Tese Alberto Kenji Yamabuchi PDF
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Programa de Doutorado
POR
Orientador:
Dr. James Reaves Farris
Tese apresentada em cumprimento s
exigncias do Curso de Ps-Graduao
em Cincias da Religio, para obteno
do grau de doutor.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: ________________________________________
Prof. Dr. James Reaves Farris
Examinador: _______________________________________
Prof. Dr. Loureno Stelio Rega
Examinador: _______________________________________
Prof. Dr. Silas Molochenco
Examinadora: ______________________________________
Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza
Examinador: _______________________________________
Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor Jesus Cristo, cujo amor fez-me abraar o ministrio pastoral.
A Raquel, esposa, amiga, companheira, que compreendeu os meus
momentos de isolamento.
Aos meus filhos: Thiago, meu orgulho, Paulinho, minha paixo e Yan,
minha esperana.
Ao meu mestre e orientado r, Dr. James Reaves Farris.
Ao Pastor Mrio Pereira da Silva, aos irmos e s irms da Igreja
Batista em Vila Gerte em So Caetano do Sul, cujo apoio foi fundamental para
a realizao deste trabalho.
6
YAMABUCHI, Alberto Kenji. O debate sobre a histria das origens do trabalho
batista no Brasil: uma anlise das relaes e dos conflitos de gnero e poder na
Conveno Batista Brasileira dos anos 1960-1980. So Bernardo do Campo, SP,
2009. Tese de Doutorado. Universidade Metodista de So Paulo.
SINOPSE
O presente trabalho analisou as relaes e os conflitos de gnero e poder observados
durante o debate sobre as origens do trabalho batista no Brasil, debate esse entre o
Pastor Jos dos Reis Pereira, lder oficial da Conveno Batista Brasileira durante os
anos 1960-1980 e a pesquisadora batista Betty Antunes de Oliveira. A anlise do
conflito foi realizada principalmente com a mediao de gnero como instrumento
hermenutico, conforme os pressupostos de Joan Wallach Scott. Desse modo, a
pesquisa teve como propsito principal, a partir da anlise do debate, dar visibilidade
ao conflito de gnero nos lugares de poder da Conveno Batista Brasileira dos anos
1960-1980, conflito dissimulado pelos discursos batistas sobre direitos de liberdade e
igualdade sociais. Esta pesquisa trabalhou basicamente com as seguintes hipteses: a
dinmica do debate foi fortalecida pelo contexto sociopoltico daqueles anos, que
favoreceu a emergncia dos movimentos de mulheres e feminista no Brasil, cujas
influncias foram tambm sentidas em outras tradies de f crist; e o resultado
final do debate dependeu mais das questes de gnero e poder do que das discusses
tcnicas e acadmicas sobre o acerto histrico do marco inicial do trabalho batista no
Brasil. O ineditismo desta pesquisa est em oferecer uma nova perspectiva do debate
sobre as origens do trabalho batista no Brasil, a partir do uso da categoria de gnero
como instrumento de anlise, o que complementar, desse modo, a pesquisa
acadmica j publicada sobre o tema.
7
YAMABUCHI, Alberto Kenji. The debate regarding the history of the origins of
Baptist work in Brazil: an analysis of relations and conflicts of gender and power in
the Brazilian Baptist Convention between 1960 and 1980. So Bernardo do Campo,
SP, 2009. Doctoral Thesis. The Methodist University of So Paulo.
ABSTRACT
The present work analyzed relations and conflicts of gender and power observed
during the debate regarding the origins of Baptist work in Brazil; a debate between
Pastor Jos dos Reis Pereira, the official leader of the Brazilian Baptist Convention
during the years 1960-1980, and the Baptist researcher Betty Antunes de Oliveira.
The analysis of the conflict was realized principally via the mediation of gender as
principal hermeneutic tool, following the presuppositions of Joan Wallach Scott. In
this manner, the research had as its principal proposal, based on an analysis of the
debate, to give visibility to the conflict of gender in the places of power in the
Brazilian Baptist Convention during the period 1960-1980, and dissimulated by
Baptist discourses on the rights of liberty and social equality. This research was
based on the following hypotheses: the dynamic of the debate was strengthened by
the sociopolitical context of those years, which favored the emergence of womens
and feminist movements in Brazil, whose influences were also felt in other Christian
traditions; and the final result of the debate depended more on questions of gender
and power than technical and academic discussions regarding the historical date of
the commencement of Baptist work in Brazil. The original contribution of this
research is in offering a new perspective regarding the origins of Baptist work in
Brazil, based on the category of gender as the instrument of analysis, which, as such,
compliments academic research already published regarding the theme.
Key Words: Baptist, History of Brazilian Bapt ists, Gender, Power, Feminism,
Feminist Theology.
8
YAMABUCHI, Alberto Kenji. Le dbat sur lhistoire des origines du travail
batiste en Brsil: Une analise des relations et des conflits de genre et pouvoir la
Convention Batiste Brsilienne des annes 1960-1980. So Bernardo do Campo, SP,
2009. Thse pour le Doctorat. Universidade Metodiste de So Paulo.
SYNOPSIS
Le travail prsent a analis les relations et les conflits de genre et pouvoir observs
pendant le dbat sur les origines du travail batiste en Brsil, dbat entre le pasteur
Jos dos Reis Pereira, leader officiel de la Convention Batiste Brsilienne pendant les
anns 1960-1980 et la chercheuse batiste Betty Antunes de Oliveira. Lanalyse du
conflit a t realise principalement avec lentremdiaire de genre comme instrument
Hermneutique, conforme les prsuppositions de Joan Wallach Scott. De cette faon,
le recherce a eu lintention principale, a partir de lanalyse du dbat, donner de
visibilit au conflit de genre dans les endroit de pouvoir de la Convention Batiste
Brsilienne pendant les annes 1960-1980, conflit dissimul par les discours batistes
sur les droits de libert et galit sociaux. Cette recherche a travaill basiquement
avec les hypothse suivantes : La dynamique de dbat a t fortifie par le contexte
social-politique de ces annes, ce que a favoris lmergence des mouvements des
femmes et fministes en Brsil, dont linfluence a aussi t sentie dans des autres
traditions du foi crtien, et le rsultat final du dbat a dpendu plus des questions de
genre et de pouvoir que des discussions teqniques e acadmiques sur la justesse
historique de la borne initiale du travail batiste en Brsil. Linditement de cette
recherche se rencontre dans la nouvelle prespective du dbat sur les origines du
travail batiste en Brsil, a partir de lusage du catgorie de genre comme instrument
danalyse, ce qui va complmenter, de cette faon, la recherche acadmique dj
publie sur ce sujet.
SUMRIO
INTRODUO. ................................................................................................. 14
1. Tema. ....................................................................................................... 14
2. Resumo da pesquisa. .............................................................................. 15
3. Problematizao e delimitao do tema. .............................................. 16
3.1 Gnese do problema. ........................................................................ 16
3.2 Como o problema tem sido abordado. ............................................ 18
3.3 Delimitao do tema. ........................................................................ 19
3.4 Problematizao do tema. ................................................................ 19
4. Hipteses. ................................................................................................. 21
5. Justificativa. ............................................................................................. 22
5.1 A escolha do tema e do objeto. ......................................................... 22
5.2 Originalidade da pesquisa. ............................................................... 23
5.3 Relevncia social da pesquisa. .......................................................... 23
6. Objetivos. .................................................................................................. 25
6.1 Objetivo geral. .................................................................................... 25
6.2 Objetivos especficos. ......................................................................... 25
7. Reviso de literatura. ............................................................................... 26
8. Referenciais tericos. ............................................................................... 29
8.1 Joan Wallach Scott. ............................................................................ 29
8.2 Michel Foucault. .................................................................................. 31
8.3 Pierre Bourdieu. .................................................................................. 35
8.4 Ivone Gebara. ...................................................................................... 38
8.5 Elisabeth Schssler Fiorenza. ............................................................ 40
8.6 Carlo Ginzburg. .................................................................................. 41
9. Metodologia. .............................................................................................. 42
9.1 Mtodo de abordagem. ....................................................................... 42
9.2 Mtodos de procedimento. .................................................................. 44
9.3 Tcnicas. ............................................................................................... 45
10. Estrutura da pesquisa. .............................................................................. 46
10
CAPTULO I O DEBATE SOBRE A HISTRIA DAS ORIGENS DO
TRABALHO BATISTA NO BRASIL. ................................................................ 49
1. Introduo. .................................................................................................. 49
2. A apresentao do debate. ......................................................................... 50
3. Os antecedentes histricos: os batistas norte-americanos e o Brasil do
Sculo XIX. .................................................................................................. 53
4. O incio da tradio da Posio Oficial 1882, Salvador, BA como o
Marco Inicial Batista. ................................................................................. 60
5. O principal defensor da Posio Oficial 1882, Salvador, BA: Pastor
Jos dos Reis Pereira. ................................................................................. 64
6. A Posio Oficial 1882, Salvador, BA relembrada e estabelecida.
....................................................................................................................... 67
7. A Posio Oficial 1882, Salvador, BA afirmada: tempos de paz. ....... 68
8. A Posio Oficial contestada por uma mulher batista brasileira. .......... 70
9. A principal defensora da Posio 1871, Santa Brbara, SP: Betty
Antunes de Oliveira. ................................................................................... 71
10. A Posio 1871, Santa Brbara, SP ganha apoio. ................................ 76
11. 1971: um Centenrio que no foi Centenrio. .......................................... 78
12. Parntesis: mulheres batistas e o debate sobre o marco inicial. ............. 84
13. Inconformismo e perseverana: a atuao de Betty Antunes de Oliveira.
........................................................................................................................ 86
14. 1982: o Ano do Centenrio Oficial dos batistas brasileiros. ................... 91
15. 1985: o Ano de Centelha em Restolho Seco. .............................................. 93
16. O ps-debate. ............................................................................................... 96
11
7. As instituies batistas de ensino teolgico: a dominao masculina na
produo do conhecimento teolgico. ..................................................... 169
8. A arena do debate. .................................................................................... 176
INFLUNCIAS
DO
FEMINISMO
BRASILEIRO
NAS
CAPTULO
IV
CONTEXTO
RELIGIOSO:
AS
POSSVEIS
12
6. O debate, o medo e a misoginia. .............................................................. 307
7. As obras de Reis Pereira e Betty de Oliveira: historiografia e gnero. 316
8. Parecer final. ............................................................................................. 328
13
QUADROS.
1. Foucault e suas obras. ..................................................................................... 32
2. Comparao das listas de princpios batistas referente centralidade do
indivduo. ............................................................................................................. 111
3. As possveis influncias dos movimentos de mulheres e feministas na
Conveno Batista Brasileira dos anos 1960-1980. .......................................... 224
4. Comparaes entre as igrejas histricas durante os anos 1960-1980. ........ 269
5. A atuao de Betty de Oliveira e os movimentos de mulheres e feministas. 330
TABELAS.
1. As publicaes da JUERP entre os anos 1968-1987. ..................................... 149
2. Participao feminina no corpo docente do Seminrio do Norte. ................ 171
3. Concluintes dos cursos oferecidos pelo Seminrio do Norte entre 1918 a
1977.......................................................................................................................... 172
4. Participao de mulheres na concluso dos cursos do Seminrio do Norte. 173
5. Contribuio do corpo docente para a literatura teolgica permanente...... 174
6. Conferencistas convidados pelo Seminrio do Norte. ................................... 175
7. Pesquisa sobre oficiais mulheres na Igreja Presbiteriana do Brasil............. 254
FOTOS.
1. Jos dos Reis da Silva Pereira. ........................................................................... 64
2. Betty Antunes de Oliveira. ................................................................................. 71
3. Capa da 1. edio de Centelha em Restolho Seco. ........................................ 318
4. Capa da 2. edio de Histria dos Batistas no Brasil (1882-1982). ............. 320
14
INTRODUO
1.
O Tema.
Escrever
sobre
um
tema
polmico,
problemtico
talvez
ainda
15
Reis Pereira envidou esforos para vencer o debate, porque o domnio masculino na
produo do conhecimento historiogrfico batista havia sido desafiado por uma
mulher, esposa de pastor. Desse modo, conclui-se que o debate foi, na verdade, um
caso de sexismo, que visibilizou os conflitos de gnero e poder na Conveno
Brasileira dos anos 1960-1980.
2.
Resumo da Pesquisa.
O patriarcado clssico caracterizou-se por uma estrutura de poder piramidal, onde os pais possuam
o poder de posse e deciso (leia-se: poder de vida e morte) sobre as mulheres, os filhos, os servos, os
escravos. Cf. TOMITA, Luiza E. O desejo seqestrado das mulheres: desafio para a teologia
feminista no sculo 21. In: SOUZA, Sandra Duarte de. (Org.). Gnero e religio no Brasil: ensaios
feministas. So Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de So Paulo, 2006, p. 150-151.
16
Observou-se que, em razo dessa dominao, as vrias instncias de poder da
Conveno contriburam para uma diviso simblica interna, re-produzindo relaes
de poder social e sexualmente hierarquizadas, que eram mantidas e controladas
atravs de mecanismos de disciplina, com suas expresses dissimuladas e
multiformes. Com essa descrio, pretendeu-se apresentar o ambiente sociocultural
da Conveno Brasileira desfavorvel s mulheres, que Betty de Oliveira enfrentou,
para manifestar sua competncia no campo simblico da produo do conhecimento.
As desigualdades de gnero no nvel hierrquico observadas durante a
pesquisa, levaram concluso de que o resultado final do debate dependeu mais das
questes de gnero e poder (o preconceito, a misoginia e a violncia de gnero) do
que dos argumentos acadmicos defendidos pelas partes adversrias sobre o acerto
histrico do marco inicial do trabalho batista no Brasil.
3.1
Gnese do Problema.
O 10o. Congresso da Aliana Batista Mundial foi realizado no Rio de Janeiro no perodo de 26 de
Junho a 3 de Julho de 1960. Representantes de igrejas batistas de vrios pases se fizeram presentes.
17
Rio de Janeiro, RJ. Portanto, Reis Pereira se comprometeu politicamente ao lanar
internacionalmente a data do marco inicial do trabalho batista no Brasil. Na verdade,
sua declarao estava amparada por uma tradio elaborada pela liderana masculina
da Conveno Brasileira desde 1907, mas que no havia sido divulgada da forma
como foi por Reis Pereira em 1960.
Porm, nessa poca, a jornalista e esposa de pastor batista Betty Antunes de
Oliveira estava desenvolvendo pesquisa histrica sobre sua rvore genealgica e
percebeu que seus ascendentes norte-americanos haviam organizado, em 1871, o
primeiro trabalho batista no Brasil. O centenrio dos batistas brasileiros deveria ser
celebrado, ento, em 1971 e no em 1982, conforme a declarao pblica de Reis
Pereira em 1960. Betty de Oliveira publicou a sua descoberta em 1966 atravs de O
Jornal Batista e, portanto, questionou publicamente a posio defendida por Reis
Pereira e pelos fundadores masculinos da Conveno Brasileira sobre a origem do
trabalho batista brasileiro. A partir do artigo de Betty de Oliveira, a polmica sobre o
marco inicial batista ganhou lugar especial nos espaos de O Jornal Batista e nas
assemblias da Conveno Batista Brasileira durante quase vinte anos.
Em razo do questionamento de Betty de Oliveira e do apoio que ela recebeu
de outros pastores, Reis Pereira trabalhou intensamente de forma a conseguir a
aprovao de sua tese na assemblia da Conveno que foi realizada em 1969.
Assim, a partir daquele ano, a tese de Reis Pereira se tornou oficialmente a posio
dos batistas quanto ao marco inicial do seu trabalho no Brasil. No obstante, apesar
dessa aprovao, o debate sobre o assunto continuou na arena da Conveno
Brasileira.
O debate sobre o marco inicial do trabalho batista no Brasil sempre girou em
torno de se determinar qual a data e o lugar corretos daquele acontecimento histrico.
Geralmente se discutia se a razo ideolgica que fez a liderana masculina
determinar a cidade de Salvador, BA e o ano de 1882 como o incio do trabalho,
justificava desprezar o pioneirismo dos colonos norte-americanos que organizaram
uma igreja batista em Santa Brbara, SP, em 1871. A discusso levava ao confronto
pblico as idias divergentes dos debatedores e seus representantes, atravs da
apresentao e da interpretao das fontes e dos documentos histricos levantados
18
pelos dois lados, conduzindo o conflito principalmente para o campo acadmico da
cincia historiogrfica.
O centenrio dos batistas foi celebrado em 1982 conforme a deciso tomada
em assemblia convencional realizada em 1969. No mesmo ano da comemorao
centenria, apoiado e patrocinado pela Conveno, Reis Pereira publicou o seu livro
sobre a histria dos batistas brasileiros, que se constituiu a obra historiogrfica oficial
do centenrio da denominao. Isso definiu a vitria da posio estabelecida pelo
domnio masculino quanto determinao do marco inicial batista.
Apesar dos seus esforos e do apoio de parte da liderana (inclusive
masculina) batista, Betty de Oliveira no logrou xito em convencer a denominao a
repensar a histria das origens dos batistas brasileiros. Porm, continuou sua
pesquisa e, ao complet- la, publicou-a em 1985. No obteve apoio e patrocnio da
editora oficial da denominao batista para o lanamento do seu livro. Betty de
Oliveira precisou usar recursos prprios e contar com a ajuda de terceiros, inclusive
pertencentes a outras tradies de f, para publicar a sua obra.
Assim, essa diferena de tratamento dispensado Betty de Oliveira pela
liderana da Conveno Brasileira, principalmente no desfecho do debate, se
constituiu a preocupao fundamental desta pesquisa, que procurou respostas a partir
de uma leitura de gnero.
SANTOS, Marcelo. O marco inicial batista: histria e religio na Amrica Latina a partir de Michel
de Certeau. So Paulo: Jorge Pinheiro, 2003.
19
Assim, o ineditismo desta pesquisa est exatamente em no trabalhar o debate
sob a tica da historiografia, mas a partir do uso de gnero, enquanto categoria de
anlise social, para visibilizar as questes de gnero e poder, que certamente
determinaram o resultado final do conflito.
20
teoricamente dificultaria a explicitao de conflitos dessa natureza em meio
convivncia denominacional.
21
4.
Hipteses.
Embora o seu contexto seja o catlico romano, de certa forma Boff retratou tambm
a situao do protestantismo quanto assimetria de saber-poder na produo
religiosa. Faltou apenas, em suas palavras, esclarecer que, mesmo no meio catlico,
os detentores dos meios de produo simblica de saber so homens e que no h
participao feminina nesse processo. As mulheres fazem parte do grupo dos
excludos.
Dessa perspectiva, a atuao de Betty de Oliveira no debate pode ter sido
vista como uma ameaa hegemonia masculina na constituio do saber, o que
provocou a manifestao do preconceito e da violncia de gnero. Assim como
houve um sentimento misgino manifestado na sociedade em geral por ocasio da
emergncia do feminismo brasileiro, possvel verificar o mesmo tipo de temor nos
lugares de poder durante o referido debate na Conveno Batista dos anos 19601980. Desse modo, suspeita-se que o resultado final do debate dependeu diretamente
das questes de gnero (sexismo) do que das discusses acadmicas sobre o marco
inicial batista.
Tambm suspeita-se que o esforo de Betty Antunes de Oliveira pela
aprovao de seu trabalho foi mais que uma tentativa da autora de fazer valer sua
4
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 99-100.
22
tese diante da posio oficial da Conveno Batista Brasileira: isso pode ser
interpretado como uma ao de natureza feminista, que perguntou pelo direito e lugar
da mulher na produo de saber e na construo da histria dos batistas brasileiros.
, pois, muito possvel que uma mulher como Betty de Oliveira tenha
aproveitado o esprito sociopoltico de sua poca, que favoreceu a emancipao e o
empoderamento das mulheres no Brasil e no mundo, para enfrentar o domnio
masculino do saber-poder na Conveno Brasileira.
Assim, a pesquisa usou o conceito de gnero como instrumento hermenutico
para a anlise do debate sobre as origens do trabalho batista brasileiro, como forma
de provar que as relaes de poder entre homens e mulheres na Conveno Batista
Brasileira dos anos 1960-1980, social e sexualmente re-produzidas pela dominao
masculina e patriarcal determinaram o resultado final do conflito.
5.
Justificativa.
YAMABUCHI, Alberto Kenji. Cura e poder na teologia de R. R. Soares: uma anlise crtica luz
da Teologia Prtica. So Bernardo do Campo, SP, 2002. Dissertao de Mestrado. Universidade
Metodista de So Paulo.
23
tenham medo de debruar-se sobre o parapeito de seu prprio poo.
Desse modo,
misoginia,
violncia)
religio
(cristianismo
protestante,
fundamentalismo).
Uma religio (1) um sistema de smbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes nos
homens atravs da (3) formulao de conceitos de uma ordem de
existncia geral e (4) vestindo essas concepes com tal aura de
fatualidade que (5) as disposies e motivaes parecem singularmente
realistas. 7
GESCH, Adolphe. Prefcio. In: GEBARA, Ivone. Rompendo o silncio: uma fenomenologia
feminista do mal. Trad. Lcia M. E. Orth. 2. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2000, p. 25.
7
GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989, p. 67.
8
SOUZA, Sandra Duarte. Entrecruzamento Gnero e Religio: um desafio para os estudos feministas.
Mandrgora: Revista do Ncleo de Estudos Teolgicos da Mulher na Amrica Latina. So Bernardo
do Campo, SP, no. 7/8, p. 7, 2001/2002.
24
10
11
25
no campo do cristianis mo histrico, a partir da anlise das relaes e dos conflitos de
gnero e poder observados na Conveno Batista Brasileira dos anos 1960-1980.
6.
Objetivos.
Analisar o debate sobre o marco inicial batista, a partir dos dados extrados
do trabalho descritivo, aplicando os conceitos dos principais referenciais
tericos desta pesquisa: Joan W. Scott, Michel Foucault e Pierre Bourdieu
para as questes de gnero e relaes de poder.
26
7.
Reviso de literatura.
Gnero tem sido tema amplamente estudado nos ltimos anos. Um vasto
material acadmico sobre o assunto pode ser levantado em simples pesquisa
bibliogrfica. Por exemplo, a Dra. Sandra Duarte de Souza nos ofereceu uma lista
extensa de trabalhos sobre gnero na Universidade Metodista e ainda observou que
houve, nos ltimos anos, um significativo crescimento em pesquisas nesse tema. Em
seu artigo na revista Mandrgora
12
13
sobre a
14
SOUZA, Sandra Duarte. Estado da questo dos estudos de gnero na Ps-Graduao em Cincias
da Religio da UMESP. Mandrgora: Revista do Ncleo de Estudos Teolgicos da Mulher na
Amrica Latina. So Bernardo do Campo, SP, no. 9, p. 9-18, 2003.
13
GETO, Eduardo. Ordenao ao ministrio feminino: estudo de caso na Conveno Batista
Paranaense na perspectiva da Teologia Prtica. So Bernardo do Campo, SP, 2003. Dissertao de
Mestrado. Universidade Metodista de So Paulo.
14
SOUZA, Adriana. Gnero e poder: mulheres docentes em instituies teolgicas protestantes da
Grande So Paulo. So Bernardo do Campo, SP, 2006. Dissertao de Mestrado. Universidade
Metodista de So Paulo.
27
protestantes da Grand e So Paulo, a pesquisa problematizou as relaes de gnero e
poder nesse ambiente e sublinhou o preconceito que atinge as mulheres na academia
teolgica. O preconceito de gnero foi observado no jogo de representaes sociais,
cujas regras simblicas construram esteretipos que acabaram por determinar o
lugar e o trabalho da mulher docente. A pesquisadora observou que as instituies
teolgicas so representantes das igrejas crists protestantes e, portanto, o que a
ocorre, nada mais do que um reflexo daquilo que ensinado e reproduzido nessas
igrejas. Afirmou que o ingresso da mulher no ensino teolgico estratgia legtima
para romper com os cdigos da dominao patriarcal, bem como um meio seguro de
entrar num espao essencialmente masculino.
O trabalho de Francineide Pereira
15
constroem masculinidades e procurou compreender a persistncia da dominaoexplorao patriarcal relacionando-a com as categorias de gnero, classe, raa e
etnia. Pesquisa baseada na histria de vida de oito homens, moradores de Teresina,
PI, sendo seis heterossexuais e dois homossexuais, diferenciados por classe social e
raa-etnia. Nas entrevistas com esses homens, procurou identificar que categorias de
homens influenciaram de forma marcante a vida e a histria de cada um dos sujeitos
da pesquisa. As respostas das entrevistas ofereceram, para anlise, as contradies
que envolvem os relacionamentos pessoais e que determinam a trajetria de cada um,
bem como a identificao das hierarquias e das lutas pelo poder entre as categorias
de homens.
Outra pesquisa consultada foi a de Naira Santos,
16
15
28
tenses provocadas pelo contato com os valores culturais da sociedade hodierna, o
que implica em avanos, conflitos e permanncias nas prticas de gnero.
Sobre o outro eixo principal deste trabalho, o poder, tambm se observa um
grande nmero de trabalhos acadmicos produzidos sobre esse assunto. A seleo
das obras consultadas, portanto, foi necessria e certamente limitada. Os trabalhos
escolhidos versaram sobre assuntos que tm conexo com os objetivos desta
pesquisa.
Por exemplo, o trabalho de Silveira
17
18
17
SILVEIRA, Rafael A. Michel Foucault: poder e anlise das organizaes. So Paulo, 2002.
Dissertao de Mestrado. Escola de Administrao de Empresas de So Paulo.
18
FONSECA, Mrcio A. Michel Foucault e a constituio do sujeito. So Paulo: EDUC, 2003.
29
como os mecanismos e as estratgias que compem esses processos. Fonseca,
portanto, ofereceu um estudo importante sobre a ltima fase do filsofo francs.
O levantamento do estado atual da pesquisa, portanto, envolve u o contato
com muitos trabalhos acadmicos,
19
8. Referenciais tericos.
21
que proporciona a elaborao de uma espcie de contrato sexual nas relaes sociais.
Esse contrato, segundo Pateman,
22
30
categoria til de anlise histrica (1990). Nele, Scott aponta que o termo gnero foi
inicialmente utilizado para simplesmente designar os sexos masculino e feminino.
Apenas recentemente o termo tem sido usado por tericas feministas para se referir
construo e organizao social da relao entre os sexos. Fiorenza citou a existncia
de uma linha de orientao feminista de gnero:
O feminismo de gnero (s vezes denominado tambm feminismo da
diferena) no se centra tanto nas mulheres quanto na construo cultural
e social dos gneros. Em vez de pressupor que os papis de gnero se
baseiam nas diferenas naturais arraigadas no sexo biolgico, afirma que
o sexo -gnero um sistema de dominao culturalmente construdo.
Posto que o gnero brinda um marco de referncia dualista e
funcionalista, o feminismo de gnero requer que se estudem ambos
gneros, assim como suas reconstrues ideolgicas e culturais. 24
A partir dos anos 1970, gnero foi usado para teorizar a questo da diferena sexual.
As feministas norte-americanas ofereceram grandes contribuies no uso de gnero
no sentido mais recente: o apontamento do carter social das distines entre os
sexos. O paradigma combatido foi o determinismo biolgico que fundamentava a
desigualdade de gnero.
No entanto, estudos centrados apenas sobre as mulheres se revelaram
limitados. Desse modo, o conceito de gnero recebeu contribuies que revelaram o
seu aspecto relacional. Em outras palavras, as mulheres s poderiam ser estudadas
em sua relao com os homens. Nenhuma compreenso plena poderia ser alcanada
em estudos que separassem homens das mulheres.
As tericas feministas com viso poltica associavam as categorias de classe e
raa em suas anlises da perspectiva de gnero. Esses trs eixos se constituam o
centro onde so organizadas todas as formas de desigualdade e de injustia social.
Para Scott, as trs categorias no esto no mesmo nvel. Classe refere-se doutrina
marxista, s leis econmicas, ao campo histrico e poltico. Raa (inclusive etnia) e
gnero no tm referncias semelhantes.
O estudo de gnero promoveu expectativas no sentido da possibilidade de se
acrescentar novos temas, de criticar e transformar paradigmas nas diversas reas do
conhecimento humano. Sob a tica de gnero, at mesmo a histria da humanidade
haveria de ser desconstruda e recontada. Poderia no s haver uma nova histria das
24
31
mulheres, mas at mesmo uma nova histria. Essa metodologia analtica incluiria as
experincias das mulheres na histria, tornando-as sujeitos dessa histria.
A empolgao feminista na produo de uma histria das mulheres, no
entanto, sofreu com o descaso da academia. Provavelmente influenciado pelo
domnio masculino no campo do conhecimento cientfico, o meio acadmico relegou
a pretensa histria das mulheres a um segundo plano.
A teorizao de gnero, no entanto, tambm no escapou de armadilhas
encontradas nas cincias sociais. A generalizao uma delas. Essa tendncia no uso
de gnero pode, segundo Scott, no s destruir a complexidade que envolve a
histria, como tambm impedir a elaborao de anlises que levem transformao
social.
Se nos anos 1970, gnero foi utilizado para teorizar a questo da diferena
sexual, nos anos 1980 ele teve uma conotao mais objetiva e neutra do que
simplesmente designar mulheres: o propsito foi o de buscar uma legitimidade
institucional para os estudos feministas. Sem a ameaa da crtica acadmica, esse uso
incluiu as mulheres, sem nome- las e o aspecto relacional do conceito de gnero foi
reforado: qualquer estudo sobre mulheres implicava tambm em estudar os homens.
A justificativa: o mundo das mulheres faz parte tambm do mundo dos homens.
Scott entende que um uso no exclui o outro. Gnero, portanto, deve ser utilizado
para designar as relaes sociais entre os sexos. Deve ser uma maneira de indicar
construes sociais a criao inteiramente social de idias sobre papis adequados
aos homens e s mulheres [...] O gnero [...] uma categoria social imposta sobre um
corpo sexuado.
25
32
contradies que as isolam entre si, enfim, as estratgias em que se
originam e cujo esboo geral ou cristalizao institucional toma corpo
nos aparelhos estatais, na formulao da lei, nas hegemonias sociais. 26
27
ANOS
1960
1970
1980
TEMA
SABER
PODER
SUJEITO
OBRAS
Histria da Loucura
(61). O Nascimento da
Clnica (63). As
Palavras e as Coisas
(66). A Arqueologia
do Saber (69).
A Ordem do Discurso
(70). Vigiar e Punir
(75). A Vontade de
Saber (76).
O Uso dos Prazeres
(84). O Cuidado de Si
(84).
PROJETO
PESQUISA
Arqueologia
do Saber.
Como os saberes
aparecem e se
transformam?
Genealogia do
Poder.
ArqueoGenealogia do
Sujeito.
Como os seres
humanos se
transformam a si
mesmos em sujeitos?
28
26
33
seria o mesmo que afirmar que na verdade no haveria poder em lugar nenhum.
Outra teoria afirma que h lugares onde o poder existe (poder positivo) e lugares
onde ausente (poder negativo). Nesse caso, teramos a teoria da soma zero, onde
na soma dos poderes positivos e negativos (ausncia de poder) resultaria naquilo que
regularia e promoveria um equilbrio social. Foucault discordou dessas teorias, ao
contrapor seu conceito de que o poder est disseminado pela sociedade, no de forma
homognea, mas onipresente como uma ampla rede muito bem tecida. O poder est
em toda parte; no porque englobe tudo e sim porque provm de todos os lugares.
29
29
34
A proposta do mtodo genealgico de Foucault, que analisa a relao entre o
poder e saber, oferece uma libertao dos saberes sujeitados, inscritos na hierarquia
de poderes prprios da cincia:
Trata-se de ativar saberes locais, descontnuos, desqualificados, no
legitimados, contra a instncia terica unitria que pretenderia depurlos, hierarquiz-los, orden-los em nome de um conhecimento
31
verdadeiro, em nome dos direitos de uma cincia detida por alguns.
Foucault usa a idia de insurreio dos saberes contra os efeitos de poder observados
em um discurso cientfico e dominante. As relaes de poder derivam desse conflito
de saberes e produzem formas de resistncia, de contra-poder, cujo desenvolvimento
histrico se observa nos diversos nveis das relaes sociais: a oposio do poder do
homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos, da psiquiatria sobre a loucura, da
medicina sobre o povo. Mas no so lutas que apenas se opem s autoridades
dominadoras. Essas lutas so transversais, sem fronteiras de nacionalidade, que tm
como objetivo os efeitos prprios do poder. So lutas que se opem aos privilgios
que tm os detentores do conhecimento cientfico, dogmtico.
Percebe-se a valiosa contribuio de Foucault para o pensamento e a teolo gia
feministas: na desconstruo do discurso patriarcal e androcntrico pelo mtodo
genealgico do poder, cria-se o caminho para a libertao e ativao dos saberes
sujeitados das mulheres na direo da construo da histria das mulheres.
32
FOUCAULT, Michel. tica, sexualidade, poltica. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Elisa
Monteiro, Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004. (Coleo Ditos
e Escritos, V), p. 171-172.
32
Sobre a contribuio de Foucault para a histria das mulheres cf. PERROT, Michele. As mulheres e
os silncios da histria. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 489-503.
33
Id. p. 172.
35
dominncia e subordinao dentro de um mbito particular. Em segundo
lugar, necessitamos de uma anlise adequada para descrever um poder
cujos mecanismos centrais no so repressivos mas constitutivos: um
poder gerando foras, fazendo-as crescer e organizando-as, ao invs de
um poder dedicado a impedi-las, subjugando-as ou destruindo-as. [...]
Em terceiro lugar, precisamos de um discurso que nos possibilite
detectar a recuperao da rebeldia potencial, um discurso que,
enquanto insiste na necessidade da anlise objetiva das relaes de
poder, da hierarquia social, do recuo poltico etc., nos permita, no
obstante, confrontar os mecanismos pelos quais o sujeito se torna s
vezes enredado, conivente com foras que sustentam sua prpria
34
opresso.
35
Nessa obra, Bourdieu se props a atualizar sua anlise dos mecanismos que
eternizam a ordem sexual de natureza patriarcal estabelecida em nosso mundo. Em
outras palavras, ele se perguntou: o que precisamente mantm essa presente ordem,
caracteristicamente androcntrica e notavelmente sem significativas mudanas ou
revolues? Esse fenmeno pode ser observado tanto em sociedades primitivas
(Bourdieu pesquisou a sociedade cabila) quanto naquelas mais desenvolvidas. Que
mecanismos histricos so responsveis pela des-historicizao, pela naturalizao e,
portanto, pela eternizao dessa ordem sexual? Sabe-se que tais mecanismos so
acionados pelas principais instituies sociais (famlia, igreja, escola, Estado), cujas
tradicionais funes tm re-produzido, de forma orquestrada, as condies que
reforam as estruturas da diviso sexual. Essa ordem reforada pelas instituies
retira a relao entre os sexos da histria e acaba confirmando que a diviso
construo social da o seu carter arbitrrio e no natural como querem as vises
essencialistas (biologizantes e psicanalticas). Para deter esses mecanismos
reforadores, a proposta apresentada por Bourdieu a da mobilizao poltica a
revoluo simblica que organiza a luta das mulheres, para oferecer uma ao
coletiva de resistnc ia na direo de reformas jurdicas e polticas.
Na anlise da eternizao da ordem sexual, surge o primeiro paradoxo: como
essa ordem do mundo, com suas injustias sociais (desigualdade, intolerncia,
34
36
racismo, sexismo), continua a ser grosso modo to facilmente aceita, respeitada e
at mesmo tida como natural? Essa submisso, submisso paradoxal, tem na
dominao masculina o seu exemplo por excelncia. A dominao resultante da
violncia simblica que, por sua vez, no facilmente percebida pelas prprias
vtimas e exercida atravs das vias simblicas da comunicao e do conhecimento
(tambm do desconhecimento e do reconhecimento) ou do sentimento. Eis a lgica
da dominao: dominante e dominado se relacionam atravs de um princpio
simblico (lngua, estilo de vida, estigma) conhecido e reconhecido por ambos, o que
perpetua o sistema de dominao.
Bourdieu afirmou que caracterstico dos dominantes estarem prontos a
fazer reconhecer sua maneira de ser particular como universal
36
. A dominao
36
37
2. Devolver dxa o seu carter paradoxal o processo de conscientizao
coletiva;
3. Denunciar os mecanismos histricos responsveis pela eternizao do
arbitrrio o processo de identificao;
4. Concentrar o olhar e o discurso feministas no espao pblico, nos lugares de
elaborao de poder, da violncia e da dominao a mobilizao poltica.
O processo de historicizao importante porque demonstra a construo
arbitrria do biolgico, que faz a dominao masculina ser incorporada na ordem
social. Com base nessa construo social, nascem fortes esquemas de pensamento
que acabam legitimando e naturalizando a diviso entre os sexos. Na verdade, a
aceitao natural e relativamente fcil dessa diviso se d porque h uma adeso
dxica por parte das dominadas. Elas acabam reconhecendo as estruturas da relao
da dominao, ou seja, acabam se conformando com os esquemas que so produtos
da mesma dominao as mulheres so seus piores inimigos.
37
37
38
38
A violncia simblica no pode ser vencida apenas convertendo a conscincia
e a vontade dos participantes de relaes de dominao e submisso. Isso ilusrio,
pois o seu poder est profundamente inscrito no mais ntimo dos corpos sob a forma
de predisposies (aptides, inclinaes).
39
40
Mas essa violncia pode tambm se voltar contra o prprio homem. Sua
virilidade, que entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas
tambm como aptido ao combate e ao exerccio da violncia (sobretudo em caso de
vingana)
41
sobre ele presses e cobranas para que ele sempre aja como homem viril.
42
39
relaes scio-culturais entre homens e mulheres e a prpria construo
de sua identidade social tm a ver com as imagens ou os modelos de
Deus, e reciprocamente. O conceito Deus, particularmente na nossa
tradio crist, foi forjado a partir da compreenso dos papis sociais ,
das filosofias que a marcaram, de uma certa compreenso da justia e da
transcendncia, explicitada por diferentes grupos. 43
45
44
. O ecofeminismo,
43
44
9.
45
46
40
8.5 Elisabeth Schssler Fiorenza.
47
48
47
41
religio, sexo, que se encontram interligados e criam diversidade de pessoas e
de poderes.
2. Suspeita. Questionar: Quem no est falando nesse texto? Por qu? Quais
so as relaes de poder percebidas? Como o texto est sendo usado na
tradio? Como o texto est ainda funcionando? Momento da desconstruo.
3. Avaliao: juzo do texto.
4. Reconstruo: o texto oferece caminhos para reconstruir em direo
igualdade?
5. Imaginao criativa: objetivo inscrever a mulher na Bblia.
6. Libertao transformadora: reescreve a histria a partir das vozes silenciadas
do texto.
Schssler Fiorenza prope o magistrio alternativo na Igreja, onde todas as
pessoas tm voz: o discipulado de iguais. Es sa viso est relacionada com as
parbolas do Reino de Deus nos Evangelhos sinticos e procura nas diferenas das
pessoas a construo da igualdade.
49
50
49
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e histria. Trad. Federico Carotti. 2. ed.
So Paulo: Companhia das Letras, 1989.
50
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas annimos da histria: micro-histria. Rio de Janeiro:
Campus, 2002.
51
Id. p. 105.
42
Lucia Guimares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, destaca que a microhistria mal compreendida, ora confundida com a histria cultural, ora com a
histria das mentalidades e com a histria do cotidiano. Isso porque
A micro-histria opera com escala de observao reduzida, explorao
exaustiva de fontes, descrio etnogrfica e preocupao com a narrativa
literria. Neste sentido, contempla, sobretudo, temticas ligadas ao
cotidiano de comunidades especficas referidas geogrfica ou
sociologicamente s situaes-limites e s biografias ligadas
reconstituio de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos,
geralmente vultos annimos, figuras que por certo passariam
despercebidas na multido. 52
53
9.
Metodologia.
55
debate sobre as origens do trabalho batista no Brasil no foi ainda analisado a partir
da mediao de gnero como instrumento hermenutico. Essa anlise, proposta desta
52
43
pesquisa, pode oferecer outra interpretao quanto ao resultado final do referido
debate, deslocando o conflito da rea da historiografia para aquela pertencente s
questes de gnero.
A primeira etapa da pesquisa compreendeu o levantamento e a seleo de
fatos histricos documentados a partir de fontes primrias (anais da Conveno
Brasileira) e secundrias (edies de O Jornal Batista e do Batista Paulistano), para a
compreenso do problema. A preocupao inicial foi a de demonstrar que o debate
era tambm objeto de pesquisa pertencente rea das questes de gnero, vez que
esse conflito e o registro de suas etapas nos documentos histricos, jamais foram
analisados atravs da perspectiva de gnero entre os batistas. Tais documentos, ao
serem examinados a partir dessa tica, revela ram o material necessrio para esta
pesquisa, denunciando lacuna no campo do conhecimento historiogrfico batista.
Desse modo, o gnero, enquanto categoria de anlise social, se constituiu
instrumento importante para oferecer uma outra leitura do debate, com implicaes
polticas significativas.
No trabalho para se provar que o debate era objeto de pesquisa legtimo da
rea de gnero, descreveu-se o contexto social, cultural, poltico e religioso, para
destacar a influncia da dominao patriarcal nas principais instituies sociais dos
anos 1960-1980. Desse modo, a pesquisa procurou relaciona r as etapas do debate,
bem como as mudanas e conflitos nas relaes sociais de gnero e poder observados
entre os batistas, com as influncias dos principais movimentos sociais daqueles
anos, dentre eles, principalmente, os movimentos de mulheres e feminista no Brasil.
A suposio central que se buscava provar era que havia conexo ideolgica entre
esses movimentos e o trabalho perseverante de Betty de Oliveira. Essa conexo foi
deduzida, porque a protagonista do debate no admite que tenha sofrido influncias
dos movimentos feministas em seu trabalho junto Conveno Brasileira.
56
56
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18
dez. 2007. 16h30m.
44
A descrio do contexto social, cultural, poltico e religioso dos anos 19601980 fez parte do planejamento da pesquisa, como forma de pr prova as hipteses
levantadas sobre a trajetria histrica do debate. O levantamento de dados sobre as
mudanas e conflitos nas relaes de gnero e poder observados na sociedade e nas
trs igrejas crists histricas contemporneas dos batistas (Igreja Metodista no Brasil,
Igreja Presbiteriana do Brasil e Igreja Catlica) favoreceu a interpretao de que os
movimentos de mulheres e feministas estavam influenciando significativamente a
ordem social dominada pelo sistema patriarcal.
O debate sobre o marco inicial batista brasileiro foi um dos eventos importantes na
histria da Conveno Brasileira nos anos 1960-1980 que indiretamente fez parte de
um movimento de emancipao da mulher batista brasileira. Esse movimento,
inspirado e motivado pelo contexto sociopoltico da poca, ganhou fora de forma
lenta e progressiva na denominao e culminou na ordenao de mulheres ao
ministrio batista a partir dos anos 1990.
b) Mtodo comparativo:
Considerando que o estudo das semelhanas e diferenas entre diversos
tipos de grupos, sociedades ou povos contribui para uma melhor
compreenso do comportamento humano, este mtodo realiza
comparaes, com a finalidade de verificar similitudes e explicar
divergncias. 58
57
58
45
dinmica do funcionamento das estruturas eclesiais a ponto de mudar suas trajetrias
histricas.
9.3 Tcnicas.
59
59
46
As perguntas do tipo abertas: tambm chamadas livres ou no limitadas, so as que
permitem ao informante responder livremente, usando linguagem prpria, e emitir
opinies.
62
63
Por
isso, toda vez que Betty de Oliveira for citada como entrevistada nesta pesquisa, o
que foi registrado como sua palavra interpretao pessoal do pesquisador.
62
47
Captulo 2 A arena do debate: a Conveno Batista Brasileira no segundo
captulo foi preciso, a ttulo de esclarecimento, oferecer uma breve histria da origem
dos batistas, da formao de seu pensamento e da sua chegada ao Brasil, para situar o
leitor dentro do tema pesquisado. Depois, a pesquisa procurou descrever como eram
re-produzidos os discursos e prticas de gnero, principalmente atravs do O Jornal
Batista, o rgo oficial de informao dos batistas, e como eles legitimavam a
exclusiva dominao masculina nos lugares de poder da estrutura organizacional da
Conveno Brasileira.
Captulo 3 O contexto sociopoltico do debate: possveis influncias do
feminismo brasileiro nas relaes sociais de gnero entre os batistas dos anos 19601980 a descrio do contexto maior, em seus aspectos sociais e polticos e que
envolveu as etapas histricas do debate, teve como propsito relacionar as
influncias dos movimentos libertrios com as mudanas e conflitos nas relaes
sociais de gnero e poder observados na Conveno Brasileira daqueles anos. Esse
captulo descreveu a trajetria dos movimentos de mulheres e a emergncia da
segunda onda do feminismo no Brasil em poca de graves crises sociopolticas no
pas. Essa descrio intencional do contexto sociopoltico proporcionou o pano de
fundo necessrio para fundamentar argumentos que podem favorecer a afirmao de
que o debate entre Reis Pereira e Betty de Oliveira foi influenciado, de forma direta
ou no, pela ideologia daqueles movimentos sociais.
Captulo 4 O contexto religioso: as possveis influncias dos movimentos
feministas nas principais igrejas crists histricas contemporneas dos batistas dos
anos 1960-1980 nesse captulo foram selecionadas, para comparaes, trs igrejas
representativas do cristianismo histrico: a Igreja Metodista no Brasil, a Igreja
Presbiteriana do Brasil e a Igreja Catlica. Os motivos para essa seleo foram
expostos naquele captulo. Aps uma breve apresentao da origem histrica de cada
igreja e de sua insero no Brasil, a pesquisa perguntou pelo modo como os
movimentos feministas dos anos 1960-1980 influenciaram as relaes de gnero no
interior da vida eclesistica de cada denominao selecionada e como essas
instituies reagiram a essas influncias. A inteno do captulo foi a de relacionar as
mudanas e/ou permanncias que ocorreram no meio daquelas denominaes, que
denunciaram influncias feministas externas, com as etapas do debate sobre o marco
inicial batista. A anlise, a partir da categoria de gnero, da descrio desse contexto
especfico que tratou de levantar dados sobre possveis transformaes nas relaes
48
de gnero e poder em igrejas contemporneas dos batistas dos anos 1960-1980
permite demonstrar, segundo Matos,
Que o comportamento ou os valores que so aceitos em uma sociedade
num certo momento histrico podem ser rejeitados em outras formas de
organizao social ou em outros perodos. 64
64
MATOS, Maria Izilda S. de. Outras histrias: as mulheres e estudos dos gneros percursos e
possibilidades. In: SAMARA, Eni de Mesquita. SOIHET, Rachel. MATOS, Maria Izilda S. Gnero
em debate: trajetria e perspectivas na historiografia contempornea. So Paulo: EDUC, 1997, p. 104.
49
CAPTULO I
O DEBATE SOBRE A HISTRIA DAS ORIGENS DO
TRABALHO BATISTA NO BRASIL
O mundo vive de ganhadores e perdedores, e a
histria privilegia os primeiros.
Renate Gierus.
65
1. Introduo.
65
GIERUS, Renate. Historiografia feminista do cristianismo. In: DREHER, Martin N. (Org.). 500
anos de Brasil e Igreja na Amrica Meridional. Porto Alegre: EST/CEHILA, 2002, p. 513.
50
2. A Apresentao do Debate.
67
cerne do debate sobre a histria das origens do trabalho batista no Brasil. Esse debate
impressiona, no pela qualidade dos argumentos defendidos pelos participantes, mas
principalmente pelo tempo de durao: quase 20 anos (1966-1985). Isso tambm
explica por que a polmica sobre o acerto histrico do marco inicial do trabalho
batista conseguiu ocupar um lugar de destaque no contexto da Conveno Batista
Brasileira (CBB) dos anos 1960-1980. E uma conseqncia importante do debate foi
o de provocar, ao longo daqueles anos, uma significativa diviso entre as fileiras da
Conveno Batista Brasileira, conforme observaram alguns pesquisadores batistas
contemporneos.
Por exemplo, o Pastor Damy Ferreira, autor e organizador da obra sobre o
Centenrio da Conveno Batista do Estado de So Paulo em 2004, reconheceu:
O assunto do marco inicial da nossa histria Batista, tanto no Brasil,
como em So Paulo, bastante polmico e h dois grupos distintos:
um que defende o marco inicial com a organizao da Igreja Batista em
Santa Brbara DOeste, em 1871; outro que defende o marco inicial a
partir da organizao da Primeira Igreja Batista do Brasil, em Salvador,
em 1882. 68 [grifo meu].
69
66
PEREIRA, J. dos Reis. A data do centenrio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 10 mar. 1968, p. 3.
PEREIRA recebeu esse ttulo quando foi publicada a 1a. edio do seu livro sobre a histria dos
batistas brasileiros em 1982. Cf. SANTOS, Marcelo. O marco inicial batista: histria e religio na
Amrica Latina a partir de Michel de Certeau. So Paulo: Jorge Pinheiro, 2003. (Coleo Igreja sem
Fronteiras), p. 74, 122, nota 156.
68
FERREIRA, Damy (autor-organizador). Centenrio da Conveno Batista do Estado de So Paulo.
So Paulo: CBESP, 2004, p. 17.
69
Id. p. 25-26.
67
51
clara a existncia de dois grupos que, partindo de pressupostos
distintos procuram sustentar suas posies ideolgicas e ao longo do
tempo tm procurado conquistar mais espao para suas afirmaes
histricas. 70 [grifo meu].
71
52
controlam o discurso oficial.
73
73
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 99-100.
53
Em segundo lugar, faz-se necessrio conhecer os antecedentes histricos da
questo sobre o marco inicial do trabalho batista brasileiro. Para isso, sero utilizadas
principalmente as obras de Betty Antunes de Oliveira,
Asa Routh Crabtree (1889-1965),
Zaqueu Moreira de Oliveira.
76
74
75
77
78
80
mas o primeiro
missionrio s seria enviado dez anos mais tarde, quando as condies para a obra
missionria no pas foram consideradas mais propcias.
O missionrio pioneiro para o Brasil foi Thomas Jefferson Bowen (18141875), que havia trabalhado na Nigria, frica, entre o povo ioruba. Bowen tinha
retornado aos Estados Unidos em 1856, por conta de um colapso nervoso, causado
pela malria, sofrido no campo missionrio africano, mas resistia em permanecer de
licena mdica. Assim que houve a oportunidade para ser nomeado para o Brasil, o
que se deu em 1859, Bowen tomou sua esposa, Lurenna Henrietta Bowen (18321907), e sua filha Lurenna Lula (1858-1902) e partiu para o novo campo
missionrio, em 30 de Maro de 1860. Desembarcou no Rio de Janeiro em 21 de
Maio de 1860, onde fundou a Misso no Brasil. Sua maior esperana era alcanar os
74
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco: uma contribuio para a histria dos
primrdios do trabalho batista no Brasil. Rio de Janeiro: edio da autora, 1985.
