Relatorio - Final 2 PDF
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Relatório final
• Universidade Federal de São Paulo – Unifesp
• Centro de Antropologia e Arqueologia Forense – caaf
Professores
• Prof. Dr. Javier Amadeo (coordenador)
• Profa. Dra. Cláudia R. Plens
• Profa. Dra. Raiane Severino Assumpção
• Prof. Dr. Bruno Konder Comparato
• Profa. Dra. Maria Elizete Kunkel
• Profa. Dra. Camila Diogo de Souza
Pesquisadores
• Marina Figueiredo
• Rebeca Padrão Amorim Puccinelli
• Edson Barbosa da Rocha
• Débora Maria da Silva
• Aline Lúcia Rocco Gomes
• Valéria Aparecida de Oliveira
• Delphine Denise Lacroix
• Lorrane Rodrigues
• Bruno Everton Bezerra da Rocha
• Natália Aurora dos Santos
Contato:
www.unifesp.br/reitoria/caaf
Sumário
Introdução ...................................................................................................................... 5
primeira parte
1. Violência de Estado no Brasil................................................................................... 15
2. Justiça de transição: avanços e limites no processo de democratização............. 21
3. Estrutura da segurança pública e atividade policial.............................................. 31
4. Contexto dos Crimes de Maio.................................................................................. 41
5. Análise dos Crimes de Maio..................................................................................... 49
6. Análise quantitativa dos Crimes de Maio............................................................... 67
7. A imprensa e os Crimes de Maio.............................................................................. 75
8. Do luto à luta: o surgimento do Movimento Mães de Maio................................ 85
segunda parte
9. Análise dos casos dia a dia....................................................................................... 99
10. Análise das informações do banco de dados dos Crimes de Maio..................... 161
11. Percepções sobre os Crimes de Maio a partir do mapeamento da
Baixada Santista........................................................................................................ 171
12. Criação de um protocolo de análise post mortem................................................ 187
13. Análise das narrativas dos familiares das vítimas dos Crimes de Maio............. 201
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Introdução
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tes da justiça de transição para enfrentar graves violações de direitos humanos em períodos
pós-autoritários. Nos relatos de caso de países como Brasil e o México, que foram apresenta-
dos por pesquisadores da Unifesp e da Flacso-México, foi enfatizado o papel dos grupos da
sociedade civil na busca de mecanismos de justiça de transição para enfrentar as mortes e
os desaparecimentos em períodos pós-autoritários. Outro assunto central da discussão foi o
modo como os mecanismos da justiça de transição têm sido utilizados para responsabilizar
atores econômicos não estatais que se envolveram em violações dos direitos humanos. Uma
problemática de pesquisa que também vem se consolidando no Brasil.
Acreditamos que este projeto não teria se concluído desta forma sem todo o intenso
trabalho intelectual resultado da parceria com o Centro Latino-americano de Oxford.
Gostaríamos, assim, de registrar nosso sincero reconhecimento à Profa. Leigh Payne e
aos pesquisadores Gabriel Pereira, Francesca Lessa e Laura Bernal-Bermúdez, nossos cole-
gas de Oxford, pela parceria institucional e particularmente pela grande parceria intelectual
que construímos durante o trabalho em conjunto.
Este projeto não teria sido possível sem o financiamento do Fundo Newton (Newton
Fund), iniciativa do governo britânico operada pelo Conselho Britânico no Brasil, para o
desenvolvimento econômico e social por meio da ciência, da pesquisa e da tecnologia2.
O presente projeto foi contemplado na chamada Institutional Links do ano de 2015,
realizada em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos (sdh) do governo federal. A
chamada tinha como objetivo financiar parcerias entre instituições brasileiras e britânicas
para desenvolver a antropologia forense e a justiça de transição no Brasil como áreas espe-
cíficas de conhecimento acadêmico3.
Essa iniciativa do Fundo Newton teve importância decisiva não só na elaboração e
no desenvolvimento do projeto, mas também na construção de uma rede internacional de
pesquisadores, professores e profissionais que atuam em organizações de direitos humanos,
e que possibilitará futuros projetos e parcerias em colaboração.
Gostaríamos de agradecer os membros do Fundo Newton, do Conselho Britânico e da
Embaixada Britânica no Brasil que nos apoiaram e incentivaram durante os dois anos de
duração do projeto. Em particular, gostaríamos de agradecer a Martin Dowle, representan-
te do Conselho Britânico, a Renata Ramalhosa, representante da Embaixada Britânica, e a
Camila Morsch, Diana Daste, Luca Magri e Kemi Olafare, do Programa do Fundo Newton,
sempre dispostos a nos auxiliar ao longo da nossa colaboração. Também gostaríamos de
mencionar o trabalho dedicado de Cristina Schein, da Secretaria Nacional de Direitos Hu-
manos, que participou como representante do governo federal no comitê gestor do projeto.
Dentro do escopo do trabalho do Caaf – cujo objetivo é consolidar duas áreas de co-
nhecimento no interior do campo dos direitos humanos: a antropologia forense e a justiça
de transição –, este projeto teve por intuito reanalisar os chamados Crimes de Maio de 2006,
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tação e dos depoimentos para compreender a materialidade e os processos dos crimes, tanto
da morte quanto da ocultação das evidências.
É nessa perspectiva que o projeto busca apresentar resultados que contribuam para
o esclarecimento dos crimes ocorridos em maio de 2006 na Baixada Santista, e, assim,
coloquem em debate a questão da violência de Estado no Brasil e os caminhos que possi-
bilitem aprimorar a democracia brasileira, conforme estabelecido pelos pilares da justiça
de transição.
antecedentes
O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) foi instituído em 2014 com o
objetivo de desenvolver projetos de pesquisa e formação acadêmica na área da antropologia
forense relacionados à violação dos direitos humanos no Brasil.
Como ponto de partida, o Caaf participou do Grupo de Trabalho Perus (gtp), que tem
por objetivo o processo de identificação de mortos e desaparecidos políticos da época da
ditadura, atuando particularmente na análise e identificação dos restos mortais exumados
da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus.
Nesse percurso foi observado que a violência cometida pelos agentes do Estado du-
rante a ditadura militar continua operativa, especialmente nas áreas periféricas das grandes
cidades marcadas por expressões da desigualdade socioeconômica.
A partir dessa preocupação, o segundo projeto desenvolvido no Caaf está focado na
análise de sessenta casos de pessoas assassinadas por arma de fogo na região da Baixada
Santista (de um total de mais de quinhentos no estado de São Paulo) entre os dias 12 e 20 de
maio de 2006. Apesar da luta dos familiares e das manifestações de organizações de direitos
humanos, os episódios envolvendo mortes de civis não foram elucidados e os principais
suspeitos (agentes do Estado) não foram investigados, conforme estabelecem os procedi-
mentos jurídicos.
O projeto busca reunir um conjunto substantivo de indícios que apontem que as pes-
soas assassinadas nesses episódios foram mortas como resultado da violência do Estado.
De modo geral, espera-se que esta pesquisa possibilite apresentar resultados, desen-
volver um conjunto de estudos, debates e ações que contribuam para fortalecer essas comu-
nidades que são regularmente hostilizadas pela violência dos agentes de Estado em ações
similares às da época da ditadura militar.
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objetivos específicos
• Executar a pesquisa científica com relação aos Crimes de Maio de 2006 na Baixada
Santista;
• construir um conjunto de documentos e dados científicos que possam ser utilizados
para análise e discussão do papel do Estado e das forças de segurança pública em rela-
ção à população civil, e, particularmente, às populações socialmente vulneráveis;
• criar e publicar um jornal eletrônico para divulgar os resultados da pesquisa;
• organizar e implementar um curso de especialização em antropologia forense e direi-
tos humanos, com participação de especialistas internacionais, para treinar peritos nas
áreas de conhecimento relacionadas à temática;
• organizar seminários e conferências internacionais em conjunto com a instituição par-
ceira para intercâmbio de experiências acadêmicas e divulgação dos dados da pesquisa;
• organizar um curso de extensão sobre o legado da ditadura civil-militar e os desafios
da justiça de transição.
resultados esperados
• Levantar evidências e indícios sobre os assassinatos de civis pelos agentes do Estado,
com o objetivo de fortalecer a demanda das famílias das vítimas por justiça e ampliar
a discussão sobre violência de Estado no Brasil, ancorados nos debates sobre justiça de
transição e direitos humanos;
• criar uma base de dados sobre as vítimas dos Crimes de Maio de 2006 na Baixada
Santista, construída a partir dos documentos oficiais (boletins de ocorrência, laudos
necroscópicos e inquéritos policiais), outros registros documentais, como narrativas
produzidas a partir de entrevistas com familiares das vítimas, e mapas georreferencia-
dos com dados relevantes para compreender os eventos;
• criar um curso com certificação institucional para profissionais na área de antropolo-
gia forense e direitos humanos;
• contribuir para o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, conferências científicas e
eventos internacionais nas áreas de justiça de transição, antropologia forense e direitos
humanos;
• colaborar na criação de publicações especializadas e divulgação de pesquisas nas áreas
de antropologia forense, justiça de transição e direitos humanos.
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procedimentos metodológicos
Foram destacados os episódios de mortes5 por armas de fogo (execução de civis e de
agentes do Estado) ocorridos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, na região metropolitana
da Baixada Santista, estado de São Paulo, Brasil, para análise, com identificação da distribui-
ção geográfica desses crimes e os caminhos burocráticos de consecução de laudos periciais
e necroscópicos e dos inquéritos policiais.
Assim, a pesquisa apresentou um percurso metodológico inovador, além de obter da-
dos significativos e respostas concretas para a questão norteadora da investigação; também
fortaleceu as pautas dos movimentos sociais das comunidades que são atingidas, cotidiana-
mente, pela violência de agentes do Estado. Nesse sentido, o percurso proposto pela pesqui-
sa permitiu organizar e analisar um conjunto de dados advindos de diversas fontes, como
também formulou um conjunto de protocolos que, ao serem reconhecidos pelo Estado,
poderão promover ações no sentido de aprimorar a democracia brasileira.
De forma resumida, foram estabelecidos os seguintes procedimentos metodológicos:
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1.
Violência de Estado no Brasil
Outro dado alarmante sobre a violência no Brasil é o número de mortos por arma de
fogo. O estudo Mapa da Violência 2016 mostra cifras assustadoras, entre os anos de 1980 e
2014, período em que o número total de vítimas fatais por arma de fogo chegou a 967.851. Os
dados apontam um crescimento constante2. No ano de 1980 foram 8.710 mortos, e no ano
de 2014 a cifra atinge o número de 44.861. A grande maioria dessas mortes foi consequência
de homicídios – 85% do total (no ano de 2014 o total de vítimas de homicídio foi de 42.291).
Como afirma o estudo, no contexto internacional o Brasil ocupa o décimo lugar em
relação à taxa de óbitos por arma de fogo per capita. Outro dado relevante para compreen-
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der a dinâmica da violência no país é o perfil das vítimas: mais de 90% são homens, com
predomínio dos jovens, entre 15 e 29 anos, e pessoas negras (Waiselfisz, 2016: 68-72).
Dados esses números alarmantes, um desafio tanto teórico quanto político é entender
as causas da violência de Estado no Brasil e propor medidas e políticas para diminuir os
altos índices existentes no país. Esse é um desafio extremamente complexo e impossível de
resolver no marco do presente estudo. Contudo, alguns importantes elementos podem ser
assinalados para contribuir para a discussão.
Um tema importante que surge na discussão sobre a violência de Estado no Brasil se
refere ao legado da ditadura militar e às possibilidades colocadas pelos mecanismos da jus-
tiça de transição para romper com o passado autoritário e construir uma democracia plena.
Embora a violência contra segmentos sociais mais vulneráveis remonte à colonização, é na
ditadura que um aparato legal se constitui de forma sistemática no período moderno para
forjar os crimes, ocultar os dados de desaparecimentos, torturas e mortes. Assim sendo,
também está presente nesse debate a constatação de uma violência estrutural, resultado de
uma estrutura social extremamente desigual, na qual os setores subordinados nunca foram
plenamente incorporados na cidadania.
Como afirma Paulo Sergio Pinheiro, apesar do encerramento do regime autoritário, das
garantias democráticas existentes hoje e da promulgação da Constituição de 1988, que re-
presentou um enorme avanço do ponto de vista dos direitos, continua existindo no país uma
violência sistêmica ou estrutural em que “o arbítrio das instituições do Estado se combina
com altos índices de criminalidade violenta, crime organizado, grande intensidade de vio-
lência física nos conflitos entre cidadão e impunidade generalizada” (Pinheiro, 1999a: 39).
Para o autor, essa violência estrutural é resultado da existência de relações sociais extre-
mamente assimétricas no país implantadas no período colonial e que perduram até os dias
de hoje. Essa estrutura social levou à continuidade de práticas autoritárias das elites contra
os setores populares e a interações conflitivas entre as classes sociais (Pinheiro, 1999a: 39)3.
Um dos momentos mais marcantes do autoritarismo ocorreu no período militar,
quando houve uma repressão sistemática não apenas contra a oposição política, mas tam-
bém contra os trabalhadores, os camponeses e as populações indígenas do país, como vem
sendo revelado de forma mais evidente por pesquisas nos últimos anos4.
Para Pinheiro, com o retorno ao estado democrático de direito, os conflitos sociais e
econômicos passaram a ser expressos de forma mais aberta e direta. No entanto, as lutas pela
ampliação de direitos se chocaram contra as antigas práticas autoritárias que buscavam inibir
as lutas e tentativas de protesto autônomo. Há, contudo, uma diferença fundamental entre o
período da ditadura militar e o regime democrático atual em relação à questão da violência de
Estado e as violações de direitos humanos: hoje o Estado não organiza diretamente a repres-
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são e as ações de violência institucional, como fazia no período da ditadura militar, ainda que
muitos dos agentes do Estado continuem cometendo abusos e atos ilegais (Pinheiro, 1999a: 39).
Um conjunto de violações de direitos humanos que ocorreram nos períodos democrá-
ticos anteriores ao golpe de 1964 e durante a própria ditadura militar se mantém no regime
democrático atual. A oposição política deixou de ser perseguida e reprimida com o fim
da ditadura, no entanto – como afirma Pinheiro – os pobres, os moradores das periferias,
as minorias raciais, os grupos indígenas e outros grupos sociais subordinados continuam
sendo as vítimas preferenciais da criminalidade e da violência do Estado. Para o autor, se
no regime democrático atual o Estado não participa diretamente da coerção e da repressão
ilegal, ele tem a responsabilidade de evitar a participação de agentes do Estado nas práticas
ilegais, de garantir os direitos fundamentais para a cidadania e de impedir a impunidade
daqueles que violam as normas básicas do estado de direito. Os governos eleitos no Brasil
após 1985 têm demostrado ser tolerantes ou coniventes com a violência de Estado e incapa-
zes de elaborar uma política que permita diminuir a violência social, perpetuando a prática
de violação sistemática dos direitos humanos das populações anteriormente descritas (Pi-
nheiro, 1999a: 40).
Para Pinheiro, a responsabilidade fundamental da garantia do estado de direito, tanto
para o direito internacional quanto para a comunidade de direitos humanos, é dos Estados
nacionais. Nessa situação, o Estado brasileiro se vê, em muitos casos, diante do paradoxo de
ter a responsabilidade final mas não ter os meios e capacidade de agir devido às competên-
cias das autoridades estaduais na gestão das instituições de segurança pública. Para o autor,
do ponto de vista do governo federal houve avanços importantes no reconhecimento do
respeito do estado de direito e das normas do direito internacional de garantia dos direitos
humanos como resultado da pressão das organizações não governamentais e das obrigações
assumidas pelo Brasil na proteção internacional dos direitos humanos (Pinheiro, 1999a: 40).
No entanto, como afirma Pinheiro:
Apesar dessas mudanças positivas dos quadros político e legal, a falência em controlar efeti-
vamente a violência ilegal fica patente: tortura de suspeitos e criminosos nos distritos poli-
ciais, maus-tratos a prisioneiros e internos em instituições fechadas, execuções deliberadas
pelas polícias militares, grupos de extermínio, com participação de agentes do Estado. A
repetida ocorrência dessas violações tem por denominador comum a impunidade, assegu-
rada pela ineficiência e pela omissão governamental, especialmente por parte das adminis-
trações dos estados. Essa falência em implementar a lei enfraquece a vigência das garantias
constitucionais, perpetua o círculo ilegal da violência e dificulta o fortalecimento da legiti-
midade do governo democrático como promotor da cidadania (Pinheiro, 1999a: 41).
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5. No ano de 2014 o Brasil era a nona economia do mundo medida pelo tamanho do pib.
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to econômico com uma distribuição profundamente desigual que servem de pano de fundo
para aquilo que Pinheiro chama de violência estrutural ou endêmica.
Para ele, ainda que a violência esteja disseminada pelo país todo, é nas regiões urbanas
das grandes cidades do país, especialmente nas periferias, que o fenômeno da violência en-
dêmica se manifesta com mais ênfase. Na maior parte dessas regiões há uma sobreposição
entre pobreza e vítimas de violência. Segundo o autor, há “uma clara correlação entre as
condições de vida, violência e as taxas de mortalidade, onde confluem violações de direitos
civis e políticos e violações de direitos sociais e econômicos – a violência é claramente uma
parte significativa da privação social” (Pinheiro, 1999a: 52).
Estabelecer uma relação causal entre fatores econômicos e social e violências seria,
para Pinheiro, uma simplificação de um fenômeno bastante complexo, entretanto é inegável
que esses fatores são importantes para a compreensão da dinâmica da violência em qual-
quer sociedade. O ambiente social contribui para que os setores sociais mais carentes este-
jam mais envolvidos em conflitos violentos. Esses setores também são os mais suscetíveis
a ser vítimas da violência em geral, e da repressão e da violência de Estado em particular
(Pinheiro, 1999a: 53).
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ginaram de antigos exércitos estaduais que representam hoje uma estrutura anacrônica.
Durante a época da ditadura militar a responsabilidade do policiamento ostensivo ficou sob
a incumbência dessas forças, às quais se adicionaram as guardas civis uniformizadas a partir
de 1967, como parte da estratégia repressiva da ditadura contra a dissidência política. Outra
medida adotada pela ditadura, continua o autor, foi a retirada, da competência da justiça
civil, do exame de crimes civis cometidos pelas forças de segurança pública, que ficou então
sob a responsabilidade das polícias militares (Pinheiro, 1999a: 56).
Desse modo, a estrutura da segurança pública no país é resultado de uma visão mili-
tarizada da segurança pública que não conseguiu ser plenamente modificada pelo processo
de democratização do país a partir de 1985.
Como afirma Pinheiro:
6. Constituição Federal, Título v, Capítulo iii, Da Segurança Pública, art. 144, § 5o.
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2.
Justiça de transição: avanços e limites no
processo de democratização
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A maioria dos países que passaram por ditaduras utilizou-se desse mecanismo, como
é o caso dos países da América Latina (Payne, Lessa e Pereira, 2015, p. 732)2. Uma das prin-
cipais indagações dos estudiosos a respeito da temática de justiça de transição é se essas leis
de anistias são responsáveis por prejudicar o processo de adoção de medidas de políticas
nas quais buscam restabelecer a verdade, a memória e principalmente a justiça. Teme-se
que esse tipo de lei possa culminar num quadro de impunidade aos violadores de direitos
humanos e, por isso, impedir a adoção de medidas que visam à promoção de direitos hu-
manos para arquitetar um Estado democrático de direito (Méndez, 1997, apud Payne, Lessa
e Pereira, 2015: 730).
Antes de debatermos os possíveis impactos de leis de anistia no restabelecimento da
verdade, memória e justiça, é preciso levar em conta algo para que os estudiosos da temática
alertam: o processo de justiça de transição varia de país para país, tanto em termos tempo-
rais quanto em relação às medidas de políticas públicas adotadas. Alguns países, por exem-
plo, implementaram medidas logo no momento da passagem da ditadura para o governo
democrático, como foi o caso da Argentina, considerado o país que mais avançou nesses as-
pectos na América Latina. De modo que a Argentina passou por um processo de “transição
por ruptura” (Gómez, 2009: 110), enquanto muitos dos países da região promoviam uma
transição “lenta e gradual”, como foi o caso do Brasil (Gómez, 2009: 110-111).
Além disso, para muitos pesquisadores do tema, é preciso avaliar outros critérios de
cunho social, histórico e político para além daqueles pensados sobre justiça de transição
para compreender se um país, após um período de extremas violações de direitos humanos,
realmente pôde contemplar uma melhoria nesses pontos no caminho para uma democracia
plena (Sikkink e Walling, 2007: 438; Payne, Lessa e Pereira, 2015: 742-748).
Assim, é preciso também ter cautela ao analisar a relação entre uma melhoria em ter-
mos de violações aos direitos humanos e os impactos do processo de justiça de transição.
Nesse aspecto, o Brasil revela um dado preocupante: é o único país da região cuja situação
em termos de violações de direitos humanos piorou depois da ditatura.
De acordo com um estudo realizado por Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling
(2007) em que é usada uma ferramenta metodológica para medir o grau de violações de di-
reitos humanos, conhecida como “Escala do terror político”3, todos os países da região que
passaram pelo processo de justiça transicional das décadas de 1980 e 1990 melhoraram sua
2. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Oxford, a maioria das leis de anistias implemen-
tadas devido às ditaduras e processos de transição das décadas de 1980 e 1990 se encontram na
América Latina. Poucos países não aderiram a essa ferramenta na região, como foi o caso da Bolívia
e do Paraguai (Payne, Lessa e Pereira, 2015).
3. A “Escala do terror político” é uma escala de 1 a 5 que mede extrema violação aos direitos humanos.
Os resultados são divulgados anualmente em estudos realizados pela Anistia Internacional e pelo
Departamento de Estado dos Estados Unidos. Os critérios tomam por base o grau de extremas
violações aos direitos humanos, entre elas: execução sumária, tortura, desaparecimento forçado e
prisões arbitrárias.
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Relat ório fin al
situação de direitos humanos após o retorno democrático, com exceção do Brasil (Sikkink
e Walling, 2007: 437).
De acordo com essa ferramenta, o Brasil, que nos últimos cinco anos da ditadura tinha
uma pontuação de 3,2, elevou esse índice para 4,1 nos dez primeiros anos de democracia,
ou seja, número próximo do extremo. Por isso, argumentam as pesquisadoras: “O caso do
Brasil sugere que a transição para a democracia, por si só, não garante uma melhoria nas
práticas de direitos humanos” (Sikkink e Walling, 2007: 437).
Diante dessa preocupante constatação, é fundamental refletir sobre o processo de jus-
tiça de transição no caso brasileiro. Quais os limites? A Lei de Anistia adotada seria a res-
ponsável por formar uma “cultura de impunidade”, fazendo com que piorasse a situação de
violações de direitos humanos no país em tempos democráticos?
Alguns pesquisadores, como Teles, avaliam a Lei de Anistia como o marco da transição
política no Brasil (Teles, 2015: 52). Portanto a análise sobre a transição brasileira gira em
torno da temática da anistia para avaliar seus limites e consequências para a formação do
estado de direito no Brasil.
Para Abrão e Torelly (2012), por exemplo, a justiça de transição no Brasil tem como
peça fundamental a Lei de Anistia. Na avaliação desses estudiosos, os resultados dessa lei
no Brasil são ambíguos, ou seja, ela foi capaz de promover políticas públicas principalmente
no que diz respeito às reparações para as vítimas da ditadura, ao mesmo tempo que trouxe
limites no que tange à instauração de processos na justiça contra os agentes de Estado res-
ponsáveis por extremas violações aos direitos humanos daquele período.
Os distintos mecanismos da justiça de transição, afirmam os autores, têm sido imple-
mentados com diferentes graus de sucesso, e muitos foram alcançados justamente pela for-
ma como foi instaurada a Lei de Anistia. Os resultados no Brasil se deram principalmente
nas áreas de reparações, verdade e memória, no entanto a impunidade garantida pela Lei
de Anistia, aprovada em 1979, aparece como o grande desafio para a implantação inacabada
dos mecanismos da justiça de transição (Abrão e Torelly, 2012: 153).
Para Abrão e Torelly, a política de reparações às vítimas da ditadura pode ser consi-
derada a pedra angular na agenda da justiça de transição no país, um mecanismo que tem
permitido avançar na recuperação da memória e da verdade e também possibilitado alguns
avanços na busca de justiça. O processo de construção e implementação da política de repa-
rações teria conseguido evoluir, de acordo com a avaliação dos autores, de um conceito de
“anistia como olvido e impunidade”, imposto pelo regime militar em 1979, para o de “anistia
como liberdade e reparação” (Abrão e Torelly, 2012: 152).
As políticas reparatórias que foram estabelecidas na Constituição de 1988 e implemen-
tadas pelos governos posteriores teriam, segundo os dois autores, desafiado a ideia de que a
Lei de Anistia teria implicado uma “anistia bilateral”. Em outros termos, no Brasil a política
reparatória teria conectado de forma conveniente anistia e reparação, compensando as víti-
mas da repressão e excluindo os perpetradores dos crimes ao mesmo tempo. Esse processo
teria permitido “o desenvolvimento de outras dimensões da justiça de transição que de
outra forma teriam sido bloqueados pela ideia de ‘anistia como impunidade e olvido’. Dessa
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forma o processo de reparação abriu possibilidades para um diálogo nacional no qual po-
derá ser possível no futuro alcançar uma maior accountability” (Abrão e Torelly, 2012: 152-3).
No período posterior à Constituição de 19884 foram criadas duas instituições com o
objetivo de conduzir o processo de reparações. A Comissão Especial de Mortos e Desapa-
recidos Políticos, criada em 1995 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que
tinha como objetivo reconhecer a responsabilidade do Estado nas mortes e nos desapareci-
mentos forçados durante o período da ditadura militar, localizar corpos de pessoas mortas
e desaparecidas e emitir pareceres sobre pedidos de indenizações por violações de direitos
humanos5. E a Comissão de Anistia, cuja função era analisar os pedidos de reconhecimento
de anistiado político e do direito às reparações morais e econômicas6.
Aqui cabe uma ressalva. Nesse mesmo período, como ressalta Azevedo (2018), não
foram somente indivíduos com relações com grupos reconhecidamente de militantes que
sofreram violência por parte do Estado. A violência acometeu diferentes sujeitos que per-
tenciam a segmentos sociais sobretudo mais vulneráveis. Contudo, as instituições do Estado
visam até hoje tão somente à reparação para as vítimas com relações efetivamente políticas.
Como afirmam Abrão e Torelly, as políticas de reparação implementadas no Brasil
por essas Comissões não se limitaram a compensações de caráter econômico, esse processo
implicou também a declaração de anistiado político e a possibilidade de ter acesso a outras
reparações, como o direito de continuar os estudos em instituições públicas e o reconheci-
mento de diplomas de instituições estrangeiras. Para os autores, a lei que criou a Comissão
da Anistia continha preceitos legais importantes da política de reparações. Em primeiro
lugar, a declaração de anistiado político, que implicava um ato de reconhecimento político
dos perseguidos durante a resistência ao regime e das violações de direitos humanos come-
tidas pelo Estado (Abrão e Torelly, 2012: 154-5).
Para Abrão e Torelly, durante os anos do governo Lula a política de reparações avan-
çou, incorporando mecanismos de reparação simbólica. Duas iniciativas do período foram
o Projeto Direito à Memória e à Verdade, que buscava divulgar informações sobre aqueles
que resistiram à ditadura militar, e as Caravanas da Anistia, que tinham como finalidade
levar um pedido oficial de desculpas e conceder a anistia para as vítimas nos lugares onde as
4. No artigo 8 das cláusulas transitórias da Constituição de 1988 se reconhece de forma clara o direi-
to de reparação para os perseguidos políticos: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de
setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de
motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que
foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n. 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo
Decreto-Lei n. 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo,
emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os
prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as ca-
racterísticas e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os
respectivos regimes jurídicos”.
5. Ver: <http://cemdp.sdh.gov.br>.
6. Ver: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia>.
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Relat ório fin al
7. Entre as publicações produzidas, destaca-se a obra Direito à memória e à verdade. Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/pdfs/livro-direito-a-memoria-
e-a-verdade>.
8. Ver: <http://www.cnv.gov.br>.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
O maior desafio para os mecanismos da justiça de transição está colocado pela impuni-
dade dos perpetradores de graves violações de direitos humanos durante o período militar.
Como afirmam Abrão e Torelly, a ideia de igualdade perante a lei implica necessariamente
a obrigação de o Estado investigar e punir os crimes contra os direitos humanos. No Brasil,
à diferença de outros países da região, não houve julgamentos criminais contra os membros
da Forças Armadas e das forças de segurança pública e a “cultura da impunidade impediu
o reconhecimento do direito das vítimas a proteção judicial”. Considerando as gravíssimas
violações de direitos humanos, as quantidades de informações sobre as vítimas e os perpe-
tradores das violações e o reconhecimento oficial mediante os processos de reparações, a
impunidade aparece como um dos grandes obstáculos para a consolidação democrática no
Brasil (Abrão e Torelly, 2012: 164-5).
Para Abrão e Torelly, o maior obstáculo legal que garante a continuidade da cultura da
impunidade é a interpretação jurídica da Lei de Anistia. De acordo com essa interpretação,
a anistia foi resultado de um acordo político alcançado durante o processo de transição
para a democracia, e sua revisão só será possível por meio dos representantes do Congresso
Nacional. O resultado prático dessa leitura, continuam os autores, é a negação dos direitos
para as vítimas e o fortalecimento da interpretação da Lei de Anistia no sentido de “anistia
como olvido e impunidade” (Abrão e Torelly, 2012: 165). Afirmam os autores:
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Relat ório fin al
concluir que essas leis foram as principais causas da falta de julgamentos contra agentes do
Estado violadores de direitos humanos, o que teria resultado numa “cultura de impunidade”
(Payne, Lessa e Pereira, 2015: 732).
O estudo dos autores traz resultados diversos e coloca em questão a responsabilidade
das leis de anistia por retrocessos no que tange à temática de justiça de transição. O estudo
analisou mais de 88 países que passaram por processos transicionais, abrangendo tanto paí-
ses que adotaram leis de anistia quanto países que não a adotaram, com o objetivo de ave-
riguar em que medida houve responsabilização judicial de violadores de direitos humanos
(Payne, Lessa e Pereira, 2015).
A conclusão dos pesquisadores é que não é possível traçar um padrão para as con-
sequências das leis de anistia. Isso porque o estudo mostrou que muitos países que não
adotaram essas leis também não levaram ao tribunal perpetradores de violações aos direitos
humanos (Payne, Lessa e Pereira, 2015).
Diante de cenários tão diversos, os pesquisadores buscaram outros critérios para ava-
liar por que alguns países, submetidos a regimes ditatoriais, realizaram julgamentos contra
infratores dos direitos humanos e superaram a impunidade, e outros países não realizaram.
Em outros termos, os pesquisadores investigaram outras dimensões para entender proces-
sos de justiça de transição. É o que eles chamam de “abordagem multidimensional para
alcançar a responsabilização” (Payne, Lessa e Pereira, 2015: 742-3).
Essa abordagem multidimensional considera quatro fatores fundamentais para enten-
der os desdobramentos em termos de responsabilização jurídica e de superação da impu-
nidade: demanda da sociedade civil; pressão internacional; liderança judicial; e ausência de
poder de veto (Payne, Lessa e Pereira, 2015: 743).
A demanda da sociedade civil diz respeito à força que as mobilizações internas têm ou
não para pressionar os Estados. Nessa análise, a pressão internacional seria grande aliada da
demanda local, já que estimularia e legitimaria as demandas internas. A liderança judicial
poderia revelar o quanto os aparatos jurídicos e as instituições políticas mantiveram ou não
resquícios do passado autoritário. Por fim, a ausência de poder de veto significa que não há
nenhum tipo de ferramenta constitucional que possa impedir a execução de uma lei, impos-
sibilitando, por exemplo, a responsabilização de um agente de Estado que cometeu abusos
no passado (Payne, Lessa e Pereira, 2015).
O que os pesquisadores avaliaram é que, quando os quatro fatores foram dinamiza-
dos, houve uma forte responsabilização judicial contra os violadores de direitos humanos,
reduzindo o quadro de impunidade. O caso da Argentina é exemplar: mesmo com suas leis
de anistia, que perduraram até 2004, o país foi o que mais levou para julgamento agentes de
Estado responsáveis por violações de direitos humanos nos tempos da ditadura, de forma
que diminuiu sensivelmente seu quadro de impunidade e violações de direitos humanos
em tempos democráticos (Payne, Lessa e Pereira, 2015: 743; Sikkink e Walling, 2007: 434).
Já o caso brasileiro é avaliado por Payne, Lessa e Pereira como o oposto do país vizi-
nho: “Onde todos os fatores eram fracos, as leis de anistia permanecem obstinadamente no
lugar e a impunidade é o resultado. O Brasil representa este caso” (Payne, Lessa e Pereira,
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
2015: 743). Ou seja, para os autores, a manutenção de uma lei de anistia e o alto grau de
impunidade seriam reflexos de baixa mobilização da sociedade civil, pouca pressão inter-
nacional, problemas com o judiciário e instituições políticas e alto poder de veto. Em outras
palavras, a anistia seria o sintoma e não a causa da cultura da impunidade.
Diante dessa interpretação da abordagem multidimensional, vale retomar o argumen-
to de Antony W. Pereira (2010), que salienta que, apesar de pouco reconhecida pela litera-
tura, a cumplicidade do poder judiciário brasileiro com uma elite conservadora e com as
Forças Armadas seria um dos principais problemas no processo de democratização no país.
Segundo o autor:
Apesar da campanha das Diretas Já, ocorrida em 1984, quando grandes manifestações de
massa exigiram eleições diretas, a transição brasileira para um governo civil foi um proces-
so dominado pelas elites e fortemente controlado, no qual tanto as Forças Armadas quanto
o Judiciário mantiveram quase intocada a totalidade de suas prerrogativas [...] Perante to-
dos esses fatores, não é de surpreender que tenha faltado à transição democrática brasileira
não apenas uma comissão da verdade como também a instauração de processos contra os
integrantes do antigo regime. Esse desfecho é bem conhecido de todos. O que em geral
não é suficientemente reconhecido, entretanto, é a forma como os militares e o Judiciário
atuaram na defesa do status quo brasileiro, configurando assim uma transição na qual uma
pretensa amnésia – aliada a um confesso orgulho do passado autoritário – foi a tônica (Pe-
reira, 2010: 240)
Teles (2015), que também foca na Lei de Anistia como forte elemento de impunidade
no Brasil, busca do mesmo modo outros fatores para compreender a preocupante taxa de
violações de direitos humanos no Brasil durante e após a ditadura. Para o autor, questões
subjetivas e institucionais devem ser levadas em conta. Essas questões se relacionam direta-
mente com a abordagem multidimensional – discutida anteriormente –, no que diz respeito
à baixa mobilização da sociedade civil e jurídica.
O movimento por uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, embora seja reconhecido pelo
autor como o maior movimento de enfrentamento contra a ditadura, foi moldado a partir
do discurso ambíguo de que era necessário anistiar os membros da esquerda (Telles, 2015:
89). É interessante notar como a ideia de anistia no Brasil foi arquitetada de forma muito
peculiar em comparação com outros países da região.
A luta social pela anistia, afirma Teles recuperando a leitura de Daniel Aarão Reis, pro-
vocou o debate sobre a e a denúncia da ditadura no Brasil, por isso o movimento pela anis-
tia foi o embate que acabou por desencadear a Lei de Anistia, inaugurando o processo de
transição política no Brasil. Entretanto, se por um lado o movimento deu voz às vítimas da
ditadura, por outro acabou se tornando uma ferramenta política de moeda de troca dos mi-
litares para que estes também fossem anistiados em virtude da mesma lei (Teles, 2015: 87).
A contrapartida da anistia aos perseguidos políticos foi a existência de uma transição
política, pactuada entre as elites políticas do país, na qual os horrores cometidos nos porões
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Relat ório fin al
da ditadura foram abafados. É nesse sentido, afirma Teles, que a transição foi moldada pelo
consenso, que “negou o caráter público à memória dos atos violentos do Estado: sua pu-
blicidade se viu reduzida à memória privada” (Teles, 2015: 60). E foi a partir desse silen-
ciamento em nome da reconciliação nacional que políticas de reparação às vítimas foram
conduzidas: “O Brasil configurou-se como um país modelo de execução das políticas do
silêncio, deslocando as vivas tensões da memória política para a fria abordagem das leis de
reparação” (2015: 123).
Segundo o autor, entretanto, a Lei de Anistia por si mesma não evitaria por completo a
justiça penal contra agentes violadores de direitos humanos. Por exemplo, a própria Consti-
tuição brasileira entende como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática
da tortura9. O Brasil também ratificou acordos internacionais incompatíveis com sua Lei de
Anistia, o que poderá fazer com que, mais cedo ou mais tarde, o Estado tome providências
em termos penais contra perpetradores de violação aos direitos humanos (Teles, 2015: 80-82).
