Historia Da Historiografia
Historia Da Historiografia
Historia Da Historiografia
dezembro 2013
Histria da
Historiografia
revista eletrnica quadrimestral
Histria
da Historiografia
issn 1983-9928
Conselho Executivo
Arthur Alfaix Assis (UnB . Braslia . DF . Brasil)
Fabio Wasserman (UBA . Buenos Aires . Argentina)
Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropdica . RJ . Brasil)
Rodrigo Turin (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Conselho Editorial
Arthur Alfaix Assis (UnB .Braslia . DF . Brasil)
Claudia Beltro (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Durval Muniz de Albuquerque (UFRN . Natal . RN . Brasil)
Fabio Wasserman (UBA . Buenos Aires . Argentina)
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Julio Bentivoglio (UFES . Vitria . ES . Brasil)
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Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropdica . RJ . Brasil)
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Rodrigo Turin (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
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Temstocles Cezar (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)
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Estevo de Rezende Martins (UnB . Braslia . DF . Brasil)
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Hayden White (Stanford University . Stanford . Estados Unidos)
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Luiz Costa Lima (PUC-Rio/UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
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Pascal Payen (Universit de Toulouse II - Le Mirail . Toulouse . Frana)
Sanjay Seth (University of London . Londres . Reino Unido)
Srgio Campos Matos (Universidade de Lisboa . Lisboa . Portugal)
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Secretaria
Flvia Florentino Varella (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)
Realizao
Sociedade Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia (SBTHH)
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
Contato
Rua Fernandes Vieira, 597/602 Porto Alegre - RS 90035-091 Brasil
www.historiadahistoriografia.com.br [email protected] (31) 3557-9400
Misso
Histria da Historiografia publica artigos, resenhas, entrevistas, textos e documentos historiogrficos de
interesse para os campos da histria da historiografia, teoria da histria e reas afins. Tem por misses divulgar
textos de teoria da histria e histria da historiografia, e promover o intercmbio de ideias e resultados de
pesquisas entre investigadores dessas duas reas correlatas. Num momento em que, no cenrio brasileiro,
o crescimento do nmero de peridicos cientficos apenas espelha (se bem que de forma algo distorcida) a
ampliao dos programas de ps-graduao, consenso que o prximo passo a ser dado o da verticalizao
e especializao do perfil das publicaes. HH foi fundada em 2008 exatamente a partir desse diagnstico, e
pretende estabelecer-se como uma referncia para os estudiosos das reas de teoria da histria e histria da
historiografia no mundo de lngua portuguesa. O peridico uma publicao da Sociedade Brasileira de Teoria
e Histria da Historiografia, do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto.
Ficha Catalogrfica
Histria da Historiografia. Ouro Preto / Edufop, 2013, nmero 13, dezembro, 2013, 281 p.
Quadrimestral
ISSN 1983-9928
1. Histria - Peridicos
CDU 930(05)
EDITORIAL
EDITORIAL
DOSSI
DOSSIER
11
14
24
Compilao e plgio: Abreu e Lima e Melo Morais lidos no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
Compiling and plagiarizing: Abreu e Lima and Melo Morais in the reading of the Brazilian
Historical and Geographical Institute
Pedro Afonso Cristovo dos Santos
45
63
Apresentao
Introduction
Temstocles Cezar e Rodrigo Turin
78
96
114
130
144
ARTIGOS
ARTICLES
Desarraigo e irona al filo de las nuevas historias: ltimos das coloniales en el Alto Per (1896) de
Gabriel Ren Moreno
Uprooting and irony on the edge of new stories: Gabriel Ren Morenos ltimos das coloniales en
el Alto Per (1896)
Sergio Meja
155
Causa diz-se em quatro sentidos: sobre a hermenutica droyseana e a teoria da causalidade aristotlica
The four meanings of cause: on Droysens Hermeneutics and Aristotles Theory of Causality
Renata Sammer
172
188
204
RESENHAS
REVIEW ESSAYS
Questionamentos historiografia do cordel brasileiro
Questioning the historiography of Brazilian cordel literature
LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma histria crtica do cordel brasileiro. Rio de
Janeiro; So Paulo: Edies Adaga; Luzeiro, 2012, 96 p.
Geraldo Magella de Menezes Neto
220
226
235
241
246
252
260
Debates historiogrficos
Historiographical debates
HAHN, Fbio Andr; MEZZOMO, Frank Antonio; MYSKIW, Antnio Marcos. Ensaios historiogrficos:
temas, tendncias e interpretaes. Campo Mouro: Editora da FECILCAM, 2010, 226 p.
Surama Conde S Pinto
268
274
NORMAS DE PUBLICAO
EDITORIAL GUIDELINES
276
281
Editorial
editorial
que avanam para alm do Brasil, compreendendo trs continentes e, com eles,
trs oceanos.
A seco de resenhas prossegue a tendncia para a apresentao e anlise
de livros que, no seu todo, extrapolam os limites estritos da histria e da
historiografia, para se abrirem literatura, filosofia e s cincias da sociedade.
Muito embora a maioria dos ttulos escolhidos seja nacional, voltam aqui a no
estar ausentes os estrangeiros, pelos olhos de Marlon Salomon e Marcos Antnio
Lopes. O primeiro debrua-se sobre uma recente entrevista que Jacques Rancire
concedeu a Dork Zabunyan, estudioso de cinematografia, e Laurent Jeanpierre,
professor de Cincia Poltica. O segundo apresenta a traduo brasileira do mais
recente grande livro de um dos fundadores do chamado New Historicism: Stephen
Greenblatt. Nessa nova histria do Renascimento, d-se lugar de destaque a
Gian Francesco Poggio Bracciolini, homem de letras, acadmico e humanista
que no seu tempo se notabilizou pela redescoberta de manuscritos antigos em
institutos monsticos do Sacro Imprio Romano-Germnico, do reino da Frana
e da Confederao Helvtica. No mundo de lngua portuguesa, seria igualmente
interessante relembrar que se trata do autor do mais expressivo elogio erudito
de que foi alvo o filho terceiro do fundador da dinastia de Avis, infante D.
Henrique, mais conhecido como O Navegador, por patrocinar a explorao
da costa africana ao sul das Canrias, desde o cabo Bojador at Serra Leoa.
Afinal, to criticvel como o nacionalismo acadmico ser certamente o seu
reverso, travestido de cosmopolita.
A partir de 2014, os dossis temticos da Histria da Historiografia restringir-se-o ao ltimo nmero de cada ano. O prximo, sob o ttulo Historicidade e
Literatura, organizado por Henrique Estrada Rodrigues (PUC-Rio) e Vernica
Tozzi (UBA), tem chamada j disponvel, com prazo de entrega de manuscritos
at ao dia 3 de Agosto. Renova-se entretanto o convite para a submisso de
propostas de artigos, resenhas, entrevistas, textos e documentos historiogrficos
que respeitem o tema geral da revista, no esquecendo as propostas de leitura
que regularmente se publicitam na sua pgina eletrnica.
Pelo Conselho Editorial
Tiago C. P. dos Reis Miranda (CHAM/ FCSH-UNL)
Dossi
dossier
Apresentao
Introduction
______________________________________________________________________
Temstocles Cezar
[email protected]
Professor associado
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Bento Gonalves, 9500 - Agronomia
Caixa-postal: 91501970
91509-900 - Porto Alegre - RS
Brasil
Rodrigo Turin
[email protected]
Professor adjunto
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Escola de Histria
Av. Pasteur, 458 - Urca
22290-240 - Rio de Janeiro - RJ
Brasil
______________________________________________________________________
11
12
Apresentao
_________________________________________________________________________________
13
Franois Hartog
[email protected]
Professor
cole des Hautes tudes en Sciences Sociales
Bureau 544
190-198, avenue de France, 75244
Cedex 13 - Paris
France
______________________________________________________________________
Resumo
14
Palavras-chave
Abstract
This article aims to analyze some questions and developments for the writing of History stemming
from the so-called linguistic turnin History. More than re-establishing the paths which define this
turn, or circumscribing its outlines, we propose to observe the unsteadiness or the harsh counterattack indicated in the publication of the book Probing the Limits of Representation, edited by Saul
Friedlnder in 1992, by making a parallel with recent works of Paul Ricoeur and Carlo Ginzburg,
and to emphasize their own readings of the classic pieces of Aristotle, thePoeticsand theRethoric,
mediated by Hayden Whites reading.
Keywords
15
1
A virada lingustica acabou. Todas as expresses em lnguas estrangeira seguem de acordo com o original
(Nota do revisor).
Franois Hartog
_________________________________________________________________________________
16
diversas at o estruturalismo dos anos 1960 e os ps- que se seguiram. Ainda que
os principais protagonistas distanciem-se rapidamente dessas apelaes, subsiste
que a linguagem, essa linguagem que sempre escapa, permanece no centro.
O que fez com que, na Europa, a linguagem tenha sido metdica e
apaixonadamente escrutada? O que fez com que, aps a publicao do Curso
de Saussure, em 1916 (em plena guerra), a lingustica, com a distino entre
lngua e fala, tenha se tornado, progressivamente, a cincia piloto das cincias
humanas? Celebrando Saussure, em 1963, por ocasio do cinquentenrio de sua
morte, mile Benveniste sublinhava o alcance desse princpio do signo instaurado
como unidade da lngua [...]. Ora, vemos agora se propagar esse princpio para
fora das disciplinas lingusticas e penetrar nas cincias do homem, que tomam
conscincia da sua prpria semitica. No a lngua que se dilui na sociedade,
a sociedade que comea a reconhecer-se como lngua (BENVENISTE 1966, p.
43). O que fez ainda com que, aps 1945, a linguagem, sempre ela, tenha sido
tida por quase tudo, sem deixar de ser associada falta, ausncia, ao silncio
e morte? Aquilo que no se pode dizer, preciso calar, dizia Wittgenstein,
(no) preciso calar, corrige Jacques Derrida (PEETERS 2010, p. 204). A
essas colocaes fazem eco as ltimas palavras de Blanchot, em Aprs coup,
mesmo sobre a morte sem frases, ainda preciso meditar, talvez sem fim,
at o fim (BLANCHOT 1983, p. 100). Responder a tais questes, arriscar-se
apenas, excederia no apenas o espao de um artigo, mas tambm minhas
capacidades. Entretanto, creio que ao negligenciar esse movimento profundo,
complexo, corre-se o risco de, como dizia Pguy, no mais compreender do que
se falava, quando Roland Barthes, por exemplo, escrevia que o fato tem to
somente uma existncia lingustica. Caso contrrio, o propsito, retirado de
seu contexto, oscila entre trivialidade e absurdidade (BARTHES 1984).
Narrativa, retrica, histria
Para retornar histria e as suas formas de negociar a virada lingustica,
pode ser esclarecedor traar um paralelo entre duas abordagens, certamente
bem diferentes, mas que possuem em comum o fato de interrogar, no curso
dos anos 1980, os poderes da narrativa. Paul Ricur publica Tempo e Narrativa
entre 1983 e 1985. A partir de 1984, Carlo Ginzburg engaja-se em um combate,
jamais abandonado, contra aqueles que ele chama, desde ento, de cticos.2 Nada
de equvoco: o nico objetivo dessa projeo o de convidar a considerar suas
dmarches como duas maneiras de apreender uma conjuntura e de replic-la, de
modo algum de associ-las, e menos ainda de op-las: o defensor do realismo
face ao advogado da narrativa!
Com relao histria, um deles um outsider. Ele traa seu caminho
filosfico, e aprofunda a enquete sobre as capacidades da narrativa, no por
complacncia com uma moda, mas por preocupao em aproximar ao mximo
possvel as aporias do tempo e experimentar, simultaneamente, os limites da
narrativa. Ele mobiliza, torna til esse saber renovado e recente, em plena
2
Ver seu prefcio Natalie Zemon Davis, Le retour de Martin Guerre, reeditado em anexo em Le fil et les Traces.
17
3
Uma meno ambiciosa obra de P. Ricur, Temps et rcit (GINZBURG 2010, p. 459). Trata-se do prefcio
obra Le retour de Martin Guerre, publicado em 1984.
Franois Hartog
_________________________________________________________________________________
18
19
4
Procurei mostrar que o sentido da palavra [retrica] em Aristteles era muito diferente do que entendemos
hoje pelo termo retrica (GINZBURG 2003, p. 52).
Franois Hartog
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20
5
Tucdides no emprega a palavra historia nem no sentido de Herdoto nem no sentido que ser aquele
de Aristteles.
21
Franois Hartog
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22
6
Diferentemente da citao anterior da Potica de Aristteles, Hartog no se serve aqui da traduo de M.