75
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982). Rio de Janeiro: JUERP, 1982.
76
CRABTREE, A. R. Baptists in Brazil. Rio de Janeiro: The Baptist Publishing House, 1953.
77
MESQUITA, Antonio N. Histria dos batistas do Brasil de 1907 at 1935. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora Batista, 1940.
78
OLIVEIRA, Zaqueu Moreira. Perseguidos, mas no desamparados: 90 anos de perseguio
religiosa contra os batistas brasileiros (1880-1970). Rio de Janeiro: JUERP, 1999.
79
PEREIRA, J. Reis. Documentos para a histria batista do Brasil. Revista Teolgica: Seminrio
Teolgico Batista do Sul do Brasil. Rio de Janeiro, no. 8, p. 55, dez. 1989.
80
OLIVEIRA, Zaqueu Moreira. Op.cit. p. 47.
54
negros procedentes da frica para o Evangelho. Por isso, procurou trabalhar com os
escravos africanos, j que dominava a lngua ioruba (Bowen havia publicado um
dicionrio e gramtica dessa lngua em 1858 nos Estados Unidos). Esse investimento
foi mal interpretado pelas autoridades brasileiras, porque suspeitaram que Bowen
estivesse organizando uma revolta de escravos. No h registros, mas suspeita-se que
Bowen tenha sido preso por conta de suas atividades evangelsticas.
81
Alm de
83
81
55
estimado entre 5 e 8 mil imigrantes),
84
Oliveira registrou:
Entre todos esses emigrados podiam ser encontrados batistas, metodistas,
presbiterianos, episcopais, catlicos e os incrus. Dos trs primeiros
mencionados era a maioria. Entre eles havia os procedentes dos Estados
Confederados, Sul dos EUA, mas havia, tambm, em pequena minoria,
emigrados do Norte. No grupo existiam mdicos, dentistas, militares,
fazendeiros, simples agricultores, operrios, trabalhadores, professores,
Ministros do Evangelho, um jardineiro surdo-mudo, os trapacentos e at
aventureiros buscando algum Eldorado! Nem todos eram norteamericanos, ainda que tidos como tais. Podemos imaginar que havia
ricos, menos ricos e pobres nesse grupo; desiludidos do sistema poltico
vigente naquele Pas; os frustrados e aqueles que haviam perdido os seus
haveres e propriedades pelo fogo ou pela rapina; os que fugiram com
receio de maus tratos ou priso pelos do Norte; e tambm os
escravagistas. 85
86
87
88
Em 12 de
84
89
MACHADO, Jos Nemsio. A contribuio batista para a educao brasileira. Piracicaba, SP,
1993. Dissertao de Mestrado. UNIMEP. p. 50.
85
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco. p. 10.
86
Ibid. p. 33.
87
Ibid. p. 226, 230.
88
Ibid. p. 68, 100, 230.
89
PEREIRA, J. Reis. Documentos para a histria batista do Brasil. Revista Teolgica. p. 55.
56
Em 2 de Novembro de 1879, foi organizada a Igreja Batista da Estao, ainda
em Santa Brbara, atendendo parte do grupo cerca de doze pessoas que habitava
em regio distante da primeira igreja.
90
91
e sucedeu a
57
entanto, foi Anne que, poca, ainda era noiva de William. Ela tomou a deciso de
trabalhar no Brasil, antes de conhecer a opinio de seu noivo. Em carta, datada de 11
de Junho de 1880, dirigida a William, Anne escreveu:
Imagine s! O General Hawthorne quer que eu v j para o Brasil. Ele
declara que o povo bom e agradvel, o governo favorvel ao
cristianismo, e, ainda, que o clima excelente!
[...] Dizem-me que posso ir sozinha, mas que seria muito melhor se eu
estivesse casada.
[...] Sr. Bagby, de maneira alguma quero interferir em seus planos. Estou
disposta a manter nossa deciso [casamento]; estou pronta a ir sozinha
e esperar pelo senhor, ou irmos juntos. Afinal, decida como o senhor
achar melhor. 92 [grifo meu].
93
HARRISON, Helen Bagby. Os Bagby do Brasil: uma contribuio para o estudo dos primrdios
batistas em terras brasileiras. Rio de Janeiro: JUERP, 1987. (Srie Os Batistas), p. 16.
93
OLIVEIRA, Zaqueu Moreira. Op. cit. p. 50.
58
aprendiam a lngua portuguesa, graas ao apoio dos presbiterianos, que j
administravam um colgio em Campinas, SP.
Outro casal de missionrios norte-americanos se uniu aos Bagby: Zachary
Clay Taylor (1851-1919) e Kate Stevens Crawford Taylor (1862-1892). Eles foram
enviados tambm pela Junta de Richmond e chegaram ao Brasil em 13 de Fevereiro
de 1882. Juntos e por motivos no bem esclarecidos, Bagby e Taylor deixaram Santa
Brbara e seguiram para Minas Gerais, onde estudaram o mapa do Brasil e
escolheram a cidade de Salvador, na Bahia, o melhor lugar para deitarem os
alicerces do trabalho.
94
sculo XIX uma regio muito prspera, como testemunhou um viajante ingls
chamado James Prior em 1813:
So Salvador tem internamente os meios de se tornar a mais rica e
poderosa regio do Brasil; sua localizao central, seus produtos,
populao, um extenso intercmbio com outras partes da Amrica, alm
da Europa e frica, um bom porto e meios ilimitados de aumentar todas
essas vantagens com um mnimo de esforo de um governo sbio e
liberal, apontam-na como a verdadeira capital do pas. 95
A regio, no entanto, sofreu sria decadncia econmica por causa dos conflitos
gerados pela guerra da Independncia em 1822 e tambm da concorrncia
internacional que provocou crises nos preos da cana-de-acar, do algodo e do
fumo, os principais produtos de exportao daquela Provncia. Isso acrescentou
srios problemas sociais em regio j conturbada por crises de outras naturezas
provocadas pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador.
96
No obstante o quadro negativo que tinham pela frente, Bagby, Taylor e o expadre Albuquerque resolveram viajar para a ento Provncia da Bahia, onde
chegaram no ms de Agosto de 1882. Alugaram uma casa com um grande salo para
os cultos. O propsito dessa obra foi o de evangelizar os brasileiros. Bagby j
pregava na lngua nativa e ainda contava com o auxlio de Albuquerque. A igreja foi
organizada em 15 de Outubro de 1882, com cinco membros: os Bagby, os Taylor e
Albuquerque (a esposa de Albuquerque, Senhorinha, ainda no havia se decidido
pela f batista). Para concluir formalmente a organizao daquela Igreja, os Bagby e
94
59
os Taylor pediram suas cartas de transferncia
97
98
), a
esposa de Albuquerque, Senhorinha e Mary ORorke, talvez a ama dos filhos dos
missionrios norte-americanos.
Pouco tempo depois, Bagby, Taylor e Albuquerque concordaram que
precisavam expandir o trabalho batista pelo Brasil. Assim, em 1884, Bagby resolveu
seguir para o sul, para o Rio de Janeiro onde organizou, com quatro membros, a
Primeira Igreja Batista do Rio, a Segunda Igreja Batista Brasileira,
99
e, de l,
entendeu que podia pastorear tambm Santa Brbara, que j contava apenas com uma
igreja (a Igreja de Santa Brbara desapareceu em 1910). A primeira converso no
Rio de Janeiro tambm foi de uma mulher, graas, mais uma vez, aos esforos de
Anne: Castorina Adlia de Castro, empregada dos Bagby.
Albuquerque tambm saiu de Salvador, mas em direo a Alagoas, onde
fundou a Primeira Igreja Batista de Macei, em 17 de Maio de 1885, com dez
membros. A Igreja de Salvador, ento com 25 membros, ficou sob a liderana de
Taylor. Mas Taylor ainda apoiou a organizao da Primeira Igreja Batista do Recife,
com seis membros fundadores, em 4 de Abril de 1886. A esposa de Taylor, Kate,
muito atuante no ministrio em Salvador, foi vtima de cncer e faleceu ainda jovem.
Foi sepultada na Bahia em 1892.
O trabalho se desenvolveu rapidamente. Vinte e cinco anos depois da
organizao da Primeira Igreja Batista de Salvador, em 1907, os batistas contavam
com 83 igrejas, 4.201 membros e 50 pastores e missionrios.
100
97
Carta de Transferncia: entre os batistas essa a forma burocrtica que permite oficialmente a
transferncia de seus membros para igrejas batistas de mesma f e ordem.
98
HARRISON, Helen Bagby. Op. cit. p. 35.
99
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), p. 27.
100
AMARAL, thon vila. BARBOSA, Celso Alosio Santos. O livro de ouro da CBB: epopia de
f, lutas e vitrias. Rio de Janeiro: JUERP, 2007, p. 42.
60
4. O Incio da Tradio da Posio Oficial 1882, Salvador, BA como o Marco
Inicial Batista.
102
101
(1868-1945),
Com esses dizeres, e de forma oficial, j que contataram a mais alta autoridade do
Brasil, Bagby e Taylor deram incio tradio da posio 1882, Salvador, BA.
Eles desconsideraram, ento, os primeiros esforos missionrios de seus
compatriotas, Bowen em 1860-1861 e Quillin, desde 1879. Bagby tambm no levou
em conta o fato de que ele e sua esposa, Anne, haviam sido nomeados missionrios
adicionais [grifo meu] e, portanto, no poderiam ter sido os primeiros
evangelizadores no Brasil. Desconsideraram tambm as duas igrejas organizadas em
Santa Brbara, SP. Desse modo, o trabalho na Bahia foi considerado, por Bagby e
Taylor, o pioneiro na evangelizao do Brasil.
Em 1921, surgiu outro importante reforo para a tradio da posio 1882,
Salvador, BA: o missionrio Salomo Luiz Ginsburg, um judeu polons radicado no
101
Arthur B. Deter foi missionrio nomeado pela Junta de Richmond e veio ao Brasil em 1901.
Trabalhou frente da Casa Publicadora e do O Jornal Batista. Foi o primeiro capelo militar batista
do Brasil. PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982). p. 103.
102
Salomo L. Ginsburg veio ao Brasil em 1890. Era da Igreja Congregacional, mas depois de
conhecer o trabalho dos batistas, uniu-se a eles atravs do batismo. Foi nomeado como missionrio no
Brasil pela Junta de Richmond em 1892. PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil
(1882-1982). p. 39-42.
103
MESQUITA, Antonio N. Op. cit. p. 22.
61
Brasil, famoso por ter pregado o Evangelho ao cangaceiro Antonio Silvino,
tambm considerado o pai da Conveno Batista Brasileira
Cristo,
106
105
104
e o pai do Cantor
Ginsburg foi mais claro que seus colegas Bagby e Taylor: a igreja batista organizada
em 1882, na cidade de Salvador, BA, foi, para ele, a primeira do Brasil. E dentre as
razes que encontrou para justificar sua posio, Ginsburg destacou o fato de aquela
igreja ter consagrado o primeiro ministro batista ganho. Com isso, ele no levou
em conta a histria recente do ex-padre Antonio Teixeira de Albuquerque.
Anos mais tarde, provando a fora da posio tomada pelos missionrios
citados, um historiador e telogo muito reconhecido pelos batistas, o Dr. Antonio
Neves de Mesquita, trabalhou na mesma linha de Ginsburg ao escrever, em 1940, a
sua Histria dos Batistas:
O ano de 1907 abre um novo ciclo nas atividades batistas no Brasil. Os
primeiros vinte e cinco anos de atividades tinha [sic] consistido em
espalhar a boa semente, fundar campos missionrios, desbravar a selva,
para depois se organizar todo este trabalho em 1907.
[...] As bodas de Prata dos batistas seriam celebradas com o
lanamento de um programa empolgante.
[...] O lugar da reunio no sofreu muito debate, porque logicamente a
Bahia estava indicada para tal. Centro do trabalho batista no pas,
centro da vida clerical tambm, convinha levar ali a palavra viva dos
crentes... 108 [grifos meus].
104
62
Estado da Bahia como o centro do trabalho batista no pas, vez que de l partiram
outras misses para evangelizar o pas (o desprezado trabalho batista em Santa
Brbara, do qual partiram Bagby, Taylor e Albuquerque, fundadores da igreja de
Salvador, estava em declnio j h algum tempo e foi encerrado em 1910).
109
Crabtree colocou de forma clara a razo por que a Igreja de Salvador foi tomada
como a primeira igreja batista do Brasil: o propsito de alcanar exclusivamente os
brasileiros, evangelizando-os na prpria lngua nativa. Assim, para ele, a Igreja de
Santa Brbara no atendia a esse quesito. Esse foi o discurso de todos aqueles que
defenderam a posio 1882, Salvador, BA nos anos 1960-1980. Dentre eles, Reis
Pereira era o mais conhecido e afirmava:
Essa Igreja de Santa Brbara a primeira igreja batista estabelecida em
solo brasileiro. Era, entretanto, uma igreja de lngua inglesa, fundada
para servir aos colonos, e que nunca deixou de ser igreja de lngua
inglesa. [...] os crentes de Santa Brbara no se interessaram em
aprender o portugus, para pregar a mensagem evanglica aos
brasileiros. No era uma igreja missionria. 111 [grifo meu].
Observa-se que o critrio adotado por Crabtree e pelos demais lderes batistas para
eleger a igreja organizada em Salvador, como a primeira igreja batista do Brasil, foi
elaborado a partir de uma perspectiva ideolgica de misso.
112
Assim, as duas
63
fato de que os cultos naquelas igrejas de Santa Brbara no eram realizados apenas
na lngua inglesa. No curto espao de tempo em que Bagby esteve entre os colonos
em Santa Brbara (algo entre Abril de 1881 a Agosto de 1882), houve vrias
oportunidades para esse missionrio pregar o Evangelho na lngua portuguesa para os
vizinhos brasileiros, conforme atestam suas cartas 113 enviadas Junta de Richmond.
luz desses dados, difcil desconsiderar o pioneirismo do trabalho batista em
Santa Brbara entre brasileiros, como fizeram os lderes da Conveno Brasileira e
no suspeitar que essa obra em solo paulista no seja o marco inicial dos batistas no
Brasil.
De qualquer modo, a tradio da posio 1882, Salvador, BA estava,
portanto, estabelecida. Assim, ao considerar o peso da palavra de homens como
William Buck Bagby, Zachary Clay Taylor, Salomo Luiz Ginsburg, Antonio Neves
de Mesquita, Asa Routh Crabtree, o entendimento geral dos batistas s poderia ser o
de considerar Salvador, BA, como o lugar do marco inicial do trabalho batista no
Brasil. Afinal, aqueles homens eram lderes reconhecidos, pastores e missionrios
ungidos por Deus, ou seja, eram detentores do poder sagrado de produzir o saber
religioso e de estabelecer as verdades. Tamanho foi esse poder que, de 1907, quando
da realizao da primeira assemblia da Conveno Brasileira em Salvador, at o ano
de 1966, no houve qualquer questionamento sobre quando e onde teria se iniciado o
trabalho batista no Brasil. Havia, portanto, uma concordncia geral de que o trabalho
de Salvador representava o marco oficial do incio do trabalho batista no Brasil.
Depois dessa exposio dos antecedentes histricos da questo do marco
inicial batista, faz-se necessrio, antes de estudar as etapas do debate, conhecer quem
foi o Pastor Jos dos Reis Pereira, o principal defensor da posio oficial durante os
anos 1960-1980.
113
BAGBY, William Buck. Cartas para a Junta de Richmond. Apud OLIVEIRA, Betty Antunes de.
Op. cit. p. 280-283.
64
5. O Principal Defensor da Posio Oficial 1882, Salvador, BA: Pastor Jos
dos Reis Pereira.
Jos dos Reis da Silva Pereira nasceu em 4 de Fevereiro de 1916, em Pira, Rio de
Janeiro. Converteu-se f batista aos 14 anos de idade, tendo sido batizado pelo
Pastor Tec Bagby, na Igreja Batista de Vila Mariana, SP. Aos 16 anos, alistou-se no
Exrcito Brasileiro para participar da Revoluo de 1932.
Com 21 anos, deixou o curso de Letras da Faculdade de Filosofia em So
Paulo, para ingressar no Seminrio Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro.
Formou-se Bacharel em Teologia em 1940, tendo sido o orador de sua turma. Logo
depois de sua formatura, Reis Pereira foi convidado pelo prprio Seminrio para
assumir a docncia daquela instituio de ensino teolgico. Durante 37 anos,
lecionou vrias matrias, mas a sua principal disciplina foi Histria Eclesistica, da
qual se tornou especialista. Foi professor tambm do Instituto Batista de Educao
Religiosa (voltado para mulheres). Posteriormente graduou-se em Filosofia, pela
Universidade Federal da Guanabara e em Jornalismo e Histria pela Universidade do
Brasil. Foi consagrado ao ministrio pastoral em 29 de Dezembro de 1941, na Igreja
Batista da Rocha, na Guanabara, de onde s saiu por ocasio de seu falecimento, em
15 de Outubro de 1991, ironicamente no Dia Batista do Brasil, data instituda pelo
prprio Reis Pereira. Casou-se com Darcilia Pereira, em 2 de Abril de 1943.
Foi redator de A Voz da Mocidade, um jornal da juventude batista paulistana
e depois, em 1 de Maro de 1964, tomou posse como diretor e redator de O Jornal
Batista, o rgo representativo da Denominao e da Conveno Batista Brasileira,
65
onde trabalhou 24 anos.
114
116
114
GONALVES, Almir. Uma vida inteira consagrada a Deus e dedicada denominao. O Jornal
Batista. Rio de Janeiro, 4 jun. 1967, p. 1.
115
Id. p. 1.
116
AZEVEDO, Israel Belo de. Op. cit. p. 201.
66
Reis Pereira,
117
Observa-se, desse modo, ao fim desta breve biografia de Reis Pereira, que o mais
destacado defensor da posio oficial sobre o marco inicial do trabalho batista no
Brasil era figura extremamente respeitada e, portanto, possua uma palavra de peso
significativo no meio batista.
Com essas informaes, possvel prosseguir dando ateno, agora,
atuao de Re is Pereira na defesa da posio oficial da Conveno Brasileira sobre o
marco inicial do trabalho batista no Brasil, durantes os anos 1960 a 1980. Seu
primeiro ato se deu no ano de 1960, ano histrico para os batistas da Conveno
Brasileira.
117
HALLOCK, Edgar F. Pastor Reis Pereira foi homenageado no Seminrio do Sul. O Jornal Batista.
Rio de Janeiro, 30 abr. 1978, p. 1.
118
DIMRZIO, Nilson. Nosso at breve a Reis Pereira. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 17 nov.
1991, p. 3.
119
PEREIRA, Clvis M. Unidade III A histria dos batistas no Brasil (Atualizao 1982 a 2001).
In: PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-2001). Reedio atualizada e
ampliada. Rio de Janeiro: JUERP, 2001, p. 445.
67
6. A Posio Oficial 1882, Salvador, BA Relembrada e Estabelecida.
120
121
Nesse clima de euforia, foi lanada uma edio especial de O Jornal Batista,
em junho de 1960, cuja tiragem foi distribuda a todos os congressistas. Naquela
edio, a Junta Executiva da Conveno Brasileira, da qual fazia parte o Pastor Reis
Pereira, deu as palavras oficiais de boas-vindas aos batistas:
Os batistas de todo o Brasil sadam os seus amados irmos de todo o
mundo que, nesta hora, nos visitam, e lhes apresentam as mais cordiais
boas -vindas. 122
Mais adiante, no mesmo jornal, Reis Pereira aproveitou a oportunidade para lanar,
internacionalmente, o ano do centenrio do trabalho batista no Brasil:
Os batistas brasileiros recebem de braos abertos os batistas de todo o
mundo que vm assistir ao Dcimo Congresso da Aliana Batista
Mundial. uma honra excepcional essa que lhes dada de hospedarem
seus irmos de outras terras para essa reunio de congraamento e essa
afirmao de f nesta hora to conturbada e apreensiva da histria do
mundo.
O trabalho batista no Brasil tem sido objeto do favor de Deus de forma
realmente maravilhosa e gostaramos que nossos irmos visitantes se
120
68
unissem a ns em preces de gratido ao Senhor pelo que nos tem dado.
Ser difcil encontrar outro lugar no mundo em que a obra batista tenha
crescido tanto em to pouco tempo.
Foi em 1881 que aqui chegaram os primeiros missionrios batistas.
Hoje, menos de 80 anos passados, temos quase 200.000 membros em
nossas 1.500 igrejas. Assim, quanto ao nmero de batistas, o Brasil
ocupa o 6. lugar no mundo, s tendo mais batistas que o Brasil os
Estados Unidos, a Rssia, a ndia, a Inglaterra e a Birmnia. No
progresso em que caminhamos, quando comemorarmos o primeiro
centenrio da obra batista no Brasil, daqui a 22 anos, haver mais de
300.000 membros. 123 [grifos meus].
124
PEREIRA, J. Reis. A Junta Executiva sada os congressistas. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26
jun. 1960, p. 6.
124
SANTOS, Marcelo. Op. cit. p. 57.
69
pncaros da nossa obra efetuada pela graa de Deus e sob a Sua direo e
bno. Vamos aqui lembrar aqueles dias memorveis de vitrias
alcanadas. [...]
[A] Fundao da 1. Igreja Batista no Brasil, em 15 de outubro de
1882, em Salvador , com 5 membros: W. B. Bagby e Senhora, Zacharias
C. Taylor e Senhora e o padre A. T. de Albuquerque. Que sementezinha
de mostarda, que j rendeu 1.500 igrejas, segundo as ltimas estatsticas,
e 180.000 membros! 125 [grifo meu].
A obra de Costa revelou estar de acordo com a posio oficial 1882, Salvador, BA.
Seu livro foi publicado pela editora oficial da Conveno Brasileira, a ento Casa
Publicadora Batista (mais tarde conhecida como Junta de Educao Religiosa e
Publicaes JUERP) e isso tambm comunica significado importante para a tese
oficial. No havia, portanto, qualquer objeo contra 1882, Salvador, BA, nem
outra posio sobre a data do marco inicial do trabalho batista no Brasil.
Nesse relativo ambiente de paz, Reis Pereira provavelmente se sentiu
vontade para retomar o tema, alguns anos mais tarde, agora como editor de O Jornal
Batista e escreveu na edio de 18 de Outubro de 1964: No ser clculo
demasiadamente otimista falar em cinco mil igrejas e mais de um milho de crentes
[batistas] em 1982 quando comemorarmos o prime iro centenrio.
125
127
[grifo
70
meu]. Na mesma edio, Reis Pereira aproveitou a oportunidade para lanar O Dia
Batista do Brasil: 15 de Outubro de 1882. No ano seguinte, Reis Pereira reforou a
posio oficial e a sua proposta do Dia Batista do Brasil ao escrever o artigo No
dia 15 de Outubro os batistas brasileiros fazem 83 anos.
128
129
sobre
O Dia Batista do Brasil, como vinha fazendo desde o seu lanamento em 1964.
Possivelmente, Reis Pereira confiava que a posio 1882, Salvador, BA era
assunto inquestionvel na mente dos batistas brasileiros, j que essa tese oficial
nunca havia sido contestada, pelo menos, publicamente.
Mas, no ms seguinte, no prprio O Jornal Batista, foi publicado o artigo que
desafiou a posio oficial da Conveno Brasileira e ameaou uma hegemo nia de
quase 60 anos da tradio 1882, Salvador, BA: tratava-se de uma nova
interpretao sobre quando e onde se deu o marco inicial do trabalho batista no
Brasil. E o desafio partiu da voz paradoxal de uma mulher, esposa de pastor batista, a
jornalista Betty Antunes de Oliveira. Voz paradoxal, no sentido que Scott conceitua
paradoxo:
Emprega-se o vocbulo paradoxo para significar uma opinio que
desafia o que dominantemente ortodoxo, que contrria tradio
(literalmente: transgride a dxa). O paradoxo marca sua posio de
enfrentamento tradio, acentuando as diferenas entre ambos. 130
PEREIRA, J. dos Reis. No dia 15 de Outubro os batistas brasileiros fazem 83 anos. O Jornal
Batista. Rio de Janeiro, 10 out. 1965, p. 1.
129
PEREIRA, J. dos Reis. Os batistas brasileiros fazem 84 anos. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 16
out. 1966, p. 1.
130
SCOTT, Joan W. A cidad paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Trad. lvio
A. Funck. Florianpolis: Ed. Mulheres, 2002, p. 28.
71
analisado mais adiante. Antes, porm, preciso conhecer um pouco da histria de
Betty Antunes de Oliveira.
131
131
NASSAU, Rolando. rgos, organeiros e organistas III (em homenagem a Nica de Miranda
Soren e Betty Antunes de Oliveira). O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3 ago. 1980, p. 2.
72
Misses CIEM). Tambm tem formao em Jornalismo (1962), pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, tendo feito parte da primeira turma do Curso. Em
entrevista
132
homens e apenas duas mulheres, sendo que sua colega j era bem idosa e que havia
abandonado o curso antes de sua concluso. Casou-se no Rio de Janeiro em 14 de
Janeiro de 1938, com Albrico Antunes de Oliveira, pastor batista. Depois do
casamento mudou-se para Manaus, AM, onde viveu cerca de 50 anos, auxiliando o
ministrio de seu esposo (algum tempo depois, o Pastor Albrico elegeu-se deputado
federal pelo Estado do Amazonas). Para fazer os seus cursos, Betty fazia as longas
viagens de Manaus ao Rio de Janeiro, levando consigo os seus filhos pequenos,
concluindo-os com muito sacrifcio. Para ajudar no oramento familiar, Betty prestou
concurso para fazer parte do corpo docente da Escola Profissional de Manaus, tendo
sido, conforme informou,
133
daquela instituio.
Betty de Oliveira membro da Academia Evanglica de Letras do Brasil, do
Colgio Brasileiro de Genealogia, da Associao Brasileira de Pesquisadores de
Histria e Genealogia e scia correspondente do Instituto Histrico, Geogrfico e
Genealgico de Sorocaba. Publicou os seguintes livros: North American Immigration
to Brazil: tombstone records of the Campo Cemetery Santa Brbara S. Paulo
State (1978), Antonio Teixeira de Albuquerque: o primeiro pastor batista brasileiro
(1880): uma contribuio para a histria dos batistas no Brasil (1982), Movimento
de passageiros norte-americanos no porto do Rio de Janeiro (1865-1890) (1982) e
Centelha em restolho seco: uma contribuio para a histria dos primrdios do
trabalho batista no Brasil (1985, com uma segunda edio em 2005 pela Edies
Vida Nova). Todos esses livros, com exceo da segunda edio de Centelha em
restolho seco, foram lanados e publicados com os recursos prprios da autora.
Alis, a segunda edio de Centelha em restolho seco ganhou o Prmio Aret da
Associao Brasileira de Escritores Cristos de 2005.
132
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. (por telefone).
So Caetano do Sul, SP. 08 nov. 2007. 10h45m. Embora tenha, mais tarde, assinado o termo de
consentimento livre e esclarecido, Betty de Oliveira no autorizou a gravao de nenhuma entrevista.
Por isso, toda vez que for citada como entrevistada nesta pesquisa, o que for registrado como sua
palavra fruto da interpretao pessoal do pesquisador.
133
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi (por telefone).
Caraguatatuba, SP. 24 jul. 2008. 17h00m.
73
H, ainda, um texto que no foi publicado, Do arado ao cajado: biografia do
Pastor Ricardo Pitrowski (1991). Trata-se de uma biografia de seu prprio pai.
Tentou public- lo pela Casa Publicadora Batista (atual Junta de Educao Religiosa e
Publicaes JUERP), editora oficial da Conveno Brasileira, mas o manuscrito
ficou cerca de um ano engavetado.
134
136
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18
dez. 2007. 16h30m.
135
OLIVEIRA, Betty Antunes. No primeiro centenrio dos pioneiros norte-americanos. O Jornal
Batista. Rio de Janeiro, 27 nov. 1966, p. 1.
136
First Baptist Church Of Brazil era uma das designaes dadas Igreja de Santa Brbara. Betty de
Oliveira lista 10 nomes dados quela igreja, mas intencionalmente ou no, escolhe, para o artigo de O
Jornal Batista, justamente aquele que daria o significado desejado. Quanto lista, ver OLIVEIRA,
Betty Antunes de. Centelha em restolho seco. p. 219.
74
Santos tambm afirmou isso, quando concluiu que o artigo de Betty de Oliveira era
o incio do questionamento que iria ganhar o apoio de outros articulistas ao longo dos
anos. 137
Depois da publicao do artigo de Betty de Oliveira, houve um silncio por
parte da liderana da Conveno Brasileira, principalmente do Pastor Reis Pereira,
que desde o ano de 1964 era o editor de O Jornal Batista. H algumas respostas
possveis, que posteriormente sero consideradas:
1)
2)
138
e, assim, fez
3)
140
para O Jornal
75
seis anos depois do artigo de Betty, ensina qual a prtica dos batistas para o
levantamento de seus nmeros:
So hoje no Brasil mais de um milho de crentes batizados, cifra que
exclui, como os batistas o fazem, seus filhos e familiares, bem como
outros freqentadores habituais. 141 [grifo meu].
Betty de Oliveira, apesar de sua ousada sugesto, pediu a reao dos leitores,
principalmente dos entendidos ou interessados no assunto, mas visando claramente
a liderana da Conveno Brasileira. Para no afirmar que foi um silncio total,
houve uma resposta, indireta, mas que revela o descaso sobre o assunto tratado por
Betty de Oliveira: o historiador batista Antonio Neves de Mesquita, cerca de seis
meses depois, escreveu em O Jornal Batista o seguinte:
O certo que ns no sabemos de muitas coisas, mas de duas no
sabemos mesmo. Primeiro: no sabemos quantos somos e nem isso
interessa muito. No temos estatsticas verdadeiras e nem nos
preocupamos com isso. [...] 142
143
Apesar disso, manteve sua pesquisa, realizando muitas viagens para Santa
Brbara, para o Rio de Janeiro e para os Estados Unidos, a fim de concluir o seu
trabalho. Nessa jornada, encontrou forte apoio do Dr. Thurman Bryant, da Faculdade
Teolgica Batista de So Paulo, da Junta de Richmond da Conveno Batista do Sul
dos Estados Unidos e principalmente de seu esposo, Pastor Albrico Antunes de
Oliveira.
Betty de Oliveira tem hoje 89 anos de idade, mora no Rio de Janeiro, na
Tijuca, e membro da Primeira Igreja Batista do Rio. Em entrevista concedida ao
pesquisador em 18 de Dezembro de 2007, em sua residncia, e depois de ouvir sua
141
76
argumentao, Betty considerou provvel que a sua tese no saiu vencedora no
debate, porque ha via sido elaborada por uma mulher, uma esposa de pastor.
144
Cavalcnti declarou que considerar a igreja de Salvador, BA, como a primeira igreja
do Brasil era na verdade um dos nossos piores equvocos histricos. Embora revele
sua simpatia pela tese 1871, Santa Brbara, Cavalcnti, notavelmente, no fez
referncia ao artigo de Betty de Oliveira que havia sido publicado no ano anterior.
No entanto, o artigo de Cavalcnti fez Reis Pereira se movimentar. Alguns
meses depois, mas j em 1968, Reis Pereira apresentou sua tese sobre o marco inicial
batista como proposta na assemblia da Conveno Brasileira em Fortaleza, CE, com
a finalidade de estabelecer definitivamente a data exata da comemorao de nosso
primeiro centenrio.
146
A proposta
147
144
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18
dez. 2007. 16h30m.
145
CAVALCNTI, Ebenzer. Antonio Teixeira de Albuquerque at 1886. O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 29 nov. 1967, p. 5-6.
146
PEREIRA, J. dos Reis. A data do centenrio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 10 mar. 1968, p. 3.
147
Id. p. 3.
77
Como nos aproximamos de nosso primeiro centenrio e para evitar
estudos e decises de ltima hora, como aconteceu recentemente, aos
irmos metodis tas brasileiros, na vspera das comemoraes de seu
centenrio, fazemos uma proposta sobre a matria, atendendo s
seguintes razes:
1. O primeiro missionrio batista que trabalhou no Brasil foi T. J.
Bowen, em 1859, mas ningum sugeriu qualquer comemorao
centenria relacionada com essa data que, alis, passou despercebida
para os batistas brasileiros. que o trabalho de Bowen durou pouco
e no produziu frutos, que se saiba.
2. A Igreja fundada em Santa Brbara pelos colonos norte-americanos
ali estabelecidos aps a Guerra da Secesso, era uma Igreja de
lngua inglesa, destinada a servir exclusivamente aos colonos. 148
3. Essa Igreja, bem como outra por ela organizada com os mesmos
fins, em 1879, no local denominado Estao, desapareceu, sem
deixar trao, de tal modo que no se pode determinar hoje o lugar
em que ela se reunia.
4. Essa Igreja no visava a evangelizao dos brasileiros, embora
tivesse viso missionria, visto que escreveu Junta de Richmond
solicitando-lhe o envio de missionrios para iniciarem trabalho
batista entre brasileiros. Detidos pela barreira da lngua e entregues
aos seus trabalhos agrcolas, aqueles irmos no encontram recursos
para evangelizar a circunvizinhana.
5. O fato de Antonio Teixeira de Albuquerque ter sido batizado em
Santa Brbara no infirma a declarao anterior porque foi um
acontecimento isolado, de iniciativa do batizando e sobre o qual no
temos informaes exatas.
Propomos, portanto:
a) que a data de 15 de outubro de 1882, quando foi fundada pelos
Missionrios William e Ana Bagby, Zacarias e Kate Taylor e pelo
e x-padre A. Teixeira de Albuquerque a Primeira Igreja Batista da
Bahia, seja considerada, oficialmente, a data do incio da obra
batista brasileira;
b) que essa deciso seja submetida a segunda votao na Conveno de
1969, o que permitir aos estudiosos apresentar e publicar quaisquer
objees durante o corrente ano;
c) que essas possveis objees sejam estudadas por uma Comisso a
ser designada pelos Corpos Docentes dos trs Seminrios da
Conveno.
149
mas a sua
150
objeo proposta de Reis Pereira pudesse ser estudada pela Comisso eleita pela
assemblia de 1968.
148
78
Fortalecido com a deciso da assemblia da Conveno Brasileira em 1968 e
antes mesmo de ver sua proposta homologada, Reis Pereira escreveu, em 13 de
Outubro daquele ano, outro artigo alusivo posio oficial sobre o marco inicial
batista, sob o ttulo No Dia Batista do Brasil: homenagem mulher pioneira,
151
152
153
154
expectativa para 1982, o ano do centenrio, era dos batistas brasileiros ultrapassarem
a casa de um milho de membros. Em Setembro, escreveu: O Dia Batista do Brasil
155
156
E no ms de Outubro publicou, em O
157
151
PEREIRA, J. dos Reis. No Dia Batista do Brasil: homenagem mulher pioneira. O Jornal Batista.
Rio de Janeiro, 13 out. 1968, p. 1.
152
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982). p. 309.
153
SANTOS, Marcelo. Op. cit. p. 59.
154
PEREIRA, J. dos Reis. Editorial. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 1 mar. 1970, p. 3.
155
PEREIRA, J. dos Reis. O Dia Batista do Brasil. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 13 set. 1970, p. 3.
156
PEREIRA, J. dos Reis. 15 de Outubro, Dia Batista do Brasil. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 27
set. 1970, p. 1.
157
PEREIRA. J. dos Reis. Em 15 de Outubro os Batistas brasileiros fazem 88 anos. O Jornal Batista.
Rio de Janeiro, 11 out. 1970, p. 1.
79
Oliveira e criticou duramente todo o processo que elegeu 1882, Salvador, BA
como a posio oficial da Conveno Brasileira:
No compreendo o desprezo a que os batistas relegam sua prpria
Histria, que se reconstitui sob o imprio de leis e no base de
sentimentalismo. Afinal, que igreja brasileira foi essa, a de 1882, na
Bahia, constituda por quatro norte-americanos e um brasileiro?
[...] Histria no se faz por decreto, seno que resulta da pesquisa
dos fatos.
[...] Quando morrerem todos os patriotas nacionalistas, brasileiros e
norte-americanos, se eu sobreviver a eles, proporei Conveno Batista
Brasileira que RETIFIQUE o lamentvel equvoco de apagar mais de dez
anos de Histria Batista no Brasil.
[...] No foi ela [Igreja Batista de Santa Brbara] a primeira a ser
organizada no Brasil (no s no solo, mas na Nao, sob as leis do
Imprio do Brasil), e no verdade que isto ocorreu no dia 10 de
setembro de 1871? E ento? Voltemos ao bero, se somos historiadores e
no meros historigrafos. 158 [grifo meu].
159
ao
160
Cavalcnti e tambm criticou o fato da objeo ser apresentada fora do tempo, vez
que havia sido oferecido o prazo de um ano para as contestaes, antes da
homologao da proposta em 1969 pela assemblia da Conveno Brasileira.
Em 3 de Outubro de 1971, O Jornal Batista publicou, em primeira pgina, a
cobertura do centenrio da Igreja Batista em Santa Brbara, sob a responsabilidade
do Pastor Joo Falco Sobrinho. Mas sua reportagem trouxe a seguinte informao:
Embora os batistas brasileiros reconheam 15 de outubro de 1882, data
da organizao da primeira igreja batista brasileira, na Bahia, como a
data batista do Brasil, rendemos nossa profunda homenagem quele
punhado de desbravadores que no dia 10 de setembro de 1871, h
um sculo, fundaram uma igreja batista em solo brasileiro, que foi a
semente, o instrumento de Deus para o incio dessa epopia
missionria de que, por Sua misericrdia, todos somos participantes.
Foi, pois, com a alma enternecida pela gratido e o corao reverente de
saudade e respeito, que participamos da celebrao do centenrio da
158
80
organizao da primeira igreja batista em solo brasileiro, na bela sextafeira, 10 de setembro de 1971. 161 [grifo meu].
163
Outubro ele publicou trs artigos: O Dia Batista do Brasil homenagem aos
fundadores, H 90 anos foi fundada a Primeira Igreja Batista Brasileira e Em 90
anos: 2500 Igrejas. Aparentemente, as manifestaes favorveis tese de Betty de
Oliveira, atravs dos artigos de Cavalcnti e de Falco Sobrinho estavam
incomodando o editor de O Jornal Batista quanto celebrao do centenrio batista
em 1982.
Ainda em 1971, outro texto surgiu para dar fora ao debate: foi publicado um
opsculo de Ruth Ferreira Mathews sobre a vida de Anne Bagby, atravs da Unio
Feminina Missionria da Conveno Brasileira. Em sua obra, Ruth Mathews,
semelhana de Betty de Oliveira, pareceu desafiar a posio oficial, embora sua
colocao no refletisse o pensame nto geral das mulheres batistas, como se verificar
depois. Ao descrever a situao dos norte-americanos em Santa Brbara, antes da
chegada dos Bagby ao Brasil, Ruth Mathews escreveu:
Nessa colnia [Santa Brbara] havia muitos crentes e entre eles um bom
nmero de batistas. Estes se reuniram e, em 10 de setembro de 1871,
organizaram a 1. Igreja Batista do Brasil. Os cultos dessa igreja e
todo o seu trabalho eram realizados em lngua inglesa e se restringia s
famlias da colnia. 164 [grifo meu].
161
FALCO SOBRINHO, Joo. Um sculo depois. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3 out. 1971, p.
1-2.
162
PEREIRA, J. dos Reis. 15 de Outubro: Dia Batista do Brasil. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3
out. 1971, p. 1.
163
PEREIRA, J. dos Reis. Como celebrar o dia batista do Brasil. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 10
out. 1971, p. 1.
164
MATHEWS, Ruth Ferreira. Ana Bagby, a pioneira. Rio de Janeiro: Unio Feminina Missionria,
1972, p. 14.
81
Ruth Mathews era pesquisadora respeitada entre os batistas, porque j havia escrito a
biografia do missionrio norte-americano Lewis Malen Bratcher,
165
a pedido da
De qualquer modo, o ano de 1971 findou e com ele tambm qualquer outra
possibilidade de ressuscitar a posio insurgente. Reis Pereira pde, ento, se
organizar para preparar a celebrao do centenrio batista brasileiro para o ano de
1982.
Na assemblia da Conveno Brasileira em 1970, em Salvador, BA, j havia
sido aprovada a formao de um Grupo de Trabalho, com o fim especfico de
elaborar o Plano Decenal da Conveno Brasileira, ou seja, um plano de
desenvolvimento e crescimento da Denominao.
165
167
MATHEWS, Ruth Ferreira. O apstolo do serto. Rio de Janeiro: Junta de Misses Mundiais e
Casa Publicadora Batista, 1967.
166
LOPES, Orivaldo Pimentel. 1971 e 1972. Batista Paulistano. So Paulo, jan./fev. 1972, p. 2.
167
CONVENO BATISTA BRASILEIRA, Anais, 1970, p. 72.
82
Brasileira, bem como suas igrejas filiadas, deveriam atender s orientaes do
referido Plano, e, atravs do cumprimento de metas especficas e determinadas,
contribuiriam para a projeo dos batistas em mbito nacional. O foco do Plano
Decenal era o centenrio em 1982. A verificao do cumprimento das metas seria
feita a cada binio, a partir do ano de 1971.
No entanto, em 1971, a Junta Executiva da Conveno Brasileira resolveu
preparar um Plano Integrado para as comemoraes do centenrio batista brasileiro
em 1982. Esse Plano deu origem ao Plano Integrado para o Decnio do Centenrio,
que foi apresentado assemblia da Conveno Brasileira em 1973, com o nome de
Programa Integrado de Misses e Evangelizao PROIME.
168
O Programa atendia
169
A partir de ento,
Desse modo, a posio 1871, Santa Brbara, SP, estava fadada ao esquecimento.
Em 1972, Reis Pereira publicou, atravs da Junta de Educao Religiosa e
Publicaes JUERP, sua Breve Histria dos Batistas (que alcanou trs edies e
uma reedio especial em 2001), onde, mais uma vez, mas agora alcanando
diretamente a academia batista, afirmou:
Assim, pois, com cinco membros fundadores, em 15 de outubro de 1882,
foi organizada a Primeira Igreja Batista da Bahia e primeira igreja
batista brasileira. 171 [grifo meu].
168
83
Amaral admitiu que a Igreja da Estao teve em seu rol de membros um brasileiro, e
essa foi a mesma situao da igreja fundada em Salvador, cuja filiao de
Albuquerque justificava a ltima como a primeira igreja nacional.
Em um artigo de autoria de Mrio Ribeiro Martins, que no concordou com
Amaral a respeito de quem teria batizado Albuquerque (para ele, teria sido o Pastor
Ratcliff), mais detalhes so revelados a respeito do trabalho de Santa Brbara junto
aos brasileiros:
Nomeados no dia 2 de Janeiro de 1881, Bagby e esposa chegaram ao
Brasil em 2 de Maro, descendo no Rio de Janeiro. No dia 16 de Abril de
1881, foram para Campinas estudar a lngua. Em Maio Bagby aceitou o
pastorado da Igreja Batista de Santa Brbara, e ficou pregando l e na
Igreja da Estao. Em Junho seis pessoas foram batizadas e no fim de
1881 Bagby pregou 4 sermes em portugus [...]. A esta altura a
Igreja Batista de Santa Brbara perdeu as caractersticas de igreja
purame nte norte -americana, porque j tinha um brasileiro como
membro. Bagby j pregava em portugus e ele mesmo prometeu
estender o Evangelho a regies distantes, o que fez enviando um
nativo (Teixeira) juntamente com os Bagbys e os Taylors para fundar
uma igreja na cidade mais catlica da Amrica Latina, Salvador, sede do
arcebispado do Brasil. 173 [grifo meu].
171
PEREIRA, J. dos Reis. Breve histria dos batistas. 3. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1987, p. 83.
AMARAL, Othon vila. Antnio Teixeira de Albuquerque: o primeiro metodista e batista do
Brasil. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26 jan. 1975, p. 7.
173
MARTINS, Mrio Ribeiro. Rio Largo: bero e tmulo de dois pioneiros batistas (Mello Lins e
Teixeira de Albuquerque). O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 9 fev. 1975, p. 5.
172
84
Provavelmente para consolidar a posio oficial, em 1976 Reis Pereira viajou
para os Estados Unidos onde pesquisou documentos arquivados em Richmond. Em
seu relatrio publicado em 22 de Agosto de 1976, Reis Pereira se baseou em cartas
enviadas por William Bagby Junta de Richmond para afirmar:
A data de 15 de Outubro de 1882 foi escolhida porque nela foi fundada
uma igreja batista brasileira que pregava o evangelho em portugus, uma
igreja missionria que desejava levar, como levou, o evangelho a outros
lugares, procurando atingir o maior nmero possvel de brasileiros. A
Igreja de Santa Brbara no era nada disso.
[...] em carta de 2 de Setembro de 1881 Bagby diz a respeito da Igreja da
Estao: sua organizao foi imprudente e infeliz.
[...] Em 15 de Dezembro de 1881 William Bagby escrevia: os batistas
at agora nada fizeram entre os brasileiros. A Igreja de Santa Brbara
composta inteiramente de norte-americanos. 174
174
PEREIRA, J. dos Reis. Pesquisa em Richmond (III): notas de viagem. O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 22 ago. 1976, p. 8.
175
TEIXEIRA, Marli Geralda. Os batistas na Bahia: 1882-1925: um estudo de histria social.
Salvador, BA, 1975. Dissertao de Mestrado.Universidade Federal da Bahia, p. 33.
85
A pesquisa de Teixeira enfatizou o trabalho dos batistas em Salvador e assim ela
privilegiou a posio oficial da Conveno Brasileira.
Outra colaboradora para a histria dos batistas brasileiros, Helen Bagby
Harrison, escreveu Os Bagby do Brasil: uma contribuio para o estudo dos
primrdios batistas em terras brasileiras em 1987, obra que tratou da trajetria de
vida de seus pais, os missionrios William e Anne. Seu livro contou com o apoio da
Junta de Educao Religiosa e Publicaes JUERP (antiga Casa Publicadora
Batista), editora oficial da Conveno Brasileira e revelou total harmonia com a
narrativa oficial sobre o marco inicial do trabalho batista no Brasil:
J em 1871, tinha sido organizada, em Santa Brbara, uma igreja batista,
que atendia somente aos americanos da colnia na lngua inglesa. Es ses
habitantes vinham pedindo Junta dos Estados Unidos que mandasse
missionrios para o Brasil. 176
Obviamente era de se esperar que, sendo Harrison descendente direta dos Bagby,
essa autora posicionasse seus pais como os missionrios pioneiros para o Brasil.
O que se nota, no entanto, que as mulheres que contriburam para a
historiografia batista se dividiram quanto ao tema sobre o marco inicial batista: Betty
de Oliveira e Ruth Mathews defenderam 1871, Santa Brbara, SP; Marli Teixeira e
Helen Bagby Harrison seguiram a linha da posio oficial. Mathews e Harrison
escreveram sobre os Bagby, mas as interpretaes sobre o marco inicial batista foram
distintas. Outra observao interessante foi a humildade que se manifestou em duas
obras: tanto Betty de Oliveira, quanto Helen Bagby Harrison designaram suas obras
como apenas uma contribuio para a histria dos batistas. Isso ocorreu porque
possivelmente respeitaram o cdigo de tica daqueles tempos: aqueles que
dominavam o campo do saber historiogrfico batista eram os homens. Por isso, suas
participaes deveriam ser apenas consideradas contribuies.
176
177
86
13. Inconformismo e Perseverana: A Atuao de Betty Antunes de Oliveira.
178
crendo em sua tese e continuou, com grandes sacrifcios, a sua pesquisa sobre os
colonos batistas de Santa Brbara, SP.
Em 1977, onze anos depois de seu revolucionrio artigo, Betty de Oliveira
conseguiu que fossem publicados em O Jornal Batista, em srie, trs artigos, sob o
tema Fruto de minhas pesquisas histricas (nota prvia do livro em preparo): o
primeiro foi sobre a possvel localizao do primeiro batistrio batista em Santa
Brbara;
179
Teixeira de Albuquerque;
180
181
182
183
trabalho de Betty de Oliveira, algo que Reis Pereira no fez ao publicar o seu livro
sobre a histria dos batistas brasileiros em 1982.
184
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18
dez. 2007. 16h30m.
179
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Primeira Igreja Batista em Santa Brbara, SP: localizao dos
imigrantes, cemitrio, capela e batistrio (I). O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 19 jun. 1977, p. 4.
180
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Antonio Teixeira de Albuquerque (II). O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 26 jun. 1977, p. 7.
181
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Antonio Teixeira de Albuquerque seu batismo e consagrao ao
ministrio (III). O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 23 out. 1977, p. 7.
182
AMARAL, thon vila. Quem batizou Antonio Teixeira de Albuquerque? O Jornal Batista. Rio
de Janeiro, 2 jan. 1977, p. 5.
183
AMARAL, thon vila. Antonio Teixeira de Albuquerque, o centenrio de sua ordenao ao
ministrio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15 jun. 1980.
184
Em Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), Reis Pereira no citou Betty de Oliveira no ndice
onomstico e nem na bibliografia consultada. PEREIRA, J. dos Reis. Op. cit. p. 361-370.
87
rejeitou a posio de Betty de Oliveira e de Amaral sobre o Pastor Robert Thomaz.
Para Cavalcnti, quem batizou Teixeira de Albuquerque foi o Pastor Ratcliff. Mas
essa polmica no alterou sua interpretao de que a igreja de Santa Brbara teria
sido a primeira igreja batista brasileira.
185
186
185
88
ficaremos aqum do alvo de um milho de membros no ano do Centenrio.
188
Em
26 de Fevereiro, atravs do seu artigo Um Milho em 1982, Reis Pereira revelou que,
desde 1973, o crescimento das igrejas atravs do nmero de batismos era insuficiente
para atingir a meta de 1982.
De 1973, quando comeou a Dcada do Centenrio at 1977, nos cinco
primeiros anos, ns crescemos, mas no crescemos na proporo
necessria para termos um milho em 1982. 189
191
190
Na edio
192
193
PEREIRA, J. dos Reis. Quantos somos? O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 8 jan. 1978, p. 3.
PEREI RA, J. dos Reis. Um milho em 1982. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26 fev. 1978, p. 3.
190
PEREIRA, J. dos Reis. A campanha de 1980: apelo concreto. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 19
mar. 1978, p. 3.
191
PEREIRA, J. dos Reis. A primeira igreja batista brasileira. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15
out. 1978, p. 3.
192
PEREIRA, J. dos Reis. Centenrio no acontece todo dia. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 12 nov.
1978, p. 3.
193
PEREIRA, J. dos Reis. A voz e o apelo da estatstica. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 31 dez.
1978, p. 3.
189
89
atenes estavam voltadas para 1882, Salvador, BA. A repercusso de sua obra,
porm, foi pequena na Conveno Brasileira, at porque foi publicada na lngua
inglesa.