Por isso, é importante buscar outros elementos para a compreensão mais adequada
dos motivos que levaram à piora da situação dos direitos humanos e à preocupante cultura
de impunidade vigentes no Brasil. Talvez a resposta vá ao encontro das argumentações da
abordagem multidimensional proposta por Payne, Lessa e Pereira.
Algumas causas que podem ser elencadas são o baixo dinamismo de mobilização e or-
ganização da sociedade civil brasileira e problemas nas instituições, como o judiciário. Este
último apresenta uma estrutura burocratizada e inoperante desde os tempos da ditadura e
que deve ser analisada ao se estudar o processo de justiça de transição para além do foco
exclusivo na Lei de Anistia.
Como afirma Teles, o “legado” de um judiciário ineficaz traz consequências proble-
máticas para a construção do estado de direito no Brasil (Teles, 2015: 131), pois ele funciona
como uma barreira institucionalizada que impede o acesso à justiça para inúmeras vítimas
de violações de direitos humanos tanto dos tempos da ditadura quanto dos tempos “de-
mocráticos”, já que o Brasil também amarga uma profunda violência estrutural que está
longe de ser resolvida, em termos de mortes bem como em termos de acesso à justiça pelos
familiares das vítimas. É fundamental valorizar os movimentos de resistência no país a fim
de que a denúncia abra caminho para revelar o quanto ainda precisa ser feito para o país
alcançar um verdadeiro estado de direito e uma democracia real.
9. Artigo 5o da Constituição.
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3.
Estrutura da segurança pública e atividade policial
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Alguns documentos revelam, inclusive, que os agentes que mais se destacam na “caça” aos
suspeitos são elogiados e premiados por seus comandantes. Tanto os prêmios quanto os
elogios são anotados em suas fichas disciplinares e os ajudam a obter promoções na carreira
(Barcelos, 1992).
Em 1995 o governo do Rio de Janeiro criou uma premiação por bravura, que consistia
numa bonificação especial que podia alcançar 150% do salário para os policiais que se des-
tacassem e fossem elogiados pelos superiores1. Após ser apelidada de “premiação faroeste”
e verificar-se que resultou num aumento significativo de cidadãos mortos pela polícia, a
premiação foi revogada em 1998. Nessa cidade, aliás, a Polícia Militar é acusada por mora-
dores de favelas da zona norte de usar veículos blindados, apelidados de “caveirões”, para
matar inocentes ou suspeitos rendidos. Os veículos são da cor preta e têm o símbolo de uma
caveira pintada na porta (Barcelos, 1992).
A questão do controle da polícia não está presente apenas em situações em que os abu-
sos são notórios2. Desde os primórdios da organização das forças policiais, houve a preo-
cupação com a possibilidade de a polícia usurpar as funções do juiz e do júri ao atribuir
culpas e punições. Havia a preocupação de que a polícia se tornasse um agente coerciti-
vo do Estado (Parc, 2005). Assim, a legislação introduzida por sir Robert Peel, idealizador
do policiamento moderno na Inglaterra, separava categoricamente o trabalho da polícia
das funções judiciais e restringia a atividade policial à prevenção dos crimes e à detenção
dos criminosos. Peel já se preocupava com a necessidade de os agentes policiais prestarem
contas à sociedade da qual faziam parte. Vejamos, por exemplo, os três últimos dos nove
princípios de Peel, que estabeleceram os princípios fundadores do policiamento inglês, ao
afirmar que o papel da polícia é: manter a todo momento um relacionamento com o público
que confirme a tradição histórica de acordo com a qual a polícia faz parte da sociedade e
a sociedade faz parte da polícia; reconhecer a todo momento a necessidade de aderir inte-
gralmente às funções executivas da polícia, e evitar usurpar os poderes do judiciário ou vin-
gar particulares ou o Estado, ao julgar alguém culpado e aplicar uma punição; reconhecer
sempre que a eficiência da polícia deve ser medida pela ausência de crimes e desordem, e
não pela visibilidade da ação policial ao lidar com o crime ou a falta de ordem (Parc, 2005).
Uma das maiores dificuldades, no que diz respeito ao controle externo da atividade
policial no Brasil, se deve ao fato de existirem várias polícias e de não haver ninguém na
esfera nacional que tenha “poder de polícia” sobre elas, ou seja, não há nenhuma instância
no topo da estrutura federal no Brasil que possa obrigar as várias polícias a seguirem proce-
dimentos unificados e cooperarem entre elas. Nesse sentido, do ponto de vista do governo
federal, as polícias brasileiras são irresponsáveis, pois não respondem a ninguém além da
esfera dos estados da federação.
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Relat ório fin al
3. Pode-se mencionar, também, a Polícia Federal, que tem jurisdição sobre todo o território nacional
e se ocupa de crimes que atentem diretamente contra o Estado brasileiro, principalmente em si-
tuações que envolvam as fronteiras, crimes transnacionais e crimes de corrupção; as guardas civis
municipais, que têm por missão prevenir crimes contra os bens públicos municipais; e polícias es-
pecíficas, como a Polícia Rodoviária Federal, que fiscaliza o respeito à legislação de trânsito, a Polícia
Legislativa, que se restringe ao âmbito do Congresso Nacional. Nenhuma dessas polícias, contudo,
pode desrespeitar as prerrogativas das polícias civis e das polícias militares de cada estado da fede-
ração, na prevenção, combate e investigação de crimes comuns.
4. Para os propósitos desta pesquisa, faz-se necessário mencionar também a existência da Polícia Téc-
nico-Científica, que até 1994, quando foi regulamentada pela Lei estadual n. 756, era formalmente
subordinada à Polícia Civil e é responsável por auxiliá-la na realização de perícias criminalísticas
e médico-legais com vistas à produção de provas. Dela fazem parte o Núcleo de Perícias Médico-
-Legais (npml) de Santos, dividido entre o npml Santos, que atende às cidades de Santos, Cubatão,
Guarujá e São Vicente, e a Equipe de Perícias Médico-Legais (epml) Praia Grande, responsável pelas
cidades de Praia Grande, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe e São Vicente; e o Núcleo de Perícias Cri-
minalísticas (npc) de Santos, subdividido entre o npc Santos (Santos, Cubatão, Praia Grande, São
Vicente), a Equipe de Perícias Criminalísticas (epc) Itanhaém (Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe) e a
epc Guarujá (Bertioga, Guarujá).
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originadas no Exército e funcionarem como força auxiliar das Forças Armadas, as polícias
militares constituem instituições bastante hierarquizadas cuja cadeia de comando se as-
semelha à do Exército brasileiro. Cada um dos 26 estados da federação brasileira tem sua
própria corporação da Polícia Militar. Dependendo dos estados, a Polícia Militar pode estar
ou não associada à instituição do corpo de bombeiros. No estado de São Paulo a Polícia
Militar está organizada em Batalhões da Polícia Militar (bpm), responsáveis por áreas espe-
cíficas e delimitadas do território. Em algumas grandes cidades pode haver vários batalhões
da Polícia Militar. A região da Baixada Santista, por exemplo, está na área de influência de
cinco batalhões subordinados ao Comando de Policiamento do Interior 6 (cpi-6): 6o bpm/i,
21o bpm/i, 29o bpm/i, 39o bpm/i, 45o bpm/i, sendo que os dois primeiros batalhões englobam
cinco companhias cada um, o terceiro e o quarto englobam três companhias cada um, e o
último apenas duas. A correspondência entre os batalhões da Polícia Militar e as delegacias
de polícia da região da Baixada Santista pode ser verificada na Tabela 4, construída com
informações obtidas na Resolução ssp 54, de 8 de maio de 2015, publicada no Diário Oficial
do Estado de São Paulo de 4 de julho de 2015.
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Relat ório fin al
Continuação
Fonte: Adaptação a partir da Resolução ssp 54, de 8 de maio de 2015, Diário Oficial do Estado de São Paulo,
4 jul. 2015.
Ao contrário do que muitos acreditam, para que um crime adquira existência legal não
é suficiente informá-lo a um soldado da Polícia Militar. A vítima precisa comparecer a um
Distrito Policial (d.p.) para fazer uma queixa formal, pois a abertura de um inquérito é de
competência exclusiva do d.p. Os distritos policiais, que são extensões das delegacias de po-
lícia, também são distribuídos na área do estado, e suas áreas de influência territorial podem
ou não coincidir com a de um Batalhão da Polícia Militar. Na região da Baixada Santista, por
exemplo, há dezessete d.p.s subordinados à Delegacia Secional de Santos, que por sua vez
faz parte do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior 6 (Deinter 6), assim
distribuídos: Cubatão (1o d.p., 2o d.p., 3o d.p.), Guarujá (1o d.p., 2o d.p.), Praia Grande (1o d.p.,
2o d.p., 3o d.p.), Santos (1o d.p., 2o d.p., 3o d.p., 4o d.p., 5o d.p., 7o d.p.), São Vicente (1o d.p., 2o d.p.,
3o d.p.); além de seis d.p.s subordinados à Delegacia Secional de Itanhaém e também ligados
ao Deinter 6: Itanhaém (1o d.p., 2o d.p., 3o d.p.), Mongaguá (1o d.p., 2o d.p.), Peruíbe (1o d.p.).
Embora os policiais civis estejam subordinados hierarquicamente ao delegado-geral
da polícia do seu estado e ao secretário de Segurança Pública estadual, no seu dia a dia
gozam de muita autonomia. Na Polícia Civil podemos identificar vários grupos de poder
relativamente autônomos que nem sempre obedecem às diretrizes do comando central. Os
policiais de cada delegacia de polícia são divididos em várias equipes compostas de um de-
legado de polícia, um escrivão e alguns investigadores, que atuam como grupos individuais.
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Nele [no inquérito policial] estão todas as provas constatadas após a investigação. Existem
onze tipos de provas: 1) Coisas apreendidas. 2) Informações das vítimas. 3) Informações
das testemunhas. 4) Informações dos acusados. 5) Acareação. 6) Reconhecimento de coisas
ou pessoas. 7) Documento. 8) Perícias em geral. 9) Identificação dactiloscópica. 10) Estudo
da vida pregressa do acusado. 11) Reconstituição. O prazo legal para juntar esses elementos
é de trinta dias, após o que o delegado deverá enviá-los, juntamente com seu relatório, à
autoridade judicial competente. Quando o caso apresentar dificuldade para a elucidação, o
delegado pode requerer ao juiz prazo para novas diligências. Mesmo quando o inquérito é
arquivado por ordem judicial, por não existir base para denúncia, o delegado poderá pro-
ceder a novas pesquisas se tiver informações recentes (Mingardi: 1992: 14-5).
O delegado de polícia, sendo a autoridade policial, além de ser o responsável pela de-
cisão de instaurar ou não um inquérito de acordo com o Código Penal, tem a capacidade
de expedir intimações e decidir sobre a prisão em flagrante e as etapas a serem seguidas na
condução posterior do inquérito.
Embora ocupem uma posição desprestigiada na hierarquia funcional da Polícia Civil,
os escrivães detêm um poder considerável, pois são responsáveis pela elaboração de uma
peça fundamental para o inquérito policial: o boletim de ocorrência5. A maneira como os
fatos e depoimentos são descritos no boletim de ocorrência pode determinar o curso sub-
sequente de um eventual processo judicial. Cientes dessa importância, os escrivães podem
inscrever nesse documento o seu entendimento sobre os fatos que lhes são reportados se-
5. Como afirma Mingardi, o escrivão de polícia constitui um ator fundamental na atuação da Polícia
Civil, pois “é o funcionário que transforma as queixas em boletins de ocorrência, transcreve depoi-
mentos e transporta para o inquérito os elementos levantados, embora a decisão de quem ouvir e o
que ajuntar ao inquérito seja, em última instância, do delegado. Das três carreiras, a de investigador
é a mais prescindível. Segundo alguns delegados, pode-se tocar uma delegacia sem investigador,
mas não sem escrivão. O trabalho do investigador é o de esclarecer circunstância e detalhes de fatos
criminosos, com a preocupação de identificar pessoas com eles relacionadas [...] O escrivão, ao
contrário do investigador, tem bastante autonomia, praticamente toma conta do plantão no lugar do
delegado. É ele quem redige os bos, expede intimações, ouve as testemunhas etc. A maior parte
dos delegados se restringe a assinar o que o escrivão põe na sua frente” (Mingardi, 1992: 16).
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Relat ório fin al
gundo a sua convicção de como o crime ocorreu e não raro podem ceder à tentação de utili-
zar o seu poder de distorcer os fatos a favor de um dos lados em troca de vantagens pessoais.
Às vezes basta omitir uma informação aparentemente irrelevante para um cidadão leigo
nas práticas policiais e judiciais, ou simplesmente desatento, para possibilitar um posterior
questionamento dos depoimentos concedidos ou dos fatos arrolados no processo.
Como explica Roberto Kant de Lima, a manipulação do conhecimento específico so-
bre como aplicar as regras e procedimentos da polícia e uma estratégia semelhante de ques-
tionamento das informações registradas nos autos são também utilizadas quando se trata
da rivalidade entre a Polícia Civil e a Polícia Militar:
[...] os agentes da Polícia Civil acusavam os pm de não conhecerem a lei. Sustentavam que
eles faziam as prisões incorretamente, cometendo irregularidades que acabavam por levar
à anulação legal do ato. Por exemplo, no mencionado registro de flagrante, o soldado que
tinha realmente efetuado a prisão foi arbitrariamente substituído pelo sargento. Se, por
um lado, a Polícia Militar podia, assim procedendo, causar irregularidades no registro do
flagrante, a Polícia Civil podia também, não as corrigindo – propositadamente ou por ne-
gligência –, causar imperfeições nos autos. Tais irregularidades poderiam, no futuro, ser
arguidas pelo juiz, a fim de relaxar o flagrante (Lima, 1995: 51).
Não se prefere parar os negros porque não há pessoas suspeitas, mas situações de suspeição.
Uma das situações de suspeição muito utilizada como exemplo na Academia de Polícia
Militar é a de quatro crioulos dentro de um carro (Silva Jr., 1998: 71).
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Quando um grupo de pessoas entra na delegacia, antes de ouvi-las, nós enquadramos cada
uma delas. Isso é uma coisa profissional, uma coisa de perdigueiro. Após esse primeiro
instante, vamos aperfeiçoando a imagem da pessoa, mas a primeira coisa é “tirá-la”: temos
de ver se os sapatos são caros ou baratos, sujos ou limpos, se as solas estão gastas ou não,
se as calças são formais ou informais, novas ou velhas e de que tecido são feitas. Observa-
mos o cinto para ver se é de couro ou de plástico. Reparamos se a camisa é de bom gosto
ou não. Observamos o aspecto geral da pessoa para ver se está alinhada ou em desalinho,
se fez a barba recentemente, se está bem alimentada, o estado de seus dentes. Reparamos
nas unhas para ver se estão bem tratadas e se a unha do dedo mínimo é mais longa do
que as outras (um hábito dos brasileiros de classe baixa para demonstrar que não exercem
trabalho braçal, o que os rebaixaria na hierarquia da sociedade brasileira ex-escravista).
Olhamos as mãos para ver se são calejadas. Observamos, então, a maneira da pessoa falar,
sua educação, experiência. Após observar todas essas coisas, dirigimos algumas perguntas
para obter informações. É o mesmo processo que se usa quando se vê uma mulher: a gente
quer saber se é casada, se vive sozinha ou com a família, se tem dinheiro ou não. Com as
mulheres, todo homem é um policial. É o mesmo processo. Todo mundo “tira” todo mundo
(Lima, 1995: 53-54).
Só a apresentação da denúncia pelo Ministério Público pode dar início a um processo cri-
minal. Em sua maioria, as ações judiciais são precedidas, entretanto, de um inquérito po-
licial, cujo curso pode ser assim resumido: 1. a polícia recebe a queixa ou a denúncia, a
notícia de um crime ou, então, um policial presencia um crime; a polícia vai no encalço de
seu autor, e, se a prisão ocorrer nas 24 horas subsequentes, está configurado o flagrante; 2. a
polícia instaura o inquérito e envia os autos ao juiz; 3. o juiz toma conhecimento e encami-
nha os autos ao promotor; 4. geralmente as provas não são ainda conclusivas. O promotor
devolve o inquérito ao juiz com a solicitação de novas diligências policiais. O juiz marca
um prazo para a execução das diligências; 5. o juiz devolve os autos à polícia; 6. a polícia
providencia as diligências pedidas (acareações, averiguações, laudos periciais, inquirição de
suspeitos e testemunhas), terminando por identificar, interrogar e indiciar o autor do crime
no inquérito. A polícia informa o nome da pessoa acusada e as acusações que lhe são feitas
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Relat ório fin al
O Ministério Público não toma conhecimento dos registros de ocorrências de crime, dei-
xando de exercer o controle externo das investigações policiais; os delegados de polícia não
presidem os inquéritos policiais, que, em regra, são realizados pelos escrivães de polícia; o
Ministério Público e o poder judiciário não estabelecem prazos para a conclusão dos in-
quéritos; os indiciamentos não são submetidos à apreciação do Ministério Público. Como
principal consequência da ineficiência estrutural do inquérito policial, o Ministério Público
deixa de obter os elementos necessários para ajuizar a ação penal pública, prejudicando
todo o sistema de persecução penal (Instituto Cidadania, 2002: 23).
Mas talvez o elemento mais perverso da arquitetura do sistema judicial brasileiro seja
a importância que adquire o inquérito policial, uma vez que ele influencia, quando não
condiciona, todos os passos subsequentes do processo penal. Esse efeito se dá pelas carac-
terísticas únicas do inquérito policial no Brasil, que, por não admitir o contraditório uma
vez que oficialmente não constitui uma etapa propriamente judicial, assume características
inquisitoriais que prejudicam em muito a defesa dos acusados e futuros réus, como é expli-
cado no trecho transcrito a seguir.
No Brasil, e apenas no Brasil, encontramos uma solução não somente mista, mas am-
bivalente na persecução criminal: cabe à polícia a investigação preliminar como também
o aprofundamento das investigações e um relatório juridicamente orientado do resultado
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dessas investigações. Esse relatório, chamado inquérito policial, não deve ser confundido
com a mera investigação policial, pois inclui depoimentos transcritos em cartório, além
das necessárias peças periciais. É, assim, a “forma jurídica” que a investigação policial deve
adquirir para chegar às demais instâncias judiciárias. É, portanto, uma forma de “instrução
criminal”. Tudo isso se dá sob um enquadramento funcional administrativo, isto é, apa-
rentemente sem nenhum valor judicial, pois que depende de ser encampado total ou par-
cialmente, no momento da denúncia, pelo Ministério Público. Por definir-se como uma
etapa “administrativa”, mas executada por uma “Polícia Judiciária”, a ambivalência dispensa
a defesa e o contraditório nessa etapa. Como essa etapa “administrativa” é inteiramente
inquisitorial, isto é, como dela não participam o contraditório nem a produção de provas
e tomadas de depoimentos que interessem à defesa – antes ou mesmo depois do indicia-
mento –, pode-se dizer que o inquérito policial, nessa forma, é único no mundo, pois reúne
o estatuto da neutralidade da investigação policial à potencial atribuição de formação de
culpa, que é inerente ao poder de “indiciar” e de produzir provas por meio de depoimentos
tomados em cartório, com vista a servir para “demonstrar’” a autoria do crime. É como se,
no delegado de polícia brasileiro, as atribuições da polícia, no sistema inglês, estivessem,
ao mesmo tempo, operando de modo autônomo e subordinado às atribuições do juiz de
instrução do sistema continental. Dizemos “é como se”, e não “que é” – pois o delegado tam-
bém não tem o poder de decidir pela denúncia, atribuição que cabe ao Ministério Público.
A questão aqui decorre da consagração, pela Corte Europeia, do princípio do “separatismo”,
que retira de quem investiga o direito de acusar, deixando-o a outra instância.
No Brasil, essa separação, consagrada no instituto de que cabe exclusivamente ao Mi-
nistério Público o direito de denunciar, mas não de investigar, ficou a meio caminho, pois
manteve no delegado de polícia, por meio do inquérito policial, não só a função de inves-
tigar como a maior parte das funções de “formação de culpa”. O Ministério Público fica na
posição de apenas encampar o inquérito ou reenviá-lo ao delegado por considerar que as
provas são insuficientes, dando-lhe novos prazos. Nesse caso, o inquérito vai e vem, sem
saber onde repousar ou ganhar o mérito de se transformar em denúncia. E até aqui não há,
ainda, formalmente, nenhuma participação necessária do acusado e de sua defesa.
• 40 •
4.
Contexto dos Crimes de Maio
E ntre os dias 12 e 20 de maio de 2006 foram assassinadas, no estado de São Paulo, centenas
de pessoas num processo que ficou conhecido como Crimes de Maio. No início do mês
de maio desse ano, o governo do estado de São Paulo determinou a transferência de 765
presos para o presídio de segurança máxima de Presidente Venceslau, localizado a 620 km
da cidade de São Paulo. O objetivo da medida era isolar os líderes da facção criminosa co-
nhecida como Primeiro Comando da Capital (pcc). No mesmo período foram levadas para
o Departamento de Investigação sobre o Crime Organizado oito das principais lideranças
do pcc e, no dia 13 de maio, transladadas para cumprir pena sob o Regime Disciplinar
Diferenciado (rdd)1 na penitenciária de Presidente Bernardes. No dia anterior, 12 de maio,
começou uma série de ataques – de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do estado
de São Paulo, promovidos pelo pcc como retaliação ao processo de translado e tentativa de
controle das ações da organização criminosa (Defensoria Pública do Estado de São Paulo,
2015).
Como afirma Nagashi Furukawa, secretário de Gestão Penitenciária, durante o perío-
do dos Crimes de Maio:
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
dos pouco a pouco. Isso pode ter tido alguma influência, mas o ponto que determinou mes-
mo essas duas crises foi a movimentação da liderança do pcc (Miraglia e Salla, 2008: 24).
• 42 •
Relat ório fin al
Assim, nota-se que a relação entre o pcc e a estrutura de segurança pública do estado
de São Paulo é complexa e contraditória, porém de fundamental importância para entender
a dinâmica e analisar o discurso oficial dos Crimes de Maio de 2006.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
Não consigo enxergar outro componente que tenha determinado as rebeliões além desse.
Elas [as rebeliões] começaram a acontecer em 2005 e continuaram no começo de 2006 –
numa quantidade e gravidade cada vez mais crescente. Havia notícias vindas de todos os
cantos, de todas as penitenciárias, de que a megarrebelião de 2006 seria feita em agosto da-
quele ano, ou seja, nas vésperas da eleição de outubro, e nós simplesmente nos antecipamos,
tomamos providências para tentar evitar que as rebeliões continuassem acontecendo e que
essa rebelião anunciada para agosto acontecesse (Miraglia e Salla, 2008: 34).
O governo teria tentado se antecipar à rebelião, que estaria sendo preparada, transfe-
rindo os detentos para prisões de segurança máxima e isolando os líderes do pcc para tentar
evitar a coordenação das ações. No entanto, segundo Furukawa, houve falhas operacionais:
[...] transferimos os presos no mês de maio, e por vários equívocos operacionais, infor-
mações que vazaram, depoimentos de delegados de São Paulo em sessão secreta da cpi do
tráfico de armas que foram vendidos para um advogado do pcc, tudo isso fez com que a
operação vazasse e desencadeasse essa reação extremamente grave que todos nós presen-
ciamos (Miraglia e Salla, 2008: 34).
4. Seguimos neste ponto várias das evidências, informações e argumentos do relatório São Paulo sob
achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em Maio de 2006 (2011), elaborado
pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard e pela organização
Justiça Global.
• 44 •
Relat ório fin al
Estado. O esquema que mais enfureceu os bandidos foi aquele que seria comandado por
Augusto Peña5.
Segundo a investigação oficial, um grupo de policiais civis comandados por Peña teria
grampeado sem autorização judicial telefones de membros do pcc e de suas famílias com
o objetivo de obter informações e provas para depois extorqui-los. Os policiais estariam
fazendo adulterações das gravações para forjar provas contra as famílias dos presos e poder
obter dinheiro com as extorsões6.
Um dos membros do pcc, Gegê do Mangue, teria pago a Peña r$ 150 mil para que sua
família não fosse acusada de associação com o tráfico de drogas. Outros casos de extorsão,
segundo a reportagem, teriam envolvido o traficante chamado Pebinha, que teria pago r$
40 mil a policiais para que facilitassem sua fuga da prisão, mas eles não teriam cumprido
sua parte no acordo. Como represália, o pcc teria ordenado o ataque contra uma delegacia
da cidade de Suzano em abril de 2006. No ataque sete pessoas morreram7.
Em outra reportagem intitulada “Policial é preso acusado de chantagear pcc”, também
de maio de 2008, André Caramante informa que Augusto Peña também foi acusado de ter
sequestrado, em 2005, Rodrigo Olivatto de Morais, enteado de Marcola, a principal lideran-
ça do pcc8.
Segundo informações do relatório São Paulo sob achaque, policiais civis teriam pren-
dido Rodrigo Olivatto de Morais sem ordem judicial e o teriam levado para a delegacia de
Suzano. Depois do sequestro, os policiais teriam forjado provas e feito Rodrigo assinar uma
declaração. Segundo a denúncia do Ministério Público, teria sido acordado e pago um res-
gate de r$ 300 mil para a libertação de Rodrigo (São Paulo sob achaque, 2011: 38).
Na reportagem de André Caramante, a relação entre o início dos ataques e o sequestro
do enteado de Marcola aparece de forma explícita:
Era 12 de maio [de 2006] quando Marcola, na sala do então diretor do Deic [Departamento
de Investigações sobre o Crime Organizado] Godofredo Bittencourt, disse que parte da
violência que o Estado enfrentaria se devia às atitudes de policiais como Peña. [E conclui o
jornalista] Só agora se soube o que o presidiário quis dizer9.
A superlotação carcerária também tem sido apontada como uma das principais causas
das rebeliões nos presídios e pode ter sido um fator importante no início dos ataques e das
rebeliões em maio de 2006.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
Como aponta o relatório São Paulo sob achaque, em 2006, antes dos eventos de maio, o
pcc já tinha ordenado rebeliões em diversas prisões do estado de São Paulo, causando morte
e destruição. No total 31 unidades prisionais se rebelaram nos três primeiros meses desse
ano. Um caso emblemático foi o da Cadeia Pública de Jundiaí, cujos presos se rebelaram em
março de 2006. A cadeia tinha capacidade para 120 reclusos, mas no momento da rebelião
abrigava em torno de 480, incluindo vinte adolescentes internados ilegalmente. Como
afirma o relatório, durante as 21 horas que durou a rebelião nove presos foram assassinados,
asfixiados pela fumaça dos colchões queimados pelos detentos. Depois da rebelião a
situação continuou da mesma maneira e nenhuma solução ao problema da superlotação foi
apresentada pelas autoridades. Alguns meses depois, em maio de 2006, os presos da Cadeia
Pública de Jundiaí participaram da megarrebelião comandada pelo pcc no estado, quando
mais um detento morreu baleado (São Paulo sob achaque, 2011: 45).
Independentemente da razão ou razões para a rebelião das prisões paulistas, que tal-
vez nunca sejam completamente esclarecidas, está claro que as rebeliões foram ordenadas
e coordenadas pelo pcc como uma demonstração de força perante o governo do estado de
São Paulo.
As rebeliões e os ataques contra agentes públicos começaram no dia 12 de maio com
a revolta na penitenciária Avaré i. Como afirma o relatório São Paulo sob achaque, as rebe-
liões foram parte de um movimento organizado no interior do sistema prisional, exatamen-
te naquelas prisões controladas pelo pcc. O centro da rebelião se localizou nas penitenciá-
rias, que concentravam os presos condenados em regime fechado, e nos centros de detenção
provisória, onde estavam os presos em prisão temporária. De acordo com o relatório, o
movimento de rebelião abarcou as três unidades de segurança máxima (Taubaté – Cen-
tro de reabilitação penitenciária; Avaré i – Penitenciária Dr. Paulo Luciano de Campos; e
Presidente Bernardes – Centro de Readaptação), 50 das 74 penitenciárias do estado (67%
do total) e 21 dos 33 centros de detenção provisória (63% do total) (São Paulo sob achaque,
2011: 47-8)10.
No entanto, o restante do sistema prisional paulista não participou desse movimento,
não houve protestos de presos nos centros de progressão de pena, nos centros de ressocia-
lização, nem nos institutos penais agrícolas. Do ponto de vista territorial, as rebeliões se
espalharam pelas cinco Coordenadorias do Sistema Prisional do estado de São Paulo. Como
analisado anteriormente, o processo de expansão e consolidação do pcc permitiu, nesse
período, que, nas prisões controladas pela organização, essa tivesse capacidade de articular
e coordenar de forma muito organizada uma sequência de rebeliões envolvendo milhares
de presos e que colocou em xeque a segurança pública no maior estado do país e obrigou
as autoridades a buscar negociar o fim da rebelião, como veremos a seguir (São Paulo sob
achaque, 2011: 47-8).
10. Para uma informação mais completa sobre as unidades rebeladas e as datas das rebeliões, ver São
Paulo sob achaque, 2011: 50-55.
• 46 •
Relat ório fin al
Essas informações mostram de forma clara o vínculo das rebeliões com o pcc e a com-
plexa e contraditória relação existente no sistema prisional paulista entre essa organização e
a estrutura de segurança e encarceramento em São Paulo.
As rebeliões foram se espalhando pelo estado a partir do interior e em direção à capi-
tal. Segundo o relatório São Paulo sob achaque, no dia 12 de maio, primeiro dia da rebelião,
três unidades de segurança máxima e três penitenciárias das regiões norte e nordeste do
estado aderiram ao movimento; no dia 13 de maio houve adesão de dezenove penitenciárias,
dezesseis delas localizadas no interior e na região central, e de dois centros de detenção lo-
calizados também na região central; no dia 14 de maio 28 penitenciárias e dezenove centros
de detenção se somaram ao movimento em todas as regiões do estado. No balanço total,
das 144 unidades prisionais do estado, participaram da rebelião, nos três dias, 74 unidades
(entre presídios de segurança máxima, penitenciárias e centros de detenção provisórias) –
71 delas eram penitenciárias e centros de detenção provisórias (de um total de 110). Esses
números demonstram a fortaleza e coordenação do movimento e a capacidade de lide-
rança do pcc. Nos dias que duraram as rebeliões, em torno de 439 pessoas foram feitas
reféns e pelo menos treze foram mortas no interior dos presídios, sem existir até hoje um
esclarecimento das circunstâncias e da autoria material desses assassinatos (São Paulo sob
achaque, 2011: 49).
Um claro indício de que as rebeliões e os ataques foram resultado de uma decisão das
lideranças do pcc reside na perfeita delimitação temporal de início e finalização das rebe-
liões e ataques. De acordo com o relatório São Paulo sob achaque, as rebeliões nos presídios
começaram de forma articulada no dia 12 de maio, com uma gradual e consistente expansão
nos dias posteriores, e todas as rebeliões se encerraram no dia 15 de maio por determinação
da organização criminosa. Praticamente todas as rebeliões tinham acabado em 15 de maio
por volta das 16 horas, após encontro organizado por representantes do governo do estado
de São Paulo com membros do pcc (São Paulo sob achaque, 2011: 55).
Segundo informações do jornal Folha de S.Paulo do dia 16 de maio, o encontro no
qual teria sido “negociado” o fim das rebeliões teria acontecido no domingo, 14 de maio, no
presídio de Presidente Bernardes, com a participação da advogada Iracema Vasciveao, da
Associação dos Reeducandos Nova Ordem, do policial militar Ailton Araújo Brandão, co-
mandante da região de Presidente Prudente, do corregedor Antônio Ruiz Lopes, represen-
tante da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (sap), do delegado da Polícia
Civil José Luiz Cavalcante e de Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola11. O governo
negou que tenha existido um acordo com o pcc; como ressaltou a reportagem da Folha,
tanto as declarações do governador Cláudio Lembo quanto as do delegado-geral da Polícia
Civil negavam esta versão. O delegado-geral Marco Antônio Desaguado chegou a afirmar:
“Eu nunca fiz acordo com ninguém, principalmente com bandido”. No entanto, fontes do
próprio governo reconheceram a existência do encontro: o comandante-geral da pm, coro-
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
nel Elizeu Teixeira Borges, admitiu que houve uma conversa com Marcola no domingo, dia
14. O fato concreto, como afirmou a reportagem, é que 24 horas depois da reunião todas as
rebeliões que afetaram 71 unidades prisionais tinham terminado12.
Em outra reportagem da época, também da Folha de S.Paulo, afirmava-se que horas
depois das negociações com representantes do governo, a cúpula do pcc ordenou o fim
dos ataques e das rebeliões em São Paulo. Segundo a reportagem, os líderes da organização
teriam ordenado aos presos e aos membros do pcc que estavam fora das prisões o fim dos
ataques. Na reunião com as autoridades, segundo o jornal, o pcc teria condicionado o fim
dos ataques a benefícios para os presos transferidos para a penitenciária de Presidente Ven-
ceslau, exigido que a tropa de choque da Polícia Militar não entrasse nos presídios rebelados
e que não houvesse retaliações contra os presos13.
Com base nas reportagens e nas informações da época, fica nítido que, com essa ne-
gociação, algum tipo de acordo ou trégua foi alcançado e, como resultado, houve uma de-
cisão coordenada e executada de forma disciplinada pelo pcc para acabar com as rebeliões
nos presídios e suspender os ataques contra os membros das forças de segurança pública
fora deles.
12. Mary Persia e Tatiana Fávaro, “Comandante-geral da pm nega acordo com pcc, mas admite con-
versa”, Folha Online, 16 maio 2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/
ult95u121602.shtml>.
13. Gilmar Penteado, André Caramante e Cristiano Machado, “Cúpula de facção ordena trégua”, Folha
de S.Paulo, 16 maio 2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200602.
htm>.
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5.
Análise dos Crimes de Maio1
C omo afirma o relatório São Paulo sob achaque, há um relato oficial sobre os Crimes de
Maio. Esse relato sustenta que os crimes ocorridos durante o mês de maio foram resul-
tado de uma série de enfrentamentos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006 entre integrantes
do pcc e as forças de segurança do estado de São Paulo. Essa narrativa construída pelas
autoridades afirma que o pcc começou com os ataques no dia 12 de maio, beneficiando-se
inicialmente da falta de divulgação entre as forças de segurança, o que permitiu o assas-
sinato de vários agentes públicos e, posteriormente, em resposta aos ataques, a morte de
membros da organização criminosa em enfrentamentos com as forças de segurança (São
Paulo sob achaque, 2011: 58).
O secretário de Segurança Pública na época, Saulo de Castro Abreu Filho, apresenta a
versão oficial do governo sobre os acontecimentos:
Foi um ataque covarde. Não só às forças de segurança, mas a toda a sociedade paulista.
Os primeiros a cair foram cinco cidadãos, que estavam próximos a delegacias, viaturas ou
mesmo policiais. Foram atingidos 78 agentes de segurança, incluídos na conta os policiais
civis, militares e agentes penitenciários (Condepe, 2006: 137).
Questionado sobre o perfil das vítimas – a maioria dos mortos seriam jovens entre 11
e 31 anos, o secretário respondeu:
Foram 92 os criminosos mortos pela polícia aquela semana [casos reconhecidos oficial-
mente como resistência seguida de morte]. Eles atiraram nos policiais, intencionalmente e
deliberadamente. Em qualquer lugar do mundo, quem atira num policial corre o risco de
1. Seguimos, neste ponto, várias das evidências, informações e argumentos do relatório São Paulo sob
achaque (2011).
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
Houve dois tipos de situações. Pessoas de carro ou moto que passavam por uma delegacia
ou viatura e atiravam. Os policiais contra-atacavam e se defendiam. Se você fosse policial
e estivesse lá teria feito o mesmo. Outros que preparavam ataques foram denunciados pela
população, através do 190 ou do 181. Policiais confirmavam a informação e tentavam render
os criminosos. É ingênuo imaginar que todos os bandidos se rendem diante da voz de pri-
são, principalmente se estiverem armados. Eles atiram para matar, ao contrário da polícia,
que atira em defesa da lei (Condepe, 2006: 139-40).
Imagem 1. Jornal Folha de S.Paulo, domingo, 14 maio 2006, caderno Cotidiano especial.
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Relat ório fin al
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
sobre os fatos de violência. Entretanto, depois desse período, a dinâmica da violência mu-
dou completamente (São Paulo sob achaque, 2011: 58-9, e Condepe, 2006: 87).
Segundo o secretário adjunto de Segurança Pública na época, Marcelo Martins de Oli-
veira, “na segunda-feira [dia 15 de maio], São Paulo não registrou nenhuma ocorrência de
ataque do pcc” (São Paulo sob achaque, 2011: 60). Essa declaração, de um alto membro do
governo, reforça os indícios sobre a dinâmica dos crimes descrita anteriormente.
