelo Decreto 17.943-A, de 12/10/1927.
10

Cf. Manoel Gonalves FERREIRA FILHO - Direitos Humanos Fundamentais, op. cit. p.49

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Conhecido como Cdigo Mello Mattos, a legislao menorista era uma


inovao na recente Repblica do Brasil quanto aos direitos da criana, que consolidou
as normas esparsas anteriores. Esse seria, ento, o primeiro documento legal vigente no
Brasil destinado a populao menor de 18 anos de idade e, com ele surge a doutrina do
direito do menor, tendo como destinatrios as crianas pobres, abandonadas ou
delinquentes 11.
Conforme Irene e Rizzini, com a instaurao do Estado Novo, em 1937,
perodo em que se implanta a ditadura do Governo Vargas, percebe-se uma crescente
ideologizao dos discursos dos representantes do Estado no atendimento infncia e
juventude. Neste ano, o Juiz do Tribunal de Menores Saboia Lima anuncia a ameaa
comunista durante a palestra intitulada A criana e o comunismo, realizada na Academia
Brasileira de Letras, convite da Liga de Defesa Nacional, assim, intervir junto infncia
torna-se uma questo de defesa nacional 12.
Com os reflexos da legislao repressiva e os discursos contra a ameaa
comunista, conforme explica Irene e Rizzini, foi criada em 1937, a primeira Delegacia de
Menores no Distrito Federal. O modelo policial de apreenso e identificao de menores
consolidado e legitimado enquanto funo especfica da polcia, uma das mais repressoras
que o pas j conheceu. A ordem vigente era a de apreender menores nas ruas, investigar
suas condies morais e materiais e seus responsveis e encarcera-los at que o Tribunal
decidisse o local definitivo para a internao. A produo discursiva de todo o perodo da
forte presena do Estado no internamento de menores fascinante, pelo grau de certeza
cientfica com que as famlias populares e seus filhos eram rotulados de incapazes,
insensveis, e uma infinidade de denominaes, uma crescente ideologizao dos discursos
dos representantes do Estado no atendimento infncia e juventude 13.
Em 05/11/1941, atravs do Decreto-Lei 3.799, no mesmo governo de Getlio
Vargas criado o SAM Servio de Assistncia ao Menor, um rgo subordinado ao
11

a primeira meno a direitos da criana` como tais em um texto reconhecido internacionalmente data
de 1924, quando a Assemblia da Liga das Naes aprovou uma resoluo endossando a Declarao dos
Direitos da Criana, promulgada no ano anterior pelo Conselho da organizao no governamental Save the
Children International Union`. Em 1959, a Assembleia Geral das Naes Unidas promulgava a Declarao
dos Direitos da Criana, cujo texto iria impulsionar a elaborao da Conveno, in Steiner, Henry J.; Alston,
Philip, International Human Rights in context: law, politics, morals, Osford, Oxford University Press, 2000,
p. 512; Cf. Flvia PIOVESAN - Temas de Direitos Humanos, 3 ed., So Paulo, Saraiva, 2009, p. 282
12
Irene RIZZINI e Irma RIZZINI - A institucionalizao de Crianas no Brasil. Percurso histrico e
desafios do presente, Rio de Janeiro, ed. PUC Rio, Loyola, 2004, p. 31.
13
Cf. Irene RIZZINI e Irma RIZZINI - A institucionalizao de Crianas no Brasil. Percurso histrico e
desafios do presente, op.cit. p. 66.

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Ministrio da Justia, dividido em vrios estabelecimentos de correo para menores


infratores e abandonados, era o equivalente ao Sistema Penitencirio para as pessoas
menores de 18 anos de idade, cuja lgica era a recluso e a represso das crianas e
adolescentes abandonados ou acusados de autoria de atos infracionais.
Os objetivos do SAM eram definidos no prprio Decreto-Lei, conforme o
artigo 2., sistematizar e orientar os servios de assistncia a menores desvalidos e
delinquentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares; proceder a
investigao social e ao exame mdico-psicopedaggico; abrigar os menores, disposio
do Juizado de Menores do Distrito Federal; recolher os menores em estabelecimentos
adequados, afim de ministrar-lhes educao, instruo e tratamento smato-psquico, at
seu desligamento; estudar as causas do abandono e da delinquncia infantil para a
orientao dos poderes pblicos; promover a publicao peridica dos resultados de
pesquisas, estudos e estatsticas.
Entretanto, conforme demonstram Irene e Rizzini, nesses ambientes de
internao para menores predominava a ao repressiva e os maus-tratos contra os internos
ao invs de aes acolhedoras e scio-educativas. As dificuldades de viabilizar as
propostas educacionais so depositadas na prpria criana, considerada incapaz, subnormal de inteligncia e de afetividade, e sua agressividade era superestimada.
Com a decadncia ocasionada por vrios fatores, principalmente a falta de
recursos pblicos mnimos, o SAM foi extinto em 1964. Em seu lugar surgiu a FUNABEM
Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor, criada pela Lei 4.513/64, sob a vigncia do
Cdigo de Menores Mello Mattos. A tentativa de introduzir um novo modelo de poltica
pblica, mas resultou em um projeto repressivo, com propostas assistencialistas e que
tambm se manteve incorporado ao projeto de segurana nacional, aprovado pelas foras
militares, que haviam no mesmo ano, tomado o governo fora atravs de um golpe de
Estado, dando incio a era do perodo conhecido por ditadura militar, marcado pela
cassao das liberdades fundamentais, dos direitos polticos, e com violenta represso as
manifestaes contra o regime poltico adotado.
Em 1979, editou-se o novo Cdigo de Menores Lei 6.679/79 que manteve o
mesmo arcabouo bsico do extinto Cdigo Mello Mattos, o controle social da infncia e
adolescncia, ameaadoras da famlia, da sociedade e do Estado, dando incio a doutrina
do menor irregular, conforme infere-se no artigo 1.: [e]ste Cdigo dispe sobre
assistncia, proteo e vigilncia a menores; I at dezoito anos de idade, que se

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encontrem em situao irregular; II entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos
em lei; [p]argrafo []nico [a]s medidas de carter preventivo aplicam-se a todo menor
de dezoito anos, independentemente de sua situao.
No artigo 2., insere-se uma lista caracterizadora do menor irregular: I
privado de condies essenciais sua subsistncia, sade e instruo obrigatria, ainda que
eventualmente, em razo de: a) falta, ao ou omisso dos pais ou responsvel; b)
manifesta impossibilidade dos pais ou responsvel para prov-las; II vtima de maus
tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsvel; III em perigo moral,
devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrrio aos bons costumes; b)
explorao em atividade contrria aos bons costumes; IV privado de representao ou
assistncia legal, pela falta eventual dos pais ou responsvel; V com desvio de conduta,
em virtude de grave inadaptao familiar ou comunitria; VI autor de infrao penal.
O referido Cdigo de Menores de 1979, no mudou o enfoque sobre os poderes
conferidos s autoridades judicirias e policiais. Com o regime militar em vigor,
governando o pas com uma Constituio criada a partir de Atos Institucionais, que fechou
o Congresso Nacional e cassou os direitos civis e polticos, ganhando amplos poderes
devido a suspenso do habeas-corpus, a vaguesa e impreciso conceitual das
irregularidades que poderiam ser apontadas contra crianas e jovens para leva-los
internao e tratamento obrigatrios.
Esse modelo viria a revelar-se de pouca ou nenhuma efetividade para prevenir
atos infracionais pelos menores em situao irregular ou acolher crianas abandonadas,
vtimas de explorao e maus tratos. Em grande parte a legislao menorista se confundia
com o totalitarismo do regime imposto pelos governos militares com prticas contrrias
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
O Cdigo de Menores de 1979 e a doutrina do menor irregular, vigoraram
at a entrada em vigor do Estatuto da Criana e Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990, com o incio, no Brasil, da era dos novos direitos, a partir da Constituio de
1988. No dizer de Bobbio, enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder
do Estado e, portanto, com o objetivo de limitar o poder , os direitos sociais exigem,
para sua realizao prtica, ou seja, para a passagem da declarao puramente verbal sua
proteo efetiva, precisamente o contrrio, isto , a ampliao dos poderes do Estado 14.
14

Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, trad., Carlos Nelson Coutinho, 10 ed., Rio de Janeiro,
Elsevier/Campus, 2004, p. 67.