No ano seguinte, 1979, Betty de Oliveira tentou, sem sucesso, o
reconhecimento oficial do centenrio da Misso Batista no Brasil. No informou
como foi essa tentativa, ou que canais procurou se utilizar para alcanar o seu
propsito, mas o fato que reconheceu o seu insucesso e precisou estabelecer outra
estratgia.
Em 1979, por um escrito, tentamos fazer lembrado o centenrio do
estabelecimento da Misso Batista no Brasil, pela Junta de Misses
Estrangeiras da Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos da
Amrica, a Junta de Richmond. Todavia, tendo falhado o meio de
divulgao do evento, tentamos outro caminho. 194
195
196
194
90
Junta de Richmond, da Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos,
em cem anos, no Brasil.
Para melhor entendimento do esprito desta proposta, tomamos a
liberdade de transcrever alguns trechos, em anexo: dos Relatrios,
Pareceres e Atas da Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos, dos
anos de 1879, 1880, 1881 e 1885, p. 30, 31, 52 e 54; 24, 25, 51, 52, 53,
54; 21, 40 e 49, respectivamente;
- da Ata da Junta de Richmond, de 1. de novembro de 1880, p.
419;
- de recortes do jornal dessa Junta, de 1879, 1880 e 1881.
O assunto foi encaminhado para a Comisso de Assuntos Eventuais, cujo parecer foi
de aprovao com observaes.
Considerando que diante da evidncia de fatos histricos no se pode
apresentar contestao, a no ser nos termos em que esses fatos so
apontados [...]. Considerando que a Conveno Batista Brasileira j
deliberou, oportunamente, a respeito do marco inicial do trabalho
batista brasileiro; SOMOS DE PARECER: que a Conveno Batista
Brasileira manifeste Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos da
Amrica, atravs de uma carta a ser elaborada pela Junta Executiva da
CBB, a expressiva gratido dos batistas brasileiros: [...] pelo envio dos
seus missionrios William Buck Bagby e esposa em 1881 ao Brasil, os
quais em 15 de outubro de 1882 organizaram a Primeira Igreja Batista,
em Salvador, BA, em idioma portugus, igreja essa, por conseguinte,
tida como marco inicial da organizao do trabalho batista no
Brasil. 197 [grifos meus].
197
62a. ASSEMBLIA DA CBB, 22 jan. 1980. Goinia, GO. In: CONVENO BATISTA
BRASILEIRA. Anais. Goinia: CBB, 1980, p. 314-315.
198
PEREIRA, J. dos Reis. Conveno sem novidades. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 2 mar. 1980,
p. 3.
91
Em fins do ano de 1981, a Conveno Batista, atravs de O Jornal Batista,
convidou todas as igrejas filiadas a lanarem oficialmente no dia 31 de dezembro, no
mbito de suas respectivas comunidades, o ano oficial do Centenrio Batista.
Os batistas paulistas atenderam o cha mado da Conveno Brasileira, mas,
ainda no ano de 1981, manifestaram mais uma vez a posio insurgente atravs do
seu rgo informativo oficial, Batista Paulistano:
So Paulo batista estar assim homenageando os pioneiros que nos idos
distantes do sculo passado iniciaram a obra batista em terras de
Piratininga. Vale lembrar que aqui surgiu realmente a 1. Igreja
Batista neste Pas [...].
[...] H, portanto, marcas irremovveis da obra batista em tempos
pioneiros no Estado de So Paulo. 199 [grifo meu].
201
199
92
Sua determinao, no entanto, foi reconhecida pela liderana da Conveno
Batista do Sul dos Estados Unidos, conforme se demonstra em artigo da Revista da
Junta de Misses Estrangeiras, numa edio especial sobre o Brasil em 1982:
Em minoria Pelo menos um, entre os Batistas Brasileiros, mantm
a convico de que o centenrio do trabalho j se passou. A
Conveno [CBB] acordou que a igreja da qual o trabalho se originou a
de Salvador, onde os primeiros brasileiros tornaram-se Batistas. A
Conveno reunir-se- ali em outubro.
Porm, a Sra. Betty Antunes de Oliveira v o fato de maneira
diferente. Muitas pessoas dos Estados Unidos da Amrica
estabeleceram-se no Brasil, depois da Guerra da Secesso. Alguns eram
Batistas e organizaram igrejas. A Sra. Oliveira insiste que, desde que
alguns brasileiros foram envolvidos naquelas igrejas, o trabalho Batista,
de fato, comeou mais cedo. A Sra. Oliveira, uma descendente de alguns
daqueles emigrados, tem pesquisado o assunto onde lhe tem sido
possvel.
A Conveno, porm, celebrar o seu 100. aniversrio em 1982. 202
[grifos meus].
203
e cantado, como se observa nos seguintes versos do poeta Mrio Barreto Frana,
204
GLOBAL Glimpses. The Commission. Richmond, Virginia, fev./mar. 1982, v. 45, no. 2, p. 5. Trad.
Betty Antunes de Oliveira [revista da Junta de Misses Estrangeiras da Conveno Batista do Sul dos
Estados Unidos da Amrica, nmero especial dedicado ao Brasil].
203
PEREIRA, Clvis M. Unidade III A histria dos batistas no Brasil (atualizao -1982 a 2001). In:
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil. p. 432.
204
FRANA, Mrio Barreto. Apud PEREIRA, Clvis M. Op. cit. p. 432.
93
Para a glria de Deus se organizava
Uma Igreja Batista na Bahia.
E os Bagby, os Tailor (sic) e Albuquerque,
Unidos num propsito gentil,
Estavam organizando essa primeira
Igreja dos Batistas no Brasil.
Como j foi observado, em sua obra Reis Pereira no cita a pesquisa, nem os livros e
nem o nome de Betty de Oliveira.
15. 1985: o Ano de Centelha em Restolho Seco.
94
da dcada de 1960, a historiadora procurou apoio da Junta de Educao Religiosa e
Publicaes JUERP, no sentido de ter sua obra patrocinada e publicada pela editora
oficial da Conveno Brasileira, como o foi a obra de Reis Pereira. Mas no obteve o
apoio desejado e nem percebeu qualquer interesse por parte da liderana da
denominao. Na verdade, sentiu certa indiferena, certo descaso
206
para com a
sua pesquisa. Assim, procurou ajuda fora dos limites da denominao. Alm do
esforo para levantar recursos para a publicao de sua pesquisa, Betty precisou
contar com o auxlio de pessoas que seguiam outras religies.
207
Desse modo,
conseguiu lanar Centelha em Restolho Seco: uma contribuio para a histria dos
primrdios do trabalho batista no Brasil entre os dias 6 e 7 de Novembro de 1985,
na Capela do Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro, RJ. O
evento do lanamento do livro de Betty de Oliveira foi coberto pela reportagem da
Revista Teolgica do prprio Seminrio, que registrou a fala contestadora da autora:
Para que uma igreja evanglica batista seja organizada preciso que seus
membros declarem a sua nacionalidade, a sua cor, partido poltico ou sua
condio social? Ou ela deve ser reconhecida pelo fato de que seus
membros so salvos em Cristo Jesus, pela f, e devidamente batizados
conforme as Escrituras? 208
206
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. [por telefone].
So Caetano do Sul, SP. 21 fev. 2006. 16h50m.
207
Segundo Betty, um empresrio de origem libanesa, aparentemente seguidor do espiritismo, se
interessou por seu trabalho e ofereceu toda a ajuda necessria para public-lo. (Entrevista concedida a
Alberto Kenji Yamabuchi. [por telefone]. So Caetano do Sul, SP. 21 fev. 2006. 16h50m).
208
OLIVEIRA, Betty Antunes. A propsito da organizao da primeira Igreja Batista do Brasil...
Revista Teolgica: Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil. Rio de Janeiro, no. 2, p. 67, dez.
1985.
209
PEREIRA, J. dos Reis. Breve histria dos batistas, p. 81.
95
Outra alegao de Reis Pereira era de que a Igreja de Santa Brbara no se
interessava em alcanar brasileiros e, por isso, no era uma igreja missionria. Betty
rebateu esse argumento, ao lembrar o ministrio de Antonio Teixeira de Albuquerque
em Santa Brbara e Piracicaba:
H forte evidncia de que Teixeira iniciou o seu ministrio ali em Santa
Brbara e Piracicaba. Baseamo -nos numa informao que Dr. W. B.
Bagby enviou Junta dizendo que Teixeira no pregava mais. Tinha
havido um desentendimento entre Teixeira e Quillin, em Piracicaba, na
tentativa de ali ser organizada a Terceira Igreja e uma escola-misso.
Esse desentendimento resultou na separao de ambos e abandono da
idia e do trabalho em Piracicaba. Mas, ficou o registro que Teixeira
deixara de pregar, ou seja, que antes ele pregava. Perguntamos: onde
pregava? A quem pregava? Ser que os norte-americanos estavam
interessados em que um brasileiro se tornasse um pastor para eles, se j
possuam o seu? Qual o interesse do grupo em receber um brasileiro no
seu seio e consagr-lo ao ministrio? No sobra qualquer dvida no fato
de que as duas igrejas serviram de bero ao alagoano intrpido que ento
iniciava o seu ministrio, como um batista. 210
211
OLIVEIRA, Betty Antunes de. A propsito da organizao da primeira Igreja Batista do Brasil...
Revista Teolgica. p. 67-68.
211
AZEVEDO. Israel Belo de. Op. cit. p. 198.
212
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco, p. 177, 181.
96
um crescente desinteresse por seu trabalho, sendo que nunca mais foi convidada
para falar ao Seminrio Teolgico Batista do Sul do Brasil. Isso lhe causou
estranheza.
213
16. O Ps-Debate.
O ano de 1982 poderia ter sido considerado aquele que concluiu o debate
sobre o marco inicial do trabalho batista, iniciado em 1966 por Betty Antunes de
Oliveira. Mas o lanamento de Centelha em Restolho Seco em 1985 e as
repercusses do debate, ps-1985, ainda avivam a questo sobre as origens dos
batistas no Brasil.
A primeira reao interessante a ser considerada a do prprio Reis Pereira,
em 1989. Em artigo enviado Revista Teolgica do Seminrio Teolgico Batista do
Sul do Brasil, ele considerou:
A Igreja Batista de Santa Brbara foi a primeira igreja batista a ser
organizada em solo brasileiro. Esse um marco histrico inegvel.
Mas por que os batistas brasileiros comemoraram o centenrio do incio
do trabalho batista no Brasil em 1982? Porque a Igreja de Santa Brbara
no teve significado na evangelizao dos brasileiros. Era uma igreja de
lngua inglesa para servir aos colonos norte-americanos ali estabelecidos.
[...] Mas, de qualquer maneira, acho que a histria da Igreja de Santa
Brbara merecia mais estudo [...]. 214 [grifos meus].
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Entrevista concedida a Alberto Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18
dez. 2007. 16h30m.
214
PEREIRA, J. dos Reis. Documentos para a histria batista do Brasil. Op. cit. p. 55.
97
Mas, depois de 1985, outras vozes discordantes da posio 1882, Salvador,
BA mantiveram aceso o questionamento. Dentre elas, a de Zaqueu Moreira de
Oliveira. Em seu livro, Perseguidos, mas no Desamparados, ele escreveu:
Esquecer o trabalho e influncia da Igreja Batista de Santa Brbara, para
a reabertura do campo missionrio no Brasil, a maior injustia
histrica que os batistas brasileiros tm cometido. O autor do
presente trabalho espera que o sesquicentenrio dos batistas no
Brasil no seja comemorado em 2032, mas em 2021, reparando
assim esta injustia. 215 [grifo meu].
Injustia ou no, o que se nota que o debate se encontra em aberto e poder durar
muito tempo ainda. Porm, esta pesquisa no pretende discutir o acerto histrico da
questo sobre o marco inicial batista brasileiro. O interesse maior o de descrever e
analisar toda a dinmica do debate a partir de uma leitura crtica que considere
gnero como instrumento de sua interpretao e, por isso, pistas foram sendo
levantadas ao longo deste captulo. Suspeita-se que o resultado final do debate
denuncia a fora do preconceito de gnero. Mas a anlise conclusiva desse debate,
bem como suas implicaes, ser apresentada em captulo prprio.
Finalmente, este captulo procurou apresentar e descrever os aspectos
histricos do debate sobre as origens do trabalho batista no Brasil, suas etapas e
desenvolvimento, o papel de seus principais participantes e o resultado final. Mas o
material necessrio para a anlise de gnero no pode ser considerado completo se
no se levar em conta o contexto imediato que envolveu o debate sobre o marco
inicial do trabalho batista no Brasil, qual seja, a prpria Conveno Batista
Brasileira. Conhecer a cultura batista da Conveno Brasileira dos anos 1960-1980
que influenciou a dinmica das etapas do debate sobre o marco inicial batista ,
portanto, o assunto do prximo captulo.
215
98
CAPTULO II
A ARENA DO DEBATE: A CONVENO BATISTA
BRASILEIRA
Os batistas foram os primeiros proponentes de
uma liberdade absoluta, justa e verdadeira
liberdade, liberdade igual e imparcial.
216
John Locke
1. Introduo.
LOCKE, John. Apud BEZERRA, Benilton C. Interpretao panormica dos batistas. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1960, p. 47.
99
Espera-se demonstrar essa situao, apresentando o papel da Unio Feminina
Missionria Batista do Brasil no contexto da Conveno Brasileira.
A seguir, ser apresentada a editora oficial da Conveno Brasileira: a Casa
Publicadora Batista, que mais tarde recebeu o nome de Junta de Educao Religiosa
e Publicaes JUERP. Essa editora tem importncia capital para a re-produo de
sentidos e valores da ideologia da denominao batista. Pretende-se demonstrar que
o seu papel junto aos batistas brasileiros est na afirmao daqueles valores
desejados pela liderana da denominao, majoritariamente masculina.
Aps as consideraes sobre a editora dos batistas, ser apresentado O Jornal
Batista, o rgo oficial de informao da Conveno Brasileira e o principal
instrumento de re-produo ideolgica dos batistas. Editado pela Junta de Educao
Religiosa e Publicaes JUERP, esse jornal tem representado o pensamento oficial
da denominao nos mais va riados assuntos trabalhados. No que diz respeito s
questes de gnero, O Jornal Batista refletiu, como ser demonstrado, a cultura
patriarcal dominante daqueles anos 1960-1980.
Em ltimo lugar, ser estudado o papel das instituies batistas de ensino
teolgico, em especial o seu papel na reproduo da desigualdade de gnero.
Verificaremos que, a partir dos anos 1960, os seminrios teolgicos batistas
visibilizavam a tenso entre a afirmao patriarcal quanto ao acesso ao poder na
Conveno Brasileira e a emancipao das mulheres batistas, que participavam de
seus quadros docentes e discentes. Ser privilegiado o estudo da primeira instituio
teolgica batista surgida no Pas: o Seminrio Batista do Norte do Brasil, em Recife.
217
reconhecia
217
H trs teorias
219
100
teoria JJJ, a segunda associa a origem com os anabatistas do sculo XVI e a terceira
relaciona os primeiros batistas com o movimento separatista ingls do sculo XVII.
A teoria JJJ, ou seja, Jerusalm-Jordo-Joo, defende que os batistas vm de
uma linha ininterrupta desde os tempos de Joo, o Batista, que batizava no rio
Jordo, nas proximidades da cidade de Jerusalm. Essa linhagem batista pode ser
traada at s igrejas batistas da atualidade. uma teoria antiga e hoje quase no se
encontra quem a defenda.
A teoria do parentesco com os anabatistas do sculo XVI encontrou
defensores a partir do sculo XIX. Embora se verifique muitos pontos de contato
entre doutrinas batistas e anabatistas, essa teoria oferece dificuldades, segundo
alguns estudiosos, porque no h como comprovar essa relao histrica com os
anabatistas, cujo nome significa rebatizadores. Whitley, historiador batista, escreveu:
indesculpvel hoje confundir os anabatistas continentais do sculo 16 com os
batistas ingleses do sculo 17.
220
222
Um pequeno grupo de batistas ingleses resolveu voltar para sua ptria e organizou,
em 1612, a primeira igreja batista da Inglaterra, em Spitalfields, lugar prximo de
Londres. O movimento cresceu, mas a perseguio religiosa, no entanto, no cessava
e, por isso, muitos buscaram sua liberdade em outras terras.
A Amrica do Norte foi o destino de muitos dissidentes que partiram para o
novo mundo com o desejo de construir uma vida melhor. Eles foram chamados de
Pais Peregrinos, que desembarcaram na Nova Inglaterra no ano de 1620. Muitos
batistas estavam entre os colonos ingleses. A primeira igreja batista em solo
220
101
americano surgiu, provavelmente, no ano de 1639,
223
3. Identidade batista.
Quem o batista?
Identifica-se como batista a pessoa convertida, regenerada pela ao do
Esprito Santo, salva mediante a graa de Deus e a f em Jesus Cristo, e
que se submete soberania de Cristo; une-se a uma igreja da mesma f e
ordem corpo de Cristo atravs do batismo; presta culto a Deus, e
somente a ele; cr na autoridade da Palavra de Deus sua nica regra de
f e prtica e na competncia do indivduo perante Deus. 224
223
102
O nome batista surgiu pela primeira vez em 1644 na Inglaterra e foi dado
aos batistas pelos seus adversrios.
225
defendida pelos batistas como a nica forma verdadeira e bblica. Porm, Azevedo
informa que a primeira igreja batista da Inglaterra, organizada em 1612, praticava o
batismo por asperso.
226
Desse modo, os batistas crem que o modelo de suas igrejas deva ser fiel quele
vivido pelos primeiros cristos. Em seu Estudo do Pacto das Igrejas Batistas, Schaly
ensinou:
Uma igreja batista uma sociedade local de crentes em Cristo, batizados
por imerso, sob sua profisso de f, que cultua corretamente a Deus,
que prega Sua Palavra e que ministra devidamente as suas ordenanas
neotestamentrias. 229
BROWN, L D. Fundamentos bblicos dos batistas: um estudo bblico sobre as caractersticas que
distinguem os batistas. So Paulo: Imprensa Batista Regular, 1992, p. 8.
226
AZEVEDO, Israel Belo de. A celebrao do indivduo. p. 78.
227
BEZERRA, Benilton C. Op. cit. p. 49.
228
CONVENO BATISTA BRASILEIRA. Declarao doutrinria da Conveno Batista
Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1987. (Srie Documentos Batistas, 2), p. 14.
229
SCHALY, Harald. Estudo do pacto das igrejas batistas. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1992, p. 5.
230
PEREIRA, J. Reis. Informao inexata. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 30 mar. 1980, p. 3.
103
232
231
104
uma imposio religiosa, e continuando com os batistas, metodistas,
pentecostais, at s Igrejas Africanas Independentes dos nossos dias. 233
234
Desse modo, com essa herana, muitos batistas julgam que o seu movimento
anterior Reforma e que suas razes podem ser identificadas nos primrdios do
cristianismo, quando do surgimento das primeiras igrejas crists, conforme relata o
Novo Testamento. Crem que suas doutrinas se harmonizam com aquelas que foram
ensinadas pelos apstolos, porque derivam das prprias Escrituras Sagradas.
Os batistas sempre rejeitaram a tradio como fonte doutrinria. Nossas
doutrinas no so aquilo que tal ou qual vulto cristo defendeu e ensinou,
mas o que Cristo e os apstolos pregaram. No precisamos da histria
para mostrar a justeza de nossa posio em face do evangelho. Esta
busca de pontos de apoio na histria ou na tradio fica bem para certos
grupos religiosos com pretenses estatais de hierarquia e monoplio
espiritual. 236
237
Os
233
238
105
Do pensamento liberal ingls e do puritanismo vieram os princpios da
liberdade individual e da separao entre igreja e estado. Do pietismo veio o desejo
de proclamar o evangelho ao mundo, o que acabou desenvolvendo nos batistas norteamericanos uma viso messianista, salvacionista. Da Reforma veio a doutrina da
justificao pela f e, nesse assunto, os batistas se dividiram entre o calvinismo
puritano e o arminianismo (os primeiros batistas ingleses foram arminianos).
Quando vieram ao Brasil, os batistas norte-americanos trouxeram a pregao
de um Evangelho supranacional e essa bagagem ideolgica que influenciou
profundamente a formao do pensamento batista brasileiro. A viso salvacionista se
revelou claramente quando os missionrios americanos classificaram o catolicismo
como um tipo de cristianismo distorcido e que, por isso, havia mantido o Brasil no
paganismo. Assim, tanto o catolicismo como o paga nismo precisavam ser
combatidos. E criam que s os batistas tinham a mensagem salvadora, porque julgam
ser o povo chamado.
239
pretenso da diferena
240
241
242
, com
239
106
Embora sejam muitas as influncias ideolgicas herdadas, os batistas no so
afeitos a desenvolver uma teologia prpria, com rigor cientfico. Sob o princpio que
reza que a Bblia a sua nica regra de f e de prtica, os batistas tendem a
desprezar at mesmo a formulao oficial de credos, confisses ou declaraes de f.
O missionrio norte-americano William Carey Taylor (1886-1971) afirmou essa
posio com essas palavras:
Os batistas no tm dogmas ou credos. Dogma definio eclesistica,
obrigatria e final de doutrina, entre seitas catlicas ou protestantes de
gnio credal. [...] Um credo documento litrgico para ser recitado ou
cantado, e para ter valor da Escritura; e geralmente tem mais valor do
que a Escritura para seus adeptos, pois aceitam o credo quando ele
abertamente contradiz a Palavra de Deus. Sou batista h quase quarenta
anos, mas nunca ouvi um s batista apelar para os nossos Artigos de
F a fim de provar ou condenar ou disciplinar. Imediatamente que surge
questo de autoridade, nos esquecemos dos Artigos de F e recorremos
a Jesus Cristo e s Escrituras do Novo Testamento que so a
interpretao apostlica de sua pessoa, sua obra redentora e sua vontade
revelada. Para provar qualquer artigo seguimos o exemplo de nosso
Mestre e dizemos: Est escrito!. 243
107
organizao da Primeira Igreja Batista de Salvador, Bahia, adotou-se a Confisso de
F de New Hampshire de 1833 (traduzida para a lngua portuguesa por Z. C. Taylor),
confisso que em 1916 foi adotada pela Conveno Brasileira com o nome de
Declarao de F das Igrejas Batistas no Brasil (substituda em 1986 pela
Declarao Doutrinria da Conveno Batista Brasileira).
Os batistas brasileiros, no entanto, no valorizam tanto confisses ou
declaraes doutrinrias como os seus irmos ingleses e norte-americanos, porque
temem que tais documentos possam restringir a liberdade que encontram na
interpretao e reflexo de sua f. Julgam encontrar nas Escrituras toda a doutrina
que precisam, pois elas se constituem para eles a nica regra de f e conduta. Porm,
as condies histricas do momento podem determinar a necessidade de uma
Declarao, como justificou a liderana da Conveno Brasileira em 1986:
[...] de quando em quando, as circunstncias exigem que sejam feitas
declaraes doutrinrias que esclaream os espritos, dissipem dvidas e
reafirmem posies. Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil,
quando uma declarao desse tipo deve ser formulada, com a exigncia
insubstituvel de ser rigorosamente fundamentada na Palavra de Deus. 246
246
108
defendidos, segundo eles, ao longo de toda a sua histria. O telogo batista A. B.
Langston ensinou:
Os batistas sustentam princpios que nenhuma outra denominao
evanglica sustenta. E no somente os sustentam, como tm, atravs de
sua longa e honrosa histria, coerente e destemidamente, aplicado estes
princpios a todas as suas relaes na vida. 248
250
lhes so exclusivos, pois outros grupos religiosos tambm defendem tais valores.
251
109
Que princpios so esses que distinguem os batistas das demais
denominaes? Quando so apresentados, esses princpios so geralmente
relacionados em uma lista. Notavelmente, porm, h listas diferenciadas de
princpios aceitos pelos batistas. Por exemplo, Torbet,
253
255
ofereceu uma lista, em 1982, que registrava sete princpios, que segundo
256
comentou a
teologia que estava por trs de onze princpios batistas. Por sua vez, Silva,
257
autor
contemporneo, elaborou uma relao de oito princpios. H, enfim, uma lista nica
e ofic ial? Aparentemente no h consenso entre os batistas a esse respeito. Landers
observou que, diante das variaes no mundo batista hoje em dia, nenhuma
declinao e exposio dos princpios batistas agradar a todos.
258
Embora no haja
uma lista nica, todas as listas de princpios at aqui citadas no apresentam grandes
divergncias entre si e elas surgiram por causa das diferentes nfases e perspectivas
trabalhadas pelos respectivos proponentes.
Mas possvel que a lista apresentada oficialmente pela Conveno
Brasileira em 1986, atravs da Declarao Doutrinria, tenha a pretenso de
estabelecer uma definio sobre esse assunto. A Declarao Doutrinria da
Conveno Brasileira de 1986 listou seis princpios, mas de forma resumida e no
to elaborada como a lista da Conveno do Sul dos Estados Unidos (embora
mantenha o mesmo esprito ideolgico da lista norte-americana). A lista brasileira
conta com os seguintes princpios batistas
259
110
4. A absoluta liberdade de conscincia.
5. A responsabilidade individual diante de Deus.
6. A autenticidade e apostolicidade das igrejas.
Em resumo, os princpios revelam, portanto, o esprito dos batistas
brasileiros: a afirmao da diferena. Em oposio ao catolicismo brasileiro,
considerado por eles um desvio do cristianismo autntico, a diferena se afirma,
basicamente, na defesa dos princpios da separao entre Igreja e Estado e da
liberdade de conscincia. Para Bezerra, entretanto, os princpios batistas se resumem
a dois: a competncia individual de ir a Deus sem qualquer intermedirio e a
doutrina da igreja.
260
261
Mas h uma outra leitura sobre essa distino dos batistas a ser considerada.
Em 1908, o telogo batista norte-americano Edgar Young Mullins afirmou que o
princpio que rege sobre todos os demais o da competncia da alma na religio,
competncia essa dependente de Deus.
262
264
260
111
4. Axioma moral: o homem, para ser responsvel, deve ser livre.
5. Axioma religioso-cvico: uma Igreja livre num Estado livre.
6. Axioma social: amai o vosso prximo como a vs mesmos.
Essas proposies so, para Mullins, seis ramificaes de um tronco, que a
doutrina do Novo Testamento, e to simples e to evidentes por si prprias que os
nossos amigos metodistas, presbiterianos e episcopais ho de aceit- las.
265
Esses
266
Listas
A Centralidade do Indivduo
Robert G. Torbet
Conveno do
Sul dos EUA
Joo Soren
John Landers
Conveno
Brasileira
Roberto do
Amaral Silva
Edgar Young
Mullins
Quadro no. 2: Comparao das listas de princpios batistas referente centralidade
do indivduo. (Fonte do autor).
Conforme o quadro acima, o princpio que se encontra em todas as listas o da
liberdade religiosa e de conscincia. A questo da responsabilidade individual diante
de Deus s no aparece, de forma explcita, nas listas de Torbet e de Soren. No
265
266
112
obstante, todos esses dados indicam o quo importante para o pensamento batista a
centralidade do indivduo. Langston observou:
O princpio por excelncia em que se aprofundam a vida e o pensamento
batista o princpio do individualismo. Toda a sua vida e todo o seu
pensamento advm deste princpio. [...] O individualismo [...] quer dizer
liberdade, competncia e responsabilidade do indivduo em todas as
relaes da vida. [...] O homem um soberano dentro dos limites da sua
prpria alma. Esta soberania define o termo liberdade. [...] No centro
mais ntimo do eu somente o homem domina. [...] Liberdade o reinado
do homem dentro da prpria alma. a soberania do homem dentro do
centro dos centros da sua personalidade. 267
267
113
O discurso batista fundamentado em seus princpios, que ordena as suas prticas
pastorais, o modelo ideal para o mundo moderno. No entanto, como muitas vezes
ocorre em qualquer sistema poltico ou religioso, a teoria se distancia da prtica.
Por exemplo, Reis Pereira demonstrou aparente contradio, quando se
manifestou, em seu editorial em O Jornal Batista, sobre o caso do afastamento de um
professor de religio da Universidade batista de Richmond, nos Estados Unidos:
No h nenhuma liberdade absoluta. A liberdade pessoal de um cidado
condicionada pelos seus deveres ou pela liberdade dos demais
cidados. No caso especfico de um professor de instituio batista ele
est condicionado s doutrinas e princpios professados pela instituio
que o contratou e lhe paga salrio. Se seus pontos de vista so contrrios
quilo que a instituio professa e ele deseja manifestar tais pontos de
vista em voz alta, deve, primeiro, renunciar s suas funes para nesse
particular gozar da liberdade ampla que deseja. 270
270
PEREIRA, J. dos Reis. Sobre liberdade de ctedra. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 12 fev. 1978,
p. 3.
114
se deu o desfecho do debate nos oferece um caso de violncia simblica, de
preconceito de gnero, que fere o axioma eclesistico proposto por Mullins.
Dando continuidade proposta deste captulo, sero apresentados a seguir a
histria da Conveno Brasileira e o lugar das mulheres batistas no interior de sua
estrutura organizacional.
271
272
271
115
Publicadora Batista e pelo O Jornal Batista. Entzminger argumentou que as
dificuldades de transporte no Brasil daquela poca tornavam inviveis quaisquer
reunies nacionais que exigissem grandes deslocamentos. Mesquita afirmava que,
naquele tempo, era mais fcil uma viagem do Rio Frana do que uma de Manaus
Bahia
273
274
116
missionrios
275
Mesmo com essa festejada inovao nos quadros da diretoria daquela Conveno,
observa-se que a mulher eleita s alcanou a vice-presidncia e no o posto primeiro
da liderana da organizao. Situao curiosamente idntica para a segunda
secretria. As mulheres eram (e continuam sendo) vistas mais como coadjuvantes.
Suas funes eram de natureza secundria, de apoio, de assessoramento.
Retornando primeira assemblia da histria da Conveno Brasileira,
observa-se que o esprito missionrio batista se manifestou claramente, quando foram
criadas as primeiras organizaes auxiliares: Junta de Misses Nacionais, com sede
na cidade de Campos, RJ; Junta de Misses Estrangeiras, com sede na cidade de
Recife, PE; e as Juntas de Escolas Dominicais e da Casa Publicadora Batista, no Rio
de Janeiro, que depois seriam fundidas em uma nica organizao, a Junta de Escolas
Dominicais e Mocidade. A direo daquela Conveno projetou tambm a criao da
Unio da Mocidade Batista e uma Junta de Educao e Seminrio. Nos anos 1980,
eram as seguintes Juntas que compunham a Conveno Brasileira: a Junta Executiva,
responsvel pela realizao dos planos e projetos aprovados pelas assemblias
convencionais; a JUERP (Junta de Educao Religiosa e Publicaes), editora oficial
da denominao e responsvel pela publicao de O Jornal Batista; a Junta de
Misses Nacionais; a Junta de Misses Estrangeiras (depois chamada de Junta de
Misses Mundiais); a JURATEL (Junta de Rdio e Te leviso); a Junta de
Beneficncia, voltada para a assistncia social no mbito denominacional; a Junta
275
276
117
Patrimonial Batista; a Junta de Evangelismo e a Junta de Mocidade. As juntas so
rgos que gozam de relativa autonomia e que executam os seus trabalhos no perodo
compreendido entre as assemblias anuais da Conveno Brasileira.
Outras organizaes executivas foram criadas para cooperar com as Juntas da
Conveno Brasileira. preciso destacar que qualquer rgo auxiliar componente da
Conveno Brasileira formado por indivduos, membros das igrejas batistas, eleitos
nas assemblias convencionais, para exercerem suas funes em prazos prdeterminados. Um popular manual de eclesiologia batista ensina:
As organizaes em que as igrejas se fazem representar so constitudas
dos enviados das igrejas, no das prprias igrejas. [...] As organizaes
gerais da Denominao so compostas de indivduos, mensageiros de
igrejas batistas competentes, que nelas se fazem representar. 277
278
277
118
A Conveno um fator de Convergncia e de Unio
279
, declara a
119
opinies das igrejas participantes. Observa-se, em alguns momentos, que a
Conveno, nas decises tomadas em suas assemblias, acaba por determinar os
rumos histricos da denominao batista brasileira.
Na trajetria histrica da Conveno, destacam-se importantes momentos que
tm significados para o tema desta pesquisa:
1909, 3. Conveno no Recife, PE: O Jornal Batista foi adotado como rgo
oficial de comunicao da Conveno Batista Brasileira.
1920, 12. Conveno no Recife, PE: Aprovada a criao de uma Junta para
coordenar o trabalho das senhoras. Solicitao das prprias mulheres batistas,
que desejavam que sua organizao estivesse no mesmo nvel hierrquico que
outras juntas.
120
121
batizou novos crentes, frutos do seu trabalho missionrio. Esse ato foi motivo
de polmicas no meio batista brasileiro.
122
Em segundo lugar, a forma como funcionava o ministrio pastoral batista
brasileiro j denunciava, em 1913, o seu lado desvantajoso e at mesmo cruel. Sem
condies para levantar o seu sustento aps o falecimento de seus maridos, muitas
esposas de pastor enfrentavam grandes dificuldades financeiras. As igrejas
frequentemente contratavam outro pastor aps a morte do titular e acabavam
abandonando a famlia do falecido (em alguns casos houve at o despejo da casa
pastoral). A preocupao com essas vivas desamparadas, manifestada na assemblia
convencional de 1913, serviu de inspirao, anos mais tarde, para a criao da Junta
de Beneficncia.
281
282
283
284
123
em 1980 foi eleita a primeira mulher a ocupar um cargo de vice-presidente na
Conveno Brasileira. H, portanto, possvel relao entre as influncias dos
fenmenos sociais provocados pelos movimentos de libertao da mulher e a
crescente, embora lenta, mudana de mentalidade percebida na Conveno Brasileira
ao longo dos anos 1960-1980.
As alteraes na forma como se organizou o trabalho das mulheres batistas
tambm algo a ser destacado. Primeiro, elas procuraram estabelecer o mesmo
status das juntas para a sua organizao em 1919. Na Conveno de 1922, entretanto,
resolveram retornar ao nvel de rgo executivo, porque julgaram que sua autonomia
havia sido comprometida com o modelo adotado em 1919. Reis Pereira informou:
As Senhoras no apreciaram a experincia de terem seu trabalho dirigido
por uma Junta da Conveno [a Junta Executiva] e solicitaram o retorno
da antiga Unio Missionria, funcionando com certa autonomia. 285
286
Essa
287
De qualquer
modo, o trabalho das mulheres batistas brasileiras foi organizado antes mesmo da
criao da Conveno Batista Brasileira.
Landrum fez uma interessante observao em seu texto sobre a histria do
trabalho das mulheres batistas no Brasil:
No se deu aqui o que na Amrica do Norte se verificou, onde as
senhoras crentes, comeando a se organizarem em sociedades para a
propagao do Evangelho, foram vigiadas pelos pastores e diconos
285
124
apreensivos, a fim de que elas no fizessem alguma coisa
inconveniente. No, os irmos brasileiros, em grande maioria,
apoiaram o trabalho das senhoras de tal maneira que as representantes
das Sociedades de Senhoras foram reconhecidas na primeira Conveno
Batista Brasileira em 1907. 288 [grifo meu].
Essa era a viso de uma mulher americana sobre a atitude dos homens
brasileiros. Aparentemente Landrum tinha razo, pois o Dr. Thomas Paul Simmons,
professor de teologia nos anos 1940 no Tri-State Baptist College em Indiana, Estados
Unidos, representante da ala mais fundamentalista entre os batistas, escreveu o
seguinte sobre o lugar das mulheres na igreja:
Ao falarmos do lugar da mulher na igreja, referimo -nos ao seu lugar no
servio de Deus como membro da igreja; logo, nossa discusso ter que
ver com mais do que a conduta das mulheres nas reunies pblicas da
igreja. Nosso assunto implica uma verdade que precisa de nfase. Essa
verdade que h um lugar para as mulheres na igreja. Algumas vezes
nossa oposio s usurpaes inescritursticas pelas mulheres parece
criar a impresso que a mulher no tem lugar na igreja, o que est longe
de ser verdade. Ela tem um lugar muito importante, e negligenciado
negligenciado porque tantas vezes ela tem estado muitssimo mais
preocupada em tentar tomar o lugar do homem do que ocupar sua
prpria esfera divinamente dada. A glria da mulher achar-se- na
sua prpria esfera. Seu vexame ocorre quando ela sai dessa esfera.
289
[grifo meu].
O lugar da mulher, segundo Simmons, era o seu espao domstico, sua prpria
esfera divinamente dada. Sua atuao no domnio pblico contrariava sua natureza e
era motivo de vexame social. Ainda preocupado com o assunto, o telogo ofereceu
mais restries s mulheres
290
125
5.
6.
As razes por que Simmons ofereceu para justificar essas proibies derivam da sua
interpretao fundamentalista dos escritos considerados ps-paulinos: primeiro, a
prioridade de Ado na Criao, conforme 1 Timteo 3:13, que parece legitimar a
sua chefia da raa, ou seja, a afirmao da hierarquia de gnero. Em segundo lugar,
para justificar sua posio cont ra o ministrio pblico feminino, Simmons considerou
a decepo da mulher na queda, conforme 1 Timteo 2:14. Aqui interessante
transcrever na ntegra o seu entendimento sobre esse tema:
Vide 1 Tim. 2:14. A mulher foi enganada pela serpente a pensar que o
comer do fruto proibido traria benefcio em vez de banimento. O homem
participou do fruto, mas no foi enganado. Ele sabia quais seriam as
conseqncias e, provavelmente, participou do fruto porque preferiu
ser expulso com sua esposa a separar-se dela. A decepo da mulher
na queda mostra a suscetibilidade da mulher para o malogro. Isto no
por causa de qualquer inferioridade geral das mulheres a homens: por
causa de uma diferena de temperamento e natureza. A natureza da
mulher ajusta-a para o lar e para a criao de filhos. Para este fim
ela tem um temperamento muito delicado e uma natureza
fortemente emocional. Assim ela caracteristicamente manejada
mais facilmente que um homem. Sua natureza a dispe para chegar
a concluses pela intuio antes que por cndida considerao.
Todos estes fatos desajustam a mulher para a liderana pblica ou
para o ensino. Se j houve ainda mulher pregadora que tenha
pregado a verdade, mesmo sobre outras coisas do que o lugar das
mulheres, ns nunca o soubemos. 291 [grifos meus].
:
1.
2.
3.
4.
5.
291
292
126
293
Mas a aparente liberdade que julgavam ter as mulheres americ anas e brasileiras em
seu trabalho na denominao era, na verdade, a afirmao dissimulada da misoginia
norte-americana, vez que seu raio de ao estava bem delimitado pelos homens. Reis
Pereira ensinou:
As mulheres, nas igrejas, se renem para orao, praticam a
beneficncia, estudam, promovem reunies de evangelizao ou estudo
bblico nas casas, cuidam das crianas e das moas, para as quais
tambm foram criadas sociedades, eventualmente pregam e se dedicam
a outras atividades, em geral com grande dedicao. 295 [grifo meu].
A pregao seria uma funo eventual, mas no a principal, porque se referia a uma
atividade caracteristicamente masculina, pertencente funo pastoral. Os homens
sempre foram os detentores do poder sagrado de mediao entre indivduos e a
293
127
divindade, atravs do exerccio do ministrio sacerdotal. Pregar era, portanto,
funo sagrada do homem.
Quando descreveu as tarefas das mulheres batistas brasileiras, Reis Pereira
inseriu uma nota com longa citao, ainda a respeito do papel feminino nas igrejas
batistas:
curioso, mas interessante, este elogio feito por Emlio W. Kerr, em
discurso proferido perante a Primeira Conveno Batista LatinoAmericana, em 1930, no Rio de Janeiro: Senhores: por um clculo
pessimista, ouso declarar-vos, neste momento solene, que setenta por
cento de tudo quanto se h feito entre os batistas brasileiros cabe s
senhoras. Estai, porm, apercebidos de que vos previno: por um cmputo
aqum da realidade; porque, atravs do pouco que me compete relatar,
vades ver que as senhoras batistas poderiam debitar-nos por muito mais.
[...] As senhoras! Que fazem elas? As senhoras arregimentam-se,
renem-se em orao, marcam sesses de trabalho administrativo e
manual, contribuem, estudam a Palavra em concerto, evangelizam pelo
mtodo predileto de Jesus o individual; visitam e animam, animam e
constrangem pelo amor que constrange, alimentam os enfermos e
pensam-lhes as feridas, distribuem folhetos, jornais e folhas avulsas,
cumprem risca os trs pontos capitais do programa cristo: em primeiro
lugar trabalham, em segundo trabalham, em terceiro trabalham. 296
O que se percebe que as mulheres estavam destinadas a ofcios que lidavam com o
cuidado maternal e domstico: ensino, apoio e assistncia. Os homens reforava m
isso atravs da elaborao de discursos que procuravam naturalizar padres de
gnero, estabelecendo, com isso, relaes de poder social e sexualmente
hierarquizadas.
As mulheres batistas brasileiras, portanto, eram responsveis pela maior parte
do trabalho poimnico e de evangelizao, mas no lhes eram permitidos acessos aos
lugares privilegiados de poder da Conveno Batista Brasileira. Isso ocorreu pelo
menos at 1975, exatamente o Ano Internacional da Mulher. Naquele ano, pela
primeira vez na histria dos batistas brasileiros, uma mulher, Hayde Suman Gomes,
foi eleita presidente de uma Junta da Conveno, a Junta de Misses Estrangeiras.
297
Nas exposies de Reis Pereira, no havia lugar para uma mulher ocupar o
ministrio pastoral de uma igreja. A propsito, a tentativa de se ordenar pela primeira
vez uma mulher ao ministrio batista passou pelas mos de Reis Pereira.
A histria da tentativa de se consagrar mulheres ao ministrio pastoral batista
comeou com o caso de Edelzita Sales Figueiredo, formada pelo Seminrio do Sul,
296
128
turma de 1975. Esposa do Pastor Fernando Sales Figueiredo, Edelzita seria nomeada
co-pastora de seu marido em Campinas, SP. Antes, porm, ela procurou Reis Pereira,
seu ex-professor do Seminrio, para consult-lo a respeito de sua pretenso de ser
ordenada pastora batista. Reis Pereira publicou em O Jornal Batista como foi esse
encontro com sua ex-aluna:
Poucos dias antes de viajarmos aos Estados Unidos, em Junho ltimo,
fomos procurados por uma brilhante ex-aluna do Seminrio que nos
vinha consultar sobre assunto srio e novo para os batistas brasileiros. A
Igreja de que seu marido pastor, no Rio Grande do Sul, havia
deliberado consagr-la ao ministrio pastoral e ela desejava saber a
opinio de seu antigo professor, visto que nunca antes fora consagrada
alguma mulher ao ministrio, nas Igrejas Batistas brasileiras.
Respondemos com franqueza que nunca havamos estudado o assunto
em profundidade, que conhecamos o problema surgido recentemente
nos Estados Unidos em vrias denominaes evanglicas; que em nossa
viagem iramos procurar investigar o que h por l alm, naturalmente,
de fazer nosso estudo pessoal da Palavra de Deus.
[...] Alis uma das coisas que ponderamos prezada ex-aluna foi a
inconvenincia de sua pretenso justame nte agora que esse
movimento de origens bastante impuras [feminismo] vem
propalando idias que no se apiam na Palavra de Deus e criando,
em muitas reas, problemas e mal-estar. [grifo meu].
[...] a consagrao de uma mulher ao ministrio pastoral por uma igreja
batista brasileira algo de absolutamente novo e inslito em nossa vida
denominacional. Pelo que pudemos observar a idia no aceita pelos
pastores em geral e pelas prprias lderes do trabalho feminino no Brasil.
298
PEREIRA, J. dos Reis. Vamos consagrar mulheres ao ministrio? O Jornal Batista. Rio de Janeiro,
18 jul. 1976, p. 3.
129
A Ordem dos Ministros do Rio de Janeiro, representada pelo seu relator, o Pastor
Nilson do Amaral Fanini, fez publicar uma declarao
301
denominao batista,
PEREIRA, J. dos Reis. Consagrao de mulheres. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15 ago. 1976,
p. 3.
300
DIACOV, Timofei. Pode mulher ser pastora? O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15 ago. 1976, p. 2,
5.
301
ORDEM DOS MINISTROS BATISTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. denominao.
O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15 ago. 1976, p. 5.
302
SANCHES, Jlio Oliveira. Pastora: qual o perigo? O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 15 ago. 1976,
p. 4.
130
preconceitos revelados em interpretaes fundamentalistas da Bblia e em
entendimentos essencialistas sobre a constituio feminina.
303
de Oliveira voltou a publicar artigos no O Jornal Batista reafirmando sua tese sobre
o marco inicial do trabalho batista.
No ms de Setembro de 1976, foram publicados quatro artigos sobre a
ordenao de mulheres. O primeiro, do Pastor Jos Ednaldo Cavalcanti, apelou para
o testemunho perante os catlicos:
Quanto ao lado social, como seria vista, pelos catlicos, que apesar de
adorarem a Virgem Maria, sempre colocaram a mulher em posio muito
abaixo do esperado, uma mulher-pastor? Eles no se importam?
Importam sim, pois [sic] eles que ns precisamos ganhar, sem
escndalos, mas com a mensagem de salvao em Jesus Cristo. 304
305
que
131
E esto mudando para pior. Os homens querem ficar nos bancos das Igrejas e as
mulheres querem subir ao plpito!.
307
308
307
MELO, Silas. A posio do homem e da mulher no universo. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26
set. 1976, p. 2, 7.
308
S, Joo Batista Martins de. As mulheres foram preeminentes nas igrejas do primeiro sculo. O
Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3 out. 1976, p. 5, 7.
309
FERREIRA, Joo Gomes. Pastora? O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 30 out. 1976, p. 4.
310
BERTRAND, Haroldo Wilson. Se minha me fosse pastora O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 14
nov. 1976, p. 5.
311
MARINHO, Ruth Willik. Pastoras? O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 28 nov. 1976, p. 4.
132
O texto de Marinho revela a introjeo dos valores do domnio patriarcal sobre o
papel da mulher nos lugares de poder. Outras mulheres, como Glucia Curvacho
Peticov, preferiam entender que tinham um ministrio pastoral, a partir do seu
papel de esposas de pastores.
312
PETICOV, Glucia Curvacho. Pastora sem s-lo! O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 30 jan. 1977,
p. 1.
313
AMARAL, thon vila. BARBOSA, Celso Alosio Santos. O livro de ouro da CBB. p. 118.
133
Batistas Atravs do Mundo, 314 o prprio O Jornal Batista informou, em 1978, que a
Unio Batista da Gr Bretanha e Irlanda em assemblia de Maio, realizada em
Londres, empossou a senhora Neil Alexander como presidente daquela entidade.
Outra situao, divulgada em 1978, desta vez envolvendo uma missionria brasileira
na frica, pediu providncias da liderana brasileira, que incomodaram os setores
mais conservadores da Conveno. Sem a assistncia espiritual masculina, por conta
da distncia e da falta de recursos humanos e materiais, a primeira missionria batista
brasileira para a frica, Valnice Milhomens Coelho, amparada por Deus e com
ordem da Igreja, Valnice, a missionria, realizou 6 batismos no Dondo, onde mais
de 6 preparavam-se para tambm ser batizados
315
nota, vez que o batismo era um rito que s poderia ser executado por pastores e
Valnice foi autorizada a ministr- los pela Conveno Brasileira.
parte da contradio do caso Valnice e do que estava ocorrendo em outros
pases, Reis Pereira publicou seu relatrio de participao da 12 Assemblia Anual
da Conveno do Sul em Atlanta, Gergia, 13-15 Junho 1978, o seguinte:
Uma senhora, cuja posio a respeito do papel da mulher crist bem
conhecida, props a realizao de um plebiscito entre os mensageiros
para ver se eles favoreciam a consagrao de mulheres. A proposta ficou,
entretanto, sobre a mesa, aps vinte minutos de discusso. Nessa
discusso uma outra senhora apresentou um argumento a favor da
consagrao de mulheres que o nico argumento vlido que at
agora encontramos. Citou Mateus 28:19 argumentando que esse
texto no estabelecia discriminao. No estabelece mesmo mas deve
ser comparado com outros textos se se quer aproveit-lo para defender a
consagrao de mulheres. 316 [grifo meu].
Reis Pereira reconheceu que o argumento bblico era forte e favorecia a consagrao
feminina. Mas fez questo de destacar que o texto precisava ser considerado luz de
todo o contexto das escrituras. Na edio seguinte, ainda tratando daquela assemblia
da Conveno do Sul, Reis Pereira escreveu:
Como sempre acontece houve na Conveno convidados especiais que
apresentaram mensagens notveis. Entre esses estava Ruth Graham,
esposa de Billy Graham. Ela falou justamente na ltima sesso da
Conveno enquanto seu ilustre marido realizava uma Cruzada em
Toronto, Canad. interessante sua opinio sobre a consagrao de
mulheres ao ministrio: Se Deus tivesse em mente a consagrao de
314
134
mulheres um dos apstolos teria sido uma mulher. Declarou que
pessoalmente prefere ouvir um homem pregar embora conhea mulheres
que so boas pregadoras. Na sua opinio as mulheres so melhores para
acompanhar que para liderar. Nosso ministrio, disse ela, ajudar,
quer sejamos casadas quer solteiras. 317 [grifo meu].
Embora no tenha ficado muito tempo no exerccio da funo pastoral naquela igreja,
Slvia ainda representa uma transgresso de gnero no mbito do ministrio ordenado
batista.
Amaral e Barbosa informaram que em 2007 existiam na Conveno
Brasileira quase trs dezenas de mulheres consagradas em vrias convenes
estaduais entre as quais mencionamos So Paulo, Rio de Janeiro, Cear, Paran,
Pernambuco e talvez outros.
319
317
PEREIRA, J. dos Reis. Mais notcias da Conveno do Sul. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 16
jul. 1978, p. 3.
318
NOGUEIRA, Slvia. Entrevista concedida a Wagner Duduch. So Paulo. 2000. In: DUDUCH,
Wagner. A educao superior na formao de pastores batistas: um estudo sobre a Faculdade
Teolgica Batista de Campinas. Campinas, SP, 2001. Dissertao de Mestrado. Universidade Estadual
de Campinas, p. 193.
319
AMARAL, Othon Avila. BARBOSA, Celso A. S. Op. cit. p. 119.
135
Podemos ter diaconisas em nossas igrejas? Tal pergunta nos foi
enviada por uma Sociedade Feminina Missionria, solicitando resposta
urgente. A carta revelava at uma certa angstia e mencionava que
determinada pessoa andou por aquela Igreja e disse, peremptoriamente
que as mulheres no tm direito de ser diaconisas. No esse nosso
ponto de vista. Quando veio baila a questo da consagrao de
mulheres ao ministrio pastoral, manifestamos nossa opinio contrria
visto no encontrarmos fundamento bblico para mulheres-pastores. No
se d o mesmo em relao ao diaconato. 320
321
Mais uma vez observa-se um discurso onde prevalecem os valores patriarcais, mas
agora ele reproduzido e elaborado pelas prprias mulheres batistas. Os padres de
gnero, reflexo de um sistema patriarcal e androcntrico introjetado na conscincia
das mulheres, so reproduzidos nesse artigo e sutilmente impostos, e se denunciam
no modelo proposto de uma famlia bem governada, onde a me se responsabiliza
320
321
PEREIRA, J. dos Reis. Diaconisas. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 1 jun. 1980, p. 3.