Segundo informações do Ministério Público do Estado de São Paulo sobre os homicí-
dios em maio de 2006, analisadas no relatório São Paulo sob achaque, nas 72 horas subse-
quentes ao dia 14 de maio (Dia das Mães) sessenta pessoas foram assassinadas por agentes
da segurança pública na capital, na Região Metropolitana e no litoral de São Paulo. Somen-
te na terça-feira, dia 16 de maio, a polícia matou 29 pessoas em supostos confrontos com
membros do pcc, uma média de uma morte a cada cinquenta minutos.
Um dado revelador da forma de atuação da polícia é que todos esses homicídios te-
riam ocorrido em supostos enfrentamentos, sem haver, no entanto, nenhuma vítima entre
as forças de segurança. Informações provenientes da Ouvidoria da Polícia do estado de São
Paulo também indicaram que grupos de extermínio, entre os quais se suspeita da participa-
ção de policiais, executaram 84 pessoas entre os dias 14 e 20 de maio (São Paulo sob achaque,
2011: 60-1).
No dia 16 de maio a Folha de S.Paulo começou a publicar informações sobre a reação
das forças policiais aos ataques do pcc e sobre a morte de pessoas sem vínculos com a or-
ganização. Na reportagem, o jornal chamava a atenção para o fato de a Secretaria de Segu-
rança Pública não ter divulgado detalhes dos ataques a policiais e a civis. Ante o pedido do
jornal para que fossem divulgadas as identidades das vítimas mortas durante os confrontos,
a resposta da Secretaria de Segurança foi que: “a lista está em elaboração, mas não informou
quando será divulgada”2.
A Folha também chama a atenção para o que nomeou “contra-ataque nas redes”, men-
sagens em páginas de redes sociais que expressavam um pedido de reação por parte das for-
ças policiais, duas páginas criadas no Orkut, “Luto pelos nossos heróis” e “Rota” deixavam
clara a sua intenção:
Pra mim só interessam números. Se vocês quiserem eu dou uma ligadinha pro capeta pra
segurar umas vagas lá embaixo para matarem a vontade esses fdp [em referência aos mem-
bros do pcc].
Para cada Mike [pm] que tombou nessas ocorrências, dois ladrões têm que morrer para
honrar os irmãos. Se o pé de chinelo acha que é bonito dar tiro na base da pm e dizer que é
do pcc, vai para a pedra também [...]3.
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Relat ório fin al
Imagem 2. Jornal Folha de S.Paulo, domingo, 14 maio 2006, caderno Cotidiano especial, p. a5.
Familiares de jovens mortos suspeitam que policiais à paisana mascarados por toucas ninja
estejam executando inocentes sem passagens pela polícia. Em dois casos, testemunhas dis-
seram que os assassinos saíram de um carro policial5.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
São Paulo”. A Secretaria de Segurança Pública, segundo a reportagem, afirmou que todas as
pessoas mortas tinham ligação com o pcc ou com os ataques daqueles dias, no entanto a
mesma Secretaria não fornecia a lista completa com os nomes e a ficha criminal dos mortos.
Diante dessa solicitação do jornal, a resposta oficial era: “Estamos consolidando os dados,
que serão divulgados em breve”. A reportagem questionava o discurso oficial e alertava so-
bre a alta letalidade policial e a falta de resposta das autoridades sobre as circunstâncias das
mortes dos civis7.
Segundo a reportagem, 24 horas depois do fim dos ataques do pcc, as autoridades
ainda não haviam dado resposta ao conjunto de questionamentos centrais para elucidar os
acontecimentos:
[...] o local exato de cada uma das 71 mortes nos “confrontos”, como elas ocorreram, se os
feridos pela polícia foram encaminhados a hospitais ou se os corpos ficaram nos locais
dos embates para a realização de perícia, quantas armas de policiais e de acusados foram
apreendidas para exame de balística e a ficha de antecedentes criminais dos mortos8.
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Relat ório fin al
de uma matança indiscriminada pela polícia, o secretário Saulo de Castro Abreu Filho res-
pondeu: “Sumiu algum cadáver? Foi jogado no rio? Todo mundo a polícia levou para onde?
Para os iml e entregou na mão de médicos. Só estamos tendo classificações diferentes”9.
Com o objetivo de investigar os acontecimentos que estavam se sucedendo em maio, a
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo propôs a criação de
uma comissão independente para apurar os homicídios ocorridos no estado. A Comissão
Especial da Crise da Segurança Pública do Estado de São Paulo10 foi criada no âmbito do
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana a fim de “apurar os homicí-
dios ocorridos no estado de São Paulo, resultante de supostos confrontos entre policiais e
membros da organização criminosa conhecida como pcc (Primeiro Comando da Capital)”
(Condepe, 2006: 29, grifo nosso).
A Comissão, como consta no jornal Folha de S.Paulo do dia 20 de maio, cobrava do
governo a lista com os nomes dos 107 suspeitos mortos desde o início dos ataques e tam-
bém pressionava para que um grupo de peritos independentes acompanhasse o trabalho
realizado pelos médicos-legistas dos Institutos Médico-Legais que realizavam os exames
das pessoas mortas no período. Posteriormente, esse trabalho de acompanhamento foi rea-
lizado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), como veremos a seguir. Italo Car-
doso, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, expressava
na época o temor de que “corpos de mortos pela polícia sejam enterrados como indigentes
para dificultar as investigações”11.
Antonio Funari Filho, na época ouvidor da Polícia, também ressaltava a necessidade
de investigar os casos de pessoas mortas em ações policiais e afirmava: “Tenho notado que
muita gente que não tem nada a ver com isso está entrando na bala”. Já na época várias
outras instituições além da Comissão, como a Ordem dos Advogados do Brasil seccional
de São Paulo e o Conselho Nacional de Polícia Penitenciária, cobravam a divulgação dos
nomes e estranhavam “o fato de o governo se recusar a divulgar a lista dos mortos pela
polícia”12.
As investigações realizadas pela Comissão:
[...] indicaram que há fortes indícios de execução nas mortes registradas como homicídio
com autoria desconhecida e também em homicídios praticados por policiais registrados
como “resistência seguida de morte” (Condepe, 2006: 29).
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sistência seguida de morte”, ou seja, daqueles casos em que é reconhecido pelas autoridades
que as pessoas foram mortas pela polícia mas supostamente em situações de confronto.
Cabe destacar que essa figura tem sido habitualmente utilizada para justificar o assassinato
de pessoas inocentes, como sugerem as evidências de vários casos ocorridos nesse período13.
O relatório preliminar, que analisou 124 laudos que portavam essa justificativa entre os dias
12 e 20 de maio, destaca três aspectos importantes. Um primeiro elemento a ser considerado
é que a maioria dos disparos atingiu as vítimas em regiões de alta letalidade. Como segundo
elemento, a grande maioria das vítimas apresentava entradas de disparos com baixa disper-
são, com pouca distância entre eles. E, por último, verificou-se um número muito elevado
de disparos com direção “de cima para baixo”.
Com base nessas constatações, Molina chega à seguinte conclusão:
A combinação destes fatores aponta para situação mais compatível com aquela típica de
execução e não de confronto com troca de tiros, movimentação de atiradores etc. Na situa-
ção de confronto os três aspectos acima são improváveis, mesmo se considerados isolada-
mente. Como ocorrem, em muitos casos, simultaneamente, podemos afirmar que houve
execuções (Condepe, 2006: 89-90, grifo nosso).
Imagem 3. Localiazação dos orifícios de entrada (acumulados para os 124 casos analisados).
Fonte: Condepe, 2006, p. 95.
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A seguir passaremos a analisar dois tipos de casos que aconteceram durante o período,
e que apresentam claros indícios do que caracterizamos como violência de Estado:
• casos oficialmente classificados como resistência seguida de morte, mas com fortes
indícios de execuções sumárias;
• execuções por grupos de extermínio, com indícios de participação de policiais ou ex-
-policiais.
14. A nomenclatura corresponde aos documentos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo.
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alta letalidade. Todos estes são sinais claros de execução e não de confronto (São Paulo sob
achaque, 2011: 76).
O relatório aponta alguns casos como exemplos de vítimas supostamente mortas em
confrontos que, no entanto, apresentam esses sinais manifestos de execução. São eles: o
caso de José Arruda da Silva, morto por policiais em Marília (dia 17 de maio) com quatro
disparos, sendo que um deles, segundo o laudo necroscópico, aparentemente foi dado en-
costado nas costas da vítima15; a morte de Marcelo Morais de Souza por policiais na cidade
de São Paulo (dia 17 de maio), que na versão oficial teria ocorrido quando trocava tiros
com a polícia – no entanto a vítima foi baleada três vezes na cabeça e duas no tórax e com
evidência que indica uma distância de menos de cinquenta centímetros no disparo efetuado
na cabeça16; o caso de Eduardo Braz de Santana, morto por policiais também na capital (dia
13 de maio) – a vítima, que supostamente teria participado dos ataques contra as forças de
segurança, foi morta com três disparos, um deles entre as sobrancelhas a uma distância de
cinquenta centímetros, indicando que teria sido executada quando já estava rendida17. Es-
ses e outros casos, que também são narrados em São Paulo sob achaque, apresentam claras
evidências que desmentem a versão oficial de confronto entre criminosos e policiais (São
Paulo sob achaque, 2011: 82-4).
Reportagens de jornais também confirmavam as denúncias sobre execuções nos casos
registrados como “resistência seguida de morte”. O jornalista Renato Santana publicou em
2010 uma série de reportagens sobre os Crimes de Maio no jornal A Tribuna, da cidade de
Santos. Na quarta reportagem da série, publicada em 28 de abril de 2010, Santana realizava
uma entrevista com dois ex-policiais. Na entrevista eles explicavam os casos das mortes em
supostos confrontos com a polícia, o funcionamento dos grupos de extermínio e a forma
como organizaram as ações. As reportagens também ressaltaram um elemento fundamen-
tal: o Comando da Polícia Militar tinha conhecimento sobre a verdade nos supostos casos
de resistência seguida de morte. Afirmava “Juca” (nome fictício de um dos ex-policiais):
“Eu trabalhei no Tático Móvel, hoje Força Tática. O meu comandante sabia. Ele dizia: ‘Quer
fazer faz, mas faz direito. Se sujar eu não sei de nada’”, quando questionado se o comando
da polícia sabia o que acontecia18.
15. A referência do caso é: Laudo Necroscópico no 72/2006, núcleo de P.M.I. de Marília, Superintendên-
cia da Policia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, 17 de maio de 2006 (São Paulo sob achaque,
2011: 82).
16. A referência do caso é: Laudo Necroscópico no 2618/2006, Instituto Médico-Legal, Superintendência
da Policia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, 18 de maio de 2006 (São Paulo sob achaque,
2011: 82-3).
17. A referência do caso é: Laudo Necroscópico no 2457/2006, Instituto Médico-Legal, Superintendên-
cia da Policia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, 22 de maio de 2006 (São Paulo sob acha-
que, 2011: 84).
18. Renato Santana, “Os policiais que agem na touca”, A Tribuna, 28 abr. 2010. Disponível em:
<https://flitparalisante.wordpress.com/2010/05/07/>.
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“Juca” atuou durante dez anos na Polícia Militar – afirmava Santana na reportagem –
e nesse período trabalhou tanto na capital como no interior, incluída a região da Baixada
Santista, e participou dos grupos de extermínio que surgiram no final da década de 1980
e começo da de 1990. Depois deixou a Polícia Militar, mas continuou com vínculos com
policiais na ativa e afirmava que as ações da polícia, fardada ou não, nos dias seguintes aos
atentados do pcc em 2006, foram “por conta da revolta com o que estava acontecendo e
por ver o comando esconder”19. Interrogado sobre os casos registrados como “resistência
seguida de morte”, “Juca” responde:
Vou te falar a verdade: 90% das ocorrências de resistência seguida de morte são montadas.
A polícia pega o bandido, vamos supor, dentro de sua casa. Só está o policial e o bandido,
que não vai encarar vinte policiais [...] A gente já andava com o chamado kit. Era uma mo-
chila contendo várias armas frias. Porque, se o alvo não tivesse armado, mas tivesse uma
situação que a gente podia matar, a gente matava e colocava uma arma fria na mão dele20.
Depois porque também quando você efetua o disparo no indivíduo ele não morre na hora.
Aí a gente diz que está vivo. Agora, não chega vivo no pronto-socorro. Damos longas voltas,
a viatura vai a 20 km por hora. Às vezes, até asfixia o cara dentro da viatura22.
19. Ibidem.
20. Ibidem.
21. Ibidem.
22. Ibidem.
23. Seguimos neste ponto várias das evidências, informações e argumentos do relatório São Paulo sob
achaque (2011).
• 60 •
Relat ório fin al
sassinatos foi levada a cabo por grupos de desconhecidos, com forma de atuação caracterís-
tica de grupos de extermínio. Na ação desses grupos também existem fortes evidências da
participação de policiais ou ex-policiais, como apontam relatos, matérias de jornais, docu-
mentos oficiais e denúncias de familiares das vítimas.
Grupos de extermínio, afirma o relatório São Paulo sob achaque, foram responsáveis
por dezenas de execuções em 2006. No relatório são examinados 71 casos de vítimas desses
grupos com evidências de participação de policiais; essas evidências resultam da análise de
um conjunto de fontes que acabou por levar a tal conclusão. Os dados provêm de denúncias
encaminhadas para a Ouvidoria da Polícia e para a Defensoria Pública, informações do
Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (dhpp), inquéritos policiais e entrevistas
com testemunhas realizadas pela equipe do relatório. Com base nessas informações, afirma
o relatório, foi reunido “um conjunto de provas que não deixa dúvidas de que houve um
esforço sistemático de alguns pms em exterminar pessoas com antecedentes criminais, em
resposta à onda de ataques promovida pelo pcc” (São Paulo sob achaque, 2011: 98).
Para os pesquisadores de São Paulo sob achaque, o grande número de homicídios
ocorridos em 2006, e concentrados em algumas regiões periféricas da cidade de São Paulo,
Guarulhos e na Baixada Santista24, praticados de forma similar, sugere a atuação de grupos
de extermínio com participação de policiais. Os diversos elementos apontam para uma ação
generalizada de extermínio praticada nas periferias por policiais, escolhendo previamente
as vítimas que seriam assassinadas, com respaldo de policiais fardados e com manipulação
do local da ocorrência para dificultar ou impedir a investigação posterior (São Paulo sob
achaque, 2011: 101).
Com base nos diversos elementos (entrevistas, denúncias e documentos oficiais), o
relatório apresenta o modus operandi que teria caracterizado a atuação dos grupos de ex-
termínio nas periferias de São Paulo e da Baixada Santista em maio de 2006. Em primeiro
lugar, o toque de recolher: um elemento comum em diversos casos era o aviso por parte da
polícia militar de um toque de recolher para a população civil, fixado sob ameaças. Em se-
gundo lugar, a escolha das vítimas: diversos relatos apontam que policiais militares teriam
abordado pessoas com passagem pela polícia ou “suspeitas” de vínculo com o crime, e a
grande maioria delas teria sido assassinada horas depois. Em terceiro lugar, o ataque de en-
capuzados: grupos de encapuzados, geralmente em carros sem identificação, teriam atacado
e matado as vítimas anteriormente abordadas e outras que estavam juntas. Por último, a
chegada da polícia e alteração e destruição das provas: outro elemento comum nesses ataques
era a rápida chegada de viaturas policiais, em muitos casos sem tempo suficiente para terem
sido acionadas, e a retirada dos corpos, a remoção de cápsulas de projéteis e alteração da
cena do crime para dificultar a investigação das mortes (São Paulo sob achaque, 2011: 102).
24. Para analisar a distribuição regional dos casos, ver a Tabela b – “Óbitos, segundo município de ocor-
rência. Estado de São Paulo. Período 12 a 20 de maio de 2006”, produzida pelo Cremesp (Condepe,
2006: 43).
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Relat ório fin al
[...] não temos dúvidas de que os autores foram policiais militares, motivados pelo desejo de
vingança da morte do colega de farda José Eduardo Cardoso, uma das vítimas dos ataques
perpetrados pela facção criminosa autodenominada Primeiro Comando da Capital, ocorri-
dos entre os dias 12 e 19 de maio de 200629 (São Paulo sob achaque, 2011: 103).
28. Inquérito Policial no 1123/2006, Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (dhpp), Polícia
Civil do Estado de São Paulo, 7 de janeiro de 2008 (São Paulo sob achaque, 2011: 105).
29. Inquérito Policial no 1123/2006, Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (dhpp), Polícia
Civil do Estado de São Paulo, 7 de janeiro de 2008 (São Paulo sob achaque, 2011: 103).
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sobre sua participação em incursões à periferia para matar em maio de 2006, o “Lenda”,
nome fictício do outro ex-policial, diz:
Estava trabalhando na pm numa cidade da região. Houve incursões, sim. Policiais linhas
de frente foram enérgicos na periferia. Todas as mortes foram ilegais e colocamos tudo na
conta do crime organizado. As ações eram em represália aos ataques do pcc34.
O “Lenda” não concorda com a ideia de existência de grupos de extermínio, ainda que
reconheça a prática de policiais encapuzados sem farda matando durante as madrugadas
nas periferias. O ex-policial justifica esse tipo de prática: “são pessoas que diante da inefi-
cácia do sistema acabam agindo por meios próprios”; ele mesmo já atuou com esse espírito
justiceiro matando pessoas que eram consideradas “ervas daninhas”35.
Quando perguntado pelo repórter sobre as pessoas inocentes mortas durante 2006, a
resposta do policial é muito clara sobre a questão:
O suposto inocente, ou citado como inocente pela mídia, que está às duas horas, três horas
da madrugada num boteco que fica numa biqueira (ponto de tráfico) da periferia não é ino-
cente. Ele está ali e tem uma função no crime. Às vezes, não é pegar uma arma para assaltar.
Ele exerce uma atividade no crime, ou está de olheiro. Leva e traz a droga para alguém. O
inocente não existe36.
34. Renato Santana, “Os policiais que agem na touca”, A Tribuna, 28 abr. 2010. Ver também São Paulo
sob achaque, 2011: 101.
35. Renato Santana, “Os policiais que agem na touca”, A Tribuna, 28 abr. 2010.
36. Ibidem.
• 65 •
6.
Análise quantitativa dos Crimes de Maio
1. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006 (2008).
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De acordo com o estudo, os dados permitiram construir uma série histórica com os
seguintes números de mortos por arma de fogo no mês de maio distribuídos por ano de
ocorrência2:
• maio de 2003: 923 mortos;
• maio de 2004: 723 mortos;
• maio de 2005: 546 mortos.
O número estimado de mortos por arma de fogo para 2006, continua o estudo,
tomando como parâmetro o ano de 2005, seria de 176 óbitos para o período de dez dias. No
entanto, se fosse considerada a tendência de redução do número de mortos, a estimativa
seria de 135 mortos. Considerando o número de mortos em maio de 2006, o estudo conclui
que “esse número é três a quatro vezes superior ao esperado em função dos anos anteriores”
(Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 9).
O estudo também analisa o perfil das vítimas do período. A análise se baseia na ocor-
rência de 401 episódios que tiveram como resultado 564 mortos por arma de fogo (Análise
dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 9). Há diferença entre
essa análise e o estudo do Cremesp, já que na análise do lav se consideram tanto a morte de
civis e agentes públicos como os feridos em ambos os casos3.
Um primeiro elemento que o estudo destaca é a relação elevada entre número de mor-
tos – 564 (58% dos casos) – e de feridos – 110 (11,3%) –, o que mostra o alto grau de letalidade
nos casos analisados, ainda que o estudo relativize essa informação por causa do critério
estabelecido para elaborar o estudo: mortes por arma de fogo. Outro aspecto a destacar é
que 90% das mortes correspondem a vítimas civis, um índice mais de 8,6 vezes maior em
relação aos agentes públicos (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio
de 2006, 2008: 9).
2. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 9.
3. Também existem algumas diferenças nos dados resultantes da própria dificuldade em ter acesso a
dados oficiais e fidedignos, no entanto a discrepância é pequena e não altera os resultados da análise.
• 68 •
Relat ório fin al
achaque e com as informações sobre o acordo entre a cúpula da Segurança Pública e o pcc
no dia 14 de maio.
Segundo o relatório do lav, fazendo uma análise dia a dia fica evidenciado que a maio-
ria das pessoas, entre mortos e feridos, foram vitimadas entre os dias 14 e 17 de maio, sendo
o dia 14 aquele de maior gravidade com um total de 144 vítimas – dessas, 107 mortos e 28
feridos eram civis. Outro elemento importante revelado pelo lav é a evolução de mortos e
feridos, que é desigual ao longo do tempo. A relação entre mortos e feridos durante os pri-
meiros dias fica entre 2 e 4, elevando-se de forma brusca a partir dos dias 16 e 17 (16,2 e 11,3,
respectivamente). Segundo o estudo, isso “indica um grau de letalidade muito superior nes-
tes dois últimos dias, que seria compatível com uma atuação diferenciada, mais condizente
com execuções sumárias que deixam muitas mortes e poucos feridos” (Análise dos impactos
dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 10-1).
Por fim, com relação à distribuição temporal, a análise ressaltou que a morte dos agen-
tes públicos se concentrou nos dias 12 e 13 de maio, e a morte de civis, dos dias 14 a 17. Esse
cenário é compatível com uma dinâmica na qual nos primeiros dias houve uma série de
ataques do pcc, que resultou nas mortes dos agentes públicos, e nos dias seguintes uma
série de intervenções de represália realizadas por policiais. Segundo o estudo: “A conclusão
mais clara é que a letalidade dos civis não acontece durante os ataques contra os policiais ou
agentes penitenciários, mas num momento posterior, provavelmente em intervenções rea-
lizadas por policiais”. Um indicador dessa dinâmica é dado pela relação entre civis mortos e
agentes públicos mortos: esse índice é de 1,2 no dia 12 de maio, elevando-se a partir do dia
14 até chegar a 21,7 no dia 17 de maio (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo
em maio de 2006, 2008: 11).
A tabela a seguir resume as informações apresentadas.
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Continuação
19/05/2006 13 0 0 0 - -
20/05/2006 6 7 0 0 0,9 -
21/05/2006 2 0 0 0 - -
Sem data 80 3 4 0 - 20
Total 505 97 59 13 5,1 8,6
Fonte: Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 11.
4. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 12.
• 70 •
Relat ório fin al
Tabela 3. Tipologia dos fatos e número de vítimas de acordo com tipo e tipologia
Execução sumária:
44 11 3 0 50 7
individual
Execução sumária:
38 9,5 16 2 35 27
grupo não encapuzado
Execução sumária:
32 8 1 0 53 31
grupo encapuzado
Execução sumária:
3 0,7 1 0 4 0
policiais
Ataques contra
12 3 9 1 10 3
delegacias ou batalhões
Conflitos
5 1,2 0 0 6 0
interindividuais
Acidentes ou bala
3 0,7 1 0 2 0
perdida
Outros 15 3,7 1 0 21 19
Desconhecidos 174 43,4 11 3 206 6
Total 401 100 59 13 505 97
Fonte: Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 13.
Do ponto de vista do perfil das vítimas, 96% das pessoas mortas eram homens e mais
de 80% eram jovens, com menos de 36 anos. A idade média dos mortos, considerando as
informações disponíveis, era de 27 anos. O perfil das vítimas dos Crimes de Maio, portanto,
coincide com o perfil das vítimas de homicídios no Brasil: pessoas jovens do sexo mascu-
lino. Do ponto de vista do nível educacional, 70% delas estudaram até o primeiro grau e
somente três dos mortos tinham estudos universitários. Também nesse aspecto se confirma
o perfil característico das vítimas de homicídio no país: pessoas com perfil socioeconômico
de baixa renda. Enfim, o estudo apresenta informações sobre antecedentes criminais das
vítimas: só 6% das vítimas fatais tinham antecedentes criminais. Desse modo, os pesquisa-
dores concluem que “os confrontos não aconteceram na tentativa de prender suspeitos co-
nhecidos com mandato judicial, mas em combates com opositores, quase sempre desconhe-
cidos” (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 18-9).
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Um elemento final apresentado pelo estudo se refere à análise dos laudos necroscó-
picos das vítimas fatais. Foram analisados 447 laudos relativos a mortos por arma de fogo.
O propósito dessa análise era “o exame de possíveis indícios de execuções sumárias nos
episódios acontecidos” (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de
2006, 2008: 19).
Nesse sentido são apresentados quatro parâmetros importantes para estabelecer os
indícios de execução5:
• número de disparos: um elevado número de disparos é um claro indício de execução;
• localização anatômica dos orifícios de entrada dos projéteis: um elevado número de
disparos na cabeça é um forte indício de execução sumária, assim como disparos nas
costas podem revelar que a vítima estava fugindo quando foi alvejada;
• caracterização da distância dos disparos: disparos à queima-roupa ou a menos de cin-
quenta centímetros são também indícios de execução (nesses casos, nos corpos das
vítimas aparecem orifícios de entrada com marcas de tatuagem, esfumaçamento ou
queimadura);
• presença de outras lesões: lesões não relacionadas com a morte por arma de fogo po-
dem revelar que as vítimas foram golpeadas ou torturadas antes de serem executadas.
Em relação ao número de orifícios de entrada de disparos, constatou-se uma média
de 4,8 disparos por vítima, um número bastante elevado, compatível com a suspeita de exe-
cuções sumárias. Outros dados relevantes apresentados que reforçam essa hipótese são que
mais da metade das vítimas receberam mais de três disparos e 10% delas foram atingidas
por mais de oito disparos (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio
de 2006, 2008: 19).
Uma análise da localização anatômica dos disparos revelou que a área mais atingida
foi o tronco; há, entretanto, uma proporção elevada de vítimas que receberam disparos de
arma de fogo na cabeça, o que denotaria a intenção de matar e, portanto, um indício claro
de execução6. Segundo o estudo, 60% das vítimas foram atingidas por pelo menos um dis-
paro na cabeça. Outro dado revelador de sinais de execução relaciona-se ao alto número de
disparos na região posterior da cabeça, uma área de alta letalidade e que normalmente não
é alvejada durante um confronto – o estudo mostrou que 27% das vítimas foram atingidas
nessa região. E 57% delas apresentam pelo menos um disparo na região posterior do corpo,
o que é compatível com a presunção de que o alvejado estaria fugindo e não em situação
de confronto (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006,
2008: 20-1).
5. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 19.
6. Para a análise de localização dos disparos foram examinados 362 casos, aqueles que apresentavam
informações necessárias a esse respeito no laudo necroscópico (Análise dos impactos dos ataques do
pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 19).
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Relat ório fin al
Com relação à distância dos disparos, 10% dos casos apresentaram marcas de disparos
à queima-roupa (orifícios de entrada com tatuagem, esfumaçamento ou queimaduras) –
segundo o estudo, “o sinal mais claro de execução”. Por fim, 17% das vítimas fatais (75 casos)
apresentavam outras lesões diferentes das causadas por arma de fogo e que poderiam carac-
terizar a ocorrência de tortura antes da morte (Análise dos impactos dos ataques do pcc em
São Paulo em maio de 2006, 2008: 21).
De acordo com o estudo, com base na análise desenvolvida a partir dos laudos necros-
cópicos e dos boletins de ocorrência do período, é possível afirmar que os ataques contra
os agentes e as instituições de segurança pública ocorreram nos primeiros dias, fundamen-
talmente nos dias 12 e 13 de maio. Por sua vez, a morte de civis como resultado de con-
frontos com a polícia, ou por execução sumária por grupos de encapuzados, tiveram lugar
num momento posterior, principalmente entre os dias 14 e 17 de maio. As características de
atuação desses grupos de encapuzados correspondem àquelas de grupos de extermínio nos
quais existe um registro histórico de participação de policiais. A conclusão fundamental
das evidências existentes é que a maioria das mortes de civis ocorreu como resultado de
intervenções posteriores aos confrontos com policiais, que podem ser qualificadas como
represálias contra a morte de policiais. Essas mortes resultaram tanto de ações oficiais da
polícia quanto da ação de grupos de encapuzados. Essa conclusão “reforça a suspeita de que
agentes públicos possam ter participado em grupos de extermínio para vingar a morte dos
companheiros” (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006,
2008: 26).
• 73 •
7.
A imprensa e os Crimes de Maio
A nalisaremos a abordagem dos Crimes de Maio1 realizada pelos jornais Folha de S.Paulo
e O Estado de S. Paulo (Estadão). Buscamos refletir sobre a forma como a imprensa,
representada por esses jornais, apresentou os fatos e as pessoas envolvidas nos crimes, prin-
cipalmente no que concerne às vítimas fatais.
A narrativa jornalística começa no dia 13 de maio ao apresentar a descoberta de um
suposto plano de rebelião que visava a tomar como reféns as pessoas que estariam dentro do
sistema prisional para as visitas do Dia das Mães. A suposta descoberta desse plano por par-
te do governo do estado de São Paulo levou à transferência de 765 detentos para o presídio
de Presidente Venceslau. Segundo reportagem publicada no caderno “Cotidiano” da Folha
no dia 13 de maio, “por ordem do secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu
Filho, após os ataques, todos os locais onde estão lotadas as forças de segurança do Estado
ficaram em alerta”; a matéria já contabilizava dois guardas-civis, um pm e três policiais civis
assassinados e vários baleados2.
No dia 14 de maio o Estadão dedicou cinco páginas do seu caderno “Cidades” aos
ataques, trazendo um balanço de trinta mortos, sendo “seis policiais civis, doze policiais
militares, três guardas-civis, quatro agentes carcerários, um civil (pessoa comum)3 e quatro
criminosos (supostos integrantes do pcc)”4.
Em outra matéria intitulada “Governo admite ‘momento de crise’”, o secretário de Se-
gurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, afirmou que “essa reação já era previsível.
Com base nisso, liberamos o uso de armas mais pesadas”. Já o governador do estado, Cláu-
1. Para facilitar a leitura, adotaremos o nome pelo qual os jornais são mais conhecidos: Folha e Estadão.
2. “pcc ataca e mata policiais após transferências”, Folha de S.Paulo, 13 de maio 2006. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1305200601.htm>.
3. Tanto na Folha quanto no Estadão, a denominação “vítima civil” é usada para se referir a familiares
de policiais ou a pessoas que foram assassinadas junto com esses últimos.
4. “Guerra do pcc deixa 30 mortos na maior ofensiva do crime”, O Estado de S. Paulo, 14 maio 2006.
Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060514-41116-nac-49-cid-c1-not>.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
dio Lembo, segundo a mesma matéria, afirmou que “a população pode ficar tranquila e
confiar em suas polícias. Elas preservarão a ordem pública”5.
Também no dia 14 de maio a Folha noticiava que ocorreram trinta mortes, 63 ataques e
24 rebeliões em todo o estado, dedicando oito páginas do caderno “Cotidiano” aos eventos.
A imagem de abertura do caderno (ver Imagem 1, na p. 50 deste relatório) é de um boné da
Polícia Militar todo ensanguentado em cima do banco de uma viatura; na legenda se cons-
tata que se trataria da cena do assassinato de um policial militar na ponte dos Remédios,
na cidade de Osasco. As categorias utilizadas para qualificar os mortos assumem a seguinte
configuração: “doze policiais militares, seis policiais civis, quatro agentes penitenciários,
três guardas-civis municipais e quatro supostos criminosos”6.
Na edição do dia 15 de maio a Folha destaca que o governador “[Cláudio] Lembo diz
que já esperava ações há vinte dias” e, em outra matéria, que “policiais afirmam que não
foram alertados”7. Já o Estadão publicava no mesmo dia que “a ordem dos chefes aos poli-
ciais: [era] não tenham dó” e que “a reação policial: [deixou] catorze mortos em 24 horas”, e
atualizava o número de mortos, sendo: “nove policiais civis, dezoito policiais militares, três
guardas-civis, cinco agentes penitenciários, três civis (pessoa comum) e dezenove crimino-
sos (supostos integrantes do pcc)”8.
O Estadão alterou as categorias usadas para tratar das vítimas fatais na sua edição do
dia 16 de maio, abandonando o critério da dúvida explicitado na frase “supostos integran-
tes do pcc” a respeito do pertencimento das vítimas à organização criminosa e adotando
o termo agressores, ficando assim a contagem: “quinze mortos em presídio, seis policiais
civis, 22 policiais militares, quatro civis, três guardas-civis, oito agentes carcerários e 38
agressores”, totalizando 96 mortos9.
Na mesma edição, a cobertura dos fatos ocupou dez páginas do caderno “Cidades” e
o jornal constatou que, “em doze horas, polícia mata treze suspeitos nas ruas”. Nesse mo-
mento o Estadão apresenta a disposição dos policiais de promover uma resposta violenta
aos ataques sofridos, e a reportagem conclui: “Desde que o pcc iniciou os ataques tem sido
assim. Os homens da polícia que não estão acuados têm sangue nos olhos. Querem vingan-
ça e não escondem o desejo de matar. Inclusive as mulheres”; a reportagem é assinada por
Álvaro Magalhães10.
5. “Governo admite ‘momento de crise’”, O Estado de S. Paulo, 14 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060514-41116-nac-51-cid-c3-not>.
6. “Maior ataque do pcc faz 30 mortos em sp”, Folha de S.Paulo, 14 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/05/14/497/>.
7. “Lembo diz que já esperava ações há 20 dias”, Folha de S.Paulo, 15 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1505200615.htm>.
8. “A reação policial: 14 mortos em 24 horas”, O Estado de S. Paulo, 15 maio 2006. Disponível em:
<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060515-41117-nac-30-cid-c3-not>.
9. “Dia de terror em sp”, O Estado de S. Paulo, 16 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.estadao.
com.br/pagina/#!/20060516-41118-nac-30-cid-c1-not>.
10. “Em 12 horas, polícia mata 13 suspeitos nas ruas”, O Estado de São Paulo, 16 maio 2006. Disponível
em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060516-41118-nac-37-cid-c8-not>.
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Relat ório fin al
A Folha noticiava nesse dia que “quinze suspeitos morrem no quarto dia”; a reportagem
também narrava a comemoração e as ameaças feitas no Orkut em comunidades que home-
nageavam as forças policiais11. No mesmo jornal foi publicada a matéria de Cláudia Collucci,
com colaboração de João Carlos Magalhães, com o título “Familiares acusam policiais por
mortes”, em que a reportagem relatava o assassinato de dois jovens, de 16 e 18 anos, na zona
sul da capital paulista. Amigos e familiares das vítimas acusavam policiais de participar dos
assassinatos, sendo que, nos “dois casos de morte, testemunhas disseram que os assassinos
saíram de um carro policial […] vestidos com toucas ninja e capas pretas”. Também era re-
latado o assassinato de dois irmãos na zona leste, em circunstâncias similares. É importante
salientar que essa era a primeira matéria em que os familiares contestavam a versão oficial
de que todos os mortos nas ações policiais estavam envolvidos nos ataques. Ainda segundo
a reportagem, a “pm informou que não recebeu nenhuma denúncia referente aos casos, re-
gistrados como homicídio simples, e que, se recebê-la, vai ‘tomar providências necessárias’
para a investigação”12.
Imagem 4. Jornal Folha de S.Paulo, terça-feira, 16 maio 2006, caderno Cotidiano, p. c15.
11. “Quinze suspeitos morrem no quarto dia”, Folha de S.Paulo, 16 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200624.htm>.
12. “Familiares acusam policiais por mortes”, Folha de S.Paulo, 16 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200625.htm>.
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Imagem 5. Jornal Folha de S.Paulo, terça-feira, 16 maio 2006, caderno Cotidiano, p. c9.
Tudo indica que a reação policial aos ataques do pcc, que vitimaram 44 pessoas no Estado,
vai continuar. Ao mesmo tempo que a polícia resolve endurecer, o número de ataques da
facção diminui muito. Um exemplo disso é que, das 22 horas de anteontem às 10 horas de
13. “Divergência de autoridades retarda reação”, Folha de S.Paulo, 16 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200643.htm>.
14. “‘A caçada continua’ afirma polícia. E mata 32”, O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006. Disponível em:
<http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060517-41119-nac-36-cid-c7-not>.
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Relat ório fin al
ontem, apenas um pm foi assassinado, o 23o desde o início da guerra do pcc. Já o número
de suspeitos mortos aumenta vertiginosamente. No primeiro dia, a polícia havia matado
quatro. No segundo dia o número subiu. No terceiro, chegou a 39. E quase dobrou ontem15.
Passadas mais de 24 horas após o pcc ter determinado, de dentro das prisões de segurança
máxima e com uso do telefone celular, o fim da afronta ao estado, a [Secretaria de] Segu-
rança Pública não responde também às seguintes questões: o local exato de cada uma das 71
mortes nos “confrontos”, como elas ocorreram, se os feridos pela polícia foram encaminha-
dos a hospitais ou se os corpos ficaram nos locais dos embates para a realização de perícia,
quantas armas de policiais e de acusados foram apreendidas para exame de balística e a
ficha de antecedentes criminais dos mortos18.
