Os Percursos Da Comida No Candomblé de Salvador
Os Percursos Da Comida No Candomblé de Salvador
Os Percursos Da Comida No Candomblé de Salvador
Resumo
O presente texto reflete sobre o papel central da comida no candombl de Salvador, Bahia. A
partir da descrio de eventos que tm a comida como foco mostra como esta chave
importante para se entender o tipo de relacionalidade que vigora no candombl - uma
relacionalidade que envolve misturas, transformaes, fluxos. Em seguida argumenta que alm
de oferecer entrada ontologia do candombl, a comida tambm porta de acesso tica que
lhe prpria: o preparo, oferta, distribuio e consumo do alimento so definidores da complexa
dinmica de cuidado que modula a vida de um terreiro. Ateno a estas atividades mostra que
no candombl o cuidado inseparvel do envolvimento e apreciao sensvel a tica e a
sensibilidade esto fortemente imbricadas. Tambm ilumina a rotina de trabalho necessria para
fazer circular e comida e discute o campo de ao tica que aberto por esta rotina.
Palavras chaves: candombl, comida, transformao, tica
Abstract
The present paper discusses the central role of food in the candombl of Salvador, Bahia.
Starting with the description of ritual events that focus on food, it shows how the latter offers an
important key to understanding the type of relatedness operating in the candombl one that
involves mixtures, transformations and fluxes. It then argues that besides shedding light on the
ontology of the candombl, food also offers an interesting perspective into the ethics of AfroBrazilian religion: the preparation, distribution and consumption of food define a complex
dynamics of care that modulates everyday life in the candombl cult house. Attention to these
activities shows that in the candombl care is inseparable from sensitive involvement and
appreciation ethics and sensibility are closely related.
Keywords: candombl, food, transformation, ethics
Introduo
O Candombl uma religio afro-brasileira em que so cultuados deuses
africanos os orixs mas tambm entidades brasileiras conhecidas como caboclos.
Orixs (tambm referidos como santos) e caboclos tem caractersticas distintas, mas
ambos se apossam dos corpos de alguns de seus filhos humanos e ambos gostam de
comer. A comida desempenha de fato um papel importante nas casas de candombl,
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conhecidas como terreiros1. O visitante que vem assistir s festas pblicas a realizadas
logo percebe isso. No final de qualquer festa, um caprichoso repasto, com comidas
relacionadas aos orixs homenageados, distribudo entre os presentes. Mas, s vezes,
durante a festa mesma, tigelas de alimento oferecidas s entidades circulam em
procisso pelo barraco, para serem, em seguidas depositadas nos quartos em que esto
assentados orixs ou, a depender do caso, para serem compartilhadas pelos presentes.
Quando os adeptos iniciados dirigem-se para receber sua poro da oferenda,
imediatamente so tomados pelos seus orixs.
O visitante no demora a se dar conta do tempo, trabalho e dedicao gastos na
cozinha do terreiro. Mas s vezes lhe escapa o quanto o preparo, circulao e
distribuio de comida define a vida no candombl. A comem (e devem ser
alimentados) no s humanos, orixs e caboclos, mas tambm a cabea (ori), o cho, os
tambores, os colares de contas usados pelos adeptos. A comida distingue os seres e os
coloca em relao. Comida dos orixs e comida de humanos diferem, assim como difere
o que comem os adeptos quando esto em obrigao no terreiro e o que comem no seu
dia a dia. As divindades distinguem-se por suas predilees alimentares, a cozinha
abarca um vasto receiturio das iguarias prediletas de cada um dos deuses. E a comida
circula, no s distingue como tambm traa equivalncias e rene os integrantes de um
terreiro em eventos de comensalidade generalizada.