LUPER, Fanny M. Objetivos da Unio Geral. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 23 jun. 1960, p. 3.
136
pela alimentao, bem-estar do lar e educao dos filhos. Nas organizaes
femininas, as idealizadas tarefas domsticas recebiam uma roupagem eclesistica e
acabavam se tornando uma espcie de extenso de seus prprios lares. Alm disso,
esse trabalho era legitimado no espao pblico de domnio patriarcal da Conveno
Brasileira.
As mulheres organizaram o seu trabalho, em nvel nacional, na 2. Conveno
Brasileira, em 23 de Junho de 1908. Naquela ocasio foi criada a Unio Missionria
das Senhoras Batistas do Brasil, que j contava com 20 sociedades de senhoras e
cinco organizaes de crianas. Poucas mulheres, nenhuma literatura [de apoio],
apenas muito amor a Deus e desejo de servi- lo.
322
Unio Feminina contava com 6.337 organizaes para mulheres, 1.701 para jovens,
3.698 para meninas e adolescentes e 2.948 para crianas, totalizando 300.441
participantes.
323
322
ANDRADE, Elza S. do Valle. Unio Feminina Missionria Batista do Brasil. Viso Missionria.
Rio de Janeiro, no. 2, p. 4, abr./jun. 2008.
323
Id. p. 9.
137
Unio Feminina sempre foi, desde a sua criao, o de promover misses para a
expanso do cristianismo.
A Unio funcionou, de 1926 a 1936, em sala emprestada pela Junta de
Escolas Dominicais e Mocidade no centro da cidade do Rio de Janeiro, RJ. Em 9 de
Junho de 1936, as mulheres ganharam uma sede no prdio da Casa Publicadora
Batista, tambm no Rio de Janeiro, RJ. Com o crescimento do trabalho e a exigncia
de maiores espaos, a Unio conseguiu, em 15 de Outubro de 1976, uma nova sede
na Tijuca, RJ, com apoio e investimento das senhoras batistas do Sul dos Estados
Unidos. O novo prdio recebeu o nome da missionria norte-americana Sophia
Nichols.
Em 1914 foram editadas duas pequenas obras pela ento Unio Geral das
Sociedades de Senhoras, que serviram como um tipo de manual para o trabalho
feminino nas igrejas.
324
324
138
ser sustentada pela venda da sua literatura. 325 Alis, o maior feito nessa rea foi o de
conquistar o privilgio de produzir, imprimir e distribuir sua prpria literatura.
O grande investimento das mulheres na publicao de literatura especfica
revela o seu interesse na formao e capacitao de seus membros e, implicitamente,
o valor que sempre deram educao formal. As mulheres encontravam sua vocao
na educao.
Praticamente desde o princpio, os batistas sentiram a necessidade de uma
melhor educao para seus filhos e especialmente para o ministrio nascente,
observou o historiador batista Vedder.
326
327
, at
porque os meninos eram, desde cedo, convocados para os servios braais. Talvez
seja essa a razo que explica o grande nmero de mulheres de Santa Brbara
envolvidas na obra missionria batista.
328
325
139
O governo deu as mulheres todos os direitos de voto e isso fez crescer
um desejo de uma educao mais completa e melhor para a preparao
das meninas, a fim de cumprirem suas responsabilidades. O cristianismo
evanglico est contribuindo de maneira especial para o melhoramento
do status social das mulheres. A denominao evanglica criou a
primeira classe para meninas. Escolas batistas foram organizadas
especialmente para meninas no Rio e em So Paulo, e a grande maioria
das instituies co-educacionais alcanou jovens mulheres que esto
sendo preparadas para darem suas contribuies para a cultura crist. As
mulheres brasileiras, em sua maioria, so inteligentes, ativas, astutas,
sentimentais , desimpedidas e religiosas. Dando uma oportunidade a elas,
tornam-se eficientes e entusiasmadas em seus trabalhos religiosos. 329
330
Os batistas entenderam que uma das formas para se evangelizar no Brasil era
a criao de colgios e seminrios teolgicos. Com os colgios, alm de cuidar dos
filhos dos crentes e da evangelizao, esperava-se atrair crianas das melhores
famlias da cidade e vencendo os preconceitos de muitas pessoas quanto aos batistas
e ganhando a simpatia do povo em geral.
332
329
140
como as questes do menor, do negro, da mulher, do analfabetismo, da democracia,
bem como as questes polticas [...] ou ainda as de ordem econmica
334
que
335
141
e Mocidade Batista. O nome da Escola foi mudado para Training School. Esse nome
foi mudado, em 1922, para Escola de Trabalhadoras Crists, designao sugerida
pelo socilogo Gilberto Freire,
336
no ano de 1958 que a instituio teve seu nome mais uma vez alterado: foi chamada
de Seminrio de Educadoras Crists SEC. Nesse tempo, Marialva Gonalves foi a
primeira aluna do SEC a se graduar em Educao Religiosa. Em 1994, o seminrio
passou a ser chamado de Seminrio de Educao Crist SEC. De 1918 a 1941, essa
instituio pertenceu Conveno Brasileira.
O SEC fundou, em 1954, a Casa Batista de Amizade. Essa entidade surgiu
para ser um centro cristo de assistncia social e transformou-se numa oportunidade
para inserir as mulheres vocacionadas daquele tempo na dura realidade social
brasileira. Na coluna da Unio Geral de Senhoras no O Jornal Batista foi publicado,
em 1960, o discurso do paraninfo das formandas do SEC, a missionria Margarida
Lemos Gonalves que ilustra a misso social das mulheres batistas 337 :
O Seminrio de Educadoras Crists teve este ano 50 alunas, nos cursos
Pedaggico Religioso e Bacharel em Educao Religiosa e 35 no Curso
para Leigas. O curso que prepara senhoras e moas que saibam pelo
menos ler e escrever para um trabalho mais exc elente na Causa, junto s
prprias igrejas. Alm disto, pude observar o treinamento social e
desprendido das alunas do SEC na Casa da Amizade, sob a direo da
querida missionria Edith Vaughn e nas congregaes localizadas nas
ilhas, zonas de mocambos onde a promiscuidade tremenda e a
depravao atinge nvel inimaginvel... L esto elas testemunhando,
brilhando, ajudando as mes com pequenas lies de higiene e
puericultura, levando a criana, transviados em potencial, a amar a
Jesus e as coisas do cu.
338
336
ANDRADE, Elza S. do Valle. Op. cit. p. 18.No foi possvel confirmar tal informao. O Dr.
David Mein registrou que o nome foi sugerido pelo Dr. Alfredo Freyre. Cf. MEIN, David. Esboo
histrico do Seminrio Teolgico Batista do Norte do Brasil. Recife: STBNB, 1977, p. 17.
337
GONALVES, Margarida Lemos. Bom estarmos aqui. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 21 jan.
1960, p. 3.
338
ANDRADE, Elza S. do Valle. Op. cit. p. 21.
142
Batistas. A Junta do Colgio Batista e Seminrio decidiu naquele ano fundar um
internato para o sexo feminino. A Escola Teolgica de Obreiras foi criada em 1922,
cuja meta era a preparao de mulheres para os trabalhos das igrejas. At 1941, a
direo dessa escola pertencia Conveno Brasileira. A partir daquele ano, a
liderana denominacional resolveu entregar a administrao da instituio para a
ento Unio Geral. A Escola Teolgica de Obreiras tornou-se Instituto de
Treinamento Cristo para Moas ITCM. Em 7 de Dezembro de 1965, nova
alterao no nome da instituio: agora era o Instituto Batista de Educao Religiosa
IBER. O IBER se desenvolveu e ampliou sua s instalaes. Em 5 de Agosto de
2002, em parceria com a Unio Feminina Missionria Batista do Brasil, as Juntas de
Misses Mundiais e Misses Nacionais da Conveno Brasileira, a Unio Batista
Evanglica e a International Mission Board, o IBER se tornou o Centro Integrado de
Educao e Misses CIEM.
Embora a educao religiosa possa ser um significativo instrumento para a
emancipao da mulher, os seminrios femininos, entretanto, reproduziram os
tradicionais valores patriarcais, mantendo a assimetria de gnero. Se no, vejamos: a
reportagem sobre a formatura do Instituto de Treinamento Cristo para Moas no Rio
de Janeiro, ocorrida em Novembro de 1959 e publicada em 1960 em O Jornal
Batista 339 , traz:
Um desafio para a tarefa: Discurso do paraninfo, Dr. Carl Lester Bell,
proferido na solenidade de colao de grau das formandas de 1959 pelo
Instituto de Treinamento Cristo para Moas Rio de Janeiro.
Passaram-se os trs anos de treinamento e agora estais para entrar no
combate, assumindo definitivamente, o cargo que vos compete na obra
de Deus. [...]
Estando vs, portanto, no comeo da vocao espiritual, cabe-nos o
dever de traar em linhas gerais as exigncias do servio, indicando ao
mesmo tempo um desafio para o seu desempenho cabal. [...]
Eis a razo de lanar diante de vs um desafio para a obra, para que no
haja relaxamento, para que no fiqueis confusas nesta hora quando todos
os olhos do Brasil Batista esto fitos em vs. [...]
Na qualidade de obreiras, essa fase do desafio social deve encontrar uma
resposta imediata e positiva dentro dos vossos coraes. Sereis as
esposas de pastores, sereis as mes de futuros vocacionados, sereis as
professoras de crianas, sereis as enfermeiras de doentes, tendo assim
um contato constante com a humanidade. [...]
Minhas jovens, a cruz de Cristo constitui o maior desafio para a vossa
tarefa. Esses elementos de motivao devem ser evidentes em vossa
vocao. Como Jesus foi enviado pelo Pai, Ele vos envia a vs.
Somente aquele que toma a sua cruz digno de ser chamado um
discpulo do Mestre. Como vocacionadas, deveis tomar o clice que
339
143
Jesus tomou, deveis receber o batismo com que o Senhor foi
batizado. [...]
Que este desafio vos leve no caminho que tendes a trilhar para que
possais comportar-vos como obreiras, verdadeiramente vocacionadas,
seguindo as melhores tradies do Instituto de Treinamento Cristo para
Moas! [grifos meus].
O discurso acima oferece vrios elementos para uma anlise de gnero. Em primeiro
lugar, a frase todos os olhos do Brasil Batista esto fitos em vs revela o alcance,
em termos ideolgicos, daquela formatura. Nesses termos, a publicao desse
discurso do Dr. Bell pelo O Jornal Batista cumpriu, assim, o seu papel ideolgico,
marcadamente patriarcal e androcntrico. No que diz respeito ao discurso do Dr.
Bell, encontramos momentos em que a vocao das formandas, aparentemente, tem o
mesmo valor e considerao que a vocao ministerial masculina, principalmente
quando ele relaciona a concluso do curso com a tarefa missionria de Jesus, que foi
enviado pelo Deus Pai. Assumiriam as formandas o ministrio pastoral? A liderana
de alguma igreja batista? Paradoxalmente, Bell identifica o tipo de tarefa que as
formandas sero desafiadas a enfrentar: a tarefa de ser esposa [de pastor], de ser me
[de futuros vocacionados], de ser professora de crianas e de ser enfermeira. O
discurso eloqente de Bell acabou devolvendo as formandas para o espao
domstico, lugar onde essas mulheres j estavam inscritas h muito tempo. Trs anos
de treinamento para realizarem aquilo para o qual sempre foram ensinadas a fazer em
suas casas. A diferena, no caso, que estavam recebendo um ttulo acadmico para
essa tarefa.
Na verdade, todos os trabalhos das organizaes femininas, no contexto da
Conveno Batista Brasileira dos anos 1960, eram apenas extenses dos trabalhos
que as mulheres j realizavam em seu espao domstico, privado. Isso no quer dizer
que as mulheres no tivessem oportunidades no campo missionrio. Osvaldo Ronis,
ao comentar essa formatura em O Jornal Batista, observou:
O paraninfo, Dr. Lester C. Bell [sic], com maestria e piedade exortou as
suas paraninfadas fidelidade e consagrao quele que as chamou. Na
entrega dos Diplomas, aps a chamada do nome, ouvimos da Diretora
frases como estas: ... vai para Misses Estrangeiras; ... apresentou-se
Junta de Misses Nacionais; ... vai ser esposa de pastor em tal
Estado; ... vai trabalhar com tal instituio da Denominao. 340 [grifo
meu].
340
RONIS, Osvaldo. ITC Formatura da Turma do 1. Decnio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 7
jan. 1960, p. 5.
144
A reao das 25 formandas do Instituto (a maior turma desde 1949) ao discurso do
paraninfo foi enigmtica, no mnimo, curiosa: Agradou sobremodo a palavra do
paraninfo. Foi preciso e feliz na sua orao
341
formandas. Apenas duas frases curtas, que podem indicar tanto a submisso e
assentimento como at mesmo uma crtica velada. Observa-se que, embora as
mulheres pudessem trabalhar com certa autonomia no campo missionrio, o ser
esposa de pastor estava no mesmo nvel (talvez at mais considerado) do ser
missionria ou funcionria de uma instituio da Conveno.
O papel estereotipado de esposa de pastor batista era caracterizado pela
submisso ao marido, pela conscincia de ser sua ajudadora, pela demonstrao de
um esprito dcil e por sua competncia nas responsabilidades inerentes ao seu
espao domstico. Isso pode ser exemplificado pelo seguinte artigo:
[...] Pretendo, porm, falar da esposa de um pastor tendo em vista a sua
grande responsabilidade diante do rebanho do qual seu marido pastor.
[...] A esposa de um pastor deve ter sempre constante em sua mente e em
seu corao o fato de que seu marido um homem especialmente
chamado para encaminhar ovelhas nos trilhos do evangelho. No h,
talvez, mulher mais olhada, mais espiada no seio de uma igreja do que a
esposa do pas tor. [...] A Esposa do Pastor deve ser caridosa e meiga para
com ele. Caridosa e meiga, tratando-o sempre com amor e respeito, sem
quebra, porm, dos seus princpios de conscincia. Se for necessrio
discordar de seu marido, discorde: sempre, porm, com o maior respeito,
a maior lisura, lembrando que assim como a Igreja est sujeita a Cristo,
assim tambm as mulheres o sejam em tudo a seus maridos, Efsios
5:24. [...] Eu quero, para minha prpria direo e felicidade, uma esposa
que seja realmente minha ajudadora: meiga, amiga, delicada em tratar
comigo, paciente e caridosa quando eu errar. [...] A Esposa carinhosa,
prudente, firme, boa me, boa dona de casa, uma anjo de luz no seio da
Igreja entre o Esposo e a Igreja. 342
343
145
3) Que conselhos a senhora daria a uma futura esposa de Pastor?
R. Preparar-se moral, espiritual e intelectualmente para ser boa
esposa, boa me, boa dona-de-casa e boa crente. [grifo meu].
4) Quais so os principais requisitos desejveis para uma esposa de
Pastor?
R. Gostar de ser esposa de Pastor, amar o marido, amar a igreja ou o
trabalho do marido e estar pronta a servir ao Senhor, com o marido, em
qualquer circunstncia ou lugar.
5) Quais so os seus pontos fortes como esposa de Pastor?
R. Sentir que Deus me chamou para isso.
6) Quais so os seus pontos fracos como esposa de Pastor?
R. Como precisei trabalhar fora, no pude dar toda a ateno e
carinho que devia ao meu marido e a meus filhos. Pelo mesmo
motivo, negligenciei muito o nosso culto domstico e orao
particular com o marido e os filhos. [grifo meu].
7) Como a senhora acha que uma esposa de Pastor pode crescer em
maturidade crist?
R. Orando, estudando, servindo e amando.
8) Que acha da famlia do Pastor com muitos filhos?
R. Acho que para qualquer famlia trs ou quatro filhos ideal.
9) Qual a parte da esposa do Pastor com relao s finanas do lar?
R. Ela deve ser controlada, econmica, modesta. No fazer dvidas, nem
ambicionar coisas altas.
10) Qual o seu maior problema domingo de manh antes de ir Igreja?
R. Para no haver problemas, deve deixar tudo que puder preparado de
vspera. Almoo meio pronto, roupa preparada e levantar a tempo de
poder atender as necessidades do lar antes de sair para a Igreja. No ficar
nervosa e agitada a fim de no prejudicar o dia de trabalho do seu
esposo, o seu e de seus filhos. Para encerrar, devo dizer que no h
regras fixas, para ser uma boa esposa de Pastor. O importante depender
do Senhor, busc-lo em qualquer circunstncia, pedir a sua ajuda e
orientao. Leia Isaas 41:9-10 e 13 que tem me ajudado muito.
146
de pastor que tem a bela e nobre virtude da modstia. [...] Sem nenhum
alarde, ela muito tem contribudo para a causa de Cristo. No final do
ano passado ela ofertara JUERP, sem nenhuma vantagem financeira
em favor pessoal, a traduo acabada do livro FELICIDADE SEXUAL
NO CASAMENTO, de autoria de Herbert J. Miles. [...] [Ela] exemplo
de esposa de Pastor para os nossos dias. 344 [grifos meus].
344
OBREIRA SERGIPANA TRADUZ LIVRO. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 18 ago. 1985, p. 7.
DUSILEK, Nancy Gonalves. Mulher sem nome: dilemas e alternativas da esposa de pastor. So
Paulo: Editora Vida, 1995, p. 10.
345
147
Depois de se considerar a organizao e o papel das mulheres batistas dentro
da estrutura da Conveno Brasileira, sero examinados o papel e a importncia da
editora oficial dos batistas: a Casa Publicadora Batista (atualmente Junta de
Educao Religiosa e Publicaes JUERP). Trata-se, como ser demonstrado, de
um instrumento poderoso para a re-produo ideolgica dos batistas.
346
a seguinte:
Tradues:
Autor
Ttulo
Ano
E. Y. Mullins
Os axiomas da religio
1908
E. C. Dargan
Doutrinas de nossa f
1911
T. B. Maston
Certo ou errado
1958
346
148
H. Hobbs
Fundamentos de nossa f
1960
A. B. Langston
O princpio do individualismo
1933
A. B. Langston
1927
W. C. Taylor
Doutrinas
1952
J. Landers
1986
Missionrios:
Brasileiros:
Revista
Pontos Salientes
1990-1994
Jornal
O Jornal Batista
1901-1964
Delcyr S. Lima
Doutrinas batistas
1992
1886
Princpios batistas
1964
1986
Documentos:
Confisso
Confisso
347
348
Percebendo
os seus talentos, Taylor abriu espao para Archimnia escrever artigos anticatlicos
em seu jornal missionrio. Uma srie desses artigos foi transformada no livro
Mitologia Dupla, obra que foi respeitada pelos batistas por muitos anos (a ltima
edio, publicada pela Casa Publicadora Batista, foi de 1971). Archimnia tambm
347
149
foi pregadora do Evangelho e um de seus sermes levou Francisco Jos da Silva a se
converter f batista. Posteriormente, Francisco foi conhecido como o apstolo do
Estado do Esprito Santo.
349
350
obra de Archimnia foi relegada a um segundo plano, at ser esquecida, para dar
lugar aos livros do ex-padre Anbal Pereira Reis (1942-1987), que tambm escreveu
contra o catolicismo. O sucesso do ex-padre foi tamanho, que posteriormente pde
criar uma editora prpria para as suas obras, a Caminho de Damasco.
O caso de Archimnia Barreto, no entanto, foi uma exceo. Geralmente, as
mulheres no se aventuravam nos campos de saberes marcadamente masculinos. O
quadro abaixo, que oferece as publicaes da JUERP nos anos 1960-1980, pode
demonstrar essa demarcao de gnero:
reas de
Conhecimento
Ttulos
Autores
Autoras
Teologia
Sistemtica
Teologia Pastoral
14
14
19
19
Teologia Bblica
24
24
Introduo Bblica
16
16
Histria
Eclesiologia
13
13
Aconselhamento
38
27
11
Apolog tica
Evangelismo e
Misses
Educao
Religiosa
Entretenimento
14
14
25
13
12
32
16
16
Msica Sacra
Vida Crist
43
38
Metodologia
Cientfica
Totais
261
217
44
349
350
150
Tabela no. 1: as publicaes da JUERP entre os anos 1968-1987 (incluindo as
reedies). Fonte: Fundao Biblioteca Nacional Catlogos Online. 351
Do quadro das publicaes da JUERP acima,
352
autoria feminina nas reas de Entretenimento (16 obras), Educao Religiosa (12) e
Aconselhamento (11). H apenas 5 publicaes na rea de Vida Crist e nenhuma
obra nas reas de Teologia, Bibliologia, Histria, Eclesiologia, Apologtica,
Evangelismo e Misses, Metodologia Cientfica e Msica Sacra. Alm dos nmeros
apresentados e suas implicaes, o que causa espcie nesse levantamento no haver
obra de autoria feminina na rea de Msica Sacra, vez que sempre se tratou de rea
de domnio das mulheres no meio batista.
Quanto predominncia das mulheres autoras nas reas destacadas pela
pesquisa, nota-se que suas obras trabalharam aquilo que , na verdade, uma extenso
das atividades que as mulheres tradicionalmente tm exercido no mbito do seu
espao domstico. Se no, vejamos:
1) Entretenimento: so obras que trabalham o ldico em famlia, ou so
histrias infantis. Dentre outros, temos como exemplos os textos de: Maria Luiza de
Arajo, O Dirio de um Cordeirinho, de 1987; F. Irene Bleck, O Sapo Bolota e a
Borboleta Azul, de 1986; Elvira Moraes Lustosa, Mariazinha vai Igreja, de 1987;
Cludia Franca, Histrias da Tia Cludia, de 1985; Ana Maria Andrade da Cruz,
Exerccios Bblicos para voc e sua Igreja, com duas edies (1983 e 1984).
2) Educao Religiosa: so textos voltados para as tcnicas de ensino
religioso, que so utilizados nos departamentos de treinamento das igrejas batistas
(Escola Bblica Dominical, Unio Masculina, Unio Feminina, Jovens, Adolescentes
e Departamento Infantil). O livro mais conhecido desse perodo o de Cathryn
Smith, Manual da Escola Bblica Dominical, com duas edies (1984 e 1986). Mas
h outros textos: Nona Renfrow, Programa de ensino para o Departamento da
Infncia Escola Bblica Dominical, com duas edies (1982 e 1984); Ina S.
Lambdin, A Arte de Ensinar Adolescentes (1982) e o Manual da Unio Feminina
351
151
Missionria Batista do Brasil, elaborado pela Unio Feminina Missionria Batista do
Brasil da Conveno Batista Brasileira em 1977.
3)
Aconselhamento:
apesar
de
ser
rea
de
domnio
masculino,
152
quanto te vier mo para fazer, faze-o conforme as tuas foras. Em
linguagem simples foi feita uma narrativa. 353 [grifos meus].
354
Archimnia
356
poca.
Retornando ao livro de Ruth Mathews, um exame rpido do texto revela
dados interessantes para as questes de gnero. Mathews destacou, quase no fim do
seu trabalho, o papel da esposa do missionrio homenageado, a senhora Artie
Bratcher, a torre de fortaleza de seu marido:
D. Artie Bratcher uma herona de f, o segredo do sucesso de seu
esposo como escreveu algum. A sua participao, embora na
penumbra, nas realizaes de Dr. Bratcher a fazem merecedora da
gratido e do mais terno amor dos batistas brasileiros. 357 [grifo meu].
Embora na penumbra, frase que revela o esperado lugar da mulher batista, esposa
de pastor e missionrio, no contexto da Conveno Brasileira. Seu texto no
encontrou dificuldades para ser publicado pelos rgos oficiais da Conveno
Brasileira: a Casa Publicadora Batista e a Junta de Misses Nacionais.
353
153
Desse modo, demonstra-se que a editora oficial da Conveno Brasileira e O
Jornal Batista contriburam significativamente para promover, no s a coeso
ideolgica e doutrinria dos batistas brasileiros, mas tambm a re-produo dos
valores patriarcais. Nesse sentido, as estratgias para doutrinar o povo batista eram
bem articuladas pelos dois rgos denominacionais.
A editora e O Jornal Batista trabalharam em parceria no sentido de divulgar
as obras que estavam de acordo com a ideologia da denominao. Por exemplo, na
primeira pgina de O Jornal Batista de 24 de Junho de 1979,
358
359
154
algumas obras publicadas pela JUERP pode demonstrar como os autores batistas
contriburam para a afirmao e o reforo das identidades de gnero nos anos 19601980.
O primeiro livro a ser considerado o de Cecil Osborne,
360
A Arte de
Compreender o Seu Cnjuge, cuja primeira edio na lngua portuguesa foi de 1984
(a 6. edio, de 1988, contou com uma tiragem de 3.000 exemplares e trata-se de
livro esgotado). Sua proposta foi a de conhecer e compreender os papis do homem e
da mulher dentro do casamento, a partir de uma perspectiva bblica. Alguns pontos
importantes de suas consideraes:
Sobre diferenas entre o homem e a mulher:
Os homens, mais que as mulheres, tendem a aproveitar as oportunidades
e a correr os riscos e a assumir a responsabilidade. As mulheres no so
incapazes de tomar a liderana, mas quando o fazem em qualquer grau,
porque lhes foi imposta pelas circunstncias ou adquiriram alguns dos
traos masculinos, por assim dizer. 361 [grifo meu].
Osborne entendia que a liderana era algo que pertencia naturalmente aos homens.
Se mulheres estivessem exercendo liderana, dentro do lar ou fora dela, isso se
constituiria numa transgresso de papis sexuais. O autor afirma tais papis, a partir,
aparentemente, de uma viso essencialista:
As diferenas dos sexos so vistas muito cedo nos meninos e meninas.
Os meninos constroem, exploram, realizam jogos agressivos, brigam,
cavam, trepam e desafiam uns aos outros a tentarem feitos perigosos. As
meninas podem ocupar-se nas mesmas atividades, e podem sentir-se
rejeitadas se no lhes permitirem a participao, mas em geral suas
atividades so menos agressivas. Elas comeam bem cedo a brincar de
cozinha e ter nens. Os interesses do menino centralizam-se
primariamente na ao, enquanto os interesses da menina se voltam
mais para o suprimento. 362 [grifo meu].
McCommon, Paul. A msica na Bblia. Trad. de Paulo de Tarso P. da Cunha. Rio de Janeiro: JUERP,
1995. PERRUCI, Gamaliel. Msica, sempre msica: para uso nos cursos de msica dos seminrios,
faculdades teolgicas, institutos bblicos, etc. Rio de Janeiro: JUERP, 1982). Isso, porm, no
pertence ao objeto desta pesquisa.
360
Osborne escreveu outro best seller entre os batistas: A arte de compreender-se a si mesmo, obra
tambm esgotada. (OSBORNE, Cecil. A arte de compreender-se a si mesmo. Trad. Joo Barbosa
Batista. 5. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1987).
361
OSBORNE, Cecil. A arte de compreender o seu cnjuge. Trad. Joo Barbosa Batista. 6. ed. Rio de
Janeiro: JUERP, 1988, p. 35.
362
Id. p. 37.
155
oriundos da religio ou no. Sobre as diferenas esperadas dos papis de gnero pelo
domnio patriarcal, ele escreveu:
A maioria dos homens sente, em graus variados, a necessidade de vencer
e realizar. Quer esteja o homem subindo a escada do sucesso em
algum campo escolhido, escalando uma montanha ou conquistando
uma mulher, o instinto vencer. A mulher, por outro lado,
possuindo menos do instinto de vencer, quer ser vencida com
gentileza e fora. [...] Excees, claro, so as mulheres dominantes
demais e os homens demasiadamente passivos, que tendem a inverter os
papis. 363 [grifo meu].
365
156
as crianas altamente inteligentes se preocupam mais cedo com
problemas de explicao dos enigmas do universo. Consequentemente,
tais crianas dotadas de alto nvel de inteligncia convertem-se mais
cedo. 366
As meninas da pesquisa citada por Osborne se convertiam mais cedo que os meninos
e, portanto, segundo seu parecer, deviam ser mais inteligentes que os rapazes.
Obviamente, Osborne no concluiu assim, mas sua citao oferece problemas sobre
suas consideraes anteriores.
No que diz respeito sensibilidade a crticas, Osborne ensinou que homens e
mulheres reagem de formas diferentes:
Os homens e as mulheres so vulnerveis crtica em pontos diferentes.
Em geral, pode-se dizer que a mulher especialmente vulnervel nas
esferas pertencentes ao seu papel feminino conseguir um marido,
criar os filhos e manter sua aparncia fsica. [...] Mas os homens
tambm so vulnerveis em reas tais como sua capacidade de ganhar a
vida (permanecer em um emprego, obter sucesso), na rea do
desempenho sexual, e em qualquer outra que desafiar sua imagem
masculina. Obviamente, tal vulnerabilidade varia de pessoa para pessoa,
mas, em certo sentido, qualquer homem normal sensvel crtica
quando desafiado ou criticado nestes pontos. A esposa pode efeminar o
homem, expondo-o ao ridculo ou o repreendendo, criticando, ou
desafiando. 367 [grifos meus].
368
ROSA, Merval. Psicologia da religio. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1979, p.
138.
367
OSBORNE, Cecil. Op. cit. p. 41.
368
Id. p. 64-65.
157
verdadeiramente feminina aceita a si mesma como mulher e como
pessoa. Ela madura emocionalmente o suficiente para no
necessitar de ser dominadora ou agressiva, possuindo auto-respeito
suficiente para estar segura de si mesma. Tal mulher no est impondo
a si nem a sua feminilidade. Ela no nem acanhadamente reticente,
nem agressivamente feminina. Como certo homem disse: Quando se
est com uma mulher assim, a gente se sente homem . 369 [grifos
meus].
Com essa descrio, ficou muito claro qual o lugar da mulher no casamento e
consequentemente na igreja e na sociedade. Uma mulher que compete com o
homem, que manifesta caractersticas tidas como masculinas (domnio, agresso) no
o tipo aceitvel pelos homens. A feminilidade se demonstra, conforme Osborne, em
comportamentos submissos ao homem. Sobre a inteligncia da mulher:
Contrrio opinio to frequentemente expressa por muitas mulheres
bem instrudas, os homens no tm ressentimento contra as mulheres
inteligentes. da mulher agressiva e competitiva que os homens se
ressentem. Infelizmente a maioria das mulheres agressivamente
competitivas com os homens vive totalmente desapercebida deste seu
trao inconsciente. Se a mulher usar sua inteligncia para expor o
homem ao ridculo, mostrar -lhe onde est errado, venc-lo numa
discusso, ele poder procurar outra companhia mais segura e
confortadora. Do mesmo modo que a mulher gosta de estar perto do
homem que a faz sentir-se mais mulher, os homens gostam da
presena das mulheres que os fazem sentir-se mais homens. 370
[grifos meus].
Observa-se que nessa anlise de Osborne podem-se encontrar as razes que explicam
as reaes masculinas ao debate sobre o marco inicial batista: uma mulher inteligente
(Betty de Oliveira), mas agressiva e competitiva, ameaa expor o homem (Pastor
Reis Pereira e outros) ao ridculo, mostrando- lhe onde est errado em sua tese.
Punio: o desprezo. Ainda sobre a competividade da mulher, Osborne considerou:
Lemos em Gnesis que Deus, tendo criado Ado, fez-lhe uma adjutora
adequada. No ntimo, a mulher verdadeiramente feminina quer ser
uma adjutora, no o patro igual em todas as coisas, ainda assim
consciente em que pontos suas capacidades so mais necessitadas e
valorizadas. H ocasies na vida de toda mulher, quando ela se sente
insegura e incerta de si mesma. Tendo sido relegada a um papel inferior
por milhares de anos, de repente ela se emancipa. Ao lutar pela
igualdade, a mulher mais agressiva resolveu provar ser igual a qualquer
homem. Geralmente, em um nvel inconsciente, ela possua algum
sentimento de competio e sentia a necessidade de provar que no era
inferior. Ao lutar para provar seu ponto de vista, ela muitas vezes
adotou traos e sentimentos masculinos. A mulher masculinizada
ridcula e no atraente, assim como o homem efeminado. Muitas
369
370
158
vezes isto se deu porque ela no sabia como cumprir seu papel de
mulher. 371
371
159
Outro livro bem aceito na rea de aconselhamento conjugal 35 sugestes
para melhorar seu casamento, cuja primeira edio foi em 1985. No captulo
Escolhendo liderar escrito por Jack Mayhall, est assim:
[...] Qualquer coisa de duas cabeas um equvoco da natureza e
considerado uma aberrao. E, duas cabeas numa relao no casamento,
no diferente. Deus no est nesse negcio de fabricar monstros. Ele
criou a unio, no casamento, com uma cabea apenas. [...] O marido
deve ser o cabea, o lder de sua esposa. A Bblia afirma que esta deve
ser uma liderana de amor, e amor e autoridade esto entrelaados nesta
passagem. Liderana sem amor geralmente resulta em tirania; mas, no
casamento, o amor sem liderana leva o casal a um romantismo instvel
e imaginrio. 373 [grifo meu].
Essa obra foi escrita a duas mos: Jack e Carole, marido e mulher. As colocaes de
Jack so confirmadas por Carole ao longo de todo o livro. Isso tem significaes
importantes nas questes de gnero para os batistas leitores. Atravs dessa obra, mais
uma vez os valores patriarcais so reproduzidos e ensinados, dando a entender que
esse o modelo perfeito de um casamento cristo.
Outro texto importante, publicado pela JUERP, foi o de Roque Monteiro de
Andrade (1922-1989), que foi considerado por Azevedo como um dos telogos
batistas mais representativos do Brasil:
374
373
MAYHALL, Jack e Carole. 35 sugestes para melhorar seu casamento. Trad. Elda Zambrotti. 2.
ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1989, p. 176, 177.
374
AZEVEDO, Israel Belo de. Op. cit. p. 206-207.
375
ANDRADE, Roque Monteiro de. Inerrncia da Bblia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista,
1974, p. 69-70.
160
pessoa relacionado a um dado papel, ela diminuda quando no
consegue cumpri-lo. 376
6. O JORNAL BATISTA.
O Jornal Batista rgo oficial da Conveno Batista Brasileira, embora
tenha surgido antes daquela entidade. Criado pelo missionrio norte-americano W. E.
Entzminger, O Jornal Batista comeou a circular no dia 10 de Janeiro de 1901, e
sempre foi tido como o porta- voz da denominao batista.
Naquele tempo [1901] no existia ainda a Conveno Batista Brasileira;
no obstante, este jornal passou logo a ser considerado como o portavoz da denominao, tendo substitudo dois outros jornais que tinham
sido publicados antes, de mbito regional, a saber: Nova Vida e As
Boas Novas. 377 [grifo meu].
Amaral e Barbosa
378
peridicos que circulavam no meio batista brasileiro, mas informam que eles eram: O
Echo da Verdade, o primeiro batista brasileiro, criado por Z. C. Taylor em 1886 e As
Boas Novas, de 1894, criado pelo missionrio Salomo L. Ginsburg.
No princpio, O Jornal Batista serviu tambm para publicar as primeiras
lies da Escola Bblica Do minical. Isso se deu em 1903. Mais tarde, com a
376
PETERSEN, J. Allan. Como eliminar o stress na famlia: como agir em tempos de crise. Trad.
Adiel Almeida de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1990, p. 77.
377
GONALVES, Almir dos Santos. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26 jun. 1960, p. 15.
Obviamente, O Jornal Batista no foi o nico peridico cristo daquela poca. Circulavam tambm O
Cathlico, o Expositor Cristo dos metodistas, A Imprensa Evanglica, o Estandarte dos
presbiterianos, dentre outros.
378
AMARAL, thon vila. BARBOSA, Celso Alosio Santos. Op. cit. p. 34.
161
publicao de revistas especializadas para a Escola Dominical, O Jornal Batista se
ocupou com artigos e reportagens, mas foi colocado no mesmo nvel desse tipo de
literatura doutrinria, como observou Reis Pereira:
preciso no esquecer O Jornal Batista. Juntamente com as revistas da
Escola Bblica e das organizaes de treinamento e missionrias, o jornal
uma excelente fonte de informao e instruo para os crentes. A esse
respeito temos recebido inmeros testemunhos. 379
A leitura do jornal era estimulada para ser obrigatria depois da leitura bblica.
Aguilera tambm considera o jornal como fundamental para a compreenso do
pensamento teolgico e ideolgico dos batistas brasileiros. Azevedo, porm, analisou
de maneira distinta:
verdade que, olhando para a produo jornalstica nacional o Jornal
Batista pouco oferece para a histria das idias brasileiras. No entanto,
como este rgo , s vezes, colocado ao lado da Bblia e do Cantor
Cristo como fontes sagradas dos batistas, uma anlise de suas posturas
revelar a estes e destes mesmos fiis um pouco de sua prpria biografia
religiosa. 382
379
PEREIRA, J. Reis. O preparo do crente. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3 fev. 1980, p. 3.
PEREIRA, J. Reis. Histria dos Batistas no Brasil ( 1882-1982). p. 78.
381
AGUILERA, Jos Miguel Mendoza. Apud SANTOS, Marcelo. Op. cit. p. 56.
382
AZEVEDO, Israel Belo de. A palavra marcada: um estudo sobre a teologia poltica dos batistas
brasileiros, de 1901 a 1964, segundo O Jornal Batista. [Dissertao de Mestrado]. Rio de Janeiro:
STBSB, 1983, p. 17.
380
162
Uma obra de inspirao e orientao divina, quase perfeita. Esse comentrio fazia
do O Jornal Batista, um jornal maior que um simples peridico religioso, mas
comparado com os escritos sagrados (a expresso inspirao divina aplica-se aos
autores humanos das Escrituras
384
383
163
387
390
387
164
idias e planos novos que sejam do interesse da Conveno.
meu].
391
[grifo
Reis Pereira negava esse papel deduzido por Aguilera. Embora no seja o objetivo
desta pesquisa provar a hiptese de Aguilera, difcil discordar do pesquisador,
quando se depara com as orientaes assertivas de natureza teolgica e tica do O
Jornal Batista, que influenciaram diretamente os caminhos da histria dos batistas
brasileiros.
Embora os batistas sempre defendessem a separao entre a Igreja e o Estado,
em muitos momentos da histria do jornal houve manifestao na direo de algum
poltico que pudesse favorecer, de algum modo, no s a denominao como a
imagem de O Jornal Batista. Foi o caso de Rui Barbosa, que aparecia em pgina de
honra do jornal em fins dos anos 1910 e tambm, mais recentemente, o Presidente J.
Carter, dos Estados Unidos, quando esteve em visita oficial ao Brasil, recebeu, em
mos, um exemplar da edio de 26 de Maro de 1978, que estampava sua fotografia
na primeira pgina.
392
391
PEREIRA, J. dos Reis. O plenrio que decide. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 13 jan. 1980, p.
3.
392
HOLANDA, Roberto Torres. Presidente Carter recebe O Jornal Batista. O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 7 mai. 1978, p. 5.
393
PEREIRA, J. dos Reis. PROIME, o grande assunto. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 22 jan. 1978,
p. 3.
165
Sua tiragem no tem acompanhado o crescimento numrico dos batistas.
Quando comeou, tiravam 300 exemplares, o que representavam 8,5
batistas por exemplar. Em 1910, chegou a 2.400 (trs batistas por
exemplar). Em 1928, a relao era de 5,7. Em 1940, eram publicados
semanalmente 4.700 (11,1 batistas por cpia). Em 1964, a relao saltou
para 29,3. Em 1981, a tiragem semanal era de 15.711 (28 batistas por
exemplar). Em 1994, sua tiragem mdia era de 12 mil exemplares, numa
relao de 71 batistas por cpia. 394
395
166
O Jornal Batista contribuiu diretamente para a afirmao das identidades e
relaes de gnero, atravs dos artigos aprovados pelo editor responsvel. Por
exemplo, o artigo intitulado Sexo forte e sexo fraco, publicado em 1965, justificou a
desigualdade de gnero na sociedade conjugal, a partir de interpretao de um texto
do Antigo Testamento:
O tema deste artigo no frase bblica, mas sua significao popular
baseia-se na revelao da Bblia. Antes da queda do homem, pela
desobedincia, nada se nota de declarao divina quanto superioridade
entre o homem e a mulher. Depois da queda, porm, achamos revelao
clara sobre o assunto. Falando com Eva, disse o Criador, referindo-se
a Ado ... e ele te dominar (Gnesis 3:16). Talvez por ter sido ela
quem facilitou a palestra com Satans, e se deixou vencer,
convencida. [...] Revelada que foi a fragilidade da mulher, em seu
encontro com o anjo mau, o Criador, em nobre confiana do ser
masculino, o constitui protetor da mulher, no propriamente
superior dela. Esta a significao de sexo forte e sexo fraco. [...]
Considerando-se a fragilidade da mulher e a incalculvel confiana
que o Criador teve no homem, elevando-o posio de protetor,
estudemos melhor a responsabilidade deste como protetor. [...] Em vez
de referir-se mulher como sexo fraco, digamos: ser frgil
(quebradio, melindroso, susceptvel). A mulher um tanto sujeita ou
susceptvel ao excesso de calor emotivo, e nesse estado necessita de
proteo; proteo do prprio elemento que acendeu a chama emotiva,
calor emotivo chamado erroneamente amor, que no passa de uma
sensao carnal. Se o homem no proteger a mulher, evitando a
consumao sensual transforma -se em miservel malfeitor, deixando de
ser nobre protetor. Sexo forte acha base no plano de Deus, na
significao moral, no que o homem foi feito semelhante a Deus. [...] Em
Cristo Jesus temos a restaurao plena do homem; homem na
significao do que Deus criou no princpio. Ele, homem que como um
forte protegeu a humanidade com a salvao feita e oferecida. Ele que
achando a mulher frgil, escravizada pelo sexo cruel, colocou-a na
devida posio de igualdade harmoniosa, ligada ao homem pelo elo do
amor; o mesmo amor que os liga a Deus. 396
396
MACEDO, Jonas B. Sexo forte e sexo fraco. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 3 jan. 1965, p. 2.
167
O discurso patriarcal, porm, no era apenas defendido por homens em O
Jornal Batista. Em 1968, por exemplo, o artigo de Leontina Novais sob o ttulo Ser
mulher e ser feliz Provrbios 31:10 e 30 traz:
397
NOVAIS, Leontina. Ser mulher e ser feliz: Provrbios 31:10 e 30. O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 30 jun. 1968, p. 4.
168
Exemplo disso o artigo do Pastor Edgar Silva Santos, intitulado Esta mulher salvou
sua casa, que tratou das qualidades de Abigail, personagem do Antigo Testamento.
Santos destacou que o significado do nome Ab igail motivo de alegria, o que
indica, de incio, o que o autor esperava de uma mulher que salva sua casa. A seguir,
escreveu que Abigail teve essas virtudes: senso de domesticidade (uma inclinao
para a vida domstica), sabedoria e prudncia, humildade e servio. Sobre humildade
e servio, ele ensinou:
A Bblia prescreve a submisso para a mulher. E essa no , em
absoluto, uma condio despresvel (sic), mas com efeito uma virtude
que se abriga nas almas mais nobres. A humildade se expressa na
dis posio de servir e todo servio ser bem sucedido se desempenhado
com humildade. Nesse ponto devemos seguir a orientao bblica e
no os preceitos de Betty Friedan e suas inflamadas adeptas, nos
quais propem a liberao feminina. Esses movimentos feministas
mais revelam o desespero de quem busca e no encontra porque no
sabe aonde buscar, nem como buscar. Fossem as mulheres exatamente
o que por natureza so e conseguiriam mais. Realizassem, por exemplo,
a obra social de um maior devotamento a seus filhos para que todos
vissem diminurem as cadeias e o problema da delinqncia caminhando
para uma soluo... 398 [grifos meus].
398
SANTOS, Edgar Silva. Esta mulher salvou a sua casa. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 8 jun.
1980, p. 8.
169
7. As Instituies Batistas de Ensino Teolgico: a dominao masculina na
produo do conhecimento teolgico.
399
Trs so os
400
401
399
170
dos seminaristas. A ningum era permitido ingressar no curso teolgico
sem estar matriculado no curso ginasial do Colgio. 403
404
para o seu curso. Porm, em 1917, graas iniciativa da amazonense Josefa da Silva,
foi aberto um novo departamento no Colgio Americano, visando a capacitao de
moas para o trabalho nas igrejas.
Na histria do Seminrio do Norte, no perodo compreendido entre os anos
1902, ano da sua fundao, at 1977, houve 21 diretores (14 efetivos, 7 interinos)
405
406
408
teolgico do Seminrio do Norte. Essa diviso sexual das disciplinas atribua aos
403
171
homens o mais nobre, o mais sinttico, o mais terico e s mulheres o mais analtico,
o mais prtico, o menos prestigioso.
409
Disciplinas
1900-1959
1960-1969
1970-1977
Msica
Ed. Religiosa
Ingls
Servio Social
Jornalismo
Sem especificao
410
409
410
172
Cursos
Mdio
Teologia
Ministrio Msica
Educao Mestrado
Cristo
Sacra
Religiosa
Homens
69
277
1
5
3
25
Mulheres
4
40
39
1
Tabela no. 3: concluintes dos cursos oferecidos pelo Seminrio do Norte entre 1918
a 1977.
Do quadro acima, podemos apontar o que segue:
1. O domnio masculino na formao teolgica e ministerial. Foram 69 homens
formandos no Curso Mdio em Teologia e nenhuma presena feminina (esse
curso era facultativo, mas depois foi nivelado com a graduao, embora
classificado como abreviado).
2. Nos 75 anos de histria do Seminrio, 281 alunos se graduaram em Teologia.
Desses, apenas 4 mulheres. At princpios dos anos 1970, no houve registro
de nomes de mulheres no quadro de concluintes do curso de Teologia. Em
1973, surgem os nomes de Ina Maria Ramos e Maria Betnia Melo de
Arajo. Stella Souza Rocha formou-se em 1974. E em 1977, a formatura de
Evangelina Alves Trindade.
3. As disciplinas feminizadas do Seminrio do Norte atenderam s expectativas
da cultura patriarcal, mas h dados interessantes: em Msica, rea de domnio
feminino, houve 45 formandos, sendo que cinco eram homens; em Educao
Religiosa, dos 42 formandos, trs eram homens.
4. No programa de Mestrado em Teologia, houve 26 formandos e uma nica
mulher: Maria Betnia Melo de Arajo. Ela formou-se em 1976 e tornou-se
a primeira mulher batista brasileira a receber esse ttulo. 411
A partir dos dados da obra de Mein, a participao das mulheres na concluso
dos cursos foi a seguinte:
411
MEIN, David. Op. cit. p. 29. Sua formatura tambm foi publicada. Cf. O SEMINRIO
TEOLGICO BATISTA NO NORTE DO BRASIL: 1902-1977 75 anos de histria. O Jornal
Batista. Rio de Janeiro, 27 mar. 1977, p. 7. O segundo Seminrio Batista, na ordem cronolgica, o do
Sul, no Rio de Janeiro, criou o seu curso de mestrado no ano de 1975. Cf. O MESTRADO EM
TEOLOGIA UMA REALIDADE NO SEMINRIO TEOLGICO BATISTA DO SUL DO
BRASIL. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 6 abr. 1975, p. 5.
173
Ano/Curso
Mestrado
Teologia
M. Cristo
Msica
Ed. Relig.
1910
1920
1930
1940
1950
1960
15
17
1970
25
22
Total
40
39
412
412
413
413
que foi
174
Temas
Autor Homem
Autora Mulher
Nmero de Obras
Antigo Testamento
11
Novo Testamento
12
Histria
10
Teologia
18
Ed. Religiosa
Psicologia
Sociologia
Homiltica
Devocional
414
415
175
O primeiro Simpsio de Educao Religiosa foi realizado no ano de 1969. J
foi observado que a disciplina Educao Religiosa era tradicionalmente feminina. O
nmero de mulheres matriculadas no Seminrio do Norte (sem levar em conta as
alunas do Seminrio de Educadoras Crists) comprova essa afirmativa. No entanto, o
primeiro simpsio da rea contou com trs preletores homens.
416
417
1950
1960
1970
Homens
24
27
Mulheres
majoritria
participao
masculina
nessas
Conferncias.
416
417
176
8. A Arena do Debate.
177
CAPTULO III
O CONTEXTO SOCIOPOLTICO DO DEBATE: POSSVEIS
INFLUNCIAS DO FEMINISMO BRASILEIRO NAS
RELAES SOCIAIS DE GNERO ENTRE OS BATISTAS DOS
ANOS 1960-1980.
Mulheres imprudentes, que desejais vos tornar
homens, no sois suficientemente aquinhoadas?
Que mais vos falta? [...] Permanecei aquilo que
sois, ao invs de nos invejar os perigos de uma
vida tempestuosa.
Chaumette, Novembro de 1793. 418
1. Introduo
419
curioso observar
como o seu trabalho para defender a tese 1871, Santa Brbara, SP se relaciona com
o desenvolvimento dos movimentos feministas daqueles anos.
Alves e Pitanguy afirmam que difcil estabelecer uma definio precisa do
que seja feminismo
420
418
178
a nvel das estruturas como das superestruturas (ideologia, cultura e
poltica). Assume formas diversas conforme as classes e camadas
sociais, nos diferentes grupos tnicos e culturas.
Em seu significado mais amplo, o feminismo um movimento
poltico. Questiona as relaes de poder, a opresso e a explorao
de grupos de pessoas sobre outras. Contrape -se radicalmente ao
poder patriarcal. Prope uma transformao social, econmica,
poltica e ideolgica da sociedade.
[...] o feminismo tem tambm um carter humanista: busca a libertao
das mulheres e dos homens, pois estes tm sido vtimas do mito do
macho, que os coloca como falsos depositrios do supremo poder, fora
e inteligncia. 421 [grifo meu].
Soares concorda com Teles: o feminismo tem natureza poltica. Ela afirma: o
feminismo a ao poltica das mulheres, que visa a transformao de si mesmas e
da prpria realidade social.
422
423
afirma que o
424
TELES, Maria Amlia de Almeida. Breve histria do feminismo no Brasil. So Paulo: Brasiliense,
2003. (Coleo Tudo Histria). p. 10-11.
422
SOARES, Vera. Muitas faces do feminismo no Brasil. In: BORBA, ngela. FARIA, Nalu.
GODINHO, Tatau (Org.). Mulher e poltica: gnero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. So
Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1998, p. 33.
423
GUTIRREZ, Rachel. O feminismo um humanismo. Rio de Janeiro/So Paulo: Antares/Nobel,
1985, p. 118-125.
424
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essncia das religies. Trad. Rogrio Fernandes. So
Paulo: Martins Fontes, 1992. (Tpicos).
179
captulo, portanto, est em demonstrar essas possveis influncias sobre o debate e a
vida dos batistas daquele contexto sociopoltico comprometido com a ditadura
militar.