[...] a polícia está totalmente sob controle […] Todas as noites há confrontos nas ruas da
cidade e esses confrontos foram exasperados nesses dias. Mas vingança, não. [Complemen-
tando sua análise sobre os acontecimentos, o mandatário afirmou:] [...] é possível que tenha
havido tragédias, mas pelo que estou informado não houve nada que fosse além dos con-
frontos diretos19.
15. Ibidem.
16. “Em 12 horas, a polícia mata 33 suspeitos e prende 24”, Folha de S.Paulo, 17 maio 2006. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1705200601.htm>.
17. “Moradores acusam pm de matar inocente”, Folha de S.Paulo, 17 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1705200627.htm>.
18. “Em 12 horas, a polícia mata 33 suspeitos e prende 24”, Folha de S.Paulo, 17 maio 2006. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1705200601.htm>.
19. “Burguesia terá que abrir a bolsa”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://www1.
folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121683.shtml>.
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Vale salientar que na mesma ocasião Lembo culpou a enorme desigualdade social do
país pela violência e pelo crime organizado, dizendo que a “burguesia terá que abrir a bolsa”
para reduzir a desigualdade20.
Na mesma edição, o jornal atualizava os dados, aumentando para 93 os suspeitos mor-
tos em confronto. A reportagem afirmava que a “polícia já matou mais que em dois meses”,
uma média de 15,5 mortos por dia em seis dias21. Em outra reportagem, realizada por Fábio
Schivartche e Lilian Christofoletti, o procurador-geral de justiça do estado de São Paulo,
Rodrigo César Pinheiro, se comprometeu a apurar as mortes decorrentes das ações poli-
ciais: “todo caso de morte precisa ser apurado. Vamos acompanhar um por um”22. O procu-
rador-geral também se comprometeu a investigar o suposto acordo entre o pcc e o governo
do estado para cessar os ataques.
Na sequência, mais três reportagens narravam o outro lado da versão oficial. Fami-
liares e amigos negavam envolvimento das vítimas das chacinas com o crime organizado,
responsabilizavam policiais pelas mortes e apontavam as inconsistências na narrativa oficial
dos fatos. Alex, irmão de uma das vítimas, estranhava a versão dos policiais:
Eles dizem que houve resistência, mas as duas armas supostamente encontradas com eles
estavam intactas, nenhum projétil deflagrado. Dizem que acharam um bilhete do pcc na
meia dele, e ele saiu de casa de chinelos. Dizem que eles iriam atacar uma das bases da pm
às 4h e eles foram mortos às 5h, sem nenhum ataque registrado. Nada bate23.
Outra reportagem relata que os familiares puseram “as cinco carteiras de trabalho [...]
lado a lado sobre a mesa do delegado do 55o Distrito Policial” e afirmaram que os mortos
“eram trabalhadores”. As cinco vítimas foram alvejadas por pistola em uma esquina do bair-
ro de São Mateus, na zona leste da capital paulista24.
Já no Estadão, edição de 18 de maio, constava que, “em 5 dias, três meses de mortes”,
comparando os dados de então com os dados de mortos pela polícia no último trimestre
de 2005, quando foram assassinadas 65 pessoas. A reportagem levantou que “foram regis-
tradas oito chacinas, com 31 mortos desde sábado [13 de maio]”. Segundo a matéria, ao ser
questionado sobre o número de mortos, o delegado-geral Marco Antônio Desgualdo disse
que “todos os 93 mortos pela polícia […] reagiram à prisão ou participaram dos ataques
contra a polícia […] [e] que a ação repressiva da polícia vai continuar”. A reportagem ainda
20. Ibidem.
21. “Polícia já matou mais que em dois meses”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/05/18/15/>.
22. “Procurador-geral irá apurar mortes em ações policiais”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível
em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/05/18/15/>.
23. “Para família de morto, elo com o pcc é ficção”, “Parentes de rapaz contestam pm” e “Testemunhas
de chacina acusam policiais”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.folha.
uol.com.br/fsp/2006/05/18/15/>.
24. Ibidem.
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Relat ório fin al
apontou uma série de inconsistências na ação policial referente a casos em que o assassinato
foi registrado como de autoria desconhecida: falta de arrolamento de testemunhas e não
preservação do local do crime para realização de perícia25.
Em seu editorial intitulado “A reação policial”, o Estadão afirmava que “a violência dos
ataques sofridos justificou a reação policial” e que “não restava outro caminho, a não ser
aplicar a lei de talião”. Ao tratar das chacinas, o texto adotava o seguinte tom: “Não se pode
afirmar que as matanças denunciadas pelos jornais tenham sido cometidas por policias”.
Declarava ainda que, passados os momentos de maior violência dos ataques da organização
criminosa, “já não se justifica o uso indiscriminado das armas de fogo”26.
Na matéria de capa do dia 19 de maio, a Folha trouxe a fala do comandante-geral da
Polícia Militar, Elizeu Eclair Borges, que afirmou que a “polícia não matou inocente” e que
“70% dos mortos têm uma longa ficha criminal”27. Em outra matéria o jornalista André
Caramante atualizava o número de suspeitos mortos pela polícia para 107 em sete dias,
ao mesmo tempo que constatava que “desde quarta-feira [17 de maio] nenhum agente de
segurança do estado (policiais civis, militares ou agentes penitenciários) foi assassinado”28.
A tônica das matérias assinadas por Caramante foi assumindo um tom bastante crítico às
declarações do governo e exigia mais informações sobre os fatos.
O Estadão, em editorial do dia 20 de maio, assumindo um tom mais crítico, constatava
que, “desde que foi proclamada a volta à normalidade na cidade de São Paulo, na terça-feira
[16 de maio], foram mortos pela polícia 77 suspeitos”29. Ao comentar as declarações feitas
pelo comandante-geral da Polícia Militar de que “70% dos mortos têm uma longa ficha cri-
minal”30, o texto argumentava que “o fato de alguém ter antecedentes na polícia não basta
para justificar sua morte” e questionava “qual a explicação para os 30% restantes?”. O edito-
rial concluía que “só a legítima defesa justifica que policiais atirem para matar”31.
Em outra matéria, realizada por Mariana Pinto, Natália Zonta e Roberta Pennafort, as
jornalistas questionavam: “a dúvida: quantos inocentes mortos[?]”. Além disso, levantavam
a suspeita de que vários mortos teriam sidos executados, “apesar de o Estado sustentar que
nenhum inocente foi assassinado, […] há registros de pessoas com ferimentos característi-
25. “Em 5 dias, três meses de mortes”, O Estado de S. Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.
estadao.com.br/pagina/#!/20060518-41120-nac-43-cid-c10-not>.
26. “A reação policial”, O Estado de S. Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.
br/pagina/#!/20060518-41120-nac-3-edi-a3-not>.
27. “Polícia não matou inocentes, diz coronel”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121735.shtml>.
28. “Polícia matou 107 suspeitos em sete dias”, Folha de S.Paulo, 19 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1905200615.htm>.
29. “O papel da polícia”, O Estado de S. Paulo, 20 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.estadao.
com.br/pagina/#!/20060520-41122-nac-3-edi-a3-not>.
30. “Polícia não matou inocentes, diz coronel”, Folha de S.Paulo, 18 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121735.shtml>.
31. “O papel da polícia”, O Estado de S. Paulo, 20 maio 2006. Disponível em: <http://acervo.estadao.
com.br/pagina/#!/20060520-41122-nac-3-edi-a3-not>.
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cos de execução: perfurações na cabeça, lado esquerdo do tórax (coração) e costas, muitos
à queima-roupa”32.
No dia seguinte, 21 de maio, a Folha noticiava que “grupo mascarado volta a atacar em
São Paulo”, e detalhava: “vestidos com toucas ‘ninjas’ e blusões pretos, homens já mataram
pelo menos vinte pessoas desde segunda-feira passada”, informando que o uso dessas toucas
está historicamente ligado a grupos de extermínio com participação de policiais. A repor-
tagem relatava que:
[...] testemunhas viram os assassinos saírem de carros da Força Tática da pm [e que] depois
da execução […] os policiais foram até o carro, tiraram as máscaras e os blusões e, em se-
guida, de farda, se reapresentaram aos moradores. Ofereceram ajuda para levar o jovem ao
hospital, onde ele morreu, e recolheram as cápsulas33.
32. “A dúvida: quantos inocentes mortos”, O Estado de S. Paulo, 20 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060520-41122-nac-66-cid-c10-not>.
33. “Grupo mascarado volta a atacar em São Paulo”, Folha de S.Paulo, 21 maio 2006. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2105200615.htm>.
34. “Ouvidoria apura ação de grupos de extermínio em nove mortes”, O Estado de S. Paulo, 22 maio
2006. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060522-41124-nac-25-cid-c1-not>.
35. “mpe exige lista de mortos em 72 horas”, O Estado de S. Paulo, 23 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060523-41125-spo-34-cid-c1-not>.
36. “Estado afirma que 31 dos 110 mortos não têm ligação com o pcc”, Folha de S.Paulo, 24 maio 2006.
Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/05/24/2/>.
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Relat ório fin al
do dia 24 de maio da Folha, o “governo do estado agora afirma que, dos 110 mortos em
ações policiais, 79 tinham ligação com a facção criminosa, mas não divulga lista”. Em outra
matéria, na mesma edição, o jornal afirmava que “26% dos mortos tinham ficha limpa”. O
levantamento contemplou o universo de 38 mortos identificados pela polícia.
No dia 25 de maio, o Estadão atualizou o número de denúncias na Ouvidoria da Po-
lícia: “aumentam de doze para dezenove o número de mortes suspeitas e de autoria desco-
nhecida”37. O ouvidor da polícia, Antônio Funari Filho, afirmou à reportagem:
[...] a cada dia estamos nos deparando com mais informações que levam a crer que real-
mente há um grupo de extermínio que não está apenas atuando em São Paulo, mas nas
cidades vizinhas […] as características são as mesmas: pessoas com roupas escuras, com
toucas ninjas e armas de grosso calibre38.
Apesar dos vários indícios de que ocorreram excessos nas ações policiais, cerca de
setenta “promotores [fizeram] carta de apoio à polícia”. Na carta os signatários reconheciam
a “eficiência da resposta da polícia, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem
pública violada […] [e] certos de que eventuais excessos praticados individualmente serão
objeto de apuração devida pelos órgãos responsáveis”. A reportagem que saiu na edição de
27 de maio na Folha, assinada por Gilmar Penteado e Regiane Soares, chamava a atenção
para o fato de que “muitos desses promotores criminais que assinaram o documento serão
os responsáveis por denunciar ou não os policiais em caso de abuso”39.
Na mesma edição, o jornal noticiou que o secretário de Administração Penitenciária,
Nagashi Furukawa, pediu demissão depois de discordar do secretário de Segurança Pública,
Saulo de Castro Abreu Filho, um dos representantes da linha dura do governo. Furukawa
também admitiu ao jornal que negociou com o pcc para cessar os ataques, mas negou que
tenha fechado um acordo40. Esse fato podia ser entendido como a resolução dos impasses
dentro da cúpula do governo do estado a favor da linha dura.
“Dos 132 mortos, 117 são da periferia”. Essa era a constatação do Estadão na edição do
dia 27 de maio. Os dados foram levantados pelo Conselho Regional de Medicina a partir
dos laudos dos mortos que deram entrada no iml no período de 12 a 20 maio e “incluem to-
dos os corpos que tiveram ferimentos a bala e não faz distinção se se trata de um homicídio
ou suicídio, se a vítima é policial ou civil”41.
37. “Ouvidoria: 19 mortos por grupos de extermínio”, O Estado de S. Paulo, 25 maio 2006. Disponível
em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060525-41127-nac-43-cid-c4-not>.
38. Ibidem.
39. “Promotores fazem carta a favor da polícia”, Folha de S.Paulo, 27 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2705200609.htm>.
40. “Ex-secretário diz que negociou com o pcc”, Folha de S.Paulo, 27 maio 2006. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2705200606.htm>.
41. “Dos 132 mortos, 117 são da periferia”, O Estado de S. Paulo, 25 maio 2006. Disponível em: <http://
acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060527-41129-nac-68-cid-c6-not>.
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Imagem 6. Jornal Folha de S.Paulo, sábado, 27 maio 2006, caderno Cidades/Metrópole, p. c6.
Desse modo, podemos constatar que o grosso da violência esteve restrito à perife-
ria, como mostrou o levantamento, ou seja, tanto agentes de estado como civis eram em
seu conjunto pessoas das classes populares que foram envolvidas nessas ações de violência.
Ações que ficaram amplamente conhecidas como os “Crimes do pcc” e que somente a par-
tir da intervenção ativa por parte dos familiares das vítimas civis passaram a ser denomina-
das Crimes de Maio. No entanto, isso não significou um avanço na apuração dos fatos e na
realização de justiça.
Em relação à atitude dos jornais, o Estadão se notabilizou por defender uma ação dura
da polícia, só assumindo uma postura mais crítica a partir das inúmeras evidências que
apontavam o uso excessivo da força por essa instituição. Contudo, mesmo nesse momento
tratou as vítimas não vinculadas às forças policiais como “agressores”. Já a Folha assumiu um
discurso mais moderado e tiveram grande destaque as matérias assinadas por André Cara-
mante, que questionavam as declarações oficiais, exigiam do governo maiores informações
sobre os fatos e publicaram as versões dos familiares das vítimas.
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Do luto à luta: o surgimento do Movimento
Mães de Maio1
O movimento Mães de Maio é uma rede de Mães, Familiares e Amig@s de vítimas da vio-
lência do Estado brasileiro (principalmente da Polícia), formado aqui no estado de São Pau-
lo a partir dos famigerados Crimes de Maio de 2006. Foi a partir da Dor e do Luto gerados
pela perda de noss@s filh@s, familiares e amig@s que nos encontramos, nos reunimos e
passamos a caminhar juntas.
Nossa missão é lutar pela Verdade, pela Memória e por Justiça para todas as vítimas da
violência contra a população Pobre, Negra, Indígena e contra os Movimentos Sociais brasi-
leiros, de Ontem e de Hoje. Verdade e Justiça não apenas para @s mort@s e desaparecid@s
dos Crimes de Maio de 2006 ou dos Crimes de Abril de 2010, mas para todas as vítimas
do massacre contínuo que o Estado pratica historicamente no país. Nosso objetivo maior
é construir, na Prática e na Luta, uma sociedade realmente Justa e Livre (Movimento Mães
de Maio, 2011: 20).
Uma das consequências dos Crimes de Maio de 2006 foi o surgimento do Movimento
Mães de Maio, composto de mães, parentes e vítimas de violência de Estado, particularmen-
te da violência policial. O principal objetivo do movimento era, e continua sendo, a luta pela
verdade, pela memória e pela justiça para todas as vítimas da violência, denunciando espe-
cialmente a violência contra os pobres, os negros e os habitantes das periferias (Movimento
Mães de Maio, 2011).
Inicialmente um dos principais objetivos do movimento foi buscar a verdade sobre
as ocorrências de maio de 2006, denunciando a versão oficial do massacre, caracterizada
como “ataques do pcc”, e mostrando que o Estado era o principal agente da violência, pelo
assassinato de centenas de vítimas inocentes mortas pelas forças de segurança do estado de
São Paulo.
1. O título deste tópico é tomado do livro Do luto à luta. Movimento Mães de Maio, Movimento Mães
de Maio, 2011.
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Os Crimes de Maio certamente foram o episódio mais emblemático deste contexto [de
violência]. Entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, no estado de São Paulo, policiais e grupos
paramilitares de extermínio promoveram um dos mais vergonhosos escândalos da histó-
ria brasileira. Em uma cínica e mentirosa “onda de resposta” ao que se chamou na grande
imprensa “ataques do pcc”, foram assassinadas no mínimo 493 pessoas – que hoje constam
entre mortas e desaparecidas (Movimento Mães de Maio, 2011: 19).
Assim como aconteceu durante a Ditadura Civil-Militar brasileira, e tantos outros episó-
dios violentos cometidos pelo Estado, os Crimes de Maio de 2006 cometidos por agentes
policiais também permanecem impunes, nesta tal democracia. Resultado: a violência poli-
cial de lá para cá tem se intensificado (Movimento Mães de Maio, 2011: 21).
Sofri muito, mas muito mesmo. Imagine uma mãe receber a notícia da morte de seu filho
pelo rádio! Passei alguns dias sem comer, sem dormir, tentava uma explicação: por que
fizeram isso? Aconteceu. Era um trabalhador. Durante quarenta dias eu vegetei, acabei me
hospitalizando, mais ou menos por dez dias (Movimento Mães de Maio, 2011: 25).
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Relat ório fin al
Segundo essa mãe, durante esse processo de profunda depressão uma coisa extraor-
dinária aconteceu: a figura de Rogério apareceu diante dela, puxou-a da cama e arras-
tou-a. No começo ela não conseguia acreditar que tivesse visto o filho bem na sua frente.
Mas no dia seguinte comprovou que nos braços tinha as marcas deixadas pelo filho e teve
de acreditar no que acontecera (Movimento Mães de Maio, 2011: 25). Débora recordava
esse momento:
Quando me puxou da cama, ele disse: “Mãe, luta pelos que estão vivos. Eu não volto mais.
Aqui não é o seu lugar, não é para a senhora ficar aí”. Foi quando comecei a ir atrás das ou-
tras mães (Movimento Mães de Maio, 2016: 39).
Dias depois do primeiro encontro, Débora procurou, junto com as outras mães, Vera
Lúcia Gonzaga dos Santos, mãe de Ana Paula Gonzaga dos Santos, assassinada grávida de
nove meses com seu marido (Ana Paula tinha marcado o nascimento da filha Bianca para o
dia seguinte na Santa Casa da cidade). Foi a partir dessas quatro mulheres que lutavam por
justiça pelo assassinato dos filhos que surgiu o Movimento Mães de Maio.
Uma das primeiras reivindicações do movimento foi o reconhecimento de Bianca
também como uma das vítimas dos Crimes de Maio. Na época, e fundamentalmente a par-
tir do trabalho desenvolvido pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), chegou-se
a uma estimativa de 493 mortos por arma de fogo durante o período. Vera, avó de Bianca,
e as outras mães reivindicavam que Bianca fosse reconhecida como a vítima número 494.
Era um reconhecimento simbólico, mas de grande importância para a família de Ana Paula
(Movimento Mães de Maio, 2016: 73).
Foram assim dados os primeiros passos, transformando o luto individual numa luta
coletiva, como refletia o título de uma das primeiras publicações do movimento. As mães
das vítimas foram se reconhecendo como grupo, amadurecendo e se transformando nas
lutas diárias em busca de justiça em um coletivo independente. Essas mulheres, como afir-
mava Arthur Stabile, se juntaram, caminharam lado a lado e também ofereceram ajuda
e solidariedade a outras famílias de vítimas da violência de Estado (Movimento Mães de
Maio, 2016: 40).
O movimento passou, pouco a pouco, a ganhar visibilidade, participando dos debates
públicos sobre violência policial e fazendo intervenções na mídia exigindo justiça. Como
afirma Bruno Paes Manso: “Iniciava-se um novo movimento contra a violência policial,
amparado e impulsionado pela dor das mães enlutadas, que eram obrigadas a se calar diante
do assassinato dos seus filhos” (Movimento Mães de Maio, 2016: 73-4).
Assim que o Movimento Mães de Maio ganhou maior visibilidade na sua luta por jus-
tiça, as reações contrárias também começaram, mediante intimidações e perseguições para
tentar silenciar as reivindicações do movimento. Muitas de suas integrantes foram ameaça-
das e acusadas por supostos crimes.
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Algumas dessas pessoas [afirmou a promotora] faleceram nos Crimes de Maio, e os direitos
[de gerenciar biqueiras] são transmitidos aos familiares, que por vezes gerenciam ou até
mesmo arrendam os pontos de tráfico de drogas2.
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As mortes de Edivaldo Barbosa de Andrade, Israel Alves de Souza e Fábio de Lima Andrade,
a tentativa de homicídio de Eduardo Barbosa de Andrade e Fernando Elza e a ineficácia
do Estado em identificar e responsabilizar os responsáveis por tais atos evidenciam o des-
cumprimento de inúmeras obrigações previstas em tratados internacionais incorporados
ao ordenamento jurídico pátrio e poderão ocasionar a responsabilização internacional do
Brasil” (Conectas Direitos Humanos, 2009: 29).
O Brasil não cumpriu, segundo o pedido, suas obrigações internacionais no que diz
respeito à proteção à vida, à integridade pessoal e à proteção judicial consagradas no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos e nos artigos da Convenção Americana de Direi-
tos Humanos. Para os autores do pedido ficou “exaustivamente comprovado o desrespeito
às obrigações internacionais do Estado brasileiro no caso”; isso seria suficiente para que o
Estado respondesse internacionalmente pelo não cumprimento de suas obrigações (Conec-
tas Direitos Humanos, 2009: 29-30).
O pedido afirma que, ainda que do ponto de vista formal tenha havido um inquérito
policial,
[...] as investigações se limitaram a poucas diligências para oitiva de familiares, sem nem ao
menos aprofundar investigações a respeito das reiteradas indicações de que havia policiais
envolvidos ou investigar os fatos no contexto em que ocorreram (Conectas Direitos Huma-
nos, 2009: 31).
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morais e materiais contra o Estado relacionadas aos Crimes de Maio de 2006. Essas ações,
como destaca a denúncia, ainda não tiveram um julgamento definitivo no ano de 2017, mas
na primeira instância todas elas foram julgadas como improcedentes. No caso de duas das
ações a decisão da segunda instância foi parcialmente aceita, reconhecendo a responsabili-
dade do Estado (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015: 55).
Como afirma a denúncia:
[...] foram tentadas todas as formas de esgotamento dos recursos internos, seja na esfera
civil, seja na esfera penal, para que as graves violações sofridas pelas vítimas fossem repa-
radas e os responsáveis punidos. Nenhuma delas – passados nove anos dos crimes e cinco
da interposição das ações cíveis e do pedido de federalização – deu qualquer resultado,
superando qualquer noção de duração razoável ou justificada dos processos, o que acaba
por agravar a situação de dor, desesperança e injustiça dos familiares (Defensoria Pública
do Estado de São Paulo, 2015: 57).
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[...] seja por medo, má-fé ou incompetência, nenhum dos inquéritos policiais conduzidos
pelas distritais locais da Polícia Civil de São Paulo seguiu os padrões mínimos de uma in-
vestigação adequada. O Ministério Público Estadual tampouco exigiu o rigor e as diligên-
cias necessárias em casos dessa natureza e o Poder Judiciário do Estado de São Paulo acatou
os pedidos de arquivamento sem maiores questionamentos (Defensoria Pública do Estado
de São Paulo, 2015: 49).
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e punir os perpetradores desses crimes” (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015:
51). Passados mais de dez anos dos crimes as investigações foram encerradas, os culpados
não foram indiciados e a impunidade se impõe no conjunto do processo.
As principais falhas nos processos de investigação podem ser sintetizadas da seguin-
te forma:
[...] falta de investigação sistemática de todos os casos que apresentavam indícios de execu-
ção sumária por grupo de extermínio na Baixada Santista; ausência de laudos de perícias
nos locais dos crimes; ausência de depoimentos de policiais mencionados por testemunhas;
não obtenção de gravações de câmeras de segurança de prédios próximos aos locais dos cri-
mes; ausência de depoimento de testemunhas presenciais identificadas e de vítimas sobre-
viventes; não realização de perícias em projéteis apreendidos e não realização de confronto
balístico comparativo entre todos os casos; ausência de colheita de prova testemunhal nos
hospitais onde as vítimas foram socorridas e aonde policiais militares teriam chegado por-
tando capuzes enrolados em cima de suas cabeças e minimetralhadoras; não realização de
exame de corpo de delito em vítimas sobreviventes; tentativa, pelos delegados de polícia e
pelo representante do Ministério Público, de atribuir aos familiares a responsabilidade de
encontrar novas provas e testemunhas; e ausência de investigação sobre a atuação de grupo
de extermínio formado por policiais, como o próprio Ministério Público reconheceu em
dois pedidos de arquivamento (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015: 51-2).
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S e g u n da P a rt e
"
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9.
Análise dos casos dia a dia
O objetivo da segunda parte deste relatório é descrever e analisar os sessenta casos de as-
sassinatos relacionados com os Crimes de Maio ocorridos especificamente na região da
Baixada Santista entre os dias 12 e 20 de maio de 2006. Dos sessenta casos analisados, sete são
de agentes de segurança pública – que se concentram fundamentalmente no dia 13 de maio –,
e 53 correspondem a vítimas civis, com maior números de mortes nos dias 14 e 15 de maio.
Com a análise caso a caso procuramos, em primeiro lugar, reconstituir as circunstân-
cias das mortes dessas pessoas, mas também entender que cada um desses casos correspon-
de a uma história, uma família e uma vida que foi apagada tragicamente com esse assas-
sinato. Assim, uma das estratégias de levantamento das informações consistiu em realizar
entrevistas com as famílias das vítimas para entender melhor as circunstâncias da vida e da
morte do familiar, e o sofrimento da família ao longo destes anos.
Em segundo lugar, buscamos analisar os Crimes de Maio de 2006 como um caso para-
digmático de violência de Estado, sendo a que teve como vítimas preferenciais a população
civil, especialmente jovens, negros, pessoas de baixa renda e moradores das periferias.
Nesse sentido, alguns elementos aparecem como centrais na análise dos casos para
entender como a violência de Estado se manifestou durante os crimes do período. De um
lado, é importante analisar a dinâmica da violência na perspectiva de desconstruir o relato
oficial sobre os assassinatos, relato que sustentava que as mortes foram resultado do conflito
entre pcc e forças de segurança pública. Tanto as informações dos casos individuais, dados
qualitativos, quanto as informações do banco de dados, dados quantitativos, apontam que
as mortes dos agentes de segurança pública aconteceram nos primeiros dias, e na sequência
ocorreram as mortes dos civis. Corroborando, dessa forma, as informações de outros tra-
balhos sobre os Crimes de Maio que apontavam a hipótese de uma série de ataques do pcc
contra as forças de segurança pública, e na sequência operações de repressão por parte da
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polícia ou ações de extermínio realizadas por grupos com fortes suspeitas de participação
de policiais1.
De outro lado, na discussão sobre violência de Estado, é fundamental analisar o perfil
das vítimas civis, e novamente as informações do presente relatório vão ao encontro das
informações produzidas nos trabalhos mencionados anteriormente. A grande maioria das
vítimas era composta de homens, estudantes, pais de família e trabalhadores, com menos
de 35 anos e que morava nas periferias da região da Baixada Santista – perfil de vítima ca-
racterístico da violência no Brasil, jovens negros das periferias das grandes cidades do país.
Por fim, há, na análise dos acontecimentos estudados, diversos casos que apresentam
fortes indícios de execução sumária. Alguns casos de “resistência seguida de morte” em que
as evidências não parecem compatíveis com uma situação de confronto, e sim com uma
situação de execução. E na grande maioria dos casos estudados aparecem indícios de exe-
cução sumária realizada por grupos de extermínio sobre os quais recaem fortes suspeitas de
participação de policiais e que possuem um “modus operandi” bem característico.
As informações aqui apresentadas buscam lançar luz sobre os acontecimentos e refor-
çar o pedido das famílias das vítimas por justiça.
A seguir apresenta-se a lista das vítimas assassinadas na região da Baixada Santista
entre os dias 12 e 20 de maio de 20062:
1. Ver São Paulo sob achaque, 2011 e Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de
2006, 2008.
2. A relação de vítimas fatais foi elaborada por dia considerando o período de 24 horas: das 7h às 7h
(aproximadamente). Foram incluídos os casos das vítimas nos quais existisse algum documento
oficial relacionado com as mortes: boletim de ocorrência, laudo necroscópico ou documentos da
Ouvidoria da Polícia.
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4. Os “ninjas” é a forma usada para se referir aos indivíduos que estavam encapuzados dirigindo mo-
tos, na maioria dos casos de marcas japonesas (Yamaha, Suzuki, Honda e Kawasaki); daí a menção a
“ninjas”. A suspeita é que esses ninjas sejam policiais, atuando em grupos de extermínio, que vestem
capuz para executar esses crimes.
5. Narrativa concedida no dia 24 de janeiro de 2017.
6. Narrativa concedida no dia 24 de janeiro de 2017.
7. Boletim de Ocorrência no 2151/2006.
8. Laudo necroscópico no 218/06. Segundo o laudo, a vítima levou quatro tiros nas regiões corporais:
um tiro na cabeça, um no rosto, um na região das costas do lado direito e um na perna direita.
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[...] os fatos se deram no mês de maio de 2006 durante a onda de ataques promovida pelo
Primeiro Comando da Capital – pcc –, acreditando, nesta esteira, que o bárbaro delito este-
ja [vinculado] às ações daquela facção criminosa, não sendo possível identificar os autores9.
Quando fez seis anos que assassinaram o meu filho Robson, assassinaram o filho dele, o
Caio. O que eu tenho a relatar é isso. Não foi tomada providência nenhuma. Nenhum ór-
gão público tomou providência. Ficou o dito por não dito. E eu perdi o meu filho, perdi o
meu neto11.
Esse caso também reflete um fato típico de assassinato por encapuzados. O que leva a
um sentimento de impunidade sofrida pelos familiares, dado que nenhuma investigação foi
realizada: nem no caso de Robson, nem de seu filho Caio.
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Mapa 1. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 12 até a madrugada do dia 13 de maio.
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ponsáveis pelos disparos foram três indivíduos, entre eles rafael dantas da silva15 –
suposto autor da morte de André Fernandes Junior de acordo com o próprio boletim16. Se-
gundo o exame necroscópico, a vítima foi atingida por um tiro fatal no rosto17.
braz gonçalves de macedo era agente de segurança penitenciário quando mor-
reu aos 37 anos. De acordo com informações oficiais, a polícia foi acionada via Copom para
atender uma ocorrência no pronto-socorro onde se encontrava a vítima, em estado grave18.
Segundo o laudo necroscópico, Braz Gonçalves de Macedo foi atingido por dez disparos19.
Ele foi transferido para a Santa Casa de Praia Grande, onde não resistiu. A conclusão para a
causa de sua morte foi homicídio doloso.
De acordo com o relato de duas vizinhas, colhidos durante a pesquisa, Braz Gonçalves
de Macedo havia sido morto por encapuzados e sua irmã, por medo, se mudou do local de
residência pouco tempo depois do ocorrido.
marcos antonio rodrigues de mello, casado, era policial militar e morreu
aos 19 anos de idade. De acordo com o boletim de ocorrência20, a policial militar Sandra
Cristina de Godoi Quadro informou via Copom que a vítima estava baleada no chão com
vários disparos. Marcos Antonio Rodrigues de Mello foi encaminhado ao Pronto-Socorro
da Zona Noroeste, mas não resistiu aos ferimentos. Isso porque, de acordo o laudo necros-
cópico, a vítima foi atingida em regiões de seu corpo de alta letalidade: três tiros na cabeça21.
Ainda conforme o boletim de ocorrência, a policial militar acionada nesse caso, ao
chegar ao local do fato, foi informada de que dois indivíduos vieram em uma moto Honda
Titan cg de cor preta e realizaram os disparos contra a vítima. Vale a pena transcrever uma
observação que consta nesse boletim de ocorrência:
A Autoridade policial não se deslocou ao local dos fatos, em razão de a vítima já ter sido
socorrida, e, face aos atentados que estão ocorrendo na data de hoje contra os policiais e
Delegacias de Polícia, por prudência resolveu não desguarnecer a unidade policial. Realiza-
das as comunicações de estilo. Nada mais22.
15. Rafael Dantas da Silva também é vítima dos Crimes de Maio e será mencionado mais adiante.
16. Boletim de Ocorrência no 3346/06.
17. Laudo Necroscópico no 117/06.
18. Boletim de Ocorrência no 4087/06.
19. Laudo Necroscópico no 1884/06. Os tiros foram nas seguintes regiões corporais: três na face, um na
cabeça, um na região glútea, quatro nas costas e um no abdômen.
20. Boletim de Ocorrência no 2149/06.
21. Laudo Necroscópico no 217/06. A vítima levou catorze tiros nas seguintes regiões corporais: dois na
perna, dois no abdômen, dois nas costas, dois no braço, um no ombro, um no pescoço, e três na cabeça.
22. Boletim de Ocorrência no 2149/06.
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rafael dantas da silva foi morto aos 20 anos de idade. Este caso se relaciona
com a morte do policial André Fernandes Junior, já que Rafael foi indiciado como autor da
morte do policial na tentativa de assalto à floricultura.
As informações oficiais indicam que policiais ouviram disparos de arma de fogo vin-
dos de uma floricultura do Parque Estuário, em Vicente de Carvalho. Ao chegarem ao local,
encontraram uma viatura do lado de fora e foram informados de que um policial militar e
um funcionário da floricultura foram atingidos pelos disparos. O policial militar atingido
era André Fernandes Junior27.
De acordo com as testemunhas, os responsáveis pelos disparos contra o militar foram
três indivíduos, entre eles Rafael Dantas da Silva28. Este teria usado uma refém para fugir
pelo corredor e, assim, teria conseguido escapar da floricultura ao pular vários muros. Ele
teria sido encontrado pelos policiais no porão de uma residência, onde, ainda de acordo
com informações oficiais, teria começado a atirar contra os policiais, que teriam revidado os
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Quando souberam da morte de Fernandes Junior, policiais militares saíram em busca dos
três criminosos. Um deles, Rafael Dantas da Silva, foi encontrado embaixo do porão de uma
casa [...] De acordo com a pm, ao avistar os policias, Silva começou a atirar, mas foi baleado
e morreu31.
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As regiões de alta letalidade e a direção dos tiros são elementos importantes para julgar
se houve indícios de execução. No presente caso, ao considerar que os tiros foram dispara-
dos por um policial e que a pessoa foi atingida múltiplas vezes na cabeça – duas vezes por
balas de trajetória descendente –, os elementos apontam fortemente que a morte de Hércu-
les foi resultado de uma execução sumária.
Hércules gostava muito de futebol e tinha um time chamado “Vamo que Vamo”. No dia
14 de maio de 2016, quando se completaram dez anos de sua morte, os amigos e integrantes
do time fizeram uma homenagem em sua memória.
marcelo aparecido sponchiado morreu aos 36 anos. Não há informação so-
bre a sua profissão. Foi atingido por seis tiros, sendo três na cabeça36. Segundo o boletim
de ocorrência, Marcelo estava caído no chão, já morto, quando a polícia chegou ao local37.
Nesse caso, não há praticamente nenhum dado sobre essa morte, somente o boletim bem
sintético.
felipe barbosa do bonfim trabalhava como ajudante e tinha 17 anos quando
morreu na madrugada do dia 14 de maio, vítima de quatro tiros.
36. Laudo Necroscópico no 222/06. Os disparos ocorreram nas seguintes regiões corporais: um no braço
esquerdo, um no braço direito, um no ombro esquerdo pelas costas e três na cabeça.
37. Boletim de Ocorrência no 3523/06.
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Foi relatado para a equipe de pesquisa que o garoto tinha deficiência mental e era
constantemente perseguido pela polícia. Em uma dessas corriqueiras perseguições, Felipe
sofreu humilhação, violência física e foi ameaçado de morte por policiais. Naquela ocasião
um colega viu o que ocorria com Felipe e pediu para os policiais pararem com a agressão,
pois ele era uma boa pessoa, além de ser deficiente. De maneira sarcástica, os policiais leva-
ram o garoto até sua residência e exigiram a carteirinha de deficiente. Quando foi apresenta-
do o documento, eles foram embora. Entretanto, as perseguições continuaram até o destino
final de Felipe: sua morte violenta.
Segundo informações oficiais, Felipe já estava morto com ferimentos na cabeça quan-
do foi encontrado pela polícia38. Foi constatado que ele foi atingido por quatro tiros, sendo
dois deles na cabeça39. O caso aconteceu próximo da casa da vítima. De maneira fria e tri-
vial, o boletim de ocorrência é finalizado com a seguinte declaração do perito do Instituto de
Criminalística, o Sr. Koju: “não logrou testemunhas, tampouco apurara quaisquer circuns-
tâncias do delito”40; em outros termos, encerra-se o caso de Felipe Barbosa do Bonfim desta
maneira: sem nenhum tipo de investigação para aprofundar o que ocorrera com o garoto.
juliana alexandre da silva, 16 anos; douglas fontes martins, 21 anos;
israel claudiomiro dos santos, 26 anos; rodnei de santana costa, 18 anos; e
paulo vitor da conceição silva, 19 anos, estavam juntos e todos foram vítimas fatais
na madrugada do dia 14 de maio de 2006. Juliana estava em companhia de seu namorado
Douglas. Seus amigos, Israel Claudiomiro e Rodnei, estavam perto da casa onde o casal se
encontrava. Todos morreram atingidos por vários tiros de arma de fogo.