Casevitz, mas da traduo de R. Dupont-Roc e J. Lallot, publicada pela Editora Seuil, em 1980. Para a citao
em portugus de a Potica nos servimos tanto nessa passagem quanto na anterior, bem como da citao de
Tucdides, da traduo brasileira da obra de Hartog, A histria de Homero a Santo Agostinho, realizada por
Jacyntho Lins Brando, publicada em 2011 pela Editora da UFMG (Nota do revisor).
23
Resumo
24
Palavras-chave
Abstract
This essay casts some doubts on the consistency of the argumentative plot on which Carlo Ginzburg
founded his evidentiary paradigm. A first moment of this reflective questioning will address the
way Ginzburgs thesis was assessed by the critical literature. A second step will then focus on
the interrelations between Ginzburgs epistemological considerations and the Greek notion of
indictment (tekmrion), as originated in Thucydides work. For Thucydides, as also for Ginzburg,
indictment is the methodical procedure that guarantees the factual accuracy in historiography.
The essay suggests that Ginzburg disregarded his dialogue with Thucydides, not simply by being
entirely silent about it, but rather by eliding it.
Keywords
__________________________________
O ttulo presta homenagem ideia do filme de Elio Petri protagonizado por Gian Maria Volont: Indagine su
un cittadino al di sopra di ogni sospetto.
25
26
Paradigma indicirio
Pelo ltimo quarto do sculo XX adentrando a primeira dcada do
novo milnio, Carlos Ginzburg elaborou, em uma srie de artigos e ensaios,
proposies de teses porque intentasse dar uma resoluo a um velho dilema,
algo fantasmagrico, que h bom tempo j assombra a (des)confiana na
histria: comporta essa modalidade de conhecimento respeitante aos modos
porque atuam os homens no mundo diferenciados e especficos fundamentos
metodolgicos que lhe assegurem singular estatuto de (alguma) cientificidade?
A atualidade do velho dilema vinha de ser (re)ativada pelos ento recentes
ares epistemolgicos ps-modernistas que instigaram atualizadas intrigas de
mazelas querelantes. Intrigas agora mais graves porque, ao que argumentaram
Arnaldo Momigliano e Carlo Ginzburg na sua esteira, insuflavam teses de
revisionismo histrico, especialmente agudas por (re)avivarem as chagas do
holocausto em renhidas disputas e debates por quem ideologiza preservar a
realidade viva dessa memria contra quem ideologiza, em contrapartida, dissipar
o espectro oportunista de sua (cor)respondente politizao; uns a promover a
viso horrorizada daquele fenmeno em estigma da II Guerra Mundial, outros a
cegarem. Como se a questo fosse, ao que induz a perorao de Carlo Ginzburg
contra os por ele ditos cticos relativistas, ditar o imperativo de que a todo
historiador se impe o dever de decidir qual o certo, qual o errado, quem virtuoso,
quem vicioso: ps-modernismo por histria-literatura-fico x modernismo da
histria de (in)certa cientificidade ... Ginzburg x Derrida ... Momigliano x
Hayden White ... e ainda politizaes de sionismo x revisionismo histrico? A
perversidade do procedimento assim reclamado descai1 por imperativo (alegado
como de ordem moral ou tica) maniquesta de quem proclama falar em nome de
alguma cincia e da verdica realidade factual porque se arvora a nos impor mais
outro mandamento, agora historiogrfico, como se dez j no nos bastassem!
No ensaio que inaugura a investida reflexiva de Ginzburg Sinais: razes
de um paradigma indicirio (GINZBURG 1989, p. 143-179) , o historiador
busca identificar o procedimento metodolgico que, mais especialmente
conceitualizado no domnio das cincias humanas na modernidade (fins do
sculo XIX a incios do XX), atravessara e acompanhara como prxis investigativa
toda a histria humana, tendo suas razes em tempos primordiais, desde as
1
Os desvios e deslizes mais equvocos porque descai a reflexo nos termos em que a perpetra Ginzburg so
agudamente clarificados pela crtica argumentada por Jacques Rancire em seu ensaio (2011, p. 476-484).
27
28
Detalhes
A epgrafe com que Ginzburg encima a reflexo do ensaio Sinais por
que aponta o sentido sinttico de seu alcance cognitivo diz: Deus est nos
detalhes (GINZBURG 1989, p. 143). Marco Bertozzi, em comentrio ao ensaio
de Ginzburg, contrape-lhe o aforisma atribudo a Karl Kraus que reconhecia
que nos detalhes, o diabo que se esconde. Pelo que Bertozzi nos adverte:
Mas ao entrar nos detalhes, corremos o risco de ser o joguete de algum
pequeno diabo divertindo-se s nossas costas. Nossos ancestrais diziam,
quando alguma coisa escapava de suas mos e no conseguiam agarr-la:
Olhe! o diabo que joga... A investigao cansativa, no chegamos
sempre ao final na primeira tentativa. Os detetives e os sbios, na
busca do culpvel, na busca da verdade relativa sua investigao,
enroscam-se com frequncia em falsas pistas: a presa no se deixa
facilmente ser apanhada (BERTOZZI 2007, p. 29).4
2
No deixa de ser irnico que a pretenso de operar a interpretao mais axiologia metodolgica proclamando-a
pela hierarquia invertida a assim apreender a histria pelo lado do baixo, inferior, marginalizado como
o declaram as proposies ginzburgianas tenham encontrado estranhamentos, seno rejeies, justo da
parte dos agentes e sujeitos mesmos que ativam as razes dos oprimidos: vejam-se as manifestaes do
revolucionrio mais as da feminista a esse respeito, plenas naquele e parciais nesta, ambas integradas no
artigo de Stephanie Jed (JED 2001, p. 372-384).
3
Se no posso mover os deuses superiores, moverei o Acheronte.
4
No original: Mais en entrant dans les dtails, nous risquons notre tour dtre le jouet de quelque petit
diable aimant se moquer de nous derrire notre dos. Nos anctres disaient, quand quelque chose leurs
filai des mains et quils ne parvenaient pas lattraper: Regardez! cest le diable qui joue ... Lenqute est
fatigante, on ne parvient pas toujours au but du premier coup. Les dtectives et les savants, qui dans la
recherche du coupable, qui celle de la vrit relative leur enqute, sembrouillent souvent dans de fausses
pistes: la proie ne se laisse pas facilement piger.
29
Emblemtico o pargrafo no prefcio do livro Sinais em que, apresentando espcie de mimesis de daimon
socrtico dada guisa de argumento, o Autor intriga (con)fuso de (ir)reflexo (dis)simulada de autocrtica
com sua negligncia (GINZBURG 1989, p. 10-11).
6
Para indicaes das partes submersas que descobrem as insuficincias mais deficincias pontuais das
argumentaes de Ginzburg porque se possa suprir aquelas e concertar estas, confiram-se: VEGETTI 1980,
p. 8-10; VATTIMO 1980, p. 23-24; ROVATTI 1980, p. 36-37; VALERI 1982, p. 141-143; HARTOG 1982, p. 25;
LaCAPRA 1985, p. 45-69; BURKE 1990, p. 108, 110; DUMZIL 1985, p. 985-989; ZAMBELLI 1985, p. 983999; BLACK 1986, p. 67-71; CARRIER 1987, p. 76-77; BARTLETT 1991; MARTIN 1992, p. 613-626; SCHUTTE
1992, p. 576; STRUEVER 1995, p. 1203; BUTTI de LIMA 1996, p. 8-9; UZEL 1997, p. 28, 31-32; EGMONDMASON 1999, p. 241, 244-245, 247-250; AYA 2001, p. 151-152; JED 2001, p. 372, 373-374; COHEN 2003,
p. ix; HARTOG 2005, p. 228-229; BORGHESI 2006, p. 110-111, 114, 118-119, 121-126; THOUARD 2007,
p. 12-13, 16-17; BERTOZZZI 2007, p. 33; MOST 2007, p. 63, 65, 67-68, 70, 73; HAMOU 2007, p. 190-194;
COHEN 2007, p. 222-223; DOJA 2007, p. 93-94); PAPE 2008, p. 1; OGAWA 2010; SIMON-NAHUM 2011, p. 2;
VOUILLOUX 2011, p. 2-3, 4, 6, 7-8, 9-10; RANCIRE 2011, p. 474-484; HARTOG 2011, p. 540-552; BOULAY
2011.
7
No original: Readers are likely to finish each essay with their heads full of unanswered questions. If such
abundance is a fault, it is one which is all too rare in historical writing today.
8
No original: The essays are so far-ranging, so rich, and so provocative that a full review would likely be
longer than the book itself.
9
No original: One wishes Ginzburg had added a few more pages to clarify the dark, still undefined sides of
his formulation. He ventured into this issue in subsequent forays. But, if one were to judge by the response
of some of his critics, he did not do so satisfactorily.
10
No original: Carlo Ginzburg daploie un savoir qui nappartient qu lui, osant des analogies et des
rapprochements dont les dehors fortuits masquent la prodigieuse rudition sur laquelle elles reposent.
5
30
11
31
12
Alis diversamente (re)criados de modo a conjugar diferenas de indcios assinalados conforme as variantes
dos contos narrados correspondentes aos nexos imaginativos que distinguem cada verso (MSSAC 2011,
p. 37-46).
13
Afinal, algum viu o animal (na origem cognitiva da codificao categorizadora de suas pegadas) pois quem
seria capaz de identificar pegadas de animal que jamais foi visto?
14
A (con)fuso Sherlock Holmes por Conan Doyle ou indireta ou alusivamente apontada j pelos comentrios
de Marcelo Truzzi: a grande maioria das inferncias de Sherlock no resiste a um exame lgico. Ele as conclui
satisfatoriamente pelo simples motivo que o autor das histrias o permite (1991, p. 79) e de Umberto Eco:
Como ele [Sherlock Holmes] tem o privilgio de viver em um mundo construdo por Conan Doyle que,
adequadamente, se encaixa em suas necessidades egocntricas, ento, ele no carece de provas imediatas
de sua perspiccia (1991, p. 241). Considere-se ainda o que diz Umberto Eco sobre a estrutura teleolgica
do juzo operado por Zadig ao partir do princpio de que os dados indicirios em que se baseia fossem
harmoniosamente relacionados (ECO 1991, p. 236), assim os sendo justo pela deciso criativa de Voltaire.
15
Emblemtico nesse sentido a reflexo proposta em Rashomon de Akira Kurosawa/Ryunosuke Akutagawa.
Confira-se ainda a crtica que Robert Bartlett dirige ao mtodo associacionista de alegados indcios operado
por Ginzburg em Ecstasies (BARTLETT 1991).
16
Confiram-se os relatos apresentados por Roger Mssac (2011, p. 37-46).
32
33
34
35
No original: on va du prsent vers le pass (infrieur), em dployant un modle dintelligibilit qui relve
plus dune thorie de la puissance que de lhistoire antiquaire.
29
No original: Aristotles Rhetoric, mediated by Quintilian, gave Valla the opportunity to escape from the
limitations of Ciceronian rhetoric. It is not by chance that in 1448 Valla started his translation of Thucydides, a
historian whom Cicero had despised for his obscurity, pointing to him as a negative model for orators to avoid.
28
36
30
Para o e exame dessa questo, confira-se nosso ensaio The Rhetoric of Method (MURARI PIRES 1998).
37
Lorenzo Valla on the Donation of Constantine, publicado na coletnea de History, Rhetoric and Proof
(GINZBURG 1999, p. 54-70).
32
Carta de 31 de dezembro de 1443 a Aurispa.
31
38
39
40
porque este indiciava o exerccio da tirania apenas por Hpias. Pelo contrrio,
o apontamento ento assinalado por Valla conjectura como a razo do interesse
de Tucdides por aquele episdio impressionante por sua narrativa e loquacidade
amplificada, devia-se antes, ao que entende Valla, a aspectos de ordem pessoal,
dado que sua famlia descendia da de Pisstrato.36
Tanto mais paradoxalmente perturbador, ento, aventarmos que a leitura
valliana de Tucdides reconhecesse cabalmente no historiador ateniense a
conscincia das manifestaes daquela excelncia de mtodo crtico por que
ele veio a ser posteriormente distinguido.37
Pelo que indiciam especialmente as partes submersas dos icebergs
aristotlico-tucidideanos desprendidos por Ginzburg a enredar os nexos da
historiografia retrica (e mutatis mutandis) da prova38 porque se diz o tlos
do conhecimento histrico em termos da lgebra da realidade verdica do fato
histrico (x did y ...), emergem figuraes discursivas que conjugam divinatio
precipitada de associaes conjecturais.