Para atingir os objetivos deste captulo, faz-se necessrio considerar,
inicialmente, a condio feminina dos anos 1950 (os anos dourados) no Brasil, que
correspondem ao contexto social anterior imediato ao perodo histrico estudado.
Pretende-se, com isso, conhecer como eram ordenados os discursos e as relaes de
poder e gnero, antes da emergncia da segunda onda de movimentos feministas no
Brasil.
425
de
esquerda
poltica,
que
consideravam
suas
reivindicaes
insignificantes diante da luta contra a ditadura. Isso sem levar em conta a censura e a
perseguio movidas pelo governo militar.
Consideraremos, em ltimo lugar, como o feminismo dos anos 1970-1980
determinou transformaes e permanncias nas relaes de gnero na sociedade
brasileira. Levamos em conta o fato de que o movimento mudou de nfases durante
as dcadas dos anos 1970 e 1980: basicamente, durante os anos 1970 as feministas
lutaram pela igualdade de direitos e papis em relao ao sujeito masculino e, nos
anos 1980, privilegiaram o valor das diferenas entre o masculino e o feminino,
numa tentativa de se recuperar uma cultura feminina.
426
Da descrio do
425
Cli Pinto assim dividiu a histria do feminis mo no Brasil: seu incio nos fins do sculo XIX at o
ano de 1932, quando as mulheres lutara m pelo direito de votar; o intervalo compreendido entre 1932
at os primeiros anos de 1970, que representou o perodo de refluxo do feminismo; e o novo
feminismo, a segunda onda, que comeou a partir do ano de 1968, fase marcada pela defesa da
libertao das mulheres. Cf. PINTO, Cli Regina Jardim. Uma histria do feminismo no Brasil. So
Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2003.
426
Daniela Manini classificou o feminismo dos anos 1970 de feminismo margem esquerda e
aquele dos anos 1980 de feminismo de Estado. MANINI, Daniela. A crtica feminista
modernidade e o projeto feminista no Brasil dos anos 70 e 80. Cadernos AEL, no. 3/4, p. 50-65,
1995/1996.
180
na ltima parte deste captulo, quais as influncias do movimento que possivelmente
contriburam para a dinmica do debate sobre o marco inicial e para a prpria
histria do trabalho batista no Brasil.
muito importante termos em mente o papel de Betty de Oliveira no debate
sobre o marco inicial do trabalho batista no Brasil, enquanto consideramos as
relaes de gnero daquele contexto sociopoltico dos anos 1950 a 1980, para
medirmos sua contribuio na histria da emancipao das mulheres batistas
brasileiras.
428
427
181
explcita transgresso daquilo que se esperava de uma figura feminina pblica, ou
seja, feria profundamente os cdigos morais daqueles tempos. Por outro lado, o seu
sucesso denuncia o processo de coisificao da mulher, ou seja, a mulher vista no
como semelhante ao sujeito masculino, mas como objeto de desejo, fenmeno tpico
da cultura machista. De qualquer modo, a televiso j se apresentava como
importante ferramenta para permanncias e mudanas de mentalidades e de hbitos
culturais. Nos anos 1980, Saffioti observou que a imagem da mulher nos meios de
comunicao em massa, principalmente nas propagandas comercia is, atendia a
satisfao de dois padres estabelecidos pela patriarcal e machista sociedade
brasileira: ou a figura da boa dona-de-casa ou a mulher objeto sexual, que
proporciona prazer ao homem. Concluiu que, nos dois casos, a mulher sempre
escolhida, no escolhe.
429
430
Por
431
prefere falar de
432
porque as mulheres
429
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. 2. ed. So Paulo: Moderna, 1987. (Projeto passo
frente. Coleo Polmica; v. 10). p. 30.
430
A Federao das Mulheres do Brasil organizou o seu I Congresso em 1951 reunindo 231
delegadas, entre elas donas -de-casa, operrias, funcionrias pblicas, professoras, profissionais
liberais, estudantes e camponesas. TELES, Maria Amlia de Almeida. Op. cit. p. 49.
431
SOARES, Vera. Op. cit. p. 36.
432
PINTO, Cli Regina Jardim. Op. cit. p. 44.
182
como autonomia, sexualidade, controle de fertilidade, aborto no faziam parte da
agenda daqueles movimentos e sequer eram mencionados.
433
435
183
Apesar dos aparentes avanos no Brasil dos anos 1950, a mulher era desde
cedo educada para ser boa dona-de-casa, me e esposa, independentemente de sua
formao acadmica.
436
ser que usasse seus talentos em prol do bem-estar do seu lar e do seu casamento.
Isso parece lembrar a cultura patriarcal que dominava o esprito de alguns
comparsas
437
436
Aproveitamos, a partir desse ponto, o texto de BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados.
In: DEL PRIORE, Mary (Org.). Histria das mulheres no Brasil. 7. ed. So Paulo: Contexto, 2004.
437
BADINTER, Elisabeth. Op. cit. p. 8. Badinter chama de comparsas aqueles que no tiveram o
mesmo brilho que os tenoresda Revoluo, tais como: Mirabeau, Danton e Robespierre.
438
PRUDHOMME. A propsito das mulheres requerentes. Apud BADINTER, Elisabeth. Op. cit. p.
81.
184
ou nascimento do primeiro filho (alis, a maternidade era o principal motivo que
explicava e ainda explica a ausncia da mulher dos meios de deciso do domnio
pblico).
439
A imagem da mulher ideal daqueles anos era tambm reforada pelas revistas
femininas, que encontravam grande aceitao entre as mulheres. A imprensa
brasileira teve um grande crescimento nos anos 1950, o que provocou o lanamento
de inmeros peridicos femininos. Foi a partir desses anos que as capas das revistas
francesas, italianas, alems e americanas deixaram de ser desenhadas e comearam a
estampar fotos de mulheres bonitas, jovens e alegres,
441
indicando o padro de
beleza feminina da cultura ocidental. E a idia que logo seria transmitida pela mesma
imprensa brasileira dos anos 1950-1960 era a de que esse tipo de beleza era algo que
poderia ser alcanado, atravs do uso de cosmticos, exerccios e regimes.
442
Essa
443
constituam a imagem caricaturada ideal da mulher daqueles anos, quase uma gueixa
ocidental.
Carla Bassanezi
444
439
CHANEY, Elsa. Apud MATOS, Maria Izilda S. de. SOLER, Maria Anglica. (Org.). Gnero em
debate: trajetria e perspectivas na historiografia contempornea. So Paulo: EDUC, 1997, p. 27.
440
BASSANEZI, Carla. Op. cit. p. 609.
441
BUITONI, Dulclia H. S. Op. cit. p. 58.
442
OLIVEIRA, Nucia A. S. Representaes da beleza feminina na imprensa: uma leitura a partir das
pginas de O Cruzeiro, Cludia e Nova (1960/1970). In: FUNCK, Susana Borno. WIDHOLZER,
Nara (Org.) Gnero em discursos da mdia. Florianpolis: Editora Mulheres, 2005, 190.
443
SOIHET, Rachel. Condio feminina e formas de violncia: mulheres pobres e ordem urbana
(1890-1920). Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989, p. 115.
444
BASSANEZI, Carla. Op. cit. p. 609.
185
ambio da maioria das mulheres ainda continua a ser o casamento e a
famlia. 445
A pesquisa de Raquel de Barros Pinto Miguel focalizou, por sua vez, a revista
Capricho, criada em 1952. Em seu texto intitulado A Revista da Moa Moderna:
relaes de gnero e modos de ser femininos estampados nas pginas da revista
Capricho (dcadas 1950-1960)
447
445
186
Essa forma como a famlia se organiza va nos anos 1950 no Brasil caracterstica do
sistema patriarcal. Embora em declnio, o patriarcado ainda vigora nas mais diversas
culturas, como observou Therborn:
O patriarcado, no sentido de forte influncia parental sobre o casamento
dos filhos, clara hierarquia do marido sobre a mulher e desvantagem
institucionalizada das filhas, ainda grande fora no mundo. 449
450
Por isso, muitos homens preferiam enfrentar sozinhos as dificuldades financeiras dos
seus lares. Saffioti pergunta: mandar na mulher compensa tamanha perda
financeira?
451
449
THERBORN, Gran. Sexo e poder: a famlia no mundo (1900-2000). Trad. Elisabete Dria Bilac.
So Paulo: Contexto, 2006, p. 193.
450
BASSANEZI, Carla. Op. cit. p. 625.
451
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. p. 23.
452
TANURE, Betania. CARVALHO NETO, Antonio. ANDRADE, Juliana. Executivos: sucesso e
infelicidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 95. Bourdieu observou: embora seja verdade que
encontramos mulheres em todos os nveis do espao social, suas oportunidades de acesso (seus ndices
de representao) decrescem medida que se atingem posies mais raras e mais elevadas.
BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina. p. 110.
187
Nos anos 1950, grande parte da mo de obra feminina se concentrava na
indstria e no setor de servios, mas as mulheres estavam avanando e ocupando
outros setores, promovendo, desse modo, um processo de feminizao das
profisses,
453
454
Apesar disso,
455
Era nesse
espao que se esperava tambm que as mulheres exercessem o seu tradicional papel
de instrutoras de seus filhos. Na verdade, essa tradio da me-educadora vinha, na
cultura ocidental, desde os tempos chamados bblicos
456
at a Idade Moderna. A
ttulo de ilustrao, podemos citar dois pensamentos publicados sobre o assunto nos
anos da Revoluo Francesa: o Relatrio Amar sobre as Mulheres do advogado e
deputado Amar apresentado na Conveno Nacional de Frana em 1793:
Qual o carter prprio da mulher? Os costumes e a natureza lhe
atriburam funes: comear a educao dos homens, preparar o esprito
e o corao das crianas para as virtudes pblicas, dirigi-las desde cedo
para o bem, elevar sua alma e instru-las no culto poltico da liberdade;
tais so suas funes, depois dos cuidados do lar; a mulher
naturalmente destinada a fazer amar a virtude. Quando tiverem cumprido
todos esses deveres, tero prestado servios relevantes ptria. 457
453
A feminizao das profisses j era fenmeno social observado no Brasil, por exemplo, no incio
da Repblica, por causa da falta de mo-de-obra masculina. Cf. DIAS, Maria Odila Leite da Silva.
Quotidiano e poder em So Paulo no sculo XIX. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1995, p. 56-58.
454
Saffioti criticou o fato de mulheres ocuparem as funes dos homens nas fbricas, enquanto esses
iam ao front de batalha e depois serem dispensadas de seus postos, quando do retorno deles por causa
do fim da guerra. SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. p. 12.
455
ARENDT, Hannah. Apud SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 113.
456
Para maiores informaes cf. VAUX, Roland de. Instituies de Israel no Antigo Testamento.
Trad. Daniel de Oliveira. So Paulo: Editora Teolgica, 2003, p. 72-74.
457
AMAR. Relatrio Amar sobre as mulheres. In: BADINTER, Elisabeth (Org.) Op. cit. p. 190.
188
filhos foi o de Condorcet, o filsofo, matemtico e economista amigo de Voltaire.
Em seu discurso A Instruo das Mulheres
458
459
CONDORCET. A instruo das mulheres. In: BADINTER, Elisabeth. Op. cit. p. 88-90.
SOIHET, Rachel. Op. cit. p. 205.
189
para a primeira experincia sexual pelos prprios pais, que os levavam para os
prostbulos. A prostituta e os bordis representavam, portanto, espao seguro de
expresso da sexualidade masculina e tinham a sua contribuio para o bem-estar
social na cultura patriarcal daquela poca, porque podiam diminuir os crimes,
principalmente os de natureza sexual.
460
461
A mulher
460
461
190
Toscano,
462
463
porque tinha medo do ser pblico, vez que por muito tempo foi condicionada a viver
calada ou cochichando. E ainda destacou a
Diferena profunda que existe entre as expresses homem pblico e
mulher pblica; o primeiro o cidado de grandes virtudes que se ocupa
dos interesses gerais da comunidade; a segunda, uma pessoa degradada,
posta a servio da sexualidade de todos.
Quando a mulher dos anos dourados transitava pelo campo poltico, o estigma de
gnero tambm a acompanhava. Os partidos polticos no estimulavam a candidatura
de mulheres, a no ser em casos especiais, quando se tratava de candidatas
carismticas capazes de arrastar votos para a legenda.
464
Na verdade, muitas
465
462
TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Mulher & poltica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 58.
STUDART, Heloneida. Apresentao. In: TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Op. cit. p. 17.
464
TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Op. cit. p. 121.
465
Id. p. 25.
463
191
3. Os Antecedentes dos Anos de Chumbo.
466
porque ps
466
192
Dentre os simpatizantes da direita poltica estavam os batistas.
467
Os batistas
brasileiros dos anos 1960 articulavam sua ideologia sobre quatro eixos principais: o
anticatolicismo, o princpio da separao da Igreja e o Estado, uma eclesiologia
landmarquista e o anticomunismo. Essa cosmoviso era tributria da ideologia
messianista dos missionrios norte-americanos. Os batistas brasileiros tratavam os
Estados Unidos como a outra Amrica, pas que deveria ser reconhecido como o
novo Israel, escolhido especialmente por Deus para uma misso de salvao
mundial.
468
467
193
O posicionamento de Reis Pereira, representando a Ordem dos Ministros e os batistas
brasileiros, notvel se levar em conta o princpio da separao da Igreja e Estado.
Justificou a interferncia nos negcios do governo, invocando o papel dos profetas
do Antigo Testamento, que denunciavam a injustia social da sua poca. Reis Pereira
acreditava, desse modo, que esse manifesto era a contribuio dos batistas brasileiros
para responder s graves crises por que passava o pas.
Enquanto isso, entidades e movimentos populares se mobilizavam diante da
crise. Dentre eles, a Liga Feminina do Estado da Guanabara, criada em 1960,
organizava campanhas contra a carestia, chegando a levantar um abaixo-assinado
com 100.000 assinaturas. As mulheres, principalmente aquelas pertencentes s
classes menos privilegiadas, estavam se organizando para reivindicar melhores
condies de vida.
Mas a participao mais destacada das mulheres se deu em 1964. Sem se
darem conta da manipulao de conspiradores golpistas instalados no governo,
milhares de mulheres foram literalmente usadas
470
protestando contra as reformas propostas pelo presidente Joo Goulart no seu famoso
discurso proferido na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Cerca de 500.000
mulheres participaram da Marcha com Deus pela Famlia e a Liberdade em So
Paulo (outras centenas de milhares se manifestaram no Rio de Janeiro, Minas Gerais
e outras cidades). Essas mulheres entenderam que estavam lutando contra a ameaa
comunista que pairava sobre o governo de Goulart. O papel das marchadeiras foi
fundamental para a derrubada do presidente, porque abriu espao poltico necessrio
para os militares tomarem o poder e instaurar uma ditadura que duraria 21 anos. O
golpe se consolidou a 1 de Abril de 1964. Assumiu, ento, a presidncia da
Repblica, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967). As
marchadeiras haviam cumprido o propsito dos golpistas e, por isso,
convenientemente foram retiradas das ruas e do cenrio poltico. Teles informa que,
a partir do golpe, as associaes femininas desapareceram e s viriam novamente
com fora a pblico em 1975.
471
194
caracterizaram o regime autoritrio do novo governo. O Ato no. 1 suspendeu parte da
Constituio Brasileira de 1946, alm de autorizar a cassao de mandatos
parlamentares e a suspenso de direitos polticos. Iniciava-se, assim, o perodo da
represso poltica no Brasil.
Aps o golpe, o posicionamento dos batistas frente ao governo foi alterado.
Reis Pereira assumiu O Jornal Batista como editor responsvel na mesma poca da
instaurao da ditadura militar. O Jornal Batista passou a apoiar o governo militar,
atravs de artigos publicados por Reis Pereira, onde, no s o novo regime poltico
era bem acolhido, como de certa forma legitimado pela invocao de textos bblicos,
como nos sugere o artigo abaixo, publicado em 26 de Abril de 1964:
Em sesso realizada no dia 11 de Abril corrente, o Congresso Nacional
elegeu um novo presidente da Repblica: o General Humberto de
Alencar Castelo Branco.
Nosso novo presidente, empossado em cerimnia solene, no dia 15 de
Abril, foi, como Chefe do Estado Maior do Exrcito, um dos lderes da
revoluo vitoriosa, que em dois dias empolgou o Brasil inteiro, sem
encontrar nenhuma resistncia. Sua indicao pelos mentores civis e
militares da revoluo foi unnime e o Congresso Nacional nada fez que
chancelar essa escolha.
[...] O Jornal Batista est certo de expressar o pensamento do povo
batista ao afirmar que o novo presidente contar com as oraes dos
batistas brasileiros. Votar-lhe-emos todo o respeito que votamos a
qualquer autoridade, nos termos da Sagrada Escritura. Rogaremos
sempre que Deus lhe conceda toda a sabedoria e que o use em benefcio
da nao. assim que procedem os crentes.
Aproveitamos para dizer que O Jornal Batista [...] decididamente
contra o comunismo e qualquer forma de totalitarismo e ditadura.
[...] Oramos e convidamos nosso povo a orar para que o novo governo
possa fazer a v ida nacional retornar normalidade [...]. 472
PEREIRA, J. dos Reis. Novo governo. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26 abr. 1964, p. 3.
PEREIRA, J. dos Reis. Novo Presidente da Repblica. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 19 mar.
1967, p. 1.
473
195
Reis Pereira citou outros textos bblicos no mesmo artigo, que refletem a mesma
idia: I Timteo 2:1-2 e I Pedro 2:13-14, 17. Esse discurso foi recorrente durante os
anos 1960 e Reis Pereira defendeu e legitimou a autoridade do governo da ditadura
militar. Em crtica feita ao pronunciamento do bispo catlico de Santo Andr em 4 de
Fevereiro de 1968, Reis Pereira registrou:
Para comear, o bispo manifestou-se contra a revoluo de 31 de maro
chamando-a de 1 de abril [popularmente, o dia da mentira].
Manifesta, assim, seu completo desrespeito pelo governo atual, oriundo
daquela revoluo. Se o desrespeito provm da origem revolucionria do
governo, no h razo porque, desde o reinado de Pedro I, nossos
governos tm origem revolucionria. [...] Mais adiante, declarou o
homem que no est interessado na converso dos comunistas, porque
tem encontrado muitos comunistas que so ingnuos e bonzinhos.
Assim, um sacerdote catlico, um pastor de almas, um sucessor dos
apstolos (segundo o ensino catlico) simplesmente no quer saber de
evangelizar aqueles que mais esto precisados do Evangelho, s porque
os acha bonzinhos.474
Anos mais tarde, em 1980 e ainda sob o regime militar, Reis Pereira escreveu a
respeito da greve dos metalrgicos do ABC paulista o seguinte:
Impressionou-nos no episdio a atitude de algumas autoridades da Igreja
Romana, encabeadas pelo arcebispo de So Paulo e endossadas pelo
presidente da Confederao dos Bispos do Brasil. No por apoiarem os
grevistas mas por atacarem o governo, neste incluindo o Tribunal que
considerou a greve ilegal. Assim os bispos catlicos romanos esto se
colocando acima dos poderes constitucionais existentes no pas. Num
regime comunista onde, alis, no h greves... eles seriam
imediatamente presos [...]. 475
474
475
PEREIRA, J. dos Reis. Igreja em pnico. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 4 fev. 1968.
PEREIRA, J. dos Reis. De braos cruzados. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 11 mai. 1980, p. 3.
196
dcada de 1970. O artigo de Reis Pereira intitulado A Miss Excluda
476
, de 1967,
Pelos termos usados por Reis Pereira, encontramos de modo reforado, o que se
esperava da jovem em questo: ela deveria ser uma missionria, em especial uma
professora da Escola Bblica Dominical servindo no serto brasileiro. Tambm se
observa, embora de forma no contundente, a influncia de movimentos
emancipatrios da mulher no meio batista: Reis Pereira aguardava pelas crticas das
moderninhas, que possivelmente j deviam fazer parte dos quadros de membros
das igrejas batistas. Armstrong
477
defendida pelo feminismo era como um vrus cultural que infectara at algumas
[mulheres] fundamentalistas crists. Alm disso, a expresso esquerda festiva
usada por Reis Pereira d-nos a idia para que lugar o editor de O Jornal Batista
remetia as moderninhas: o mesmo da repudiada esquerda poltica.
476
PEREIRA, J. dos Reis. A miss excluda. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 25 jun. 1967, p. 3.
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judasmo, no cristianismo e no
islamismo. Trad. Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 348.
477
197
No mundo l fora dos batistas brasileiros, no entanto, a esquerda poltica e
demais representantes da oposio ao regime militar eram duramente reprimidos.
Com a promulgao do Ato Institucional no. 2, os poderes de cassao e de
suspenso de direitos polticos foram renovados e os partidos polticos dissolvidos.
Os militares, de forma brutal e violenta, reprimiam os movimentos populares
organizados, provocando, assim, a criao de organizaes polticas clandestinas.
Ferreira concorda com essa observao: a opo do Estado pela represso violenta
certamente encurralou setores da militncia, que ento entraram para a
clandestinidade.
478
480
481
Das seis
deputadas eleitas (dentre treze candidatas), apenas duas no foram cassadas em 1969.
De qualquer forma, mesmo eleita, o prestgio da mulher parlamentar derivava da
popularidade masculina.
478
198
Quanto ao mercado de trabalho dos anos 1960, a mulher economicamente
ativa, embora figura exigida pelo sistema social capitalista, enfrentava barreiras de
difcil transposio.
482
observou que em tempos de crise econmica, o sexo servia de fator de seleo dos
trabalhadores, o que levava a expulso de mais mulheres que homens dos postos de
trabalho.
483
199
explica a violncia daquele encontro entre policiais e estudantes. A morte de Edson
reuniu cerca de 100.000 pessoas em seu enterro e deflagrou centenas de
manifestaes estudantis pelas ruas do pas. Muitos estudantes foram vtimas da
represso, e isso deu origem Unio Brasileira de Mes, no Rio de Janeiro, cujo
propsito maior foi o de defender a vida de seus filhos da represso poltica.
O editor de O Jornal Batista, o porta-voz da denominao batista brasileira,
tinha, no entanto, um outro olhar sobre o episdio do restaurante Calabouo. Em 14
de Abril de 1968, Reis Pereira escreveu:
No dia 28 de maro passado houve um conflito entre estudantes e a
polcia do Rio de Janeiro. Como resultado da refrega vrias pessoas
saram feridas e um jovem estudante, de 16 anos, foi morto. Essa morte
comoveu o pas inteiro e provocou a maior indignao da classe
estudantil. Seguiram-se greves, passeatas, manifestos e alguns atos de
violncia. Agitadores profissionais insinuaram-se entre os jovens e
conseguiram a realizao de alguns objetivos: o carro de um oficial da
Aeronutica foi queimado, o edifcio de uma embaixada foi apedrejado,
uma escola norte-americana em Braslia, tambm foi atingida.
Tudo comeou, ao que contam, com uma reunio de estudantes em seu
restaurante. As condies deste so precrias. H promessas de ampli-lo
e de melhor-lo. Que os estudantes queiram coisa melhor e mais
adequada compreende-se e justifica-se. Estariam, pois, a planejar um
movimento no sentido de conseguirem melhores condies para seu
restaurante quando o conflito comeou. Dizem que a polcia atirou e
matou o estudante. A polcia nega que tenha atirado. [...] Mas,
admitindo que tenha partido de um revlver policial a bala
assassina, um pouco difcil responsabilizar o Governo pela
imprudncia de um subalterno. [...] Mas a exploso estudantil foi
habilmente aproveitada por quem tinha outros interesses e, assim, o
movimento de protesto por uma causa justa transformou-se num
movimento poltico em que o Governo foi atacado enquanto era
exaltado o fracassado guerrilheiro Che Guevara. [...] Entretanto, s
um observador inexperto e desconhecedor da psicologia das multides
iria dizer que a mocidade estudantil brasileira se tornou comunista.
Estamos, alis, certos de que ela permanece anti-totalitria e que, no
ntimo, se solidariza com seus colegas da Polnia, estes sim, vivendo sob
uma ditadura cruel e que esto dando ao mundo, agora, uma
extraordinria prova de coragem.
[...] Agora, por exemplo, em face do trgico acontecimento do Rio, dois
prelados catlicos, o Arcebispo de Olinda e o Bispo de Santo Andr,
compareceram logo nos jornais para dizer de sua solidariedade aos
estudantes cariocas e atacar o Governo. At o momento nada disseram
sobre os rapazes poloneses na sua luta desigual contra o poder totalitrio
que asfixia o pas.
[...] No Brasil no estamos sob ditadura. H um Congresso em
funcionamento, no h censura prvia Imprensa, os tribunais esto
abertos. [...] Entendemos, portanto, que os estudantes se organizem,
levantem-se e lutem em defesa dessas causas justas da classe [melhores
condies para a educao]. Que faam comcios, que organizem
passeatas e apoquentem a mais no poder deputados estaduais e federais,
senadores, governadores, ministros e presidentes para conseguirem
melhores condies para suas Faculdades e Escolas. Essa uma das
grandes necessidades nacionais. Mas, faz pena ver como se deixam levar
por agitadores de tal maneira que as boas causas ficam completamente
200
esquecidas e os movimentos estudantis completamente deturpados.
[grifos meus].
485
No Brasil no estamos sob ditadura. Essa declarao rendeu a Reis Pereira crticas
no sentido de que teria elaborado um artigo poltico.
486
485
486
PEREIRA, J. Reis. A morte do estudante. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 14 abr. 1968, p. 3.
PEREIRA, J. Reis. Ainda sobre estudantes. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 21 abr. 1968, p. 3.
201
no perodo de 1969 a 1974. Seu governo representou a fase mais autoritria do
regime militar.
Contra a ditadura militar se levantaram grupos de extrema esquerda, os
movimentos guerrilheiros e terroristas. Provenientes de diferentes classes sociais, os
guerrilheiros atuaram no Brasil entre 1969 a 1974. Entre os anos de 1969 e 1971, os
extremistas seqestraram diplomatas estrangeiros, em troca da libertao de presos
polticos. Realizaram assaltos a bancos e outros atos terroristas. Em 1969 foi morto,
pelas foras policiais em So Paulo, o lder comunista e extremista Carlos
Marighella. Em 1971, foi encontrado o corpo do ex-capito do exrcito, Carlos
Lamarca, que havia desertado em 1969, para se dedicar guerrilha. Em 1972, tropas
governamentais enfrentaram um foco guerrilheiro organizado pelo Partido
Comunista do Brasil, localizado ao norte de Gois, prximo fronteira do Par. A
guerrilha do Araguaia, como ficou conhecida, resistiu at meados do ano de 1975,
quando foi totalmente aniquilada.
A histria desses movimentos extremistas deveria ser uma histria de
homens. Guerras e guerrilhas so atividades masculinas. poca da Revoluo
Francesa, algum observou em 1793:
As mulheres nada tm a fazer no exrcito. No cessemos de lhes repetir:
Cidads! S estais bem na casa paterna, e sob o teto marital, cabeceira
do leito de vossos parentes deficientes ou decrpitos, ao p do bero de
uma famlia nascente. Em qualquer outro lugar, estareis deslocadas.
Deixai-nos as armas e os combates; vossos dedos delicados so feitos
para segurar a agulha, e semear de flores o caminho espinhoso da vida.
Para vs, o herosmo consiste em carregar o peso do lar, e as labutas
domsticas. 487
488
ANNIMO. Sobre a mulher soldada. In: BADINTER, Elisabeth (Org.). Op. cit. p. 129-130.
GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid. TRINDADE, Zeidi Arajo. AMNCIO, Lgia. Mulheres
brasileiras e militncia poltica durante a ditadura militar brasileira. In: Actas dos ateliers do V
Congresso Portugus de Sociologia, p. 23. Disponvel em: <http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/>.
Acesso em: 4 mar. 2008.
488
202
poltica golpista, fazendo-lhe oposio e de desconsiderar o lugar
destinado mulher, rompendo os padres estabelecidos para os dois
sexos. 489
Tais pecados provocavam a ira dos torturadores. O fato de ser mulher acirrava
neles uma raiva maior
490
os
movimentos
extremistas
reproduziram
tambm
492
489
494
COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. VIII Congresso Luso-AfroBrasileiro de Cincias Sociais. Coimbra 16, 17, 18 set. 2004.
490
FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Op. cit. p. 152.
491
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. p. 22.
492
Sobre o assunto cf. FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Op. cit. TELES, Maria Amlia de Almeida.
Op. cit. p. 63-73.
493
FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Op. cit. p. 154-155.
494
Id. p. 139.
203
viviam uma contradio: os anos 1960 eram os anos da revoluo sexual, da
liberdade sexual, mas por conta dos ideais polticos da organizao a que pertenciam,
algumas transgrediram os cdigos de seu prprio grupo. Para essas militantes
transgressoras que dividiam o seu tempo entre as aes contra o governo e a vivncia
da maternidade, os problemas que tinham de enfrentar eram mais complexos, pois
envolviam a vida de seus filhos.
495
grvidas e perderam seus filhos por causa das torturas. Outras, estupradas pelos
carrascos, acabaram engravidando.
496
497
Ferreira,
498
registrou que, das 13 entrevistadas s uma havia ocupado uma posio de dirigente
de sua organizao. O preconceito se fundamentava numa alegada falta de inclinao
das mulheres para a liderana, reforado por elas mesmas quando se recusavam a
concorrer para ocupar os postos de direo. Esse fenmeno, tambm observado em
outras atividades sociais (como a religio), revela o poder determinante dos papis de
gnero tradicionalmente constitudos pela cultura patriarcal at sobre organizaes
polticas com discursos igualitrios e pretensamente democrticos.
Como j foi colocado, o papel das mulheres militantes representa uma ruptura
dos padres de gnero daqueles anos. Obviamente, trata-se de casos extremos, vez
que a prpria situao sociopoltica contribuiu para produzir a figura da mulher
subversiva. Mas isso indica que as mudanas estavam ocorrendo nas mais diversas
esferas da vida social daqueles anos.
A segunda onda do feminismo no Brasil emergiu desse cenrio de agitao
poltica e social, que contou com os movimentos das mulheres contra o alto custo de
vida e a militncia poltica. Esses movimentos, aliados s influncias externas,
favoreceram a construo da imagem da mulher liberada dos anos 1960-1970. A
mdia dos primeiros anos de chumbo tambm reforou essa imagem, o que
495
204
certamente veio a contribuir tambm para as transformaes dos papis de gnero,
como veremos a seguir.
500
socioculturais, a mulher pde explorar com mais liberdade o prazer sexual, mas ao
mesmo tempo, observa, isso ainda significava para ela um perigo moral, vez que
ainda vivia sob o domnio patriarcal daqueles anos. Se transgredisse os cdigos
morais ainda derivados dos anos dourados, a mulher liberada seria objeto de
desprezo, desrespeito e at de violncia contra sua pessoa. Por isso, a maioria das
mulheres dos anos 1960 ainda respeitava os tradicionais valores pregados pela
cultura patriarcal dos anos dourados.
499
205
Alm disso, a permanncia das mulheres no espao domstico era desejada e
incentivada pela grande indstria, cujas necessidades econmicas demandavam uma
clientela fiel que fomentasse o consumo.
501
grande consumidora e, por isso, boa parte da propaganda publicitria era dirigida a
ela. O homem ganha e a mulher gasta. Essa aparente comodidade oferecida pelos
padres socioculturais daquela poca era desejada pelas prprias mulheres por conta
do tipo de formao que receberam ao longo de suas histrias, conforme observou
Saffioti:
A grande maioria das mulheres aspira ao padro da domesticidade,
porque sua socializao foi dirigida nesse sentido, isto , porque a
sociedade incutiu nela certos valores, cuja realizao est na dependncia
de seu comportamento segundo aquele padro. 502
MURARO, Rose Marie. A mulher brasileira e a sociedade de consumo. In: FRIEDAN, Betty.
Mstica Feminina. Trad. urea B. Weissenberg. Petrpolis, RJ: Vozes, 1971, p. 9-10.
502
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classe. p. 376.
206
por segmentos conservadores da imprensa norte-americana contra o movimento
iniciado por Friedan, que consideravam suas adeptas mulheres frustradas, neurticas,
homossexuais e que odiavam o sexo masculino. Sob o fogo zombador de seus
entrevistadores, Friedan, segundo Rose Muraro,
503
provocada e reagiu de forma agressiva atirando o gravador para longe de si. Mas
tudo terminou bem ao final da entrevista. O livro de Friedan no vendeu como era
esperado. Era muito revolucionrio para a poca e muito preconceito havia sobre o
movimento feminista.
Friedan teve uma agenda muito lotada no Brasil. Visitou as mulheres que
participaram das marchas de 1964, quando da derrubada do governo de Goulart. A
franqueza de Friedan em relao ao regime militar rendeu muitas dificuldades
anfitri brasileira Rose Muraro, que durante seis meses foi vigiada pela inteligncia
do governo militar.
Bauer
504
Mstica Feminina, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, Friedan no foi to
radical quanto Kate Millett, a Mao Tse-tung da libertao das mulheres
505
e autora
de Poltica Sexual, obra publicada em 1970. Para Millett, o mal sem nome era o
patriarcado, que caracteriza todas as civilizaes histricas e ordenado por uma
poltica sexual que legitima a dominao masculina atravs do controle permanente
das principais instituies sociais.
506
feminismo anglo-saxnico.
Mas o cone brasileiro da mulher liberada daquela poca foi Leila Diniz
(1945-1972).
Musa da revoluo social dos anos 1960, a atriz no precisou levantar
bandeira nem queimar peas ntimas para chacoalhar o conservadorismo
da poca bastou ser ela mesma. 507
Formada em magistrio, abandonou sua casa aos 17 anos de idade, para viver com o
cineasta Domingos de Oliveira, que a lanou como atriz no cinema e na TV
503
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Betty Friedan: morre a feminista que estremeceu a Amrica.
Estudos Feministas. Florianpolis, 14(1): 336, jan./abr. 2006, p. 291.
504
BAUER, Carlos. Breve histria da mulher no mundo ocidental. So Paulo: Edies Pulsar, 2001,
108.
505
Ttulo dado pela Revista Time conforme MORAIS, Ludgero Bonilha. Investigao introdutria da
cosmoviso feminista: uma anlise da nova espiritualidade. So Paulo, 2000. Dissertao de Mestrado.
Centro Presbiteriano de Ps-Graduao Andrew Jumper, p. 64.
506
MILLETT, Kate. Sexual Politics. New York, USA: Ballantine Books Edition, 1978, p. 34.
507
BRASIL, Ubiratan. Uma garota da pesada. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 25 de out. 2008, p. D
1.
207
brasileira. Fez 14 filmes no cinema entre 1966 e 1972, alm de passagens pelo teatro
rebolado e pela TV (as telenovelas Iluses Perdidas e O Sheik de Agadir). Morreu
aos 27 anos de idade, vtima de acidente areo em Nova Deli, ndia. Marson resumiu
bem o mito Leila Diniz:
Em 1967, a atriz Leila Diniz protagonizou o filme Todas as Mulheres
do Mundo, de Domingos de Oliveira, vivendo uma jovem
questionadora. Da at sua morte, no incio dos anos 70, tornou-se mito e
musa mito da mulher emancipada, liberada e musa das mulheres que
queriam se emancipar levando a imagem de uma mulher livre de tabus,
pregando o amor livre, a livre maternidade e se expressando
publicamente sem meias palavras. 508
509
depois se uniu a Ruy Guerra, diretor moambicano, com quem teve Janana.
Provocou escndalos, em 1971, quando foi fotografada de biquni na praia de
Ipanema, no sexto ms de sua gravidez.
Ao exibir na praia sua barriga grvida, Leila demonstrou que a
maternidade sem o casamento no era vivida como um estigma a ser
escondido, mas como uma escolha livre e consciente. [...] A barriga
grvida de Leila Diniz materializou, corporificou, seus comportamentos
transgressores. A barriga objetivou as prticas consideradas desviantes,
que antes eram tornadas pblicas atravs da palavra. Leila fez uma
verdadeira revoluo simblica, ao revelar o oculto (a sexualidade
feminina fora do controle masculino) em sua barriga grvida ao sol.
Leila inventou uma nova forma de ser me. 510 [grifo meu].
Santos acrescenta:
A mulher que hoje exibe com orgulho sua gravidez na praia, que
freqenta bares e botecos sem restries, que pode soltar palavres em
conversas animadas sem causar espanto, a mulher que, enfim, goza de
plena liberdade deveria acender uma vela por noite para Leila Diniz. 511
MARSON, Melina Izar. Da feminista macha aos homens sensveis: o feminismo no Brasil e as
(des)construes das identidades sexuais. Cadernos AEL. Campinas, SP, no. 3/4 , 1995/1996, p. 92.
509
GOLDENBERG, Mirian. Toda mulher meio Leila Diniz. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995,
p. 184.
510
GOLDENBERG, Mirian. Op. cit. p. 209.
511
SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Apud BRASIL, Ubiratan. Uma garota da pesada. p. D1.
208
coragem. [...] Esta a revoluo de Leila: trazer luz do dia
comportamentos femininos j existentes, mas que eram vividos como
estigmas, proibidos, ocultos, recalcados. 512
Apesar do seu estilo de vida, Leila no se relacionava bem com as feministas de sua
poca e nem se identificava como uma feminista. Estava preocupada apenas em
viver:
Quando se est livre de toda a capa de educao, de boa educao, de
direitinho, das normas, dos preconceitos e tudo o que ensinado pra
gente, se pode ter uma viso de vida e de mundo, uma maneira de viver
muito mais livre e divertida. Muito mais aberta. 513
514
clara e explcita o que pensava a respeito de sexo. Foi um escndalo, pois nenhuma
mulher na histria da imprensa brasileira havia tratado do assunto de forma to
aberta. O peridico era conhecido por transcrever na ntegra a fala de seus
entrevistados, mas no caso de Leila, os prprios editores resolveram public- la com
cortes. Porm, o que veio a pblico foi o suficiente para criar o mito de mulher
liberada, revolucionria.
O interesse popular em saber direitinho o que Leila falou foi to grande
que a fita gravada com a sua entrevista acabou multiplicada milhares de
vezes, correndo o Pas. Virou pea de resistncia contra a censura,
ampliando o mito Leila Diniz. 515 [grifo meu].
516
Leila dizia:
Sou uma pessoa livre e em paz com o mundo. Conquistei a minha
liberdade a duras penas, rompendo com as convenes que tolhiam os
meus passos. Por isso, fui muitas vezes censurada, mas nunca vacilei,
512
209
sempre fui em frente. Tudo que fiz me garantiu a paz e a tranqilidade
que tenho hoje. Sou Leila Diniz, qual o problema? 517
517
210
A TV Globo a televiso que mais produz programas no mundo inteiro,
75% de sua produo feita por ela mesma. a maior indstria de
comunicao j implantada no Brasil e inteiramente nacional, a partir de
1969. [...] Com a entrada do satlite domstico (no Brasil), a TV atingir
85 milhes de brasileiros, nos prximos 5 anos. 520
521
Malu, houve grandes mudanas: era a histria de uma mulher separada que lutava
para manter sua casa e o sustento de sua filha. O seriado revelou temas polmicos
que no haviam sido abordados publicamente na televiso brasileira (por exemplo,
h a cena de sexo, onde Malu experimenta orgasmo). Regina Duarte, no papel de
Malu, representou tambm a imagem da mulher liberada dos fins dos anos 1970 e
incio dos 1980.
Teles,
522
de Regina Duarte, para a mudana dos papis de gnero. Afirma que, no perodo dos
anos 1964 a 1970, as duas mulheres que devem ter destaque nesse sentido no Brasil
so: Betty Friedan, cuja visita provocou polmicas e a jornalista e psicanalista
feminista Carmem da Silva,
523
da Silva, inclusive, protestou contra o preconceito que Friedan sofreu, quando de sua
visita ao Brasil, por parte da imprensa machista brasileira:
Durante essa visita verifiquei, por mim mesma, que nem sempre se pode
dar crdito ao noticirio. Friedan dizia uma coisa e os meios de
comunicao reproduziam outra completamente diferente. Cansei-me
de ouvi-la expressar com mediana clareza idias que logo apareciam
truncadas e deformadas; vi como lhe foram atribudos, sem cerimnia e
contraditados com a maior suficincia, conceitos que ela jamais emitiu.
Isso, sem falar nas perguntas primarssimas que foram dirigidas a uma
mulher com formao universitria, nos grosseiros ataques a uma
hspeda corts e nas suposies gratuitas sobre sua vida ntima. 524
520
FARIA, Gasto Pache. As telenovelas da Globo. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 12 dez. 1976, p.
5.
521
Seriado apresentado pela Rede Globo entre 1979 e 1980. Da sua criao participou a antroploga
Ruth Cardoso, esposa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e amiga de Regina Duarte. Malu
Mulher ganhou vrios prmios da Televiso e foi exportado para outros pases.
522
TELES, Maria Amlia de Almeida. Op. cit., p. 62.
523
Carmem da Silva escrevia para mulheres da classe mdia brasileira e seus artigos questionavam o
tradicional comportamento da mulher. Era uma feminista de esquerda. PINTO, Cli Regina. Op. cit.,
p. 48.
524
SILVA, Carmen da. O que uma mulher livre? In: DUARTE, Ana Rita Fonteles. Op. cit. p. 292.
211
De qualquer modo, notria a influncia da mdia sobre as transformaes
dos papis de gnero, que tambm foi decisiva para criar um ambiente favorvel aos
movimentos feministas surgidos no Brasil durante os anos 1970-1980.
6. Os Anos 1970-1980: O Feminismo Brasileiro.
Durante o perodo estudado, dos anos 1950 ao incio dos 1970, grande parte
da populao feminina, sem distino de classe social, despertou para a reivindicao
de direitos sociais bsicos, atravs da organizao de movimentos populares e
descobriu, assim, o potencial que tinha para transformar a sociedade. Com essa
conscincia de sujeitos histricos de transformao social e atravs desses
movimentos organizados, as mulheres lutaram por melhores condies de vida e
buscaram o atendimento de suas necessidades particulares, como a construo de
creches para aquelas que trabalhavam fora do lar e a criao de restaurantes
populares que atendessem essa massa de trabalhadoras, sufocadas pela dupla jornada
de trabalho. A essas e outras reivindicaes se acrescentou, naqueles anos, ainda que
no incio de forma tmida, o direito da mulher sobre o prprio corpo.
Tais reivindicaes, que revelam as condies socioeconmicas daqueles
anos, aliadas ao contexto sociopoltico criado pelo regime militar (que imps as mais
difceis barreiras para quaisquer manifestaes democrticas), prepararam o
surgimento da segunda onda feminista, tambm chamado de o novo feminismo no
Brasil.
525
ano de 1932), porque se dividiu em dois momentos: o primeiro, nos anos 1970, se
caracterizou pela luta por igualdade de direitos dentro da estrutura do poder
patriarcal (a primeira onda feminista tambm buscava a emancipao, ou seja, a
igualdade de direitos, principalmente atravs do sufrgio universal
526
); o segundo
momento, nos anos 1980, procurou a libertao das mulheres, atravs da afirmao
da diferena, da construo de identidade prpria feminina. Pierucci
527
destacou que
525
212
diferencialismo, a defesa do direito diferena, ou seja, diferena de gnero, onde
sexo tem significado distinto de gnero:
Sexo o dado biolgico de uma classificao cultural doravante
chamada gnero. Sexo o substrato biolgico sobre o qual so
construdas as prticas scio-culturais de gnero. Ainda noutras
palavras, sexo a base biologicamente dada sobre a qual se (im) pe
social e culturalmente o gnero, que , assim, uma construo social.
528
529
Soares
531
532
213
Conselho Nacional da Mulher e do surgimento dos primeiros grupos feministas de
So Paulo e Rio de Janeiro.
O congresso foi liderado pela advogada Romy Medeiros, que havia criado o
Conselho Nacional da Mulher em 1949. Durante os anos 1950, Romy representava o
Conselho junto ao Congresso Nacional, onde defendia o direito das mulheres
casadas, que poca eram consideradas na mesma condio civil dos indgenas. Sua
vitria se concretizou em 1962, com a aprovao do Estatuto da Mulher Casada (Lei
4.121/62), que amenizou as discriminaes e deu mulher certa autonomia. Romy
tinha bom trnsito entre os representantes do governo, mesmo em tempos de regime
militar. Quanto ao congresso de 1972, onde temas polmicos, como o planejamento
familiar, foram tratados, Romy encarregou Rose Marie Muraro para organizar o
evento. Rose Muraro, feminista de esquerda, era uma mulher fichada pelo Servio
Nacional de Informao SNI, o servio de inteligncia do governo militar. Era,
portanto, uma mulher sob suspeitas e sua participao naquele congresso rendeu a
Romy problemas junto ao Departamento de Ordem Poltica e Social DOPS. No
obstante, o congresso reuniu representantes dos vrios segmentos da sociedade e isso
lhe proporcionou grande visibilidade na imprensa. O feminismo de Romy Medeiros
era singular: tratava publicamente de questes tidas como tabus, sob a autorizao de
foras conservadoras e ao mesmo tempo conseguia unir o feminismo de esquerda,
que causava problemas para o regime militar.
Os pequenos grupos de mulheres que comearam a se reunir em 1972, no
eixo So Paulo Rio de Janeiro, marcaram tambm o novo movimento feminista no
Brasil. Inspirados no fe minismo moderno do hemisfrio norte,
533
esses grupos
533
534
214
privado desses grupos, houve situaes onde foi possvel a promoo de atividades
pblicas. Muitos grupos dessa natureza foram formados. Pinto informa que
impossvel saber quantos grupos desse tipo existiram no Brasil nas dcadas de 1970 e
1980.
535
deixado pela esquerda que havia sido duramente derrotada pelo regime militar.
O ano de 1975 foi o marco do movimento feminista brasileiro. O governo
estava agora sob a presidncia do General Ernesto Geisel (1974-1979), que prometia
uma gradual abertura poltica, em contraste com o duro perodo do seu antecessor.
Mas a deciso da Organizao das Naes Unidas ONU de declarar 1975 como o
Ano Internacional da Mulher e o primeiro ano da dcada da mulher (1975-1985),
determinou a histria do feminismo brasileiro. Agora, sob a gide de uma
organizao mundial e vivendo novos tempos polticos (embora o medo da represso
ainda prevalecesse), o feminismo pde trabalhar a questo da mulher no Brasil com
mais liberdade e aceitao social. Para comemorar o Ano Internacional, foi criado,
no Rio de Janeiro, o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, a primeira
organizao feminista a se constituir no pas depois que a represso se instalou em
1964,
536
537
O Centro enfrentou duas frentes de batalha: a ameaa da represso, vez que entre as
fundadoras haviam aquelas ligadas a movimentos contrrios ao regime militar e os
conflitos internos provocados por motivos ideolgicos. Porm, seu papel na histria
poltica brasileira daqueles anos foi significativo. Por exemplo, em 1978, o Centro
elaborou o documento chamado de Carta s mulheres que, na verdade, foi dirigido
aos candidatos polticos daquele ano. Nele, as mulheres do Centro apresentavam suas
reivindicaes: anistia poltica ampla, geral e irrestrita; eleies livres e diretas para
535
215
todos os cargos eletivos; Assemblia Geral Constituinte, soberanamente eleita; fim
da carestia; creches; escolas; igualdade salarial; dentre outras.
No mesmo ano de 1975, um grupo de feministas de So Paulo conseguiu
abrir espao na reunio anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
SBPC em Belo Horizonte. Desde ento, nas reunies dessa sociedade, essas
mulheres intelectuais elaboravam pesquisas cientficas sobre a condio da mulher
no Brasil e propunham projetos com maior visibilidade pblica. Esses encontros, sob
a gide da SBPC, inauguraram um tipo de feminismo que Pinto classificou de
feminismo acadmico, um tipo de atuao feminista que foi fundamental nas
dcadas que se seguiram.
538
539
538
216
Apesar do pronunciamento da Aliana Batista Mundial (ver adiante),
curiosamente, os batistas brasileiros praticamente nada comentaram a respeito do
Ano Internacional da Mulher atravs de O Jornal Batista, durante o ano de 1975.
Encontramos apenas um artigo
541
Pastor David Gomes, que mencionou o momento histrico por que passavam as
mulheres brasileiras. Gomes, porm, enfatizou o estilo de vida das mulheres dos
tempos bblicos, como Ana, Dbora, Joquebede, Miriam, Maria e outras, como
exemplo que as mulheres de seu tempo deveriam seguir.
Alis, batistas se equivocavam quando precisavam definir o feminismo. O
exemplo o artigo de Bill Ichter, em sua Coluna Canto Musical de O Jornal
Batista: ele chamou a evanglica norte-americana Julia Ward Howe (1819-1910),
autora do famoso hino Battle Hymn, de lder feminista, porque era ativa,
oradora muito fluente, autora de trs livros de versos e tambm porque
acompanhava com grande interesse o trabalho do marido em causas humanitrias.
542
Isso demonstra que, embora o discurso ainda fosse sexista, os batistas brasileiros
agiam de forma ambgua, porque estavam permitindo que os espaos significativos
de poder fossem ocupados por suas mulheres. Digno de nota tambm o fato de que
541
GOMES, David. Estamos vivendo em 1975 o denominado Ano da Mulher. O Jornal Batista. Rio
de Janeiro, 24 ago. 1975, p. 5.
542
ICHTER, Bill. O hino de uma lder feminista. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 31 ago. 1975, p. 4.
543
A PRIMEIRA MULHER ELEITA PRESIDENTE DE UMA JUNTA DA CBB. O Jornal Batista.
Rio de Janeiro, 20 abr. 1975, p. 1.
217
no Ano Internacional da Mulher, o Instituto Batista de Educao Religiosa IBER
registrou o maior nmero de alunas da sua histria: 105 matriculadas.
544
544
BLOUNT, Martha Ann. Maior nmero de alunas na sua histria: 105. O Jornal Batista. Rio de
Janeiro, 25 mai. 1975, p. 6.
545
IMPORTANTE PRONUNCIAMENTO DO XIII CONGRESSO DA ALIANA BATISTA
MUNDIAL EM ESTOCOLMO. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 24 ago. 1975, p. 1.
218
porque para um evanglico no deve haver dvidas de que o casamento
primariamente uma instituio religiosa. 546
547
546
PEREIRA, J. dos Reis. Vem a o divrcio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 23 mar. 1975, p. 3.
PEREIRA, J. dos Reis. O divrcio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 11 abr. 1975, p. 3.
548
MATHIAS, Myrtes. A questo do divrcio. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 11 abr. 1975, p. 5.
549
NASON-CLARK, Nancy. Religion and violence against women: exploring the rhetoric and the
response of evangelical churches in Canada. Social Compass. 43(4), 1996, p. 517.
547
219
atravs da pesquisa de Maria Amlia Azevedo.
550
551
552
ser amparado pelas leis dos homens, nunca seria moral. E completa: a lis, nem tudo
o que legal, tambm moral. O projeto da lei do divrcio, no entanto, foi
aprovado em votao apertadssima
553
220
Congresso da Mulher Metalrgica de So Bernardo do Campo e Diadema, em So
Paulo. Esse congresso foi significativo, pois naquele ano aconteceram as primeiras
greves dos metalrgicos do ABC paulista, desde a promulgao do AI-5 em 1968.