De acordo com informações oficiais, os policiais, pm Coutinho e pm Andrade, aten-
deram a uma chamada do Copom41. Quando chegaram ao local do ocorrido, encontraram
Juliana e Douglas já mortos e em lugares diferentes da casa. Juliana estava no chão do ba-
nheiro e Douglas, fora da casa. Os policiais ficaram sabendo que houve outras vítimas numa
casa próxima. Lá foram encontrados Israel, Rodnei e Paulo. Paulo foi o único a ter sido so-
corrido e levado ao Hospital Santo Amaro, onde faleceu. Por medo de represálias, nenhuma
das testemunhas quis depor sobre o fato, pois, segundo um morador, “no local impera a lei
do silêncio”, mas dizem que foram vistos quatro homens encapuzados no momento dos cri-
mes. No boletim de ocorrência é justificada a falta de comparecimento e investigação desse
crime devido à situação dos atentados contra a polícia:
A Autoridade Policial não compareceu ao local dos fatos devido à periculosidade, haja vista
a série de atentados a Policiais Civis e Militares do Estado de São Paulo, ocorridos durante
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os últimos dias, bem como também não foi realizada perícia no local dos fatos, pelo Insti-
tuto de Criminalística, devido aos mesmos motivos42.
Imagem 10. Imagem proveniente do Laudo Necroscópico no 122/06, de Juliana Alexandre da Silva.
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maria de fátima dos santos nunes, 49 anos, comerciante, e seu filho rafael
dos santos nunes, de 20 anos, foram encontrados mortos em sua residência na madru-
gada do dia 14 de maio. A outra filha da vítima, Joice Aparecida dos Santos Nunes, de 12
anos, foi ferida, mas sobreviveu.
De acordo com informações oficiais, o policial Valdir, testemunha para elaboração do
documento, foi acionado para ir ao local do crime ainda de madrugada. Entretanto, como
consta no boletim, devido ao estado de alerta máximo da cidade, o policial se dirigiu ao
local muitas horas depois. O policial encontrou Maria de Fátima dos Santos Nunes morta,
deitada na cama. Em outro quarto, o filho dela, Rafael, também morto e deitado na cama.
Testemunhas relataram que a filha Joice, que também se encontrava na casa, foi ferida e
levada ao Hospital Santo Amaro. Vizinhos disseram que não ouviram nada48.
Foram realizados exame de corpo de delito e laudo necroscópico das vítimas, que tam-
bém indicam fortes chances de terem sido execuções sumárias. De acordo com o laudo de
Maria de Fátima, ela foi atingida por doze tiros, e sua morte ocorreu devido aos tiros nas
regiões de seu corpo de alta letalidade: no tórax e abdômen49. Rafael foi morto do mesmo
modo que a mãe: levou sete tiros, sendo atingido em regiões do tórax e abdômen50.
Os casos apresentados são extremamente alarmantes quanto à falta de comprometi-
mento do Estado em termos investigativos: apesar de as mortes terem características de exe-
cuções sumárias, não há um aprofundamento nas investigações. Um exemplo que revela de
forma nítida essa falta de comprometimento é o caso de Felipe do Bonfim, em que o perito
foi ao local do crime, mas de forma desinteressada encerrou o caso no mesmo momento e
local, alegando falta de provas.
Do ponto de vista da documentação oficial, nota-se uma diferença em sua elaboração
conforme se trate de agentes do Estado ou de civis. No primeiro caso é perceptível maior
detalhamento sobre o ocorrido, como é visto nos boletins de ocorrência relativos a João
Marcos Fernandes e a André Fernandes Junior.
Já quando se trata dos civis há apenas uma breve descrição dos fatos, sem maiores
detalhes. Chama a atenção a forma sucinta e sem nenhum detalhamento nos boletins de
ocorrência dos casos de Juliana Alexandre da Silva, Douglas Fontes Martins, Israel Claudio-
miro dos Santos, Rodnei de Santana Costa, Paulo Vitor da Conceição Silva, Maria de Fátima
dos Santos Nunes e Rafael dos Santos Nunes, o que remete a uma banalização das mortes;
é como se a vida não tivesse valor, o que fere a mais fundamental premissa dos direitos hu-
manos: o direito à vida.
Na tentativa de buscar informações alternativas, constata-se, na pesquisa de campo,
que os familiares se mudaram e que reina um silêncio entre os vizinhos.
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Mapa 2. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 13 de maio até a madrugada do dia 14 de maio.
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Segundo informações oficiais, adilson pinto da silva foi baleado na rua Ban-
deirantes, no bairro da Vila Sapo, Guarujá, por volta das 22h21. Encontrado no chão ainda
vivo, foi levado pelo policial que atendeu à ocorrência até o Hospital Santo Amaro, onde
faleceu54. Como demonstra a Imagem 11, Adilson foi atingido por dez tiros em várias partes
do corpo – três foram na região da cabeça e pescoço, e um, no tórax55. A quantidade e as
trajetórias dos tiros indicam que Adilson foi executado. Ele também recebeu um tiro no
dorso da mão, o que pode ser indício de que tentou se proteger.
Imagem 11. Imagem proveniente do Laudo Necroscópico no 129/06, de Adilson Pinto da Silva.
jacson roberto dos santos, 33 anos, trabalhava como pintor. Às 23h ele foi en-
contrado ferido na rua Maranhão, em Vicente de Carvalho, Guarujá, e levado ao pronto-
-socorro da Bica (também em Vicente de Carvalho) por uma ambulância, mas não resistiu
aos ferimentos56. Jacson recebeu cinco tiros, dos quais um foi na cabeça e dois nas costas,
com trajetória de cima para baixo, o que pode indicar uma execução57.
Os dois casos relatados apresentam características semelhantes, apesar de serem isola-
dos: os policiais são chamados pelo Copom; ao chegar ao local, ou se deparam com a vítima
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baleada no chão, ainda viva, e eles próprios fazem o socorro até o hospital, ou então a vítima
já foi socorrida. Em geral, não se sabe mais nada sobre o contexto do homicídio. Não houve
testemunhas no dia dos crimes, tampouco foram encontradas reportagens a respeito nos
jornais. Todas as poucas informações coletadas se encontram nos boletins de ocorrência
das vítimas e possuem a mesma estrutura: em geral há um ou no máximo dois parágrafos,
sem maior investigação sobre o caso.
Por volta das 23h30, mais três pessoas foram vítimas de um ataque na zona central
de Santos. marcos rebelo filho, 26 anos, thiago roberto soares, 19 anos, e Jô
Farias, 22 anos, que sobreviveu aos disparos. Eles estavam em uma pizzaria onde também
funcionava uma locadora de games, na rua São Francisco, quando chegaram seis homens
encapuzados, dois em uma moto preta e quatro em um veículo Fiat Marea de cor preta.
Segundo denúncia feita à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, os dois homens da
moto chamaram Thiago (conhecido como Amarelinho) para fora e atiraram nele. Depois
entraram e atiraram em Marcos Rebelo e Jô Farias58.
Marcos Rebelo recebeu nove tiros, três deles na cabeça, a curta distância59. Thiago
Soares também foi atingido por nove disparos, sendo oito deles por trás60. Quanto ao sobre-
vivente Jô Farias, ele levou oito tiros que o deixaram paraplégico61. Pela quantidade de tiros,
suas trajetórias e as regiões dos corpos atingidas, supõe-se que as vítimas Marcos e Thiago
foram executadas.
Durante o processo de investigação apareceram informações contraditórias às que
constavam no boletim de ocorrência. A primeira delas é relacionada aos socorros. No b.o.,
o policial que atendeu à chamada indicou que as vítimas foram socorridas por “populares”
e levadas por uma ambulância62. No inquérito policial, o mesmo policial falou que teria
prestado “socorro médico” às vítimas. Outro depoimento também confirma essa versão,
afirmando que o policial passou pelo local após o ocorrido e foi quem socorreu Thiago e
Marcos, levando-os para a Santa Casa de Santos63.
Outra divergência se refere à existência de testemunhas. O policial que atendeu à ocor-
rência informou no boletim de ocorrência e depois no inquérito policial que não foi en-
contrada nenhuma evidência que permitisse elucidar o caso e destacou a impossibilidade
de encontrar alguém que tivesse presenciado o crime64. Contudo, houve testemunhas do
ocorrido. Rogério Peres Castanho, proprietário do estabelecimento onde os fatos acontece-
ram, relatou no inquérito que, quando voltava de uma entrega fora de seu estabelecimento,
percebeu que havia uma moto e um carro grande na frente do bar, e logo viu pessoas enca-
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puzadas ou de capacetes ordenando que os clientes saíssem. Diante da cena, largou a moto
e se escondeu em uma casa vizinha, a uma distância de cem metros do local, de onde ob-
servou os indivíduos executando as vítimas. Quando os disparos cessaram, ele correu para
sua residência para ver se seus parentes estavam bem e se deparou com as vítimas, sendo
testemunha do socorro a elas65.
Thiago Lopes dos Santos também testemunhou os fatos66. Disse que estava no local
e presenciou a chegada de uma moto Honda Twister e de um veículo Fiat Marea. Dois
ocupantes da moto e três que estavam no automóvel atiraram em Thiago, Marcos e Jô, per-
manecendo no veículo apenas o condutor, que não saiu e não efetuou disparos. Porém,
ainda segundo as informações oficiais, Thiago teria retornado ao 5o d.p. de Santos e mudado
seu relato, informando que estava apenas passando no local, “não podendo precisar” quais
eram os veículos, pois, com os disparos, teria saído correndo. Thiago teria sido ameaçado
por policiais militares para voltar atrás em seu depoimento inicial67.
O sobrevivente Jô Farias também relatou no inquérito os fatos que vivenciou. Ele disse
que estava no fliperama, quando saiu do estabelecimento e avistou duas motos se aproxi-
mando: uma Honda Twister e uma Honda Titan, e logo atrás um carro Fiat Brava azul-
-escuro. Os ocupantes da moto, que estavam encapuzados, desceram e ordenaram que to-
dos colocassem as mãos na cabeça, e um dos encapuzados disparou, atingindo uma das
vítimas. Nesse momento, Jô Farias correu para dentro do bar, mas foi alvejado nas costas e,
após cair, foi atingido por outros disparos, assim como as outras vítimas68.
Edinalva Santos, mãe de Marcos Rebelo Filho, relata na denúncia da Defensoria Pú-
blica que ela passou o contato de uma testemunha, não identificada, ao 5o d.p., que foi em
seguida ameaçada e agredida por policiais, conhecidos como Bolacha e Aragão, em sua pró-
pria residência69. Os policiais teriam ameaçado forjar um flagrante para justificar a prisão da
testemunha. Quando esta foi ouvida formalmente no inquérito, não identificou ninguém.
Tal intimidação pode ter sido dirigida à Thiago Lopes dos Santos, uma vez que inicialmente
prestou um depoimento relatando ter presenciado os fatos e posteriormente voltou à dele-
gacia com nova versão, alegando não ter visto nada.
A intimidação se explica pelo fato de testemunhas e familiares apontarem durante o
processo de investigação que um dos autores dos crimes era um policial militar. No tes-
temunho apresentado no inquérito policial70, Edinalva Santos diz que teve conhecimento
dessa informação por terceiros. Eles contaram para a mãe que o alvo era o Thiago (Amare-
linho), e confirmaram que os assassinos chegaram ao local em uma moto e um veículo Fiat
Marea e que um dos autores seria policial militar. Segundo informações oficiais, Edinalva
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informou que seu filho era ameaçado por um policial, Ezequiel Magalhães da Silva, de ape-
lido “Bolacha”71, que tinha um Marea de cor preta, e que Marcos já havia sido agredido por
outro policial de sobrenome Aragão72.
A irmã de Marcos relata também, no inquérito policial, que ficou sabendo do ocor-
rido por outras pessoas e que um dos responsáveis pelo crime seria um policial militar. A
testemunha Thiago Lopes também mencionou no inquérito policial que soube que um dos
autores do homicídio seria o policial militar de apelido “Bolacha”, do 1o Batalhão de Choque.
Thiago Lopes apresentou fotos de um veículo de marca Fiat Marea preto, que esteve esta-
cionado na rua Tomoichi Kobuichi, próximo ao local dos fatos. A informação foi rebatida
pelo policial, proprietário de um Fiat Marea, em cartório, negando qualquer envolvimento
no delito e relatando que na época costumava ir bastante à região, já que sua companheira
é proprietária de um estabelecimento na rua citada. Em depoimento, ele disse ter ciência de
que um Fiat Marea foi utilizado no crime, mas desconhecia quem seria o proprietário do
automóvel73.
Além da intimidação por parte de policiais para interferir na investigação, é evidente
no inquérito policial o destaque dado às supostas passagens que os jovens tiveram pela po-
lícia, no intuito de criminalização e de justificativa indireta para os crimes cometidos. No
inquérito policial é mencionado que Thiago Roberto Soares seria usuário de drogas e que
teria tido passagem pela polícia quando menor de idade. “As vítimas, quando pesquisadas,
mostraram possuir passagens criminais, destacando que Thiago [Roberto Soares], confor-
me informação, era usuário de drogas e possuía infração quando adolescente”74.
Ilza Maria de Jesus Soares, mãe de Thiago Roberto Soares, nega na denúncia da Defen-
soria Pública a passagem pela polícia e relata que o filho vinha mencionando várias perse-
guições, agressões e ameaças que os policiais faziam aos jovens do bairro, chegando a citar
uma vez que, se lhe acontecesse alguma coisa, o responsável seria o policial militar Marcelo
Balberto, conhecido como “Bubu”75.
Na narrativa coletada para essa pesquisa, Ilza relatou:
[...] sempre ensinei ao meu filho, não só a ele como à irmã dele, que, se um dia eles estives-
sem no direito deles, que eles conseguissem preservar o direito deles, fossem para a frente,
lutassem pelos direitos. Agora, se o que eles fizessem estivesse errado, eles abaixassem a
cabeça. E nunca abaixassem a cabeça se eles estivessem nos direitos deles. Talvez por esse
fato, de ele nunca querer abaixar a cabeça, houve essa morte. Porque eles achavam o Thiago
folgado. Meu filho não podia estar na rua que eles vinham bater, agredir, eles não chegavam
como um cidadão, com os direitos, com os papéis de direitos, assim, de abordar. Quantas
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Relat ório fin al
vezes tive que ver meu filho nas esquinas sendo abordado por eles. Das pessoas, vizinhan-
ças, chegarem e dizer: “Olha, acorda! O teu menino está sendo abordado ali”. E eu chegar,
ficar ali e dizer: “Se eu estou aqui é porque tem um cidadão ali que é meu filho e eu vou ficar
aqui”. Não deixava, eu não deixava! Então talvez a birra já começava dali, da parte deles76.
O inquérito policial foi arquivado pelo Ministério Público no dia 7 de maio de 2008, a
pedido do promotor de justiça Cassio Roberto Conserino. O promotor alegou não ter sido
possível instaurar uma ação penal, por não constarem nos autos “elementos indiciários de
autoria delituosa”, uma vez que as supostas testemunhas “não conseguem descrever e iden-
tificar nenhum dos autores nos depoimentos” 77.
Pouco tempo depois do ataque na pizzaria, perto da meia-noite, morreu antonio
carlos dos santos, de 23 anos, próximo à sua casa, na rua Valinhos, Vila Áurea, no
Guarujá. Ele foi socorrido por uma ambulância e levado a um pronto-socorro, onde fale-
ceu78. Antonio recebeu dois disparos: um no peito e um no rosto. Ambos com trajetória de
cima para baixo79.
joão carlos correia, ajudante geral, tinha 57 anos quando morreu. Após a análise
da documentação oficial, descobriu-se que a vítima pode estar ligada ao caso de Antonio
Carlos dos Santos80. O crime aconteceu também na cidade de Guarujá e resultou na morte
de João, atingido por três disparos81. Todos foram pelas costas, de baixo para cima, atingin-
do o tórax e abdômen. João estava de costas, talvez fugindo, quando recebeu os tiros.
talita cristine de almeida silva, 20 anos, era moradora do Guarujá. Segun-
do consta no boletim de ocorrência, a vítima deu entrada no Hospital Santo Amaro mas
faleceu pouco tempo após ser atendida. Um sobrevivente, Davi de William Mauricio, foi
levado ao Pronto-Socorro da Rodoviária, onde permaneceu internado. Segundo informa-
ções oficiais, o policial que atendeu à ocorrência disse não ter condições de informar como
aconteceram os fatos82.
Talita levou dois tiros na cabeça, de cima para baixo, forte indício de execução sumá-
ria . Os projéteis ficaram alojados no corpo da vítima, sendo possível recuperá-los para
83
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uma análise, porém essa investigação não foi levada adiante. Nos documentos oficiais não
constam maiores informações sobre o ocorrido.
Por volta da 1h, outro evento no Guarujá envolveu um grupo de encapuzados. De
acordo com informações oficiais, quatro indivíduos encapuzados entraram no estabeleci-
mento de Francisco de Oliveira, conhecido como “Bar do Cabeça”, e atiraram nas pessoas
ali presentes, fugindo em seguida em um Corsa Sedan prata. Consta no b.o. que nenhuma
perícia foi feita no local pois a polícia preferiu zelar pela integridade física de seus agentes de
segurança devido à onda de ataques que estava acontecendo na Baixada Santista84. A chaci-
na resultou na morte de seis pessoas, e, apesar da violência, o ocorrido foi relatado apenas
em uma pequena nota do jornal Expresso Popular85.
Das seis pessoas que sofreram o atentado, apenas três são identificadas no b.o.: da-
niel borges dos santos, maurilio melo e willian pereira santos. As demais
vítimas foram registradas como “indivíduo de sexo masculino”. Entretanto, ao analisar a
documentação oficial, b.o.s e laudos necroscópicos, há indícios de que as vítimas não iden-
tificadas possam ser antonio luiz muniz de sousa, flavio lopes e marcos wel-
bert de figueiredo silva86.
Daniel Borges dos Santos tinha 26 anos. Atingido com um tiro no pescoço, foi a
única vítima a ser socorrida e levada para o Hospital Santo Amaro, mas não resistiu aos
ferimentos87.
Willian Pereira Santos, 14 anos, recebeu sete tiros, entre eles, dois na parte de trás na
cabeça e dois nas costas. Também atingido por um tiro acima do pulso e um na mão, o que
pode indicar que tentou se proteger88. Os médicos-legistas, que foram os mesmos para as
seis vítimas, qualificaram a morte de Willian como violenta, assim como a de Maurilio Melo
e a de Flavio Lopes.
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Relat ório fin al
Maurilio Melo, garçom, morreu aos 18 anos. Segundo os relatos colhidos pela pesquisa
de campo, ele era visto como um homem batalhador e trabalhador, e na época estava mui-
to feliz por ter começado a trabalhar em um restaurante na praia da Enseada. Na noite da
chacina ele morreu devido aos três tiros que recebeu na cabeça, pelo rosto, tal como mostra
a Imagem 12.
Flavio Lopes, 36 anos, foi atingido por seis tiros, todos pela frente. Entre eles, dois
foram em regiões de alta letalidade – um na cabeça e um no tórax. Ele também foi atingido
por um tiro na mão.
Antonio Luiz Muniz de Sousa tinha 38 anos e trabalhava como carpinteiro. Nasceu em
Oeiras, no Piauí, e, segundo relatos obtidos durante a pesquisa de campo, era muito querido
pela comunidade. Depois da morte das seis vítimas, disseram que o bairro parou. Antonio
recebeu quatro tiros, entre eles, dois na cabeça – sendo que um apresenta trajetória de cima
para baixo89.
Marcos Welbert de Figueiredo Silva tinha 27 anos e trabalhava como copeiro. Foi atin-
gido por um único tiro no topo da cabeça, com trajetória de cima para baixo em linha reta90.
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A região do tiro e sua trajetória, tal como mostra a Imagem 13, evidenciam que Marcos
foi executado.
Pouco tempo depois, 1h30 da madrugada, ainda no Guarujá, no bairro Jardim dos
Pássaros, outras duas pessoas foram vítimas de um grupo encapuzado: ricardo souza
monteiro martins, que faleceu, e Milton Rodrigues da Silva, que sobreviveu.
Segundo informações oficiais, Ricardo Souza Monteiro Martins, 22 anos, e Milton Ro-
drigues da Silva, 35 anos, estavam conversando na esquina da rua do Sal com a rua Ostrieira,
quando um gm/Corsa Sedan Prata, sem placa, parou no local91. Quatro encapuzados saíram
do veículo e atiraram neles. Apesar dos ferimentos, Milton conseguiu fugir em uma moto-
cicleta e se salvar. Ricardo foi atingido por seis tiros: um no braço direito, um na cabeça,
um na região axilar direita, um na região lombar, um no dorso do pescoço e um na região
posterior do pescoço92.
De acordo com a narrativa concedida por seus familiares ao grupo de pesquisa, Ricar-
do era tido pelos parentes e amigos como um rapaz muito bem-humorado. Ele trabalhava
em um bairro nobre do Guarujá em uma fábrica de pranchas de surfe para ajudar a família,
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Relat ório fin al
em especial sua mãe, que tinha problemas psiquiátricos avançados. Somente aos finais de
semana voltava para casa para visitar os familiares, e foi depois de uma dessas visitas que
aconteceu o assassinato. Segundo relato feito por sua irmã, naquele final de semana, em
especial, era Dia das Mães e Ricardo veio para o almoço. Depois de passar a tarde na praia
jogando vôlei com os amigos, ele disse à família que voltaria naquele mesmo dia, pois era o
zelador da fábrica e precisava chegar com antecedência para tudo estar aberto e funcionan-
do no dia seguinte93.
De acordo com a irmã, o toque de recolher ainda não havia chegado com tanta força
no bairro onde moravam, e Ricardo preferiu sair naquele dia, mesmo com sua mãe pedindo
para que ele não fosse, devido aos acontecimentos. A irmã da vítima relata que à 1h rece-
beu uma ligação dizendo que seu irmão estava envolvido em um tiroteio. Sem acreditar no
que havia ocorrido, pois Ricardo não possuía arma e nunca teve passagem pela polícia, ela
soube que ele deu entrada no hospital quase morto. Também afirma que a enfermeira que
o socorreu lhe disse que as únicas palavras que ele pronunciava eram: “eu sou inocente, sou
inocente”94.
No boletim de ocorrência, que conforme relato dos familiares, foi feito apenas por uma
questão burocrática, sem maiores aprofundamentos, apesar da insistência da família em se-
guir com a investigação, constam as seguintes informações: um veículo Corsa Sedan preto
e quatro indivíduos encapuzados95 (que aparecem também no b.o. do Bar do Cabeça)96.
Há observações importantes sobre o ocorrido na narrativa dos familiares: a primeira
é que, na noite do acontecimento, o socorro foi chamado por um amigo que morava na
esquina do ataque. Enquanto esperava, uma senhora, vizinha de Ricardo, afirmou que o
carro que socorreu a vítima foi o mesmo de onde saíram os disparos. Cerca de dois ou três
minutos depois, apareceu um carro de polícia que ninguém havia chamado, enquanto o
socorro que foi solicitado não tinha chegado. A segunda informação é que, algum tempo
depois do acontecimento, o irmão de Ricardo e alguns amigos fizeram uma investigação por
conta própria. Durante esse processo, disseram ter descoberto que oito pessoas foram mor-
tas no bairro Santo Antônio, além de localizarem um lugar onde vários carros parecidos aos
utilizados nos dias das execuções no assassinato de Ricardo (modelos Sedan e Corsa) foram
queimados. Contudo, por ameaças da polícia, resolveram parar de procurar por respostas97.
Ricardo foi levado ao Hospital Santo Amaro, mas não resistiu aos ferimentos. Sua
irmã relata que não contou sobre o crime a seus familiares até às 5h da manhã, pois eles não
tinham carro e não havia transporte circulando na hora do ocorrido para chegarem até o
hospital e fazer o reconhecimento do corpo.
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O enterro de Ricardo foi feito às pressas. Morto na madrugada do dia 14 para o dia 15,
seu corpo foi velado e enterrado à tarde, não só por causa da quantidade de disparos que
recebeu, mas porque, segundo o relato da família, naquele dia houve ameaças de outro ata-
que nas redondezas, o que fez com que os estabelecimentos fechassem as portas mais cedo,
incluindo o cemitério. Outro ponto que chama a atenção na narrativa dos familiares é que
durante o enterro de Ricardo havia uma quantidade expressiva de carros policiais no local:
“Eles estavam do lado de fora do cemitério, acompanhando o enterro de Ricardo, mas todos
à paisana, sem suas fardas”98.
A família relata que, por causa de seus problemas psiquiátricos, a mãe de Ricardo foi
poupada de ir ao enterro do filho; ficou em casa com a irmã e, por uma questão de preser-
vação, só soube da morte meses depois:
[...] a deduziu. Disse que não precisavam mais esconder dela a morte do Ricardo, porque
tinha visto ele no canto da sala e sabia que estava morto [...] Não pôde enterrá-lo. Faleceu
atordoada e sem saber quem matou seu filho99.
As circunstâncias das mortes das vítimas do “Bar do Cabeça” e de Ricardo Martins, as-
sociadas à proximidade das horas e locais dos acontecimentos e ao envolvimento de quatro
pessoas encapuzadas em veículos semelhantes, não podem ser somente uma coincidência.
Esses elementos revelam uma possível ligação entre os dois casos, e talvez um terceiro, mas
que não foi investigada pela polícia.
Após os casos ocorridos no Guarujá, um terceiro chamou a atenção, por também con-
tar com o envolvimento de um grupo encapuzado. O ataque ocorreu em Santos e fez oito
vítimas, dentre as quais uma fatal. Às 2h15, segundo o b.o., quatro indivíduos em duas mo-
tos passaram pelas ruas Santos Dumont, Ernesto de Melo Junior e Liberdade e atiraram nas
pessoas ali presentes100. Das oito vítimas, sete sobreviveram: Hideo de Jesus Sasaki, Paulo
Roberto de Moura Santos, 16 anos, Givaldo José da Silva, 18 anos, Kauê Alexandre Leite
Santana, 17 anos, Vinicius Lemos Ribeiro, 21 anos, Jonatan Ribeiro Freire, 15 anos, e Davi
Jilvencio dos Santos, 41 anos. juracy dos santos smith, 20 anos, foi o único que não
sobreviveu. Ele recebeu nove tiros, entre eles, um na cabeça e cinco no tronco; todos de
frente para trás e disparados à distância101.
Nas declarações para a investigação do caso, os sobreviventes contaram que estavam
conversando em roda de amigos ou andando na rua quando apareceram as duas motos
atirando neles102. Alguns atingidos nas pernas caíram no chão, outros conseguiram fugir e
se esconder, mas todos foram baleados e ficaram por vários dias no hospital em observação.
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Relat ório fin al
Jonathan, por exemplo, ficou internado onze dias na Santa Casa de Santos, onde passou por
uma cirurgia, mas ficou paraplégico103. Vinicius, atingido por três tiros nas costas, ficou uma
semana internado104.
Os autores dos crimes foram identificados como sendo quatro homens: dois ocupantes
de motos Honda Twister e outros dois de uma Tornado Feizer, ambas pretas. Vestiam calça
jeans, jaqueta preta e estavam com capacete na cabeça, fechado, ou encapuzados. Além disso,
estavam equipados com uma metralhadora e uma pistola105. Contudo, essas informações fo-
ram consideradas insuficientes para justificar o prosseguimento da investigação. O inquérito
policial do caso foi arquivado em 27 de março de 2007 pelo promotor de justiça Cassio Roberto
Conserino, que alegou impossibilidade de identificação da autoria delituosa, ressaltando que:
[...] as vítimas sobreviventes não conseguiram anotar a placa das motocicletas em que esta-
vam os homicidas, nem tampouco dados característicos dos veículos. Também não conse-
guiram visualizá-los diante da rapidez dos fatos106.
Imagem 14. Imagem da última página do pedido de arquivamento do Inquérito Policial no 239/06.
103. Declaração de Valdir Nery Freire, pai de Jonathan Ribeiro Freire, realizada no 3o Distrito Policial de
Santos no dia 2 de julho de 2006.
104. Declaração de Vinicius Lemos Ribeiro realizada no 3o Distrito Policial de Santos no dia 3 de julho de
2006.
105. Inquérito Policial no 239/06.
106. Inquérito Policial no 239/06.
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Durante essa terceira noite, um policial militar também foi morto. Pelas informações
do laudo necroscópico e por um artigo de jornal, é possível concluir que edison batista
de paula morreu no domingo, dia 14 de maio, mas não foi possível encontrar o boletim
de ocorrência do caso para confirmar as informações.
Edison Batista de Paula, policial militar de 41 anos, morreu na cidade de Peruíbe, no
bairro de Caraguava. Segundo o Diário do Litoral do dia 16 de maio, Edison estava a ca-
minho de sua residência quando dois homens de bicicleta e dois outros em um automóvel
fizeram vários disparos, atingindo-o com sete tiros107. Essa última informação é contestável,
pois o laudo necroscópico faz menção a cinco tiros: um na cabeça, um no tórax, um no
abdômen, um nas costas e um no braço108. Edison foi atingido pelas costas e pela frente. Se-
gundo a matéria, a morte de Edison foi atribuída aos “integrantes do Primeiro Comando da
Capital (pcc)”. Ele foi o último agente de segurança pública que morreu durante o período
dos Crimes de Maio na região da Baixada Santista109.
Da noite de domingo até a madrugada da segunda, dezesseis vítimas civis morreram,
contra uma morte de um agente de segurança pública. Se pensarmos na versão oficial dos
Crimes de Maio já mencionada no início deste relatório, esse fato reforça o questionamento
sobre a versão “pcc versus forças de segurança pública”. Ocorreu um homicídio contra um
policial. No entanto, no intervalo de quatro horas, das 22h30 às 2h30, houve quinze vítimas
fatais e dez sobreviventes, todas civis.
Há poucas informações sobre os primeiros casos da noite – eram pessoas que estavam
sozinhas na rua e todas receberam tiros em regiões de alta letalidade, entre elas a cabeça. Os
últimos casos da noite foram particularmente violentos e também sugerem execuções.
Os homicídios implicam a participação de encapuzados com características de atuação de
grupos de extermínio. Alguns casos mostram semelhanças no modus operandi, como a
morte de Ricardo, que aconteceu meia hora depois da chacina do “Bar do Cabeça”. Nessas
circunstâncias, é válido frisar que os crimes do dia 14 de maio parecem marcar o começo da
onda de retaliação policial.
Outra observação importante refere-se ao procedimento de investigação desses crimes.
Quase nenhum dos casos teve uma investigação adequada à natureza dos acontecimentos,
e, quando teve, foram arquivados rapidamente, sob a alegação de “falta de provas”, tal qual
foi descrito aqui. Esses procedimentos, aliado ao sentimento de impunidade relatado nas
narrativas das famílias e também nas pesquisas de campo feitas pelo grupo, corroboram a
questão do tratamento diferenciado dado às investigações criminais no Brasil.
107. Diário do Litoral, “Caderno de violência. Medo e morte no litoral Sul. Santos”, 16 maio 2006.
108. Laudo Necroscópico no 1778/06.
109. Diário do Litoral, “Caderno de violência. Medo e morte no litoral Sul. Santos”, 16 maio 2006.
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Mapa 3. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 14 de maio até a madrugada do dia 15 de maio.
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Relat ório fin al
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110. Existe a possibilidade de ser a mesma motocross vermelha citada no caso de Aldo Pedrazolli da Silva,
por constar na ocorrência a mesma data e a proximidade de horário e local.
111. Boletim de Ocorrência no 2170/2006.
112. Laudo Necroscópico no 231/2006.
113. Laudo Necroscópico no 4336/06.
114. Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015: 14.
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Relat ório fin al
ção no processo de investigação é que a vítima sobrevivente Diego Vieira não foi submetida
a exame de corpo de delito.
Anderson Francisco Anchia, um dos sobreviventes, relatou no inquérito que, ao voltar
para sua casa, estava no bar quando dois indivíduos, ambos de capuz, em uma moto, pas-
saram pelo local efetuando disparos. Ewerton de Castro Moreira confirmou que, ao passar
pelo bar, encontrou Anderson e parou para conversar, quando os dois ocupantes das motos
surgiram e efetuaram os disparos, atingindo-os.
O inquérito policial foi arquivado em 22 de março de 2007, a pedido do promotor de
justiça Cassio Roberto Conserino, que alegava a impossibilidade de identificação da autoria
delituosa, pois as vítimas sobreviventes não conseguiram anotar as placas das motocicletas
em que estavam os homicidas, nem dados característicos dos veículos, tampouco visualiza-
ram os algozes115.
Em agosto de 2010, o caso foi desarquivado a pedido do promotor Octavio Borba de
Vasconcellos Filho, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Em janeiro de 2011, foram colhidas novas declarações das vítimas sobreviventes, Diego
Vieira e Ewerton de Castro Moreira. Diego declarou que, momentos depois de chegar ao
hospital, aproximadamente cinco minutos, policiais militares que não estavam fardados,
mas que vestiam um capuz erguido, perguntaram se eles tinham passagem pela polícia.
Alegou não lembrar da fisionomia dos policiais. E diz não ter relatado isso antes por medo
de represálias por parte da polícia. Ewerton também relata a ida dos policiais ao hospital,
mas alega ter visto três policiais e não dois, conforme depoimento de Diego. O depoimento
também é diferente quanto às vestimentas dos policiais, pois Ewerton afirma que estavam
fardados. Quando os policiais perguntaram sobre a passagem criminal, Ewerton disse que
estava com alvará de soltura (acusado de crime por tráfico de entorpecentes – após provar
ser usuário, foi absolvido), que eles rasgaram. No laudo pericial, consta que os disparos
foram feitos por armas de fogo portáteis do calibre nominal “.45”, não batendo com as des-
crições das vítimas, que alegaram ser de metralhadora116.
Fica evidente nesse caso a falta de uma investigação mais minuciosa. Não constam
maiores esclarecimentos da policial que foi acionada via Copom e tampouco do policial ci-
tado como suposta testemunha, Dorival dos Santos, sobre a chegada ao local do crime. Não
foram ouvidos relatos de vizinhos nem da residência, nem do comércio onde aconteceu a
tentativa de homicídio de Ewerton e Anderson, e faltaram relatos de supostas testemunhas,
uma vez que na denúncia é citado que um dos sobreviventes informou haver mais de dez
pessoas no local. Tudo isso comprometeu o processo e contribuiu para poucas evidências
nos documentos oficiais.
No caso do assassinato de Wagner Lins dos Santos, o defensor público Antônio Maffe-
zoli requereu, em novembro de 2011, o deslocamento de competência para nível federal
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juntamente com as outras seis ocorrências envolvendo as treze vítimas, o que ainda não
foi efetivado.
O segundo assassinato em Santos ocorreu por volta das 22h25, a vítima foi fernan-
do alves oliveira, que levou quatro tiros pelas costas: dois nas costas e dois na perna
direita. No boletim de ocorrência a vítima fatal consta como “desconhecido”117, contudo
no laudo necroscópico referente ao número do b.o. indica-se de forma segura e clara que
se trata do corpo de Fernando Alves Oliveira118. Segundo informações oficiais, o policial
Henrique Terciotti atendeu à ocorrência na rua da Constituição no 270 no bairro Vila Nova,
em Santos, local em que a vítima teria sido socorrida e de onde teria sido conduzida para o
Pronto-Socorro Central, onde faleceu119. Os registros oficiais apresentam várias lacunas na
descrição do evento e nenhuma investigação efetiva foi realizada para identificar os respon-
sáveis pelo assassinato.
O promotor público Octavio Borba de Vasconcellos Filho solicitou o arquivamento do
caso, em março de 2007, afirmando que:
Além das opiniões emitidas pelo promotor, sem explicitação de detalhes e evidências
circunstanciadas, de forma implícita, nota-se a construção de justificativa de arquivamento
do caso a partir do depoimento fornecido pelo irmão da vítima, que declarava: “Fernando
levava vida irregular, tendo sido preso várias vezes e [...] possuía envolvimento com entor-
pecentes”121.
As outras vítimas do dia no município foram ana paula gonzaga dos santos,
jovem de 20 anos, e eddie joey de oliveira lavezaris, seu companheiro de 22 anos,
moradores da Vila Mathias, em Santos.
Ana Paula estudou até a oitava série e estava grávida de nove meses da Bianca, com cesá-
rea marcada para o dia seguinte. Eddie Joey havia estudado pouco. Foi criado pela avó e traba-
lhava como garçom em um restaurante perto de onde residia. Ambos estavam na esquina da
rua Campos Sales e Braz Cubas, Vila Mathias, próximo ao centro de Santos, quando chegou
um carro verde-escuro, ou preto, com quatro pessoas, que passaram a disparar contra eles.
Segundo informações oficiais, o policial militar Samir do Nascimento Rodrigues Car-
valho compareceu ao local, acionado por “populares”, onde encontrou dois indivíduos al-
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Relat ório fin al
vejados por arma de fogo. Relata o policial que, ao chegar ao local do fato, constatou que as
vítimas tinham sido removidas ao Pronto-Socorro Central, onde faleceram122.