Pois, h ns falsos que (des)amarram os lances de malhas que tramam a
rede argumentativa de Ginzburg.
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Ideo tot uerbis de hac re loquitur Thucydides quia ipse a Pisistrato fuit oriundus (PADE 2000, p. 279).
A provvel fonte de que Valla deriva seu informe seria Marcelino, no entender de Fryde (1983, p. 90, 94).
Este crtico, entretanto, ao acusar a falha de juzo exegtico do humanista romano naquela: Valla was
guilty here of accepting uncritically an ancient authority who is most unlikely to have had any sources of
information unknown to us, acaba (des)entendendo o comentrio valliano, nele fazendo incidir sua prpria
ordem metodolgica de anlise documental, assim (con)fundida com o de Valla.
37
Confira-se, por exemplo, como a ateno do crtico moderno, Edmund B. Fryde (1983, p. 94), destaca como
significativo que Valla acrescesse um apontamento, todavia apenas como glosa informativa traduzida de uma
escolia, respeitante ao mito da morte de Itys, o que atestaria os ecos da conscincia crtica tucidideana de
ajuizamento histrico em Valla, quando, pelo contrrio, naquelas passagens em que Tucdides expressamente
externa seus posicionamentos acerca dessa problemtica que ope a histria ao mito, Valla nada tenha
assinalado no manuscrito de sua traduo! Sobre tal projeo operada pela crtica dos sculos XIX e XX que
faz aderir em Valla (ou Leonardo Bruni) a configurao de modernidade metodolgica antes atinente a esta
(cons)cincia historiogrfica atualizada, vejam-se nossos ensaios integrados em Modernidades Tucidideanas
(MURARI PIRES 2007).
38
Particularmente no que respeita aos desentendimentos das proposies da Retrica de Aristteles aventados
pelas articulaes argumentativas de Ginzburg vejam-se as precisas anlises de Franois Hartog (2011, p.
549-550). Confiram-se igualmente as anlises de Carlos Eduardo de Almeida Ogawa em sua dissertao de
Mestrado Histria, Retrica, Potica e Prova: a leitura de Carlo Ginzburg da Retrica de Aristteles (2010).
36
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hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 24-44
44
Resumo
Palavras-chave
45
Abstract
Inspired by Manoel Luiz Salgado Guimares argument that the writing of history in nineteenth-century Brazil was an open field, a debate without pre-defined winners, this paper focuses on a
form of history writing that was much criticized in that context, that can be found in two authors
whose works were regarded as examples of plagiarism by the Brazilian Historical and Geographical
Institute: Jos Incio de Abreu e Lima (1794-1869) and Alexandre Jos de Melo Morais (18161882). Their works were considered to be copies of texts by other authors because of the way
they used their sources and bibliography. The papers hypothesis is that both authors produced
a kind of historiography that is rather close to the genre of compilation - an old historiographical
genre that was on the process of being rejected as valid model for the writing of history in
nineteenth-century Brazil.
Keywords
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disputas, j que no se havia afirmado ainda um modelo cannico para
a escrita da histria; dessa forma, viria a se constituir uma memria que
tenderia a apagar esse momento, a fim de consagrar a lembrana de um
modelo nico e coeso para a escrita da histria oitocentista no Brasil.
47
Oferecido por Abreu e Lima ao Instituto, em carta transcrita no tomo 5 da Revista Trimensal do Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro, 1843, p. 395-397.
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49
3
Como mostra Maria da Glria de Oliveira (OLIVEIRA 2010, p. 296-297), esse artigo de Fernandes Pinheiro
visa refutar a caracterizao de Rego Barreto presente na Histria da Revoluo Pernambucana (1840) de
Muniz Tavares.
Com efeito, o autor, na pgina 100 do tomo III, usa a expresso continua
o padre Jos de Moraes, para indicar de onde extrai seu relato. O relato parece
comear na pgina 18, com o ttulo Dos provinciais do Brasil, e reitores dos
colgios (crnica manuscrita). No h referncia direta, no incio, a Jos de
Moraes. Melo Morais julga-se desculpado, entretanto, porque previne o leitor,
em momentos como a pgina 100, de que se trata deste autor. Por vrias vezes
na Corografia seu procedimento semelhante, sua narrativa confundindo-se
com a da fonte que utiliza, mas havendo alguma citao ao original.
Melo Morais responde a Norberto, evocando exemplos da historiografia
luso-brasileira:
50
Melo Morais exime-se do plgio alegando ter citado a fonte que utiliza; no
o fez em nota de rodap, nem de margem, mas julgou cumprida sua tarefa/
obrigao de citao. Mostra exemplos da historiografia luso-brasileira em que
os autores no citam de onde extraem suas informaes, o que no os impediu
de adquirirem reputao. Extrai, da situao, como que uma lei da escrita da
histria: as verdades histricas no se inventam, e podem ser reproduzidas
livremente. Em raciocnio que nos parece semelhante ao de Abreu e Lima,
conforme veremos, defende aqui que o historiador deve buscar em alguma
parte as informaes que formam sua obra, isto , uma obra de histria
necessariamente formada de outras obras, cuja reproduo livre (porque
necessria). Para Melo Morais, o importante saber se as informaes que
compem a narrativa histrica so verdadeiras ou no.
Os exemplos que Melo Morais cita possuam modelos de citao e referncia
que de fato no dispunham as fontes ao leitor da forma como Joaquim Norberto
cobrara-lhe, em censura semelhante que Varnhagen fizera a Abreu e Lima;
muito embora entre a declarao de princpios dos autores oitocentistas e sua
hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 45-62
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nova (GUENE 1985, p. 124). O termo reabilitado de tal forma, que, em especial
a partir da segunda metade do sculo XIII, ponderando as virtudes da compilao,
os compiladores passam a se ver como autores de obras novas, e passam a assinar
seus nomes nas compilaes, ao contrrio do autor da Historia Regum Francorum,
que se manteve annimo (por sua obra s conter textos de terceiros, no julgou que
lhe cabia a autoria). Os autores agora declarados anunciam com orgulho que suas
obras so compilaes. Com orgulho, afirmam que no inventam nada, que se atm
a suas fontes: so compiladores, no inventores (GUENE 1985, p. 135).
No final do sculo XVII, incio do sculo XVIII, o fato do trabalho do
compilador definir-se essencialmente por ser baseado em textos fez com que
Pierre Bayle (1647-1706) preferisse essa definio, ao invs da de historiador,
como mostra Anthony Grafton (GRAFTON 1998, p. 198-199). Em um ambiente de
contestaes cticas possibilidade do conhecimento histrico, tais como as oriundas
do cartesianismo e do pirronismo, o compilador poderia, atravs da demonstrao
dos textos em que se baseava, mostrar de onde extraa seus fatos, e coloc-los
prova pelo leitor, escapando das acusaes de inveno que pesavam sobre os
historiadores. Estudando Fustel de Coulanges (1830-1889), Franois Hartog aproxima
alguns traos, ou momentos, do trabalho desse historiador com os do compilator:
Oscilando do auctor ao scriptor, o historiador moderno [isto , o historiador
oitocentista] apareceria e reapareceria de preferncia com os traos do
compilator, esse que, visando a anular-se como autor, acrescenta ao
texto notas cada vez mais numerosas e eruditas, tendendo at, a rigor, a
converter-se em scriptor, o simples copista [...] (HARTOG 2003, p. 129).
53
5
No original: It was my intention, that the concluding part of the History of Brazil should have contained
a Critical Account of all the Documents, printed or in manuscript, from which it has been compiled; but this
would have considerably enlarged a volume, which already far exceeds the usual size. Traduo minha.
54
Ora, eu para minha instruo, nada mais tinha feito do que copiar,
quase fielmente, os diversos autores, que trataram dos negcios de
Pernambuco, servindo-me de guia a Histria do Brasil por Mr. Alphonse
de Beauchamp, do qual s me apartei, ou ampliando aquelas notcias
em que foi omisso, aproveitando-me para isto dos mesmos autores que
ele copiou, como Rocha Pita, Brito Freire, Fr. Rafael de Jesus, Joboato
[sic], e outros; ou corrigindo a exposio dalguns fatos, que combinada
com a dos escritores que ele seguiu, me pareceu carecer de exatido.
Acrescentei porm s notcias que me deu Mr. Beauchamp as que colhi
nos Arquivos das Secretarias, nas Memrias de Monsenhor Pizarro, e
em vrios manuscritos, e folhetos, que com muito trabalho, e alguma
despesa alcancei, para completar as Memrias Histricas de Pernambuco
at o fim do sculo passado.
Nas do sculo presente porm no segui autor algum na ordem dos fatos,
e at mesmo me apartei de vrios escritores modernos: recopilei o que
me foi possvel extratar dos Arquivos Pblicos, consultei os jornais, e
muitos impressos, manuscritos, e cartas que encontrei entre os papis de
meu pai o Sr. Jos Fernandes Gama, que Deus tem em Glria, e dando
tambm tratos minha memria, descrevi os fatos como chegaram
minha notcia, e alguns como vi suceder.
So pois os trs primeiros tomos destas Memrias, pela maior parte um
plagiato, que eu evitaria, se no estivesse convencido de que dizer o
mesmo, que outros disseram (e disseram bem) por diferentes palavras
pura, e intil perda de trabalho. O 4o e o 5o tomos so todos meus
(FERNANDES GAMA 1844, p. VIII, grifos nossos).
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que por vezes sofriam. Cremos que aqui reside um aspecto importante de sua
defesa do mtodo que adotava, e da prpria adoo da compilao quando o
autor havia feito ele mesmo pesquisas em arquivos, validando essa modalidade
para alm dos casos em que a nica pesquisa possvel era fazer extratos da
bibliografia de narrativas histricas j existentes.
A compilao no teria ainda, no momento em que escreve Abreu e
Lima, o valor negativo que adquiriria depois, no espao de pouco mais de
uma gerao, que se observa em autores como Capistrano de Abreu e Slvio
Romero, escrevendo por volta de 1880. Romero, por exemplo, em resenha
da edio pstuma da Crnica Geral (1886) de Melo Morais, de 25 de abril de
1886, afirma, sobre um tipo de obra da historiografia oitocentista brasileira:
livros de compilao, como [os de] Abreu e Lima, e Macedo, livros sem
erudio, sem crtica, sem vida, sem estilo (apud FILHO 1886, p. 119).
Capistrano de Abreu, em artigo publicado em 1882, define Abreu e Lima como
um compilador, inteligente, verdade, mas j antiquado quando apareceu
sua obra, muito mais agora que sobre ela passaram mais de quarenta anos de
estudos histricos; Capistrano ainda afirma, sobre Melo Morais, no mesmo
artigo, que se tratava de um colecionador. [...] ele publicou muita coisa
importante, porm alheia. O que lhe pertence to pouco, que no fcil
encontrar (ABREU 1975, p. 146).
Podemos aventar a hiptese de que, baseando-se em Beauchamp, e usando
outras obras que utilizaram o termo compilar para definir sua feitura, Abreu e
Lima, que j imaginara seu trabalho como uma compilao (vide o prefcio do
Compndio), tendo de defender-se, procurou desenvolver as consequncias do
que os demais historiadores diziam, quando caracterizavam suas obras como
compilao, ou afirmavam t-las feito compilando diversos materiais, fossem
estes narrativas histricas de outros autores, documentos oficiais ou crnicas
manuscritas. Chegou, ento, sua concluso de que todo historiador , de
fato, um compilador, e acabou por definir esse trabalho de forma muito prxima
que remonta Idade Mdia, a partir do sculo XII, segundo nos apresenta
Bernard Guene (GUENE 1985; 1980).
Abreu e Lima, em sua Resposta a Varnhagen, considerou o trabalho de
reconstituir o passado a partir de relatos de terceiros como essencialmente
compilao: exceo da histria contempornea, porque so fatos
presenciais, no conheo historiador algum que no fosse compilador (LIMA
1844, p. 37). Varnhagen, por sua vez, descaracteriza essa identificao entre
historiador e compilador ao interpor, entre o recolhimento dos relatos de
terceiros existentes sobre o passado e a confeco final da narrativa histrica,
o trabalho de ajuizar os fatos; que, em sua viso, superava em muito a
simples compilao.6
57
6
Para ajuizar os fatos necessrio que o historiador tenha erudio no assunto, crtica histrica, independncia
de carter, luzes gerais dos conhecimentos humanos e conscincia: necessrio que seja grave, urbano, e
que tenha miras de bom estadista - Para ser compilador, e ainda melhor plagirio [do que acusava Abreu,
por ter compilado obra de Alphonse Beauchamp, autor francs que teria plagiado Robert Southey], basta
ter ido escola e saber copiar traslados, e ter muito atrevimento, como tm sempre os mais ignorantes
(VARNHAGEN 1850, p. 400).