O clima favorvel emancipao das mulheres ainda incomodava certos
setores conservadores da liderana da Conveno Brasileira. Reis Pereira publicou
em sua coluna o artigo Saber Ser Mulher em 10 de Abril de 1977, onde exaltou o
livro de Marabel Morgan, The Total Woman (A Mulher Total), sucesso de vendas nos
Estados Unidos, com 3 milhes de exemplares vendidos, segundo a revista Time. O
texto de Morgan defendeu um retorno da mulher ao seu espao domstico, sob a
orientao da Bblia. Ao comentar sobre o livro, Reis Pereira escreveu:
Ora, citar a Bblia, repetir, segundo a Bblia o ensinamento de que a
mulher a ajudadora e ajudadora obediente do marido; mostrar as
alegrias que uma mulher pode ter no lar como dona de casa prvida e
previdente (ver Provrbios 31), o maior escndalo para as adeptas do
Movimento de Libertao da Mulher. J o dissemos noutra ocasio: esse
movimento tem origem mpia e suas sugestes e reivindicaes tm que
contrariar os ensinamentos bblicos e, portanto, no podem ser acatadas
por mulheres crists.
[...] E por favor no nos venham agora acusar de machismo e outras
barbaridades. Nossa doutrina sobre o relacionamento entre marido e
mulher aquele de Efsios 5: mulheres obedientes aos maridos como a
Igreja obediente a Cristo; maridos amando suas mulheres como Cristo
amou Igreja, dando sua vida por ela. 554
555
votaram em homens para o cargo de deputado federal e 85,9% das votantes tambm
escolheram um homem para senador. 556 Uma das razes apontadas pela pesquisa foi
o fato de que no havia nenhuma candidata feminina capaz de sensibilizar e
mobilizar as mulheres cariocas em favor de sua candidatura.
557
Mas a verdade
554
558
Alm
PEREIRA, J. dos Reis. Saber ser mulher. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 10 abr. 1977, p. 3.
TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Op. cit. p. 34.
556
No caso do senador, tratou-se da reeleio de Nelson Carneiro, conhecido defensor do divrcio e
de outras causas que visavam proteger os direitos das mulheres brasileiras.
557
TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Op. cit. p. 34.
558
Id. p. 74.
555
221
disso, o fato inegvel que muitas mulheres discriminavam as mulheres candidatas:
mulheres eleitas graas a votos dados por contingentes femininos ainda constituem
casos isolados, dentro da experincia legislativa no Brasil,
559
afirmaram Tabak e
560
561
1978: quatro deputadas federais, 18 deputadas estaduais, 53 prefeitas, 54 viceprefeitas e 1.453 vereadoras. A maioria dessas mulheres pertencia aos quadros dos
partidos de oposio ao governo militar. As pesquisadoras classificaram os dados
como promissores se comparados aos pleitos anteriores e atriburam o crescimento
da presena feminina no campo poltico competncia do trabalho das organizaes
feministas e aos desdobramentos polticos do Ano Internacional da Mulher em 1975.
Tabak e Toscano, no entanto, observaram que a presena de mulheres eleitas tende
a se fazer notar em municpios de pouca significao econmica e poltica.
562
563
quando
222
irrestrita, foi a grande contribuio para o feminismo brasileiro, pois possibilitou o
retorno das exiladas polticas, que trouxeram em suas bagagens as influncias
feministas do exterior. A reforma partidria, no entanto, enfraqueceu de certa forma
o movimento feminista (e tambm a oposio ao regime militar), pois suas militantes
acabaram se dividindo ao se filiarem a partidos polticos diferentes (principalmente o
PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro e o PT Partido dos
Trabalhadores
564
Segundo BORBA, ngela. FARIA, Nalu. GODINHO, Tatau (org.). Op. cit., p. 11, uma
organizao feminista existe no Partido dos Trabalhadores desde a sua fundao em 1980.
565
TABAK, Fanny. TOSCANO, Moema. Op. cit. p. 76.
223
promovidos os ideais feministas, certamente, direta ou indiretamente, todos os
segmentos da sociedade brasileira foram atingidos. Mesmo as mulheres alheias aos
movimentos organizados receberam suas influncias no s atravs dos programas
de rdio e televiso, mas tambm pelos meios de comunicao oficiais e populares
ou por meio de informaes indiretas, os boatos. Gebara defende a tese de que os
movimentos
sociais
organizados
conseguem
influenciar
as
mulheres
567
que comparou o
nmero de famlias nas dcadas de 1970 e 1980: nos anos 1970, eram cerca de 18,4
milhes de famlias; na dcada de 1980 o nmero era de 36,6 milhes. Nos anos
1980 houve uma diminuio do tamanho das famlias: de uma mdia de 5 pessoas
por famlia nos anos 1970 passou para 4,1 na dcada seguinte. Os motivos apontados
pela pesquisa so: queda de fecundidade (mtodos contraceptivos), diminuio da
mortalidade (os benefcios na rea da sade pblica), fim de matrimnios por viuvez,
separaes e divrcios. Relacionado pobreza, cresceu tambm o nmero de
famlias monoparentais (uma taxa mdia de 5% ao ano, segundo a pesquisa), onde
muitas mulheres assumiram a chefia familiar e o sustento de seus lares. Esses dados
indicam maior autonomia das mulheres na dinmica de suas vidas familiares.
Em resumo, os anos 1960-1980 aqui considerados produziram mulheres mais
politizadas, mais livres em relao ao domnio patriarcal e com mais liberdade de
trnsito no campo pblico. Essa concluso, juntamente com a breve histria dos
movimentos de mulheres e feministas no Brasil dos anos 1950-1980 que
apresentamos, podem nos oferecer dados importantes que nos levam a concluir que
as etapas do debate sobre o marco inicial do trabalho batista brasileiro sofreram, de
algum modo, as influncias ideolgicas feministas. O passo seguinte, portanto,
relacionar essas possveis influncias sobre o citado debate.
566
224
7. Possveis Influncias.
No quadro abaixo, 568 procuraremos relacionar as principais etapas do debate,
bem como da prpria histria da Conveno Brasileira, com os fatos histricos que
podem ser associados aos movimentos de mulheres e feministas dos anos 1960-1980,
para que possamos ter uma viso panormica das possveis influncias oferecidas
pelo contexto sociopoltico.
Mulheres e a sociedade
Fontes: 1) O Jornal Batista. 2) Anais da Conveno Brasileira. 3) MEIN, David. Esboo histrico
do Seminrio Teolgico Batista do Norte do Brasil. 4) FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres,
militncia e memria. 5) PINTO, Cli Regina Jardim. Uma histria do feminismo no Brasil. 6)
TELES, Maria Amlia de Almeida. Breve histria do feminismo no Brasil. 7) TABAK, Fanny.
TOSCANO, Moema. Mulher & poltica. 8) SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho.
225
Editora Vozes.
1971 Grupo de mulheres no RJ lana
30 de Abril como a data para celebrar o
Dia das Mulheres.
1972 Congresso promovido pelo
Conselho Nacional da Mulher.
1972 Primeiros grupos feministas em
So Paulo e no Rio de Janeiro.
1972 Morte de Le ila Diniz.
1972-1974 Guerrilha do Araguaia. H
mulheres entre os guerrilheiros.
1973 A Primeira Igreja Batista da
Bahia comunica a Conveno que mudou
o seu nome para Primeira Igreja Batista
do Brasil.
1973 Ina Maria Ramos e Maria Betnia
Melo de Arajo so as primeiras
mulheres batistas formadas em Teologia
pelo STBNB.
226
do Brasil, em Curitiba, rejeita a
ordenao de mulheres ao pastorado.
1977 Valnice Milhomens batiza novos
crentes na frica.
1977 Evangelina Alves Trindade se
forma em Teologia no STBNB.
1977 Betty de Oliveira publica trs
artigos, sendo dois sobre o ex-padre
Antonio Teixeira de Albuquerque.
227
americanos no Porto do Rio de Janeiro
(1865-1890).
228
Quadro no. 3: As possveis influncias dos movimentos de mulheres e feministas na
Conveno Brasileira dos anos 1960-1980. (Fonte do autor).
O quadro acima nos oferece trs consideraes:
1) O primeiro perodo, de 1960 a 1970, marcado pela instaurao do regime
militar, foi o que preparou a emergncia do novo feminismo. O movimento de
mulheres contra a carestia, observado desde os anos 1950, no explicitava ainda os
princpios ideolgicos do feminismo, mas j destacava o potencial da fora feminina
de transformao social no campo pblico.
Betty de Oliveira, uma mulher batista brasileira, ousou transitar em campo de
saber de domnio masculino e foi alm, ao publicar tese que contrariava a posio
oficial de sua denominao. Essa atitude indita no meio patriarcal batista
encontrava, no entanto, respaldo na cultura daquela poca, pois as mudanas nos
padres de gnero j estavam sendo observadas na sociedade.
2) O perodo seguinte, que corresponde aos anos 1970, se caracteriza pelo
surgimento do novo feminismo no Brasil. As manifestaes feministas se tornaram
mais intensas, principalmente a partir do ano de 1975, declarado o Ano Internacional
da Mulher pela Organizao das Naes Unidas. As influncias feministas se notam
na sociedade atravs dos movimentos populares, da mdia e das condies polticas
daqueles anos. Os casos de ngela Diniz, assassinada pelo companheiro, e a morte
suspeita de Zuzu Angel (que havia denunciado o governo pela morte de seu filho
Stuart Angel) despertaram a preocupao nacional com o tema da violncia contra as
mulheres.
O ano de 1975, Ano Internacional da Mulher, foi marcado, entre os batistas
brasileiros, pela eleio da primeira mulher a ocupar o cargo de presidente de uma
Junta da Conveno Brasileira. No entanto, havia ainda grande resistncia aos
movimentos feministas, que se observa na forma como trataram a primeira tentativa
de ordenao de uma mulher ao ministrio pastoral batista em 1976 e 1977, bem
como na reao da liderana denominacional diante da perseverana de Betty de
Oliveira para defender sua tese junto Conveno Brasileira. No obstante, assim
como as mulheres eram mais ouvidas pelos poderes polticos, Betty encontrou
ambiente favorvel para defender sua tese de forma pblica. Alm disso, a
sinalizao de mudanas j era sentida na Conveno Brasileira, desde a nomeao
da primeira mulher missionria batista para a frica em 1970. O caso da graduao e
229
ps-graduao de mulheres em Teologia pelo Seminrio do Norte a partir de 1973,
tambm d margem a concluir que as influncias sociais, em especial as feministas,
estavam logrando xito na mudana de mentalidade entre os batistas brasileiros
(embora a ordenao de mulheres ao ministrio pastoral seja um problema at hoje
entre os batistas, como j foi exposto).
3) O ltimo perodo, de 1980 a 1985, aquele que consolidou a visibilizao
da condio feminina no Brasil em nvel instit ucional e poltico. Com a criao de
Conselhos, das Delegacias e de outras organizaes, as mulheres puderam contar
com assistncia apropriada para o atendimento de suas necessidades bsicas,
principalmente na rea da sade. Na poltica, houve uma maior representao
feminina nos lugares de poder legalmente constitudos, o que possibilitou a melhora
da condio social das mulheres. Tabak e Toscano concluem sua obra assim:
Mas no h dvida de que uma das condies preliminares bsicas para
melhorar a condio social da mulher e ampliar sua participao no
processo de deciso poltica aumentar sensivelmente o nmero de
mulheres eleitas para o Parlamento, em todos os nveis. 569
569
570
230
O jornal Batista Paulistano tambm promoveu o lanamento do livro de Betty de
Oliveira:
No livro Centelha em Restolho Seco, a autora, irm Betty Antunes de
Oliveira focaliza a vida das duas igrejas batistas organizadas em solo
brasileiro, e o conseqente estabelecimento da Misso Batista. Estes
acontecimentos se deram nos anos de 1871 a 1879. [...] Esta emigrao
[de norte-americanos 1865-1872] contribuiu para o nascimento da 1.
Igreja Batista organizada em solo brasileiro, em Santa Brbara dOeste,
sob a liderana do pastor Richard Ratcliff, no dia 10 de Setembro de
1871. [...] Tornando esta igreja [1. Igreja Batista da Bahia] anos mais
tarde a 1. Igreja Batista, em solo brasileiro, em virtude da dissoluo das
duas igrejas organizadas em Santa Brbara dOeste. Centelha em
Restolho Seco mais do que uma compilao de fatos conhecidos no
passado. Este livro uma ferramenta til para abrir novas portas
pesquisa. um livro-documento, e o leitor h de se sentir perplexo frente
ao cenrio de lutas, sofrimentos, ideais e vitrias que nele so
apresentados. 571
Betty de Oliveira foi convidada a apresentar sua tese para outros seminrios
batistas e o seu maior adversrio, o Pastor Jos dos Reis Pereira, admitiu, mais tarde,
alguma possibilidade de repensar a posio insurgente sobre o marco inicial do
trabalho batista no Brasil.
Todos os dados oferecidos por este presente captulo so preliminares e
preparam a anlise das influncias do contexto sociopoltico sobre as etapas do
debate sobre as origens do trabalho batista no Brasil, a partir da categoria de gnero,
para ser devidamente apresentada em captulo prprio.
Ser estudado, a seguir, um outro contexto importante, o eclesial ou religioso,
do qual fazem parte outras igrejas crists histricas, contemporneas dos batistas e
que tambm sofreram, de algum modo, as influncias ideolgicas do feminismo
brasileiro.
571
231
CAPTULO IV
O CONTEXTO RELIGIOSO: AS POSSVEIS INFLUNCIAS
DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS NAS PRINCIPAIS IGREJAS
CRISTS HISTRICAS CONTEMPORNEAS DOS BATISTAS
DOS ANOS 1960-1980.
O lugar, o status, as oportunidades para o
servio das mulheres dentro da Igreja esto
mudando rapidamente. Uma revoluo
silenciosa est agora em ebulio debaixo de
nossos ps.
572
1. Introduo.
572
232
Entre todos esses emigrados podiam ser encontrados batistas, metodistas,
presbiterianos, episcopais, catlicos e incrus. Dos trs primeiros
mencionados era a maioria. Entre eles havia os procedentes dos
Estados Confederados, Sul dos EUA, mas, havia, tambm, em pequena
minoria, emigrados do Norte. No grupo existiam mdicos, dentistas,
militares, fazendeiros, simples agricultores, operrios, trabalhadores,
professores, Ministros do Evangelho, um jardineiro surdo-mudo, os
trapacentos e at aventureiros buscando algum Eldorado! Nem todos
573
eram norte-americanos, ainda que tidos como tais.
[grifo meu].
574
Sem dados
575
576
A importncia dessa reunio em 1870 destaca-se ainda mais se levar em conta que
573
233
Brbara justifica a seleo das igrejas protestantes que consideraremos neste
captulo.
Desse modo, estudaremos, de forma breve, a insero de metodistas e
presbiterianos no Brasil (os batistas foram considerados no Captulo 2) e como essas
igrejas desenvolveram aqui seus ministrios femininos principalmente no perodo
compreendido entre os anos 1960 a 1980. Na medida em que estudarmos esse
desenvolvimento, procuraremos identificar pistas que denunciem as influncias de
movimentos feministas sobre a vida eclesistica de cada denominao estudada.
Alm desses protestantes,
579
Brasil, porque era a religio oficial e dominante daquele tempo, alm do que, como
vimos, estava tambm representada entre os colonos norte-americanos.
Ao final do captulo, pretendemos associar os dados obtidos com as etapas da
histria dos batistas brasileiros, sempre tendo como foco o debate sobre o marco
inicial do trabalho batista.
Metodistas, presbiterianos e catlicos: entendemos que a eleio desse
mosaico religioso foi justificada pela exposio acima e nos oferece o recorte
apropriado para a proposta deste captulo. Pretendemos, a partir de agora, descrever
sucintamente a histria de sua insero no Brasil e como essas igrejas desenvolveram
seus ministrios com mulheres e como lidaram com as questes de gnero, a partir
das influncias dos movimentos feministas, principalmente durante o perodo que
corresponde s etapas do debate sobre o marco inicial do trabalho batista brasileiro.
579
234
Seguidores de Wesley rumaram para as colnias da Amrica do Norte. O
ensino de Wesley sobre o cultivo de uma vida piedosa disciplinada e regrada
580
deu
581
580
Cf. WESLEY, John. Explicao clara da perfeio crist. Trad. Marilia Ferreira Leo. So
Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1984. BURTNER, Robert W. CHILES, Robert E.
(Compiladores). Coletnea d a teologia de Joo Wesley. Trad. Messias Freire. So Paulo: Junta Geral
de Educao Crist da Igreja Metodista do Brasil, 1960, p. 225-256.
581
SALVADOR, Jos Gonalves. Apud PINTO, Elena Alves Silva. O carisma social nas pastoras
metodistas: estudo de caso da prtica pastoral em ministrios sociais realizados por um grupo de
pastoras formadas no perodo de 1970-1990. So Bernardo do Campo, 2002. Dissertao de Mestrado.
Universidade Metodista de So Paulo, p. 28.
235
americana. Para ele, os problemas estavam no campo das questes transculturais, da
falta de recursos humanos (missionrios) e das questes financeiras.
582
583
582
236
A fundadora do Colgio Americano misto em 1885, em Porto Alegre, a
jovem missionria Crmen Chaccon (1869-1889),
584
naquela cidade: o colgio comeou com trs alunos matriculados e dois anos mais
tarde j contava com mais de 400. Chaccon tambm abriu um curso noturno para
mulheres pobres em 1886. Durante a enfermidade do seu pastor, o Reverendo
Correia, Chaccon assumiu muitos deveres pastorais. A missionria, porm, faleceu
aos 21 anos de idade, vtima de tuberculose.
Em 1894 veio para o Brasil a missionria Layona Glenn (1866-1966). Trs
anos depois, Layona Glenn foi nomeada diretora do Colgio Fluminense, que mais
tarde se uniu ao Americano de Petrpolis formando o atual Instituto Bennett.
Organizou a primeira Sociedade Conferencial de Senhoras Metodistas em 1916 e
fundou as seguintes instituies sociais: o Instituto Central do Povo, ou Misso
Central, que mobilizou as missionrias para a assistncia s famlias carentes e o
Instituto Ana Gonzaga. Trabalhou durante quarenta anos no Brasil e isso lhe rendeu,
mais tarde e sob o governo e aprovao de Juscelino Kubitscheck, a honra de ter sua
obra reconhecida nacionalmente ao ser condecorada com a Ordem do Cruzeiro do
Sul.
A histria da educadora Benedicta Stahl Sodr (1900-1972), que criou o
Processo de Alfabetizao Rpida, transformado mais tarde em Cartilha Sodr,
em homenagem pstuma a seu esposo, tambm precisa ser destacada.
585
A tiragem
586
237
um avano na situao da mulher recatada, dona-de-casa, esposa e me, submissa s
ordens do marido o que significou romper as portas do lar. 587 Embora a dedicao
assistncia de pessoas carentes fora do mbito domstico possa ser classificada
apenas como uma extenso do esperado papel feminino na sociedade, esse trabalho
dessas mulheres, o romper as portas do lar, pode ser uma representao de
transgresso dos cdigos tradicionais de gnero daquela poca.
O empenho das mulheres nas reas da educao e assistncia social no Brasil
chamou a ateno da alta liderana tanto norte-americana como brasileira. Assim, em
1930, quando a Conferncia Geral da Igreja Metodista Episcopal do Sul aprovou a
criao de uma comisso constituinte, formada por vinte delegados, sendo cinco
norte-americanos e quinze brasileiros, para elaborar a primeira constituio que
estabeleceria a autonomia da Igreja Metodista no Brasil,
588
589
590
LEO, Marilia A. F. S. Revista Voz Missionria 1981 a 1985: uma anlise de contedos a partir
da condio da mulher. So Bernardo do Campo, SP, 1988. Dissertao de Mestrado. Instituto
Metodista de Ensino Superior, p. 94.
588
At 1930, a Igreja Metodista brasileira era conhecida como Igreja Metodista Episcopal do Sul no
Brasil. Com sua autonomia declarada, passou a ser chamada de Igreja Metodista no Brasil. LEO,
Marilia Alves Schller Ferreira. Op. cit. p. 76.
589
Ottlia Chaves, leiga e esposa de pastor, era formada pela Faculdade de Farmcia no Colgio
Metodista Granberry em Juiz de Fora, tendo sido a nica mulher de sua turma.
590
REILY, Duncan Alexander. Histria documental do protestantismo no Brasil, p. 191.
591
LEO, Marilia Alves Schler Ferreira.Op. cit. p. 81.
238
A proposta, no entanto, no foi aprovada. Elena Pinto informa que das quatro
mulheres participantes da comisso trs votaram favoravelmente proposta e uma
votou contra.
592
foi esse: um voto contrrio, o de Esther Case, uma absteno, de Eunice Andrew e
dois votos favorveis das brasileiras Ottlia Chaves e Francisca de Carvalho.
Obviamente, nem o voto feminino contrrio e nem a absteno de Andrew foram os
responsveis pela reprovao da proposta, j que isso dependia tambm dos outros
16 votos masculinos. O fato a ser destacado o ineditismo que o tema representou
para aquela poca e o assunto s foi retomado cerca de quarenta anos depois, no X
Conclio Geral da Igreja Metodista do Brasil, nos anos 1970-1971.
Em 1942, a Igreja Metodista se filiou ao Conselho Mundial de Igrejas
CMI, afirmando o seu esprito dialogal e ecumnico que caracterizaria a sua obra nos
anos 1960-1980.
Nos anos 1950, as mulheres vocacionadas eram conduzidas ao Instituto
Metodista na Chcara Flora, em So Paulo, para o curso de Educao Crist, anlogo
Educao Religiosa dos batistas. Essa formao metodista em Educao Crist
seguia os mesmos moldes e propsitos sexistas das instituies batistas daqueles
anos:
Com efeito, pode-se dizer que o tipo de formao que era oferecida
reproduzia o papel das mulheres j historicamente estabelecido de
educadoras, mantenedoras do lar, responsveis por crianas, etc. Tais
papis eram entendidos como necessrios para as atividades da Igreja.
[...] Assim, partia-se da compreenso, senso comum, de que tais
atividades deveriam ser exercidas por mulheres. [...] O processo de
formao desenvolvido no que fora o Instituto Metodista na Chcara
Flora no s instrumentalizava as mulheres a continuarem exercendo seu
papel feminino a nvel da Igreja e suas instituies, como tambm as
tornavam adequadamente preparadas para virem a ser esposas de
pastor e continuar desenvolvendo sua posio de subordinao, num
contexto de domnio do masculino. 593
592
239
Campo. Essa instituio, no entanto, foi fechada no mesmo ano de suas
transferncias, por determinao da alta liderana da Igreja Metodista.
595
No
Superior da Ordem das diaconisas, eleito pela Junta Geral de Ao Social, foi
presidido por um homem, Daniel Lander Betts, tendo como vice-presidente Sara
Bennett e secretria Ottlia de Oliveira Chaves.
597
A figura de um homem na
595
599
240
com a suspeita desta pesquisa: no que diz respeito s transformaes nas relaes
sociais de gnero no campo religioso, no h como desprezar as influncias externas
do respectivo contexto sociopoltico. Os ventos contestatrios, embora no
explicitados, certamente se referem aos movimentos emancipatrios que inspiraram
muitos segmentos da sociedade daqueles anos.
As resistncias ordenao feminina ao pastorado entre os metodistas
parecem ter sido bem menores que aquelas percebidas entre batistas e presbiterianos
brasileiros. No entanto, isso no significa que elas no existiram. As primeiras se
manifestaram na comisso constituinte de 1930 e, parece-nos que elas foram
reproduzidas no meio metodista brasileiro ao longo dos anos.
A ordenao feminina ao ministrio pastoral s poderia ser realidade se
houvesse uma reforma cannica, para estabelecer tal ato como direito lega l na Igreja
Metodista. Assim, a discusso sobre a proposta da ordenao sem distino de sexo
foi retomada na primeira fase do X Conclio Geral da Igreja Metodista, em 1970. Foi,
porm, na segunda fase, em 1971, no Rio de Janeiro, que a proposta foi aprovada
quase por unanimidade
600
601
A razo do tempo parece estar na deciso pessoal de Zenilda Soares que, apesar de
ser formada desde o ano de 1965, fez questo de cumprir todas as exigncias
normais feitas aos homens para a sua ordenao em 1974 pelo Conclio Regional da
III Regio Eclesistica. Zenilda Soares, alm de ter se tornado a primeira presbtera
603
600
241
A partir do exemplo de Zenilda Soares, outras mulheres foram ordenadas
pastoras. O trabalho ministerial das mulheres se desenvolveu e resultou em
promoes dentro da estrutura organizacional da Igreja Metodista no Brasil. Por
exemplo, em 1983, a pastora Vera Lucy Prates da Silva, da cidade de Alegrete, RS,
foi nomeada Superintendente Distrital e assumiu a coordenao e o trabalho de um
grupo de igrejas e seus respectivos pastores e pastoras. Ela declarou: o ministrio
feminino um fato. Diante disto, a nomeao para a superintendncia de um distrito
um acontecimento natural dentro de nossa estrutura eclesial.
604
Os problemas citados por Schisler em sua parbola eram enfrentados pelas pastoras
metodistas e foram analisados por Cavalheiro.
606
Quadrangular (1958). As Igrejas Luterana, Episcopal e Presbiteriana Unida ordenaram suas mulheres
na dcada de 1970. CAVALHEIRO, Jussara Rotter. Op. cit. p. 99, 100.
604
SILVA, Vera Lucy Prates. Entrevista concedida a AO, G. Uma mulher pastora e presbtera na
superintendncia de um distrito. In: LEO, Marilia A. F. S. Op. cit. p. 86.
605
SCHISLER, Edith Long. Parbola das filhas de Zelofeade. In: CAVALHEIRO, Jussara Rotter.
Op. cit. p. 95-96.
606
CAVALHEIRO, Jussara Rotter. Op. cit. p. 104-129. Cf. LEO, Marilia A. F. S. Op. cit. p. 83-86.
242
distncia dos nveis de deciso e poder, nomeaes pastorais prejudicadas pelo
sexismo eclesial. O nmero de pastoras em comparao com os ministros metodistas
revelador: em 1996 eram 130 mulheres ordenadas para 820 homens.
Apesar
disso,
das
igrejas
representantes
do
607
cristianismo
histrico
consideradas nesta pesquisa, a Metodista no Brasil foi aquela que mais abriu espaos
para suas mulheres, principalmente no perodo dos anos 1960-1980.
608
Durante a Reforma,
609
Cristo estabelecera para o governo da igreja (as outras eram: pastores, mestres e
diconos). Os presbitrios se constituem grupos de ancios que governam as igrejas.
O presbiterianismo, no entanto, surgiu na Inglaterra do sculo XVII,
juntamente com o movimento puritano. Os puritanos faziam parte de um grupo de
religiosos descontentes com os rumos espirituais da Igreja na Inglaterra e insistiam
na necessidade de se retornar s bases puras da religio da Bblia. Gonzlez chamouos de protestantes radicais
610
mas de seu movimento faziam parte vrias tendncias: aqueles que simplesmente se
opunham ao sistema anglicano, os que defendiam o sistema presbiteriano de
governo, outros que valorizavam a autonomia de cada congregao religiosa (os
batistas e os congregacionais). Os presbiterianos adotaram a confisso e os
catecismos de Westminster, produzidos durante a Assemblia de Westminster, em
Londres, durante os anos de 1643 a 1649.
As turbulncias polticas e religiosas na Inglaterra fizeram com que muitos
puritanos emigrassem para a Amrica, embora no tenham sido elas as nicas
motivaes daqueles futuros colonos. Os presbiterianos tambm se estabeleceram
nas colnias britnicas, onde puderam crescer e desenvolver sua Igreja.
607
243
Teologicamente eram calvinistas e seguiam uma tica inspirada no puritanismo
ingls. No sculo XIX, a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos voltou o seu olhar
para o mundo, procurando meios para evangelizar e alcanar os povos no
cristianizados, atravs do envio de missionrios.
A histria dos presbiterianos no Brasil
611
se iniciou em 12 de Outubro de
1859 com a chegada do missionrio Reverendo Ashbel Green Simonton (18331867), nomeado pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos. Alm do seu problema
com a lngua nativa, Simonton enfrentou resistncias ao seu trabalho junto aos
brasileiros. Inicialmente, trabalhou como uma espcie de capelo entre os anglosaxes
612
613
611
Para maiores informaes sobre a histria dos presbiterianos no Brasil, cf.: FERREIRA, Jlio
Andrade. Histria da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2. ed. So Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
1992. Volumes I e II. MATOS, Alderi S. Os pioneiros presbiterianos do Brasil (1859-1900):
missionrios, pastores e leigos do sculo 19. So Paulo: Cultura Crist, 2004.
612
LONARD, mile-Guillaume. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e de histria
social. Trad. Linneu de Camargo Schtzer. 2. edio. Rio de Janeiro/So Paulo: JUERP/ASTE, 1981,
p. 54.
613
MATOS, Alderi Souza. Simonton e as bases do presbiterianismo no Brasil. In: MENDES, Marcel.
(apres.). Simonton, 140 anos de Brasil. So Paulo: Editora Mackenzie, 2000. (Srie Colquios; v. 3).
p. 70.
244
contatos causaram problemas para o Padre Conceio, que passou a ser conhecido
como o padre protestante e mais tarde o padre louco
614
por seus bispos superiores. Por conta desse cuidado dos bispos, Padre Conceio
passou cerca de quinze anos trabalhando em vrias parquias nas cidades de Limeira,
Piracicaba, Monte-Mor, Taubat, Ubatuba, Santa Brbara e Brotas. Em Brotas
chegou no ano de 1860. Nessa cidade, pde trabalhar com sua parquia, com relativa
facilidade, o que estava aprendendo de seus contatos protestantes. Estimulou seus
paroquianos leitura da Bblia e procurou melhorar as condies da vida religiosa
na sua parquia
615
616
617
618
619
245
serviriam, em primeiro lugar, para educar os filhos dos imigrantes protestantes, vez
que havia ainda muito preconceito religioso no Brasil. Em segundo lugar, os
propsitos missionrios dos presbiterianos fizeram abrir seus colgios e escolas para
os brasileiros, porque entenderam que a educao poderia ser o grande meio para
convert- los f reformada, atravs do oferecimento de um ensino de qualidade
superior quele existente naquela poca. Isso certamente interessaria a muitos,
principalmente aqueles pertencentes aos segmentos formadores de opinio da
sociedade. Alm disso, entenderam que a evangelizao s seria eficaz entre os
nacionais se combatessem o alto nvel de analfabetismo existente entre a populao
mais pobre. Outra razo para a criao dessas instituies foi o combate ao
catolicismo brasileiro, considerado por eles e pelos demais protestantes como um
cristianismo distorcido, quase pago. Leontino Santos observa que a educao foi,
provavelmente, a mais importante estratgia dos missionrios norte-americanos para
minar as resistncias do catolicismo.
620
246
Browne, com sua personalidade forte e marcante, poderia encabear uma notvel
lista de mulheres presbiterianas que contriburam significativamente para o
desenvolvimento da educao no Brasil. Por exemplo, a missionria e educadora
Mary Parker Dascomb (1842-1917), que chegou ao Brasil em 1869 e atuou no Rio de
Janeiro, So Paulo, Brotas, Rio Claro, Botucatu e Curitiba. Dascomb e Elmira Kuhl
(1842-1917), que haviam chegado em 1874, fundaram a Escola Americana de
Curitiba em 1892. Katherine Hall Porter fundou o Colgio Americano de Natal em
1895 e depois a Escola Evanglica de Florianpolis em 1903. Eliza Reed (18571926) desembarcou em 1891 e trabalhou como educadora em Campinas, Lavras,
Recife, Natal e Garanhuns, sendo que em 1904 fundou o Colgio Americano de
Pernambuco, na cidade do Recife.
George e Mary Chamberlain, missionrios presbiterianos, chegaram a So
Paulo no ano de 1870. Enquanto George se ocupava com o trabalho missionrio,
Mary abriu uma pequena escola para trs crianas nos aposentos de sua casa. Graas
qualidade de ensino oferecido e implantao de inovaes pedaggicas, em 1871,
sua escola j contava com 44 alunos. No ano seguinte, j em novo endereo e muito
bem estruturada, era conhecida pelo nome de Escola Americana. Em 1876 dois
novos cursos foram abertos: a Escola Normal e o Curso de Filosofia. Um grande
terreno medindo 27,7 mil metros quadrados, na regio de Higienpolis foi adquirido
pela Escola em 1880. Em 1891, substituindo a Escola Americana, surgiu o
Mackenzie College, cujo nome veio do filantropo John T. Mackenzie, que nunca
tinha visitado o Brasil, mas desejava investir em uma escola de engenharia neste
622
HACK, Osvaldo Henrique. Protestantismo e educao brasileira. 2. ed. So Paulo: Cultura Crist,
2000, p. 109.
247
pas. Mackenzie faleceu, mas suas irms
623
626
lembrou que
623
248
627
autoridade das Escrituras, porque uma diaconisa ordenada considerada como uma
mulher ocupando indevidamente um espao de poder exclusivamente masculino.
628
629
630
por Cludio Reis nos anos 1970 (quatro no total) no s afirmavam o lugar
secundrio da mulher na estrutura de poder da Igreja, mas tambm denunciavam a
sua acomodao com esse papel:
O status feminino, aparentemente, est considerado como estabelecido
dentro dos moldes dos anos anteriores [anos 1960], onde o universo da
mulher o lar e sua atividade na igreja relaciona-se apenas com o seu
gnero (reunies de orao de mulheres, estudos bblicos para mulheres,
sugestes de trabalhos com crianas, etc.). No h demanda por
igualdade de status. 631 [grifo meu].
Mas isso no significou que no houve a ameaa das influncias externas dos
movimentos feministas. O artigo A Mulher Independente, escrito por um homem,
o Reverendo Jernimo Gueiros, advertiu contra os perigos da pretensa liberdade
almejada por muitas mulheres da sociedade e afirmou que a verdadeira liberdade
627
249
feminina inspira nobre submisso afetiva da mulher ao seu marido. 632 Outro artigo,
intitulado A Mulher no Plano Divino, aps longa exposio sobre o papel da
mulher como auxiliadora, na linha da interpretao fundamentalista da Bblia,
conclui: a mulher e o homem no foram criados para competir. E ainda encerra
com uma poesia de Victor Hugo: o homem pensa e a mulher sonha... o homem a
guia que voa, a mulher o rouxinol que canta.
633
No Brasil Presbiteriano dos anos 1970, Cludio Reis afirma que o artigo
mais especificamente direcionado discusso do status feminino na igreja O
Ministrio Feminino Ordenado do Reverendo Alcides Nogueira, publicado em
1973. Cludio Reis considerou tambm que, provavelmente, esse texto foi:
O material mais importante sobre o tema encontrado em nossa pesquisa,
pois alm de ocupar uma pgina inteira do jornal, onde as posies
favorveis e contrrias ampliao do espao da mulher so defendidas
por dois pastores expoentes do perodo [Reverendo Alcides Nogueira e
Reverendo Odayr Olivetti], tambm recebe uma nota da redao sobre o
tema. 635
GUEIROS, Jernimo. A mulher independente. SAF, 56, 1970. In: REIS, Cludio Correia. Op. cit.
p. 24.
633
A MULHER NO PLANO DIVINO. SAF, 80, 1976, p. 7. In: REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 13.
634
REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 58.
635
Id. p. 32.
250
reconhecidas, mesmo depois de formadas, em suas igrejas por conta do inflexvel
sistema eclesistico vigente. Em seu documento, intitulado Sobre Ministrio
Feminino Ordenado, Olivetti apresentou tambm os seus fundamentos teolgicos
para justificar a sua proposta. Sua pergunta foi incisiva: lcito, em s conscincia,
afirmar que o Esprito de Deus s vocaciona homens para o Sagrado Ministrio?. 636
Nogueira respondeu, atravs do Brasil Presbiteriano, o que segue:
Consideramos o assunto de profunda gravidade no seio da Igreja
Presbiteriana do Brasil no s porque reflete uma inovao envolta em
colorido modernista, como porque seria entre ns como uma fagulha a
por em brasas uma grande selva Tiago 3:5.
[...] Ora a sugesto do Rev. Odayr Olivetti muito mais grave do que o
assunto diaconisa legalizado em 1936. Se chegar barra do Supremo
Conclio, trar conseqncias negativas imprevisveis. 637
OLIVETTI, Odayr. Sobre ministrio feminino ordenado. In: REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 80-
83.
637
251
liderana brasileira. Moseley foi aqui tratada como Senhora Moseley e no como
pastora ou presbtera.
Retornando desafiadora proposta de Olivetti, percebemos que seu
documento estava tambm comprometido com preconceitos de gnero. Em razo das
peculiaridades da natureza feminina (revelao de uma viso essencialista),
Olivetti props restries
639
para as mulheres:
A. A ordenao de mulheres ser possvel a:
a) Maiores de 25 anos.
b) Senhoras casadas cujos cnjuges sejam membros de igreja
presbiteriana, em plena comunho, os quais devero ser ouvidos antes da
ordenao.
B. Ocorrer a exonerao automtica nos seguintes casos:
a) Quando a ministra casar-se com ministro do Evangelho.
b) Quando a ministra casar-se com homem que no pertena plenamente
a uma igreja presbiteriana.
C. Estabelece-se como etapa experimental que a ministra exera
ministrio especfico particular (educao crist, evangelizao, etc.) na
qualidade de co-pastora ou pastora auxiliar.
639
252
ministrio de suma importncia para a vida da Igreja, para a vida
de um povo. 640 [grifo meu].
Desse modo, atravs de seus artigos, tanto o jornal Brasil Presbiteriano como a
revista SAF reforaram durante os anos 1970 o esteretipo de mulher presbiteriana
idealizado pela cultura patriarcal.
A SAF em Revista, durante os anos 1980, ofereceu maior espao para a
reflexo sobre os papis de gnero. Foram publicados 6 artigos. No obstante, o
lugar da mulher ainda era reforado pela cultura patriarcal: ser uma auxiliadora o
papel da mulher na igreja.
641
Pelo menos na ideologia conservadora da SAF em Revista dos anos 1980, o status
feminino tinha como territrio o lar, estendendo suas fronteiras, no mximo, at a
igreja. E as tarefas das mulheres na Igreja eram apenas uma extenso daquilo que
faziam em suas prprias casas: educao infantil, assistncia a enfermos, organizao
de festas e eventos, etc.
Neste ponto importante tambm destacar o artigo do Doutor Augustus
Nicodemus Lopes, pastor presbiteriano, intitulado Ordenao Feminina: O Que o
Novo Testamento Tem a Dizer?,
643
640
BRASIL PRESBITERIANO. 1979, mar. p. 4. In: REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 30.
REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 15.
642
SAF, 108, 1983, p. 30. In: REIS, Cludio Correia. Op. cit. p. 14.
643
LOPES, Augustus Nicodemus. Ordenao feminina: o que o Novo Testamento tem a dizer? FIDES
REFORMATA. So Paulo, no. 2/1, p. 59-84, 1997.
641
253
com a interpretao da Bblia. Aps longa exposio e comentrio dos textos
bblicos, Lopes concluiu assim o seu artigo:
O meu alvo neste artigo foi demonstrar a importncia de levarmos em
conta o ensino do Novo Testamento no debate acerca do ministrio
feminino ordenado. A nossa anlise das passagens mais usadas para
defender a ordenao de mulheres ao presbiterato ou pastorado
demonstrou que elas no do suporte s pretenses do programa
igualitarista, embora certamente nos ensinem que devemos encorajar e
defender o ministrio feminino [no ordenado] em nossas igrejas. [...]
Minha concluso que no h respaldo bblico suficiente para que se
recebam mulheres ao pastorado, presbiterato ou bispado de igrejas crists
locais, onde iro, como tais, presidir, governar, e ensinar doutrina aos
homens. Na realidade, as evidncias bblicas apontam em outra direo.
644
645
254
reimaginaram Deus como sendo nossa criadora Sofia. O que parecia
apenas uma diferena de opinies trouxe tona uma idolatria grosseira.
647
648
649
Cargo
Concorda em ter
Gostaria de ser
Diaconisa
79%
52%
Presbtera
52%
21%
Pastora
45%
11%
647
255
4. A Igreja Catlica.
650
Catlica j era dado ao grupo majoritrio cristo que se manteve fiel diante das
heresias, como o gnosticismo e o montanismo. Foi nesse perodo que se
desenvolveram as marcas distintivas do catolicismo, como a centralizao do poder
nas mos dos bispos, a formao do cnon do Novo Testamento, a formulao de um
credo e a organizao do cristianismo em:
Um corpo firmemente coeso, com dirigentes oficialmente reconhecidos e
capazes, no s de definir a sua f, mas tambm de excluir da sua
comunho todos os que se recusassem a aceitar os credos ou os
dirigentes. 651
652
mais tarde se serviria a Igreja romana para justificar a centralizao do poder de toda
a cristandade ocidental para si mesma. Isso se realizou, praticamente, com a queda
do Imprio romano em 476 d.C. O papel da Igreja no continente europeu foi de
fundamental importncia, porque ela se constituiu na nica instituio a manter a luz
da civilizao em meio ao caos provocado pela invaso das hordas brbaras. Foi
tambm nessa poca das trevas
653
poder sobre toda a Igreja Catlica. Surgiu, assim, a figura do papa, que significa
simplesmente papai, ttulo que era empregado exclusivamente para se referir ao
bispo de Roma. Graas liderana exercida por grandes papas como Leo I, o
Grande (457-474) e Gregrio I (590-604), tambm chamado o Grande, Roma se
tornou o centro ocidental do universo cristo durante sculos.
A hegemonia catlica foi ameaada seriamente no sculo XVI, quando houve
o movimento contestador liderado por Martim Lutero, que provocou uma diviso na
650
Cf. a histria da Igreja Catlica em WALKER, Williston. Histria da igreja crist. Trad. D. Glnio
Vergara dos Santos e N. Duval da Silva. 4. edio. Rio de Janeiro/So Paulo: JUERP/ASTE, 1983.
651
WALKER, W. Op. cit. p. 88.
652
IRINEU DE LIO. Apud WALKER, W. Op. cit. p. 93.
653
GONZLEZ, Justo L. A era das trevas. Trad. Hans Udo Fuchs. So Paulo: Vida Nova, 1981.
(Uma Histria Ilustrada do Cristianismo; v. 3). p. 61.
256
cristandade ocidental. A Reforma, como ficou conhecido o movimento de Lutero, fez
surgir, depois, as igrejas e confisses chamadas protestantes principalmente em terras
alems, suas e francesas. No obstante, o poder e a influncia do catolicismo
continuavam presentes em pases colonizadores importantes como a Espanha e
Portugal. Os portugueses descobriram e colonizaram o Brasil a partir do ano de 1500
e trouxeram consigo a f catlica, atravs da ordem dos jesutas. Desse modo, a
histria do catolicismo brasileiro se confunde com a prpria histria do Brasil.
Os portugueses, mais preocupados com a ocupao e a explorao econmica
da terra, perceberam que a escassez de mulheres brancas no Brasil comprometia os
planos ideolgicos e polticos da Coroa. Seus compatriotas tomavam ndias e negras
como suas concubinas, formando, com isso, uma populao mestia que ameaava a
hegemonia branca na colnia. A miscigenao racial tambm contribuiu para uma
miscigenao religiosa, que mais tarde resultou no catolicismo popular brasileiro.
654
Alm disso, era necessrio povoar a colnia para defend- la de invases estrangeiras.
Assim, Portugal enviou suas mulheres ao Brasil, provenientes de todas as classes
sociais, com a misso de cumprir sua funo de reprodutoras biolgicas.
Por causa dessa condio imposta pela Coroa s mulheres portuguesas, era
proibido ser freira no Brasil colonial.
655
convento se constitua na porta de entrada para uma vida religiosa ativa. Sem
conventos durante o perodo colonial portugus, as mulheres no tinham, portanto,
opes para uma vida religiosa ativa, como as mulheres que viviam nas colnias
espanholas, que contavam com inmeros mosteiros. O primeiro mosteiro de
mulheres no Brasil, o convento de Santa Clara do Desterro, Bahia, s foi fundado em
1677.
A Coroa portuguesa inibiu a construo de conventos em sua colnia, o que
provocou a procura por solues alternativas que atendessem as demandas sociais
daqueles tempos. Surgiram, assim, as instituies que foram chamadas de
recolhimentos. Nunes explica a natureza dessas casas:
Casas de recluso para mulheres que poderiam, mais tarde, transformarse em conventos, mas no eram estabelecidas canonicamente. Tratava-se
654
LEMOS, Carolina Teles. Religio, gnero e sexualidade: o lugar da mulher na famlia camponesa.
Goinia: Ed. da UCG, 2005, p. 35.
655
NUNES, Maria Jos Rosado. Freiras no Brasil. In: DEL PRIORE, Mary. Histria das mulheres no
Brasil. p. 483.
257
de casas religiosas, organizadas como convento, mas sem a
obrigatoriedade dos votos. 656
Durante o perodo colonial, grande parte dessas casas foi fundada por padres. Nunes
nos informa que o primeiro recolhimento fundado por uma mulher, a irm Maria
Rosa, ocorreu em 1576 em Olinda.
657
658
258
o imperador era tambm o Chefe da Igreja Catlica no Brasil. Mais tarde, no entanto,
Dom Pedro I deixou o imprio para seu filho, Dom Pedro II (1840-1889), que
assumiu o trono aps um perodo em que o pas foi administrado por governo
provisrio. Dom Pedro II estava interessado em promover o desenvolvimento do
pas, inspirado no programa de civilizao proposto pelo Marqus de Paran em
1854. Em seu projeto, o imperador incluiu a colonizao do Brasil por culturas mais
evoludas, principalmente aquelas pertencentes a pases protestantes. Apesar de
Chefe da Igreja Catlica no Brasil, Dom Pedro II no era um catlico fervoroso
659
660
resultou das lutas com os mouros e que combinou, em sua formao em solo
brasileiro, tradies ibricas, aorianas e crists novas
661
662
que
desconheciam as letras e os seus direitos civis mais bsicos. Tambm no havia, por
parte do clero, uma preocupao com a educao religiosa desse povo: muita reza e
pouco padre, muito santo e pouca missa.
663
659
664
259
A reforma promovida pelos bispos da Igreja Catlica brasileira no sculo
XIX requereu um processo de clericalizao
665
A estratgia de controle sobre o povo leigo atravs das mulheres, refletiu a cultura
patriarcal vigente no catolicismo que estabelecia de forma definida os papis de
gnero: os homens leigos ameaavam os lugares de poder e precisavam ser
dulcificados pelas mulheres (filhas, mes e esposas), de quem se esperavam as
virtudes crists da submisso, caridade, generosidade e sacrifcio. Esse deveria ser o
destino das mulheres, mas como observa Gebara:
Aquilo que parecia um destino da mulher consagrada a servio da
Igreja manifesta-se como dominao de uma instituio que ainda no
fez seu exame de conscincia em relao condio da mulher. 667
260
porque se despojou de sua sexualidade. Todo seu valor reside no fato de
ser santa, modesta, silenciosa, humilde e, fundamentalmente, de ser me
sem ter tido o gozo de seu corpo: a me ideal. Alguns telogos
chegaram a dizer que Maria era to perfeita que ela no era mais
uma mulher, ela era um macho. 668 [grifo meu].
669
670
outras confisses de f, o que a fez buscar novas estratgias para manter suas
influncias na sociedade. Por outro lado, as relaes da Igreja brasileira com Roma
se intensificaram, ensejando mudana de tutela: o Vaticano tomou o lugar do Estado
brasileiro na liderana nacional da Igreja Catlica.
Antes enclausuradas nos conventos e recolhimentos, as religiosas foram
estimuladas pelo esprito da reforma do catolicismo a atuar na sociedade,
principalmente atravs das associaes de piedade e da vinda das congregaes
femininas europias. As freiras ofereceram grande contribuio para o campo da
educao, da sade e da assistncia social (surgiu, com isso, a figura da irm de
caridade). Com exceo das mulheres pobres, Nunes observa que as freiras foram as
668
261
primeiras mulheres a exercerem profisso
671
672
673
671
262
tambm as identidades de gnero estabelecidas pela cultura patriarcal.
674
Assim,
675
676
677
678
Nunes informa que do fim do sculo XIX at os anos 1960, a vida religiosa
679
No entanto, os
674
Para um estudo mais detalhado sobre o assunto cf. ARY, Zara. Masculino e feminino no
imaginrio catlico: da Ao Catlica Teologia da Libertao.
675
Para um estudo mais detalhado sobre a ao da JOC durante o perodo militar cf. MAINWARING,
Scott. Op. cit. p. 139-165.
676
MAINWARING, Scott. Op. cit. p. 66.
677
Id. p. 67.
678
O catolicismo religio marcadamente patriarcal e o fenmeno de Nzia Floresta muito
interessante para as discusses de gnero. Mas outras tradies de f tambm patriarcais enfrentaram
situaes curiosas, como o budismo no Japo do ps-Segunda Guerra. Com a falta de homens, as
monjas, que antes s faziam os servios domsticos no interior dos templos, foram obrigadas a oficiar
enterros, celebrar casamentos e outros afazeres sacerdotais, dando origem a uma ordem feminina
dentro do budismo. Essa informao foi dada em entrevista ao Estado de S. Paulo pela mo nja Coen, a
primeira mulher de origem no japonesa a presidir a Federao das Seitas Budistas do Brasil.
BICUDO, Doris. Aqui um caldeiro de transformao. O Estado de S. Paulo. So Paulo, 16 nov.
2008, p. D9.
679
NUNES, Maria Jos F. Rosado. Freiras no Brasil. p. 495.
263
O Vaticano II foi um conclio europeu voltado para europeus, mas sua maior
influncia foi observada nas igrejas da Amrica Latina. Ao propor um novo discurso
sobre a misso social da Igreja, o Vaticano II revolucionou a tradicional vida
religiosa dos anos 1960-1970, ao propor:
Maior participao dos leigos, justia social, maior sentido de
comunidade, maior co-responsabilidade dentro da Igreja e relaes de
maior proximidade entre o clero e o povo [...]. 680
682
264
discurso teolgico batizado de Teologia da Libertao. A expresso pastoral desse
discurso teolgico foram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
683
684
685
687
689
688
683
690
265
estudiosos sobre as CEBs se esquecem do papel fundamental das mulheres nessas
organizaes e que, quando se lembram, para imputar a elas os insucessos dessa
forma de organizao do trabalho pastoral.
