A Moral e Outras Formas de Comportamento Humano
A Moral e Outras Formas de Comportamento Humano
A Moral e Outras Formas de Comportamento Humano
No momento, cabe-nos somente examinar, em termos gerais, qual a distino, nesse quadro geral de
relaes mtuas, entre o comportamento moral e outras formas fundamentais do comportamento
humano, como o religioso, o poltico, o jurdico ou legal, o trato social e o terico-cognoscitivo ou
cientfico. Vejamos, por conseguinte, separadamente, as relaes entre a moral e a religio, a moral
e a poltica, a moral e o direito, a moral e o trato social e a moral e a cincia.
2.
Moral e Religio
Num sentido amplo, pode-se entender por religio a f ou a crena na existncia de foras
sobrenaturais ou num ser transcendente e sobre-humano, todo-poderoso (ou Deus), com o qual o
homem est em relao ou est religado. Do ponto de vista das relaes entre o homem e a
divindade, a religio se caracteriza: a) pelo sentimento de dependncia do homem com respeito a
Deus; b) pela garantia de salvao dos males terrenos que a religio oferece ao homem no outro
mundo. Esta caracterizao aplicada, sobretudo, ao cristianismo significa: 1) a afirmao de Deus
como verdadeiro sujeito e a conseqente negao da autonomia do homem; 2) a transposio da
verdadeira libertao do homem para um mundo transcendente, ultraterreno, que somente se pode
alcanar depois da morte.
Se a religio oferece num alm a salvao dos males deste mundo, significa que reconhece a
existncia real desses males, isto , a existncia de uma limitao ao pleno desenvolvimento do
homem e, neste sentido, a expresso da misria real. Por outro lado, prometendo este
desenvolvimento na outra vida, significa que, tambm nesta forma, a religio no resigna com os
males deste mundo e lhes d uma soluo, ainda que num mundo ultraterreno, colocado alm do
mundo real: neste sentido a religio o protesto contra a misria real. Quando se perde de vista
que inclui um protesto contra o mundo real, a religio se transforma num instrumento de
conformismo, resignao ou conservadorismo: isto , de renncia luta para transformar realmente
este mundo terreno. E tal a funo que a religio desempenhou historicamente durante sculos,
colocando-se, como ideologia, a servio da classe dominante.Mas no foi assim nas suas origens,
quando nasceu como religio dos oprimidos dos escravos e dos libertos - em Roma. E, em nossos
dias, est adquirindo fora dentro cristianismo uma tendncia que remonta at suas origens e se
afasta da tradio conformista que, durante sculos, forneceu um fundamento teolgico aos sistemas
econmico-sociais dominantes (escravido, feudalismo e capitalismo), para solidarizarem com as
foras que lutam por uma transformao efetiva do mundo humano real.
Quando se fala de relaes entre a moral e a religio, preciso lembrar as consideraes anteriores.
Tendo-as presentes, podemos sublinhar que a relao entre ambas as formas de comportamento
humano ocorre na medida em que: a) a religio inclui certa forma de regulamentao das relaes
entre os homens, ou seja, certa moral. No cristianismo os mandamentos Deus so, tambm,
preceitos ou imperativos morais; b) a religio se apresenta como uma garantia do fundamento
absoluto (Deus) dos valores morais, assim como da sua realizao no mundo. Sem religio,
portanto, no h moral.
A primeira tese a religio inclui certa moral - confirmada historicamente tanto pelo
comportamento religioso dos homens como pelo seu comportamento moral.
Uma moral de inspirao religiosa existiu e continua a existir, embora de acordo com as formas
efetivas que a religio e, em particular, o cristianismo adotou seja preciso reconhecer que a
moral que se apresentava como crist era classista, isto , a servio dos interesses e valores da
classe social dominante.
No que diz respeito segunda tese Deus como garantia da moral pode-se afirmar que,
segundo ela, a falta deste fundamento ou garantia acarretaria a impossibilidade da moral. Nas
palavras seguintes do romancista russo Dostoievski, inmeras vezes citadas, expressa-se
condensadamente esta posio: Se Deus no existisse, tudo seria permitido. No haveria, pois,
uma moral autnoma, que tivesse seu fundamento no homem: poder-se-ia afirmar somente a moral
que tivesse o seu centro ou a sua fonte em Deus.