Eddie Joey de Oliveira Lavezaris foi alvejado com oito tiros: dois nas costas, dois nas
mãos, três no peito e um na cabeça, por trás123. Ana Paula Gonzaga dos Santos foi atingida
por cinco tiros: um na têmpora esquerda; um no abdome, logo abaixo do umbigo; um na
coxa, por trás; um no braço esquerdo, por trás; um na perna direita124. O exame de corpo de
delito atestou a morte do feto, com 48 centímetros, por “inviabilidade materna” – ele apre-
sentava lesões na mão e no joelho esquerdo.
Vera Lúcia Gonzaga dos Santos, mãe de Ana e avó da Bianca, após colher relatos de
pessoas que testemunharam os assassinatos, contava:
Um tiro pegou na perna do Joey. Houve uma discussão rápida e o Joey falou que trabalhava,
falou onde trabalhava e que não devia nada. Aí começou uma discussão, ele atirou de novo
no Joey. A Ana entrou na frente, ele pegou no braço dela, só que ela desequilibrou, e caiu
sentada. Ele levantou ela pela jaqueta. Quando ele a levantou, ela arrancou o capuz dele.
Aí o Joey falou o nome dele125, “me prende, me mata, faz o que você quiser, mas solta ela,
pois está grávida”. Ela já estava numa gravata com a nuca no peito dele e ele com a arma na
cabeça dela. O Joey questionou, mandou soltar ela que ela estava grávida, ele olhou para
o Joey e apertou o gatilho e soltou ela no chão, ela já caiu morta. O Joey se jogou em cima
dela, gritando por socorro, falando o nome deles, que era para todo mundo ouvir quem era.
E gritando “filha, filha, olha nosso neném, olha nosso neném”; foi quando eles metralharam
o Joey pelas costas. Ele veio até a porta do carro, mas voltou e deu um tiro na barriga dela.
Falou que “filho de bandido, bandido era”. E foram embora126.
No inquérito policial do 4o Distrito Policial de Santos, foi ouvida Vera Lúcia Gonzaga
dos Santos, que declarou que, embora o genro já tivesse tido passagem, no momento do
crime levava uma vida decente com sua filha, a qual nunca teve envolvimento em crimes127.
Os fragmentos metálicos de projéteis colhidos no local do crime por Vera Lúcia,
algumas horas depois dos assassinatos, foram apresentados durante as investigações, po-
rém a perícia do Instituto de Criminalística alegou que, pelo estado em que se encontra-
vam, não era possível definir o calibre dos fragmentos. João Góes, vigia que trabalhava
em um posto de gasolina próximo ao local do crime, testemunhou o ocorrido e, após ser
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perguntado por Vera, relatou o que viu acontecer naquele dia. João Góes foi assassinado
posteriormente128.
O velório, como em outros casos, foi realizado sob ameaças e tentativas de intimida-
ção, como narra Vera Lúcia:
No velório, parou uma viatura no portão dos fundos e perguntou de quem era o velório.
Então começaram a pegar endereço e r.g. de todo mundo que entrava ou que saía [...], mas
foi a noite inteira eles para lá e para cá, batendo na porta da viatura, gritando, iam para o pé
do morro. Escutávamos as rajadas de bala. Mas eu não fechei o velório, eu não deixei de dar
um velório digno para a minha filha, para o meu genro e para minha neta129.
Nesses dez anos, fomos para São Paulo várias vezes para depor, fomos para o jornal, falei
tudo que eu sabia, só não dei o nome dos santos, mas contei o “milagre”, o enredo todo, que
não é diferente dos outros. O jornal saiu na terça-feira, na quarta-feira eu já estava presa,
invadiram minha casa. Eu, que não matei ninguém, fui presa [...] Por ocasião da minha pri-
são, não teve nem acompanhamento do processo ou prosseguimento do caso. Tanto é que
eu perdi o direito de reclamar qualquer coisa, porque eu estava presa130.
O processo das vítimas foi arquivado seis meses depois do crime, no dia 24 de no-
vembro de 2006, a pedido do promotor de justiça Octavio Borba de Vasconcellos Filho,
sem as devidas investigações, sob a seguinte afirmação: “Eu, de minha parte, não vislumbro
quaisquer outras diligências a serem empreendidas para uma melhor elucidação dos fatos”.
Em novembro de 2011, por solicitação do defensor público Antônio Maffezoli, foi re-
querido o deslocamento de competência. Contudo, não consta no documento oficial ne-
nhum resultado de investigação das informações fornecidas por Vera Lúcia dos Santos,
mãe da vítima Ana Paula Gonzaga dos Santos, em relação aos apelidos e codinomes dos
supostos policiais agentes do crime, das testemunhas sobreviventes da tentativa de homicí-
dio e nem da apuração do assassinato do vigia do posto, que poderia estar relacionado com
o testemunho do homicídio do casal Ana Paula e Eddie Joey.
Os crimes na Baixada Santista prosseguiram e fizeram mais uma vítima fatal no
dia 15. edson rogério silva dos santos, 29 anos, morador de Santos, que trabalhava
como gari.
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Relat ório fin al
No dia do crime, Edson Rogério estaria pilotando a moto de um amigo, Ricardo, quan-
do ficou sem combustível. Empurrou-a até um posto de combustível chamado Umuarama,
localizado na avenida Nossa Senhora de Fátima no 673, na esquina com a rua Jovino de
Melo, mas estava fechado. Edson teria telefonado para o amigo Ricardo, que veio pilotando
a moto que pertencia a Edson. Em seguida teriam sido abordados junto com um segurança
do posto e um frentista por oito policias militares que ocupavam um veículo Blazer e dois
Gol da Polícia Militar131.
Segundo Débora Maria da Silva, mãe da vítima, Edson Rogério teria sido abordado e
espancado pelos policiais em razão de ter passagem pela polícia – anos antes ele cumprira
pena por roubo. Após a abordagem (duração aproximada de dez minutos), Edson teria
pegado sua moto e ido ao posto Portal para buscar gasolina. Ricardo teria esperado até às
5h, mas, como o amigo não voltava, pegou emprestada a bicicleta do vigia e foi comprar
gasolina para a sua moto, indo embora na sequência. Somente mais tarde o amigo soube
que Edson havia sido abordado perto dali, no morro Nova Cintra. Seu corpo foi encontrado
na rua Torquato Dias no 288, rua que Edson varrera na mesma tarde, pois trabalhava havia
quatro anos com carteira assinada na empresa Terracom, concessionária de limpeza na ci-
dade de Santos132.
Débora Maria da Silva rememorava o dia do assassinato do filho da seguinte forma:
Digo que o toque de recolher do dia 15 de maio, que parou São Paulo, foi o toque de recolher
da pm. Foi da polícia. Porque um policial militar que era da minha família ligou para avisar
que as pessoas “de bem” não deveriam ficar na rua, porque quem estivesse na rua era inimi-
go da polícia [...] Nesse dia encerraram o expediente, não tinha ônibus, não tinha carona,
tinha dado aquela pane em todo mundo, todo mundo correndo para dentro de casa [...] e
dizendo que tinham encontrado um corpo carbonizado [...] Às 10 horas da noite o Rogério
foi para minha casa buscar remédio, devido a um inchaço derivado do tratamento de den-
te. Falou que ia embora rapidinho e pediu r$ 10,00 para colocar gasolina na moto. No dia
seguinte, dia 16 de manhã, quando eu liguei o rádio polícia, eu escutei sobre a morte dele133.
131. Depoimento de Débora Maria da Silva à Comissão Justiça e Paz de São Paulo em 1o de outubro de
2007.
132. Depoimento de Débora Maria da Silva à Comissão Justiça e Paz de São Paulo em 1o de outubro de
2007.
133. Narrativa concedida no dia 3 de março de 2017.
134. Conforme laudo necroscópico, Rogério foi baleado com cinco tiros: três no tórax e abdômen, pela
frente; dois abaixo da cintura, por trás.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
do no Pronto-Socorro da Zona Noroeste. A moto de placa dlh 6846, Yamaha/ybr 125, foi
apreendida e encaminhada ao pátio municipal da Companhia de Engenharia de Tráfego
(cet) de Santos135.
Em declaração feita ao Ministério Público em 28 de fevereiro de 2011, Débora alega
que se dirigiu várias vezes ao distrito e à Promotoria do Júri, mas nunca foi chamada para
depor na polícia. Outra questão apontada por Débora refere-se à fita com a gravação da
chamada ao Copom. Quando a fita foi solicitada, o Comando Geral da Polícia informou
que os equipamentos do Copom estavam quebrados desde o dia 26 de abril de 2006, porém
em 16 de maio de 2006 o atendimento ao acontecimento envolvendo seu filho foi acionado
via Copom, assim como os de outros casos citados neste relatório.
Como afirma a mãe da vítima:
Eles [Comando Geral da Polícia] fizeram uma coletiva de imprensa para dizer que o Co-
pom 190 estava quebrado desde o dia 26 de abril, que não registrou nenhuma ocorrência.
Registrou sim; no caso dos meninos foram feitos chamados via Copom. No caso do meu
filho o condutor do b.o. fala que foi chamado via Copom para atender uma ocorrência de
homicídio, e depois ele é chamado no distrito, porque a mãe estava acusando policiais mi-
litares que mataram o filho dela136.
Foi acusado de ter praticado um assalto, com testemunha, quando foi entregar uma pipa
na pracinha. Estava com 18 anos. Colocaram-no na viatura e o levaram para o 5o Distrito e
depois para o 1o Distrito (Santos/sp). Apanhou da polícia para assinar um flagrante, sendo
que ele não fez. O avô fez assinar uma coisa que ele não fez para parar de apanhar. Depois de
três meses saiu a condenação e foi para Guarulhos (sp), onde fez um curso de informática
e terminou os estudos. Trabalhou na cozinha da cadeia e acabou sendo transferido para o
regime semiaberto em Mongaguá (sp). Foi trabalhar com jardinagem e logo em seguida
saiu da cadeia138.
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Relat ório fin al
No depoimento à Comissão Justiça e Paz de São Paulo, que consta na denúncia, Dé-
bora contou que Ricardo, o amigo de Edson, narrou durante o velório que, no momento da
abordagem no posto, os policiais bateram nele e disseram a Edson “morreu, você é ladrão”,
após ele confirmar que tinha antecedentes criminais139. Ainda assim, apesar de Ricardo ser
uma testemunha presencial da agressão policial sofrida por Edson, nunca foi convocado
para depor.
Débora relata que:
Um amigo [Ricardo] que esteve com o Rogério contou que acabou a gasolina da moto e ele
foi empurrando a moto até o posto. Quando chegou no posto, as duas viaturas encostaram,
uma força tática e um Gol, e começaram a perguntar para ele o que estava fazendo na rua,
e ele já disse que era um trabalhador, que não devia nada para ninguém e ali ele já tomou
uns tapas140.
Débora afirma também que, no velório, diversas viaturas policiais ficavam passando
defronte ao local, cantando pneus e dirigindo em alta velocidade. Um carro Fiat Marea
preto estava estacionado no local, de onde constantemente saía uma pessoa que entrava no
velório e depois retornava ao veículo.
O enterro foi uma coisa bem assustadora porque as pessoas vinham ver o Rogério e quando
iam embora tinham que voltar para dentro do cemitério porque os policiais, inclusive as
femininas, estavam dentro do cemitério da Areia Branca, todos encapuzados, e as pessoas
corriam todas com medo. Tinha carro preto, cantavam pneu na frente do cemitério141.
Outro elemento importante no caso de Edson Rogério é o projétil de arma de fogo que
ficou alojado em seu corpo, prova material que deixou de ser recolhida. No laudo da necrop-
sia consta que os médicos-legistas tentaram retirar o projétil, porém os instrumentos utili-
zados pelos peritos quebraram a coluna da vítima e Edson foi enterrado com uma das balas
que o matou ainda alojada no corpo142. Em junho de 2012, o cadáver de Edson foi exumado
e o projétil foi finalmente retirado, porém até hoje nenhum exame balístico foi realizado.
Débora atesta, na denúncia, que, quando foi liberar a moto de Edson no pátio da Com-
panhia de Engenharia de Tráfego (cet) de Santos, foi atendida por três funcionários e dois
policiais militares, encarregados de conferir o chassi dos veículos que seriam liberados. Ne-
nhum deles conferiu o chassi da moto de seu filho. Ao pegá-la, abriu o tanque para verificar
se havia gasolina, quando constatou a presença de um pó branco no fundo. Débora veri-
ficou que se tratava de cerca de meio quilo de açúcar. Chamou o policial e o questionou a
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respeito do fato. Ele respondeu que o produto teria sido colocado no Distrito Policial, não
no pátio, orientando-a a não ligar o veículo, pois resultaria na perda total da motocicleta.
Tal fato nunca foi investigado, segundo a mãe da vítima, e não consta em nenhuma do-
cumentação oficial143. “Pedi a câmera de monitoramento do posto de gasolina, mas aí foi
apagada a filmagem. Quando eu tirei a moto dele do pátio, encontrei meio quilo de açúcar
no tanque da moto”144.
Débora relata também que, no dia da missa de um ano da morte do filho, comparece-
ram na igreja e no cortejo várias viaturas policiais, na tentativa de intimidação.
No dia 19 de junho de 2008 foi encaminhado ao Ministério Público do Estado de São
Paulo da Promotoria do Júri, assinado pelo promotor Octavio Borba de Vasconcellos Filho,
o pedido de arquivamento do caso. No pedido se afirma, contrariando as declarações de
Débora, que Edson Rogério teria sido abordado, quando se encontrava em um posto de
gasolina, por policiais militares em “regular ronda”, os quais agiram de maneira “correta e
rápida”, conforme depoimento de segurança do posto e deixaram o local logo após; e que
o outro frentista e segurança do posto de gasolina Umuarama, Manuel Souza de Medeiros,
igualmente afirmou que a vítima chegara empurrando uma motocicleta, que depois todos
foram abordados por policiais militares que “agiram de maneira correta e serena”; que fo-
ram identificados oito policiais que atuaram naquela área na noite e madrugada de 15 e 16 de
maio – tendo prestado depoimento e negado qualquer responsabilidade no homicídio – e
que teriam abordado a vítima; e que Manuel Souza de Medeiros, do posto de gasolina, após
ser colocado frente a frente com os policiais militares em questão, afirmou não terem sido
os mesmos policiais que estiveram no posto de gasolina145.
Depois de relatar a saga de Débora, o promotor a define como “incansável mãe”, de-
clarando, por fim, não vislumbrar nenhuma outra diligência a ser empreendida para uma
melhor elucidação dos fatos, sendo arquivado o inquérito, sem nenhuma apuração, em 23
de junho de 2008, quatro dias depois do pedido.
No município de Guarujá verificamos quatro ocorrências de morte de civis com carac-
terísticas semelhantes. Os dois primeiros eventos ocorreram quase simultaneamente, por
volta das 22h30 do dia 15, e ambos no bairro Vicente de Carvalho.
igor mota dos santos, 22 anos, era ajudante geral e foi atingido por nove tiros. O
homicídio ocorreu em sua própria residência, na rua Hum, no 5, no bairro Vila Edna, mu-
nicípio de Guarujá. O homicídio foi reportado pela mãe da vítima, Elena Mota dos Santos,
que afirmava que “se encontrava no interior de sua residência, e então teria ouvido disparos
e, ao sair para fora da casa, encontrou seu filho caído no quintal, já sem vida”146.
No laudo necroscópico há a indicação de que quatro dos nove ferimentos podem ter
sido causados por arma de calibre 9 mm, e a mãe da vítima, Elena dos Santos, relata que
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Relat ório fin al
recolheu cinco cápsulas de projéteis identificados como calibre .380 ou ainda como “9 mm
curto”, compacta, leve, porém de curto alcance147.
aldo pedrazolli da silva, jovem estudante de 20 anos, foi atacado por dois “in-
divíduos brancos, encapuzados”, que estavam em uma “motocross, paralama de cor verme-
lha e o tanque de cor branca com a inscrição de letras em vermelho, placas e marca não
anotadas, ambos armados com revolver 38 cromado, ambos trajando vestes escuras”, e que
realizaram uma série de disparos. O ataque ocorreu na avenida Santos Dumont, no bairro
Vicente de Carvalho, no município de Guarujá. Fábio Amâncio dos Santos, 21 anos, estava
junto com Aldo no momento do ataque e sobreviveu se escondendo no mangue próximo
da rodoviária de Guarujá, lá permanecendo por mais de duas horas e testemunhando o
homicídio de Aldo148.
O sobrevivente e testemunha Fabio Amâncio dos Santos descreveu que ele e Aldo
estavam andando de bicicleta no centro de Guarujá, quando dois indivíduos encapuzados
dirigindo uma moto paralama cor vermelha começaram a disparar uma alvejada de tiros
contra os dois149. Aldo Pedrazolli da Silva levou dois tiros no tórax, e ambos os ferimentos
letais são identificados como compatíveis com projéteis de arma de fogo de 9 mm150.
Podemos destacar, nesses dois casos ocorridos em sequência e em locais próximos, a
utilização de projéteis de mesmo calibre, 9 mm, sugerindo que os disparos contra as duas
vítimas podem ter sido realizados pela mesma arma de fogo e, portanto, pelo mesmo grupo
de extermínio. Além disso, notamos que pistolas que utilizam projéteis de calibre 9 mm
possuem um alto índice de recorrência na maioria dos assassinatos ocorridos entre 12 e 19
de maio de 2006. Esse tipo de arma de fogo no Brasil, principalmente a de calibre 9 mm do
tipo “curto”, é utilizado para defesa pessoal, pois são armas de pequeno porte, leves e mais
utilizadas para alvos a curta distância.
Algumas horas mais tarde, por volta da 1h da madrugada do dia 16, verificamos outras
duas ocorrências no mesmo bairro de Guarujá, Vicente de Carvalho, com apenas quatro
minutos de diferença entre elas.
fabiano ribeiro barbosa foi encontrado morto por dois policiais militares, com
ferimentos ocasionados por tiros de arma de fogo. Os policiais, realizando um patrulha-
mento de rotina, receberam, via Copom, um chamado de homicídio ocorrido na rua São
Sebastião, em frente ao número 928151.
Fabiano Ribeiro Barbosa, que tinha 18 anos e era pintor de profissão, foi atingido por dez
tiros, sendo cinco deles por cápsulas de 9 mm e um por cápsula calibre .380. Dois tiros atin-
giram a cabeça, três o tórax, um o abdômen, dois o braço esquerdo e dois a perna direita152.
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Outro caso que aconteceu em Guarujá foi o assassinato de josé wilson silva dos
santos. O corpo da vítima foi encontrado, já sem vida, caído na calçada, por dois policiais
que efetuavam patrulhamento de rotina e atenderam um chamado de homicídio, via Co-
pom, na rua Mato Grosso, defronte ao número 1026, no bairro Vicente de Carvalho. Nesse
caso também não houve testemunhas.
José Wilson Silva dos Santos, 26 anos, ajudante geral, foi alvejado por doze tiros, sendo
onze deles por cápsulas de 9 mm recolhidas no local do crime153. Quatro tiros foram dispa-
rados na cabeça, quatro no tórax, dois no braço direito, um no braço esquerdo e um na mão
esquerda154.
Além da grande quantidade de disparos contra as duas vítimas civis – dez tiros em
Fabiano Ribeiro Barbosa e doze em José Wilson Silva dos Santos –, a região do corpo, a po-
sição e a trajetória dos disparos também são bastante similares. A grande maioria dos tiros
acertou a cabeça e o tórax. As cápsulas dos projéteis recolhidas nos respectivos locais dos
crimes e o exame das feridas de ambas as vítimas, segundo os respectivos laudos, revelam a
grande quantidade de disparos de armas de fogo de 9 mm.
Nos assassinatos de Fabiano Ribeiro Barbosa, José Wilson Silva dos Santos e Igor Mota
dos Santos não houve testemunhas. Os corpos das vítimas, já falecidas, Fabiano Ribeiro
Barbosa e José Wilson Silva dos Santos foram encontrados por policiais nos respectivos
locais do crime. No caso de Igor Mota do Santos, o corpo da vítima, também já sem vida,
foi encontrado pela própria mãe no quintal de sua residência.
As quatro mortes aconteceram no mesmo bairro de Guarujá, Vicente de Carvalho,
e apresentam indícios de execuções sumárias em sequência, iniciada por volta das 22h30
do dia 15 e finalizada aproximadamente à 1h da madrugada do dia 16 de maio, realizada
provavelmente pelo mesmo grupo de extermínio caracterizado por pessoas não identifica-
das, usando capacetes ou capuzes, dirigindo motocicletas (“ninjas”), que teriam assassinado
cidadãos que violaram o “toque de recolher” decretado não oficialmente pela polícia. Seja
pela documentação oficial, seja pelo relato das testemunhas e dos familiares, nenhuma das
mortes apresenta indícios que indiquem algum motivo evidente e justificado ou algum sinal
de reação das vítimas aos ataques ocorridos em vias públicas (caso dos homicídios de Fabia-
no Ribeiro Barbosa, José Wilson Silva dos Santos e Aldo Pedrazolli da Silva) e até mesmo
em território privado, como no quintal da própria residência (caso da execução de Igor
Mota dos Santos).
No município de São Vicente verificam-se outras duas ocorrências de homicídio de
três civis, com características semelhantes àqueles registrados em Santos e Guarujá descri-
tos anteriormente.
vitor diego martins e rodrigo cruz reis foram vítimas de uma série de disparos
efetuados por indivíduos desconhecidos155. Vitor Diego Martins levou cinco tiros e Rodrigo
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Relat ório fin al
Cruz Reis, três – ambos levaram tiros na cabeça do lado direito, próximo à boca, nas costas e
no braço esquerdo156. O homicídio duplo ocorreu na rua xv, sem número, no bairro Tancredo
Neves, onde, segundo informações oficiais, “elemento(s) não identificado(s) realizaram vá-
rios disparos de arma de fogo contra as vítimas, as quais foram atingidas e faleceram quando
eram encaminhadas ao Centro de Referência em Emergência e Internações de São Vicente”157.
Os relatos da mãe da vítima Rodrigo Cruz Reis, Márcia Alves da Cruz, descrevem inú-
meras irregularidades na ação de agentes públicos, que contrastam com as versões oficiais
sobre os acontecimentos.
Existem informações de que houve o “toque de recolher” decretado pela polícia no
bairro em que os dois jovens, Vitor Diego Martins e Rodrigo Cruz Reis, foram assassinados.
Rodrigo Reis estava na frente de sua residência quando a polícia passou e falou: “vamos
entrar, vamos entrar. É toque de recolher, não quero ninguém na rua, vamos entrar”158.
Segundo a testemunha do ocorrido, o corpo do rapaz não foi levado pelo carro do resgate,
mas sim pela viatura policial: “o resgate estava parado aqui. Mas quem levou foi a viatura”.
Vitor Diego Martins e Rodrigo Cruz Reis, jovens de 17 e 21 anos, eram conhecidos,
tinham sido “colegas de escola, jogavam futebol juntos” e morreram juntos, executados em
plena via pública em frente a um colégio e próximo da casa da namorada de Rodrigo.
Aproximadamente dois anos depois da morte de Rodrigo, verificamos uma possível
“queima de arquivo”.
Como afirma a mãe:
[...] veio a conversa que o cara que matou ele tinha morrido. Até então eu não sabia que esse
Maguila [apelido do policial] que fuzilaram aqui na treze era ele também. Esse policial era
meu vizinho que morava aqui e tinha mudado. Só que ele matou porque foi pago para matar159.
Os danos aos familiares e as sequelas psicológicas desses casos são resultados patentes
do descaso, dos equívocos e do desincentivo das autoridades públicas de investigar as ocor-
rências e descobrir e punir os responsáveis.
Márcia Alves da Cruz relata que “Arquivaram o caso com dois meses. O promotor
falou: ‘está aqui a ficha do seu filho, tudo aqui’. O dia que a Sra. descobrir quem fez isso com
ele, você vem me procurar”160.
Com auxílio de um advogado, a mãe “ganhou a questão” com uma indenização de r$
1.800,00 pela perda do filho:
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A senhora tem que estar no fórum tal hora pra pegar o dinheiro que ele recebeu. Foi pouco
mas ajudou, r$ 1.800,00, mas ajudou. Uma semana antes de morrer, tinha me dado um
jogo de sofá de Dia das Mães. Faltavam duas prestações para pagar de r$ 19,00 e ele estava
nervoso porque não tinha esse dinheiro para pagar e não queria sujar o nome dele [...] Sabe,
ele era um sonhador. Tanto é que tirou carta, porque ia trabalhar de motoboy [...] E nada
deu certo. Ele era um sonhador. Sonhava muito [...] e muito161.
Aproximadamente uma hora e meia mais tarde, por volta da 1h da madrugada do dia
16, na rua Amador de Queiroz, defronte ao número 513, no Jóquei Clube de São Vicente, não
distante do local das mortes de Vitor Martins e Rodrigo Reis, thiago santos franco-
lino foi assassinado em um crime com características semelhantes162.
Thiago levou dois tiros de frente, um na cabeça, próximo à boca do lado esquerdo, e
outro na coxa esquerda163. Segundo o jornal A Tribuna, outras duas vítimas, Rafael Portão
dos Santos e Paulo Roberto de Souza Silva (Pompeba), teriam sido feridas por disparos de
armas de fogo um pouco depois do homicídio de Rodrigo Reis e Vitor Martins e antes da
morte de Thiago Santos Francolino nas proximidades do Jóquei Clube de São Vicente164.
Tais eventos podem estar relacionados e podem ter sido executados pelo mesmo grupo de
extermínio.
O boletim de ocorrência do caso de Thiago Francolino também apresenta informações
bastante imprecisas e lacunares sobre a descrição dos fatos da ocorrência de homicídio,
indicando apenas que “elemento(s) não identificado(s) realizaram vários disparos de arma
de fogo contra a vítima, tendo a mesma sido socorrida no Centro de Referência em Emer-
gência e Internações de São Vicente, onde veio a falecer”165.
Os dados oficiais apresentados acima sobre os homicídios ocorridos desde as 7h do
dia 15 até às 7h do dia 16 de maio indicam inúmeras falhas nas investigações por parte das
autoridades públicas na busca da resolução dos casos e na identificação dos culpados – por
exemplo, ausência ou falha na realização da perícia no local do crime, falha ou ausência
no recolhimento de depoimentos de todas as testemunhas presenciais e pessoas envolvi-
das nos eventos, falha ou ausência no recolhimento de evidências que poderiam ter sido
utilizadas como provas materiais dos crimes, falha ou ausência de investigação sistemática
dos dados fornecidos pelos depoentes envolvidos com as vítimas. O modus operandi ca-
racterístico da ação dos grupos de extermínio na Baixada Santista é evidenciado em vários
de seus aspectos.
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Relat ório fin al
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Relat ório fin al
Aproximadamente uma hora mais tarde, joão góes, de 67 anos, que trabalhava como
vigilante num posto de gasolina situado na esquina da rua Brás Cubas com a rua Bitten-
court, no centro de Santos, a um quarteirão da Câmara Municipal da cidade e da praça do
Patriarca José Bonifácio e a três quarteirões dos pontos turísticos da Fonte do Itororó e do
elevador que leva ao Monte Serrat, foi alvejado por disparos de arma de fogo efetuados por
um “indivíduo desconhecido conduzindo uma motocicleta Biz de cor preta” 171. Os tiros fo-
ram certeiros e João deve ter morrido na hora; ele recebeu dois tiros no peito esquerdo, que
atingiram o coração e o pulmão e causaram um choque hemorrágico interno172. Segundo o
boletim de ocorrência, o policial militar que compareceu ao local socorreu a vítima e a le-
vou para o Pronto-Socorro Central. No local não conseguiu encontrar nenhuma prova ma-
terial do crime, contentando-se com informações de “populares”. O seu relato é telegráfico:
“Não foram verificados cartuchos no local e nenhum vestígio de disparos de arma de fogo
no citado posto. Nada mais”, segundo o histórico que consta do boletim de ocorrência173.
A menção aos “populares” e à ausência de cartuchos no local é reveladora, pois, de
acordo com os distintos depoimentos dados por Vera Lúcia Gonzaga dos Santos a respeito
do assassinato da sua filha grávida e do seu genro na noite anterior, o crime ocorreu no
mesmo local e em circunstâncias parecidas174. João Góes era o vigilante do posto de gasolina
vizinho e presenciou aquele duplo assassinato junto com outras pessoas que estavam lá e
viram quando “aquele mesmo carro lá voltou e aqueles mesmos quatro homens recolheram
todas as cápsulas dos projéteis utilizados, que estavam pelo chão”175. Antes de ser fatalmente
alvejado pelos dois tiros que o mataram, na noite anterior João Góes tinha sido procurado
por Vera Lúcia, que buscava informações sobre o assassinato da filha e do genro, e contou o
que presenciou e como ouviu a vítima gritar os apelidos de dois dos quatro policiais que os
tinham atacado: “Nego Cruschi” e “Camarão”.
Segundo Vera Lúcia, sua conversa com João foi presenciada por um motoqueiro que
os vizinhos do posto suspeitam ter sido seu assassino:
O vigia me disse que conseguiu identificar esses policiais no local, porque os nomes que
o Joey tinha gritado foram muito fortes, e o vigia ouviu isso. Posso dizer que, quando eu
conversava com o vigia do posto, tinha uma moto prata ali perto. Quando eu soube, depois,
que o vigia tinha morrido, uma pessoa ali do bairro mesmo me disse que o condutor de
uma moto prata tinha atirado no vigia. Associando as coisas, concluo que essa moto prata
sabia que o vigia tinha me dito alguma coisa176.
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De acordo com essas evidências, tudo indica que João Góes tenha sido morto como
“queima de arquivo” porque tinha presenciado os crimes da noite anterior.
márcio greick pires dos santos foi a quarta vítima dessa madrugada. Tinha 32
anos, era solteiro e estava em frente à sua casa, na rua Edgard Cavalheiro ao lado do número
274, na Vila Jóquei Clube, em São Vicente, próximo à favela de palafitas do dique177. O poli-
cial militar que narrou os fatos para a elaboração do b.o. informou que compareceu ao local
para averiguar uma denúncia de disparos de arma de fogo, encontrou “uma vítima no solo
e com ferimentos pelo corpo” e a socorreu, levando-a ao “Crei, onde veio posteriormente a
falecer, em decorrência de vários disparos de armas de fogo. Foi requisitado exame necros-
cópico. Nada mais”178. O laudo constatou que Márcio morreu por causa de um traumatismo
craniano em decorrência de dois tiros na cabeça de cima para baixo e mais quatro no ab-
dômen e nos braços, sugerindo que no momento do ataque a vítima provavelmente estava
agachada e se protegia com os braços179.
Sobre a última vítima, pouco se sabe com precisão além do seu nome, ederson car-
neiro dias ribeiro, e do número de identificação do b.o., 1192/06180, lavrado no 2o d.p.
de São Vicente. O b.o. não foi localizado, mas uma denúncia registrada na Ouvidoria da
Polícia sob o número 2207/06 conta que Ederson morreu depois de ser atingido por dois
tiros na cabeça:
Denúncia anônima conta que dois policiais militares estariam envolvidos na morte de
Ederson. Na noite do crime, um dos policiais teria dito em voz alta, em uma das ruas do lo-
cal, que: “quem tiver peito de aço que saia na madrugada”. Na madrugada, o mesmo foi visto
por moradores chegar encapuzado em sua moto na sua residência. Em outra denúncia, bem
como anônima, alega que um outro policial disse em um bar que Ederson foi morto por ter
reconhecido os policiais que o abordaram. Moradores que escutaram os disparos ouviram
apelos de Ederson pedindo que não o matassem e chegou a citar nomes de alguns policiais.
Os moradores estão sendo ameaçados para que não testemunhem. Que a moto Suzuki azul
foi reconhecida como sendo de um policial. A ocorrência foi registrada no Boletim 1192/06
de São Vicente181.
O balanço das cinco vítimas fatais dessa madrugada é cruel. Foram 24 tiros para cinco
indivíduos, perfazendo uma média de quase cinco tiros por pessoa. Foram nove tiros na
cabeça e dois no peito para cinco indivíduos em duas horas e meia.
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Mapa 5. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 16 de maio até a madrugada do dia 17 de maio.
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tiros estavam sendo disparados. Lá chegando, deparou com a vítima baleada, caída no chão
sem testemunhas presenciais nas imediações186.
O policial alega que imediatamente teria providenciado socorro, uma viatura da Po-
lícia Militar, que teria levado a vítima ao Pronto-Socorro Central, local onde Mateus teria
falecido. Contudo, essa versão contraria a do Sr. João Inocêncio, pai da vítima, que relata
que, com o filho nos braços, teria recebido a viatura da polícia para o socorro, uma viatura
policial com vários policiais, entre os quais o policial Rema, que, inclusive, o chamou pelo
nome e sugeriu que entrasse na viatura para que fossem levados ao hospital. No hospital,
presenciou uma cena em que uma enfermeira desconhecida se exaltou com os policiais e
pediu para que parassem de matar os jovens187.
Vera Lúcia Andrade de Freitas, mãe de Mateus, relata o momento do assassinato do
filho:
[...] ele estava ali parado, esperando o amigo, e chegou a moto com dois encapuzados ati-
rando; ele [Ricardo] ficou jogado no chão, ele estava com o olho todo furado, a cabeça cheia
de tiro. O João, quando chegou na esquina, viu o menino no chão e o Mateus tinha ido em
direção ao morro, então ele continuou correndo; quando ele virou a esquina, o Mateus es-
tava no chão. O Mateus já estava morto, mas na hora ele falou: “Não vou deixar meu filho
aqui”. Ele pegou o Mateus nos braços e falou: “Vou levar para casa”. E começou a chorar.
Acho que alguém ajudou a colocar o Mateus nos ombros e veio vindo [...] A única coisa que
eu sei é o que me falaram que o menino disse para o Mateus: “Não corre, isso não é para
você!” E que gritaram: “Olha os ninjas!” Eu sei que muita gente se escondeu, porque do jeito
que foi, era para ter morrido muito mais gente. A pizzaria baixou as portas, porque estava
cheia, fechou com todo mundo lá dentro. Sei que eram duas motos, com dois encapuzados,
que pegaram o Ricardo, correram para pegar outro e pegar o Mateus. Quando o João esta-
va chegando, não tinha cinquenta metros, porque aqui as quadras são pequenas, já estava
chegando a polícia. A polícia já estava vindo, rapidinho a polícia já estava aqui, tudo indica
que ela estava por perto. Tinha um rapaz aqui do bairro que era policial, quando ele viu o
João, falou: “Coloca ele aqui, vamos levar para a Santa Casa”. O João disse: “Ele vai, mas eu
vou junto”. Depois o João falou: “Eu tinha esperança que chegasse lá e eles ressuscitassem
meu filho”. Foi quando chegou lá e disseram que ele estava realmente morto. O João disse
que, quando ele chegou, uma enfermeira ficou muito nervosa e começou a gritar para os
policiais que eles parassem de matar e trazer os corpos dessas crianças aqui para o hospital,
que ela já não aguentava mais. Disse que começaram a bater boca, os policiais com a enfer-
meira. Aí disseram: “Quer fazer um b.o.?” E ela disse: “Eu faço mesmo!” [...]188.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
Conforme o laudo, Mateus foi executado com três tiros, dois na cabeça e um no pesco-
ço189. Na declaração do inquérito, do 5o Distrito Policial de Santos, o Sr. João Inocêncio diz
que o filho chegou no Pronto-Socorro Central já morto190.
A partir das investigações empreendidas pelo Sr. João Inocêncio, surgiu a informação
de que Pedrinho [dono da pizzaria] teria recebido um telefonema, alertando-o para que fe-
chasse o estabelecimento. Contudo, Pedrinho não atendeu ao aviso. Após os crimes, o dono
da pizzaria continuou recebendo outros telefonemas semelhantes. Esse relato reforça o que
várias pessoas da comunidade dizem: que, embora não houvesse um “toque de recolher” e
o próprio secretário de Segurança alegasse na tv que estava tudo sob controle e que as pes-
soas deveriam voltar a suas rotinas normalmente, avisos para que não se saísse à rua nem se
abrissem os comércios estavam sendo dados por meio de telefonemas.
Pedrinho, dono da pizzaria, nunca foi ouvido, e, apesar de ter sido solicitado pelo Sr.
João Inocêncio em depoimento, não foi investigado de onde vieram tais telefonemas.