691
692
Sendo
691
266
sabido que, na Igreja Catlica, as mulheres so excludas das funes
de governo. Somente homens celibatrios padres, bispos, cardeais
tm assento nos lugares onde se elabora a estratgia de atuao e se
decidem os destinos da instituio. Uma parte das religiosas no aceita
essa situao de inferioridade a que so relegadas na Igreja; no raro
eclodem conflitos entre elas e as autoridades eclesisticas. 695
696
Parece ser uma grande abertura, mas se levar em conta o aspecto sacramental de uma
missa, essa participao, embora importante, de natureza secundria.
Portanto, apesar das concluses do Conclio Vaticano II, do surgimento da
Igreja popular atravs das Comunidades Eclesiais de Base e da fora dos
movimentos reivindicatrios, o catolicismo dos anos 1960-1980 manteve a excluso
de mulheres dos lugares significativos de poder na Igreja.
5. Consideraes Finais.
Concordamos com Cludio Reis que a Igreja, qualquer que seja a sua
tradio, enquanto grupo social, sofre as influncias das transformaes da sociedade
em que est inserida e que reage a elas atravs de respostas de aceitao (incluso,
695
267
adaptao) ou de rejeio (excluso).
698
699
698
700
268
A Igreja Catlica, desde a sua reforma brasileira no sculo XIX at os anos
posteriores ao Conclio Vaticano II, valorizou, de certa forma, o trabalho feminino
dentro de sua estrutura organizacional, embora nunca tenha franqueado o acesso de
mulheres aos postos mais significativos de poder eclesistico. Observamos, portanto,
que tal valorizao foi relativa, vez que houve certa manipulao intencional do
contingente feminino catlico por parte das lideranas masculinas da Igreja, tanto no
plano de expanso do catolicismo como no campo poltico. Nos domnios
eclesisticos, o estmulo para a incluso de mulheres na vida religiosa ativa atravs
das associaes femininas de piedade teve como propsito maior a domesticao da
populao masculina catlica, valorizando intencionalmente as virtudes tidas como
essencialmente femininas, como a submisso, a pureza e a obedincia. Na poltica, a
Igreja estimulou a mobilizao de milhares de mulheres catlicas durante o perodo
que antecedeu o golpe militar de 1964, atravs das marchas pblicas em favor de
Deus, da Ptria e da Famlia e seus protestos contriburam para a derrubada do
governo de Joo Goulart.
701
Sobre a participao de mulheres catlicas no golpe de 1964 cf. NUNES, Maria Jos Fontelas
Rosado. Eglise, sexe et pouvoir: les femmes dans le catholicisme au Bresil le cas des communautes
ecclesiales de base. [Thse pour le Doctorat]. Paris : Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. p.
156-161.
269
Anos/Igreja
1960
1970
1980
Batista
- Betty de
Oliveira contesta
a tese oficial da
CBB.
- 1. mulher a ser
nomeada
Superintendente
Regional do
INPS.
- 1. missionria
brasileira para
frica.
- 1. tentativa para
ordenar uma
mulher ao
pastorado.
- 1. mulher a
alcanar o ttulo
de Mestre em
Teologia.
- 1. mulher eleita
presidente de uma
Junta da CBB.
- Betty de
Oliveira na
Assemblia da
CBB.
- 1. mulher a ser
eleita vicepresidente da
CBB.
- Betty de
Oliveira lana
Centelha em
Restolho Seco.
Metodista
- Mulheres
cursam Teologia
(curso exclusivo
para homens).
Presbiteriana
- Esther F. Ferraz
a 1. mulher
nomeada reitora
de universidade.
Catlica
- Catlicas na
Marcha Deus,
Ptria e Famlia.
- Ordenao
feminina
aprovada.
- 1. mulher a ser
ordenada pastora
no protestantismo
histrico
brasileiro.
- 1. tentativa para
a ordenao
feminina.
- Consulta do
Presbitrio de Rio
Claro sobre
ordenao
feminina recebe
parecer negativo.
- Surgem as
Comunidades
Eclesiais de Base,
que visibilizam o
papel das
mulheres na
Igreja.
- Pastora
nomeada
Superintendente
Distrital no Rio
Grande do Sul.
- Pesquisa revela
que 78% das
presbiterianas
votariam em
mulheres para
ocupar cargos do
oficialato da
Igreja.
- As CEBs se
multiplicam
graas ao trabalho
de religiosas e
leigas.
270
Quanto ao resultado do debate sobre o marco inicial do trabalho batista no
Brasil, embora tenha sido vencido pela representao masculina, as lideranas que se
colocaram ao lado de Betty de Oliveira denunciam, para ns e obviamente sem
desmerecer o valor de sua pesquisa pessoal, a influncia daqueles movimentos
sociais na mentalidade dos batistas. A prpria Betty de Oliveira possivelmente se viu
estimulada a perseverar no debate, porque percebeu que a agitao social provocada
pelo feminismo brasileiro favoreceu a visibilizao das mulheres na sociedade e nas
igrejas crists.
As influncias ideolgicas externas so muito mais notadas e claras hoje entre
os batistas brasileiros do que naqueles anos 1960-1980. Os batistas j ordenam
mulheres para o ministrio pastoral, embora ainda existam muitas resistncias.
Podemos citar, por exemplo, o artigo O mal de ter nascido mulher
702
de Odja
702
SANTOS, Odja Barros. O mal de ter nascido mulher. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 28 set.
2008, p. 11.
271
CAPTULO V
A ANLISE DAS RELAES E DOS CONFLITOS DE GNERO
E PODER OBSERVADOS DURANTE O DEBATE SOBRE O
MARCO INICIAL DO TRABALHO BATISTA NO BRASIL
O homem admira a mulher no pelo que ela diz,
mas pelo que escuta. 703
George J. Nathan
1. Introduo.
272
706
706
Cf. p. 118.
A autoridade legal-racional recebe obedincia em razo da ordem legalmente estabelecida. A
autoridade inerente ao cargo [...]. ERICKSON, Victoria Lee. Onde o silncio fala: feminismo,
teoria social e religio. Trad. Cludia G. Duarte. So Paulo: Paulinas, 1996. (Sociologia Atual). p.
152, 153.
707
273
No centro poltico de qualquer sociedade complexamente organizada [...]
sempre existem uma elite governante e um conjunto de formas
simblicas que expressam o fato de que ela realmente governa. No
importa o grau de democracia com que essas elites foram escolhidas
(normalmente no muito alto) nem a extenso do conflito que existe
entre seus membros (normalmente bem mais profundo do que imaginam
aqueles que no so parte da elite); elas justificam sua existncia e
administram suas aes em termos de um conjunto de estrias,
cerimnias, insgnias, formalidades e pertences que herdaram, ou, em
situaes mais revolucionrias, inventaram. 708
709
e governava em uma
poca cultural e histrica que lhe conferia uma distino especial, como observou
Mills ao estudar a classe dirigente dos Estados Unidos dos anos 1950.
A elite do poder composta de homens cuja posio lhes permite
transcender o ambiente comum dos homens comuns, e tomar decises de
grandes conseqncias. Se tomam ou no tais decises menos
importante do que o fato de ocuparem postos to fundamentais: se
deixam de agir, de decidir, isso em si constitui frequentemente um ato de
maiores conseqncias do que as decises que tomam. Pois comandam
as principais hierarquias e organizaes da sociedade moderna. [...] A
elite do poder no de governantes solitrios. Conselheiros e
consultores, porta-vozes e promotores de opinio so, frequentemente, os
capites de seus pensamentos e decises superiores. 710
711
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Trad. Vera M.
Joscelyne. 8. ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2006, p. 186-187.
709
A primeira diretoria da Conveno de 1907 era formada s de homens, fato que se repetiu at o ano
de 1980. Em foto histrica dos mensageiros da primeira assemblia h 43 pessoas, sendo 32 homens,
8 mulheres e 3 crianas. PEREIRA, J. R. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), p. 85, 200-201.
710
MILLS, C. Wright. A elite do poder. Trad. Waltensir Dutra. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1975, p. 12.
711
FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria T. da C.
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 86-87. Embora isso
274
Ao considerar o pensamento de Foucault sobre o poder, Deleuze
712
713
que emanado
714
a relao de poder o conjunto das relaes de foras, que passa tanto pelas foras
dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades.
715
716
possa ser negado de forma veemente pelos segmentos batistas mais conservadores, porque podem
alegar que a assemblia soberana e que todas as decises so tomadas democraticamente e no so
impostas s igrejas filiadas na forma de leis, mas como orientaes.
712
DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia SantAnna Martins e Renato J. Ribeiro. So Paulo:
Brasiliense, 2005, p. 34-40.
713
FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade I: a vontade de saber, p. 86-87.
714
Id. p. 87.
715
DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 37.
716
FOUCAULT, Microfsica do poder, p. 188-189.
275
Na religio, o exerccio do poder est assegurado a quem detm os meios
simblicos para produzir o saber institucionalizado.
717
No cristianismo,
718
719
717
276
A histria das origens dos batistas no Brasil no era ainda uma questo para
um debate pblico, quando a liderana masculina, a elite do poder, da Conveno
estabeleceu o discurso verdadeiro, a narrativa oficial sobre o marco inicial batista.
721
O assunto havia sido resolvido por decreto, conforme observou mais tarde o Pastor
Calvacnti
722
723
724
Como foi visto no captulo 1, Bagby e Taylor foram os primeiros a declarar a igreja organizada em
Salvador como o marco inicial batista. Depois Salomo Ginsburg, Antonio N. de Mesquita, Asa R.
Crabtree e Jos dos Reis Pereira. O ltimo anunciou o centenrio dos batistas no X Congresso da
Aliana Batista Mundial em 1960.
722
Cf. p. 79.
723
FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder, p. 13.
724
OLIVEIRA, Betty Antunes de. No primeiro centenrio dos pioneiros norte-americanos. O Jornal
Batista. Rio de Janeiro, 27 nov. 1966, p. 1,6.
277
produo da verdade, no campo do conhecimento da histria dos batistas brasileiros.
Soihet observou:
As fissuras dominao masculina no assumem, via de regra, as formas
de ruptura espetaculares, nem se expressam sempre num discurso de
recusa ou rejeio. Elas nascem no interior do consentimento, quando a
incorporao da linguagem da dominao reempregada para marcar
uma resistncia. 725
SOIHET, Rachel. Enfoques feministas e a histria: desafios e perspectivas. In: SAMARA, Eni de
Mesquita. SOIHET, Rachel. MATOS, Maria Izilda S. de. Op. cit., p. 72.
726
BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina, p. 7-8.
727
Id. p. 22.
728
NOTA DA REDAO. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 27 nov. 1966, p. 1.
278
socialmente inaceitveis para uma esposa de pastor batista que enfrentava
publicamente um pastor;
729
Restolho Seco, qualificada pela autora apenas como uma contribuio para a
histria dos primrdios do trabalho batista no Brasil e no algo como a verdadeira
histria das origens do trabalho batista no Brasil. Esses atos de reconhecimento,
paradoxais se levar em conta os aspectos polticos do debate, revelam evidncias de
uma violncia simblica.
A violncia simblica se institui por intermdio da adeso que o
dominado no pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto,
dominao) quando ele no dispe, para pens-la e para se pensar, ou
melhor, para pensar sua relao com ele, mais que de instrumentos de
conhecimento que ambos tm em comum e que, no sendo mais que a
forma incorporada da relao de dominao, fazem esta relao ser vista
como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele pe em
ao para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes
(elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da
incorporao de classificaes, assim naturalizadas, de que seu ser social
produto. 730
731
ocorreu de forma mais objetiva, contra um saber equivocado, segundo Betty, e que
havia sido institudo pelo domnio masculino no conhecimento da histria dos
batistas no Brasil. No entanto, os desdobramentos polticos provocados pelo artigo de
Betty de Oliveira, que visibilizaram os conflitos de gnero e poder na Conveno,
tornaram a aprovao de Reis Pereira em public-lo com grande prazer em O
Jornal Batista um enigma.
Apesar do esprito democrtico dos batistas, os artigos a serem publicados
deveriam se submeter a critrios bem definidos, sob a censura do diretor.
732
Jornal Batista da era Reis Pereira poderia fazer parte de uma sociedade do
discurso, onde, segundo Foucault, poucos podem falar legitimamente.
Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, certo, procedimentos
de excluso. O mais evidente, o mais familiar tambm, a interdio.
Sabe-se bem que no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar
729
279
de tudo em qualquer circunstncia, que qualquer um, enfim, no pode
falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstncia, direito
privilegiado ou exclusividade do sujeito que fala: temos a o jogo de trs
tipos de interdies que se cruzam, se reforam ou se compensam,
formando uma grade complexa que no cessa de se modificar. 733
734
do mundo dos homens, precisava ser punida atravs da violncia, para que a ordem
social pudesse ser mantida.
Antes de continuar essa linha de raciocnio preciso destacar que ao se
analisar um fenmeno social a partir do uso de gnero, observa-se que essa chave
hermenutica atravessada por outras categorias que influenciam diretamente no
resultado da anlise. No s o sexo, mas a classe social, raa/etnia, idade e cultura
so dados que precisam ser considerados tambm na anlise que usa gnero como
instrumento de interpretao. Neste sentido, observou Gebara, falar de gnero
tambm falar no plural, tendo em vista a diversidade de nossas culturas e situaes.
735
Desse modo, legtimo perguntar se outra mulher brasileira, que no fosse esposa
280
postos na liderana das organizaes femininas batistas brasileiras, deixando os
lugares secundrios paras as mulheres nativas.
736
738
) foram
Lima ainda informou que Florestan Fernandes e Roger Bastide encontraram em suas
pesquisas, sinais de racismo brasileiro no final da dcada de 1940 e que o racismo
no Brasil foi sempre tabu.
736
741
O caso de Ester Silva Dias pode ser uma exceo: eleita presidente da Unio Geral de Senhoras do
Brasil em 1935, ocupou esse cargo durante 24 anos ininterruptos. PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos
batistas no Brasil (1882-1982), p. 219.
737
BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina, p. 112.
738
PEREIRA, J. dos Reis . Histria dos batistas no Brasil (1882-1982). p. 113-121.
739
OLIVEIRA, Betty Antunes de. No primeiro centenrio dos pioneiros norte-americanos, p. 6.
740
LIMA, Marcus Eugnio. Op. cit. p. 25.
741
Id. p. 25.
281
Para uma cultura que continuava a valorizar quem era branco e anglo-saxo,
portanto, Betty de Oliveira, esposa de pastor (que tambm foi deputado federal),
descendente direta de colonos norte-americanos, jornalista e musicista, tinha as
credenciais apropriadas para escrever o artigo que foi publicado em O Jornal Batista
em 1966.
Apesar das qualificaes de Betty de Oliveira, fica ainda a pergunta sobre a
razo que fez o editor de O Jornal Batista aprovar com grande prazer a publicao
do seu artigo, levando-se em conta os seus desdobramentos polticos. Quando Reis
Pereira assumiu a direo do jornal, declarou que ele deveria representar o
pensamento do povo batista brasileiro
742
743
744
746
747
748
742
PEREIRA, J. dos Reis. Uma palavra muito pessoal. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 5 abr. 1964,
p. 3.
743
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), p. 78.
744
PEREIRA, J. dos Reis. Uma palavra muito pessoal, p. 3.
745
P. 163.
746
GONALVES, Almir dos Santos. O Jornal Batista. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 26 jun. 1960,
p. 15.
747
AGUILERA, Jos Miguel Mendoza. Apud SANTOS, Marcelo. Op. cit. p. 56.
748
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Trad. Raquel Ramalhete. 31. edio.
Petrpolis: Vozes, 2006.
749
FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder, p. 190.
282
Desse modo, O Jornal Batista da era Reis Pereira pode ser comparado ao
panptico de Bentham, uma mquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais
diversos, fabrica efeitos homogneos de poder, um poder que mesmo tendo uma
multiplicidade de homens a gerir to eficaz quanto se ele se exercesse sobre um
s
750
751
752
283
O peso da condenao era significativo, vez que o jornal era considerado uma obra
de inspirao e orientao divina.
755
Machado observou:
[...] a vigilncia um de seus principais instrumentos de controle. No
uma vigilncia que reconhecidamente se exerce de modo fragmentar e
descontnuo; mas que ou precisa ser vista pelos indivduos que a ela
esto expostos como contnua, perptua, permanente; que no tenha
limites, penetre nos lugares mais recnditos, esteja presente em toda a
extenso do espao. Indiscrio com respeito a quem ela se exerce que
tem como correlato a maior discrio possvel da parte de quem a
exerce. Olhar invisvel como o Panopticon de Bentham,, que permite
ver tudo permanentemente sem ser visto que deve impregnar quem
vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a viso de quem o
olha. 756
757
Gonalves
760
, Ida de Freitas
761
759
, Heracledina Lemos
284
763
; e/ou foi uma ao voluntria, intencional, vez que cada tipo de dominao
764
O poder mantido e aceito porque ele tambm uma fora transigente e a est o seu
consentimento. Ao consentir, propicia a manifestao de uma rede de relaes de
foras, porque o poder, segundo Foucault, onipresente, est em toda parte; no
porque englobe tudo e sim porque provm de todos os lugares.
766
768
Assim, no s o saber
285
masculino havia sido questionado, mas tambm, por implicao e de forma
politicamente perigosa, o seu poder. Foucault ensinou que saber e poder eram
sinnimos e que, portanto, no havia um saber neutro, apoltico, porque todo o saber
tem sua origem nas relaes sociais de poder. Machado interpretou o pensamento de
Foucault da seguinte maneira:
O fundamental da anlise que saber e poder se implicam mutuamente:
no h relao de poder sem constituio de um campo de saber, como
tambm, reciprocamente, todo saber constitui novas relaes de poder.
Todo ponto de exerccio do poder, , ao mesmo tempo, um lugar de
informao de saber. 769
770
771
MACHADO, Roberto. Introduo: por uma genealogia do poder. p. XXI. Cf. tambm o trabalho
de BIAGGIO, Jorge Luiz. A novidade do poder na historiografia de Michel Foucault. So Paulo,
1992. Dissertao de Mestrado. PUC-SP.
770
MACHADO, Roberto. Op. cit. p. XXII.
771
SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til de anlise histrica, p. 14.
286
recebessem oportunidade e estmulo, igualariam ou superariam as
realizaes criadoras dos homens praticamente indefensvel e somente
os que exaltam a capacidade criadora acima de tudo o mais que se
interessam em demonstrar que as mulheres podem competir com os
homens nesse aspecto. 772
774
775
STORR, Anthony. A agresso humana. Trad. Edmond Jorge. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976, p. 78.
773
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Op. cit. p. 71.
774
GEBARA, Ivone. Rompendo o silncio. p. 64.
775
O caso da mexicana Joana Ins da Cruz, que viveu no sculo XVII, a primeira feminista da
Amrica Latina emblemtico. Cf. GEBARA, Ivone. Rompendo o silncio, p. 62-68.
287
do debate em arena pblica, visibilizando, de forma incmoda para a liderana
masculina, conflitos de gnero e poder na Conveno Brasileira.
Quanto primeira razo e conforme o Captulo 3 desta pesquisa, as mulheres
dos anos dourados viviam praticamente limitadas ao seu espao domstico, privado,
ou de privao, conforme Arendt. Sua misso era o casamento, o lar e os filhos,
embora tivessem maior acesso educao e mais oportunidades no mercado de
trabalho. A mulher que se apresentava no campo pblico, domnio dos homens, era
geralmente criticada pela cultura patriarcal. Herana da cultura burguesa,
A autntica feminilidade surgia como o inverso da masculinidade:
delicadeza, beleza sensual, comedimento pblico e fragilidade. Todas
essas caractersticas figuravam como o modelo oposto do herico
masculino e consagravam a idia segundo a qual quanto mais feminina a
mulher e mais masculino o homem, tanto mais saudveis a sociedade e o
Estado, preceito que apontava para a necessidade de que houvesse uma
separao entre os sexos de modo tal que se pudesse indicar com
preciso caractersticas e comportamentos tpicos de cada gnero. 776
A ordem social de gnero dos anos dourados estava assim estabelecida com suas
relaes de dominao patriarcal e androcntrica, revelando uma lgica da
dominao exercida em nome de um princpio simblico conhecido e reconhecido
tanto pelo dominante quanto pelo dominado.
777
778
780
Nesse contexto,
as expectativas sociais sobre o papel das mulheres alijavam- nas dos lugares
significativos de saber-poder da sociedade. Esse aspecto poltico precisa ser
776
288
considerado em uma anlise de gnero, porque gnero construdo igualmente na
economia e na organizao poltica.
781
781
289
especfica, qual seja a de contribuir para a manuteno da ordem
simblica. 784
Mas os anos 1960 foram afetados por uma revoluo cultural-sexual que
questionou o lugar social tradicionalmente atribudo mulher. Aqueles eram os
anos 60: questionava-se tudo, qualquer coisa era possvel.
785
A mdia descrevia a
mulher do incio da dcada como mais simples e independente, bem mais liberal em
sua viso dos problemas do mundo de hoje e, sobretudo, ciente de suas
responsabilidades na comunidade em que vive.
786
Friedan desmistificou o papel da mulher dos anos dourados ao lanar seu livro A
Mstica Feminina que revolucionou a sociedade americana. Os movimentos sociais
da poca, dentre eles o feminismo, promoviam significativas transformaes na
sociedade.
Desse modo, a insurgncia de Betty de Oliveira no se deu apenas porque
havia pesquisado com mais apuro as origens do trabalho batista no Brasil.
Certamente, ela aproveitou a oportunidade histrica para homenagear a memria dos
colonos de Santa Brbara atravs da sua reportagem, mas a visibilizao de seu
saber-poder no ocorreu em um vazio poltico e cultural. Parece que aquela
revoluo cultural-sexual e o ambiente sociopoltico dos anos 1960, que foram
favorveis manifestao pblica de mulheres no cenrio nacional, serviram- lhe de
motivao adicional para publicar a sua tese em O Jornal Batista.
Como foi visto no Captulo 3, as centenas de milhares de marchadeiras de
1964 e o nmero de mulheres congressistas entre 1965 a 1966 (a maior representao
feminina na histria poltica daqueles tempos), sinalizaram mudanas nas relaes de
gnero e poder na sociedade brasileira. Alm disso, apesar dos preconceitos, as
mulheres estavam ocupando postos significativos no mercado de trabalho. O caso da
presbiteriana Esther de Figueiredo Ferraz, que em 1965 foi eleita reitora de uma
universidade, sendo a primeira mulher a ocupar esse cargo no Brasil exemplar.
Desse modo, conclui-se que em 1966 havia um contexto cultural, social e poltico
favorvel para o questionamento pblico de uma mulher batista atravs do jornal
oficial da Conveno Brasileira.
784
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Org. trad. Sergio Miceli. 5. ed. So Paulo:
Perspectiva, 2004. (Coleo Estudos, 20). p. 70.
785
STRATHERN, Paul. Op. cit. p. 48.
786
Cf. p. 204.
290
Trata-se de um caso de transgresso de g nero, em segundo lugar, porque
Betty de Oliveira jornalista (no meio batista daqueles anos 1960, isso representava
uma exceo
787
788
789
791
Nos anos 1960, o Seminrio Batista do Norte do Brasil, em Recife, PE ofereceu a disciplina
Jornalismo, que no permaneceu muito tempo em sua grade curricular. Essa disciplina foi ministrada
por uma professora. Ver Captulo 2, p.
788
KOSHIYAMA, Alice Mitika. Mulheres jornalistas na imprensa brasileira. Trabalho apresentado
no XXIV Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao INTERCOM Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicao, [s.d.], Campo Grande, MS. Disponvel em:
<http://reposcom.portcom.intercom.org.br>. Acesso em: 13 nov. 2007.
789
KOSHIAYAMA, Alice Mitika. Op. cit.
790
BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina, p. 115.
791
BUITONI, Dulclia Helena Schroeder. Imprensa feminina. So Paulo: tica, 1986, p. 11.
291
793
794
795
796
O seu texto
292
histria dos batistas) e acrescentou valor significativo sua transgresso, ao propor
uma nova verdade no campo do conhecimento historiogrfico batista.
A transgresso de gnero pode ser demonstrada, em terceiro lugar, porque
Betty de Oliveira era esposa de pastor e, como tal, o seu papel durante o debate no
correspondia s expectativas das representaes sociais de esposas de pastores
batistas de sua poca.
797
Moscovici iniciou seus estudos sobre representaes sociais a partir do seu interesse
na reabilitao do senso comum, do conhecimento comum, popular. A relao do
conceito de representaes sociais com o conceito de Durkheim sobre representaes
coletivas est na preocupao do ltimo em conhecer os mecanismos que mantinham
as sociedades coesas. Apesar da sua inspirao em Durkheim, Moscovici procurou
responder tambm como o senso comum transformado, promovendo mudanas na
797
Sobre o papel da esposa de pastor, alm do que foi exposto no captulo 2, cf. o trabalho de
ROCHA, Fernanda. Mulheres ideais: uma anlise do processo de construo e de manuteno das
representaes sociais das esposas de pastores batistas de Curitiba. So Bernardo do Campo, SP,
2008. Dissertao de Mestrado. Universidade Metodista de So Paulo.
798
MOSCOVICI, Serge. Apud DUVEEN, Gerard. Introduo: o poder das idias. In: MOSCOVICI,
Serge. Representaes sociais: investigaes em psicologia social. Trad. Pedrinho A. Guareschi. 2.
ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2003, p. 10.
293
sociedade e como esses processos sociais acabam sendo incorporados na vida social.
Ele percebeu um carter dinmico nas representaes sociais.
799
fundamental na formao das representaes sociais, por isso elas esto inseridas
nos sentidos das palavras e, por conseguinte, so recicladas e perpetuadas atravs do
discurso pblico.
800
sociais:
a)
802
que no intensificou o debate, porque sendo bisneta, filha e esposa de pastor, nada
ganharia em termos pessoais e sociais discutir com Reis Pereira, sobre o marco
inicial do trabalho batista.
803
294
das igrejas, eternizando um sistema [...] de acordo com os interesses da minoria que
domina, silenciando as mulheres, negando- lhes espao.
804
Portanto, Betty recebeu uma formao familiar e religiosa que deveria ter
inibido o seu trnsito em espao de exclusivo domnio masculino: a constituio do
saber ou da produo do conhecimento historiogrfico entre os batistas. Esse era um
lugar, segundo a viso patriarcal, que no lhe pertencia. Nunes observou: a
constituio do saber como espao masculino articula-se com a questo da excluso
feminina na sociedade em geral e nas igrejas em particular.
805
806
807
feminina
fossem
trabalhados
publicamente:
violncia
sexual,
295
da mulher; 4) enfatizar seu carter histrico frente s tentativas de
explicar a opresso da mulher a partir da natureza ou da essncia
feminina; e 5) protestar contra todo empenho em classificar a opresso
da mulher como uma contradio marginal. Nos incios do atual
movimento feminista j o gesto ousado de proclamar a luta contra o
todo-poderoso patriarcado constitua um ato de libertao (Hausen,
18). 808
809
XVIII.
Os anos 1970, portanto, representaram transformaes na ordem social de
gnero tanto nas igrejas crists como na sociedade. Mas o mesmo contexto
sociopoltico que promoveu uma nova maneira de compreender os papis de gnero
reacendeu os sentimentos misginos principalmente nas igrejas crists com
movimentos fundamentalistas. Eliane Silva observou que nesse perodo:
O papel dos jovens, a revoluo sexual e a emancipao das mulheres,
igualdade de direitos para minorias e homossexuais, que pareciam abalar
a sociedade, forneceram fortes argumentos aos fundamentalistas em
favor dos seus lemas conservadores. 810
808
296
O fundamentalismo religioso oferece certezas plenas, respostas absolutas e
convices inabalveis
811
812
813
814
811
SILVA, Eliane Moura da. Fundamentalismo evanglico e questes de gnero. In: SOUZA, Sandra
Duarte de. (Org.). Gnero e religio no Brasil: ensaios feministas. So Bernardo do Campo:
Universidade Metodista de So Paulo, 2006. p. 12.
812
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Apud. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Op. cit. p. 49.
813
Isso tambm pode ser questionado pelos segmentos batistas conservadores, que entendem que o
pastor exerce apenas uma funo eclesistica diferenciada dos demais membros das igrejas, que no
lhe confere quaisquer poderes sagrados ou especiais. No entanto, as implicaes scio-religiosas da
representao que o pastor, enquanto lder espiritual, na mediao do sagrado no exerccio do seu
ministrio, levam-nos a concluir que o seu ofcio contribui para que a sua imagem seja popularmente
sacralizada.
814
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas lingsticas: o que falar quer dizer. Trad. Sergio Miceli.
So Paulo: EDUSP, 1996, p. 99.
815
Id. p. 99.
297
espao sagrado que eficiente medida que ele reproduz a obra dos deuses. 816
Embora separado para servir a sua comunidade, o pastor exerce na verdade,
conforme observou Foucault, um tipo especial de poder, que no pode ser exercido
sem o conhecimento e o controle das almas de seu rebanho.
817
819
(Eliade tambm
820
). Assim, no
821
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essncia das religies. Trad. Rogrio Fernandes. So
Paulo: Martins Fontes, 1992 (Tpicos), p. 32.
817
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P. DREYFUS, H. Michel Foucault:
uma trajetria filosfica para alm do estruturalismo e da hermenutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitria, 1995.
818
GEBARA, Ivone. Rompendo o silncio, p. 117, 226.
819
ERICKSON, Victoria Lee. Op. cit. p. 282.
820
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Apud ERICKSON, Victoria Lee. Op. cit. p. 105.
821
ERICKSON, Victoria Lee. Op. cit. p. 49.
298
vieram a controlar suas mulheres e as comunidades em que elas vivem.
[...] O trabalho de Durkheim demonstra que a ordem sagrada [de
homens] pressupe a violncia e requer esta para manter sua identidade e
seu poder sobre os subjugados. 822
824
826
299
Mais adiante registrou que Betty de Oliveira teve apoio de lderes homens, ainda que
um grupo pequeno
828
primeira igreja batista do Brasil, mas o suficiente para dividir seriamente as opinies
sobre o marco inicial no contexto da Conveno Brasileira at hoje.
Seria uma pretenso comparar a importncia do artigo de Betty de Oliveira
publicado em O Jornal Batista em 1966 com o papel da Declarao dos Direitos da
Mulher e da Cidad, documento elaborado por Olympe de Gouges 829 nos anos 1790,
no perodo da Revoluo Francesa. Gouges defendeu direitos e privilgios iguais a
mulheres e a homens e sua declarao se tornou o documento representativo para
feministas. Mas a conexo entre os dois textos pode estar no campo da inteno, da
estratgia. Conforme Scott,
Olympe de Gouges representava o papel reservado aos homens de
forma instrumental, a fim de torn-lo disponvel s mulheres. Essa
representao desafiava o que se entendia de modo consensual e
inquestionvel como qualidades masculinas e femininas, e, pior, expunha
a natureza contraditria e exclusiva da associao vigente entre
Homem [macho] e Cidado ativo. 830 [grifo meu].
827
300
sobre as representaes sociais das mulheres no contexto da Conveno Brasileira
dos anos 1960-1980. Por isso esta pesquisa entende que a atuao de Betty de
Oliveira pode ser classificada como uma transgresso de gnero.
831
um
832
833
iguais, entre homens. Dois pastores, dois historiadores batistas, dois jornalistas.
Pedro Paulo de Oliveira, ao analisar a construo social da masculinidade atravs dos
duelos que ocorreram na passagem da Idade Medieval para a Moderna, escreveu:
[Os duelos] se transformaram em episdios protagonizados por agentes
masculinos em que trs resultados se tornavam possveis para os atuantes
no combate: manuteno, obteno ou perda de smbolos de status e
honra. Podem ser vistos como uma forma de vivncia interacional da
masculinidade [...], fundamental para a valorizao, manuteno e
reproduo da idia de honra masculina. 834
O debate sobre o marco inicial batista exps tambm a idia da defesa da honra
masculina de sustentar publicamente discursos divergentes como em um duelo
antigo. Os trs p da ideologia masculina se manifestaram nesse embate pessoal:
831
PEREIRA, J. dos Reis. Os batistas brasileiros fazem 84 anos. O Jornal Batista. Rio de Janeiro, 16
out. 1966, p. 1.
832
Cf. p. 76.
833
PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), p. 244-245.
834
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. Op. cit. p. 24-25.
301
potncia, poder e posse.
835
No entanto, ao ser representada por um homem nesse duelo, revelou tambm sua
condio de submisso social: a submisso feminina ficava explcita no caso dos
duelos, observou Pedro de Oliveira. 838
Aparentemente, Betty de Oliveira no representou ameaa para Reis Pereira
em 1966, por isso o seu silncio. O silncio de Reis Pereira durante o perodo
compreendido entre as publicaes dos artigos de Betty de Oliveira e Ebenzer
Cavalcnti pode ser explicado atravs da combinao de trs significados: 1) em
primeiro momento, o editor subestimou a importncia do artigo de Betty, face s
argumentaes favorveis a Salvador, BA, sustentada h anos por ele e outros
renomados historiadores homens batistas; 2) o silncio foi intencional, estratgico:
para no estimular polmica sobre assunto que j estava definido para ele e 3) o
silncio foi uma tentativa para desqualificar o saber de Betty de Oliveira sobre a
histria das origens dos batistas brasileiros: os homens sabem, as mulheres
questionam
839
302
defesa de privilgios, da correlao de foras poltico-sociais. ,
portanto, no-cientfico, veiculando idias falsas, ilegtimas,
discriminatrias que, exatamente por apresentarem tais caractersticos,
preservam posies de mando e tambm, bvio, seus ocupantes. 840
842
[grifo
meu].
O silncio de Reis Pereira em relao ao conhecimento de Betty de Oliveira
significativo: nada comentou sobre o artigo publicado em 1960,
843
no se manifestou
844
Foucault oferece uma outra razo para analisar o silncio de Reis Pereira: o
medo. Por se tratar de uma batalha de saberes, o adversrio pode ou no estar
sinalizando medo atravs do seu silncio.
845
porque no teve medo de sua adversria, isso pode significar que considerou o seu
saber abaixo do nvel requerido de conhecimento ou de cientificidade, um saber
840
303
hierarquicamente inferior, desqualificado, um saber dominado.
846
Nesse caso,
847
Evangelho de Maria, onde Maria Madalena sofreu oposio dos apstolos Andr e
Pedro, porque relatou a viso que teve do Cristo ressuscitado. Segundo esse
Evangelho, Andr teria dito: Decidam o que vocs querem sobre o que ela nos
disse. Eu, no entanto, no creio que o Salvador tenha dito essas coisas. Certamente
esses ensinos so idias estranhas!. 848 Mais tarde, tendo sido confirmada a viso de
Maria Madalena, s os homens foram autorizados a anunciar o Cristo ressuscitado.
849
850
851
846
304
Nesse artigo de Reis Pereira se pode observar quantas vezes ele associa as mulheres
a fatos religiosos negativos, segundo a perspectiva batista: mulheres e paganismo
primitivo, mulheres e catolicismo (que para os primeiros missionrios se tratava de
um cristianismo distorcido, quase pago), mulheres e religies afro-brasileiras
(tidas como pags pelos evanglicos). Segundo ele, o endeusamento de Maria, me
de Jesus, foi originado pela influncia da imperatriz Irene em 787.
Ainda sobre esse tema, a combinao do preconceito de gnero com a forte
oposio ao catolicismo dos primeiros missionrios pode ter sido outra razo porque
a igreja organizada na cidade de Santa Brbara no foi considerada a primeira igreja
batista do Brasil. A igreja foi fundada em lugar onde se invocava o nome de santa
catlica.
853
ficaria apropriado declarar que a primeira igreja batista do Brasil chamava-se Igreja
Batista de Santa Brbara, ou que fora organizada em Santa Brbara, So Paulo. Esses
nomes estavam intimamente associados ao catolicismo romano. Mas h outro ponto
a ser considerado: alm de santa, era uma representao feminina, uma mulher. Alm
disso, a histria da fundao da cidade estava tambm relacionada a uma mulher:
Dona Margarida da Graa Martins, a nica mulher, em toda a histria brasileira, a
aventurar os percalos do desbravamento, da formao de uma Fazenda e a fundao
de uma povoao.
854
855
Betty de Oliveira
856
atravs de uma santa, com a prpria histria da fundao da cidade, que envolveu
uma mulher (ou mulheres), pode tambm ter contribudo para a deciso de se
transferir para Salvador, BA, o privilgio de ser o marco inicial do trabalho batista no
853
Santa invocada nas tempestades contra os raios. Aps a inveno da plvora, ela se tornou a
patrona dos mineiros. Disponvel em: <http://paroquiasantabarbara.org.br>. Acesso em: 26 dez. 2008.
Seu nome significa a que balbucia (palavras desconhecidas). LEITE, Norberto de Oliveira. Nomes
& significados: grande dicionrio etimolgico de nomes prprios. 3. ed. Curitiba: edio do autor,
1992, p. 13.
854
CMARA MUNICIPAL DE SANTA BRBARA DOESTE. Nossa cidade: histria. Disponvel
em <http://www.camarasantabarbara.sp.gov.br/nossa_cidade/historia/>. Acesso em: 12 dez. 2007.
855
QUEIROZ, Adolpho. NEGRI, Ana Camilla Frana de. (Orgs.). A histria da imprensa em Santa
Brbara dOeste. Santa Brbara dOeste, SP: SOCEP, 1998. (Histria e Memria; v. 3). p. 13.
856
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco, p. 15. A autora repete essa informao
na p. 37 da segunda edio do seu livro em 2005. Porm, o site oficial da Cmara de Santa Brbara
informa que a primeira composio de vereadores foi formada exclusivamente por homens: Antonio
Theodoro de Oliveira e Souza (presidente), Joaquim Benedito do Amaral, Jos Soares Godoy, Cesrio
Cavalheiro Leite, Joo Batista Lino e Joo Ferraz de Campos.
305
Brasil. Alis, Salvador era um nome mais apropriado para a teologia patriarcal e
androcntrica dos primeiros missionrios. Deve-se ressaltar, no entanto, que no h
como provar documentalmente essa afirmao, embora o anticatolicismo e o carter
patriarcal tenham sido as caractersticas marcantes do trabalho missionrio batista no
Brasil.
O silncio de Reis Pereira em relao ao trabalho de Betty de Oliveira, no
perodo compreendido entre os anos de 1966 a 1982, foi uma censura velada que
revelou o seu preconceito de gnero. Neste ponto interessante destacar a definio
de preconceito pelo professor Jos Leon Crochk:
O preconceito quase uma iluso, um delrio com relao ao alvo. O
preconceituoso na verdade queria que seu alvo fosse como ele gostaria;
no ; portanto ele o culpa pela contrariedade. [...] O preconceituoso no
quer conviver com a prpria fragilidade. Ele v no outro caractersticas
que quer para si, de modo a diminuir sua sensao de fragilidade. 857
858
dominao); ele pode manter as mulheres inseridas (normatizao); ele pode manter
as mulheres distantes (evitao). So formas de violncia sexista que o homem
preconceituoso se utiliza porque no sabe lidar com a sua prpria fragilidade. De
forma complexa, ele se v em seu alvo, quer as suas caractersticas, mas ao mesmo
tempo, repudia.
No fundo, os homens sabem que o organismo feminino mais
diferenciado que o masculino, mais forte, embora tendo menor fora
fsica, capaz de suportar at mesmo as violncias por eles perpetradas.
No ignoram a capacidade das mulheres de suportar sofrimentos de
ordem psicolgica, de modo invejvel. Talvez por estas razes tenham
necessidade de mostrar sua superioridade, denotando, assim, sua
inferioridade. 859 [grifo meu].
Por causa das suas fragilidades, os homens invejariam esses atributos femininos que
certamente os complementariam e que lhes seriam muito teis. Mas admitir esse
857
CROCHK, Jos Leon. Apud Psique: cincia e vida. So Paulo, no. 35, p. 23-25.
PRECONCEITO DE TODO DIA. Psique: cincia e vida. So Paulo, no. 35, p. 22.
859
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gnero, patriarcado e violncia. So Paulo: Editora Fundao Perseu
Abramo, 2004. (Coleo Brasil Urgente). p. 33.
858
306
desejo seria acrescentar outra fragilidade quelas que j convivem com eles. Isso
seria considerado uma feminizao, um pecado em uma ordem patriarcal que se
fundamenta na virilidade como valor social positivo para os homens. Portanto,
atribuir poder s mulheres (empoderamento) nesse contexto scio-religioso seria
admitir a impotncia dos homens.
O silncio de Reis Pereira tambm pode ser classificado como uma violncia,
porque foi uma forma de represso.
A represso funciona, decerto, como condenao ao desaparecimento,
mas tambm como injuno ao silncio, afirmao de inexistncia e,
consequentemente, constatao de que, em tudo isso, no h nada para
dizer, nem para ver, nem para saber. 860
pela
dominao
masculina
contriburam
para
307
no campo intelectual. Sua produo literria rompeu com os cdigos patriarcais de
sua poca e Joana foi exilada em um convento, onde veio a falecer.
862
Joana foi
863
plausveis
as
argumentaes
as
implicaes
polticas
do
308
atravs dos simpatizantes masculinos da posio insurgente que se manifestaram
aps o artigo de 1966 e isso o levou a considerar as implicaes polticas desse
levante, fazendo-o trabalhar intensamente para defender a posio oficial da
Conveno. Lderes importantes como o Pastor Ebenzer Cavalcnti colocaram-se ao
lado de Betty de Oliveira e outros mais poderiam fazer o mesmo. O saber-poder de
uma mulher estava oferecendo uma histria nova perigosamente poltica, dividindo
opinies entre a liderana masculina, ameaando a unidade da Conveno sobre o
assunto e isso deve ter despertado sentimentos misginos.
Armstrong observou que embora o cristianismo fosse originalmente bastante
positivo em relao s mulheres, j havia desenvolvido uma tendncia misgina no
Ocidente na poca de Agostinho.
866
Tertuliano culpou as mulheres pela runa espiritual dos homens e tambm pela morte
de Cristo.
O cristianismo catlico contribuiu significativamente para a reproduo de
sentimentos misginos, como observou Bourdieu:
[A] Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a
condenar todas as faltas femininas decncia, sobretudo em matria de
trajes, e a reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma viso pessimista das
mulheres e da feminilidade, ela inculca (ou inculcava) explic itamente
uma moral familiarista, completamente dominada pelos valores
patriarcais e principalmente pelo dogma da inata inferioridade das
mulheres. Ela age, alm disso, de maneira mais indireta, sobre as
estruturas histricas do inconsciente, por meio sobretudo da simblica
dos textos sagrados, da liturgia e at do espao e do tempo religiosos
[...]. 868
ARMSTRONG, Karen. Uma histria de Deus: quatro milnios de busca do judasmo, cristianismo
e islamismo. Trad. Marcos Santarrita. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 132.
867
TERTULIANO. Do traje feminino. I, i. Apud ARMSTRONG, Karen, Uma histria de Deus..
868
BOURDIEU, Pierre. A dominao masculina, p. 103.
309
pensamento paulino sobre o pecado da primeira mulher.
869
queda do homem, promovendo com isso toda sorte de infortnios para a histria da
humanidade.
870
871
Pandora, uma
mulher dotada de todas as virtudes femininas, foi enviada por Zeus para castigar a
humanidade. Trouxe consigo uma caixa que ao ser aberta liberou a dor e o
sofrimento entre os seres humanos. Segundo Hesodo, Pandora a representao da
mulher que arruna a vida dos homens.
872
criada e que se recusou a ser dominada pelo homem. Por isso, separou-se dele e
tornou-se a Lua Escura, aquela que provocava doenas e morte de crianas.
873
Da
porque esses mitos revelam um tremendo medo masculino do poder suprimido das
mulheres
874
875
876
e ofereceu-o
RUETHER, Rosemary R. Sexismo e religio: rumo a uma teologia feminista. Trad. Walter
Altmann, Lus Marcos Sander. So Leopoldo, RS: Sinodal, 1993, p. 140. Ehrman argumentou que os
textos paulinos que excluem as mulheres dos lugares de poder na igreja foram intencionalmente
alterados por copistas misginos. EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus no disse?:
quem mudou a Bblia e por qu. Trad. Marcos Marcionilo. So Paulo: Prestgio, 2006, p. 188-196.
870
Armstrong observou que nem os judeus nem os cristos ortodoxos gregos encaravam a queda de
Ado sob uma luz to catastrfica; nem, depois, adotariam os muulmanos essa sombria teologia de
Pecado Original. ARMSTRONG, Karen. Uma histria de Deus. p. 132.
871
RUETHER, Rosemary R. Op. cit. p. 141.
872
HESODO. Apud RUETHER, Rosemary. Op. cit. p. 140.
873
BUSCEMI, Maria Soave. Lilith, a deusa do escuro. MANDRGORA. So Bernardo do Campo,
SP, n. 1, p. 9-15, 1994. Cf. tambm HURWITZ, Siegmund. Lilith, a primeira Eva: aspectos histricos
e psicolgicos do lado sombrio feminino. Trad. Daniel da Costa. So Paulo: Fonte Editorial, 2006.
874
RUETHER, Rosemary R. Op. cit. p. 141.
875
BUSCEMI, Maria Soave. Op. cit. p. 14.
876
Gnesis 3.
310
catlica Irm Joana Ins da Cruz relatada por Gebara ilustra muito bem esse medo do
feminino no campo do saber:
Os homens responsveis pelo sagrado poder e sagrado saber no aceitam
sua sabedoria e no podem suportar uma intrusa em seu domnio: ela os
ameaa como Prometeu ameaou os deuses. E em nome de seu bem e
em nome de Deus que eles interceptam seu caminhar. Segundo a
interpretao deles, interceptam na realidade a errncia de sua alma
por demais preocupada com o saber, interceptam seu desejo de
transgredir as leis da natureza feminina, para entrar no universo
masculino. Sem acesso sua meta desejada, ela aceita a nica soluo
possvel: obedecer, calar-se e deixar-se morrer. 877
O saber feminino, segundo Souza, provoca medo nos homens que respondem pelas
instituies teolgicas. Esse saber pode ameaar a tradio, os dogmas. inovador,
provocador, causa dissenso e tambm ameaa a hegemonia masculina na produo
do conhecimento. Por isso, preciso distanciar as mulheres das disciplinas de poder.
Historicamente, o conhecimento das mulheres sempre foi desqualificado e
perseguido. As histrias mticas da criao, principalmente no contexto judaicocristo, contriburam para a desvalorizao do saber feminino. Na verdade, houve um
processo histrico de diabolizao da mulher.
879
877
311
de mulheres, acusadas de bruxaria pela Inquisio.
881
A causa acessvel que explicaria os males sociais foi chamado por Girard de bode
expiatrio.
883
884
O quadro
social aps o perodo da caa s bruxas foi bem retratado por Muraro:
Quando cessou a caa s bruxas, no sculo XVIII, houve grande
transformao na condio feminina. A sexualidade se normatiza e as
mulheres se tornam frgidas, pois o orgasmo era coisa do diabo e,
portanto, passvel de punio. Reduzem-se exclusivamente ao mbito
domstico, pois sua ambio tambm era passvel de castigo. O saber
feminino popular cai na clandestinidade [...]. As mulheres no tm
mais acesso ao estudo como na Idade Mdia e passam a transmitir
voluntariamente a seus filhos valores patriarcais j ento totalmente
introjetados por elas. 885 [grifo meu].
881
886
Muraro registrou que o nmero total de mulheres condenadas e executadas como bruxas pode ter
alcanado a casa dos milhes. MURARO, Rose Marie. Breve introduo histrica. In: KRAMER,
Heinrich. SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras: malleus maleficarum. Trad. Paulo Fres. 8.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1991, p. 13.
882
GIRARD, Ren. O bode expiatrio. Trad. Ivo Storniolo. So Paulo: Paulus, 2004. (Estudos
Antropolgicos). p. 23-24.
883
A figura e funo do bode expiatrio se encontram no livro do Levtico 16:7-10. Basicamente era
um animal escolhido pelos sacerdotes para representar o pecado do povo, que ao ser despedido vivo
para o deserto, levava consigo tambm os males espirituais.
884
MURARO, Rose Marie. Breve introduo histrica, p. 13.
885
Id. p. 16.
886
ARMSTRONG, Karen. Uma histria de Deus, p. 133.
312
Como foi visto no Captulo 2, a tentativa de consagrar mulheres ao ministrio
pastoral batista foi um exemplo claro de despertamento de sentimentos misginos na
esfera de atuao da Conveno Brasileira, principalmente durante os anos 1970.
Isso pode ser demonstrado porque naqueles anos Reis Pereira e outros
colaboradores, atravs dos seus artigos em O Jornal Batista, reagiram de forma
aberta e contrria ordenao de mulheres e atriburam o surgimento desse tema na
Conveno s influncias dos movimentos feministas no meio batista, considerados
por eles movimentos de origens impuras.
No obstante, a maioria das inovaes que inscreveram as mulheres nos
postos significativos de poder na estrutura organizacional da Conveno ocorreu
entre 1975 e 1980. Erickson justificou a luta feminina pelo acesso aos lugares
significativos de poder religioso ao observar que:
Numa sociedade que gratifica os que formam alianas com a vida
sagrada e masculina, e tortura os que no o fazem, compreensvel que
as pessoas conhecidas como mulheres (bem como as outras consideradas
femininas) quisessem ser sagradas. 887
888
889
887
313
Para que no haja inverso dos relacionamentos patriarcais, a dominao masculina
precisa controlar o corpo e a sexualidade da mulher. A necessidade masculina de
dominar as mulheres nessa rea explicada pelas tericas do patriarcado como
expresso da inveja (medo, misoginia?) do poder feminino na reproduo humana.
Segundo essa abordagem, porque privado dos meios de reproduo, o homem
transcende sua condio mistificando o seu papel na procriao, em detrimento do
trabalho da mulher, considerada apenas uma espcie de coadjuvante.
891
Desse modo, Eva no vem do p da terra (como Lilith), mas de uma costela do
primeiro homem, tornando-o, assim, seu pai- me. O parto de Ado pode
representar o desejo dos homens de controlar os meios da reproduo humana. Desse
modo, o texto bblico destacaria a primazia masculina na paternidade/maternidade,
negando, com isso, a privao do homem do trabalho reprodutivo.
Psicologicamente, o medo do feminino pode no estar apenas na questo do
poder reprodutor da mulher. Ela, como imagem arquetpica da Me, precisa ser
transformada, pelo filho homem,
Numa bruxa, pois o primeiro vnculo do filho com ela , claro, um
poder restritivo e, por conseguinte, enfeitiador na prpria criana, e a
criana tem de superar em prol de seu desenvolvimento progressivo do
ego, vale dizer, o matricdio, que est entre as tarefas do heri, exigido
da criana. 894
895
891
314
Tudo o que est relacionado com o mundo materno precisa ser abandonado pelo
jovem no rito de passagem. Ele no pode mais retornar quele mundo profano das
mulheres, pois isso significaria a sua feminizao.