58
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Melo Morais ficou rfo aos onze anos de idade, sendo criado por dois tios, um frei carmelita e um frei franciscano.
Biografia escrita por Pedro Paulino da Fonseca, publicada no Cruzeiro, de 23 de setembro de 1882, reproduzida
em FILHO 1886, p. 58. Abreu e Lima era filho de um padre, Jos Incio Ribeiro de Abreu e Lima (1768-1817),
conhecido como Padre Roma, condenado morte por seu envolvimento na Revoluo Pernambucana de 1817.
7
60
Compilao e plgio
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______. Replica apologtica de um escritor caluniado e juzo final de um
plagirio difamador que se intitula general. Madri: Viva de D. R. J.
Dominguez, 1846.
62
Fernando Nicolazzi
[email protected]
Professor adjunto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Avenida Bento Gonalves, 9500 - Agronomia
91501-970 - Porto Alegre - RS
Brasil
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Resumo
Este ensaio parte de uma sugestiva colocao feita por Manoel Luiz Salgado Guimares a respeito
dos procedimentos de pesquisa para a histria da historiografia. Ao sugerir que a ateno voltada
para os textos e suas condies de produo supe sempre a existncia de um certo tipo de leitor,
o autor traz para o primeiro plano da investigao o tema da leitura da histria. Nesse sentido,
partindo da hiptese de que a legitimidade do discurso historiogrfico reside no apenas no
cumprimento dos protocolos de escrita efetivados pelo historiador, mas tambm no ato correlato da
leitura realizada por seus leitores, este texto oferece um estudo sobre as consideraes a respeito
da leitura da histria feitas pelo historiador e antiqurio francs Claude-Franois Menestrier em
sua obra Les divers caracteres des ouvrages historiques, publicada em 1694.
Palavras-chave
63
Abstract
This essay has as its starting point a suggestive statement made by Manoel Luiz Guimares
Salgado about the research procedures used in the history of historiography. By suggesting that
the attention usually given to historical texts and their conditions of production always presupposes
the existence of a certain kind of reader, the author brings to the foreground the issue of the
reading of history. Based on this assumption that the legitimacy of historiographical discourse lies
not only in the historians compliance with written protocols, but also in the intellectual performance
of readers, this text offers a study of the reflections on historical reading developed by the French
historian and antiquarian Claude-Franois Mnestrier in his work Les divers characters ouvrages
des historiques, published in 1694.
Keywords
__________________________________
Este ensaio se insere no projeto Erudio, ceticismo, historiografia: a cultura histrica francesa no sculo
XVI (Bodin, Montaigne, La Popelinire), financiado pelo CNPq na modalidade de Bolsa de Produtividade
em Pesquisa. Agradeo aos amigos Rodrigo Turin e Pedro Telles da Silveira pela leitura e pelos comentrios
feitos ao texto.
Fernando Nicolazzi
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No basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido ou lido.
Chaim Perelman e
Lucie Ollbrecht-Tyteca
64
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Fernando Nicolazzi
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ou, nos termos aqui intentados, legitimou o relato de Demdoco, uma vez que
se tratava dos prprios feitos por ele sofridos e realizados na guerra de Tria.
Discpulo das musas, o poeta verazmente cantou algo diante do que no estava
presente, mas que pde ser respaldado pelo choro convulsivo do heri de taca.
Para Franois Hartog, a presena de Ulisses, l e c, atesta que aquilo realmente
aconteceu. As consequncias so sublinhadas pelo historiador francs: desenha-se
assim uma configurao at ento indita, uma anomalia, j que na epopeia a
veracidade da fala do aedo depende inteiramente da autoridade da Musa, que ao
mesmo tempo inspiradora e fiadora (HARTOG 2003, p. 21). A anomalia reside
justamente no deslocamento operado nesta cena, fazendo passar as condies
de atestao do relato, anteriormente situadas ao lado das Musas com seu saber
onisciente, ao olhar humano, mesmo que atribudo a um personagem desprovido
da viso. Para Ulisses, por uma curiosa reviravolta, a viso humana que, pelo
menos durante esses trs versos, torna-se o padro pelo qual se pode medir a
justeza da viso divina. Tem-se portanto a justaposio de um Demdoco aedo
e de um Demdoco historiador, mesmo que este ltimo a aparea somente pelo
tempo de autenticar o outro, o aedo (HARTOG 2003, p. 24).
Em Tucdides, ouvinte de Herdoto, a audio assume um tom crtico que o
faz recortar a histria legtima, pautada no acesso aos indcios e s testemunhas
dignas de f, daquela elaborada to somente como forma de divertimento, e no
como uma sria aquisio para sempre. Resulta disso o tom mais direto com que
sua narrativa elaborada, sem oferecer aos leitores os meios pelos quais seguir a
construo dos argumentos por ele realizados. Como advertiu Francisco Murari Pires,
67
No se quer com isso criar uma falsa justaposio entre a histria como aquisio para sempre e o modelo
Fernando Nicolazzi
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68
69
3
Sobre a questo da crena na histria, embora seguindo uma perspectiva que, se se aproxima desta em
alguns pontos, em outros se mostra bastante distante, remeto a HARTOG 2013.
4
Para um registro bio e bibliogrfico sobre Menestrier, remeto obra do historiador e arquelogo Paul-Auguste
Allut, Recherches sur la vie et sur les oeuvres du P. Claude-Franois Menestrier de la compagnie de Jsus.
Suivies dun recueil de lettres indites de ce pre Guichenon, & de quelques autres lettres de divers savans
de son temps, indites aussi, publicada em Lyon, no ano de 1856 (ALLUT 1856, p. 1-205).
Fernando Nicolazzi
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70
5
Sobre o papel de Nanni de Viterbo como um dos primeiros crticos e, curiosamente, notrio falsrio da
historiografia moderna, ver GRAFTON 1990.
71
Fernando Nicolazzi
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de crnicas e de memrias que serviram para seu estabelecimento
(MENESTRIER 1694, p. 60).
72
73
6
O termo no dicionarizado em francs, inclusive no consta no dicionrio de Furetire publicado em 1690
(FURETIRE 1690). Do mesmo modo, no encontrei meno palavra em lngua portuguesa.
Fernando Nicolazzi
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74
75
Neste ensaio, como se percebe, a ateno no foi voltada ao estudo das caractersticas efetivas deste certo
tipo de leitor, pois isto implicaria em outros procedimentos de anlise, sejam eles voltados para as formas
de recepo dos textos historiogrficos, sejam voltados para os modos pelos quais os prprios historiadores
estabelecem, em seus textos, um leitor implcito.
7
Fernando Nicolazzi
_________________________________________________________________________________
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76
77
Rodrigo Turin
[email protected]
Professor adjunto
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Escola de Histria
Av. Pasteur, 458 - Urca
22290-240 - Rio de Janeiro - RJ
Brasil
______________________________________________________________________
Resumo
A partir das proposies de Peter Szondi a respeito de uma potica histrica dos gneros, este
ensaio tem por objetivo interrogar os usos e os sentidos que configuram a histria da historiografia
como gnero de escrita da histria. A partir dessa interrogao da histria da historiografia em
funo de suas caractersticas enquanto gnero, procuro apontar para certos constrangimentos
sedimentados historicamente em sua forma e que incidem diretamente nas possibilidades e nos
limites de sua (re)definio como um campo de pesquisas e de reflexo.
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Palavras-chave
Abstract
The aim of this paper is to cross-examine, in light of Peter Szondis historical poetics of genres,
the uses and meanings that configure history of historiography as a genre of historical writing. By
doing so, this paper points out some constraints that were historically settled within the genres
form and that exert direct influence on the possibilities and restrictions for re(defining) the history
of historiography as a research field.
Keywords
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Como destacaram Temstocles Cezar e Paulo Knauss em sua apresentao tese de Manoel Salgado: As
pesquisas de Manoel Luiz Salgado Guimares marcam um momento em que os historiadores (inicialmente
um pequeno grupo) dubruam-se sobre a sua disciplina e passaram a estudar sua prpria memria disciplinar
e os motivos de seus esquecimentos (GUIMARES 2012, p. 15). Para uma anlise de certas questes e
antinomias que orientavam a produo historiogrfica poca em que Manoel Salgado produzia sua tese,
conferir ARAUJO (2012).
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Prisioneiros desta mesma memria disciplinar, reafirmamos as
demarcaes e as rupturas que era necessrio este procedimento
disciplinar constituir para se afirmar como portador de um conhecimento
legtimo sobre o passado, deixando de perceber no apenas certas
continuidades, mas, sobretudo, o jogo de silenciamento e de escolhas a
que se procedeu para que os antiqurios fossem vistos como incapazes
de conhecer verdadeiramente o passado (GUIMARES 2007, p. 15).
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81
A historicidade do gnero
A proposta de uma abordagem a partir do gnero, aqui sugerida, faz
uso dos encaminhamentos hermenuticos que Peter Szondi elaborou acerca
de uma potica histrica dos gneros (SZONDI 2011; 2004).2 Para Szondi,
no possvel pensar os gneros como formas autosuficientes que demandam
determinados tipos fixos de contedos (como o dramtico, o pico, o lrico). A
descrio aristotlica dos gneros e suas distintas recepes normativas entre
os sculos XV e XVIII estabeleceram relaes estveis e universais entre as
diferentes formas e seus contedos. Diferentemente dessa definio aristotlica
dualista, presente tambm em tericos como Emil Steiger, Szondi retira da
esttica hegeliana e do dilogo com as reflexes de Lukcs, Benjamin e Adorno a
necessidade de pensar, ao mesmo tempo, a relao de identidade e a historicidade
2
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da interpretao um papel que parece dispensar a hermenutica da crtica de sua particular forma de
conhecimento (SZONDI 2006, p. 45). Conferir igualmente BLUMENBERG 2011, p. 153-155.
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Importante ressaltar que meu objetivo aqui ensaiar uma primeira delimitao, em linhas gerais, dos
critrios histricos constitutivos do gnero. Com isso, em nome dessa generalidade, no priviligiarei as
especificadades que caracterizam as obras referidas, reconhendo que a homogeneidade produzida um efeito
de escala da linguagem utilizada e que sua pertinncia deve direcionar-se, em ultimo caso, heterogeneidade
dos casos particulares e de seus contextos intelectuais. Afnal, como afirma Szondi: As contradies entre
forma dramtica e os problemas do presente no devem ser expostas de maneira abstrata, mas apreendidas
como contradies tcnicas, ou seja, como dificuldades no interior da obra concreta (SZONDI 2011, p. 20).
7
Como destaca Grafton, ao contrrio de Ranke, Whaler admirava a capacidade de descrio de Guicciardini
(GRAFTON 1998, p. 74).
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como uma narrativa compreensiva dos atos humanos: uma de suas condies
imanentes que a histria busca captar, compreender e tornar compreensveis
as questes humanas como elas so (RANKE 2011b, p. 256, grifos meus).
A definio do gnero histria da historiografia, que Ranke jamais chegou
a sistematizar em uma narrativa nica, pode ser identificada com a funo, j
apontada aqui a partir da obra de Manoel Salgado Guimares, de elaborao de
uma memria disciplinar. Esse vis ser seguido e desenvolvido por diferentes
autores desde o sculo XIX, como George Gooch, Camille Jullian, Gabriel Monod,
Eduard Fueter, Friedrich Meinecke, Benedetto Croce, Geoges Lefebreve, Franois
Chatlet, Charles-Olivier Carbonnel, Jos Honrio Rodrigues, entre outros,
acompanhando, orientando e alimentando o processo de institucionalizao da
disciplina nas universidades. Todos esses trabalhos selecionam, interrogam e
ordenam aqueles identificados como historiadores e os seus textos de histria
(o que implica, tambm, em um trabalho de excluso), seja sob uma perspectiva
universal entenda-se ocidental , expressa em uma narrativa que se inicia
com o milagre grego e passa pela Renascena at chegar normatividade
da disciplina; seja, ainda, em uma perspectiva nacional, cujas narrativas se
caracterizam por uma costura, medida por avanos e retrocessos, por
rupturas e continuidades, entre aquela narrativa universal e as suas expresses
particulares. Nesse sentido, a funcionalidade e a eficcia do gnero demandam
o horizonte de (ao mesmo tempo em que produzem) uma certa evidncia
da histria e de seu praticante, o historiador, definidos por algum princpio
constitutivo que lhes identifique uma unidade na disperso temporal. Em um
mesmo espao simblico, ainda que ocupando posies distintas de acordo
com cada ordem narrativa, autores como Herdoto, Tucdides, Polbio, Plutarco,
Maquiavel, Guicciardini, Voltaire, Vico, e mais uma pliade diversa de antigos
e modernos, podem ser reconhecidos (mesmo que em negativo) como
pares que compartilham, figurando, o exerccio de uma mesma atividade.8
Da a recorrncia e as metaformoses da metfora, to comum nesse discurso
historiogrfico, dos pais da histria (PAUL 2011). Um texto de histria da
historiografia, portanto, traz em si prprio, como enunciado base da forma, a
expectativa da evidncia (e da evidenciao) da unidade de seus objetos, a
escrita da histria e o historiador, cujas identidades so tecidas no trabalho
hermenutico sobre os textos, ao mesmo tempo em que o orientam.