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154

Assim, o Estado democrtico de direitos de 1, 2 e 3 dimeno surgem no


Brasil sob o primado do trabalho, com objetivo do bem-estar e da justia social,
consolidou-se com a promulgao da Constituio conhecida por Carta Cidad, assim
designada pelo Deputado Ulisses Guimares que presidiu Constituinte na sua elaborao.
Com esse evento ocorre uma drstica mudana de paradigma do direito do menor para o
direito da criana, ou seja, da doutrina do menor irregular para a doutrina da proteo
integral de crianas como veremos a seguir.

3.

DOUTRINA

DA

PROTEO

INTEGRAL

DE

CRIANAS

ADOLESCENTES

No Brasil, a ideia de proteo integral est na Constituio de 1988,


especificamente no artigo 227., que diz que os direitos fundamentais da criana, do
adolescente e do jovem devem ser assegurados com absoluta prioridade, pela famlia, pela
sociedade e pelo Estado. Estes tm o dever de coloc-los a salvo de toda forma de
negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso e, o nico artigo
da Constituio que cria a solidariedade entre a famlia, a sociedade e o Estado e tem a
expresso absoluta prioridade, porque os direitos das crianas, dos adolescentes e dos
jovens precedem em relao aos outros.
Para regulamentar o artigo 227. da Constituio, foi aprovada a Lei 8.069, em
13 de julho de 1989. Nessa lei ficou consignado que as crianas e os adolescentes so
sujeitos de direitos e o gozam do princpio do interesse superior com relao aos demais
sujeitos; como os direitos so obtidos; e quais as garantias para proteg-los quando forem
desrespeitados ou violados.
Essa Lei ficou conhecida no Brasil por Estatuto da Criana e Adolescente;
nela definiu-se que a criana toda pessoa menor de 12 anos de idade, e adolescente toda
pessoa maior de 12 e menor de 18 anos, entretanto, ambos tm os mesmos direitos e
garantias assegurados de acordo com a sua fase de desenvolvimento e entendimento.
Ainda de acordo com o Estatuto, a criana e o adolescente devem receber
proteo e socorro em primeiro lugar, serem atendidas nos servios pblicos com
prioridade sobre as outras pessoas, e com direito ao fornecimento gratuito de
medicamentos, prteses e todos os recursos para a recuperao ou adaptao quando
deficiente. Tm direito a ter escola ou creche pblica de preferncia, prximo da

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residncia; e o ensino noturno, para o adolescente trabalhador; respeitando-se o direito de


ir, vir e estar nos logradouros pblicos e espaos comunitrios.
Devem

ser

protegidas

de

qualquer

tratamento

desumano,

violento,

aterrorizante, vexatrio ou constrangedor, que a coloque em situao de risco pessoal ou


social. Isso acontece quando os seus direitos so violados por omisso do Estado, por erro
ou falta dos pais ou responsveis, ou quando eles mesmos tm um comportamento que
pode lhes causar um dano ou por em risco a sua sade ou a vida.
Alm da proteo geral que todos devem ter, o Estatuto da Criana e
Adolescente criou o Conselho Tutelar, rgo ligado ao governo municipal, formado por
pessoas escolhidas pela comunidade, com mandato de 4 anos, para proteger os direitos da
criana e adolescente, incluindo poderes para usar instrumentos especiais denominados
medidas de proteo; aplicadas aos pais ou responsveis, por exemplo, quando so
causadores da situao de risco, com imediata comunicao a Promotoria da Infncia e
Juventude.
A Promotoria da Infncia e Juventude um rgo do Ministrio Pblico,
indispensvel na fiscalizao das leis, das polticas e programas do governo, das
instituies de acolhimento, dos deveres pelo Conselho Tutelar, pelo Juiz, pelos pais ou
responsveis e pela sociedade em geral. a Promotoria que opina em todos os processos
de competncia do Tribunal ou Juiz da Infncia; quem promove aes de perda ou
suspenso do ptrio poder; das medidas de acolhimento; e, quando o adolescente comete
um ato infracional, pode conceder o perdo antes da formao do processo judicial
propriamente dito ou pedir ao Juiz a aplicao da medida socioeducativa.
A proteo no caso referida se estende a criana ou ao adolescente quando
cometem ato contra a lei, com violncia ou no contra as pessoas, ou com danos a
propriedade privada ou ao patrimnio pblico, nesses casos o Estatuto denomina Ato
Infracional a conduta ilcita descrita na lei.
A criana quando for autora de ato considerado infracional dever receber uma
medida de proteo pelo Conselho Tutelar e nada mais; e o adolescente recebe do Juiz uma
medida socioeducativa, que pode ser advertncia, obrigao de reparar o dano, prestao
de servios comunidade, liberdade assistida, ou seja, ser vigiado por certo perodo
cumprindo condies impostas.
Mas, se o ato cometido tiver sido com violncia contra a pessoa, o adolescente
poder perder a sua liberdade, ficando acolhido em regime de semi-liberdade ou em

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internao em local determinado para esse fim, por um perodo mximo de trs anos, tendo
em conta a condio de sujeitos de direitos, ter assegurado, nos processos judiciais ou
administrativos, a ampla defesa com os meios e recursos inerentes, o direito de ser ouvido
pelo Juiz e de participar nos atos e na definio da medida de promoo e proteo dos
seus direitos, e sempre assistidos por advogado ou Defensor Pblico, sob pena do processo
ser nulo.
Conforme se percebeu no captulo anterior, a poltica implantada pelo extinto
Cdigo Mello Mattos de 1927, inaugurou a doutrina do direito de menor e o Cdigo de
Menores de 1979, que criou a doutrina do menor irregular, ambos em comum tratavam a
criana e o adolescente como objeto do direito, eram designados por menores, seres
estigmatizados por serem rfos, abandonados, pobres, negros, usurios de drogas, que
causavam problemas para a sociedade, todavia, com a vigente doutrina da proteo
integral, as crianas e adolescentes deixaram de ser tratados e considerados menores.
Conforme Mendes 15, se a pessoa com menos de 18 anos de idade era amparada
pela famlia e de classe social mais elevada certamente era chamada de criana.
Geralmente uma me afirmar que seu filho ou filha uma criana ou adolescente e no
um menor. Para Mendes, existem dois tipos de infncia, uma com suas necessidades
bsicas satisfeitas (crianas e adolescentes) e outra com suas necessidades bsicas total ou
parcialmente insatisfeitas. Esses ultrapassados cdigos de menores pressupem a
existncia de profunda diviso no interior da categoria infncia: de um lado privilegiado,
crianas e adolescentes e, de outro, menores, remetidos ao universo dos excludos da
escola, da famlia, da sade, etc. Como consequncia, essas leis tenderam a consolidar
essas divises, mas foram indispensveis na construo de um anti-paradigma, ou seja, de
como no se deve tratar crianas e adolescentes.
A vigente doutrina da proteo integral de criana, tem fonte por excelncia
na Conveno sobre os Direitos da Criana, que consagrou o interesse superior da criana;
na Constituio Cidad com a responsabilidade da famlia, da sociedade e do Estado pela
proteo integral e pela prioridade absoluta; e no Estatuto da Criana e Adolescente que
reconhece s crianas a qualidade de sujeito de direitos, em contradio com o direito
anterior que as tratava como objeto do direito e, ainda, a vigente doutrina estendeu s

