Música e Filosofia em Platão e Aristóteles
Música e Filosofia em Platão e Aristóteles
Música e Filosofia em Platão e Aristóteles
msica estava presente em todos os momentos da vida do homem grego antigo. Todas as atividades do cotidiano eram executadas
com acompanhamento musical. Aristides Quintiliano (De Musica,
II, 4.23-30) nos ensina que os hinos sagrados e as oferendas eram
adornados com msica; os banquetes particulares e as assemblias
festivas das cidades se alegravam com ela; guerras e marchas eram
levadas a cabo e ordenadas atravs dela; at mesmo a navegao e
outros trabalhos manuais tornavam-se menos penosos ao som da
msica.
Os antigos gregos eram um povo eminentemente musical. Testemunho disso tambm nos d Ateneu (XIV, 632c), quando diz que
A antiga sabedoria dos gregos em seu conjunto parece ser dedicada
principalmente msica. E, por isso, julgavam que o mais musical e
mais sbio dentre os deuses era Apolo, e dentre os semideuses, Orfeu.
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Cf. Boyanc li, pp. 170-2. Cabe observar aqui que a palavra mousik para os antigos
gregos tinha significados diferentes do valor que a palavra "msica" tem para ns hoje.
Para os homens da Grcia antiga, dent1e outras possibilidades semnticas, moiisik designava a unio da melodia com a palavra; em certos contextos, como no da lrica coral
e no dos coros das tragdias, acrescentava-se a dana. Por isso, a palavra poiets pode
ser traduzida tambm por "compositor''. Sobre isso ver Gentili e Pretagostini ( 13, p. V),
Barker (9, p. 54) e Toms (28, pp. 39-48).
Sobre o conceito de /111r111011Fa, Barker (8, pp. 163-8) faz um importante comenlrio. Ver
tambm Lohmann (22, pp. 137-9} e Corra (12, pp. 21 -35}. Em Plato, ela a contraparte meldica do ri1mo. !! o esquema ordenado que diferencia as notas usadas numa
pea musical (Barker 8, p. 164).
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msica porque a filosofia era a msica mais nobre, como antes ele
entendia. interessante assinalar que, depois do julgamento e porque a sua morte tinha sido adiada por causa do festival ao deus Apolo, Scrates se pergunta se a msica que o sonho o mandava compor
no era a daquele tipo popular. Depois disso, ele comps um hino
ao deus e outros poemas. Segundo o relato de Plato, Scrates muda
de opinio momentos antes de morrer; contudo, a msica; continua
associada sabedoria, porque sbio e justo louvar os deuses e compor poemas que auxiliaro na formao moral dos cidados, como
ser defendido na Repblica e nas Leis.
No Pedro, 248d, ao tratar do destino das almas e dos ciclos de reencarnaes, Scrates coloca no mesmo nvel o filsofo, o amante da beleza e o possuidor de uma natureza musical. Tambm nessa passagem
entrevemos o valor atribudo msica no pensamento platnico.
Entretanto, no devemos entender que a msica seja equivalente
filosofia. Mais do que isso, o estudo da arte das Musas constitui
uma etapa no caminho para a dialtica. Na Repblica, 530c-53ld,
ela caracterizada como harmonia e aparece como a quinta dentre
as disciplinas (mathmata, epistmai) que compem a formao intelectual dos guardies que iro governar Kallipolis, a cidade ideal.
Assin1, a msica faz parte do promio ao estudo da dialtica, que
o pice da paidia do filsofo governante (Meriani 24, p. 1). Desse
modo, somente o msico pode ser sbio,phrnimos, e o no-msico
s pode ser ignorante, phron (Repblica, 349e).
A msica, para Plato, no exatamente uma cincia, ao menos
nos dilogos socrticos, onde ela vista como uma arte (tkhne) ou
um saber prtico (sophia) comparvel ao de wn arteso. Contudo,
Plato passar a consider-la como tal nos dilogos da maturidade. Em textos como os da Repblica (410a) e do Timeu (80b), ela se
aproxima do que o filsofo ateniense entende por cincia, porque ele
passa a entender que ela conduz moderao, sophrosyne.
Essa mudana teria se produzido depois que Plato entrou em
contato com as doutrinas pitagricas acerca da acstica e com a ti-
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No Lnq11es, 188d2-8 e 193dl l-c2, somente a harmonia drica aceita, por ser a nica
realmente helnica.
Mais frente veremos que Aristteles (Polftica, VIII, 7, 1342a32-b7) critica Plato por
permitir a permanncia da harmonia frigia na cidade ideal e, ao mesmo tempo, banir
o aulo, instrumento diretamente ligado a essa harmonia. Cf. Gostoli 14, p. 136, e West
30, pp. 179 e ss.
6 Em 654d encontramos a afirmao de que o mais importante ter os sentimentos corretos de prazer e de dor.
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Ver Hino Homrico a Hermes, no qual narrada a histria sobre o surgimento da lira e
porque Hermes a presenteou a Apolo.
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Contudo, os homens no devem dedicar-se msica por ela mesma, como um fim em si. Aristteles considera a possibilidade de a
msica ser apenas um acidente e de que ela possua uma natureza
mais importante do que a aparncia que resulta do seu uso. Independentemente do prazer que causa, preciso perguntar-se se ela tem
alguma influncia sobre o carter de uma alma. Aristteles afirma
que nosso carter claramente afetado por ela.