Enquanto afastado, o jovem aprende que deve morrer para o mundo
profano. [...] Eliade documentou os rituais em que o jovem fisicamente
maltrata e ameaa matar a me, no esforo de demonstrar que agora est
separado dela e no mais se importa com ela. [...] Estas mensagens de
morte so dirigidas tanto me quanto ao filho. Os ritos de iniciao
estabelecem a crena de que outrora as mulheres aterrorizaram os
homens e que, agora, a vez de eles aterrorizarem as mulheres. 897
898
e que as
899
A religio
896
901
315
valoriza-se a virilidade, embora isso possa servir de armadilha para os homens, como
observou Bourdieu:
O privilgio masculino tambm uma cilada e encontra sua
contrapartida na tenso e contenso permanentes, levadas por vezes ao
absurdo, que impe a todo homem o dever de afirmar, em toda e
qualquer circunstncia, sua virilidade. 902
904
905
906
tanto nas igrejas quanto na sociedade. Nos anos de chumbo, as mulheres dos
movimentos de extrema esquerda que empunharam armas e foram presas pela
ditadura sofreram intensa e diferenciada tortura, porque o fato de ser mulher
acirrava neles [os torturadores homens do regime militar] uma raiva maior.
907
902
908
316
mulher sem a respectiva resposta-padro de um sistema patriarcal, podia significar a
feminizao dos homens desafiados. Por isso, os atos de violncia de gnero.
909
Os livros Histria dos Batistas no Brasil (1882-1982) do Pastor Jos dos Reis
Pereira, de 1982, e Centelha em Restolho Seco de Betty Antunes de Oliveira, de
1985, representam, de forma emblemtica, o resultado final do debate sobre o marco
inicial do trabalho batista no Brasil. So duas abordagens distintas sobre a origem
dos batistas brasileiros no s na questo da data e do lugar histricos, mas tambm
no que diz respeito forma como cada um produziu e apresentou a sua pesquisa.
O primeiro livro a ser lanado foi o de Reis Pereira em 1982, exatamente no
ano da celebrao do centenrio dos batistas brasileiros, segundo a posio oficial da
Conveno. Sobre sua obra, Reis Pereira escreveu: a ela dediquei o melhor que
tenho em matria de estudos, leituras e investigaes.
910
colonos de Santa Brbara, afirmou ter sido a primeira igreja batista estabelecida em
solo brasileiro, mas que era, entretanto, uma igreja de lngua inglesa, fundada para
servir aos colonos, e que nunca deixou de ser igreja de lngua inglesa.
911
Tratou o
assunto de Santa Brbara em uma pgina apenas (seu livro totalizou 370 pginas) e
no citou o nome de Betty de Oliveira e nem as suas pesquisas (artigos e livros j
publicados sobre a matria at 1982) em sua obra. Em sua Bibliografia Consultada,
Reis Pereira citou as obras de Helen Bagby Harrison, Os Bagbys do Brasil, de Ruth
Mathews, O Apstolo do Serto e a dissertao de mestrado de Marly Geralda
909
317
Teixeira, Os Batistas na Bahia: 1882-1925. Betty de Oliveira no figura nem no
ndice Onomstico. 912
O silncio em relao a Betty de Oliveira em seu livro j foi considerado, mas
significativo, porque Reis Pereira no poderia alegar desconhecer a pesquisa e as
publicaes de sua adversria. Desde 1966, Reis Pereira tinha contato com o trabalho
de Betty de Oliveira. Nos anos que se seguiram, empenhou-se em defender a
narrativa oficial atravs dos seus editoriais em O Jornal Batista e atuaes junto s
assemblias convencionais, embora no tenha enfrentado Betty de Oliveira de forma
direta e pblica.
913
914
Reis Pereira alegou ter usado em sua obra o melhor que possua em termos de
fontes. Ao ignorar a contribuio histrica de Betty de Oliveira em seu livro, revelou
parcialidade em seu conhecimento.
Um conhecimento que despreza a contribuio das mulheres no
apenas um conhecimento limitado e parcial, mas um conhecimento que
mantm um carter de excluso. 915
912
318
Por outro lado, em seu livro Centelha em Restolho Seco, publicado em 1985,
fruto de muitos anos de trabalho,
916
917
alm
319
O Prof. Silveira Bueno definiu restolho como: s.m. parte inferior do caule das
gramneas que fica enraizada depois da ceifa; restolha; resduos; restos.
919
Por isso
920
921
Evangelho
significa boas novas que comunicam luz, fora, energia e vida. Os vrios tons
amarelos comunicam no apenas a luz, mas tambm o calor, a energia. A centelha
(desenhada sobre a letra c) representa o incio da propagao do fogo, da energia,
da vida. So imagens que se conectam intimamente com o feminino: as boas novas
do nascimento de um filho (dar a luz, fora, vida) e o cuidado maternal (calor,
energia). A centelha o princpio da vida que gerada na mulher. O campo, ou a
terra, est associado natureza feminina, pois tambm um ventre bendito, que
produz, que d a luz.
A identificao das mulheres com a natureza ou da natureza com a
mulher no novidade. Nas diversas culturas, era muito comum falar da
natureza como de uma me que nutre seus filhos. Os indgenas das
Amricas falavam da Terra-Me como de uma divindade doadora de
vida e falam ainda hoje. 922
919
BUENO, Francisco da Silveira Bueno. Grande dicionrio da lngua portuguesa LISA. So Paulo:
Editora Lisa, 1987, p. 513.
920
A idia do desenho foi de Betty de Oliveira. A arte foi executada por Ana Maria Loureiro.
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco, p. iv.
921
OLIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco, p. iv.
922
GEBARA, Ivone. Rompendo o silncio, p. 127-128.
320
A capa do livro de Reis Pereira, porm, traz motivos bem distintos:
A capa do livro de Reis Pereira apresenta cinco figuras masculinas e apenas uma
feminina, que se destacam sobre o mapa do Brasil.
Os cinco homens da capa so lderes: representam a dominao masculina no
espao pblico. No sentido horrio, a primeira figura representa um pastor batizando
uma mulher. A segunda cena representa o Pastor Salomo Ginsburg evangelizando o
cangaceiro Antonio Silvino. Acima, a figura do Pastor Billy Graham pregando a
Bblia, tendo ao fundo o estdio do Maracan, RJ. E por ltimo, o Pastor William
Bagby, cado ao cho, depois de sofrer uma pedrada durante um sermo ao ar livre.
Todos os homens batistas representados na capa so padres masculinos de uma
tica weberiana do guerreiro herico.
923
923
321
Maracan no X Congresso da Aliana Batista Mundial em 1960 e William Bagby
suporta o sacrifcio, a dor e o sofrimento por amor ao Evangelho. Alis, o sofrimento
masculino , na cultura patriarcal, o paradigma de todo sofrimento humano,
conforme observou Gebara:
O sofrimento masculino, sofrimento pblico, em nome de uma
coletividade, parece ser o paradigma de todo sofrimento. Numa
sociedade patriarcal [...] o sofrimento masculino, os atos de herosmo
pblico tm um papel de salvao para a ptria, para a nao, para o
povo. O sofrimento das mulheres, ao contrrio, no tem este papel. 924
925
926
927
homens.
924
322
Se toda historiografia viso seletiva do passado
928
, ento os historiadores
929
930
931
Reis Pereira reafirmou o lugar de auxiliar que a mulher ocupa no trabalho das igrejas.
Outros pesquisadores masculinos dedicaram pouco ou quase nenhum espao
histria das mulheres. O caso do historiador Antonio Mesquita curioso: ele
preferiu entregar o seu Captulo VI, sobre a histria da Unio Geral das Senhoras no
Brasil, a Minnie Landrum, ento secretria-coordenadora da respectiva Unio Geral.
932
Isso poderia ter sido considerado um privilgio para Landrum participar da obra
de Mesquita com um captulo sobre a histria das mulheres batistas. Mas pode haver
outro significado para esse privilgio:
No que se refere histria das mulheres, a reao da maioria das (os)
historiadoras (es) no feministas foi o reconhecimento e em seguida a
devoluo da histria das mulheres a um domnio separado. 933
928
323
histria das mulheres que certamente no nos concerne, ou a histria das mulheres
concerne ao sexo e famlia e deveria se fazer separadamente da histria poltica e
econmica, a verdadeira histria.
934
935
Por isso, os
936
Betty de Oliveira iniciou suas pesquisas com fontes vindas de baixo, conforme
narra a apresentao da sua obra:
Era uma vez... um ba velho, coberto de poeira, perdido num sto de
uma casa velha, no meio do canavial. Os marimbondos e as aranhas,
conviviam no meio das latas, paus e diversos objetos em desuso e sujos,
que, por ali, se encontravam amontoados. Dentro do ba, estavam jornais
e papis velhos, bem antigos. Entre eles, havia um, com os dizeres:
John-Welsh. Ferebe-Irish. Era s, mas o bastante para fazer pulsar com
profunda emoo e curiosidade o corao de uma senhora, de cabelos
grisalhos e de olhos azuis, que sobre o ba se debruava perspicazmente.
No era a ltima vez que isso iria acontecer jornalista Betty Antunes de
Oliveira. Aquele papel com os nomes John e Ferebe, seria a pista que a
levaria ao mundo fascinante da pesquisa. A ao de procurar documentos
e dados antigos, passaria a ser um dos grandes alvos de sua vida, nos
dezenove anos que se seguiram. Muitos outros fragmentos do passado
comearam ento a ser reunidos, formando uma linha histrica bem mais
abrangente e significativa do que pretendia um pequeno projeto inicial de
pesquisa genealgica. Centelha em Restolho Seco o resultado deste
esforo. 938
934
324
Embora no se declare feminista, Betty trabalhou o seu projeto de pesquisa a partir
de dados coletados do cotidiano histrico de seus antepassados. Em seu artigo de
1966, ela escreveu:
Deveramos dar mais importncia quilo que pertenceu aos nossos
antepassados. Por certo que no podemos guardar tudo, mas, pelo menos,
aquilo que pode trazer lies, e mais afeto familiar. O Museu pequenino,
do Campo [em Santa Brbara], que guarda alguma coisa daqueles
pioneiros merece ter outros objetos e documentos que andam guardados
nas mos dos descendentes. Visitando aquele Museu, podemos sentir
como era a vida l pelo fim do sculo passado. H desde fogo, louas e
outros utenslios domsticos, at rocas, plaina, arreios, selas, pilo.
Como tambm, vemos uma carroa, vestes, documentos, amostras de
colchas de retalhos (emendados mo). Uma simples renda que fez parte
de um vestido tem a sua mensagem. 939
941
seguinte significado:
O cotidiano aquilo que nos dado cada dia (ou que nos cabe em
partilha), nos pressiona dia aps dia, nos oprime, pois existe uma
opresso do presente. Todo dia, pela manh, aquilo que assumimos, ao
despertar, o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou
noutra condio, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano aquilo
que nos prende intimamente, a partir do interior. uma histria a meiocaminho de ns mesmos, quase em retirada, s vezes velada. 942
325
no est separado das grandes questes socioeconmicas, nem dos
grandes desafios da cultura. O cotidiano faz parte das estruturas
econmicas e culturais mais amplas, porque elas se manifestam
concretamente neste nvel regional, interpessoal, comunitrio. 943
[grifo meu].
944
945
: 1) o mundo
946
948
949
Mais
especfica, Betty de Oliveira ofereceu uma receita culinria em seu livro Centelha em
Restolho Seco, algo certamente dispensvel para os seus colegas historiadores
masculinos:
COZINHA
943
326
No podamos deixar de mencionar o lugar destacado que a cozinha
merecia na alimentao bem preparada e sadia entre os emigrados.
Registrando esta faceta da vida cotidiana daquele grupo de emigrados do
EUA, em SB [Santa Brbara], deixamos de presente para as nossas
leitoras, a receita que segue. bom lembrar que esta era muitssimo
usada, pois o bolo era apreciado. A receita uma colaborao de D.
Mary Keese de Miranda, descendente de Thomas Lafayette Keese e
Frances Hubbard Keese.
Bolo de Melado:
1 xcara de ch de manteiga, 1 xcara de ch de acar mascavo, 3 ovos,
1 xcara de ch de melado, 2 e meia xcaras de ch rasas de farinha de
trigo, medidas depois de peneirada, 1 colher de ch de bicarbonato, meia
colher de ch de canela, meia colher de ch de no z-moscada, meia colher
de ch de cravo em p, meia colher de ch de gengibre, de colher de
ch de sal, 1 xcara de leite.
Assar o bolo com o forno no muito quente. Bom proveito! 950 [grifo
meu].
327
954
manjar da terra natal. Mas a arte culinria era domnio das mulheres e assim, de
modo geral, Reis Pereira e seus colegas historiadores homens no se preocuparam
com esse e outros aspectos do cotidiano como produtores de sentido para a histria
dos batistas.
As historiadoras destacaram o papel decisivo das mulheres no curso da
histria dos batistas brasileiros. A importncia histrica de Anne Bagby nas
primeiras converses de brasileiros foi destacada por Harrison
contribuies de Dona Genoveva
missionrio L. M. Bratcher,
958
957
955
e Mathews.
956
As
Mathews.
Mas a obra de Betty de Oliveira registra o maior nmero de contribuies
femininas para a histria dos batistas no Brasil, apesar de sua pesquisa s cobrir a
segunda metade do sculo XIX e incio do XX. Alm de Anne Bagby e Kate Taylor,
h a histria de Lurenna Bowen, esposa do primeiro missionrio para o Brasil,
Thomas Bowen, cuja deciso para retornar com toda a famlia aos Estados Unidos,
sem o conhecimento da Junta de Richmond, foi fundamental para salvar a vida de
seu marido que sofria de malria.
959
lembrada por Betty como a primeira missionria nomeada pela Junta de Richmond
nascida no Brasil. O seu livro apresenta ainda uma lista de obreiros batistas,
presbiterianos e metodistas descendentes dos colonos norte-americanos com os
953
328
nomes e breves histrias de trinta e duas mulheres e apenas cinco homens.
960
Outras
961
963
ignorado pela histria oficial dos batistas brasileiros. Quando h violncia de gnero,
observou Gebara, o conflito termina quase sempre pelo silncio, pela eliminao ou
ocultao do outro.
964
8. Parecer Final.
960
329
formao de desigualdades de gnero no nvel hierrquico das igrejas e da
Conveno Brasileira, apesar dos discursos igualitrios e democrticos dos batistas.
No entanto, apesar das resistncias dos segmentos fundamentalistas batistas, a
revoluo cultural-sexual e as influncias dos movimentos de mulheres e feministas
dos anos 1960-1980 (Captulo 3) favoreceram um processo lento, mas progressivo,
de mudanas nas relaes sociais de gnero e poder na Conveno. Possivelmente,
os movimentos internos ocorridos em outras igrejas histricas contemporneas
inspiraram nos batistas os ideais emancipatrios dos movimentos feministas da poca
(Captulo 4).
preciso destacar que no se observou durante o breve estudo sobre a
histria da Conveno Brasileira, outro perodo que apresentasse elementos
importantes que visibilizassem conflitos de gnero e poder como os anos 1960-1980.
966
Nesse perodo, o debate iniciado por Betty de Oliveira em 1966 foi o primeiro de
967
968
969
Talvez seja o caso da discusso sobre o voto feminino na Conveno realizada em Vitria, ES, em
1915. Porm, os anais da Conveno no registraram o resultado daquela discusso, o que torna difcil
o seu estudo. Cf. PEREIRA, J. dos Reis. Histria dos batistas no Brasil (1882-1982), p. 91.
967
FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder, p. 241.
968
GEBARA, Ivone. Pensar a rebeldia crist a partir das relaes de gnero. In: SOUZA, Sandra
Duarte de. (Org.). Gnero e religio no Brasil: ensaios feministas. So Bernardo do Campo:
Universidade Metodista de So Paulo, 2006, p. 136.
969
Id. p. 138.
330
nica a defender o trabalho de Santa Brbara como o marco inicial do trabalho
batista.
970
Os movimentos
1964 As marchadeiras na Marcha da
Famlia com Deus pela Liberdade.
1965-1966 A maior representao
feminina no Congresso Nacional.
p. 91-92.
331
parcialmente aprovada na Conveno de
Goinia, GO.
1981 Lanamento do livro sobre o
movimento de imigrantes norteamericanos no porto do Rio de Janeiro
durante 1865-1890.
1982 Lanamento do livro sobre o expadre Antonio Teixeira de Albuquerque.
971
332
movimentos de emancipao feminina haviam impactado a mentalidade dos batistas
daqueles anos.
Desse modo, pode-se compreender porque os anos de 1977 a 1982
representaram o perodo de maior atividade pblica da autora. Betty de Oliveira
enfrentou o silncio, o desprezo e a oposio, mas publicou trs artigos em 1977 e
um livro em 1978 que trataram, de forma indireta, da primazia da obra batista em
Santa Brbara. Props publicamente a dinamizao do departamento de estatsticas e
histrias na assemblia da Conveno de Recife, PE em 1978, numa clara tentativa
para obter apoio institucional para a sua tese, vez que sua pesquisa estava
devidamente fundamentada em fontes e documentos histricos. Em 1979 tentou, sem
sucesso, o reconhecimento oficial do centenrio da Misso Batista no Brasil. Naquele
ano, Betty perdeu seu principal aliado: morreu o Pastor Ebenzer Cavalcnti.
972
Essa perda foi significativa, porque Cavalcnti era a voz masculina respeitada por
Reis Pereira e que podia ser oficialmente ouvida defendendo a posio insurgente no
contexto da Conveno Brasileira.
Em 1980, sem mais poder contar com a presena de Cavalcnti, conseguiu a
aprovao parcial de sua proposta de reconhecer a Misso Batista de 1879 na
Conveno realizada em Goinia, GO. A aprovao total seria estratgica, porque
deslocaria o pioneirismo do trabalho batista brasileiro de Salvador, BA para Santa
Brbara, SP. Apesar disso, naquele mesmo evento, Betty pde testemunhar a eleio
de Helga K. Fanini como vice-presidente da Conveno, a primeira mulher a ocupar
cargo de diretoria desde a sua fundao. Em 1981, Betty de Oliveira publicou outro
livro que tratou sobre a imigrao norte-americana durante o perodo compreendido
entre os anos de 1865 a 1890.
Em 1982, o ano da celebrao oficial do centenrio dos batistas brasileiros,
Betty lanou um livro sobre o ex-padre Albuquerque, o primeiro pastor batista
brasileiro, segundo sua tese. Desse modo, a autora mantinha sua posio quanto ao
marco inicial apesar da vitria poltica de Reis Pereira, que publicava a sua
Histria dos Batistas no Brasil (1882-1982). Trs anos depois, Betty de Oliveira
conseguiu publicar Centelha em Restolho Seco, sem apoio da Conveno, com
recursos prprios e com ajuda de terceiros, mas deu forma oficial e final sua tese
972
Betty de Oliveira lamentou profundamente a morte desse pastor. Entrevista concedida a Alberto
Kenji Yamabuchi. Tijuca, RJ. 18 dez. 2007. 16h30m.
333
1871, Santa Brbara, SP. E depois deu palestras sobre o tema em seminrios
teolgicos batistas.
No h como relacionar diretamente a atuao de Betty de Oliveira durante
esses anos com os movimentos de mulheres e feministas brasileiros, mas nota-se que
houve um contexto sociopoltico muito propcio para uma pesquisadora como Betty
de Oliveira visibilizar e tornar reconhecido de forma pblica o seu saber-poder
insurgente na denominao. Alm disso, o esprito democrtico dos batistas nas
assemblias convencionais dos anos 1970 estava favorecendo alguns avanos
importantes na direo de transformaes nas representaes sociais de gnero no
contexto batista brasileiro, muito provavelmente por conta da ideologia dos
movimentos feministas.
Fatos internos que projetaram mulheres na Conveno Brasileira e o quadro
sociopoltico podem ter estimulado o desempenho de Betty de Oliveira durante as
etapas do debate. Alm disso, nessa mesma poca, outras mulheres alcanaram
projeo nacional na poltica e no campo de produo intelectual no Brasil: Rachel
de Queiroz se tornou a primeira mulher imortal da Academia Brasileira de Letras
(1977), a deputada Heloneida Studart foi a primeira militante feminista a fazer parte
da Assemblia Legislativa do Rio de Janeiro (1978), Eunice Michilles (PSD/AM) foi
a primeira mulher a ocupar o cargo de senadora (1979), Esther de Figueiredo Ferraz
foi a primeira mulher a ocupar a pasta do Ministrio da Educao (1982).
Desse modo, no contexto das transformaes sociais promovidas pelos
movimentos de mulheres e feminista desde os anos 1960, que despertaram
sentimentos misginos na denominao, conclui- se que a derrota de Betty de
Oliveira no debate sobre o marco inicial do trabalho batista no Brasil deu-se no s
porque ofereceu outra verdade sobre o assunto, mas porque a visibilizao do seu
conhecimento desafiou o domnio masculino e a honra viril na constituio do saber
e estabelecimento da verdade na Conveno Brasileira.
Depois de sua vitria no ano da celebrao do centenrio, Reis Pereira
admitiu de forma curiosa: acho que a histria da Igreja de Santa Brbara merecia
mais estudo.
973
Cf. p. 96
973
334
CONSIDERAES FINAIS
Na histria e no presente, a questo do poder
est no centro das relaes entre homens e
mulheres.
Michelle Perrot 974
975
974
975
335
A sua resistncia deciso oficial representou uma insurreio do saber-poder
sujeitado das mulheres e a luta pelo direito e privilgio de participar igualmente da
produo do conhecimento historiogrfico entre os batistas. Alm disso, por tratar-se
de esposa de pastor, cuja representao social demandava comportamentos
socialmente estereotipados, que tradicionalmente lanavam sua figura no anonimato,
a atuao pblica de Betty de Oliveira foi um caso especial, de transgresso de
padres de gnero. Ela procurou se libertar dos cdigos da dominao patriarcal que
impediam o acesso de mulheres ao campo da produo do saber religioso.
At esta pesquisa, o referido debate no havia sido ainda analisado
academicamente atravs da categoria de gnero. O interesse geral na abordagem
sobre o tema estudado se limitava, como foi visto, ao campo da cincia
historiogrfica. Por isso, a originalidade do presente trabalho est na anlise do
debate e do seu resultado final a partir da mediao de gnero.
Desse modo, principalmente atravs dos artigos e reportagens das edies de
O Jornal Batista, a pesquisa procurou analisar o contexto cultural e histrico dos
batistas brasileiros dos anos 1960-1980, para destacar o preconceito de gnero no
campo simblico da produo do saber e nas instncias do poder da Conveno
Brasileira. Tambm atravs da anlise desses e de outros textos publicados, entre o
que foi dito e no-dito,
976
976
336
Embora a narrativa oficial tenha sido justificada ideologicamente pela elite do
poder e aprovada em assemblia da Conveno Brasileira, o uso do conceito de
gnero como instrumento hermenutico na anlise do debate visibilizou o conflito de
gnero e poder dissimulado no ambiente democrtico dos batistas. A partir da
perspectiva de gnero, conclui-se que as representaes sociais dos protagonistas do
debate (homem x mulher, pastor x esposa de pastor), bem como a cultura patriarcal
que envolvia as instncias de poder da Conveno Brasileira foram determinantes no
resultado final da discusso. Desse modo, a interpretao do resultado final do debate
se desloca do campo acadmico da historiografia e passa para as questes de gnero:
em suma, Betty de Oliveira no logrou xito em mudar a deciso oficial da
Conveno, por causa da sua condio de mulher, cujo saber sempre foi
desqualificado pelo domnio patriarcal de origem judaico-crist. Na verdade, o
debate foi um jogo de poder, onde prevaleceu a fora da dominao masculina.
Desse modo, confirmou-se a hiptese desta pesquisa: o resultado final da discusso
dependeu, portanto, mais de questes sexistas do que das argumentaes tcnicas e
acadmicas sobre o marco inicial batista.
As reaes tese de Betty de Oliveira na Conveno Brasileira denunciaram
sentimentos misginos, que embora fossem dissimulados em discursos e prticas,
indicaram o temor das influncias do contexto sociopoltico que favoreceu a
emergncia do feminismo no Brasil dos anos 1960-1980 (apontar as possveis
influncias dos movimentos sociais daqueles anos foi o objetivo especfico do
Captulo 3). O tratamento dispensado Betty de Oliveira durante as etapas do debate
comprova a afirmao acima. O que se observou foi uma oposio marcada pelo
preconceito, injustia e violncia de gnero. A gnese dessa oposio tem na questo
da virilidade, virtude questionada pelo feminismo, a sua causa maior: se a
constituio do saber e o exerccio do poder eram exclusividades masculinas em um
sistema scio-religioso tradicionalmente orientado por uma cultura patriarcal e
androcntrica, que estabelecia os discursos verdadeiros e normativos, os homens no
podiam admitir a intromisso de mulheres nesse campo do saber-poder sacralizado.
Por isso, o adversrio de Betty de Oliveira, o pastor Reis Pereira, no admitiu,
durante o perodo compreendido entre os anos 1966 a 1982, qualquer possibilidade
de se repensar o que ele mesmo, amparado por uma narrativa elaborada pela elite de
poder masculina, definiu como o marco inicial do trabalho batista no Brasil. Sem
dvida, repensar o que havia sido declarado na assemblia da Aliana Mundial em
337
1960 diante de milhares de representantes batistas brasileiros e de outros pases (ou
reconhecer, depois, um possvel erro no conhecimento da histria dos batistas), tinha
as suas implicaes polticas, mas, na verdade, a honra masculina no estabelecimento
dos discursos verdadeiros da denominao havia sido desafiada por uma mulher em
uma poca que o feminismo visibilizava a condio feminina no Brasil.
Em razo da persistncia de Betty de Oliveira no debate, apesar de enfrentar
significativas desvantagens, esta pesquisa procurou tambm associar sua atuao ao
esprito dos movimentos sociais dos anos 1960-1980. Alm dos acontecimentos que
marcaram mudanas nas relaes de gnero na sociedade brasileira dos anos de
chumbo, em 1975, o Ano Internacional da Mulher, a Aliana Batista Mundial apelou
s mulheres que lutassem pelo seu direito do uso do poder decisrio nas igrejas, ou
seja, os ideais dos movimentos de liberao das mulheres haviam alcanado a
representao mxima mundial dos batistas. Muito provavelmente animada por essa
abertura e pelo esprito de sua poca, Betty de Oliveira atuou intensamente para o
reconhecimento oficial de sua tese durante os anos de 1977 a 1982, embora no tenha
logrado xito. Em 1985, sua obra Centelha em Restolho Seco destacou de forma
significativa o valor das mulheres na histria batista, alm de oferecer outros
elementos caractersticos de uma historiografia feminista (embora a autora no se
considere feminista). Sua histria dos batistas, a partir da perspectiva de uma mulher,
ofereceu significados para as questes de gnero e poder, e foi uma tentativa de
descobrir, reconhecer e afirmar a mulher tambm como sujeito dessa histria. Assim,
no que diz respeito a outra hiptese deste trabalho, ao considerar o contexto social,
poltico, cultural e religioso que envolveu cada etapa do debate, conclui- se que a
autora de Centelha em Restolho Seco encontrou inspirao nos movimentos de
mulheres e feministas, para a divulgao e defesa pblica de sua tese.
Esse mesmo contexto sociopoltico tambm pode explicar os fenmenos que
ocorreram nas relaes de gnero da Conveno, apesar de se verificar certa
ambigidade nas decises das assemblias convencionais dos anos 1970-1980,
quanto ao acesso de mulheres aos lugares de poder na estrutura organizacional da
denominao. Por um lado, a partir desse contexto extremamente favorvel s
mulheres, percebeu-se uma abertura lenta, gradativa e positiva na direo da
emancipao feminina: o acesso parcialmente liberado ocupao de postos
tradicionalmente masculinos na liderana denominacional, que nunca haviam sido
antes ocupados por mulheres. Embora pioneiras, mulheres assumiram, na verdade,
338
funes ainda auxiliares (por exemplo: Hayde S. Gomes eleita, em 1975, presidente
de uma Junta e no da Conveno e Helga K. Fanini, vice-presidente em 1980, e no
presidente da Conveno). Por outro, a resistncia era marcadamente preconceituosa
contra inovaes eclesiais que ameaavam a tradio patriarcal no ministrio das
igrejas que, segundo alguns, eram de inspirao dos movimentos feministas, como a
questo da ordenao de mulheres ao ministrio pastoral. Gebara observou: tem-se
a impresso de que o sistema hierrquico precisa de alguma forma culpabilizar para
manter seu poder.
977
977
339
no mesmo ano do lanamento da obra de Betty de Olive ira? Possivelmente a
inteno foi a de que o povo batista no se esquecesse da narrativa oficial, mesmo
com a publicao da posio insurgente.
Diante do exposto, esta pesquisa chega s seguintes concluses:
1) As relaes de gnero e poder entre os batistas da Conveno Brasileira sofreram
influncias dos movimentos sociais dos anos 1960-1980, que, apesar das resistncias
e ambigidades, tais fenmenos observados gradativamente acrescentaram novos
valores simblicos nas representaes sociais de homens e de mulheres e novas
oportunidades para a liderana feminina eclesistica;
2) Os conflitos e mudanas nas relaes de gnero e poder observados nas igrejas
histricas contemporneas dos batistas dos anos 1960-1980 (Captulo 4) podem ter
influenciado a mentalidade da Conveno Brasileira quanto emancipao e o
empoderamento de mulheres na vida eclesial;
3) O debate sobre as origens do trabalho batista no Brasil representou um ponto
fundamental de conflito pblico sexista entre a dominao masculina no campo
simblico da constituio do saber e o dominado saber-poder feminino dos anos
1960-1980;
4) Betty Antunes de Oliveira foi estimulada pelas influncias do contexto
sociopoltico que favoreceu a emergncia dos movimentos de liberao das
mulheres, para persistir na defesa da sua pesquisa diante da elite do poder masculino
da Conveno Brasileira;
5) O resultado final do debate, historicamente ocorrido no ano de 1982 com a
celebrao do centenrio dos batistas brasileiros, dependeu mais das questes e
conflitos de gnero e poder que estavam dissimulados nos dispositivos de saberpoder da Conveno, do que das discusses acadmicas sobre o marco inicial batista.
6) Apesar do resultado do debate, o trabalho de Betty Antunes de Oliveira foi muito
mais que uma contribuio historiogrfica para os batistas no Brasil, pois, atravs da
sua resistncia, representou um passo significativo para o empoderamento e a
emancipao das mulheres batistas atravs da participao efetiva do campo
simblico da produo do conhecimento. No foi, no entanto, um passo radical, pois
de forma consciente ou no, seguiu a linha proposta por Boff,
978
qual seja, a de
BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas
religiosas. 6. Edio. Petrpolis, RJ: Vozes, 1996. (Teologia, 18).
340
Assim, esta pesquisa procurou oferecer um novo olhar sobre o debate das
origens do trabalho batista no Brasil, ou seja, um olhar de gnero, que visibilizou a
luta persistente de uma mulher pelo direito de ocupar um espao junto aos lugares
privilegiados do saber-poder religioso, hegemonicamente dominados e ocupados pela
presena masculina dos anos 1960-1980.
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28.11.1976, 12.12.1976, 30.1.1977, 6.2.1977, 13.2.1977, 13.3.1977, 27.3.1977,
10.4.1977, 23.10.1977, 8.1.1978, 22.1.1978, 29.1.1978, 5.2.1978, 12.2.1978,
26.2.1978, 19.3.1978, 23.7.1978, 30.4.1978, 7.5.1978, 9.7.1978, 16.7.1978,
23.7.1978, 15.10.1978, 12.11.1978, 31.12.1978, 28.1.1979, 4.2.1979, 6.5.1979,
13.5.1979, 24.6.1979, 26.8.1979, 30.9.1979, 7.10.1979, 25.11.1979, 6.1.1980,
13.1.1980, 20.1.1980, 3.2.1980, 17.2.1980, 2.3.1980, 30.3.1980, 6.4.1980, 13.4.1980,
11.5.1980, 1.6.1980, 8.6.1980, 15.6.1980, 27.7.1980, 3.8.1980, 27.7.1980, 18.8.1985,
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372
ANEXO
A professora Betty Antunes de Oliveira (filha) autorizou a publicao da sua
anlise deste trabalho,
980
1) Esclarecimentos
Por diferentes razes a leitura da tese de Kenji trouxe- me imenso
contentamento. A primeira delas se refere ao fato de que Kenji trata de um tema, ou
melhor dizendo, de um problema, com o qual me debati dentro e fora da igreja, desde
muito pequena. Trata-se do seguinte: sempre ouvia dizer que para Deus no h
acepo de pessoas, pois para Ele todos somos iguais e, conseqentemente, todos ns
deveramos amar o prximo como a ns mesmos. Sempre acreditei piamente nessas
afirmaes. Da que todo e qualquer tipo de discriminao seria inconcebvel. No
era isso, porm, que eu presenciava na quase totalidade dos ambientes onde estava
inserida. Por isso, o fato de hoje, finalmente, encontrar uma tese que levanta to
criteriosamente a questo de um determinado tipo de discriminao existente dentro
de organizaes que pregam o evangelho foi, para mim, algo muito valioso. E fiquei
ainda mais contente quando vi que o autor da tese era um homem e, no s isso, mas
980
981
373
....um pastor, e.....mais ainda.....um pastor....batista!!! Logo ao saber custei a
acreditar. Mas, como sei que fatos reais assim no surgem por acaso, compreendi que
se tratava de um fato muito significativo decorrente do avano da luta contra as
discriminaes, embora tambm considere que h ainda um longo caminho a
percorrer.
Outra razo de ter lido a tese at o final, com imenso prazer, foi a forma
organizacional de sua elaborao. Basta ler-se o ttulo da tese e a seqncia dos
ttulos de cada captulo para que se possa j obter uma primeira viso de conjunto do
tema e de como ser tratado. A Introduo esclarecedora no s porque deixa claro
o tema, o problema a ser tratado, os objetivos, hiptese de trabalho e todos os demais
itens de uma real Introduo, como tambm porque tais itens seguem uma seqncia
lgica comprometida com o ato de ler e compreender do leitor, preocupao esta
encontrada com pouca freqncia nas teses, de modo geral. A forma dada
elaborao da Introduo possibilita, assim, um degrau de clareza a mais daquela
primeira viso de conjunto. Alm disso, uma seqncia lgica dirige o
encaminhamento dos captulos at as consideraes finais. Essa forma bem elaborada
da tese faz fluir a leitura, possibilitando o leitor compreender as argumentaes que
vo sendo expostas e com isso dialogar mentalmente com o autor, caso no
comungue com algumas delas. De qualquer modo, chega-se ao final da leitura, sem
nem mesmo se ter percebido a quantidade de pginas.
Uma terceira razo do contentamento de ler essa tese est num fato muito
particular. que sou uma das filhas de Betty Antunes de Oliveira (que ser referida
de agora em diante por Betty), de quem me orgulho de ter herdado o mesmo nome.
Como filha fui testemunha e, em diferentes momentos, fui parceira ativa nas
atividades de sua pesquisa. Desde cedo aprendi com Betty que a Histria no se
impe pela doxa, nem pelo poder ou por outro fator qualquer, mas pelo levantamento
cuidadoso dos fatos histricos e dos critrios que dirigem a sua anlise. Os fatos
histricos precisam ser conhecidos e analisados (nos seus inmeros aspectos,
principalmente na sua cronologia e sua significncia dentro das circunstncias
contextuais onde eles se deram), para que essa Histria seja escrita da forma mais
prxima possvel do processo histrico transcorrido.
374
Assim que, dotada de uma extrema pacincia e de uma inabalvel confiana
nesse tipo de posicionamento, Betty sempre considerou invlido querer entrar em
polmicas desnecessrias. E, ao mesmo tempo, nunca desistiu de tentar apresentar os
resultados de suas pesquisas baseados nos fatos histricos concretos, apesar dos
constantes impedimentos que lhe eram impostos. Se surgia alguma abertura para essa
apresentao, utilizava-a. Se era impedida, continuava silenciosamente seu trabalho
e, quando possvel, o divulgava por meios prprios. Agia assim, porque sempre teve
plena certeza que nenhum poder eterno e que o tempo faria valer os fatos histricos
apresentados, independentemente de sua prpria voz e/ou sua vontade, ou da vontade
de quem quer que seja.
Em outras palavras: no era a sua opinio que estava ali em pauta, mas a
apresentao de fatos histricos que precisavam ser conhecidos, cuja existncia
independia de Betty. Por isso, nunca lhe interessou lutar pelo convencimento de suas
idias, mas sempre lutou para que o conhecimento dos fatos histricos fosse
democraticamente divulgado a todos, pois sabia/sabe que pelo conhecimento
criterioso dos fatos histricos pode-se expandir o conhecimento da prpria realidade
para melhor atuar-se nela. E, exatamente porque considerava que no h poder
absoluto e nem eterno, foi dando tempo ao tempo.
375
Sempre ativa em seu trabalho, Betty acompanhou por vrios meios, inclusive
pela Internet (da qual no abre mo), o desenrolar dos acontecimentos. Ao receber a
notcia, manteve-se calada por alguns instantes. Seu rosto armou o sorriso sereno e
singelo que lhe peculiar e seus olhos buscaram o horizonte, como a percorrer toda a
sua trajetria de vrias dcadas de trabalho. Ns - seus filhos, netos e bisnetos consideramos a chegada do reconhecimento do marco histrico inicial como um
presente antecipado de seu aniversrio que se dar em 13 de maio prximo, quando
completar 90 anos de existncia. Pelo que aprendemos com ela e nosso pai
consideramos esse reconhecimento como uma confirmao de que, assumindo-se
uma real obedincia aos preceitos divinos, pode-se empreender uma luta e venc- la
sem o uso da imposio de poder, percorrendo o caminho a ser trilhado, com
persistncia e pacincia, buscando-se sempre a paz.
376
citado todo social. So inegveis as influncias geradas na sociedade mundial pelos
movimentos sociais, entre eles o movimento feminista. preciso, porm notar que
por fora da evoluo da lei do mercado, prpria do sistema scio-polticoeconmico mundial vigente, a atuao da mulher na sociedade brasileira vinha
ganhando, mesmo que vagarosamente, novas formas, antes do Movimento Feminista
chegar ao Brasil. Est subentendido a que essa lei que determina o vir-a-ser do ser
social, embora essa determinao nunca consiga ser absoluta. Isto , ela, apesar de
determinante, recebe influncias dos demais setores da estrutura social como um
todo. Como a economia do Brasil estava atrelada a esse sistema como pas
exportador de matria prima, tais mudanas ditadas por esse sistema acabavam
chegando, de uma forma ou de outra, s terras brasileiras. O surgimento do voto
feminino um exemplo. E o Movimento Feminista chega na dcada de 60.
Quase trs dcadas depois de Betty ter iniciado essa sua luta, chega ao Brasil
o assim chamado Movimento Feminista. claro que esse Movimento passa a
intensificar mudanas no contexto brasileiro (mesmo que ainda tmidas) no s no
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que se refere atuao da mulher, mas em conseqncia disso, dos prprios homens
em todos os setores da sociedade, inclusive dentro das igrejas e demais instituies
religiosas de diferentes credos. Como a luta empreendida por Betty e seu esposo era
uma luta mais ampla e mais abrangente do que a luta do Movimento Feminista e,
alm disso, o modo de pensar e agir para empreender sua luta era bem divergente
daquele usado por aquele Movimento, Betty no se aliou a ele, embora nunca o tenha
combatido e nem mesmo interpelado. Simplesmente continuou seu trabalho com a
direo que sempre teve, a qual abrangia a luta contra todas as discriminaes, entre
as quais aquela imposta s mulheres. O que se pode considerar aqui que com a
entrada do Movimento Feminista no cenrio brasileiro, como foi dito acima, algumas
mudanas foram surgindo na atuao da mulher e, conseqentemente, do homem na
sociedade brasileira e, com isso, as mulheres foram encontrando um ambiente um
pouco menos desfavorvel. O que quero salientar aqui que, como Betty j estava
comprometida com uma luta mais abrangente que usava uma forma de lutar diferente
desde 1938, no viu razo de se vincular ao recm-chegado Movimento Feminista.
Como foi dito, esse Movimento, de uma forma ou de outra, foi gerando
mudanas no contexto social brasileiro. Na CBB, porm, essas mudanas se deram
de uma forma muito mais tmida e vagarosa do que aquelas observadas em muitos
setores da sociedade brasileira. No afirmo isso como uma mera opinio pessoal.
Poderia apresentar aqui todos os dados que a fundamenta e que independem da
minha existncia, mas fugiria do objetivo desse texto. Para esse momento de minha
exposio basta somente salientar um deles, por ser mais visvel e, como tal, mais
rapidamente compreensvel. Trata-se da data de janeiro de 2009, quando a CBB,
depois de mais de 3 dcadas reconheceu finalmente os dados histricos da fundao
da Igreja Batista de Sta Brbara, como o marco inicial do trabalho batista no Brasil.
Sim, esse reconhecimento foi possvel neste janeiro, mas ainda custa de muitos
debates ali ocorridos, atravs dos quais se pode observar que houve a tentativa de
preservar o poder at ento existente. Mas, esse poder no se mostrou mais como
hegemnico, como at ento, e sim mais arrefecido, provavelmente por fora de tais
acima citadas mudanas. Note-se que foi o reconhecimento oficial do trabalho de
uma mulher que, durante mais de 3 dcadas vinha apresentando, essa mesma CBB,
sempre as mesmas provas histricas incontestveis relativas Igreja Batista de Sta.
Brbara como o marco inicial da histria dos batistas no Brasil. Isso mostra que o
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que mudou ali no foi o teor desses dados histricos que vinham sendo apresentados
por Betty, mas sim o modo da CBB olhar (!!!) para esses dados. Este fato em si
mesmo uma sria denncia a ser considerada. Explico: aqueles dois teros da votao
final gerou, ao mesmo tempo, dois fatos importantes para a histria dos batistas no
Brasil: - um deles (como disse acima) o mais imediatamente visvel, porque era
exatamente sobre ele que se discutia o citado reconhecimento do marco histrico
inicial do trabalho batista. E o outro aquele no imediatamente visvel, pois para
muitos fica obscurecido pelo anteriormente citado, sem que tenham conscincia
disso. Trata-se do rompimento oficial dos limites do poder que, at ento, parecia se
mostrar hegemnico na CBB. So, portanto, dois aspectos que se possibilitaram
reciprocamente num s ato.
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seu autor a continuar o aprofundamento do estudo dos mecanismos que geram o
poder no dia-a-dia das instituies religiosas. Essa tese precisa chegar ao plpito e a
todas as atividades da igreja e qui fora dela. uma imensa luta que, no nosso pas,
se mostra como um tambm imenso desafio.
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estar sempre pronta a se submeter ao programa do marido. Seguindo o acordo feito,
Albrico, ainda noivo, partiu sozinho para Manaus-AM, no incio de 1937. Em
Janeiro de 1938 volta ao Rio e casa com Betty j formada. Em 9 de fevereiro desse
ano, o jovem casal parte para Manaus no navio Almirante Jaceguay numa viagem
que durava 31 dias.
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partir de uma passagem bblica. Por isso que, j nesse tempo, a possibilidade de
surgir dali uma pastora ou pastor se mostrava como coisa natural. Alis,
exatamente por nos parecer natural, nem chegvamos a pensar em colocar em
discusso que a mulher poderia ser pastora. Essa forma de pensar e agir era uma das
razes pelas quais nossa Igreja era considerada diferente pelas demais.
Como se pode deduzir dos fatos acima descritos a luta desenvolvida pela
famlia do pastor e pelas demais que pertenciam Igreja era uma luta pela igualdade
de todos perante Deus e que, por isso, precisvamos aprender a amar uns aos outros
como a ns mesmos. Por isso, no havia sentido haver lutas entre homem e mulher,
pobre e rico, brasileiros e estrangeiros, branco e ne gro, ndio e no- ndio, jovem e
adulto, criana e idoso, etc., principalmente porque este tipo de luta entre esses plos
instiga (tenha-se conscincia disso ou no) uma viso unilateral da questo, porque
traz em si mesmo uma separao entre os lados que se mostram como opostos. Para
ns, portanto, a luta pela igualdade de todos perante Deus, tratava do ser humano
sem discriminao de sexo, raa, religio o que mais for. Era uma luta que tinha por
princpio a unio entre os lados diferentes e nunca a separao desses lados. Como
se poderia propagar o amar o prximo como a ti mesmo se o ambiente estaria
gerando a separao em vez da unio?
Esses dados mostram, mesmo que rapid amente, que Betty vinha lutando
desde sua juventude pela libertao do ser humano. No incio, no chegava a ter
plena conscincia de tudo que essa luta envolvia. Mas, sentia que precisava romper
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o que era imposto pela sociedade da poca, inclusive o que estava sendo assumido
pelas igrejas, de modo geral. No que se refere ao seu envolvimento com a pesquisa,
achou estranho e sem sentido quando percebeu que, para muitos, o fazer pesquisa
era atividade de homem. Para Betty que sempre vivenciara, desde pequena, o
ambiente de pesquisa, fazer pesquisa era um trabalho para qualquer pessoa que se
propusesse a dedicar-se a isso.
Foi exatamente por ter vivido intensamente sob essa perspectiva que afirmei
acima que Betty nunca aderiu movimentos que fortaleciam/fortalecem a luta de um
dos lados. E por isso nunca quis vincular-se ao Movimento Feminista que chegou ao
Brasil na dcada de 60, vrias dcadas depois de Betty ter iniciado seu trabalho.
Sobre isso vide (em anexo) o e- mail com o interessante depoimento de Maria do Cu
Cmara Chaves, filha de Geralda e Walter que participaram do trabalho de Betty e
Albrico em todos os anos do pastorado deste. Maria do Cu hoje a responsvel
pelo arquivo histrico da Igreja.
esse conjunto de fatos que me fez dizer nos meus Esclarecimentos acima
que essa questo do gnero era um problema no qual eu estava envolvida desde
pequena e, por isso, ao saber da tese de Kenji, fiquei imensamente feliz.
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Foi durante sua pesquisa sobre seus parentes (que pertenciam ao grupo de
imigrantes norte-americanos que foram chegando em Sta. Brbara, a partir de1867),
que Betty encontrou os documentos histricos relativos Igreja Batista de Sta.
Brbara. Dirigida pelas histrias de famlia que sua me contava sobre seus
antepassados, incluindo aquelas relativas ao tempo em que ainda moravam nos USA,
a chegada de seus bisavs no Brasil e a luta que tiveram para se estabelecer na
regio, saiu procura dos documentos oficiais que comprovavam essas histrias.
Dentre muitas coisas que encontrou estavam os dados sobre o esforo intenso que o
Pastor Ratcliff, juntamente com Robert Porter Thomas (seu bisav) e outros
imigrantes empenharam para a organizao daquela Igreja. E encontrou tambm
aqueles referentes ao fato de que Robert batizou Antonio Teixeira de Albuquerque,
ex-padre, que veio a ser mais tarde o primeiro pastor batista brasileiro.
Elaborou um texto simples sobre esses dados e decidiu enviar seu texto sobre
o achado para o Jornal Batista que era o principal veculo de comunicao dos
batistas. A sua inteno foi a de colocar a pblico esses documentos histricos que
faziam parte da histria dos batistas no Brasil e no estavam ainda sendo
considerados. J que os descobriu, no poderia, em s conscincia, deixar de divulglos. Eram dados que no lhe pertenciam e sim pertenciam histria dos batistas no
Brasil. Ela, como pesquisadora consciente que procurava ser, no tinha o direito de
simplesmente voltar a guard- los na gaveta onde os encontrou. E se o fizesse,
provvel que algum, mais tarde, iria ach-los e a verso da histria dos batistas
conhecida at ento teria que ser reescrita do mesmo modo. Dizendo de outra forma:
como tais dados histricos so fatos documentais, eles precisariam ser considerados
na histria dos batistas, independentemente do querer ou do no querer de quem
quer que fosse. Portanto, no havia a inteno de refutar qualquer dado que vinha
sendo divulgado e sim de apresentar dados histricos que no poderiam ser
descartados, pois se mostraram indispensveis para que se pudesse conhecer, de
forma mais exata possvel, os primrdios dos batistas no Brasil.
Foi com estranheza que percebeu que tais dados irrefutveis no passaram a
ser tomados como uma real contribuio para se escrever a citada histria, mas sim
como algo novo contra algo j estabelecido, at ento considerado inabalvel e que,
portanto, no haveria possibilidade de mud- lo. Mas, como Betty sabia que aqueles
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fatos histricos, at ento no considerados, poderiam vir a ser divulgados um dia,
por qualquer outro pesquisador, no entrou naquilo que passou a ser conhecido como
uma disputa entre uma mulher e um pastor. Sua responsabilidade de divulgao do
achado tinha sido cumprida. Sempre nos lembrava Tudo o que vier s tuas mos
para fazer, faze-o conforme tuas foras, como ao Senhor e no aos homens. O ter
encontrado os dados em pauta e lev-los a divulgao foi para ela o cumprimento do
faze-o conforme tuas foras como ao Senhor. Se tivesse feito como aos homens
poderia (quem sabe?) ter entrado na tal disputa. Pessoalmente no aceito esta
probabilidade, pois de qualquer forma no condiz com o padro de vida de Betty.
Esse dizer bblico juntamente com os outros anteriormente citados sempre lhe deram
a certeza de que um dia os dados seriam considerados. Por isso tudo, Betty ficou no
seu canto, continuando seu trabalho sem alarde, mas persistentemente.
Aparentemente poder-se-ia pensar que Betty se submeteu ao poder. Que seu silncio
estivesse traduzindo mera fragilidade. Ldo engano! Sua tenacidade atravs de sua
reserva e seu silncio falou mais alto, sem que ela estivesse pessoalmente frente
do processo do citado reconhecimento. Seu trabalho mostrou a outros o que os dados
histricos comprovavam.
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3) Um pequeno resumo
Como procurei mostrar, a influncia dos movimentos sociais operados no vira-ser social tem gerado a possibilidade de surgimento de condies sociais que
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permitem uma maior participao da mulher no meio social. No reconhecer essa
influncia inadmissvel. Mas, no a mera existncia de um movimento desses
que vai explicar diretamente de que forma e com qual intensidade se d essa
influncia nas organizaes sociais e nas pessoas, mesmo porque, por mais rpidas
que essas influncias se verifiquem, elas exigem um certo tempo para gerar
mudanas reais. Isto , essa rapidez bem relativa. No ocorre de imediato. E em
algumas esferas sociais a demora para haver essas mudanas bem longa. O citado
reconhecimento assumido pela CBB, em janeiro de 2009, depois de mais de 30 anos,
um exemplo disso.
Procurei mostrar que a luta de Betty foi e muito mais ampla e abrangente do
que qualquer luta que trate de determinada questo somente ou prioritariamente por
um dos seus lados, seja pobre ou rico, branco ou preto, criana ou adulto, homem ou
mulher, estrangeiro ou nativo, etc. Betty sempre se afastou das lutas empreendidas
entre os ditos opostos. Portanto, sua luta foi e pela emancipao do ser humano, a
qual precisa da unio entre os lados diferentes para ser alcanada.
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procurei mostrar, a forma como Betty empreendia essa sua luta era incompatvel com
as formas como aquele Movimento desenvolvia a sua.
(Myrtes Mathias)
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