15

Mndez, E.G. - Infncia e Cidadania na Amrica Latina, So Paulo, ed., Hucitec Instituto Airton
Sena, 1998, p. 68.

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crianas e adolescentes todos os direitos fundamentais do homem, rompendo


definitivamente com a doutrina do menor em situao irregular.

4. NCLEO DOS DIREITOS DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

Para entender como funciona o Ncleo dos Direitos da Criana e do


Adolescente da Defensoria Pblica do Estado e como as crianas e os adolescentes, seus
pais e responsveis so atendidos, preciso antes compreender a organizao da
Defensoria Pblica, enquanto rgo permanente do Estado.
A Constituio da Repblica Federativa do Brasil, promulgada em 05 de
outubro de 1988, fixou a existncia e a dimenso da Defensoria Pblica no caput do artigo
134., como sendo a instituio essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindolhe a orientao jurdica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo
5., inciso LXXIV. Constituiu-se, portanto, no rgo pblico responsvel pela assistncia
jurdica integral e gratuita aos que comprovarem insuficincia de recursos, tanto em juzo
quanto extrajudicialmente.
A Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994, organiza a Defensoria
Pblica da Unio, do Distrito Federal e dos territrios e prescreve normas gerais para sua
organizao nos Estados-membros, sob o primado da unidade, indivisibilidade e
independncia funcional 16. Essa lei, entretanto, sofreu significativas alteraes com a
edio da Lei Complementar n. 132, de 07 de outubro de 2009, para se ajustar a nova fase
que o Pas atravessou na positivao dos novos direitos, inserida no pensamento filosfico
da prevalncia da dignidade da pessoa humana, promoo da cidadania, solidariedade,
erradicao da pobreza e combate s desigualdades sociais.
Esclarecem Alves e Pimenta que o princpio da unidade significa que a
Defensoria um todo orgnico, sob a mesma direo, com os mesmos fundamentos e as
mesmas finalidades institucionais. O princpio da indivisibilidade permite que seus
16

Art. 134. A Defensoria Pblica instituio essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe
a orientao jurdica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5, LXXIV.
1 Lei complementar organizar a Defensoria Pblica da Unio e do Distrito Federal e dos Territrios e
prescrever normas gerais para sua organizao nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe
inicial, mediante concurso pblico de provas e ttulos, assegurada a seus integrantes a garantia da
inamovibilidade e vedado o exerccio da advocacia fora das atribuies institucionais.
2 s Defensorias Pblicas Estaduais so asseguradas autonomia funcional e administrativa e a
iniciativa de sua proposta oramentria dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes oramentrias e
subordinao ao disposto no art. 99, 2.

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membros se substituam uns aos outros, a fim de que a prestao jurdica no seja
interrompida, sem soluo de continuidade, de forma a no deixar as pessoas assistidas
sem a devida assistncia jurdica. E, o princpio da independncia consiste em dotar a
Defensoria Pblica de autonomia perante os demais rgos estatais, na medida em que
seus objetivos institucionais podem ser exercidos inclusive contra o prprio Estado e
demais instituies de direito pblico. Em decorrncia ainda do princpio da
independncia, os seus membros designados Defensores Pblicos ficam subordinados
unicamente hierarquia da prpria instituio, protegidos contra a subordinao
hierarquica dos demais agentes polticos do Estado, incluindo os magistrados, promotores
de justia e parlamentares 17.
Ento, a Defensoria Pblica do Estado, pode-se dizer que possui uma estrutura
semelhante ao rgo do Ministrio Pblico, com autonomia funcional, administrativa e a
iniciativa para elaborao da proposta oramentria, no caso da Defensoria, est contida no
artigo 97.-A, da Lei Complementar n 80/94.
A administrao superior da Defensoria tem como chefe o Defensor PblicoGeral e o Subdefensor Pblico-Geral, nomeados pelo Governador, dentre os membros
estveis da carreira, maiores de 35 anos de idade, escolhidos em lista trplice pelo voto
secreto dos membros, para mandato de 2 anos, permitida uma reconduo em novo
processo de escolha. Na estrutura administrativa existem, ainda, o Conselho Superior, a
Corregedoria-Geral e a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pblica, todos dirigidos por
ocupantes do cargo de Defensor Pblico.
So rgos de execuo os Defensores Pblicos do Estado, cargos ocupados
por bacharis em Direito, selecionados por meio de concurso pblico de provas e ttulos,
de comprovada experincia profissional de pelo menos dois anos de advocacia ou carreira
jurdica.
Para que o ocupante do cargo de Defensor Pblico aja com liberdade na
formao do seu convencimento tcnico-jurdico, sem a interferncia de quem quer que
seja, e isso relevante, porque se trata de um direito fundamental para os assistidos, a Lei
Complementar n. 80/94 dotou o cargo com indispensveis garantias para o exerccio da
funo.

17

Cf. Cleber Francisco ALVES e Marlia Gonalves PIMENTA - Acesso Justia: em preto e branco
Retratos Institucionais da Defensoria Pblica, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p.103.

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A primeira das garantias a independncia funcional no desempenho das