Fueter, por exemplo, ao escrever sua obra sobre a histria da historiografia
europeia desde o Humanismo at o presente, exclua do seu escopo obras de
filosofia da histria e de crtica erudita, abarcando apenas as obras daqueles
que ele denominava de historiadores (FUETER 1914, p. I-II). Nesse sentido,
no entravam em sua anlise textos como o Methodus de Bodin, por no ter
8
No sentido proposto por White, a partir de Auerbach: O modelo figural-cumprimento outorga a esta
converso auto-justificatria com textos do passado o sentido de uma promessa sempre renovada e no-cumprida, na medida em que o estabelecimento de todo novo cnone inovador um ato no qual se produz a
expropriao de textos do passado por um texto presente, sem que este ltimo chegue jamais a ser completo
na realizao da promessa em que foram constitudas as representaes prvias. Sempre permanecer
aberto a futuras expropriaes que construiro novos cnones que desafiaro as j cristalizadas (MARTINI
2013, p. 141).
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A partir das belas consideraes acerca da tradio da Histria Antiga por Francisco Murari Pires (PIRES 2012).
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Algo que chama a ateno sobre as funes de orientao que a histria da historiografia exerce, e que
mereceria ser melhor investigado, essa relao, em um grau inexistente em outras disciplinas cujas
definies se do, comumente, a partir de justificativas eminentemente epistemolgicas , entre as crises
de legitimao da histria e a busca de sua resoluo pelo reordenamento narrativo de seu passado.
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Resumo
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Palavras-chave
Abstract
By proposing certain divisions between past and present, modern history writing also articulates
various connections between what is real and what is not real. A viable historiographical approach is
exactly the study of the way these connections are structured and legitimized. Therefore, this article
investigates the uses of the past in historical culture as experienced by Gustavo Barroso. Based
on theoretical and methodological insights by Manoel Luiz Salgado Guimares, it relates Barrosos
writing to the production of other intellectuals. The paper aims at illustrating the significant role
material culture hasin the shaping of certain ways of giving meaning to the past, more specifically
through the transformation of marks and traces into vestiges of the passage of time.
Keywords
A lio da pedra
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O que parece construir esta possibilidade da representao, no caso
da Histria, a absoluta conscincia de uma perda, de uma ausncia
insubstituvel e incontornvel, aquela do prprio passado como
experincia, que despertara nas sociedades do sculo XIX uma paixo
pela Histria em suas mais diversas formas (GUIMARES 2010, p. 48).
A ptina do tempo
Jos de Alencar escreveu que, diante das runas de Olinda, interrogava
os muros do convento, como para arrancar-lhes o segredo de algum fato
interessante de que se perdera a tradio. A vida, afinal, no passava para
sempre, deixava marcas e marcos: Era justamente essa crnica do corao,
esquecida pelos analistas do tempo, que eu pedia quelas runas (ALENCAR
1953, p. 238).
A pedra era tanto a presena de uma ausncia, quanto a ausncia de uma
presena. Ao contrrio do que pode parecer, no simplesmente um jogo de
palavras. Para ser sentida, a ausncia deve dar conta de alguma existncia anterior.
A reverncia diante do antigo vem desse sentimento: ali h muitas ausncias,
sobrepostas e repostas. Sem imaginar que por ali muitas coisas se passaram,
perde-se o elo fundante da saudade. No propriamente uma saudade de ausentes
conhecidos, mas a falta de algo que no se sabe bem o qu. Uma indefinio
propcia imaginao. Da a necessidade dessa presena radical de um existente
que no existe mais. Da a necessidade de ver o aparentemente invisvel.
Alencar pedia, perguntava, implorava, mas a matria permanecia calada:
os muros, lavados pela chuva e pelo vento, estavam descarnados; as pedras
j no conservavam os vestgios da mo do homem. Os vestgios estavam
mudos e mutilados: Quantas vezes no sondei esses destroos de alvenaria,
essas paredes nuas, procurando, nem sei o qu, uma memria, um nome, uma
inscrio, uma frase que me revelasse algum mistrio, que me dissesse o eplogo
de alguma lenda que a imaginao completaria! (ALENCAR 1953, p. 238).
Pedra boa era pedra riscada, ou melhor, acrescida por algum tipo de grafia.
Alencar procurava aquilo que Victor Hugo havia encontrado em uma parede de
uma catedral do medievo: uma inscrio. AN ATKH foi essa a palavra que
fez Victor Hugo meditar, como ele mesmo escreveria depois: Estas maisculas
gregas, enegrecidas pelo tempo e profundamente gravadas na pedra [...]
impressionaram vivamente o autor. Da, o romancista encontrou a sua matria-prima, no mesmo dispositivo de criao que Alencar tentava pr em prtica:
a faculdade de imaginar a partir de indcios enigmticos. Ali, diante das letras,
ele perguntou a si mesmo qual teria sido a alma aflita, que no tinha querido
abandonar este mundo sem deixar aquele estigma do crime ou da desgraa na
fronte da velha igreja (HUGO 2011, p. 6).
Diferentemente dos muros lavados onde Alencar buscava seu romance,
a Notre Dame tinha aquele pormenor significativo, que se via, por exemplo, nas
grafias em baixo relevo. Aqueles pequenos resduos, lentamente entranhados
no sulco da letra, davam pedra aquilo que somente o tempo poderia dar:
a impureza das camadas, a mistura das poeiras pacientes. Nada como esses
sedimentos que irritam o nariz: insistentes, as partculas vo fazendo a tintura
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dos Centenrios, com o acervo que ele mesmo selecionou no Museu Histrico
Nacional, onde ele ocupava o cargo de diretor e, alm disso, o honroso ttulo
de fundador da instituio. Da surgiu o livro Portugal, semente de imprios.
Embora tendo o integralismo como fase j finda em sua vida, o prprio ttulo do
relato j indica que sua admirao por Salazar no era pequena. Conhec-lo foi
comovente, sem dvida. Mas nada se comparou ao encerramento dos desfiles
e dos espetculos ao redor do velho castelo de Guimares, lugar em que se
reafirmava na narrativa patritica como o comeo de Portugal:
E de todos os pontos do castelo, e de todos os ngulos da vasta praa
fronteira desabrocaram fogos de artifcio, enchendo o cu noturno
de flores e de estrelas de ouro, de prata, de rubi, de ametista e de
esmeralda. Quando tudo se apagou na noite negra e profunda, somente
o velho castelo ficou iluminado como um Sonho de Pedra.
Passando rente a mim, Antnio Ferro bateu-me no ombro e perguntou:
Que tal?
Maurcio Maeterlinck, que o acompanhava, repetiu a pergunta,
acrescentando:
Je suis ravi!
Foram precisos oito sculos para se preparar isto! (BARROSO 1943,
p. 20).
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de datas e fatos relativos ao lugar. E, como era do seu feitio, ele polemizou,
exatamente para mostrar o carter especfico de uma pedra memorvel:
Lembro-me, ento, terem os jornais parisienses anunciado que um
milionrio ianque, apaixonado pela beleza da catedral de Notre Dame,
sabendo estarem essas torres inconclusas desde o sculo XIII, procurara
o Arcebispo de Paris e lhe entregara um cheque em branco para que
terminasse aquela obra. No sei o que lhe respondeu o Arcebispo, mas
sei que, se fosse ele, teria dito ao generoso norte-americano o seguinte:
Permita que use este cheque em benefcio de hospitais e orfanatos.
Quanto s torres da catedral, devem ficar e ficaro como se acham.
Nem todo o ouro do mundo ser bastante para conclu-las. Isto s seria
possvel com os artistas e artesos do sculo XIII, com a mentalidade
daquela poca. No se compra o passado como se compram meles ou
conscincias... Se meu alvitre no lhe apraz, leve de volta seu cheque. A
igreja de Notre Dame um patrimnio sagrado, no somente da Frana,
mas da humanidade. Pedreiros modernos com instrumentos modernos,
se lhe tocarem, a conspurcaro. Toda a sua grandeza est na sua idade,
no que ela nos diz como expresso dum tempo que se foi e nunca mais
voltar (BARROSO 1946, p. 180).
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Nessa disputa, a escrita teve papel fundamental como forma de mostrar
como os objetos podiam ter autonomia para falarem por si. Era atravs dela que
se divulgava a operao (CERTEAU 1982) realizada para alcance desse objetivo,
tendo os Anais da instituio como principal veculo de publicao dessa escrita.
Assim mostrou artigo de autoria de Lus Marques Poliano sobre uma pedra
brasonada encontrada, em 1941, nas escavaes feitas para a construo de
um edifcio, em terreno na rua Senadora Dantas, nmero 20, onde em 1911
havia sido demolido parte do Convento d Ajuda, construo de meados do
sculo XVIII que tambm ocupava parte da atual Praa Floriano Peixoto,
conhecida como Cinelndia. O Conservador do MHN comea seus estudos com
algumas interrogaes, a partir da observao das inscries gravadas na
pedra. Tratava-se de um braso portugus antigo: Que historia nos contaria
ela, a que fidalgo pertencera, qual a sua poca exata, que casa ornamentara
e enobrecera? (POLIANO 1947, p. 159). Aps essas interrogaes, Poliano
nos mostra o caminho percorrido para fazer a pedra falar. Foram pesquisas
herldicas, genealgicas e arqueolgicas. Leitura de documentos, relatos de
cronistas e historiadores sobre a cidade. Ao final de toda essa operao a pedra
falou que ornamentou a fachada da casa de um fidalgo em princpio do sculo
XVIII. Chamado Marcos da Costa Fonseca, certamente nascido na cidade do Rio
de Janeiro, foi Capito da Fortaleza de Santo Antnio da Praia da Barge. Depois
que seu imvel passou para as mos das freiras do Convento dAjuda, a pedra
foi retirada. Afinal, como o prprio Poliano argumentou ela era uma marca de
posse que no mais se justificava. Seu fim mais provvel foi ter servido de
entulho para a abertura da rua Senador Dantas (POLIANO 1947, p. 171-172).
Nesse sentido, as pedras falavam no Museu Histrico Nacional. E no
apenas as pedras do Arsenal e do Morro do Castelo, mas aquelas tambm
vindas de outras cidades, outros lugares onde o progresso as fez virarem restos
de edificaes derrubadas. Foi o caso da pia de gua benta em mrmore, da antiga
S da Bahia recolhida em 1934, aps sua demolio. Seria mais um vestgio do
passado a virar escombro, mas que, ao ser coletado para integrar uma coleo
museolgica, recebeu outra finalidade, outro valor e tornou-se testemunha de
mais uma construo colonial varrida pelas demandas da modernidade. Tornou-se
testemunha tambm desse distanciamento cada vez maior entre o espao de
experincia e os horizontes de expectativa na forma de conceber a passagem do
tempo (Cf. KOSELLECK 2006). Sua preservao junto a tantos outros vestgios
de construes desaparecidas parecia contribuir para uma dupla realizao do
luto: pela perda irreparvel do passado como experincia (GUIMARES 2011,
p. 100) e pela perda irremedivel de seus referenciais na paisagem urbana
A lio da pedra
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Ao disparar artigos nos jornais clamando pela preservao de Ouro Preto,
Barroso recorria s suas vivncias na cidade como forma de sensibilizar seus
leitores e, em especial, as autoridades pblicas. Demonstrava assim, seu
fascnio pelas pedras com sua ptina a exibir sua histria: vi o maravilhoso
templo do Rosrio [] enegrecido pelo mugre dos centenrios, ferido do raio,
abandonado dos homens, solene e mudo sob a bno do luar e o lume trmulo
das estrelas (BARROSO 1944, p. 10). Fascinava-o a pedra esculpida pelos
homens, mas tambm ferida pelos fenmenos da natureza. Suas marcas da
passagem do tempo falariam do passado do lugar, mas tambm do passado
nacional e apreensvel aos sentidos: Ouro Preto me atrai e me fascina, porque
ali no somente o passado que sinto, palpo e respiro, porm, o passado de
minha terra, o passado de minha raa e o passado de minha lngua (BARROSO
1944, p. 12).