Pois bem, como demonstra a prpria histria da humanidade, a moral no somente no se origina da
religio, mas tambm anterior a ela. Durante milnios, o homem primitivo viveu sem religio,
mas no sem certas normas consuetudinrias que regulamentavam as relaes entre os indivduos e
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a comunidade e, ainda que em forma embrionria, j tinham um carter moral. Por conseguinte, do
fato que a religio implique numa certa moral e que, para essa, Deus seja a garantia dos valores
morais e da realizao da moral, no segue que a moral no seja possvel sem a religio. A religio
no cria a moral, nem a condio indispensvel em qualquer sociedade para ela. Mas,
evidentemente, existe uma moral de inspirao religiosa que desempenha tambm a funo de
regulamentar as relaes entre os homens em consonncia com a funo da prpria religio. Assim,
os princpios bsicos desta moral amor ao prximo, respeito pessoa humana, igualdade
espiritual de todos os homens, reconhecimento do homem como pessoa (como fim) e no como
coisa (meio ou instrumento) constituram, numa determinada fase histrica (particularmente na
poca da escravido e na servido feudal), um alvio e uma esperana para todos os oprimidos e
explorados, aos quais se negava aqui na terra amor, respeito, igualdade e reconhecimento. Mas, ao
mesmo tempo, as virtudes dessa moral (resignao, humildade, passividade, etc.), por no
contriburem para a soluo imediata e terrena dos males sociais, serviram para manter o mundo
social que as classes dominantes estavam empenhadas em sustentar. Mas a reviravolta que comea a
esboar-se na nossa poca dentro do cristianismo e especialmente dentro do catolicismo psconciliar , no sentido de que os cristos se orientem mais para este mundo e para o homem,
participando inclusive com os no-crentes na transformao real dele, imprime uma nova feio
moral de inspirao religiosa. Esta dupla orientao para o mundo real e para o homem permite que
as velhas virtudes resignao, humildade, conformismo,
etc. cedam lugar a outras vinculadas com o esforo coletivo para a emancipao efetiva neste
mundo real. De outro lado, a moral crist assim renovada coexiste com a moral de outros homens e
se guiam por princpios e valores exclusivamente humanos, to , com a moral de indivduos ou
povos que revelam altas qualidades morais sem que o seu herosmo, solidariedade, esprito
sacrifcio, etc., brotem de um estmulo religioso.
Vemos, pois, que, embora a moral imprima um carter peculiar regulamentao moral das
relaes entre os homens, no se confirma, nos nossos tempos, a tese de que sem religio soobraria
a vida moral. Se o comportamento moral e o religioso articulavam-se historicamente, e articulam-se
ainda em nossos dias, com as particularidades que assinalamos, no se deduz que a moral precise
permanecer necessariamente dependente da religio. Se no passado Deus era o fundamento e a
garantia da vida moral, hoje so cada dia mais numerosos os que procuram no prprio homem o seu
fundamento e a sua garantia.
3. Moral e Poltica
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tempo, suas caractersticas especficas, isto , sem que uma absorva a outra ou a exclua por
completo.
A este propsito, examinaremos duas posies extremas pobre as relaes entre a poltica e a moral,
as quais nos permitiro situar ambas em seu verdadeiro terreno. Uma a do moralismo abstrato; a
outra, a do realismo poltico.
O moralista abstrato julga os atos polticos com um critrio melhor, moralizante. Por conseguinte,
somente aprova os atos que possam ser realizados por meios puros, que no perturbem a
conscincia moral ou satisfaam plenamente as boas intenes ou as exigncias morais do
indivduo. Uma expresso histrico-concreta desta atitude poltica moralizante foi, no sculo
passado, a dos socialistas utpicos (Saint-Simon, Owen, Fourier, etc.), que pretendiam transformar
radicalmente a ordem social imperante apelando para a persuaso individual, para a conscincia
moral ou para os coraes dos empresrios, a fim de obter desta maneira uma ordem social e
econmica baseada numa justa distribuio da riqueza. Expresso desta atitude moralizante
igualmente a que julga o trabalho de um governante to-somente por suas virtudes ou vcios
pessoais e pe as esperanas de transformao poltica na moralizao dos indivduos, sem
compreender que no se trata de um problema individual, visto que a possibilidade de que as suas
qualidades morais positivas ou negativas desenvolvam-se ou sufoquem depende de uma
determinada estrutura poltico-social.