A presena conspcua da comida no terreiro aponta para a centralidade da
transformao no candombl. Ateno s atividades de preparo, distribuio e consumo
do alimento permite-nos entender, alm do mais, como a transformao cultivada no
terreiro reveste-se de dimenses estticas e ticas. Essas atividades mostram-nos, de
fato, como tica e sensibilidade esto estreitamente imbricadas no candombl. Na
discusso que se segue pretendo desenvolver esses pontos em mais detalhe. Para isto
apresento trs situaes que tm a comida como foco. Embora recorra a informaes
obtidas em diferentes terreiros de Salvador, bem como a estudos realizados por outros
pesquisadores do candombl, a maioria das descries apresentadas (retiradas de meu
dirio de campo) oriunda de pesquisa realizada junto ao Il Ax Ala Keykosan,
Entre os trabalhos que tratam de aspectos da comida no candombl convm destacar Elbein dos Santos,
1976; Augras, 1987; Lody, 1998; Bastide, 2000; Cossard, 2006; Sousa Jr, 2008 e Lima, 2010, entre
outros.
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liderado pela iyalorix2 Maria Beatriz dos Santos, conhecida como Me Beata. Trata-se
de terreiro de mdio porte, situado fora do eixo das antigas casas tradicionais3.
O Eb
Eb oferenda. Entre os ebs, esto aqueles destinados a limpar o corpo, a
descarregar as energias negativas que o cercam. Abaixo, cito dois relatos retirados do
meu dirio de campo:
Por volta das 8:30h. da noite, estavam todos vestidos de branco, prontos para ir a
praia, fazer uma oferenda Iemanj, orix feminino que reina sobre os mares. O
eb foi presidido por uma ebomi4, filha de Iemanj. Na praia, o grupo que estava
dando o eb foi instrudo a ajoelhar, prximo gua, onde quebravam as ondas. Os
demais ficaram de p, ao redor, e comearam a cantar para Iemanj. A ebomi
derramou ajeb sobre as cabeas das pessoas ajoelhadas, espalhando com a mo
feito de quiabo o ajeb um lquido viscoso. Pode ser oferecido a qualquer orix e
to logo tiveram suas cabeas molhadas, os rodantes5 foram tomados por seus
orixs. A ebomi prosseguiu com a oferenda ela e seus ajudantes passaram
diferentes comidas nos corpos ajoelhados. A comida despejada caa (ou escorria, a
depender dos ingredientes) pelo corpo e era recolhida pelas ondas. Quando a
oferenda foi concluda, Iemanj apossou-se da ebomi; sua presena foi anunciada
por um grito fino, que se prolongou enquanto o corpo largo da ebomi balanava de
um lado para outro. Algum disse baixinho que Iemanj havia aceitado a oferenda
sua vinda indicava isso. Uma das equedes assistiu na sua partida, pousando a mo
gentilmente sobre o ombro da ebomi possuda. Pouco depois o grupo foi instrudo a
se banhar nas ondas, antes de retornar ao terreiro.
Quando cheguei ao terreiro, o material do eb estava sendo preparado. Repolho
branco e repolho roxo estavam sendo cortados em tiras bem finas; uma abbora e
alguns chuchus eram picados em cubinhos. Uma filha de santo descascava gros de
fava aferventada, outra amassava com as mos o inhame cozido para fazer bolinhos
redondos. Bolinhos eram tambm feitos com arroz cozido e outros com farinha de
mandioca molhada. Pequenas pores de cada comida abbora, repolho, milho
branco cozido, caroos de milho amarelo, milho alpiste, sementes de girassol,
arroz, bolinhos de arroz, de inhame e de farinha, fava cozida e temperada com
camaro seco, diferentes tipos de feijo, pipoca eram distribudas separadamente
em pratos (cuja quantidade era estabelecida com base no nmero dos
participantes). O eb era oferecido aos eguns (espritos de mortos). O grupo,
composto de homens e mulheres, vestia branco. Metades abertas de berinjela,
dispostas como sandlias no cho, delimitavam o local em que os ps descalos
deveriam pisar. Na frente de cada par de calado, uma gamela de barro. A me
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de santo puxava os cantos e era secundada por um grupo de filhas de santo que se
acercara para ajudar. Aqueles que estavam fazendo o eb receberam, cada qual,
dois bolinhos de farinha molhada, para segurar em suas mos fechadas. As
ajudantes entregavam os pratinhos com a comida me de santo que os passava em
torno de seus corpos, comeando pela cabea, movimentando de baixo para cima, e
de frente para trs. Parte do contedo era derramada sobre a cabea, e o restante
lanado na gamela de barro. Quando o procedimento era concludo com uma das
comidas, dava-se incio seguinte, at todo o contedo ser utilizado. Cada um teve
uma vela e, em seguida, um ovo passados no corpo; depois quebrados e jogados na
gamela. Ao final foram instrudos a jogar na gamela os bolinhos de farinha
amassados. Saram ento de seus calados de berinjela, para o sacudimento de
folhas: tronco, costas e ombros receberam o impacto dos galhos que a me de santo
segurava e movimentava vigorosamente em volta deles. Do sacudimento foram
para o banho de folhas. Enquanto a me de santo cuidava do grupo, uma de suas
filhas de santo recolhia os restos de comida que havia cado no cho, utilizando
galhos como vassoura. O contedo do eb seria depois despachado no mato.