Sentir, palpar e respirar o passado era o que alimentava a imaginao. A
descrio de seu passeio pela cidade mostrava o quanto a atmosfera do lugar
podia nos reportar, a qualquer momento, para o sculo XVIII e colocar-nos
em contato com personagens e fatos da histria. Assim ele narrava: e ainda
sobrou tempo para rondar a Casa dos Contos, espera de ver com os olhos
da minha imaginao superexcitada os vultos dos Inconfidentes, os juzes da
Alada, a gente dos quintos do ouro e, na sua casaca de veludo azul, [...] o
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A pedra, nisso tudo, ocupa lugar de destaque: seu testemunho pode ser
mais antigo devido sua prpria durabilidade. Alm disso, ou subjacente a
isso, h outro fator: a runa chega viso carregando uma certa ambiguidade
a respeito da sua prpria condio de matria-prima, talhada pela mo e pelo
tempo. Natureza e cultura: matria bruta e burilada. Burilada no s pelo labor
da humanidade ancestral, mas tambm pela mo da natureza, to inumana
quanto a prpria matria da pedra: a sequncia incessante de intempries, em
seu destino impondervel que vai marcando aos poucos, tanto na corroso,
quanto na tintura que se acumula em sulcos e detalhes. Da a nfase que Victor
Hugo d ao enegrecido das letras esculpidas, cujo desaparecimento lhe fez
indignado e inspirado (palavras que, para ele, no poderiam ser desatadas):
Assim, alm da frgil lembrana que lhe consagra o autor deste livro,
hoje j nada mais existe da palavra misteriosa gravada na sbria torre
de Nossa Senhora de Paris, nada do fim desconhecido que ela to
melancolicamente resumia. O homem que escreveu aquela palavra
naquela parede desapareceu, h muitos sculos, do meio das geraes,
a palavra, por sua vez, j desapareceu da igreja, e a prpria igreja talvez
que bem cedo desaparea tambm da terra. Foi sobre essa palavra, que
este livro foi escrito. Fevereiro de 1831 (HUGO 2011, p. 5).
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A luta de Victor Hugo para deter o martelo que mutila passou a ser
amplamente reconhecida, sobretudo no final do sculo XX, em sua nsia pela
preservao da memria. Afinal, a sensibilidade contempornea tornou-se
reverente ao pioneirismo do romancista em 1825, em seu apelo para que
houvesse uma lei (apenas uma, ele ressalta) para impedir a destruio de
edifcios histricos, com o devido estabelecimento de restries ao direito de
propriedade (CHOAY 2001, p. 149). No propriamente isso que aqui se pe
em destaque, e sim algo que se relaciona a um uso mais impreciso do passado:
a pedra como testemunha do transcorrer dos sculos. O que Victor Hugo escreve
sobre seu achado no p da torre diz respeito a um passado sobre o qual nada
se sabe, mas est ali.
Mas no se tratava de lidar com o fato j revelado ou ainda oculto, como
seria normal no pensamento de um historiador de ento. O mistrio incrustrado
na pedra seria o tnus da pena que percorre o papel, dando ao leitor a impresso
ntida de um passado real, retirado da matria, no como se retira o cadver
de um tmulo, mas como orao ao morto. Lpide ambulante, capaz de figurar
na reproduo do milagre tipogrfico, que os livreiros colocavam em circulao.
Em termos usados por Michel de Certeau (1982) para caracterizar a escrita
da histria, os protocolos regiam-se por uma ausncia radical, aquela que s
a morte traria. Diante do vazio fragmentado, cortante, pontiagudo: a escrita
que junta pedaos, costura e cicatriza. O passado por escrito seria, ento, essa
lpide que identifica e faz a homenagem necessria e apaziguadora, para que
haja mais espao para os que j e ainda esto vivos. claro que a influncia da
psicanlise nessa concluso de Certeau ntida. Mas, vale ressaltar, a elaborao
tambm se inspirou no romantismo de Michelet, em sua recorrente referncia
ao trabalho do historiador como dever piedoso diante dos sepultados. Victor
Hugo e Alencar esto, nesse sentido, no mesmo barco, porm acreditam que o
fato deve ser tratado de uma maneira especfica, ou melhor, em outra medida.
Qualquer descuido pode estragar a lpide: o romance se transforma em relato,
a forma se corrompe na frmula, a excitao cai na explicao, e o sentimento
vira apenas sentido.
Uma antiga inscrio misteriosa destruda para sempre. Diante disso,
lamento, revolta, reverncia, denncia, homenagem. Tudo isso se envolve,
ento, numa espcie de narrativa da perda duplicada: o prprio romance. Da
tentativa de compor na fico uma realidade perene, substrato que a pedra
no conseguiu dar inscrio (que significa FATALIDADE, conforme o leitor
fica sabendo mais ou menos na metade do livro, j que a palavra em grego
no aparece somente na nota introdutria, entrando tambm na trama da
narrativa). A inscrio marcava a existncia de algo, cuja mensagem tornava-se
praticamente indecifrvel, mas o indcio estava ali, como prova concreta do que
no mais existia. O escritor, nesse e em outros escritos, lutava pela preservao
de traos dos ausentes. Somente desse modo, os ausentes ganhariam lugar no
presente e no futuro, continuariam a mostrar que o tempo era denso: presente,
passado e futuro, em camadas interativas. Com o desaparecimento do rastro,
desapareceria a perda, deixando a vida na superficie. Assim pensando, o escritor
A lio da pedra
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partilhava uma experincia que pode ser tomada como basilar na prpria
constituio da histria no sculo XIX.
por isso que Manoel Luiz Salgado relaciona a formao da escrita da
histria com o texto de Freud sobre a diferena entre o trabalho de luto e
a melancolia. O que vai lhe interessar no a melancolia, que, em certa
medida e em certo sentido, pode ser associada sensibilidade dos romnticos.
Na anlise que Manoel Luiz faz da perspectiva freudiana, o que vai chamar
mais ateno o trabalho de luto: ... a experincia da perda de sentido do
mundo, que demanda um trabalho de reconfigurao de sentidos para a vida
neste mundo abalado pela dor da perda. Movimento, portanto para a vida, para
o mundo e para os outros, ainda que a partir de uma experincia da dor e da
conscincia da finitude (GUIMARES 2010, p. 48).
O luto, portanto, um esforo direcionado, necessariamente envolvido no
trabalho consciente. Se o texto analisado de 1917, no escapa a Manoel Luiz
um comentrio preciso e decisivo sobre o atrelamento da escrita de Freud com
a perplexidade vivida pelo mundo de ento: Momento especialmente tenso
da histria da humanidade, a vivncia de uma primeira conflagrao de ordem
mundial, parece ser o pano de fundo importante para compreendermos as
reflexes de Freud a este respeito e suas implicaes, portanto, com a prpria
Histria. Numa interpretao que lembra Michel de Certeau, Manoel comps
uma tessitura que, para findar, recomea, dando ao leitor a medida justa e
impondervel da multiplicidade do tempo:
Voltemos ao lugar de onde partimos: a lembrana que parece recorrente a
Freud de sua experincia sobre a Acrpolis, uma experincia que envolve
uma relao com o passado, no apenas sua, mas a de uma cultura
que se funda na tradio histrica oitocentista por ele partilhada. Essa
lembrana parece ganhar fora num momento em que para o prprio
Freud a conscincia do limite e da aproximao de uma perda definitiva
para um homem de oitenta anos se fazem mais presentes. E esta
conscincia, transformada em elaborao textual, o presente escolhido
para homenagear o amigo por mais um ano de vida: uma afirmao
da vida e do outro a partir de sentidos reconfigurados. esta mesma
conscincia da perda, que torna to necessrias estas imagens e figuras
do passado diante dos nossos olhos, ajudando-nos a reconfigurar o
mundo da existncia presente, produzindo a vida pela histria. Os
inmeros projetos da cultura histrica oitocentista, como por exemplo, o
dos museus histricos nacionais, aponta neste sentido, para que tambm
possamos, como Freud do alto da Acrpolis de Atenas, exclamar: Ento
existia mesmo tudo aquilo, da maneira como aprendramos na escola
(GUIMARES 2010, p. 48).
111
Est a, portanto, uma lio que a pedra pode dar: ento, existiu. A
mesma pedagogia da histria em seu trabalho de luto? Em certo sentido, sim,
na medida em que esto em jogo maneiras de tornar o tempo compressvel e
minimamente aceitvel. Contudo, se o foco especificamente as pedras aqui
expostas, a partir de diferentes dispositivos de escritas sobre o passado, seja a
escrita literria, a musolgica ou a de preservao do patrimnio arquitetnico,
o que parece prevalecer, a depender da circunstncia, a melancolia. H,
hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 96-113
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A lio da pedra
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Marcia Naxara
[email protected]
Professora assistente
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho - Franca
Departamento de Histria
Rua Ferno Dias, 8/72
05427-000 - So Paulo - SP
Brasil
______________________________________________________________________
Resumo
114
Procuro justapor as perspectivas de dois autores que, com pouco mais de um sculo de distncia,
apresentaram distintas preocupaes quanto ao conhecimento do Brasil e a escrita de sua histria:
Henrique de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) e Manoel Luiz Salgado Guimares (1952-2010).
Para o primeiro, conhecer o pas, seu territrio e sua formao era necessrio construo da
nacionalidade, considerando a relao entre o passado, o estudo do presente e as perspectivas de
futuro ento abertas jovem nao. Para o segundo, fundamental era o estudo dos procedimentos
historiogrficos e o acompanhamento das discusses que envolveram a escrita da histria de
um ponto de vista nacional no Brasil do sculo XIX. Trata-se, portanto, de um exerccio de
aproximao (e afastamento) entre os objetivos do historiador de hoje, dedicado ao estudo de
textos fundacionais em circulao no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB); e os
propsitos do historiador oitocentista, revelando, de certo modo, os caminhos do conhecimento
histrico entre ns.
Palavras-chave
Abstract
In this paper, I try to juxtapose the historiographical perspectives of two authors Henrique
de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) and Manoel Luiz Salgado Guimares (1952-2010). In spite
of being intellectuals whose lives were separated by more than a century, both had strong
interests on knowledge about the writing Brazils history. For Beaurepaire-Rohan, cultivating
knowledge of Brazils geographical and historical constitution was needed for the larger task of
constructing the nation. Guimares, on his side, used to dedicate special attention to the study of
historiographical procedures and to understanding the debates around the issue of how to write
history from a national point of view in nineteenth-century Brazil. The paper is thus an exercise
in approaching and distancing the aims of todays historians to/from those of their nineteenth-century counterparts.
Keywords
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Marcia Naxara
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1839
1841
Quais os meios de que se deve lanar mo para obter o maior nmero possvel de
documentos relativos histria e geografia do Brasil?
Rodrigo de Souza da Silva Pontes
1
Texto publicado em 1877, pela Tipografia Nacional e, na forma de artigo na Revista do Instituto Politcnico
Brasileiro, vol. 8, p. 1-36 (GUIMARES 2010, p. 188).
2
O presente volume constituiu parte de projeto amplo na perspectiva dos estudos de Guimares, que visavam
a ampliao das reflexes de ordem historiogrfica no presente e do conhecimento sobre a historiografia do
sculo XIX, como demonstra o conjunto de sua produo.
1843
1843
1847
Parecer acerca das memrias sobre o modo pelo qual se deve escrever a
histria do Brasil
Comisso: Francisco Freyre Allemo; Monsenhor Joaquim da Silveira; Dr. Thomaz
Gomes dos Santos
1863
1877
1884
1894
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4
Os mapas podem ser vistos com maior detalhe no volume A cartografia impressa do Brasil 1506-1922. A
partir da delimitao de 100 mapas para a composio do volume, o autor escolheu os mapas impressos tendo
em vista sua maior circulao e, portanto, influncia na divulgao do conhecimento neles condensados. Na
afirmao de Pedro Correa do Lago, foram mapas que realmente fizeram diferena no conhecimento ampliado
do delineamento da costa brasileira e na identificao progressiva dos principais acidentes geogrficos do
interior (LAGO 2012, p. 10).