Este moralismo abstrato leva a uma reduo da poltica moraL Como leva, tambm, impotncia
poltica na ao ou diante da impossibilidade prtica de efetuar esta reduo condenao ou
renncia poltica para refugiar-se na esfera pura e privada da moral. Desta maneira, segue-se que
o preo que o moralista abstrato deve pagar por sua atitude , do ponto de vista poltico, sumamente
alto: a impotncia poltica ou a renncia ao.
Vejamos, agora, a posio oposta no que diz respeito s relaes entre poltica e moral, ou seja, a do
chamado realismo poltico. A tendncia legtima para fazer da poltica uma esfera especfica,
autnoma, evitando limit-la aos bons desejos ou intenes do poltico, culmina na chamada
poltica realista, na procura de certos efeitos a qualquer preo, sejam quais forem os meios aos quais
se deva recorrer, com a conseqente excluso da moral, por julgar-se que o seu domnio especfico
a vida privada. Esta separao absoluta da poltica e da moral, no terreno das relaes
internacionais, conduz ao predomnio do egosmo nacional sobre qualquer outro motivo e
justificao de qualquer meio para satisfaz-lo: a agresso, o engano, a presso em todas as formas,
a violao de compromissos assumidos, etc. O realismo poltico pretende assim subtrair os atos
polticos a qualquer avaliao moral, em nome da legitimidade dos fins.
Os dois modos de conceber as relaes entre a poltica e a moral, o moralismo abstrato e o realismo
poltico, correspondem a uma dissociao entre a vida privada e a vida pblica, ou tambm
fragmentao do homem real entre o indivduo e o cidado, que caracteriza a sociedade moderna. A
esta ciso corresponde, no plano ideolgico e poltico, a ciso que, de formas distintas, exigida
pelo moralismo abstrato e pelo realismo poltico. O primeiro concentra a ateno na vida privada
e, por conseguinte, na moral, compreendida essa, por
seu turno, como uma moral privada, intimista, subjetiva; a poltica interessa enquanto podem-lhe ser
aplicadas as categorias morais. A no ser assim, mais vale refugiar-se na vida privada e, para manter
limpas as mos e a conscincia, renunciar poltica. Mas, como j assinalamos, esta atitude leva
impotncia poltica ou ao abstencionismo poltico, com a agravante de que assim se contribui
objetivamente para que prevalea outra poltica que pode afirmar-se exatamente no terreno
favorvel da impotncia e da absteno.
O realismo poltico igualmente a expresso da dissociao do individual e do coletivo ou da
vida privada e da vida pblica. Mas, neste caso, a ateno se fixa na vida pblica, na correspondente
ao poltica, deixando que a moral opere exclusivamente no santurio ntimo da conscincia.
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Esquece-se assim que a moral efetiva, como j notamos, um fato social e que, portanto, no pode
ser considerada como um assunto totalmente privado ou ntimo. uma forma de regulamentao
das relaes entre os homens que cumpre uma funo social e que, por isto mesmo, no pode ser
separada da poltica. Num sentido ou noutro, a poltica afirma ou nega certa moral, cria condies
para o seu desenvolvimento e, na realidade, no pode subtrair-se a uma certa avaliao moral. Mas,
de outro lado, a poltica, para ser eficaz, necessita assegurar o consenso mais profundo dos
cidados, e, neste sentido, necessita lanar mo da moral.
Precisamente porque o homem um ser social, obrigado a se desenvolver sempre individual e
socialmente, com seu interesse pessoal e coletivo, no pode deixar de atuar, ao mesmo tempo, moral
e politicamente. Moral e poltica esto numa relao mtua. Mas a forma concreta que assume esta
relao (de excluso recproca ou de concordncia) depender do modo como, efetivamente, na
sociedade, operam as relaes entre o individual e o coletivo, ou entre a vida
privada e a vida pblica.
O homem no pode renunciar moral, porque esta corresponde a uma necessidade social; assim
tambm pelo menos num futuro previsvel no pode renunciar poltica, porque essa
responde igualmente a uma necessidade social. Mas, numa sociedade superior, suas relaes devem
caracterizar-se por sua concordncia, sem abdicar do seu mbito respectivo. Por conseguinte, nem
renncia poltica em favor da moral, nem excluso da moral em favor da poltica.
4. Moral e Direito
De todas as formas de comportamento humano, o jurdico ou legal (direito) o que mais
intimamente se relaciona com a moral, porque os dois esto sujeitos a normas que
regulamentam as relaes dos homens.