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O Bori
O bori o rito de dar de comer cabea ou ori, entidade sagrada no candombl,
cultuada como lcus da individualidade. Fortalece o ori e, assim, firma a cabea do
indivduo, trazendo o equilbrio necessrio para a sua sade e, quando for o caso, para
que receba seu orix (antecede assim o processo de iniciao). Envolve uma sequncia
de oferendas ao ori, incluindo a noz de cola, obi, seu alimento por excelncia. Segue
trecho de meu dirio de campo:
O bori teve incio noite. Vestidos de branco, os novios sentaram numa esteira
com as pernas estendidas e mos abertas sobre as pernas, palmas viradas para
cima. Atrs de cada um estava a pessoa escolhida como sua madrinha ou padrinho
de bori. Comeados os cantos, padrinhos e madrinhas puseram-se a lavar as
cabeas de seus afilhados, derramando sobre elas uma infuso de folhas frescas e
cheirosas o amaci. Ento se posicionaram na frente destes, segurando uma bacia
esmaltada chamada de ib ori (bacia da cabea) - que o duplo do ori no outro
mundo (orum). Uma tigela grande com fatias de frutas foi trazida. A me de santo
retirou duas fatias e as movimentou ao redor do corpo da primeira novia, antes de
coloc-las dentro da bacia. A mesma operao foi repetida para cada um dos
novios e com diferentes comidas alm das frutas, pratinhos com bolinhos de
inhame, bolinhos de arroz e gros diversos. Antes de ter seu contedo despejado no
ib ori, cada pratinho circulou ao redor do corpo do novio, marcando as direes
de frente e trs, acima (cabea) e abaixo (ps), direita e esquerda 6. Quando toda a
comida foi coletada nas bacias do ori, estas foram deixadas sobre o colo dos
novios. Os padrinhos e madrinhas trouxeram, ento, quartinhas com gua e
pratinhos de barro contendo obi (um para cada novio). A me de santo
aproximou-se da primeira novia do grupo, pegou o obi e cortou algumas fatias
finas. O restante ela dividiu em duas partes, sobre as quais aspergiu um pouco de
gua da quartinha, antes de lan-las sobre o prato, para assegurar-se de que a
oferenda foi aceita pelo ori7. A me de santo entregou, ento, uma fatia do obi `a
novia para que mastigasse sem engolir, ela e a madrinha fizeram o mesmo.
Depois recolheu os obis mascados, que foram cuspidos em sua mo, e ps a pasta
sobre o cocuruto da novia. Notei que alguns novios contraiam as feies com o
gosto amargo do obi. Enquanto repetia a mesma operao para cada novio, a me
de santo dizia: Obi paz, obi calma, obi tranquilidade. Outros ingredientes foram
agregados pasta de obi sobre as cabeas, entre elas uma poro de milho branco
cozido. Neste momento foram trazidos os pombos para serem sacrificados e
oferecidos ao ori (um para cada novio). Um pouco do sangue do pombo foi
derramado sobre vrios pontos do corpo, seguindo as direes j mencionadas: ps,
6
Como j observado por vrios pesquisadores (Elbein dos Santos, 1976; Verger, 1981; Vogel et al., 1993;
Rocha, 1995) estas direes tm um significado prprio no candombl. A frente do corpo a nascente, o
futuro; as costas, o poente, o passado. Frente e costas so em geral igualados a acima e abaixo, cabea e ps.