Marcia Naxara
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http://www.geheugenvannederland.nl/?/
en/collecties/planos
http://www.4shared.com/all-images/0fu_
apOV/Mapas.html
Desse esforo, pode-se concluir, resulta uma busca mais do presente que
do passado, pautada pela procura do que se considerava necessrio para se
perspectivar o futuro: delimitar o Imprio em termos de sua geografia, descrevlo e represent-lo graficamente em seus inmeros detalhes; explicitar suas
caractersticas por meio de cdigos, traados e dispositivos simblicos. Reunir
elementos para avaliar possibilidades, conferindo organicidade e visualidade a
conhecimentos que se encontravam dispersos. Visualidade efetivada pela sntese
de conjunto proporcionada pelo mapa, cartografia que desenha e compe o
traado/contorno da paisagem Brasil, fundamental para definir a nao, alimentar
os sentimentos ptrios e estreitar os vnculos com a terra, para uns de nascimento,
para outros de adoo: o traado delineia a costa e sugere as fronteiras interiores
por regies menos conhecidas, reala a malha hdrica e demais acidentes notveis
da sua topografia, destaca o conjunto da natureza e, tambm, as realizaes que
resultam de sua ocupao pelos homens: reas trabalhadas pela agricultura e
outras atividades, riquezas naturais, caminhos de ferro que comungam com os rios,
os recortes caprichosos de seu imenso litoral. No conjunto, representam imagem
que remete, na figurao e na imaginao, para a ptria que se quer nao, no
momento de tais investimentos. Entre outros conhecimentos, contribuiriam para
mobilizar sentimentos que vinculam a paisagem em seus inmeros detalhes ao
pas e nao a que se procura dar visibilidade pela cartografia. Imagens que se
formam a partir da vinculao ptria, pas e paisagem, a que a Carta Geral do
Imprio confere unidade, suscitando o que Catroga (CATROGA 2008) denominou
sentimentos quentes, tendo em vista a mobilizao de afetos ptrios, de forma
que o Brasil com seu imenso e diferenciado territrio torna-se perceptvel pela
construo visvel do contorno geogrfico que lhe d concretude e possibilita que
a imaginao seja lanada longe em termos de representaes e, mesmo, da
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http://www.4shared.com/all-images/0fu_apOV/Mapas.html
hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 114-129
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ocorre a partir de um lugar que conquista e ocupa o direito de fala, mesmo que as
falas tenham sido mltiplas e a disputa interior ao IHGB possa ter tido dimenso
significativa. Lucia Paschoal Guimares (GUIMARES 1995) acompanhou, extensa
e intensamente, a documentao do Instituto, procurando realar temticas e
debates, exerccios de memria, silenciamento, denegao e esquecimento no
desenrolar dos esforos de pesquisa, estabelecimento documental e escrita da
histria em seu interior: vaidades, interesses, deficincias e debilidades no que
diz respeito s possibilidades quanto aos objetivos perseguidos de construo
de uma histria nacional, continuamente debatido em termos de modelos que
pudessem servir sua consecuo.
Conhecer e refletir sobre o desenrolar de tal empreitada foi interesse
central ao trabalho de Manoel Salgado Guimares, no deslindar e acompanhar,
colocando presente e passado em relao, os passos iniciais da historiografia
praticada no Brasil, referenciada nas formas de conhecimento histrico teoria
e mtodo vigentes e em construo no sculo XIX. Interesse especial para com
os procedimentos daqueles que iniciaram os estudos histricos, contribuindo,
simultaneamente, para a sua constituio como disciplina e cincia e, tambm,
para a pesquisa histrica e definio dos caminhos de formulao de uma histria
para o Brasil: Reconstruir o passado que se deseja narrar a tarefa dessa
primeira gerao de escritores e literatos que igualmente vo se construindo,
por meio da escrita que propem, como os primeiros historiadores do Brasil
(GUIMARES 2010, p. 14-15), em processo praticamente sem fim e, tambm
marcado pelos debates intelectuais e polticos de seu tempo.
A histria como parte de uma cultura histrica, na afirmao de Guimares
penso que caracterstica, talvez, ao mundo ocidental que supe inmeros outros
dispositivos coletivos de produo de sentido e significado para o passado e que
se interroga, de modo sistemtico, sobre as diferentes formas de transformar
o passado em objeto de investigao (GUIMARES 2010, p. 9). Para o autor
questo que foi adquirindo consistncia e relevncia no Brasil nas ltimas dcadas
do sculo XX, podendo-se reconhecer movimentos crescentes de reflexo sobre
a prpria disciplina, ou seja, sobre o prprio fazer do historiador. Na esteira de
Pierre Nora, considera que a uma percepo cada vez mais acelerada do tempo,
a uma velocidade que parece condenar o prprio presente a um esquecimento, os
esforos sociais para a preservao do passado assumem cada vez mais sentido
(GUIMARES 2007, p. 95-96). A compreenso dessa busca e/ou percepo de
sentido do conhecimento o levou, de forma consequente, aos primeiros gestos
de construo de uma histria nacional para o Brasil, a partir do estudo de textos
que, como j apontado, considerava fundantes, uma vez que so articulados, em
proveito da formulao de uma escrita coerente para o passado, ou melhor, para
a escrita do/sobre o passado, no caso, do Brasil. Afirma valer-se das sugestes
valiosas de Aleida Assmann para estabelecer clara distino entre os textos e
restos/vestgios do passado, demarcando as diferentes formas de sua apreenso
e, tambm, o percurso de seu prprio trabalho interessado no estudo das
complexas relaes que enredam histria e memria, a partir de textos que
elaboraram reflexes sobre a histria e sobre o momento vivido, na tentativa de
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Marcia Naxara
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Historiografia, memria e
percursos de uma reflexo
ensino
de
histria:
Resumo
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Palavras-chave
Abstract
In one of his last published texts, Manoel Luiz Salgado Guimares addressed the tensions and
paradoxes involved in the relationship between history writing and history teaching, and presented
both operations as constitutive of two inseparable dimensions of the construction of historical
knowledge and the historians craft. This article aims at revisiting the texts Guimares published
from the late 1990s on, pointing to some of the theoretical problems that have permeated his
reflections on history education and writing as forms of meaning making, as well as ways of using
the past. My purpose is to show that Guimares considerations on history teaching is one of the
unfoldings of his theoretical propositions about historiography.
Keywords
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1
O Seminrio Ensino da Histria: Memria e Historiografia ocorreu entre 2 e 4 de junho de 2008, como parte
das atividades do projeto Culturas polticas e Usos do passado Memria, Historiografia e Ensino de Histria,
que reuniu um grupo de professores de diferentes universidades do Rio de Janeiro. O evento deu origem ao
livro A escrita da histria escolar: memria e historiografia, que rene os trabalhos ento apresentados, entre
eles, a conferncia de abertura de Manoel Salgado (ROCHA; MAGALHES; GONTIJO 2009).
2
Nas palavras de Beatriz Sarlo, a histria no acadmica, mesmo aquela praticada por profissionais da rea,
escuta os sentidos comuns ao presente, atende as crenas de seu pblico e se orienta em funo delas,
conectando-se ao imaginrio social contemporneo (SARLO 2005, p. 15).
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seus objetos, a formulao de problemas e de pautas especficas de investigao, igualmente se fazia necessrio
o trabalho de edio crtica e comentada de textos como forma de se constituir um corpus de fontes possveis
de pesquisa. Essa preocupao estava na base de um dos importantes projetos de Manoel Salgado, que se
concretizou postumamente com a publicao do Livro de fontes de historiografia brasileira, composto por
discursos, dissertaes e memrias, publicados na revista do IHGB, ao longo do sculo XIX, transcritos em sua
ortografia e pontuao originais e acrescidos de elucidativas notas do seu organizador (GUIMARES 2011).
7
O texto de Certeau, citado por Manoel Salgado, corresponde primeira verso, includa na edio brasileira
da obra organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, Histria: novos problemas, em 1976, dois anos aps
a publicao no original francs Faire de lhistoire. O estudo, revisto e ampliado, reapareceu sob o ttulo A
operao historiogrfica, no livro Lcriture de lhistoire, de 1975, cuja primeira edio no Brasil data de 1982.
8
Para uma anlise do impacto terico da virada lingustica na histria intelectual, ver PALTI 2012, p. 19-167.
136
137
Na elucidao dessa metfora, vale retomar o conceito lapidar da teoria psicanaltica freudiana, tal como
formulado em Totem e Tabu [1913], onde Freud afirma que o narcisismo no meramente um estgio
passageiro na histria libidinal do sujeito, e sim uma estrutura permanente que continua a existir apesar das
reestruturaes libidinais posteriores (FREUD 2006, p. 92). No conjunto de trabalhos de Manoel Salgado, uma
apropriao mais direta de textos do criador da psicanlise, como Totem e Tabu e Moiss e o monotesmo,
encontra-se em uma parte do captulo O presente passado: as artes de Clio em tempos de memria, quando
analisa o papel da evocao e da lembrana ritualizada como atos constitutivos e fundadores da vida coletiva
(GUIMARES 2007, p. 32-34).
11
Cabe destacar que, alm do texto referido, ainda no ano 2000, Manoel Salgado publicou dois artigos que
se tornaram referncias primorosas e seminais para a pesquisa em histria da historiografia: Reinventando
a tradio: sobre antiquariato e escrita da histria (2000b) e Histria e natureza em von Martius:
esquadrinhando o Brasil para construir a nao (2000c).
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A esse respeito, possvel identificar uma aproximao das reflexes de Manoel Salgado daquelas formuladas
anteriormente por Afonso Carlos Marques dos Santos. Em artigo publicado em 1986, j assinalando uma
recepo dos argumentos de Pierre Nora, Santos questionava o papel da memria no debate terico acerca de
uma historiografia que se pretendia crtica e renovadora e conclua que uma abordagem da produo histrica
ultrapassava o territrio especfico dos historiadores, devendo se inscrever em um estudo crtico mais amplo
sobre a cultura (SANTOS 2007, p. 94). Para uma anlise e avaliao da contribuio dos artigos de Afonso
Carlos na constituio da rea de pesquisa em histria da historiografia no Brasil, ver ARAUJO 2012.
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Resumo
144
Texto de homenagem, ele trata de situar a importncia da obra e do trabalho acadmico de Manoel
Luiz Salgado Guimares, historiador brasileiro falecido em 2010, para a consolidao do campo dos
estudos de historiografia na Universidade brasileira. Definindo-o como um mestre, e um mestre de
rigor, o texto procura avaliar os aspectos inovadores do trabalho desenvolvido pelo professor Manoel
Luiz Salgado Guimares, bem como indicar os caminhos que foram abertos pela sua militncia nos
campos do ensino e da pesquisa. Aborda as inmeras facetas de seu trabalho e se esfora para
traar um perfil, no s do acadmico, mas do homem pblico, do cidado, e porque no do amigo
que foi fundamental com seus escritos, com suas aulas, com suas atividades de orientao, para a
obra e a vida dos muitos que lhe conheceram. Este um texto que busca fazer o luto, da melhor
maneira que possvel, fazendo da morte de algum o estmulo para a vida, para a continuidade
de uma herana, instaurando a responsabilidade naqueles que ficaram de seguir a obra inacabada,
refundindo vida naquele que nos deixou vivo uma importante parte de si mesmo: o pensamento.
Palavras-chave
Abstract
Text of homage, it tries to situate the importance of the opus and the academic work of Manoel
Guimares Luiz Salgado, Brazilian historian who died in 2010, to the consolidation of the field of studies
in the historiography of the Brazilian University. Defining him as a master, and a master of rigor, the
text seeks to evaluate the innovative aspects of the work developed by Professor Manoel Luiz Salgado
Guimares as well as indicating the paths that were opened by his activism in the fields of teaching and
research. It addresses the many facets of his work and strives to draw a profile, not only the academic,
but the public man, the citizen, and why not, of the friend who was fundamental in his writings, with
their classes, with their orientation activities, for the work and lives of many who knew him. This is
a text that seeks to mourn, as best it is possible, making the death of someone stimulus for life, for
the continuity of an inheritance, providing responsibility on those who are supposed to continue the
unfinished work, recasting life in that who left us alive an important part of himself: his thought.
Keywords
Um Mestre de Rigor
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146
a mesma importncia para uma maior exigncia de rigor por parte daqueles
que produzem historiografia no Brasil que aqueles que foram seus mestres
para a historiografia ocidental contempornea. Se Paul Ricouer, outra presena
constante na produo acadmica do mestre brasileiro, tivesse conhecido, como
ns conhecemos, o Manoel Salgado professor de cursos de graduao e de ps-graduao, o orientador de monografias, dissertaes e teses, o autor de textos
meticulosamente escritos, eruditos, embasados em interminveis horas de
leitura e anotaes, escritos e reescritos com a insacivel busca da perfeio, no
hesitaria em coloc-lo na companhia da trade que nomeou de mestres de rigor.