Moral e direito tm em comum uma srie de caractersticas essenciais e, ao mesmo tempo,
diferenciam-se por outros traos especficos. Em primeiro lugar, vejamos os elementos comuns a
ambas as formas de comportamento.
1) O direito e a moral regulamentam as relaes de uns homens com outros por meio de normas;
postulam, portanto, uma conduta obrigatria e devida. Nisto se parecem tambm, como veremos,
com o trato social.
2) As normas jurdicas e morais tm a forma de imperativos; por conseguinte, acarretam a
exigncia de que se cumpram, isto , de que os indivduos se comportem necessariamente de
uma certa maneira. Nisto se diferenciam, das normas tcnicas que regulam as relaes dos
homens com os meios de produo no processo tcnico, que no possuem esta forma de
imperativos.
3) O direito e a moral respondem a uma mesma necessidade social: regulamentar as relaes dos
homens visando a garantir certa coeso social.
4) A moral e o direito mudam quando muda historicamente o contedo da sua funo social (isto ,
quando se opera uma mudana radical no sistema poltico-social). Por isto estas formas de
comportamento humano tm carter histrico. Assim como varia a moral de uma poca para a
outra, ou de uma sociedade para outra, varia tambm o direito.
Examinemos agora as diferenas entre o direito e a moral.
1) As normas morais se cumprem atravs da convico ntima dos indivduos e, portanto, exigem
uma adeso ntima a tais normas. Neste sentido, pode-se falar de interioridade da vida moral. (O
agente moral deve fazer suas ou interiorizar as normas que deve cumprir). As normas jurdicas
no exigem esta convico ntima ou adeso interna. (O sujeito deve cumprir a norma jurdica,
ainda que no esteja convencido de que justa e, por conseguinte, ainda que no adira
intimamente a ela). Pode-se falar, por isto, da exterioridade do direito. O importante, no caso,
que a norma se cumpra, seja qual for a atitude do sujeito (voluntria ou forada) com respeito a
seu cumprimento.
Se a norma moral se cumpre por razes formais ou externas, sem que o sujeito esteja
intimamente convencido de que deve atuar de acordo com ela, o ato moral no ser moralmente
bom; pelo contrrio, a norma jurdica cumprida formal ou externamente, isto , ainda que o
sujeito esteja convencido de que injusta e intimamente no queira cumpri-la, implica num ato
irrepreensvel do ponto de vista jurdico. Assim, pois, a interiorizao da norma, essencial no ato
moral, no o , pelo contrrio, no mbito do direito.
2) A coao se exerce de maneira diferente na moral e no direito: fundamentalmente interna na
primeira e externa no segundo. Isto significa que o cumprimento dos preceitos morais
garantido, antes de tudo, pela convico interna de que devem ser cumpridos. E ainda que a
sano da opinio pblica, com a sua aprovao ou desaprovao, leve a atuar num certo sentido,
no comportamento moral se requer sempre a adeso ntima do sujeito. Nada e ningum nos pode
obrigar internamente a cumprir a norma moral. Isso quer dizer que o cumprimento das normas
morais no garantido por um dispositivo exterior coercitivo que possa prescindir da vontade. O
direito, pelo contrrio, exige tal dispositivo, isto , um organismo estatal capaz de impor a
observncia da norma jurdica ou de obrigar o sujeito a comportar-se de certa maneira, embora
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esse no esteja convencido de que assim deve comportar-se devendo assim, se necessrio, passar
por cima de sua vontade.
3) Deste modo distinto de garantir o cumprimento das normas morais e jurdicas se deduz, tambm,
que as primeiras no se encontram codificadas formal e oficialmente, ao passo que as segundas
gozam desta expresso formal e oficial em forma de cdigos, leis e diversos atos do Estado.
4) A esfera da moral mais ampla do que a do direito. A moral atinge todos os tipos de relao
entre os homens e as suas vrias formas de comportamento (assim, por exemplo, o
comportamento poltico, o artstico, o econmico, etc., podem ser objeto de qualificao moral).
O direito, pelo contrrio, regulamenta as relaes humanas mais vitais para o Estado, para as
classes dominantes ou para a sociedade em seu conjunto.
