Análise de A Divina Comédia
Análise de A Divina Comédia
Análise de A Divina Comédia
Brabante, tanto quanto o milenarista Joaquim de Fiore, que ele apresenta como
di spirito proftico dotatto. O que um absurdo prprio dos beguinos.
Mais claramente, Dante utiliza na Divina Comdia a viso da felicidade
humana, de Hugo de So Victor, fundamentada na luz e na doura - lumen et
dulcedo - isto , na posse da verdade (lumen) e na posse do bem material
(dulcedo).
Existem elementos pagos na Divina Comdia, e se explicam pelo fato de que
Dante no era plenamente catlico. Ele fazia parte de uma sociedade secreta Os Fiis de Amor - cuja doutrina era gibelina. Como todos os Gibelinos, ele
colocava o Imprio acima da Igreja. O Imperador acima do Papa. Da o dio de
Dante ao Papado e Igreja rica, loba, carregando em sua magreza toda a
fome de riqueza.
E no se deve esquecer que os Gibelinos eram, muitas vezes, ctaros. Veja,
por exemplo, que Dante coloca, no inferno, Farinata degli Uberti como
epicurista, quando, de fato, ele foi ctaro, e excomungado como ctaro.
No Inferno de Dante, misteriosamente, jamais aparece o termo "ctaro".
Entretanto, essa era a grande heresia que dominava o tempo em que ele viveu.
At mesmo a colocao dos hereges - e para Dante hereges eram apenas os
materialistas epicuristas - estranha, pois eles no esto colocados entre os
fraudulentos, os enganadores que pecaram com o intelecto.
Tambm notvel como Dante exalta certos poetas conhecidos, hoje, como
ctaros, como por exemplo, Arnauld Daniel, mestre do "trobar clus" (poesia em
cdigo), Sordello, Casella a quem ele faz cantar o poema praticamente
esotrico mor che nella mente mi raggiona, de autoria do prprio Dante.
A Divina Comdia caracteriza-se por um fortssimo sentido moralizante, pela
reafirmao dos princpios cristos e pelo desejo de renovao espiritual. Sua
fora narrativa reside na firmeza de carter de Dante, enquanto personagem,
ao lidar com algumas das questes mais fundamentais da condio humana.
Mesmo diante dos maiores desafios, o poeta segue com convico sua crena
na existncia da vida eterna e naquela que seria a finalidade de nossa
existncia: a busca da unio com Deus, por meio da purificao.
No entanto, uma ambigidade que marca toda a obra pode ser encontrada nas
fontes de inspirao para o enredo: do VI canto do clssico Eneida, de autoria
do poeta romano Virglio, surge a temtica de uma viagem ao ps-vida. Da
Bblia, Dante extrai os dogmas catlicos, to presentes na obra. Da fuso de
ambos os textos, cria-se, ento, uma sntese da mentalidade medieval calcada na religiosidade -, ao mesmo tempo em que se vislumbra um anncio
da racionalidade, da valorizao do ser humano e do retorno aos modelos
greco-romanos, caractersticas essenciais do Renascimento.
Tal conciliao entre f e razo projeta-se fortemente sobre A Divina Comdia,
semelhana do que ocorre na suma filosfica de So Tomas de Aquino,
contemporneo de Dante. A viso de universo apresentada na obra, por sua
Sobre a montanha cnica do hemisfrio austral est situado, por seu lado, o
Purgatrio. As almas esto distribudas sobre as ravinas que se escavam no
flanco do monte. Sete sos as faixas correspondentes aos sete pecados
capitais; com o antipurgatrio e o Paraso Terrestre atingido o fatdico nmero
nove, que com o nmero trs se encontra na base de toda a disposio da
Divina Comdia. Os dois reinos esto ligados por um estreito subterrneo que
do fundo do abismo infernal leva ilha do Purgatrio, no hemisfrio oposto.
O Paraso encontra-se, naturalmente, no Cu: onde nove esferas circulam com
rbitas sempre maiores e movimento sempre mais rpido, em volta da Terra
imvel, segundo o sistema ptolomaico. Acima delas, o fulgurante Empreo,
onde resplende Deus, circundado pelos bem-aventurados triunfantes.
O Inferno
No meio do caminho da sua vida, Dante, tendo-se perdido numa floresta
obscura, tenta em vo subir a colina luminosa: trs feras, que simbolizam as
concupiscncias humanas, impedem-lhe o passo. Virglio aparece ao poeta e
prope-lhe um outro caminho para chegar contemplao de Deus (o cume
luminoso), um spero e terrvel caminho que atravessa os reinos de almtumba. Dante fica hesitante e aterrador, e s quando Virglio o informa de que
tal privilgio lhe foi concedido pela orao de uma mulher bendita, Beatriz, que
tanto deseja a sua salvao, ele se tranqiliza e dirige-se para o limiar do alm.
Virglio gui-lo- atravs do reino da beatitude.