funes, segundo a qual, o Defensor Pblico deve respeito aos seus superiores
hierrquicos, mas a formao do convencimento tcnico jurdico exercida com liberdade
e independncia sem a interferncia de quem quer que seja; a segunda garantia refere-se ao
princpio da inamovibilidade, significa que o Defensor Pblico no pode ser removido
contra sua vontade, como uma sano; a terceira refere-se ao princpio da irredutibilidade
de vencimentos e a estabilidade no cargo, so garantias constitucionais de que gozam todos
servidores pblicos admitidos por concurso.
Conforme o artigo 107., da Lei n. 80/94, as Defensorias Pblicas so
organizadas em Ncleos especializados dirigidos por um Defensor Pblico Chefe, so
exemplos: os Ncleos de Defensa do Consumidor; Ncleo dos Direitos de Famlia;
Ncleos dos Direitos do Idoso; Ncleo dos Direitos da Criana e do Adolescente, entre
outros.
Para atendimento nos Ncleos especializados dos direitos da Criana e do
Adolescente, alm da indispensvel atuao do Defensor Pblico do Estado, a Defensoria
conta com o apoio tcnico da equipe multidisciplinar formada por psiclogos e assistentes
sociais, com conhecimento nos direitos da criana, e os estagirios de Direito. As funes
abrangem tanto aes de proteo s crianas e adolescentes com seus direitos ameaados
ou violados quanto sua defesa quando so acusados de terem cometido ato infracional,
conforme os incisos III e IV do artigo 111. do Estatuto.
Os Ncleos especializados dos Direitos da Criana e do Adolescente
funcionam tendo em conta a doutrina da proteo integral, os princpios fundamentais da
dignidade da pessoa humana, o princpio do interesse superior e a qualidade da criana
como sujeito de direitos, preconizado pelo Estatuto da Criana e do Adolescente. Os
Ncleos desenvolvem diversas aes de preveno quanto consulta, orientao,
encaminhamento e palestras; de defesa na atuao tcnica jurdica; de responsabilizao
nas aes e medidas judiciais; de mobilizao na articulao, conscientizao e
participao social.
Como se percebe, o Ncleo dos Direitos da Criana e Adolescente da
Defensoria Pblica uma poltica pblica de assistncia judiciria e jurdica e, como tal,
tem o dever de se articular com as demais instncias pblicas e sociais: Conselho Tutelar;
Conselhos de Direitos Estaduais e Municipais; Tribunal de Justia; Promotorias da
Infncia do Ministrio Pblico; Delegacias Especializadas; Ordem dos Advogados;

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Secretarias de Educao e de Sade; organizaes no-governamentais, em fim, todas as


entidades que integram o Sistema de Garantias dos Direitos da Criana.
Nos Ncleos da Defensoria Pblica da Infncia e Juventude o Defensor
Pblico na defesa e promoo dos direitos e interesses da criana e do adolescente
desempenha as seguintes funes:
a) Curador Especial, conforme artigos 98., 142., Pargrafo nico, artigo 148.,
Pargrafo nico, alnea f do Estatuto, sobretudo quando houver conflito de interesse da
criana ou adolescente com seus pais ou responsveis, ou quando o adolescente carecer de
representao ou assistncia eventual para atos da vida civil, nos termos do artigo 4.,
incisos V, VI da Lei Complementar n. 80/94;
b) Defesa tcnica processual dos pais ou responsveis, conforme artigo 141., 1.
do Estatuto, nos processos administrativos e judiciais, que tratam da destituio do poder
familiar, nos pedidos de colocao em famlia substituta sob a guarda ou adoo.
c) Defesa tcnica do adolescente em conflito com a lei, na rea infracional,
conforme artigo 207. do Estatuto, afastando a pretenso ilegal ou abusiva com a
interposio do habeas corpus ou requerimento para o relaxamento do acautelamento
provisrio.
d) Promove a aplicao das medidas protetivas conforme os artigos 101., 102. e
129. do Estatuto e a medida cautelar de afastamento do agressor da moradia comum,
conforme artigo 130. do Estatuto, quando possvel a manuteno da criana ou do
adolescente junto famlia natural ou promover as aes que tenham por objetivo a
colocao em famlia substituta, por meio dos pedidos de guarda, tutela, adoo e
destituio do poder familiar;
e) Participa das audincias concentradas promovidas semestralmente em todas as
instituies de acolhimento de crianas e adolescentes, reavaliando individualmente cada
caso, com o Juiz da Infncia e Juventude, Promotoria da Infncia do Ministrio Pblico e a
equipe multidisciplinar;
f) Representa a Defensoria nas Audincias Pblicas das Comisses Permanentes
dos Direitos da Criana e do Adolescente da Assembleia Legislativa e da Cmara
Municipal.
g) Interposio dos recursos cabveis instncia superior;

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h) Acompanha e fiscaliza a execuo das medidas socieducativas, interagir com os


demais rgos de atendimento e equipes interdisciplinares, na conduta de efetiva
reeducao e ressocializao do adolescente em conflito com a lei;
i) participar das reunies e palestras nos Conselhos de Direitos Estaduais e
Municipais e Conselhos Tutelares; instituies de acolhimento; Fruns;
O Estatuto da Criana e do Adolescente garante, portanto, o acesso amplo de
toda criana ou adolescente, sem restrio, Defensoria Pblica, dispondo ainda, nos
termos dos artigos 110.; 111. 141.; 207.; que nenhum adolescente a quem se atribua a
prtica de ato infracional ser processado, ainda que ausente ou foragido, sem defensor,
assegurado a observncia do devido processo legal e das garantias processuais,
fundamentais do contraditrio e da ampla defesa.
Os instrumentos judiciais e de proteo dos direitos e das garantias
fundamentais da criana e do adolescente, consideradas em risco pessoal ou social, de
competncia do Defensor Pblico do Ncleo da Infncia e Juventude tanto da rea cvel
quanto da rea infracional, so os seguintes:
a)

Ao de Investigao de paternidade;

b)

Ao de Alimentos;

c)

Ao de Adoo;

d)

Ao de Guarda;

e)

Ao de Tutela;

f)

Ao de suprimento de consentimento por incapacidade civil para

casamento ou para registro de nascimento, quando o requerente ou genitor for


absolutamente incapaz;
g)

Ao de responsabilidade civil por danos materiais e morais;

h)

Habeas corpus, para garantir a liberdade de locomoo por ilegalidade ou

abuso de poder, conforme artigo 5., inciso LXVII da Constituio;


i)

Ao socioeducativa, para apurao da prtica de ato infrancional, conforme

o artigo 171. e 190. do Estatuto;


j)

Ao mandamental, cabvel contra atos ilegais ou abusivos de autoridade

pblica ou agente de pessoa jurdica, conforme artigo 5., inciso XXXV e LXIX da
Constituio; e artigos 298., 212., 2., do Estatuto, e da Lei 1.533/51;
k)

Ao Civil Pblica ou Coletiva com inteno de coibir ou reparar dano aos

direitos e interesses coletivos da criana e do adolescente ou em defesa de interesses ou

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direitos individuais homogneos decorrentes de origem comum, conforme artigo 210. e


211. do Estatuto, e Lei n. 7.347/85 e Lei n. 8.078/90;
l)

Contestaes; defesas preliminares; alegaes finais;

m)

Pedido de Providncia, medida em procedimento administrativo inerente ao

Juiz da Infncia e da Juventude, cabvel nos casos que se iniciam sem um procedimento
especfico no Estatuto ou na lei processual, no podendo ser utilizado para o fim do
afastamento da criana ou adolescente de sua famlia de origem e em outros procedimentos
necessariamente contenciosos, conforme artigos 101. , 102. , 129. e 153. , pargrafo
nico do Estatuto e artigo 5., incisos LIV e LV da Constituio da Repblica.
n)

Execuo de Medidas de Proteo procedimentos utilizado para o

acompanhamento e a reavaliao da medida de acolhimento institucional e das medidas


protetivas aplicadas criana e ao adolescente e aos seus pais ou responsvel.
O Defensor Pblico em exerccio no Ncleo dos Direitos da Criana e do
Adolescente deve atuar unicamente em defesa da criana e adolescente, em todos os
procedimentos de natureza especializada, administrativa, cvel, criminal, tributria, sem
exceo, e em todas as comarcas e graus de jurisdio, sempre conforme a Conveno
sobre os Direitos da Criana, a Constituio e o Estatuto da Criana, e em razo do
exerccio do cargo est impedido pela Constituio de advogar fora das funes
institucionais.