A cabea recebe os orixs, os ps fazem a ligao com os ancestrais. O lado direito do corpo representa os
elementos herdados do pai e dos ancestrais masculinos; o lado esquerdo, da me e ancestrais femininos.
Assim atravs dos gestos da me de santo, um elo vital estabelecido e renovado entre estes princpios.
7
Quando as duas metades caem com as cascas sobre o prato a resposta feliz (alafia)
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pulsos, cocuruto, tmporas direita e esquerda, nuca e ombros. Penas foram fixadas,
com o sangue, em alguns destes pontos. O sangue foi tambm derramado sobre o
ib ori. Penas dos pombos foram colocadas em torno desta bacia, enfiadas
decorativamente em meio s comidas que ali foram recolhidas. As madrinhas
amarraram com firmeza uma faixa de pano branco em volta da cabea de seus
afilhados, para a reter a oferenda. Estes foram ento instrudos a deitarem-se de
bruos e foram completamente cobertos por lenis. gua de colnia foi aspergida
sobre eles e caroos de milho branco cozidos foram lanados em volta das esteiras
delimitando o local de repouso. Logo o silncio reinou. Parte dos materiais usados
no bori foi, ento, arrumada em uma bancada atrs das esteiras onde dormiam os
novios borizados: pombo cozido com farofa, tigelas com muitas frutas. Manjar
branco e aca completavam o conjunto. As cabeas dos pombos foram dispostas
nos pratos com as quartinhas, em meio a arranjos de sangue e penas. No dia
seguinte, os novios deram incio ao consumo dos alimentos. A comida foi
tambm partilhada com outros adeptos do terreiro, que contavam com a
generosidade do grupo recolhido e vinham pedir um pouco de comida para si. J
quase ao cair da noite a me de santo veio suspender (encerrar) o bori:
desamarrou a faixa de pano que retinha as oferendas de comida na cabea,
recolheu os gros de milho numa bacia e lavou a cabea de seus filhos com uma
infuso de folhas frescas. Estes foram ento instrudos a tomar banho. Ao final,
receberam um conjunto de prescries comportamentais e alimentares que
deveriam seguir por um perodo de duas semanas, como parte do resguardo.
Depois de um excesso de atividade o corpo estava frgil, precisava ser protegido
(res-guardado) de tudo que pudesse ameaar o equilbrio conquistado. A proibio
de certas comidas e recomendao de outras era fundamental para o sucesso deste
empreendimento.
No bori, a comida recolhida na cabea do novio e na bacia (ib ori) que este
segura entre as mos. Assim como o ib ori, a cabea tambm ela recipiente e uma
equivalncia estabelecida entre duas. Ao mesmo tempo em que destacam e
individualizam uma parte do corpo a cabea os procedimentos do rito projetam-na
para fora a bacia. O corpo dividido e expandido num movimento que expe a
natureza mltipla e composta da pessoa.
Mas tambm come o novio e convm refletirmos um pouco mais sobre esta
experincia. No bori, comer essencial para a restaurao da fora e do equilbrio. A
disponibilidade de certas comidas e proibio de outras define o lugar dos novios.
Durante o perodo de recolhimento ps-performance domina a comida branca de
Iemanj (orix protetor do ori): milho branco, manjar branco, aca e frutas.
A comida no apenas consumida pelos borizados, compartilhada e circula
entre os integrantes do terreiro. Embora os novios controlem a extenso e quantidade
da partilha afinal o bori deles espera-se que sejam generosos. Assim, se por um
lado o rito suspende o tempo cotidiano gerido pela preocupao com os outros (filhos,
companheiros, parentes) a comida deve consumida livremente sem considerao com
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o calor do sangue que rega o topo da cabea e a viso do sangue regando a bacia do ori.