A mãe de Mateus recordava os acontecimentos:
A gente começou a ficar assustado, começou todo mundo a não sair mais de casa, porque
tinha tido aqueles ataques aos ônibus, as pessoas tinham medo de pegar os ônibus, então
as escolas começaram a devolver as crianças, as mães foram pegar os filhos. E aí eles esta-
vam os dois na escola, o meu mais velho trabalhava e estudava; eu falei: “Olha, você não
tem necessidade de sair, então fica em casa, porque está perigoso”. Eles vão revidar e quem
estiver na rua pode ser atingido, ainda pensei assim [...] o secretário de Segurança deu uma
entrevista dizendo que era para todo mundo ir para as escolas, que tinha que levar a vida
normalmente, porque não tinha necessidade de todo mundo ficar dentro de casa, as escolas
estavam tendo aula normalmente191.
• 150 •
Relat ório fin al
[...] a gente ficou aguardando a polícia, disseram que a polícia ia chamar a gente para con-
versar, mas ela nunca convocou ninguém [...] fomos juntas falar com o delegado da secio-
nal, fomos na oab falar com a advogada dos direitos humanos da oab e também falamos na
delegacia secional que até agora ninguém tinha chamado a gente. Que não tinha nada. Ele
pegou o telefone e ligou para o delegado do 5o Distrito, que seria o que atendeu a gente, que
foi feito o b.o. primeiro, porque era noite, mas depois veio para o Distrito que abrange aqui.
Então nós fomos lá. Esse delegado, logo afastaram, mandaram para outro lugar. Veio outro,
este que veio, logo saiu de férias. Veio um substituto, e quem acabou pegando as ocorrências
foi o substituto [...] Passado uns dias, vieram com a convocação para a gente ir lá, eu disse:
“Vai ver que já está andando, em todo caso eu vou lá saber realmente se é mais alguma coisa
que eles querem saber da gente ou se era para pegar o” [...] aí fui falar com escrivão; quando
eu cheguei lá ele estava de férias, foi o outro escrivão que pegou primeiro, ele já tinha volta-
do [...] Ah não, então, ele disse tá tudo bem e ficou tudo por isso mesmo. Não aconteceu
nada [...] no promotor público, ele dizia: “Mas ninguém sabe quem foi! Não vamos poder
provar nada, vocês façam suas investigações, tragam as pessoas aqui para prestar declara-
ções, testemunhar, porque ninguém sabe de nada, não tem como saber, vieram encapuza-
dos, como é que a gente vai saber quem foi?” E ficou enrolando a gente esse tempo todo [...]
Um belo dia eu cheguei lá para cobrar uma resposta, e ele disse: “O processo já está indo
para o arquivamento”. Eu disse: “Mas não tem nada e já está indo para arquivar?” Ele disse:
“Ué, se a senhora quiser dar uma olhada aí” [...] Eu comecei a olhar; primeiro eles separa-
ram o processo do Mateus e do Ricardo e disseram que eram dois casos que aconteceram
em separado e não tinha nada a ver; eles estavam juntos e foi praticamente no mesmo local.
Aí eu comecei a ver, peguei o do Ricardo e via que era só carimbo deles encaminhando para
o distrito, pedindo mais tempo, o processo era isso. Tinha o exame toxicológico dizendo
que ele não tinha nada, nem álcool, nada. Eu falei assim: “E o do Mateus?” Ele respondeu:
“Está aí”. Eu disse: “Não!” Aí chegou delegado, que já era o outro. Já tinha mudado, ele pe-
diu para arquivar, dizendo que devia ter sido morte por dívida de drogas: Eles devem ter
matado o Ricardo por queima de arquivo. Aí eu perguntei: “Cadê o exame toxicológico do
Mateus?” Porque lá tinha o exame que mostrava quantos tiros, mas não tinha o toxicológi-
co. Eu sei que, naquele dia, eu fiquei desesperada, porque eu não concordava193.
E continua:
[...] contei tudo para o João, o que tinha acontecido no fórum, ele ficou dizendo que aqui-
lo era impossível, que ia no dia seguinte falar com o doutor Borba para ver o que estava
acontecendo, e foi. Ele questionou o que é que tinha acontecido, porque ia ser arquivado e
não tinha tido investigação nenhuma [...] E o promotor queria que eu fosse fazer a investi-
gação [...] o João ficou supernervoso, o promotor disse: “Vamos fazer o seguinte, Sr. João,
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
o senhor vai lá e requisita a segunda cópia do exame toxicológico do Mateus, vai na escola
e pede o atestado de que ele estava estudando”. Dito e feito, fomos e pedimos o exame, que
deu negativo para tudo, igual ao do Ricardo, não tinha nada, e a escola mandou dizendo
que aquela hora era para eles estarem dentro da sala de aula. A gente calculou que deveria
ser umas oito e pouco, quase nove horas, um horário que ele estaria na segunda aula, quer
dizer, era para estar dentro da escola, tanto ele quanto o outro. Aí ele disse que ia desarqui-
var, porque acho que já estava arquivado, que ele ia pedir desarquivamento, porque eram
pessoas idôneas [...]194.
No caso de Ricardo, as informações são ainda mais escassas. Ricardo morava no morro
Santa Marta, em Santos, com a avó Maria195, de saúde bastante debilitada e dependente do
neto para os cuidados não só com a saúde, mas com as tarefas domésticas.
Segundo informações oficiais, Ricardo foi socorrido por uma ambulância e levado ao
Pronto-Socorro Central de Santos196. Porém o condutor da ocorrência, por sua vez, alegou
ter sido acionado via Copom pelo policial militar Aragão, já citado nos casos de Marcos
Rebelo Filho, Thiago Roberto Soares197 e Edson Rogério Silva dos Santos198.
Não constam, em nenhum dado oficial, depoimentos de familiares. Vera Lúcia, mãe de
Mateus, relata que Maria, avó de Ricardo, não tinha condições de ficar descendo o morro,
então em muitas ocasiões ela pedia auxílio para ela e o Sr. João Inocêncio. O Sr. João Ino-
cêncio, pai de Mateus, em declaração ao Ministério Público em 17 de janeiro de 2011, relata
que no dia do ocorrido, enquanto aguardava do lado de fora do Pronto-Socorro, presenciou
a chegada da ambulância com Ricardo, que estava vivo, porém agonizando, não tendo con-
dições de falar nada a respeito dos fatos, e que ele veio a falecer posteriormente.
O Sr. João Inocêncio também relata que foi informado por pessoas que estiveram pos-
teriormente no local do crime, após o ocorrido, que muitas viaturas apareceram, isolando
Ricardo, não deixando as pessoas se aproximarem.
Após o questionamento dos familiares sobre ambos os casos, foram reabertos os in-
quéritos, acrescentados aos autos os documentos e exames toxicológicos, além de uma de-
claração do promotor de que Ricardo e Mateus não tinham nenhuma ligação com o uso e
o tráfico de entorpecentes.
Entretanto, um ano depois, em 2008, mais uma vez, os processos foram arquivados,
pelo mesmo promotor, Octavio Borba de Vasconcellos Filho, que solicitou apenas uma mo-
dificação nas informações do caso:
[...] fundamentação dessa postulação, vez que anteriormente eu havia me reportado a even-
tual suspeitas de que se estava diante de um “acerto de contas”, “queima de arquivo” rela-
• 152 •
Relat ório fin al
cionados a pessoas com possíveis atitudes ilícitas, sendo que, agora, tenho a mais absoluta
convicção de que os dois jovens falecidos, Ricardo Porto Noronha e Mateus Andrade de
Freitas, possuíam condutas irrepreensíveis e, infelizmente, foram covardemente agredidos
sem terem dado qualquer motivo para tanto199.
Assim, os casos continuaram sem nenhuma investigação. Como afirma a mãe de Mateus:
[...] sei que daí para cá, foi essa luta. Cobrando, cobrando tudo e vendo que nada foi feito.
Nada vai ser feito. Não teve investigação [...] porque a gente fica sempre com uma im-
pressão de que nada foi feito, que nada aconteceu. Mataram ele, simplesmente mataram e
acabou. É um nome, um número e mais nada. Toda essa vida que eu tive com o meu filho,
toda expectativa que a gente tinha dele, que a gente sabia o quanto ele podia crescer [...]200.
199. Declaração da Promotoria do Júri de Santos – Ministério Publico de São Paulo, referente ao Inqué-
rito Policial no 185/06 e ao Inquérito Policial no 196/06, em 9 de maio de 2008.
200. Narrativa concedida no dia 9 de dezembro de 2016.
201. Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015.
202. Boletim de Ocorrência no 1199/06.
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prestação de socorro o teria levado até o Crei de São Vicente, onde ele teria falecido ao dar
entrada no hospital.
De acordo com o laudo, Luis foi alvejado por seis tiros (quatro na região do tórax,
um no crânio e um no braço), tendo sido todos projetados na parte posterior da vítima, de
baixo para cima, indicando que ela se encontrava deitada e que, por sua vez, o perpetrador
do homicídio se localizava atrás de Luis203. Essas informações apontam claramente que ele
se encontrava indefeso, sem possibilidade de estar em posição de ataque.
Imagem 15. Imagem proveniente do Laudo Necroscópico no 249/06 de Luis Fernando Rodrigues Santos.
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Mapa 6. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 17 de maio até a madrugada do dia 18 de maio
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Relat ório fin al
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Mapa 7. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 18 de maio até a madrugada do dia 19 de maio.
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Relat ório fin al
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Mapa 8. Homicídios ocorridos na Baixada Santista do dia 19 de maio até a madrugada do dia 20 de maio.
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159
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Relat ório fin al
10.
Análise das informações do banco de dados
dos Crimes de Maio1
1. A criação do presente banco de dados foi inspirada no trabalho desenvolvido pelo Laboratório de
Análise da Violência (lav-uerj), Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de
2006, coordenado por Ignacio Cano e Alberto Alvadia. Agradecemos especialmente a Ignacio Cano
por ter compartilhado informações dos casos e discutido questões teóricas e metodológicas referen-
tes à pesquisa desenvolvida pelo lav-uerj. Outra razão importante para ter utilizado uma estrutura
similar é a possibilidade de comparar as informações referentes aos casos da Baixada Santista com
as conclusões do estudo do lav-uerj, que analisou os casos do estado de São Paulo como um todo.
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
a dinâmica da violência
Os assassinatos na região da Baixada Santista se iniciaram na madrugada do dia 12
para o dia 13 de maio e se estenderam até a madrugada do dia 20 de maio de 20062. A grande
maioria dos casos, que resultaram nas mortes das vítimas civis, ocorreu durante a noite e
começo da madrugada, compreendendo o período das 19h às 3h (Imagem 17).
Pela análise do banco de dados foi possível distribuir o número de casos por municí-
pio. Em sua maioria, os crimes ocorreram nas localidades de Guarujá (48%) e Santos (25%),
seguidos de São Vicente (20%), Praia Grande (3%), Bertioga (2%) e Peruíbe (2%). Os muni-
cípios de Cubatão, Mongaguá e Itanhaém, também da região da Baixada Santista, não regis-
traram ocorrências entre os dias 12 e 20 e, portanto, não aparecem no gráfico (Imagem 18).
2. O primeiro episódio com uma vítima fatal corresponde ao caso de Robson Damasceno Filgueira;
ver a descrição da ocorrência na análise do dia 12 de maio.
• 162 •
Relat ório fin al
Das sessenta vítimas fatais, a grande maioria, 53 pessoas, era de civis, o que representa
88% do total, e sete vítimas, 12% do total, eram agentes de segurança pública (policial militar,
agente de segurança penitenciário, guarda municipal ou policial carcereiro) (Imagem 19).
Esses dados corroboram os números apresentados no estudo Análise dos impactos dos
ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, já citado. Os números do estudo também
mostram que as vítimas civis constituíam a grande maioria dos mortos: considerando um
total de 564 vítimas, 89% (505) são civis e 11% (59) correspondem a agentes de segurança pú-
blica (Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 10-11).
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V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
A evolução das mortes dos civis e dos agentes de segurança pública ao longo do perío-
do é bastante heterogênea, e uma análise desse movimento é de fundamental importância
para entender a dinâmica dos eventos.
O maior número de mortes de agentes de segurança ocorreu no começo dos aconte-
cimentos, especialmente no 2o dia, com seis vítimas fatais. No dia seguinte houve mais uma
vítima fatal; após esse dia já não houve registros de vítimas fatais entre os agentes de segu-
rança pública. As mortes de civis se concentram no período posterior, especialmente nos
3o e 4o dias, com dezesseis e doze vítimas fatais, respectivamente. Após essa data o número
• 164 •
Relat ório fin al
de mortes começou a diminuir, sendo que a partir do 4o dia as vítimas eram exclusivamen-
te civis. A relação entre civis mortos e agentes da segurança pública mortos, na região da
Baixada Santista, ocorre da seguinte maneira: 1o dia, um civil e nenhum agente; 2o dia, onze
civis e seis agentes; 3o dia, dezesseis civis e um agente; 4o dia, doze civis; 5o dia, cinco civis; 6o
dia, três civis; 7o dia, três civis; e 8o dia, dois civis. Estabelecendo uma clara dinâmica na qual
os agentes de segurança pública são mortos nos primeiros dias e na sequência acontecem as
mortes de civis (Imagem 21).
Imagem 21. Evolução do número de vítimas civis e do número de vítimas agentes de segurança, por dia.
(n = 60)
Este quadro é compatível com o cenário de uma série de ataques contra agentes nos dias
iniciais, com muitas vítimas entre eles, e uma série de operações de represália realizadas por
policiais nos dias seguintes, com um alto número de vítimas civis (Análise dos impactos dos
ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 11).
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5. As faixas etárias utilizadas são as mesmas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge).
Não havia informação sobre a idade em dois casos de vítimas civis.
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Relat ório fin al
Essas informações sobre sexo e idade das vítimas civis vai ao encontro dos números
do estudo do lav-uerj; os dados mostram que 96% dos falecidos nos Crimes de Maio, no
estado de São Paulo, entre os dias 12 e 21 de maio, eram homens, e mais de 80% dos mortos
tinham menos de 36 anos. A idade média dos casos conhecidos (27,5 anos)6 também é pró-
xima aos dados do presente estudo.
Com relação à raça ou cor, não foi possível encontrar informações seguras ao analisar
os dados descritos nos documentos oficiais (b.o.s, laudos e inquéritos); essas informações
em geral eram incompletas e pouco confiáveis para serem utilizadas. Um problema adicio-
nal era que as informações de raça ou cor não eram resultado de autodeclaração.
No entanto, é importante destacar que o levantamento bibliográfico realizado entre os
estudos sobre a violência no Brasil revela que os jovens negros são as principais vítimas da
violência. Segundo o Atlas da violência de 2017, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada cem pessoas as-
sassinadas no Brasil, 71 são negras. O estudo mostra que os negros possuem chances 23,5%
maiores de serem assassinados (já descontados o efeito da idade, escolaridade, sexo, estado
civil e bairro de residência)7.
6. Cf. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 18.
7. O Mapa da Violência de 2016 também apontou um crescimento de 46% no número de negros víti-
mas de homicídio por arma de fogo: de 20.291 em 2003 passou para 29.813 em 2014. Em 2003 mor-
riam 71,7% mais negros do que brancos por esse tipo de crime; a proporção chegou a 158% em 2014,
2,6 vezes mais (Waiselfisz, 2016).
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Dessa forma, é possível afirmar que o perfil das vítimas dos Crimes de Maio de 2006
é similar ao perfil geral das vítimas da violência no país. O Mapa da Violência de 2014, por
exemplo, já indicava que os homicídios eram a principal causa de morte de jovens de 15 a 29
anos no Brasil, e que atingiam, especialmente, jovens negros do sexo masculino, moradores
das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos (Waiselfisz, 2016).
O que chama a atenção com relação aos Crimes de Maio é a intensidade da violência:
em pouco mais de uma semana mais de seiscentas pessoas foram assassinadas no estado de
São Paulo; a grande maioria dessas vítimas eram jovens negros e habitantes das periferias
das grandes cidades.
8. Neste ponto nos baseamos na pesquisa Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em
maio de 2006, 2008: 18.
9. Cf. Análise dos impactos dos ataques do pcc em São Paulo em maio de 2006, 2008: 19.
• 168 •
Relat ório fin al
Do ponto de vista das regiões anatômicas as mais atingidas por disparos foram: cabeça
(32%), seguida do tórax (30%), braços (14%), abdômen (10%), membros inferiores (8%) e
mãos (6%).
A Tabela 7 apresenta o número de orifícios conforme as regiões anatômicas e a Ima-
gem 24 apresenta essas informações em porcentagens.
Tabela 7. Número de orifícios de entrada por região anatômica nas vítimas civis. (n = 53)
A maioria dos orifícios de entrada ocorreu em regiões de alta letalidade, o maior nú-
mero foi na região da cabeça, compreendendo também a região posterior e anterior do
pescoço, seguida do tórax. Essas regiões são consideradas de alta letalidade, pois é onde se
encontram os órgãos sensíveis do corpo humano – cérebro, coração e pulmão. Do total de
53 vítimas civis, segundo os laudos, 41 apresentaram orifícios na cabeça (77% dos casos) e
30 apresentaram orifícios no tórax (57% dos casos); destas, 24 pessoas foram atingidas nas
duas regiões mais letais (45% dos casos) (Imagem 25).
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11.
Percepções sobre os Crimes de Maio a partir do
mapeamento da Baixada Santista
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Desse modo, os mapas têm como propósito garantir maior clareza aos objetivos e fins
deste relatório, bem como respaldar suas argumentações e propor um novo olhar sobre os
acontecimentos de maio de 2006, para que sejam discutidos a partir da premissa da violên-
cia de Estado no espaço desse território.
Tendo esse cenário em vista e levando em consideração que as imagens são agentes
ativos na formação de visão sobre o mundo, podemos entender que mapas não são neutros
nem representam com exatidão determinados pontos de vista. Sendo eles resultado de uma
construção que se modifica ao longo do tempo, atentar ao seu processo de elaboração é
também compreender que o resultado final advém de um longo percurso em busca de solu-
ções que garantam a melhor visualização dos acontecimentos da Baixada Santista.
O mapeamento e o georreferenciamento dos crimes foram elaborados a partir da tec-
nologia do Sistema de Informação Geográfica (sig). O sig permite uma reprodução virtual
de um território onde as informações são representadas em camadas sobrepostas. Ele serve
para visualizar os dados contidos no sistema, como também possibilita a comparação em
um mesmo plano de dados provenientes de diferentes fontes para facilitar a interpretação e
a exploração dos dados.
Assim, quanto maior o número de endereços das vítimas, mais precisão no resultado
final e maiores informações a serem exploradas. Apesar das lacunas que foram parcialmente
preenchidas ao longo do desenvolvimento da pesquisa, foi possível mapear o local de 55
crimes que vitimaram tanto agentes de segurança pública como civis (91,66% do total dos
casos), pois alguns endereços estavam incompletos. Foram desenvolvidos um mapa para
cada dia de confronto e sete mapas temáticos, resultando, ao todo, em quinze mapas.
A Região Metropolitana da Baixada Santista (rmbs) é situada no litoral sul do estado
de São Paulo e composta de nove municípios: Bertioga, Santos, Guarujá, Cubatão, São Vi-
cente, Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe (Mapa 9).
Constituída politicamente em 1996, a região conta com uma população de 1.828.212
habitantes1, sendo Santos, São Vicente, Guarujá e Praia Grande as cidades mais populosas.
Esses municípios, junto com Cubatão, representam a zona mais integrada da Baixada, im-
pulsionada pelas atividades do centro portuário de Santos e do parque industrial de Cuba-
tão. Entre as décadas de 1950 e 1970, essa região central passou por um crescimento popu-
lacional intenso e, em consequência, projetou transformações urbanas cuja repercussões
estão presentes até hoje.
Os Crimes de Maio, no que se refere à Baixada Santista, aconteceram principalmente
na região central.
O Mapa 10 – “Localização de 55 homicídios dos Crimes de Maio na Baixada Santista” –
evidencia essa concentração. Os pontos no mapa representam o local dos crimes identifica-
dos pelos endereços informados nos boletins de ocorrência ou por informações obtidas du-
rante a pesquisa de campo. De todas as cidades da Baixada Santista, as únicas onde oficial-
mente não foram registradas mortes foram Itanhaém, Mongaguá e Cubatão. Em Bertioga,
• 172 •
Mapa 9. Localização dos municípios da Região Metropolitana da Baixada Santista.
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173
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Relat ório fin al
Mapa 10. Localização de 55 homicídios dos Crimes de Maio na Baixada Santista. V i o l ê nc i a d e E s t ad o n o Brasil: u m a an álise d os C r i mes d e M a i o d e 2006
• 174 •
Imagem 26. Mapas 1 a 8 para comparação dos homicídios ocorridos na Baixada Santista para cada dia de confronto.
1o dia 2o dia
3o dia 4o dia
5o dia 6o dia
7o dia 8o dia
• 175 •
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assim como em Peruíbe, houve apenas uma morte em cada município. Nesses dois casos as
mortes envolveram agentes do Estado: um policial militar e um guarda municipal.
Para compreender cronologicamente os acontecimentos, foram desenvolvidos mapas
para cada dia de confronto, entre os dias 12 e 19 de maio. Nos Mapas 1 a 8 (ver cap. 9, “Análise
dos casos dia a dia”, e Imagem 26, neste capítulo), os pontos representam o local dos crimes,
diferenciando as vítimas entre civis e agentes do Estado, de modo que se veja espacialmen-
te a proporção de crimes de acordo com os dias da semana. Assim, ao analisar os crimes
cronologicamente, os mapas mostram que os homicídios ocorreram em maior quantidade
entre os dias 13 e 16 de maio. Tendo isso em vista, é pertinente atentar para alguns fatos.
Na noite do dia 13 para o dia 14 morreram seis agentes do Estado, em cinco cidades
diferentes: Santos, Guarujá, São Vicente, Praia Grande e Bertioga. Nessa mesma noite, onze
civis morreram em duas cidades: São Vicente e Guarujá. No dia 14, aconteceu o último
homicídio de um agente do Estado. A partir desse dia, todos os crimes foram cometidos
contra vítimas civis.
Os crimes também não aconteceram em todas as cidades, em todas as noites. No caso
de Santos, por exemplo, os crimes começaram na região do morro do Teteu, na madrugada
do dia 13 de maio, porém na noite seguinte nenhum civil foi morto na cidade. Os crimes
voltaram a acontecer no dia 14 e pararam no dia 17, totalizando cinco noites de terror. No
Guarujá, onde morreu a maior parte dos civis, os homicídios começaram a ocorrer na noite
do dia 13 e continuaram até a noite do dia 15. Os dados disponíveis apontam que os homicí-
dios teriam cessado por duas noites, e um último caso aconteceu no dia 18. Em São Vicente,
foram quatro noites de assassinatos. Nesse município, os crimes, que começaram a ocorrer
no dia 13, ganharam intensidade entre as noites dos dias 15 e 17 de maio.
Por meio dos mapas, é possível perceber que os crimes não ocorreram de maneira
dispersa no território, ao contrário, aglomerados específicos são percebidos na paisagem.
No Mapa 11 – “Localização dos Crimes de Maio em relação ao espaço geográfico e à
ocupação urbana da Baixada Santista” – podemos analisar a repartição dos crimes em fun-
ção das características geográficas do território, assim como em relação à ocupação urbana.
A região da Baixada Santista é localizada entre a Serra do Mar e o oceano Atlântico, em
um espaço permeado por mangues, encostas e restringido em ilhas. A condição geográfica
desse espaço dificultou sensivelmente a ocupação urbana da região e criou zonas de segre-
gação social. Desse modo, a população de baixa renda se instalou nas áreas ambientalmente
frágeis, em manguezais e encostas, enquanto as primeiras linhas de quadras da orla foram
ocupadas pela população com maiores condições de renda. Conforme os espaços vazios da
ilha de São Vicente foram preenchidos, a ocupação urbana foi se expandindo para as áreas
periféricas de Cubatão, a área continental de São Vicente, os bairros a leste da Praia Grande
e no distrito de Vicente de Carvalho, no Guarujá (Carriço e Souza, 2015)
Assim, por se tratar de uma região geograficamente complexa, concentrando morros
isolados entre a serra e o oceano, as questões sobre a moradia não se limitam apenas à di-
ficuldade geográfica e ambiental, mas envolvem configurações regionais. Segundo Andrea
Young e Wilson Fusco:
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Mapa 11. Localização dos Crimes de Maio em relação ao espaço geográfico e à ocupação urbana da Baixada Santista.
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A ocupação urbana no mapa é ilustrada pelo sistema viário das cidades, e, para re-
presentar os espaços de segregação social, foram incluídos os “aglomerados subnormais”,
conceito criado pelo ibge para definir as regiões de grande precariedade, denotada pela pre-
sença de favelas, palafitas, mocambos e afins. Em geral, são espaços de difícil mapeamento,
mas que também são parte da cidade.
É possível perceber por meio dos mapas que, com raras exceções, a maioria dos crimes
aconteceu nas regiões de acessibilidade precária. Observamos no Guarujá, no norte do dis-
trito de Vicente de Carvalho, um aglomerado de homicídios nos bairros Paecará, Vila Ali-
ce, Vila Áurea e Jardim Progresso. Em Santos, é possível observar uma concentração das
mortes na parte norte da cidade, nos bairros muito próximos aos morros, como em Saboó e
Chico de Paula, e também em Areia Branca. Alguns homicídios ocorreram no centro antigo
da Vila Mathias, onde existem cortiços. Em São Vicente, os crimes se localizaram principal-
mente na parte insular da cidade, espalhados entre as zonas norte e oeste, nos bairros Vila
Jockei Clube, Tancredo Neves e Esplanada dos Barreiros.
Poucos são os crimes que se situaram na orla do litoral, local onde vive uma parte mais
abastada da população. Eles se concentraram em sua maioria onde o grau das desigualda-
des sociais é mais evidente. É possível notar a partir do mapa que, com raríssimas exceções,
a maioria das vítimas estava em lugares próximos aos morros e/ou favelas, em especial dos
espaços sociais onde há habitações de palafita e próximos às linhas de trem. Nesses locais, a
atuação do poder público e suas várias esferas nas áreas de saneamento, saúde, segurança e
infraestrutura geral é escassa, e esse é um dos elementos para entender, por exemplo, o papel
da administração pública e suas “faces” segregacionistas observadas na Baixada Santista.
Considerando que as condições demográficas, sociais e econômicas de uma população
impactam diretamente suas vidas, foi desenvolvido um mapa com o intuito de entender
melhor o contexto social das pessoas que morreram na semana dos Crimes de Maio. Para
sua elaboração foram utilizados os dados do censo demográfico de 2010 do ibge, pois ele é
o mais recente e também o mais próximo do ano dos acontecimentos. Além disso, o censo
demográfico representa o conjunto de dados estatísticos mais preciso e mais próximo da
realidade no que se refere ao conhecimento da população brasileira.
O Mapa 12 – “Localização dos crimes em relação à renda média mensal de pessoas a
partir de 10 anos” – mostra a relação entre a proporção salarial média do brasileiro de acor-
do com a região em que vive, e a localização dos crimes. De acordo com o ibge, o salário
mínimo que vigorava no mês de referência da pesquisa era de r$ 510,00 (quinhentos e dez
reais), mas, especificamente no ano de 2006, segundo a guia trabalhista, o salário mínimo
era em torno de r$ 350,00 (trezentos e cinquenta reais).
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Mapa 12. Localização dos crimes em relação à renda média mensal de pessoas a partir de 10 anos.
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Tendo em vista que 88% dos homicídios dos Crimes de Maio na Baixada Santista foram
cometidos contra civis, apenas estes foram representados no mapa, na tentativa de com-
preender o perfil dessas vítimas. A partir da leitura do mapeamento é possível perceber que,
na maioria dos casos, as vítimas estavam em regiões onde a renda salarial correspondia a
dois salários mínimos ou menos, e confirma o fato de que os crimes aconteceram em loca-
lidades onde a vulnerabilidade social é grande.
Na mesma linha, o Mapa 13 – “Localização das residências das vítimas civis em relação
à renda média mensal de pessoas a partir de 10 anos” – demonstra que grande parte das
vítimas morava em regiões de baixa renda. Isso corresponde às informações referentes a sua
profissão, encontradas em boletins de ocorrência e laudos necroscópicos: “sem ocupação”,
“sem profissão”. Apesar de não ser possível conhecer o vínculo empregatício dessas pessoas,
por não termos acesso às suas carteiras de trabalho, sabe-se, a partir de narrativas, que
muitas delas se sustentavam por meio de rendas não fixas, trabalhos informais que muitas
vezes provinham seu sustento ou eram um complemento salarial. É o caso, por exemplo,
de Maurilio Melo, que, segundo as entrevistas, tinha começado a trabalhar como garçom.
O Mapa 13 também demonstra que na maioria dos casos as pessoas foram assassinadas
em locais próximos a suas residências. Isso pressupõe que os assassinos foram até elas e que
as regiões onde a vulnerabilidade social é maior são também os locais mais vulneráveis à
violência.
Dadas as duas categorias de vítimas, civis e agentes do Estado, e a proporção de mortos
entre elas – 88% e 12% respectivamente –, outro elemento pertinente de análise é a relação
entre a periferia e a polícia. Para tentar entender qual era a repartição das áreas de crimes
em relação aos distritos policiais, foi preciso localizar as áreas de atuação de cada distrito
policial.
Alguns apontamentos sobre a área de atuação da Polícia Militar, ainda que abstratos,
foram encontrados na Resolução ssp 246, de 27 junho de 2000. Embora em sua constru-
ção seja possível perceber a complexidade da administração policial e as dificuldades em
entender as funções e relações entre os departamentos e suas divisões setoriais, é possível
apreender no Mapa 14 – “Localização das vítimas civis dos Crimes de Maio em relação aos
distritos policiais” – que alguns distritos apresentaram maior incidência dos homicídios
analisados do que outros.
Os distritos policiais onde foi registrado um maior número de mortes são de fato os
que estão localizados nas regiões periféricas. Entretanto, ao analisar esses segmentos da
cidade, é possível perceber que grande parte dos crimes aconteceu em três distritos es-
pecíficos: o 5o Distrito Policial de Santos, com oito vítimas, o 2o Distrito Policial de São
Vicente, com nove vítimas, e o 2o Distrito Policial de Guarujá, com treze vítimas. É preciso
um trabalho mais aprofundado sobre o modo como as ocorrências foram distribuídas nos
dias desses crimes, a fim de entender essa concentração em alguns distritos policiais. Ainda
assim, a partir dessa representação cartográfica com os dados disponíveis, o mapa revela
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Mapa 13. Localização das residências das vítimas civis em relação à renda média mensal de pessoas a partir de 10 anos.
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Mapa 14. Localização das vítimas civis dos Crimes de Maio em relação aos distritos policiais.
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Relat ório fin al
uma hipótese a verificar: se as circunscrições onde houve um maior número de mortes são
também aquelas em que a polícia fez mais uso de sua força letal.
Buscando aprofundar essa hipótese, foi criado o Mapa 15 – “Representação das regiões
dos corpos atingidas pelos disparos, proporcional à quantidade de tiros” – para compreen-
der como as vítimas civis morreram, baseado na quantidade de tiros que elas receberam e
nas regiões do corpo atingidas. Esse mapa tem por objetivo apontar padrões e diferenças
no modo de execução das vítimas em relação ao espaço geográfico e aos distritos policiais.
As informações foram extraídas dos laudos necroscópicos das vítimas civis e classifica-
das para facilitar as comparações e a visualização no mapa. Para tanto, foram criadas quatro
categorias: cabeça (que inclui também os tiros recebidos no pescoço), tronco, membros
superiores e inferiores, e mãos; as duas primeiras categorias representam as regiões consi-
deradas letais, seguidas das mãos, pelo fato de que disparos nas mãos identificam tentativa
de proteção das vítimas.
A visualização dos dados do Mapa 15 foi feita em diagramas proporcionais, pois eles
mostram para cada vítima as regiões mais atingidas, em proporção ao número total de ti-
ros recebidos. Se considerarmos os três distritos policiais evidenciados anteriormente em
relação à concentração de homicídios, observaremos, para o 2o Distrito Policial de Guarujá,
a predominância das cores preta e vermelha, que representam respectivamente os tiros na
cabeça e no tronco. Percebemos que algumas vítimas foram atingidas somente na cabeça
por um ou dois tiros e que, naquelas atingidas no tronco, a quantidade de tiros foi maior. Há
pelo menos sete vítimas que foram atingidas por seis a doze tiros.
Em Santos, no 5o Distrito Policial, observamos que quase todas as vítimas receberam
pelo menos um disparo na cabeça – duas foram atingidas exclusivamente nessa região. Vá-
rios foram os casos de tiros recebidos no tronco. Já no 2o Distrito Policial de São Vicente to-
das as vítimas receberam tiros na cabeça e quase todas foram atingidas ao menos nos braços
ou pernas, ou ambos, fazendo com que os tiros no tronco fossem em menor número, em
comparação aos outros distritos. É difícil concluir algo somente por essa visualização, mas,
como já explicado, o mapa serve para questionar os dados e evidenciar hipóteses. Não existe
necessariamente um padrão de execução em função das localidades, mas podemos afirmar
que em todos os distritos, não somente nos três onde houve mais homicídios, os crimes fo-
ram violentos e quase todas as vítimas foram atingidas na cabeça, o que denota execuções,
já que a maioria das vítimas foram atingidas em regiões de alta letalidade.
Neste estudo nos propusemos a pensar sobre os eventos dos Crimes de Maio dentro
de uma perspectiva que envolve diversas áreas de conhecimento. Neste esforço conjunto,
coube ao mapeamento tentar compreender esses crimes a partir da ótica espacial. Quando
pensamos em território, não é possível dissociar quem são as pessoas que ocupam esses
espaços e de que modo isso é feito. Portanto, um primeiro ponto a ser levantado é que,
apesar de os mapas estarem focados nos crimes ocorridos na região central da Baixada
Santista, isso não diminui a importância e a gravidade de outros episódios ocorridos nes-
sas cidades, mesmo que não haja a representação de alguns crimes em razão de endereços
não localizáveis.
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Mapa 15. Representação das regiões dos corpos atingidas pelos disparos, proporcional à quantidade de tiros.
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12.
Criação de um protocolo de análise post mortem
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A partir desses dados foi possível fazer a reconstrução 3d do corpo da vítima, repro-
duzir a trajetória dos projéteis e estimar a posição da vítima nos momentos dos disparos. O
software permitiu a implementação de movimentos musculares acompanhando a rotação
de partes do corpo. A rotação de um corpo humano criado permite a representação correta
da posição dos ossos e tecidos moles, enquanto a translação fornece a simulação da contra-
ção de músculos específicos (Bastioni, Re e Misra, 2008) (Imagem 28).
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Imagem 28. Reconstrução 3d do corpo humano e esqueleto de um caso genérico: a) vista anterior;
b) vista posterior; e c) vista lateral direita.
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Imagem 29. Exemplo de descrição dos ferimentos superficiais de uma vítima no laudo pericial.
Imagem 30. Exemplo de descrição dos ferimentos internos de uma vítima no laudo pericial.
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As lesões causadas por projéteis de arma de fogo são classificadas pelo calibre da arma,
de alta ou baixa energia, e quanto ao ferimento, como penetrante ou transfixante (Dias,
Souza e Carneiro, 2016). A gravidade da lesão está proporcionalmente associada à veloci-
dade do projétil, ao local de inserção e ao poder de transmissão de energia para o alvo. Em
casos de projéteis de arma de fogo de maior velocidade, estes atravessam o crânio, deixando
o orifício de entrada menor que o de saída e fazem dos fragmentos ósseos projéteis secun-
dários, piorando o prognóstico da vítima, enquanto projéteis com menor velocidade ten-
dem a ficar alojados no corpo (Souza et al., 2013). Nem sempre essas descrições são feitas de
forma detalhada ou padrão no laudo pericial, e essa incerteza repercute nas reconstruções
3d das vítimas (Imagem 32).
Imagem 32. Descrição, em um laudo pericial, do impacto causado pelo projétil em um crânio.
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Imagem 34. Reconstrução 3d da trajetória do primeiro projétil feita com base no laudo de exame de
corpo de delito (texto da caixa vermelha).
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Imagem 37. Reconstrução 3d do esqueleto da vítima e as trajetórias de todos os tiros, feitas com base no
laudo de exame de corpo de delito.
Imagem 38. Reconstrução 3d do corpo da vítima e as trajetórias de todos os tiros, feitas com base no
laudo de exame de corpo de delito.
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Imagem 39. Fases de uma simulação baseada em reconstrução 3d. A vítima estava inclinada de costas
quando foi atingida de raspão. Ao receber um tiro a vítima se virou para ver o que aconteceu e recebeu
um tiro na cabeça. O último disparo na cabeça ocorreu quando a vítima estava no chão.
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Relat ório fin al
Imagem 40. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Thiago Roberto Soares:
vista anterior e posterior.
Imagem 41. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Thiago Roberto Soares:
vista lateral esquerda e lateral direita.
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Imagem 42. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Edson Rogério Silva dos Santos:
vista anterior, posterior e isométrica.
Imagem 43. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Edson Rogério Silva dos Santos:
vista lateral esquerda, lateral direita e isométrica.