5. O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANA E DO


ADOLESCENTE

O princpio constitucional de acesso justia contido no artigo 5. inciso


XXXV, para as crianas e adolescentes ganha efetividade com a garantia consignada no
artigo 141. do Estatuto da Criana, isto porque, a grande razo de ser do Ncleo dos
Direitos da Criana e Adolescentes da Defensoria Pblica no consiste apenas em
assegurar aos carenciados de recursos econmicos o acesso formal aos rgos judiciais,
mas o acesso real e a proteo efetiva e concreta dos interesses de crianas e adolescentes
garantidos na Conveno e na Constituio.
Com o objetivo de fazer valer os novos direitos de crianas e adolescentes aps
o advento da Conveno sobre os Direitos da Criana e da Constituio Cidad, o Estatuto
da Criana e Adolescente Lei 8.069/90 definiu responsabilidades, prev a formulao,

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o controle e a fiscalizao de polticas pblicas, exigindo a criao de uma rede de


atendimento com aes integradas, designado de Sistema de Garantia de Direitos.
Portanto, a Defensoria Pblica em juzo desempenha a funo de defesa
tcnica, garante aos adolescente a igualdade na relao processual e, quanto as crianas e
adolescentes acolhidos e familiares ou responsveis presta assistncia jurdica gratuita, e a
promoo dos direitos decorrentes dos princpios contidos no art. 227, 3. e incisos IV e
VI da Constituio, dentro do Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do
Adolescente.
Dentro desse sistema de garantias, a Defensoria Pblica membro integrante
do Conselho Estadual dos Direitos da Criana, rgo deliberativo e controlador das aes
em todos os nveis com participao paritria da sociedade civil organizada.
E, ainda, faz parte das diretrizes da poltica de atendimento contidas no artigo
88. da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criana e Adolescentes , atravs
da integrao operacional de rgos do judicirio, Ministrio Pblico, Conselho Tutelar e
demais encarregados da execuo das polticas sociais bsicas e de assistncia social, para
efeito de agilizao do atendimento de adolescente a quem se atribua a autoria de ato
infracional e do atendimento de crianas e adolescentes inseridos em programas de
acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rpida integrao famlia de
origem ou, se tal soluo no se mostrar comprovadamente invivel, sua colocao em
famlia substituta, em qualquer das modalidades previstas na lei.
Assim, a atuao da Defensoria Pblica da Infncia, abrange tanto as aes de
proteo s crianas e adolescentes com seus direitos ameaados ou violados em
decorrncia de sua vulnerabilidade, quanto as de defesa tcnica processual, quando
adolescentes so acusados de terem cometido atos infracionais, descritos na lei como
crimes 18.
Fazem parte desse sistema os servios pblicos de educao e sade at os
rgos especializados da segurana pblica e da Justia. O sistema se divide em trs eixos,
que correspondem a diferentes linhas de ao. No eixo promoo esto as polticas sociais
bsicas e os rgos de atendimento direto, cujo papel cumprir os direitos da criana e
adolescente. O eixo do controle engloba as entidades que exercem a vigilncia sobre a
18

Cf. Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica do Brasil, o Sistema de Garantia de


Direitos da Criana e do Adolescente constitui-se na articulao e integrao das instncias pblicas
governamentais e no-governamentais da sociedade civil, na aplicao de instrumentos normativos e no
funcionamento dos mecanismos de promoo, defesa e controle para efetivao dos direitos da criana e do
adolescente. Disponvel em http://www.sedh.gov.br/clientes/sedh/sedh/spdca/sgd acesso em 29/09/2012.

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poltica e o uso de recursos pblicos para a rea da infncia e adolescncia, como os


Conselhos de Direitos, os Fruns e outras instncias de representao da sociedade civil. A
terceira linha de ao a defesa, que rene rgos como Defensorias Pblicas, Conselhos
Tutelares, Centros de Defesa, Ministrio Pblico, Poder Judicirio e Delegacias de
Proteo s Crianas e aos Adolescentes com funo de intervir nos casos em que os
direitos de crianas ou adolescentes so negados ou violados 19.
As aes da Defensoria Pblica em regra geral levam em conta que todo
brasileiro comprovadamente hipossuficiente tem direito a ser defendido gratuitamente em
processos judiciais e administrativos. Com as crianas e os adolescentes em situao que a
lei considera estarem em risco pessoal ou social, nessas hipteses no depende das
condies financeiras, mas a sua vulnerabilidade dentro do contexto do sistema de
garantias dos Direitos de Crianas e Adolescentes. O artigo 141. do Estatuto claro nesse
sentido: [] garantido o acesso de toda criana ou adolescente Defensoria Pblica, ao
Ministrio Pblico e ao Poder Judicirio, por qualquer de seus rgos.
Confirmando a indispensabilidade da Defensoria Pblica, o Supremo Tribunal
Federal, assim se pronunciou nos autos da ao direta de inconstitucionalidade, sobre a
forma de organizao da Defensoria Pblica, conforme o relatrio do Excelentssimo Sr.
Ministro Celso de Mello: [a] Defensoria Pblica, enquanto instituio permanente,
essencial a funo jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretizao
dos direitos e das liberdades de que so titulares as pessoas carentes e necessitadas. por
essa razo que a Defensoria Pblica no pode (e no deve) ser tratada de modo
inconsequente pelo Poder Pblico, pois a proteo jurisdicional de milhes de pessoas
carentes e desassistidas que sofre inaceitvel processo de excluso jurdica e social
depende da adequada organizao e da efetiva institucionalizao desse rgo do Estado.
Prossegue o Ministro de nada valero os direitos e de nenhum significado
revestir-se-o as liberdades se os fundamentos em que eles se apoiam alm de
desrespeitados pelo poder pblico ou transgredido por particulares tambm deixarem de
contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado
pela Defensoria Pblica, cuja funo precpua, por efeito de sua prpria vocao
constitucional (CRF artigo 134) consiste em dar efetividade e expresso concreta,
inclusive mediante acesso do lesado jurisdio do Estado, a esses mesmos direitos,
19

UNICEF, Defensorias Pblicas e Infncia: em defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente,


Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente, Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidncia da Repblica, So Paulo, ed., Saraiva, 2004.p.2.

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165

querendo titularizados por pessoas necessitadas, que so as reais destinatrias tanto da


norma inscrita no artigo 5, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstancializado no
artigo 134., ambos da Constituio da Repblica 20.
Assim, para exigir o cumprimento da Conveno, da Constituio e do
Estatuto, tanto a criana, adolescente e seus familiares tem, assegurado, o livre acesso
Defensoria Pblica, rgo pblico que, dentre as suas vrias funes em favor das pessoas
carenciadas, est a de defender os direitos humanos e os fundamentais, tanto individuais
quanto coletivos, de toda criana e adolescente, sem distino, por meio do Defensor
Pblico.