Gosto, tato e viso se comunicam, emprestam qualidades uns aos outros, compem uma
cena total em que novio e cabea, cabea e ib (bacia) se equivalem comem todos os
trs. Por fim, h troca e contaminao entre a experincia do novio e a experincia da
me de santo, ambos mastigando o obi, e ainda entre a experincia individual do comer
e a experincia de comer junto. O novio se v espelhado na me de santo, cujo ato de
mastigar obi desenha e objetiva o seu prprio, projetando-o para fora. Mais tarde v sua
situao nica de sujeito (que alvo de cuidados e a quem a comida oferecida) de
novo projetada para fora desta vez nos outros que comem junto com ele e que
pedem, disputam e apreciam a comida.
Annemarie Mol (2008) observa que comer envolve muita atividade, mas pouco
controle. No comer a agncia distribuda entre o sujeito que come e a coisa comida,
mas tambm entre os rgos que processam o alimento (e sobre cujo funcionamento o
eu exerce pouco ou nenhum comando). Nas atividades de comer transcorridas durante
o bori a agncia no s distribuda ao interior do corpo, mas, como vimos, entre os
diferentes sentidos, entre o novio, a madrinha e a me de santo, entre o novio e o ori,
entre os borizados e outros membros do terreiro.
O assentamento do orix
No candombl, j observei, os orixs comem. Cada um dos deuses africanos tem
suas preferncias alimentares, no apenas predileo por certos ingredientes, como
tambm por certos modos de prepar-los e exibi-los. A comunicao com os orixs
mediada pela oferta da comida que os agrada, que os mobiliza e os coloca nos circuitos
de proteo e ajuda que a me de santo ativa em favor dos seus filhos e clientes. Mas a
comida no apenas o veculo de pedidos humanos, portadora de ax, da energia vital
que precisa ser acumulada e renovada para assegurar a vida do terreiro e dos diversos
seres que se fazem presentes no terreiro, incluindo os orixs.
H dois tipos de comida oferecidos aos orixs: as comidas secas (pratos, s vezes
bastante elaborados, feitos com espcies vegetais) e as comidas que envolvem sacrifcio
animal (referido como matana). As primeiras so arreadas como pedidos, depositadas
nos quartos dos santos e depois no mato ou na gua, a depender do orix. Mas as
comidas secas acompanham tambm a oferenda de animais sacrificados. Estas ltimas
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foram enfiados na comida, apontando para cima; as penas formaram uma coroa
rodeando todo o contedo da bacia. Aca e manjar branco completaram a
oferenda. Flores foram usadas para decorar. Em seguida foi consagrado o assento
do Oxal de um novio que em breve seria iniciado. Uma certa combinao de
substncias foi derramada na sopeira, ot foi lavado com uma infuso de ervas,
coberto de gua e mel. Um grande caramujo branco (igbin), muito apreciado por
Oxal foi includo no sacrifcio. Galinhas, patos e pombos, todas fmeas e brancas,
tiveram as cabeas cortadas; o sangue, carregado de ax, regou o ot, foi
derramado sobre a bacia e tambm sobre a cabea do novio. A bacia foi
preenchida com milho branco, aca, manjar, fatias de obi e depois enfeitada com
penas, ps das aves e flores. Muita ateno foi dispensada ao detalhe: tudo foi
disposto e arrumado para dar uma impresso geral de proporo e beleza.
Assim como no bori em que comem a cabea (ori) e seu portador humano, no
ritual do assentamento do orix, come a pedra (ot) e a cabea do novio, ambos
regados com sangue, e transformados em assento (lugar onde reside o orix do novio e
onde ele baixa em ocasies especiais). O sangue borra limites, consagra cabea e pedra
e as aproxima, refazendo ambas como assento do orix.
Vale notar: qualquer situao de preparo, circulao e consumo de comida traz a baila o tema da
transformao e do fluxo, no dia a dia de um terreiro, entretanto, estes sentidos so ressaltados.
