Marshal
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Srie
acadmica
Deste modo, o autor assinala que a evoluo da cidadania nacional [2], sobre a qual pretende
jogar luz, passou por um duplo processo de fuso geogrfica, por um lado, e de separao
funcional, por outro. O primeiro, que ocorrera na Inglaterra pelo menos um sculo antes de sua
consolidao na Europa continental, envolveu a transformao das instituies locais em
nacionais e permitiu a passagem da anlise para um nvel analtico mais amplo. A separao
funcional, por sua vez, relaciona-se com o desligamento das instituies da sociedade entre si,
resultando na formao de tribunais especializados e parlamento sem funes judiciais, bem
como a Poor Law, uma instituio nacional de direito social, porm administrada localmente.
O processo de evoluo da cidadania originou, segundo Marshall, duas consequncias
importantes. Primeiramente, a separao funcional permitiu que cada um dos direitos seguisse
seu caminho, figurando-se como elementos estranhos entre si. O divrcio entre eles era to
completo que possvel (...) atribuir o perodo de formao da vida de cada um a um sculo
diferente os direitos civis ao sculo XVIII, os polticos ao XIX e os sociais ao XX (p. 66).
Estes perodos devem ser relativizados, evidentemente, pois h entrelaamento,
principalmente entre os dois ltimos. Em segundo lugar, houve um distanciamento das
instituies com relao aos grupos sociais que elas buscavam servir, em funo do seu novo
carter nacional, decorrendo da a necessidade de se reconstruir o mecanismo de acesso
quelas: cada um dos direitos ligava-se a instituio cujo mecanismo de acesso foi restitudo
ao longo dos sculos mais ou menos rapidamente, reforando o completo divrcio ao qual
Marshall referia-se anteriormente.
A distino entre cidadania, ou status, e classe social outro elemento essencial na
formulao de Marshall. A primeira um status concedido queles que so membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status so iguais com respeito
aos direitos e obrigaes pertinentes ao status (p. 76). Quer dizer, a cidadania a relao do
indivduo com o Estado, a partir da qual so conferidos direitos individuais num movimento em
direo igualdade material ou cidadania ideal. A classe social, por outro lado, um sistema
de desigualdade (p. 76). Relaciona-se com a insero do indivduo no mercado de trabalho e,
num marco liberal, sua existncia desejvel seja para recompensar o trabalho realizado ou
como incentivo para o desenvolvimento. Dessarte, possvel assegurar que a classe social
fundada nas desigualdades econmicas dos indivduos, ao mesmo tempo em que subsiste
como uma reprodutora de desigualdades sociais.
Cidadania e classe social, para Marshall, por divergirem-se fortemente quanto aos fins,
tomaram a forma de conflito entre princpios opostos. A observncia de que, no sculo XX,
cidadania e sistema de classe capitalista encontram-se em guerra foi o que trouxe ao autor a
preocupao em investigar os impactos de uma sobre outra, e eventualmente entrever algum
tipo de compatibilidade. Ainda assim, os termos continuam a carecer de definies mais
concretas.
Marshall ocupa-se em realizar uma diferenciao entre dois tipos de classe social que so
importantes para o seu estudo. Ele ressalta que o primeiro deles a classe que se assenta
numa hierarquia de status e expressa a diferena entre uma classe e outra em termos de
direitos legais e costumes estabelecidos que possuem o carter coercivo essencial da lei (p.
76), sendo uma instituio, emergida naturalmente, em seu prprio direito. Trata-se, de certa
forma, do sistema de classes do feudalismo medieval, e o autor aponta incisivamente a
incompatibilidade deste sistema com as aspiraes de cidadania, quando afirma: Uma justia
nacional e uma lei igual para todos devem (...) enfraquecer e, eventualmente, destruir a justia
de classe, e a liberdade pessoal, como um direito natural universal, deve eliminar a servido
(p. 77).