Atravessado o fatdico limiar infernal, Dante encontra no vestbulo os cobardes,
os que viveram "sem infmia e sem louvor", juntamente com os anjos que,
quando da revolta de Lcifer, no souberam de que lado se colocar. Estes, que
quiseram impedir a batalha, esto agora condenados a correr sem descanso
atrs de uma bandeira, pungido por vespas e zangos. Primeiro exemplo, este,
da lei do contrapasso segundo a qual em todo o Inferno as penas so infligidas
em estreita relao - de analogia e de contraste - com os pecados cometidos. A
mesma lei governa tambm o Purgatrio.
Entre o vestbulo e o primeiro crculo do Inferno corre o rio de Aqueronte. Aqui
param os recm-chegados, esperando que Caronte, o demnio dos "olhos de
brasa", os atravesse para a outra margem, onde sero julgados por Minos,
monstruoso juiz que, enrolando a cauda, indica o crculo a que cada pecado
est destinado. No primeiro crculo, para alm do rio, h o Limbo, que recebe
as almas das crianas mortas sem o batismo e as daqueles que honestamente
viveram antes da vinda de Cristo Terra.
No h penas no Limbo, mas uma atmosfera de deprimente melancolia. Dante
encontra a os grandes da Antigidade: Homero, Horcio, Ovdio, Lucano e
tantos outros. O Inferno propriamente dito comea, portanto, apenas com o
segundo crculo, onde os luxuriosos so arrebatados por uma tempestade de
vento. Entre esses, Francesca de Rmini, ainda abraada ao seu Paulo, narra
ao poeta a sua trgica histria.
No terceiro crculo os gulosos so flagelados por uma chuva putrefata e
O purgatrio
Um instintivo respirar de alvio no emergir da "aura morta" e no reencontrar,
acima de si, o Cu, "doce cor de oriental safira". Graas a Deus, tudo diverso
no Purgatrio: a paisagem, a atmosfera, a luz que chove do alto.
Desaparecidos o dio, a rebelio, o crime. Enquanto as personagens infernais
eram visceralmente ligadas vida vivida na Terra, aos pecados que ainda
reviviam e que reviveriam por toda a eternidade, os penitentes do Purgatrio,
afastados das vicissitudes terrenas, encontram-se ansiosamente tendidos para
a sua futura unio com Deus. As tragdias sofridas na Terra esto j muito
afastadas, transfiguradas: j no fazem bater o corao.
As prprias penas a que os purgandos esto submetidos no tm o terrvel
relevo plstico do Inferno. O sofrimento fsico quase desaparece perante a
mais torturante dor espiritual, mitigada, porm, pela resignao e pela
esperana. Mal chegado praia da ilha, enquanto olha em volta de si e
descobre as estrelas do hemisfrio austral e o esplndido Cruzeiro do Sul,
Dante descobre, de sbito, que est perto de si um velho de venerada barba
branca. Cato, o estrnuo defensor da liberdade, aquele que em tica se
matou por no suportar que a Roma republicana sucumbisse.
Agora o guarda do Purgatrio: por isso a montanha da expiao
exatamente o reino da liberdade, liberdade em relao ao pecado, liberdade do
arbtrio. Virglio fala-lhe com suma reverncia e obtm para si e para o seu
discpulo a autorizao de subir a montanha. Antes, porm, de comear a
viagem, Virglio recolhe o orvalho das ervas e com ele lava o rosto de Dante,
para o libertar de toda a sujidade caliginosa do Inferno.
Entretanto aparece sobre o mar uma luz que velozmente se aproxima: trata-se
de um anjo, rente popa sobre um barco "estreitito e leve" que ele faz deslizar
com o adejo das grandes asas. Sentam-se no barco mais de cem espritos que
esto a chegar ao reino da expiao. Entre eles encontram-se Casella, que j
em vida havia musicado as canes de Dante e que agora, tendo
desembarcado e reconhecido o amigo, no hesita entoar a famosa "Amor que
na mente me discorre". As almas apinham-se em volta para ouvir o "doce
canto", mas Cato repreende-as pela demora, e elas correm ento para as
encostas do monte. Tambm os dois poetas se dirigem apressadamente para a
montanha e, enquanto Virglio procura um carreiro que permita a Dante subir,
um grupo de almas os alcana. Depois de ter sabido porque razo um vivo se
encontra naquele lugar, uma delas se identifica: Manfredi, que, embora
excomungado, se salvou num extremo impulso de arrependimento.
A subida rude, e Dante avana agarrando-se com as mos o melhor que
pode. Chega, porm, primeira plataforma, que constitui uma espcie de
vestbulo onde os que tardam a arrepender-se esperam o momento de poder
entrar no Purgatrio. Dante encontra Belacqua, um famoso ocioso dos seus
tempos; e Buonconte de Montefeltro, combatente em Campaldino; e, enfim,
depois de muitos outros, a suavssima e infeliz Pia de Tolomei.