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Durao um conceito proposto por Whitehead para tratar da natureza e do tempo, ou melhor, da
natureza como processo ou passagem. Para o filsofo cada durao contm duraes menores e , ela
mesma, parte de outras, mais longas. Diferentes duraes podem tambm se sobrepor parcialmente e se
concatenar. Whitehead insiste que uma durao no pode ser confundida com a sucesso de instantes
idnticos, pois duraes tm espessura (Stengers, 2011), so da ordem do qualitativo. A utilizao de
Whitehead neste captulo foi inspirada por um texto de Iara Souza (2010) em que o conceito de durao
exposto e aplicado discusso dos laboratrios de cincia.
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Traduo minha. No original: Things are alive and active not because they are possessed of spirit
whether in or of matter but because the substances which they comprise continue to be swept up in
circulations of the surrounding media that alternately portend their dissolution or characteristically with
animate beings ensure their regeneration.
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Traduo minha. No original: The phrase ordinary ethics signals several things. First contributors
argue that ethics is part of the human condition; human beings cannot avoid being subject to ethics,
speaking and acting with ethical consequences, evaluating our actions and those of others, acknowledging
and refusing acknowledgement, caring and taking care, but also being aware of our failure to do so
consistently.
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para um certo tipo de desempenho prtico posturas, gestos, ritmos. Tambm molda
uma sensibilidade esttica e abre lugar para o exerccio da criatividade. E constitui a
pessoa que cuida como um sujeito tico.
Cuidar no candombl d trabalho no s para a liderana, como tambm para
todos que esto sob seu comando. Certa vez presenciei a conversa de uma filha de santo
iniciada h menos de um ano com um rapaz que ia dar seu primeiro bori no terreiro de
Me Beata. A moa desejava explicar ao rapaz algo sobre o candombl e possivelmente
tambm prepar-lo para a vida de adepto. Sua breve exposio foi resumida numa frase
evocativa: o candombl uma religio muito laboriosa. A frase iluminava para o
novato algo de que ele teria uma experincia direta durante o bori, quando seria
beneficiado pelo trabalho minucioso da me e filhos de santo do terreiro. Mas, caso
depois viesse a integrar o terreiro como adepto, o trabalho fatalmente iria envolv-lo
tambm como agente, quando chegasse o momento de cuidar de outros.
A fala da filha de santo lembrou-me de outra, proferida por uma ebomi (adepto
snior). Depois de muitos anos de envolvimento no candombl foi iniciada quando
criana Dona Jandira, passou a manter uma distncia crtica, mas respeitosa, da
religio dos orixs:
O candombl, deixo de ladinho15. As meninas dizem assim: Mas Jandira, voc
maluca?, Ah! Maluca o qu! Qual maluca!? Eu vou ficar no candombl s
trabalhando pra fazer comida pra santo, a vida toda...? No, que eu no dou pra
esse negcio, no. A vida do candombl s pra quem adora, quem adora e que
pode t em cima de galo, de bobe e de coqum (galinha dangola), de pombo, mas
eu no posso, eu no posso. Uma que eu no tenho com o que, entendeu? No
posso esbanjar o pouquinho [de dinheiro] que eu recebo, eu tenho que comprar
meu medicamento e meu alimento. Se eu for mexer em candombl, eu estou
lenhada, com que eu vou comprar? (...) Ah porque vai comer o santo fulano, no
quer saber que voc no tem, voc tem que comprar, quer dizer, voc compra
fiado, faz dvida. No, isso eu no aceito, orix que me perdoe, mas ele sabe que
essa filha dele no aceita isso. (...) Quando nego entra no candombl, quem entrou,
no saia, porque tambm quem tiver c fora, que no v l, no v l! Quem t fora
no entre, porque quem t dentro no sai no, viu. Eu no vou sair, mas estou de
banda. No posso sair, [ento] estou de banda, n?
Com a expresso deixar de ladinho, Dona Jandira descreve um modo de envolvimento parcial no
candombl, nem a pertena plena (que exige muita submisso e sacrifcio) e o total rompimento (que
implica abandono aos orixs).
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trajetria de submisso. O que ela no diz (ou apenas sugere) que a submisso no
candombl tambm experincia de estar nas mos de outros, de deixar que outros
decidam em meu lugar e confiar que eles sabem melhor que eu. Neste sentido exige um
esforo para aceitar (e lidar com) a diminuio da agncia e entregar-se agncia dos
outros. Demanda um trabalho sobre si que tambm trabalho de constituio de si
como sujeito tico (que confia e se entrega)16.