6. CONCLUSO

A Constituio cidad que o Brasil aprovou em 1988, enceta o reconhecimento


de um autntico Estado Democrtico de Direito, com a reunio dos requisitos mnimos,
conforme ensina Canotilho: a participao de um nmero to elevado de cidados quanto
possvel; regra da maioria para tomada de deciso coletiva e vinculante; existncia de
alternativas reais e srias que permitam opes aos cidados de escolher entre governantes
e programas polticos; garantia de direitos de liberdade e participao poltica 21.
As inovaes conquistadas com o processo de democratizao do Brasil,
sobretudo com o advento da Defensoria Pblica, definida na Constituio como sendo a
instituio essencial funo jurisdicional do Estado, incumbido-lhe a orientao jurdica
e a defesa, em todos os graus, dos necessitados e, na esteira dos acontecimentos, a
modificao da situao jurdica de crianas e adolescentes com a promulgao do Estatuto
da Criana e Adolescente e a revogao do antigo Cdigo de Menores, se alinham com a
Declarao dos Direitos Humanos e a Conveno sobre os Direitos da Criana.
A partir da vigncia do Estatuto, todas as crianas passam a ser reconhecidas
no Brasil como sujeitos de direitos humanos condizentes com a sua especial condio de
desenvolvimento; ao contrrio do antigo Cdigo de Menores, que aplicava os direitos
apenas aos menores em situao irregular criando repugnante distino na populao

20

Revista Trimestral de Jurisprudncia / Supremo Tribunal de Justia, vol. 206, n. 1, Braslia, ed.,
Braslia Jurdica, 2008, p. 134 a 161.
21
Cf. Jos Joaquim Gomes CANOTILHO - Direito Constitucional e Teoria da Constituio, op. cit.
p.1402.

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brasileira com menos de 18 anos de idade, entre quem so as crianas e quais so os


menores irregulares.
A nova Lei adota um novo e mais amplo tratamento, baseado na doutrina da
proteo integral de crianas e adolescentes; com prioridade na resoluo de problemas e o
reconhecimento do interesse superior; mas de todas as inovaes trazidas est a garantia de
acesso justia atravs da defesa tcnica e da promoo dos direitos por intermdio dos
Ncleos dos Direitos da Criana da Defensoria Pblica.
A experincia dos Ncleos dos Direitos da Criana e Adolescentes da
Defensoria Pblica do Estado, no h dvidas que exitosa, entretanto, efetivos resultados
exigem maior comprometimento da famlia considerada pela Declarao Universal dos
Direitos Humanos e pelos Estados Democrticos de Direito a base de sustentao da
sociedade; precisam de um maior compromisso da sociedade, j que o respeito aos direitos
da criana possuem implicaes para toda a coletividade; e, necessitam de maiores
investimentos pblicos, a medida que cresce reconhecida importncia desempenhada
pelos rgos da Defensoria Pblica, lhe conferindo maior sentimento de confiana da
populao na defesa de direitos metaindividuais, indispensvel investir tanto nas
estruturas de base e apoio tcnico, quanto no aumento quantitativo de Defensores Pblicos,
suficientes e proporcional s demandas da populao, sem deslembrar da constante
necessidade de investimentos na atualizao dos saberes.

BIBLIOGRAFIA
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FMI E O BANCO MUNDIAL A PROMOO OU COERO DA


DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS
SAYURI ARAGO FUJISHIMA 1
[email protected]

PIETRO SARNAGLIA 2
[email protected]

RESUMO

Este artigo tem por objetivo fazer uma breve anlise sobre a relao entre os
rgos internacionais FMI e Banco Mundial e os emprstimos efetuados a pases em
desenvolvimento e em que medida tais emprstimos podem intervir na promoo da
democracia e dos direitos humanos nestes pases. Iniciamos com um sucinto
enquadramento histrico para, a seguir, descrever os objetivos destas instituies
financeiras e a natureza dos acordos feitos entre elas e pases subdesenvolvidos que
requerem emprstimos. Por fim, conclumos o trabalho com uma crtica acerca das
condies de concesso de emprstimos impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial e sua
afetao na democracia e na soberania dos pases a quem foram concedidos.

PALAVRAS-CHAVE: FMI; Banco Mundial; democracia; instituies financeiras; pases


subdesenvolvidos.

1. INTRODUO

A proposta deste trabalho realizar um estudo analtico da relao entre as


principais Organizaes Internacionais responsveis pela gesto dos projetos de
cooperao econmica e social 3 Fundo Monetrio Internacional e Banco Mundial e a
efetivao da Democracia e dos Direitos Humanos nos Estados que se beneficiam destes
projetos.
1

Aluno do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Minho


Aluno do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Minho
3
Ricardo Antnio Silva SEITENFUS, Manual das organizaes internacionais, 5o ed. rev., atual. e amp.,
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 185.
2

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Inicia-se tal estudo a partir de um breve enquadramento histrico que visa


situar o momento em que a comunidade internacional sente a necessidade de criar as
mencionadas instituies. Esta referncia no tempo fundamental tanto para a
compreenso dos objetivos originalmente pretendidos com a sua criao, quanto para
perceber-se o porqu do desvirtuamento destes mesmos objetivos.
Na sequncia, so analisadas as condies impostas para a concesso de
emprstimos; os chamados programas de ajuste e a natureza dos contratos internacionais
que os perfazem.
Por fim, busca-se estabelecer a relao que se verifica na prtica entre a
poltica adotada pelo FMI e Banco Mundial para a concesso de emprstimos a pases
demandantes e a real promoo da democracia e dos direitos humanos nestes Estados.
Alm disso, em sede de concluso, avana-se uma crtica sobre o modo como
devem atuar essas instituies para que no seja colocada em causa a soberania dos
Estados que a elas recorrem.

2. CRIAO E ENQUADRAMENTO HISTRICO

O Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional (FMI) foram criados em


julho de 1944, aps o acordo de Bretton Woods, firmado entre 45 pases no mbito da
Conferncia Monetria e Financeira Internacional das Naes Unidas 4.
Neste momento, em que se finalizava a segunda Grande Guerra e os Aliados
despontavam como os vencedores, o mundo assistia ao surgimento de uma nova ordem
internacional, na qual os EUA se destacariam como a nova grande potncia. A criao das
instituies surge da tentativa americana de evitar o protecionismo da Europa devastada e
fomentar a expanso do comrcio internacional 5.
No acordo inicial, restou estipulado que os EUA teriam o dobro da participao
que teria o Reino Unido no FMI. Os pases envolvidos estabeleceram tambm que o
montante inicial para compor o Fundo seria de 8,8 bilhes de dlares. Porm a URSS, que

Nesta altura ainda no havia sido criada a Organizao das Naes Unidas, mas o termo naes unidas
j havia sido utilizado pelo Presidente Roosevelt desde janeiro de 1942. A ONU s passa a existir
oficialmente a partir de 24 de Outubro de 1945 com a assinatura da Carta das Naes Unidas.
5
Bernard CASSEN, Sombra de Washington, artigos publicado na revista Le Monde Diplomatique
Brasil,
disponvel
em
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id
=232&PHPSESSID=099cbc670a7e8a6c998a4f532aaf76c9, acesso em 03.04.2012

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seria responsvel pelo depsito de 1,2 bilho no ratificou o acordo de Bretton Woods o
que elevou a participao dos EUA para 36% e do Reino Unido para 17,1%.
O Fundo Monetrio tinha como funes: assegurar a estabilidade monetria,
funcionando como uma central de cmbio onde se trocava moedas; conceder crdito aos
Estados-Membros a curto prazo e a juros elevados, sendo tal crdito sempre proporcional
sua respectiva cota parte junto ao Fundo; alm de conceder facilidades aos ajustes
econmicos no plano interno atravs de concesso de crdito a fim de promover o
equilbrio das balanas nos Estados.
J o Banco Mundial foi idealizado para desempenhar funo diversa.
Inicialmente nomeado de BIRD, o ento Banco Internacional para Reconstruo e
Desenvolvimento, tinha por objetivo exatamente auxiliar a reconstruo da Europa
arrasada no ps Guerra e promover o desenvolvimento econmico e social em todo o
mundo. Assim sendo, em princpio poderiam ser concedidos emprstimos somente para os
Estados-Membros, entretanto empresas privadas e governos locais poderiam se candidatar
ao recebimento de emprstimos se tivessem o aval e a garantia dos governos centrais.