Algumas formas de comportamento humano (criminalidade, malandragem, roubo, etc.) caem na
esfera do direito enquanto violam normas jurdicas e na da moral enquanto infringem normas
morais, O mesmo se deve dizer de certas formas de organizao social como o matrimnio, a
famlia e as respectivas relaes (entre os cnjuges, os pais e os filhos etc.). Outras relaes entre
os indivduos, como o amor, a amizade, a solidariedade, etc., no so objeto de regulamentao
jurdica, mas somente moral.
5) Dado que a moral cumpre como j assinalamos uma funo social vital, manifesta-se
historicamente desde que o homem existe como ser social e, portanto, anteriormente a certa
forma especfica de organizao social (a sociedade dividida em classes) e organizao do
Estado. Dado que a moral no exige a coao estatal, pode existir antes da organizao do
Estado. O direito, ao contrrio, por depender necessariamente de um dispositivo coercitivo
externo de natureza estatal, acha-se ligado ao aparecimento do Estado.
6) A distinta relao da moral e do direito com o Estado explica, por sua vez, a distinta situao de
ambas as formas de comportamento humano numa mesma sociedade. Dado que a moral no
depende necessariamente do Estado, pode-se verificar numa mesma sociedade uma moral que se
harmoniza com o poder estatal vigente e uma moral que entra em contradio com ele. No se d
a mesma coisa com o direito, porque, como depende necessariamente do Estado, existe somente
um direito ou sistema jurdico nico para toda a sociedade, ainda que este direito no conte com
o apoio moral de todos os seus membros. Conclui-se, portanto, que na sociedade dividida em
classes antagnicas existe somente um direito porque existe somente um Estado , ao passo
que coexistem duas ou mais morais diversas ou opostas.
7) O campo do direito e da moral, respectivamente, assim como a sua relao mtua, possuem um
carter histrico. A esfera da moral se amplia s custas do direito, medida em que os homens
observam as regras fundamentais da convivncia voluntariamente, sem necessidade de coao.
Esta ampliao da esfera da moral com a conseqente reduo da do direito , por sua vez, ndice
de um progresso social. A passagem para uma organizao social superior acarreta a substituio
de certo comportamento jurdico por outro, moral. De fato, quando o indivduo regula as suas
relaes com os demais no sob a ameaa de uma pena ou pela presso da coao externa, mas
pela ntima convico de que deve agir assim, pode-se afirmar que nos encontramos diante de
uma forma de comportamento moral mais elevada. V-se, assim, que as relaes entre o direito e
a moral, historicamente mutveis, revelam num certo momento tanto o nvel alcanado pelo
progresso espiritual da humanidade,quanto o progresso poltico-social que o torna possvel.
Em concluso: a moral e o direito possuem elementos comuns e mostram, por sua vez,
diferenas essenciais, mas estas relaes, que ao mesmo tempo possuem um carter histrico,
baseiam-se na natureza do direito como comportamento humano sancionado pelo Estado e na
natureza da moral como comportamento que no exige esta sano estatal e se apia
exclusivamente na autoridade da comunidade, expressa em normas e acatada voluntariamente.
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6. Moral e Cincia
O problema das relaes entre cincia e moral pode ser colocado em dois planos:
a) com relao natureza da moral - neste plano, trata-se de determinar se cabvel falar-se em
carter cientfico da moral; b) com relao ao uso social da cincia - neste plano, cabe falar no
papel moral do homem de cincia ou da atividade do cientista.
J abordamos a primeira questo quando definimos a tica como cincia da moral.
Insistindo naquilo que j notamos, acrescentaremos agora que as cincias so um conjunto de
proposies ou juzos sobre aquilo que as coisas so: enunciam ou indicam aquilo que alguma coisa
. Seus enunciados no tm um carter normativo, isto , no indicam o que alguma coisa deve ser.
Como cincia, a tica tambm um conjunto de enunciados a respeito de um objeto especfico, ou
do setor da realidade humana que chamamos moral. Deste objeto da tica, como j vimos, fazem
parte as normas e os atos morais que se conformam com elas. A tica nos diz o que a norma
moral, mas no postula ou no estabelece normas; estuda um tipo de conduta normativa, mas no
o terico da moral, e sim o homem real que estabelece determinadas regras de comportamento.
Sublinhado isso, evidente que a moral nos seus dois planos: ideal e real, normativo e factual
no cincia, j que possui uma estrutura normativa. A moral satisfaz a necessidade social de
regulamentar de certa maneira as aes dos indivduos numa dada comunidade: no , portanto, a
necessidade de aprender o que algo , ou seja, de conhec-lo, o que determina a existncia da moral.