Remetendo ao tema do cuidado, os percursos da comida iluminam um campo de
ao tica. Conforme vimos, os participantes das intricadas redes de cuidado que
operam no terreiro movem-se em meio a vnculos contrados, expectativas de
retribuio e responsabilidades assumidas. Neste campo se delineiam possibilidades de
exerccio de autonomia (o deixar de ladinho, assumido por Dona Jandira uma destas
possibilidades) e de realizao das aspiraes individuais17. A comida tem a um lugar
central faz-la circular tanto sacrifcio e obrigao quanto condio para a criao
dos vnculos que fortalecem a pessoa.
Mas no candombl a dimenso tica da comida no se resume ao seu papel de
intermedirio nas trocas operantes no terreiro. Diz respeito aos tipos de conexo que ela
promove. Vale a pena voltarmos aos trs eventos descritos na primeira seo deste
artigo para esclarecermos este ponto: o eb, o bori, o assentamento. Estes eventos
mostram que a comida o veculo por excelncia pelo qual se fazem pessoas e santos
(ou pessoas com seus santos), pelo qual se promovem participaes e transformaes no
candombl. A comida vincula borrando fronteiras, instituindo reversibilidade entre
dentro e fora, humano e orix, cabea e corpo. A tica que ela implica menos da
ordem da conexo entre seres j constitudos do que da transformao e do fluxo.
Remete ao vnculo entre seres que se constituem juntos atravs de processos que em
grande medida escapa ao seu controle. O comprometimento e a responsabilidade que
este vnculo produz so menos da ordem do acordo do que da cumplicidade e
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A dificuldade que sentem muitos filhos de santo de se moldarem s demandas de sujeio vigentes no
terreiro evidencia a necessidade deste trabalho.
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Prandi no est errado em dizer que o candombl fortalece o indivduo para perseguir suas aspiraes.
Mas, conforme nos mostram os circuitos da comida, tambm situa o indivduo em uma densa rede de
obrigaes (que limita sua autonomia e o submete ao mando de outros). Pode variar bastante o modo
como estas duas dimenses (e a tenso potencial entre eles) so vividas pelos filhos de santo e
administradas pelo terreiro, mas em qualquer caso a perseguio de interesses via a mobilizao de
parceiros divinos no se d em um vazio tico mas em meio ao apelo de compromissos contrados (ou
herdados), ao peso de responsabilidades assumidas, a necessidade de emitir julgamentos e tomar
posies.
Papeles de Trabajo. Revista electrnica del Instituto de Altos Estudios Sociales de la Universidad
Nacional de General San Martn. ISSN 1851-2577. Ao 7, N 11, Buenos Aires, mayo de 2013.
Dossier: Materialidad y agencia: un debate con la obra de Tim Ingold.
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Concluso
Neste texto refleti sobre os percursos da comida no candombl. Na primeira parte,
inspirada em Ingold, procurei mostrar que a comida chave importante para
entendermos o tipo de relacionalidade que vigora no candombl - uma relacionalidade
que envolve misturas, transformaes, fluxos. Em seguida argumentei que alm de
oferecer entrada ontologia do candombl, a comida tambm porta de acesso tica
que lhe prpria: afinal o preparo, oferta, distribuio e consumo do alimento so
definidores da complexa dinmica de cuidado que modula a vida no terreiro. Ateno a
estas atividades mostra que no candombl o cuidado inseparvel do envolvimento e
apreciao sensvel a tica e a sensibilidade esto fortemente imbricadas. Tambm
ilumina a rotina de trabalho necessria para assegurar que as transformaes postas em
marcha no terreiro sejam conduzidas a contento. Conforme vimos, os percursos da
comida delineiam um campo de ao tica em que fruio esttica e julgamento moral,
exerccio da agncia e submisso, dispndio de energia e entrega passiva so dimenses
entrelaadas e reversveis.
Bibliografa
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