3. OBJETIVOS

O Banco Mundial objetivava facilitar o investimento privado fornecendo


garantias e complementao de fundos. Tais investimentos deveriam ser direcionados
exclusivamente para fins produtivos, de modo auxiliar o desenvolvimento dos Estados e
aumentar a produtividade e o nvel de vida das populaes 6.
O FMI por sua vez, tinha originalmente o objetivo de auxiliar a administrao
monetria externa dos seus Estados-Membros, ajudando-os temporariamente na reduo ou
eliminao do desequilbrio em suas respectivas balanas de pagamentos. Alm disso,
buscava favorecer a cooperao monetria internacional, com o escopo de propiciar
estabilidade ao sistema monetrio e assim criar condies bsicas para o comercio
internacional 7.
Ocorre que logo em 1948, o Plano Marshall substitui o BIRD na reconstruo
da Europa, e em virtude disso sua atuao passa a ser direcionada promoo do
desenvolvimento nos pases do sul. Quanto ao FMI, no ano 1971 o presidente Richard
6
7

SEITENFUS, op. cit., p. 190.


CASSEN, op.cit..

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Nixon decide acabar com a conversibilidade do dlar em ouro. Dois anos mais tarde tal
medida leva a uma flutuao generalizada das moedas, o que retira do FMI sua funo de
controlador do sistema de paridade monetria.
O Banco Mundial gradativamente iniciou uma poltica de financiamentos de
projetos em longo prazo, nomeadamente nas reas de educao, reforma agrria e meio
ambiente, alm de realizar programas para formar recursos humanos e, sobretudo,
aconselhar polticas pblicas, nos pases do terceiro mundo.
J o FMI, privado de desempenhar sua primeira tarefa, concentrou-se na
segunda: o financiamento dos dficits da balana de pagamento e aps da dcada de 80
uniu-se ao Banco Mundial para financiar programas de desenvolvimento e combater a
pobreza 8. Tais programas consistem na reestruturao de economias endividadas por meio
de programas de ajuste.

4. PROGRAMAS DE AJUSTE

Nestes casos, a liberao de recursos est condicionada adoo de medidas de


reforma estrutural dos pases solicitantes. Os programas de ajuste definem a poltica
oramentria; a emisso de moedas; a taxa de cmbio; a poltica comercial e os
pagamentos internos 9.
Porm, ao contrrio daquilo que teoricamente seria pretendido, as medidas
acordadas no tm por finalidade alcanar equilbrio das contas internas ou manter a
estabilidade de modo a permitir que os Estados se desenvolvam e eliminem a pobreza de
modo gradual. O que se busca a partir do estabelecimento dessas condies to somente
garantir que a dvida assumida seja quitada.
Os mecanismos de controle exercidos pelo FMI e pelo Banco Mundial
envolvem uma srie de variveis econmicas como crdito interno; dficit do setor
pblico; reservas internacionais; dvida externa; cmbio; inflao; privatizaes;
distribuio de renda e mercado de trabalho. Porm, o objetivo central a reorganizao da
economia a fim de melhorar eficincia das despesas pblicas para garantir-se o pagamento

Vivian Domnguez UG, A Categoria Pobreza nas Formulaes de Poltica Social do Banco
Mundial,
Revista
de
Sociologia
e
Poltica,
23,
Nov.
2004,
disponvel
em
http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n23/24621.pdf, consultado em 28.05.2012.
9
SEITENFUS, op.cit., p. 198-199.

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da dvida externa 10. Na avaliao de Seitenfus [t]al dvida se constitui um n estrangular


do desenvolvimento dos pases do Sul, [e] um fardo dificilmente suportvel 11.
Assim, as organizaes internacionais que inicialmente foram criadas com o
intuito de promover a estabilidade do sistema monetrio internacional, acabaram por
tornar-se um instrumento de explorao dos pases em desenvolvimento pelos pases
desenvolvidos, nomeadamente os EUA. Tal condio classificada por alguns autores
como neocolonialismo.
Neste sentido, afirma Ruy Braga: Procuram dissimular, atravs da retrica
globalizante, a violncia do atual processo de recolonizao em escala mundial. De fato,
a hiptese segundo a qual o crescimento econmico dos pases do Norte desenvolvido no
mais se encontraria atrelado condio subalterna do Sul subdesenvolvido, tornou-se
moeda corrente no debate terico e poltico em geral 12.

5. NATUREZA E LEGALIDADE DOS ACORDOS

Tendo em vista tais efeitos h autores que colocam em cheque a legalidade dos
acordos firmados entre Estados e FMI, nomeadamente nos casos em que o executivo no
submete o contedo da Carta de Intenes aprovao legislativa. A Carta de Intenes
um documento elaborado pelo prprio Estado candidato a realizar emprstimo, no qual
so propostas as medidas de ajustes.
O FMI considera que tais negociaes se tratam juridicamente de atos
unilaterais e no acordos internacionais. Muito embora haja de um lado a proposta de um
Estado (Carta de Intenes) e de outro a deciso do Fundo, este insiste em negar o
encontro de vontades e afirma existir to-somente um seguro fornecido a uma inteno a
realizar determinadas medidas.
Obviamente, tal tese no corresponde com a realidade uma vez que os termos
da Carta no so aprovados at que haja consenso entre as partes. Alm disso, obrigao de
cumprir o estipulado, no s advm da necessidade do Estado como tambm da
prerrogativa do Fundo em responsabilizar os mesmos frente a sua prpria demanda. Assim,

10

Sobre o tema ver: Ruy BRAGA,Globalizao ou neocolonialismo? O FMI e a armadilha do ajuste,


Revista Outubro, 4, disponvel em http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/out4_06.pdf, consultado em
28.05.2012.
11
SEITENFUS, op. cit., p. 199.
12
BRAGA, op. cit., p. 04

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como conclui Seitenfus, [em] definitivo, estamos diante de uma unilateralidade de


fachada e uma bilateralidade de fundo 13
H de se levar em conta ainda a flagrante desproporcionalidade entre as partes
contratantes, pois na maioria dos casos os Estados que recorrem ao Fundo se encontram
em situao limite, ou seja, quando se torna impossvel seu acesso ao mercado livre de
capitais. Trata-se, de fato de uma delicada e desproporcional negociao, onde o grau de
submisso s diretrizes do Fundo inversamente proporcional fragilidade do
demandante 14
Assim, podemos concluir que se acordos se constituem atos unilaterais, s
podem o ser por parte do Fundo, pois ele na realidade (ao contrrio da formalidade)
quem determina as medidas a serem adotadas e as condies para que sejam liberados os
emprstimos 15.