Dependendo do gnero, a msica pode causar entusiasmo, despertar sentimentos de deleite, amor ou dio. Por isso, preciso aprender a julgar as melodias com propriedade. A msica tem o poder de
imitar a realidade, quando entramos em contato com essas representaes, nossas almas se transformam. Diferentemente das artes
plsticas, a msica contm imitaes de afeces do carter. Isso se
torna patente porque possvel perceber diferenas na natureza das
melodias.
Aristteles observa que as pessoas reagem de maneiras diferentes
e tm sentimentos variados em relao a cada tipo de melodia. O
modo mixoldio, por exemplo, tem um esprito melanclico e grave;
o modo drico, por outro lado, produz moderao e calma; o modo
frgio provoca entusiasmo. Isso se demonstra pelos fatos. O mesmo
acontece com os ritmos: uns tm um carter mais repousante e outros causam grande emoo; dentre estes ltimos, uns so mais vulgares e outros mais elevados. Depois de fazer essas consideraes,
Aristteles afirma que a msica tem, sim, o poder de influenciar
o carter de uma alma. E, se ela tem esse poder, deve ocupar um
lugar importante na educao dos jovens. Isso porque parece haver,
na harmonia e no ritmo, uma afinidade com o homem - por isso,
muitos filsofos dizem que a prpria alma uma harmonia9
Em seguida, o estagirita retoma a questo que tinha proposto antes: os jovens devem ou no aprender msica cantando e tocando?
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sua agitao. Na verdade, cada idade tem algo que lhe prprio e
algo que lhe imprprio. A prtica da msica no deve ser considerada vulgar para todas as idades: aos jovens, adequado aprender
a tocar um instrumento. Porm, depois de adultos, eles devem ser
dispensados dessa prtica. Os alunos que esto sendo preparados
para ser cidados virtuosos e excelentes devem participar da execuo musical at um certo ponto, usando certas melodias e certos
ritmos; os instrumentos devem ser escolhidos segundo sua utilidade
e seu efeito sobre a alma dos alunos. Tudo faz diferena, pois certos
tipos de msica podem produzir bons resultados, enquanto outros
podem causar efeitos deletrios.
Para Aristteles, a msica no deve atrapalhar o curso posterior
da educao, enfraquecer o corpo ou tom-lo inapto para as atividades guerreiras e cvicas. Por isso, os estudantes no devem participar de concursos profissionais e das exibies de virtuosismo,
que faziam parte das competies na poca do filsofo. Em vez
disso, eles devem praticar a msica visando somente a apreciar as
melodias e os ritmos mais bclosio.
Por isso, seria necessrio tambm escolher os instrumentos mais
adequados para a educao dos jovens. O aulo, a ctara 11 e qualquer
outro instrumento que exija grande preparo tcnico no deveriam
ser usados. Somente seriam aceitos instrumentos que permitissem
aos alunos dedicar mais ateno educao musical e s outras
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Note-se a diferena de atitude em relao a Plalilo, que baniu o aulo dn sua cidade ideal.
Para Aristteles, o aulo pode ser fil em determinadas ocasies, como nos cultos a Dioniso e no teatro. Porm, quando o filsofo nega que o auJo tenha um efeito moralizante,
de certa forma est negando que a tragdia tambm tenha alguma influncia sobre o
carter das pessoas. Cf. Anderson 1, p. 137.
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a estabelecer as linhas gerais acerca desses temas. Segundo ele, discusses minuciosas sobre esses assuntos j teriam sido realizadas
por estudiosos da msica e por filsofos que refletiram sobre a
educao musical.
Aristteles retoma, ento, a classificao das melodias feita por
"alguns filsofos", segundo a qual algumas melodias seriam de efeito
moral, outras de efeitos prticos e outras inspirndoras de entusiasmo.
Desse modo, cada harmonia seria afim a um desses tipos de melodias, e o uso da msica poderia servir para a educao, para a catarse
e para a diverso. Todas as harmonias deveriam ser usadas, mas cada
uma em seu contexto especfico: as de efeito moral na educao, as
de efeitos prticos nos momentos de divertimento e as de efeitos entusisticos nas situaes em que se busca a catarse. Esses dois ltimos
tipos de harmonias e as melodias correspondentes a elas devem ser
praticados pelos que participam de concursos pblicos. A sociedade
estava dividida em homens livres e educados, de um lado, e homens
vulgares, como artfices e serviais, de outro; ento, deveria haver
concursos e espetculos pblicos separados. O competidor poderia
usar o tipo de msica que agradasse seus ouvintes, vendo que cada
um aprecia o que naturalmente adequado a si prprio (cf. Anderson 1, p. 139). Na educao, como j foi dito, deveriam ser usadas
as melodias e harmonias que tivessem um efeito moral. O modo
drico produzia esse efeito, mas outros modos tambm poderiam
ser aceitos.
Nesse ponto, Aristteles faz referncia a uma passagem da Repblica em que Scrates admite na cidade ideal o modo frgido alm do
modo drico, ao mesmo tempo em que rejeita o aulo. O estagirita
diz que o mestre de Plato no estava pensando bem, pois o modo
frgio e o aulo, produzem o mesmo efeito sobre os ouvintes: ambos
so excitantes e emocionantes. O delrio bquico, por exemplo, era
acompanhado principalmente pelo aulo, e era mais compatvel com
o modo frgio. O ditirambo, gnero de origem frgia, era composto
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Cf. Gostoli 14, pp. 140-4, que apresenta uma interessante interpretao dessa crtica
aristotlica a Plato.
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