O segundo tipo de classe social, j brevemente tratado acima, no tanto um produto derivado
de outras instituies sociais, mas particularmente dos fatores relacionados com as
instituies da propriedade e educao e a estrutura da economia nacional (p. 77). Permite-se
a mobilidade social, que est relacionada com a participao do indivduo na economia via
mercado de trabalho e a possibilidade de sucesso material. A existncia desse tipo de classe
gera um tipo de desigualdade social necessria e proposital (p. 77), ainda que possa se tornar
destrutivamente excessiva. Entretanto, sua necessidade sugere que, a princpio, ela no seja
incompatvel com aspiraes igualitrias via status. Neste sentido, o autor faz referncia a
Patrick Colquhoun, que aceita explicitamente a pobreza, apesar de deplorar os indigentes ou
os destitudos: Sem uma grande proporo de pobres no poderia haver ricos, j que os ricos
so o produto do trabalho (...). A pobreza, portanto, um ingrediente indispensvel e por
demais necessrio da sociedade, (...) (p. 78). O desejo por cidadania e o despertar da
conscincia social, que acarretaram a favorvel diminuio da influncia das classes, no
constituiu um ataque ao sistema de classes, tornando-o, ao contrrio, menos vulnervel. Alm
disso, e particularmente, quando o ncleo da cidadania residia nos direitos civis, a concesso
de direitos era necessria para a manuteno de um mercado competitivo e gerador de
desigualdades.
Outrossim, os direitos polticos de cidadania estavam repletos de ameaa potencial ao sistema
capitalista (p. 85), uma vez que Marshall reconhece a importncia do exerccio do poder
poltico para demandar e se assegurar direitos sociais. Contudo, o que se observou na
Inglaterra foi a transferncia da reivindicao social da esfera poltica para a civil da cidadania,
via sindicalismo ou aceitao do direito de barganha (p. 86).
Tem-se, portanto, que at o incio do sculo XX, momento em que os direitos sociais comeam
a se efetivar, o desenvolvimento da cidadania tenha exercido pouca influncia direta sobre a
desigualdade social (p. 87). A ampliao dos direitos sociais constituiu-se num papel decisivo
na relao com o sistema de desigualdade, ainda que seu objetivo aparente no tenha sido
atacar a desigualdade de renda, mas sim promover a igualdade de status.
Por fim, julgam-se importantes dois aspectos da anlise proposta por Marshall. Em primeiro
lugar, a essencialidade de sua definio de cidadania, em geral, e de sua tipologia dos direitos,
em particular. Ainda que o empreendimento do autor no chegue a se constituir numa teoria
especfica, apesar de certas e dispersas generalizaes quanto ao surgimento da cidadania na
Europa, suas formulaes fornecem ferramentas importantes para a compreenso de
fenmenos sociais ao longo da histria. Um segundo aspecto a se acentuar a relao crucial
estabelecida por Marshall entre busca por igualdade, por meio da universalizao da cidadania,
e manuteno de um sistema de desigualdades, produzido pelo prprio desenvolvimento de
uma economia de mercado. Ele demonstra que a convivncia entre ambos desejvel e
necessria dentro da lgica capitalista vigente. Nesse sentido, vale destacar a atualidade de
certas questes por ele levantadas, embora a anlise tenha sido realizada h seis dcadas.
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[1] A Revoluo Gloriosa, de 1689, e as guerras civis antecedentes, com contedos polticos,
sociais, econmicos e religiosos, aplainaram o caminho para a Revoluo Industrial na
Inglaterra, um sculo antes da parte continental europeia.
[2] Ao se referir cidadania nacional, acredita-se que Marshall esteja pensando unicamente
em termos de configurao territorial. Ser desconsiderado, portanto, o anacronismo de
Marshall, adotando sua viso de nacional como sinnimo de estatal para fins deste trabalho.
Postado por Marcos Ticiano Sousa s 10:58