6. A INTERFERNCIA DAS INSTITUIES NA POLTICA DOS PASES

Os Articles of Agreement, que constituem a base dessas instituies e dispem


sobre objetivos, formao e impedimentos, probem que Banco Mundial e FMI exeram
atividade poltica ou levem em considerao questes polticas quando da deciso de
emprstimo a pases-membros. Apesar desta determinao, recentemente o Banco Mundial
permitiu-se analisar critrios de boa governao do Estado que pede emprstimo, pois
seria um fator muito determinante na estabilidade e desenvolvimento econmico do
mesmo.
No entanto, no decorrer da histria das instituies, suas prticas de
emprstimos mostraram-se muito variveis, por vezes obedecendo a esta proviso da nointerferncia nos assunto polticos, por vezes ignorando-a ao motivar recusas de
emprstimos em virtude de ausncia de parmetros democrticos no Estado. Nos anos 60,
a Assembleia Geral das Naes Unidas adotou resolues em que pedia que as agncias
econmicas negassem assistncia econmica frica do Sul (em virtude do apartheid) e a
Portugal (pelas polticas coloniais na frica), pedidos estes negados pelo Banco Mundial,
que concedeu emprstimos baseando-se na proibio de considerao de standards
13

SEITENFUS, op. cit., p. 199.


SEITENFUS, op. cit., p. 199.
15
Descrevendo o nvel de submisso dos pases do Sul ao Fundo, Ruy Braga afirma: Nos dias atuais,
no existe, na Amrica Latina, qualquer ministro de Estado que possa tomar uma deciso macroeconmica
importante, sem o consentimento da tecnoburocracia mundial do FMI BRAGA, op. cit., p. 2.
14

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polticos 16. J em 1992, o Banco Mundial recusa emprstimo ao governo chileno alegando
violaes de direitos humanos por parte do presidente Allende.
Afinal, legal que as instituies financeiras adotem parmetros democrticos
e de direitos humanos quando da concesso de emprstimos?
Por um lado, pode-se alegar que vincular emprstimo a condicionantes internas
violaria direitos presentes na Declarao Universal dos Direitos Humanos: a soberania e a
autodeterminao, constantes dos artigos 1(2), 2(4) e 2(7). Conforme dito no tpico 5, os
pases que pedem emprstimos so, em geral, subdesenvolvidos, e quando o fazem, por
estar em situao econmica crtica, no tendo efetivamente escolha entre aceitar ou no as
condies impostas pelas instituies financeiras. A falta de liberdade, no dos governantes
(que, com o emprstimo em mos, correm o risco de desvi-lo da funo de
desenvolvimento nacional), mas dos prprios cidados de no exercer poder sobre as
diretrizes polticas de seu pas, violaria a autodeterminao dos povos e a prpria
democracia.
Mais ainda, o emprstimo condicionado pode ser um obstculo ao direito ao
desenvolvimento. O Banco Mundial, particularmente, tem como objetivo a promoo deste
direito, atravs da concesso de emprstimos para projetos em pases subdesenvolvidos.
No entanto, a condicionante do emprstimo pode ser um obstculo ao desenvolvimento
quando a instituio requer que o Estado, em primeiro lugar, realize reformas democrticas
e de boa governao, para s assim ter acesso aos fundos que garantem o direito em si 17.
Em virtude da dependncia que pases subdesenvolvidos tm em relao ao Banco
Mundial e ao FMI, deixar de conceder emprstimos por razes de cumprimentos de certos
parmetros de direitos humanos (como a democracia) causaria estagnao econmica
nestes pases e consequente abuso de direitos humanos 18. Isto pode acabar resultando num
crculo vicioso: no se concede emprstimos pela falta de respeito democracia e aos
direitos humanos e no se alcana a democracia e os direitos humanos pela falta de
recursos que deveriam provir destes emprstimos.
Por outro lado, as instituies financeiras no podem desconsiderar
completamente questes polticas internas, em especial a ausncia de parmetros
16

Nicholas H. MOLLER, The World Bank: Human Rights, Democracy and Governance, in
Netherlands Quarterly Human Rights, 15, 1997, p. 23.
17
Mark E. WADRZYK, Is it Appropriate for the World Bank to Promote Democratic Standards in a
Borrower Country?, in Wisconsin International Law Journal, 17, 1999, p. 573-574.
18
Halim MORIS, The World Bank and Human Rights: Indispensable Partnership or Mismatched
Alliance?", in ILSA Journal of International & Comparative Law, 4, 1997-1998, p. 188.

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democrticos mnimos. No entanto, devido natureza bancria destas instituies, elas


levam em considerao a poltica interna na probabilidade que ela tem de influenciar
positiva ou negativamente o cumprimento dos acordos um pas instvel politicamente
teria, em teoria, menos probabilidade de pagar sua dvida externa do que um com poltica
estvel. Ocorre que a prtica nem sempre relaciona diretamente uma maior democracia
com o crescimento econmico de um pas, o que pode resultar (e efetivamente resulta) em
apoios financeiros a pases com dficits democrticos, quando as instituies acreditam
que a dvida ser paga.
Os exemplos de Portugal/frica do Sul e do Chile nos fazem crer que a
condicionante democrtica para emprstimos uma mera fachada para justificar
concesses ou negativas de concesses dos mesmos, quando a motivao real est baseada
somente em presena ou ausncia de quitao de dvida e lucro. Em virtude do poder sobre
os Estados do qual FMI e Banco Mundial gozam, no se pode fechar os olhos para
questes de poltica interna que afetam o gozo dos direitos humanos pelos cidados,
assentando-se apenas na proibio de interferncia poltica e na busca pelo lucro.

7. CONCLUSO

Para respeitar os Articles of Agreement e o direito internacional, Wadrzyk


defende que Banco Mundial e FMI devem alcanar uma tnue linha que os equilibra entre
intervir ilegalmente nos assuntos internos de um Estado e requerer corretamente standards
de boa governao que afetem substancialmente a economia destes pases 19. No entanto, a
falta de continuidade e de aparente critrio nas concesses de emprstimos nos faz pensar
que as instituies no esto comprometidas em promover a democracia e os direitos
humanos nos pases subdesenvolvidos, os maiores requerentes de emprstimos. Ao que
parece, o nico fator que se considera a probabilidade de quitao da dvida futura,
independente das consequncias que o emprstimo (ou a negativa dele) causar sobre as
populaes locais.
Esta tendncia do Banco Mundial e do FMI de favorecer os mercados em
prejuzo da democracia, ainda que editem resolues alegando promover a boa
governao, arrisca seriamente a legitimidade destas instituies como instituies de

19

WADRZYK, op. cit., p. 577.

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superviso internacional 20. Ambas instituies so feitas por Estados, membros das Naes
Unidas e comprometidos com a DUDH e diversos outros tratados de direitos humanos;
assim, no se pode separar o Estado-banco do Estado-ONU. Ou seja, o Estado
pertencente a uma organizao que se compromete com a promoo dos direitos humanos
o mesmo Estado que faz parte de instituies financeiras que alegam no estar sob sua
responsabilidade promover tais direitos. inegvel que a necessidade de promover a
democracia, a soberania e a autodeterminao dos povos maior que garantir a quitao de
dvidas com bancos internacionais e o lucro dos mesmos. Resta refletir, assim, sobre as
formas de colocar as instituies financeiras dentro da linha tnue defendida por
Wadrzyk e fazer com que a promoo dos direitos da DUDH entre na agenda tanto do FMI
quanto do Banco Mundial como objetivos de fato, e no meras fachadas.

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