A moral no conhecimento ou teoria de algo real, mas ideologia, ou seja, conjunto de idias,
normas e juzos de valor juntamente com os atos humanos respectivos que servem aos
interesses de um grupo social.
A moral, pois, tem por base determinadas condies histricas e sociais, assim como determinada
constituio psquica e social do homem. Cabe tica examinar as condies de possibilidade da
moral e, neste sentido, pode ser til prpria moral. Com efeito, uma moral baseada numa
abordagem cientfica dos fatos morais, e que, por conseguinte, tome em considerao as
possibilidades objetivas e subjetivas da realizao que o conhecimento tico lhe pode mostrar, no
ser certamente cientfica por sua estrutura j que esta ser sempre normativa , mas poder
sem dvida basear-se no conhecimento cientfico que lhe proporcionado pela tica e, com ela, pela
psicologia, pela histria, pela sociologia, etc., isto , pelas cincias que estudam a realidade
humana. Desta maneira, sem deixar de ser ideologia, a moral poder relacionar-se no pela sua
estrutura, mas pelo seu prprio fundamento com a cincia.
A segunda questo refere-se ao contedo moral atividade do cientista; ou seja, irresponsabilidade
moral que assume: a) no exerccio da sua atividade, e b) pelas conseqncias sociais da mesma. No
primeiro caso, o cientista deve apresentar uma srie de qualidades morais cuja posse garanta uma
melhor realizao do objetivo fundamental que norteia a sua atividade, saber: a procura da
verdade. Entre estas qualidades morais, caractersticas de qualquer verdadeiro homem de cincia,
figuram sobretudo a honestidade intelectual, o desinteresse pessoal, a deciso na defesa da verdade
e na crtica da falsidade, etc. Mas, em nossa poca, que se distingue pela enorme elevao do papel
da cincia no progresso tecnolgico, o contedo moral da atividade cientfica se concretiza e se
enriquece ainda mais. A cincia se torna cada vez mais uma fora produtiva e, ao mesmo tempo,
uma fora social. Mas o uso da cincia pode trazer grandes bens ou espantosos males para a
humanidade. Aplicada com finalidades blicas, pode transformar-se numa gigantesca fora de
destruio e de extermnio em massa. Por to, no casual a ateno que os departamentos militares
de algumas potncias dispensam aos estudos cientficos, nem que os pases menos desenvolvidos
estejam sujeitos a um verdadeiro saque de seus crebros melhores.
Enquanto a cincia no sendo ideolgica por sua estrutura pode estar a servio ou dos fins
mais nobres ou dos mais prejudiciais para o gnero humano, o cientista no pode permanecer
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indiferente diante das conseqncias sociais do seu trabalho, isto , diante do uso que se faa de
suas investigaes ou descobertas. Assim pensaram muitos dos grandes homens da cincia de nossa
poca, encabeados pela maioria dos prmios Nobel, quando se opuseram ao emprego das bombas
atmicas e de hidrognio e ao uso destruidor de muitas descobertas cientficas.
A cincia sob este aspecto (isto , pelo seu uso, pelas conseqncias da sua aplicao) no pode ser
separada da moral. Mas deve ficar claro que a sua qualificao moral no pode dizer respeito ao seu
contedo prprio e interno, j que a investigao cientfica como tal moralmente neutra. As
consideraes morais, neste terreno, perturbariam a objetividade e a validade das proposies
cientficas e a transformariam em mera ideologia. Mas se a cincia como tal no pode ser
qualificada moralmente, pode s-lo, no entanto, a utilizao que dela se faa, os fins e os interesses
a que serve e as conseqncias sociais da sua aplicao. Sob este aspecto, o homem de cincia no
pode ficar indiferente finalidade social da sua atividade e, por isto, deve assumir uma
responsabilidade moral, sobretudo quando se trata de investigaes cientficas cujo uso e
conseqncias so de vital importncia para a humanidade. Assim pensam hoje os grandes cientistas
que se interessam pelos problemas morais colocados pela sua prpria atividade, corroborando desta
maneira a opinio de que a cincia no pode deixar de estar relacionada com a moral.
In: VSQUEZ, Adolfo Snchez tica, Rio, 1998, Civilizao Brasileira. Pg. 68-86