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Imagem 44. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Ana Paula Gonzaga dos Santos,
que estava grávida: vista anterior e posterior.
Imagem 45. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Ana Paula Gonzaga dos Santos e pelo feto
do sexo feminino de quase nove meses, que teve lesões no joelho esquerdo e mão esquerda:
vista lateral esquerda, lateral direita e isométrica.
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Imagem 46. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Mateus Andrade de Freitas:
vista anterior e posterior. O laudo desta vítima carece de muitas informações,
como altura, etnia e constituição osteomuscular.
Imagem 47. Reconstrução 3d das lesões sofridas pela vítima Mateus Andrade de Freitas:
vista lateral direita e lateral esquerda.
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13.
Análise das narrativas dos familiares das vítimas
dos Crimes de Maio
O desenvolvimento da pesquisa na busca por respostas exigiu que houvesse uma re-
construção da história referente aos Crimes de Maio de 2006 e que esta fosse feita
considerando as experiências vividas pelos sujeitos1.
Foram coletados os relatos orais dos familiares e construídas suas narrativas, conten-
do dados referentes às vítimas e aos crimes2. Assim, as narrativas serviram de fonte para
analisar aspectos específicos e, também, para elaborar um quadro interpretativo da história
rememorada e contada pelos sujeitos depoentes3.
1. A equipe de pesquisa se organizou para estabelecer o contato com os familiares das sessenta
vítimas, a fim de apresentar a pesquisa e convidá-los para participarem por meio da concessão de
entrevistas, que seriam transformadas em narrativas. Os casos foram divididos em duas listas: a
primeira contendo o nome das vítimas cujos familiares tinham participado no Movimento Mães de
Maio, e a outra contendo os nomes das vítimas cujos familiares nunca participaram do movimento,
totalizando 51 casos. Dessa lista, não foram localizados os familiares de dezesseis vítimas, por terem
os endereços incompletos ou alterados por motivo de mudança; mas 35 endereços foram identifica-
dos e, desse número, somente quatro famílias concordaram em conceder entrevistas/relatos sobre
os crimes. Da lista de familiares que já participaram ou participam do Movimento Mães de Maio
foram colhidas nove narrativas, cinco delas referentes aos crimes cometidos no ano de que trata esta
pesquisa, e as outras quatro, narrativas das mães de vítimas de anos posteriores (2007, 2012, 2013,
2015). Do total da lista do movimento, não foi possível entrevistar seis mães: três delas se encontram
em processo de adoecimento por depressão grave ou em consequência dela, uma por falecimen-
to, uma não foi localizada (mudança de endereço) e uma não concordou em conceder entrevista.
As entrevistas obtidas, transformadas em narrativas, perfazem 21,7% dos casos abordados nesta
pesquisa. Na sequência, as narrativas foram apresentadas e validadas pelos entrevistados. Todas
as pessoas entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (trechos das
narrativas disponíveis em: <https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/>).
2. As entrevistas foram norteadas por um roteiro estruturado a partir dos seguintes eixos: histórico da
trajetória de vida; informações sobre o dia do fato; informações sobre o processo judicial e sobre a
participação no movimento social.
3. Houve o uso e o diálogo entre diversas fontes de pesquisa, tais como: produção bibliográfica (acadê-
mica e do movimento social) sobre o tema, boletins de ocorrência, laudos necroscópicos, processos
judiciais, notícias em jornais e documentação da Ouvidoria da Polícia.
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A análise do conteúdo das narrativas, feita com o cruzamento das informações oficiais,
permitiu:
• identificar um determinado perfil das vítimas, especialmente quando os familiares
discorrem sobre quem eram os sujeitos e seu cotidiano;
• caracterizar um modus operandi tanto na execução das vítimas como no processo ju-
dicial;
• reconhecer e dar visibilidade ao papel do movimento social na busca pela justiça.
Débora Maria da Silva5: “Eu me separei do pai dele, mas ele depois foi morar com meu
pai e eu mudei de emprego. Fui morar no serviço para ganhar um pouco mais, porque o pai
dele não ajudava a criar [...] depois ele fez o ensino fundamental todo até o segundo ano do
ensino médio, foi quando ele estava morando com meu pai, na época, na Igreja Batista em
Santos. Ele trabalhava ajudando meu pai [...].”
Ilza Maria de Jesus Soares 7: “O Thiago morava comigo, só ele e eu, no mesmo lugar que eu
ainda moro hoje. Os vizinhos todos conheciam [...] mas o Thiago nasceu na Jovino de Melo,
no canal. Por que eu sempre morei de aluguel, como continuo morando”.
4. Conforme dados do 11o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em novembro de 2017.
Disponível em: <www.forumseguranca.org.br>.
5. Mãe de Edson Rogério Silva dos Santos.
6. Mãe de Robson Damasceno Filgueira.
7. Mãe de Thiago Roberto Soares.
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Relat ório fin al
Quanto ao nível educacional, a maioria das vítimas estudou até o primeiro grau e
algumas tinham o segundo grau incompleto. É possível identificar que as vítimas tinham
perspectiva de alcançar melhores condições de vida por meio do trabalho ou da continui-
dade dos estudos, contrastando com as informações apresentadas nos b.o.s, que, em muitos
casos, identificaram as vítimas como “desocupadas”; denominação que gera a desqualifica-
ção e até mesmo a criminalização dos sujeitos e seus familiares.
As vítimas eram moradoras de regiões periféricas ou do centro antigo das cidades da
Região Metropolitana da Baixada Santista. Locais em que há a presença cotidiana da vio-
lência, em decorrência tanto do tráfico de drogas como da ação truculenta e indiscriminada
da polícia.
Conforme expressam as narrativas, a maioria das vítimas tinha histórico de persegui-
ção, intimidação ou situação forjada, e algumas já tinham sido levadas pelos policiais para
a delegacia, com posterior comprovação de inocência.
Débora Maria da Silva: “[...] ele ia fazer 19 anos e nunca tomou um tapa da mãe. Apanhar
da polícia para cacete, para assinar um flagrante que ele não fez, e meu pai fazer ele assinar
uma coisa que ele não fez, para parar de apanhar, foi a gota d’água [...]”.
Ilza Maria de Jesus Soares: “Talvez por esse fato, de ele nunca querer abaixar a cabeça,
houve essa morte. Porque eles – os policiais – achavam o Thiago folgado. Meu filho não po-
dia estar na rua que eles vinham bater, agredir, eles não chegavam como um cidadão, com
os direitos, com os papéis de direitos, assim, de abordar. Quantas vezes tive que ver meu
filho nas esquinas sendo abordado por eles [...] teve um deles que uma vez falou que um dia
ia forjar ele [...] porque ele era pego, levado para a delegacia e solto”.
Márcia Alves da Cruz8: “Uma vez ele estava com a vó e com o vô na pracinha lá embai-
xo. Estavam pescando, aí a viatura chegou e só viu gente correndo. Mas ele ficou parado,
não correu. O rapaz que estava do lado dele, acho que estava com uma coisa na mão, e ele
também não viu que puseram uma chave micha no bolso dele. Os avós gritaram, ele está
comigo, é meu neto. O policial respondeu: ‘não quero saber’. Fez todos colocarem a mão na
cabeça, fizeram a revista e levaram ele”.
Sebastião José Martins9: “[...] teve outra ocasião no campo de futebol [...] Ele andando de
quatro pé, a polícia mandou ele ficar de quatro pé, correr de quatro pé, ele saiu correndo
de quatro pé, e aí eles atirando pra cima, nesse dia atiraram para cima não atiraram nele”.
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Débora Maria da Silva: “[...] então, meu marido tinha ido trabalhar, encerraram o expe-
diente, não tinha ônibus, não tinha carona, tinha dado aquela pane em todo mundo, todo
mundo correndo para dentro de casa [...]”.
Givonete Filgueira: “Todo mundo já estava sabendo que a rebelião tinha começado. A
gente só ouvia comentários de um e de outro. A gente não tinha certeza de por que tinha
surgido aquela rebelião. Porque nós, pai de família, mãe de família, donos de casa, não sa-
bemos o que está acontecendo com os governantes, com as pessoas que vivem no mundo
do crime, do banditismo”.
Márcia Alves da Cruz: “E ficou sentadinho aqui fora com a turma. Nisso a polícia passou e
falou: ‘vamos entrar, vamos entrar. É toque de recolher, não quero ninguém na rua, vamos
entrar’. E, como era uma hora, duas horas da tarde, eles ficaram sentados na frente de casa”.
Maria Sônia Lins10: “Então logo que ele saiu, eu fui buscar o neném na creche. Quando
ele ligou, perguntou: ‘Mãe, cadê o neném?’ Eu disse: ‘Está em casa, está comigo’. Ele disse:
‘Mãe, queria ver o neném!’ Então eu disse para ele voltar e meu marido disse que não, que
era para ele ficar em casa, porque estava tudo fechando e a gente não sabia o que estava
acontecendo”.
Vera Lúcia Andrade de Freitas 11: “A gente começou a ficar assustado, começou todo mun-
do a não sair mais de casa, porque tinha tido aqueles ataques aos ônibus, as pessoas tinham
medo de pegar os ônibus, então as escolas começaram a devolver as crianças, as mães foram
pegar os filhos. E aí eles estavam os dois na escola, o meu mais velho trabalhava e estudava,
eu falei: ‘Olha, você não tem necessidade de sair, então fica em casa, porque está perigoso’
[...] eles não saíram de casa, quando chegou na quarta-feira, o secretário de Segurança deu
uma entrevista dizendo que era para todo mundo ir para as escolas, que tinha que levar a
vida normalmente, porque não tinha necessidade de todo mundo ficar dentro de casa, as
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escolas estavam tendo aula normalmente. Então o Mateus falou: ‘Mãe, eu vou para a escola.
Eu já estou esses dias todos sem ir para escola, quero terminar este ano’ [...] passado um
tempo, eu começo a escutar tiros [...] ‘João, estão atirando!’ Ele perguntou dos meninos e
eu disse que foram para escola, ele ficou preocupado e disse: ‘Vou sair’. Eu disse: ‘Não! Estão
atirando! Eles devem estar num lugar seguro. Espera passar, aí você sai’. Ele não quis saber,
abriu o portão e foi embora. Então eu percebi o pessoal ali parado, eu fui caminhando até
outra esquina, vi policiais e um corpo no chão, e os policiais perguntando: ‘Quem é ele?
Quem é ele?’ Alguém respondeu: ‘Não sei’. As pessoas espantadas, olhando, e eu assustada,
sem saber o que fazer. Aí, eu olho e vem vindo meu outro filho: ‘Mãe, vamos para casa, va-
mos esperar o Mateus’. Nessa época, o Mateus estava namorando, a moça morava na outra
esquina, e um amigo dele também morava perto [...] O João, quando chegou na esquina,
viu o menino no chão, e o Mateus tinha ido em direção ao morro, então ele continuou cor-
rendo, quando ele virou a esquina, o Mateus estava no chão. O Mateus já estava morto [...]”.
Sebastião José Martins: “O Ricardo levou um tiro no braço, tiro na nuca, horrível. Morreu
de costas, mataram ele de costas na traição mesmo, foi horrível. Um amigo que morava na
esquina chamou por socorro, e uma senhora que morava em uma das casas [...] viu o carro
indo embora. Esse mesmo carro que foi embora, foi o mesmo que socorreu ele. Logo em
seguida veio um carro de polícia. Por isso que a gente sabe, tem certeza que foi policial”.
12. Trechos das descrições dos grupos chamados “encapuzados” nos documentos oficiais: “Os disparos
teriam sido realizados por duas pessoas, motocicleta grande, provavelmente xt de cor vermelha”;
“indivíduos brancos, encapuzados” em uma “motocross, paralama de cor vermelha e o tanque de
cor branca com a inscrição de letras em vermelho, placas e marca não anotadas, ambos armados
com revolver .38 cromado, ambos trajando vestes escuras”; “ninjas em motocicletas, dentre elas uma
Twister preta”.
13. Destaque para as vítimas levadas ao hospital pela própria polícia, segundo os documentos ofi-
ciais: Rafael Dantas da Silva, André Hamilton Guedes dos Santos, Paulo Vitor da Conceição Silva,
Hércules Santos da Purificação, Adilson Pinto da Silva, Edson Rogério Silva dos Santos, Juracy dos
Santos Smith, Wagner Lins dos Santos, Ana Paula Gonzaga dos Santos, Eddie Joey de Oliveira La-
vezaris, Rodrigo Cruz Reis, Thiago Santos Francolino, Vitor Diego Martins, João Góes, Luis Carlos
da Silva Máximo, Bruno da Anunciação, Márcio Greick Pires dos Santos, Ricardo Porto Noronha,
Mateus Andrade de Freitas e Luis Fernando Rodrigues Santos.
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Vera Lúcia Andrade de Freitas: “Depois nós soubemos que eles tinham saído da escola
juntos, saíram os dois juntos [...] ele estava ali parado, esperando o amigo, e chegou a moto
com dois encapuzados atirando, ele ficou jogado no chão, ele estava com o olho todo fura-
do, a cabeça cheia de tiro”.
Vera Lúcia Gonzaga dos Santos14: “[...] ela arrancou o capuz dele. Aí o Joe falou o nome
dele, falou ‘fulano, me prende, me mata, faz o que você quiser mas solta ela, que ela está
grávida’, ela já estava numa gravata com a nuca no peito dele e ele com a arma na cabeça dela
[...] ele olhou para o Joe e apertou o gatilho e soltou ela no chão, ela já caiu morta. O Joe se
jogou em cima dela, gritando por socorro, falando o nome deles, que era para todo mundo
ouvir quem era. E gritando ‘filha, filha, olha nosso neném, olha nosso neném’, foi quando
eles metralharam o Joe pelas costas. Os tiros do Joe foram tudo pelas costas [...] ele veio até
a porta do carro, mas voltou e deu um tiro na barriga dela, e falou que filho de bandido,
bandido era. E foram embora. Assim que eles entraram no carro, chegou uma viatura, virou
e já encostou”.
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órgão responsável que o equipamento se encontrava inoperante naqueles dias. Quanto aos
b.o.s, muitos foram feitos pelos policiais, sem conhecimento das famílias16, de maneira que
não constam maiores informações, tampouco evidências ou testemunhos17, deliberadamen-
te justificando a descontinuidade da investigação.
Débora Maria da Silva: “Eles [Comando Geral da Polícia] fizeram uma coletiva de im-
prensa para dizer que o Copom 190 estava quebrado desde o dia 26 de abril, que não regis-
trou nenhuma ocorrência. Registrou sim; no caso dos meninos foram feitos chamados via
Copom. No caso do meu filho o condutor do b.o.18 fala que foi chamado via Copom para
atender uma ocorrência de homicídio, e depois ele é chamado no distrito, porque a mãe
estava acusando policiais militares que mataram o filho dela”19.
Débora Maria da Silva: “Eu nunca tinha participado de depoimento, não sabia nem como
funcionava isso. Mas eu fui no distrito saber se o delegado ia tirar a fita de monitoramento
do posto de gasolina, porque eu queria saber quem foi o policial que abordou meu filho
[...] houve uma dificuldade muito grande do delegado em retirar a fita de monitoramento
do posto [...] A partir dali eu saí em busca da Defensoria Pública. Na Defensoria Pública
16. Exemplos extraídos dos b.o.s de Marcos Rebelo Filho, Fernando Alves Oliveira, Ana Paula Gonzaga
dos Santos, Eddie Joey de Oliveira Lavezaris, Fabiano Ribeiro Barbosa, Emerson de Goes Maciel e
outros.
17. Segundo consta nos b.o.s, em muitos casos os próprios policiais depuseram como testemunhas.
18. Referência ao policial militar responsável pelo preenchimento do boletim de ocorrência.
19. Narrativa concedida no dia 3 de março de 2017.
20. Ver o exemplo de um dos casos de arquivamento sem investigação, o de Fernando Alves Oliveira.
Octavio Borba de Vasconcellos Filho, promotor público, em março de 2007, solicitou o arquivamen-
to, afirmando que: “todas as circunstâncias, bem como a maneira do cometimento do homicídio, a
sede e a quantidade dos ferimentos de penetração de projéteis de arma de fogo, deixaram certo, ao
menos para mim, que se está diante de uma ‘queima de arquivo’ ou de um ‘acerto de contas’, situações
que tornam mesmo muito difícil o seu completo esclarecimento”. Além das opiniões emitidas pelo
promotor, sem explicitação de detalhes e evidências circunstanciadas, nota-se a construção de uma
justificativa para o arquivamento do caso, reforçada pelo depoimento fornecido pelo irmão (Orlei
Alves de Oliveira) da vítima, ao declarar que “Fernando levava vida irregular, tendo sido preso vá-
rias vezes e que possuía envolvimento com entorpecentes”.
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também sofremos um descaso por parte do convênio da Defensoria com a oab [Ordem dos
Advogados do Brasil]21 [...] o advogado ou o defensor que pegou o processo deixou nove
meses o processo na sala dele e o processo caiu no arquivamento. Nós passamos pela mão
de vários advogados: ora estavam com o processo e daqui a pouco passavam para outro. Até
que caiu na mão do Dr. Cláudio, do Núcleo de Direitos Humanos (sp)”.
Givonete Filgueira: “Não foi feito boletim de ocorrência. Não chegou nada, só foi reconhe-
cer o corpo no iml. Foi a mãe dos filhos dele e o meu filho22, que hoje se encontra doente,
proveniente desse crime [...] Não tivemos assistência nenhuma do Estado”.
Márcia Alves da Cruz: “O promotor falou que ele morreu porque ele estava no lugar erra-
do e na hora errada. A ficha dele está no fórum, não usa drogas, não tem passagens, não tem
nada. Vai ficar 25 anos, e se eu descobrir quem matou o meu filho é para eu ir denunciar. Só
que na hora que eu estava no fórum não me deixaram falar que foi a polícia. Arquivaram
o caso com dois meses de investigação. Decidi não procurar mais nada. Já foi. Não vou, ele
está descansando. Esperei tanta coisa referente à justiça. Mas agora não espero mais nada”.
Sebastião José Martins: “Fizeram o b.o. pra poder investigar. Ninguém entrou em contato
para prestarmos depoimento. Chacina, tanto faz. É filho de mais um pobre”.
Vera Lúcia Andrade de Freitas: “A gente ficou aguardando a polícia, porque disseram que
iam chamar a gente para conversar. Mas ela nunca convocou ninguém”.
Vera Lúcia Gonzaga dos Santos: “Veio um carro da polícia do 4o d.p., se identificaram
como detetives. Mas nenhum dos crimes de maio teve investigação até hoje [...] na ocasião
do crime foi feito o boletim pela própria polícia e eu não fiquei com cópia. Até tentei saber
por quê. Eu queria o nome dos socorristas para perguntar por que ele tirou ela do lugar, por
que não foi feita perícia”.
21. Refere-se à criação da Defensoria Pública organizada pelo governo do estado de São Paulo em
2006, pela Lei Complementar n. 988/2006, que, no primeiro momento, não excluiu o patrocínio de
assistência judiciária prestada à população por advogado indicado pela Ordem dos Advogados do
Brasil (oab): “pelos termos do § 2o do art. 5o da Lei n. 1.060/50, assegurava-se que, se no Estado da
Federação não existisse serviço de assistência judiciária, por ele mantido, a indicação (de defensor)
caberia à oab, por suas Seções Estaduais, ou Subseções Municipais”. Ver: <https://jus.com.br/arti-
gos/14699/defensoria-publica-uma-breve-historia>. Acesso em: 23 fev. 2018.
22. Trata-se da ex-esposa e do irmão de Robson Damasceno Filgueira.
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Débora Maria da Silva: “[...] eu tive que ir chamar as outras mães para fazer uma pressão,
porque soubemos que até então a Vera [Lúcia Andrade de Freitas] do seu João não tinha
prestado depoimento ainda, então combinamos de todas nós irmos no 1o Distrito [...] fa-
laram que nossos filhos eram todos bandidos, filho da Nalva ‘desocupado’, e, quando nós
pedimos a boa conduta no ‘trampo’ dos nossos filhos, o promotor mandou a gente colocar
a declaração em um quadro23. Então dali eu vi que a justiça era luta, e denunciar o país de
fora para dentro foi o que aconteceu”.
Ilza Maria de Jesus Soares: “[...] eu sei que a Débora veio, me procurou e pediu para eu ar-
ranjar um advogado [...] depois desse contato com a Débora, foi que eu comecei a participar
com as Mães de Maio, aí começou a se edificar [...]”.
Maria Sônia Lins: “A morte do Wagner ficou parada até a Débora ir numa escola, eu não
sei se ela foi fazer uma palestra, se ela foi falar alguma coisa da morte dos meninos, e minha
cunhada estava lá, a mãe do Diego [...] aí ela deixou o telefone da Débora para eu entrar em
contato. Quando eu liguei para a Débora, ela disse se eu podia encontrar com ela na Defen-
soria Pública. Quando eu cheguei lá, conheci a Nalva, a Vera Freitas e a Verinha [Vera Lúcia
Gonzaga dos Santos]. Então conversamos e ela me pediu o endereço, telefone e tudo mais”.
Sebastião José Martins: “Todo mundo sabia que tinha umas mães, um pessoal, por alto,
que passou pela mesma situação”.
Raquel Monteiro Martins24: “[...] eu me sinto honrada em saber que tem um movimento
que luta por justiça [...]”.
Vera Lúcia Andrade de Freitas: “[...] a Débora veio aqui em casa com a Nalva. Começou a
contar o que tinha acontecido com os filhos delas. A gente já tinha visto pela televisão sobre
o filho da Nalva, disseram para a gente se juntar e tentar fazer alguma coisa”.
Vera Lúcia Gonzaga dos Santos: “A Débora me procurou, junto com a Vera e a Nalva. A
gente entrou nesse grupo, nesse movimento, mas foi muito tempo indo e vindo, um fechava
a porta daqui outro abria de lá [...] acho que talvez uns três meses depois ou dois meses de-
23. Grifo nosso. O destaque dado a esta parte da narrativa da mãe de Edson Rogério Silva dos Santos
deve-se ao descaso e ao sarcasmo usado pelo promotor, que considerou a declaração de “boa con-
duta” desnecessária para anexar aos autos do processo. A declaração foi providenciada para anexar
ao pedido de retratação feito pela Comissão de Direitos Humanos, pela advogada da oab, Dra.
Marilu Pena.
24. Irmã de Ricardo Souza Monteiro Martins.
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pois, eu comecei a participar do Movimento com a Débora, com a Nalva, com a Vera, com
a vozinha25, que já morreu [...]”.
Observa-se que a ação conjunta dos familiares deu visibilidade aos episódios de 2006.
A luta cotidiana das famílias e a colaboração de instituições e profissionais independentes
fizeram com que o movimento ganhasse repercussão nacional e internacional. Nos crimes
que envolvem vítimas cujas famílias estão engajadas no movimento há, minimamente, um
acompanhamento dos casos e busca permanente por respostas26.
Vera Lúcia Andrade de Freitas: “Hoje em dia, passados esses dez anos, a gente tem uma
esperança de que algum dia alguma porta vai se abrir, que alguma coisa vai acontecer e vai
ser tudo esclarecido”.
Vera Lúcia Gonzaga dos Santos: “[...] não teve nem acompanhamento do processo ou
prosseguimento do caso da Ana, tanto é que eu perdi o direito de reclamar qualquer coisa
[...] de lá para cá, nesses dez anos, fomos para São Paulo várias vezes depor, fomos para o
jornal, falei tudo que eu sabia [...]”.
Diante dos fatos aqui expostos, é possível afirmar que, se alguns casos dos Crimes
de Maio obtiveram algum encaminhamento, isso se deve às ações empreendidas pelos
familiares, em especial pelas mães, que se dispuseram a lutar por justiça e contra as cons-
tantes violações dos direitos humanos no período democrático.
Isso significa que houve avanço nessa luta, apesar de não ter havido justiça. Ao contrá-
rio, ainda se espera por verdade e pela responsabilização dos culpados.
Vera Lúcia Andrade de Freitas: “Eu gostaria, porque a gente fica sempre com uma im-
pressão de que nada foi feito, que nada aconteceu. Mataram ele, simplesmente mataram e
acabou. É um nome, um número e mais nada”.
Débora Maria da Silva: “[...] eu não espero do Brasil a justiça pela mão da nossa justiça,
porque ela tem dois pesos e duas medidas. Ela é classista, ela é racista e eu espero uma re-
forma dessa justiça que para mim não vale nada no Brasil, porque ela enxerga muito bem!
Mas ela só enxerga a periferia e a favela, o preto e o pobre”.
Givonete Filgueira: “Não foi tomada providência nenhuma. Não veio ninguém na minha
casa. Nenhum órgão público tomou providência. Ficou o dito por não dito. E eu, perdi o
meu filho, perdi o meu neto”.
25. Referência à Sra. Maria da Pureza (falecida), avó da vítima Ricardo Porto Noronha.
26. Ver na primeira parte deste relatório, detalhes sobre a denúncia contra a República Federativa do
Brasil, em decorrência dos Crimes de Maio de 2006, por violação aos direitos humanos das vítimas
à vida, à integridade pessoal, à liberdade e segurança pessoais, às garantias judiciais e à proteção
judicial, assegurados pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
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Givonete Filgueira: “[...] E, com poucos anos, também perdi o neto, o filho dele. Era o segun-
do, foi assassinado na capela. Foram os ninjas também. Ele tinha vindo de um baile, o Caio
Borges Felipe Filgueira28 [...] ele tava junto com as meninas, que se espalharam. Ele pulou
para dentro de uma casa vazia. A polícia ficou trocando tiro com as outras polícias, os caras
que estavam no carro, os touca ninjas [...] O Caio tinha 18 anos. Quando o tiroteio parou,
ele imaginou que tivesse tudo acabado e tivessem ido embora. Foi quando ele levantou a ca-
beça para olhar e atiraram. Acertou próximo ao olho direito e foi fatal. Também foi a óbito”.
Daniela Monteiro Ferreira30: “Ele levou cinco, o fatal foi na nuca, mas teve no braço, na
perna [...] ele não sabia de nada sobre o toque de recolher. Ele morreu em 2007, dez meses
depois do Thiago31 [...] minha mãe sabia que tinha sido policial que tinha matado meu ir-
mão. Nesse dia a gente teve a certeza, porque o policial falou assim para o meu irmão: ‘Eu
27. Informações retiradas do diário de campo dos pesquisadores: “No endereço levantado, fomos rece-
bidas por familiares de (Thiago Santos Francolino), que relataram que, além dele, o cunhado tam-
bém foi morto por policial em 2012”; “Um dos familiares relatou que (Luis Fernando R. dos Santos)
foi morto no mesmo dia e mês que o pai dele (18 de maio), sete anos depois do ocorrido com Luis, e
com sete tiros (a mesma quantidade), também deixou ‘um filho homem’”; “a história se repete”; “O
mesmo policial matou um outro jovem na rua de trás”; “Nestes dez anos tem intimidado a família e,
dois dias antes de nossa visita, apareceu pela rua para ‘marcar presença’”; “Após 2006, relata que fo-
ram mortos por encapuzados dois jovens na rua de sua residência, um tinha 15 anos e o outro era ‘ca-
deirante’. Familiar de (Fernando Alves Oliveira) morto em maio de 2006 tem um filho com idade de
25 anos que, segundo relatos, foi ameaçado de morte por policiais e hoje encontra-se encarcerado”.
28. Filho de Robson Damasceno Filgueira, vítima dos Crimes de Maio de 2006.
29. Referência aos casos: ano 2007 – vítima: Rogério Monteiro Ferreira – 27 de março de 2007, primo
de Thiago Roberto Soares, vítima de 2006; ano 2012 – vítima: José Rodrigo de Pina Junior – 7 de
outubro de 2012; ano 2013 – vítima: Ricardo Ferreira Gama – 2 de agosto de 2013; e ano 2015 – vítima:
Emerson dos Santos da Silva, vizinho e amigo de Ricardo Souza Monteiro Martins, vítima de 2006.
30. Irmã de Rogério Ferreira Monteiro.
31. Referência ao primo de Rogério Ferreira Monteiro, Thiago Roberto Soares, vítima dos Crimes de
Maio de 2006.
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vou te matar como eu matei o seu irmão’. E o meu irmão falou isso na audiência. Isso está lá
no processo dele. Ele deu o nome do policial, mas ele falou para o juiz: ‘Eu temo pela minha
vida, porque eles querem me matar de qualquer maneira’ [...]”.
Elvira Ferreira da Silva32: “Uns meninos que estavam lá também viram umas motos pas-
sando e acharam meio estranho, aquelas motos passaram e já estavam procurando meu
filho. Sondaram, sondaram e viram que ele estava vindo embora sozinho. Na esquina ele
parou e ficou conversando com um rapaz, e foi nessa hora que chegaram falando: ‘sai fora’,
‘sai fora’, ‘sai fora aí’, e começaram a atirar nele [...] (choro). Deram no coração, nas pernas,
o restante foi na cabeça do meu filho [...] daí a pouquinho que veio a polícia. Acho até que
quem matou ele estava lá. Eu gritava em volta daqueles policiais: ‘mataram meu filho, ma-
taram meu filho’ (choro), desesperada”.
Maria Helena Teles de Pina33: “[...] momentos antes já estavam acontecendo coisas erra-
das, que a gente sabia, de policiais de grupos de extermínio que andavam no lugar, mata-
vam, e era tipo assim, quando acontecia o fato de morrer algum policial, ninguém ficava
na rua, ninguém mesmo, ele então, nem pensar [...] tinha muita gente na rua, criança, mãe
com bebê, foi pânico, e quem pôde correr, correu, como até hoje tem um rapaz que levou
um tiro de raspão na orelha [...] pegaram meu filho pelas costas, ele caiu, dizem que ele ain-
da citou o nome da pessoa [...] ‘Poxa, fulano, sou eu, você me conhece’. Mas a pessoa ainda
deu na cabeça, como está no laudo [...] mais à frente, mais ou menos meia quadra, tinha
também essa menina que estava correndo, ela se escondeu atrás de uma árvore, mas para-
ram e ela pediu ‘Pelo amor de Deus’ [...] infelizmente foi na porta da costureira que trabalha
para todo mundo ali, e ela dentro da casa viu a menina implorando pra não morrer e eles
falaram que ela tinha visto demais e assim mesmo a mataram também [...]”.
Jucélia Maria dos Santos 34: “Quando ele caiu [foi no primeiro tiro que ele caiu] porque
antes o policial atirou num menino que ia correndo. Ele não correu, ficou. Disseram que ele
abriu os braços. O menino que correu depois falou para mim. Quando ele caiu, diz que ele
falou assim, ‘caralho, me acertaram, sou eu, pô’. Diz que ele falou o nome do policial. Esse
policial trabalhou com ele no mercado, eles se conheciam. [...] esse mesmo policial passou e
olhou para minha cara e deu risada [...] isso que não sai da minha cabeça, não consigo sair,
não consigo tirar isso da minha cabeça. Se ele estava morto, por que que ele foi no resgate?
Por quê? Ele deveria ter ido no carro da funerária, não era isso? E, se ele estava vivo, por que
que ele estava dentro de saco preto? Por quê? Isso não sai de minha cabeça, isso não sai35 [...]
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estava com uma arma na mão dele, eles puseram a arma que eles atiraram. A vizinha ali viu
na hora que os policiais colocaram [...] aí falaram que ele estava trocando tiro. O vizinho
viu o policial abrir a porta do carro, pegar um pacote e colocar na mão dele para falar que
ele estava com droga”.
Nos relatos dos familiares das vítimas de crimes ocorridos após maio de 2006, foi
possível identificar a permanência do modo de operar em relação à execução (locais dos
crimes, número de tiros e parte do corpo atingida), ao socorro às vítimas, ao processo
de investigação e ao trâmite judiciário, como também o uso do discurso que culpabiliza
as vítimas.
Essas ações, que constituem um modo de operar em relação à população vítima da
pobreza, são legitimadas por parte da sociedade, reforçando o estigma e uma cultura de
racismo, discriminação e criminalização.
Como afirma o Relatório Final cpi – assassinato de jovens:
O sistema de justiça perpetua essa situação, uma vez que raramente investiga os ca-
sos de abuso de autoridade em que são acusados agentes da segurança pública. Embora os
crimes sejam, inicialmente, investigados pelos distritos policiais, a elucidação dos casos é
dificultada pela escassez de infraestrutura e, como apontam os relatos dos familiares das
vítimas, pela manipulação da cena do crime pelos agentes que atuam no local.
não removendo o corpo e mantendo intacta a cena; e c) a equipe deverá permanecer no local da
ocorrência até a chegada de autoridade policial competente, salvo orientação contrária do médi-
co regulador. Disponível em: <http://www.saude.campinas.sp.gov.br/unidades/samu/documentos/
protocolos_normas_rotinas_SAMU_192_Campinas.pdf>.
36. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-re-
latorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens>.
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Enfim, a experiência vivida e relatada pelos familiares das vítimas expressa um pro-
cesso de sofrimentos: pela perda do familiar, pela impunidade, pela falta de justiça, pela
criminalização e pelo adoecimento.
Débora Maria da Silva: “Acho que nós temos um país covarde, que mata pobre, mata pre-
to, mata favelado e periférico, criminalizando a pobreza. Nós não pedimos para ser pobre.
Acho que o nosso país não está matando só os nossos filhos, está matando as mães também,
essa é a indignação total, porque nós perdemos nossos filhos e os filhos que estão vivos
perdem a mãe que têm [...]”37.
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suas orientações e/ou ordens, como também a ausência destas, geraram um modo de operar
que ganhou legitimidade extraoficial e tem sido recorrente, como demonstra o número de
mortes classificadas como “mortes decorrentes de intervenção de policiais”.
Outros elemento importante, associado ao processo de investigação e julgamento dos
crimes, é a reparação material e imaterial (moral e psicológica) dos familiares. Como de-
monstrou a pesquisa, as vítimas eram membros de famílias empobrecidas e que, em muitos
casos, contribuíam financeiramente para sua manutenção ou ainda estavam iniciando a
vida profissional. Além disso, os familiares também relataram que, durante o processo de
investigação, a maioria das vítimas e familiares foram culpabilizados e criminalizados pelos
agentes das instituições de segurança pública e justiça. Também foi possível constatar que
a morte das vítimas gerou nas famílias processos de adoecimento, com sequelas psicológi-
cas e físicas; e, em alguns casos – citamos anteriormente os casos de três mães –, levaram
até à morte. Diante desse quadro, a reivindicação histórica dos familiares pela reparação
psíquica, para alguns, já é tardia. Já existem outras mortes decorrentes dos homicídios dos
crimes de maio. Não será possível falar em justiça se a reparação material e imaterial não for
contemplada na sentença do esperado julgamento.
Somente medidas que demonstrem uma resposta concreta do Estado na perspectiva
da justiça, por meio da efetivação de procedimentos sistemáticos que combinem investi-
gação, julgamento, punição dos responsáveis, reparação das vítimas e familiares, poderão
cessar a lógica de violência instaurada. Precisamos de respostas efetivas do Estado para
os crimes ocorridos no período de democracia no Brasil – “considerando que foi um dos
maiores massacres da história contemporânea brasileira em tão curto espaço de tempo, um
verdadeiro crime de lesa-humanidade” (Débora Maria da Silva)38 –, para assim conseguir-
mos fazer a nossa travessia, de fato, conforme preceitos da justiça de transição.
Diante dos dados obtidos e da análise realizada, reafirmamos a defesa dos direitos
humanos contra as graves violações expressas nos casos pesquisados; e, assim, assumimos
o compromisso e o apoio às reivindicações do Movimento Mães de Maio, reiterando os
pontos contidos no Pedido de Incidência de Deslocamento de Competência, comumente
conhecido como Pedido de Federalização, feito à Procuradoria Geral da República e ao
Superior Tribunal de Justiça.
Dessa forma, e conforme a denúncia contra a República Federativa do Brasil reali-
zada pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo, apoiamos integralmente o pedido de que se reconheçam as viola-
ções cometidas pelo Estado brasileiro contra as vítimas dos Crimes de Maio de 2006 e se
determine a reparação integral das suas consequências por meio, entre outras, das seguin-
tes medidas:
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4. para reabilitação:
• disponibilização ou pagamento de assistência psicológica e médica às vítimas que a
desejarem e na forma que desejarem;
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Imagem 48. Bandeira do Movimento Mães de Maio, com fotos das vítimas.
Agradecemos aos familiares, em especial às mães das vítimas dos crimes de maio de
2006, que gentilmente colaboraram com a realização desta pesquisa, ao falarem sobre suas
vidas. Conversamos, escrevemos, lemos e relemos suas histórias. Choramos, sofremos e nos
indignamos juntos ao compartilharem suas angústias pela falta de respostas passados doze
anos da data em que tiveram seus filhos brutalmente arrancados de seu convívio.
A força presente na luta por justiça, apesar de relembrarem os dias de tristeza que
viveram e o sofrimento que persiste até hoje, é motivo de todo nosso respeito e admiração!
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