Manoel Luiz Salgado Guimares reconhecidamente um dos responsveis
principais pela afirmao do campo dos estudos de historiografia no Brasil.
Ele, com muito afinco e apesar de muitos o aconselharem a fazer histria
mesmo, histria de verdade, se empenhou na consolidao de um campo
de pesquisa em torno daquelas problematizaes que foram colocadas para os
historiadores pelas obras no s de Foucault, Certeau, Elias, mas do prprio
Ricoeur, de Franois Hartog, de Hayden White, de Roland Barthes, de Reinhart
Koselleck, entre outros, que inquiriam o fazer histria l onde ela se materializa:
na produo do texto, na narrativa, na escrita.
Suas pesquisas acadmicas se debruaram sobre a historicidade das
formas de se escrever a histria no Brasil, o que implicou pensar tambm,
assim como fizeram seus mestres, na racionalidade que presidia essa prtica
em um dado momento, na historicidade das prprias regras que presidiram
a disciplina em nosso pas, em pensar a histria das instituies em que
essas obras de histria foram produzidas, em tratar das diferentes condies
histricas que possibilitaram e convocaram dadas maneiras de se escrever a
histria entre ns, em abordar os contextos de recepo dessas obras, que
estratgias polticas e narrativas as presidiram. A obra do Manoel Salgado,
desde o texto sobre a historiografia produzida pelos membros do Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro, que o tornou conhecido no mundo acadmico
(GUIMARES 1988) texto exaustivamente citado e at plagiado entre seus
pares, que se relacionava com o tema de sua Tese de Doutorado, escrita em
alemo, que permaneceu indita durante tanto tempo e que finalmente ganhou
o formato de livro (GUIMARES 2011) , foi sempre uma interrogao sobre
os autores que fizeram a historiografia brasileira, sobre os lugares sociais e
institucionais dessa produo, mas, principalmente, sua interrogao foi sobre
a que usos polticos serviu a escrita da histria em nosso pas (GUIMARES
1989). Ao contrrio do que fazia crer dadas crticas que recebia, a obra do
Manoel foi uma obra radicalmente poltica, ela foi uma interrogao constante
sobre o gesto poltico que marca o escrever a histria, a dimenso poltica, mas
tambm a dimenso tica e esttica que est implicada no fazer historiogrfico,
da porque gostasse tanto dos mestres citados por Ricoeur e do prprio Ricoeur,
cujas reflexes sobre a historiografia tambm articulam essas trs dimenses,
sem deixar de ser, tambm, a pergunta pelo tipo de racionalidade que preside
o texto em anlise. Quem o conheceu sabe que, embora fosse uma pessoa
bastante afetiva, sensvel e emotiva, aspectos que no separava em sua vida
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Um Mestre de Rigor
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autor, como persona pblica, mas que por vezes me vem como o nome de uma
pessoa, na intimidade da vida privada, na afetividade de relaes fraternas.
Me pus a pensar que Manoel Salgado eu desenharia para vocs leitores, que
perfil eu delinearia dele, que narrativa eu faria desse sujeito, que omisses
seriam inevitveis ou imperdoveis, que outros Manois possveis seria preciso
dizer aqui. Preferi fazer a escolha por aquele Manoel que para mim teve no
apenas uma importncia privada, uma importncia fraterna muito grande, mas
uma importncia pblica, poltica, tica, o Manoel Salgado mestre de rigor, o
historiador que desempenhou um papel central e decisivo no desenvolvimento
dos estudos de historiografia entre ns.
Desculpem se termino este texto com um rapidssimo ensaio de ego-histria. Conheci o Manoel Salgado em um Simpsio Nacional de Histria
realizado no Recife, no ano de 2001. A Associao Nacional de Histria, sempre
a ANPUH-Brasil, a nos aproximar daqueles de quem acompanhamos o trabalho
de longe. Eu havia introduzido a disciplina de historiografia brasileira numa
reforma curricular feita no curso de graduao em historia da Universidade
Federal da Paraba Campus de Campina Grande e garimpando textos nacionais
que tratassem do assunto, que fossem alm dos clssicos de Jos Honrio
Rodrigues, Otvio Tarqunio de Souza, Nelson Werneck Sodr, Jos Roberto
do Amaral Lapa, Francisco Falcon e Nilo Odlia, o que na poca, anos oitenta,
era muito difcil, li fascinado o texto que nasceu clssico do Manoel Salgado
sobre a historiografia feita no IHGB. Em 2001, em pleno meio dia, no intervalo
para o almoo, encontro no estacionamento em frente ao prdio do Centro de
Filosofia e Cincias Humanas da UFPE, um grande amigo sergipano, professor
da Universidade Federal de Sergipe, Francisco Jos Alves, que havia conhecido
no Simpsio da ANPUH ocorrido em Belm, quando nosso interesse comum
por teoria da histria nos levou a cursar um minicurso proferido pelo professor
Arno Wehling. O Francisco estava acompanhado por mais duas pessoas, que me
apresentou, uma delas era o Manoel Salgado. Entre constrangido e fascinado por
ter minha bibliografia ali em frente, aceitei o convite para almoarmos juntos.
O que logo me chamou ateno no Manoel foi, alm de sua beleza fsica, de seu
apurado senso de humor, aspecto que logo nos identificou, pois sua fina ironia
levou ao almoo logo se tornar um momento de muita descontrao, onde a
presena do riso foi uma constante, foram seus modos refinados, sua figura
de gentil homem, de cavalheiro, sua educao refinada, o que costumamos
chamar na Paraba, de sua finura. Mas, tambm me impressionou sua erudio,
seu domnio de autores e ideias, seu conhecimento de uma bibliografia da qual,
com muito esforo, vinha tambm tentando me aproximar. Nasceu ali uma
amizade para a vida toda, uma amizade na vida e nas ideias, uma amizade
que foi marcada pela criao em conjunto de espaos de discusso de ideias
e de afirmao do campo dos estudos historiogrficos no Brasil. Ele com sua
generosidade me deu essa oportunidade insubstituvel de conviver com um
mestre e com muitos de seus amigos e discpulos, com os quais muito aprendi,
com os quais continuo aprendendo e dos quais me tornei amigo. Embora o rigor
talvez no seja propriamente o que me caracterize como historiador, tenho talvez
Um Mestre de Rigor
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uma mente mais indisciplinada para isso, minha indisciplina meio freyreana
me leva at a desconfiar de dados rigorismos, por paralisantes da criao que
podem ser e eu sempre me perguntei at que ponto o Manoel partilhava das
minhas viagens, embora tenha tido nele um constante ouvinte e interlocutor,
alm de um prefaciador generoso (GUIMARES 2007b) , ele sempre soube
da importncia que mais do que seus escritos, suas palavras, suas avaliaes
e opinies sempre tiveram para mim. Ele foi tambm o meu mestre de rigor.
Embora tenha, assim como seus mestres de rigor, apontado para a escrita da
histria como o momento decisivo de nossa prtica historiadora, o Manoel no
deixou de dar bastante nfase no que seria o segundo momento da operao
historiogrfica, ou seja, a fase da disciplina, para Michel de Certeau, ou a fase da
explicao/compreenso, para Ricoeur. Eu talvez enfatize em demasia a terceira
fase, embora no deixe de ter preocupaes disciplinares e de ordem terico-metodolgica. Se isso agradava meu mestre, infelizmente no mais saberei.
Descendente de portugueses, talvez o Manoel tenha sempre querido fazer
jus ao seu nome. Como nos lembra Temstocles Cezar (GUIMARES 2011),
tal como seus antepassados, o Manoel foi um viajante, um homem salgado
pelas travessias dos mares. Manoel em suas viagens, sempre dirigidas por
todos os instrumentos de orientao possvel, uniu espaos de pensamento que
estiveram apartados, nos abriu os olhos e os portos para outros navegantes e
outras ideias que velejavam em outros mares. Uniu a tradio historiogrfica
alem, na qual foi formado, tradio da historiografia francesa, sem descurar
do aporte de outras culturas historiogrficas. A obra do Manoel significou uma
lufada de ar fresco, a chegada de uma nau trazendo boas novas. Como um
viajante, um migrante na vida e no pensamento talvez por isso tenha feito
do Cear e dos cearenses sua terra e conterrneos eletivos, tenha encontrado
nos paus-de-arara seus parentes de viagem, seus amigos de mar, sol e sal , o
Manoel nos proporcionou como professor, como palestrante, como orientador,
numa simples conversa, viagens inesquecveis para o mundo do pensamento,
do passado e dos sentimentos. Quem o conheceu sabe como gostava de contar
sobre suas viagens, como gostava de escutar sobre as viagens alheias, mesmo
que fosse uma acidentada viagem ao deserto do Jalapo. Viajava nos textos que
lia, convidava para viajarmos nos textos que escrevia, transformava as aulas que
ministrava numa viagem sem alucingenos. Manoel nos ensinou que possvel
rigor na viagem, mtodo na pescaria e na caa em textos alheios, meticulosidade
nas travessias. Ningum assume o nome Salgado impunemente, ele se destina
a dar saber e sabor as vidas das quais fala e com as quais convive. Ser o sal da
terra, da nossa terra, em termos de estudos historiogrficos, foi a grande obra e
tarefa do mestre Manoel Luiz Salgado Guimares. Aquele que acima de tudo, foi
tempero e alimento em nossas vidas. Aquele que no recusava o convite para
um bom repasto, que no resistia aos atrativos de um prato, de um doce, de um
salgado, sabia que o sabor fundamental em tudo o que se faz, que a escrita da
histria pode ser alimento para paladares rigorosos e refinados como o seu, mas
que pode tambm desandar em gororobas intragveis. Se ele foi um mestre
de rigor, isso no implicou numa obra e numa vida inspida e sensaborona.
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Seus escritos, suas palavras, suas ideias, rolias de tanto serem lapidadas,
rolavam acicatando nossas papilas gustativas cerebrais, provocando que novas
ideias fossem salivadas, que sassemos de sua escuta umedecidos e em estado
interessante, prontos para dar vida a novos escritos e a novos saberes.
Termino convidando a que todos faamos jus a nosso mestre de rigor.
Que continuemos a obra que ele iniciou, essa a dvida que temos para
com ele. Afinal, como chama ateno Certeau, um dos seus mestres de
rigor, o historiador algum sempre em dvida com os mortos, com aqueles
que se foram e hoje j se dizem no passado. Se temos uma dvida com o
Manoel, por tudo que ele significou para ns, em nossas vidas e em nossas
obras, que a resgatemos, continuando por ele a obra que iniciou, trilhando o
caminho do rigor e do respeito pelo outro, pelo diferente, pelo discrepante,
pelo distinto, que sempre foi a sua marca. Faamos do campo dos estudos
de historiografia no apenas um lugar de viagem, mas tambm um lugar de
encontro, de partilhamento, tal como ele construiu em vida. Quem viaja pode
faz-lo para fugir, mas tambm para encontrar, para se encontrar. As viagens
historiogrficas do Manoel fizeram a historiografia brasileira encontrar um lugar
prprio, colocar-se entre as demais historiografias com um estatuto singular, fez
com que superssemos, tambm nesse campo, nosso complexo de vira-latas e
vssemos o que fomos e somos capazes de produzir, a contribuio original ou
no que pudemos dar, dimensionando e redimensionando a nossa contribuio,
estando essa submetida ou no a um rigor na forma e no contedo. Mas acima
de tudo, lembrarmos que, alm do rigor que o notabilizava, o Manoel sabia rir,
sabia rir de si mesmo, atitude de mxima sabedoria, pois evita o pedantismo
e a arrogncia e mantm a humildade e a simplicidade necessrias para que
se continue ouvindo, respeitando e aprendendo com os demais; sabia rir das
situaes que enfrentava; com aqueles com quem convivia; daquilo de muito
srio com que se ocupava; pois como proposto por Hayden White, a ironia
o tropos que caracteriza o trabalho historiogrfico em nossos dias, e o prprio
trabalho no campo da historiografia poder-se-ia dizer irnico, j que o texto de
historiografia visa por em suspeio e em suspenso s regras que produziram
dada escrita da histria, ele visa suspender a adeso imediata, por em questo
a evidncia do texto do historiador. O campo dos estudos de historiografia, do
qual ele foi um pioneiro, afirma-se medida mesmo que se adota uma atitude
de distanciamento, de retorno irnico sobre aquilo que fazem os historiadores,
em dada poca, em dada sociedade, em dado regime de historicidade (HARTOG
2013). O fato de ter sido um amante do riso talvez nos permita concluir que a
sua melhor definio poderia ser: Manoel Salgado, um mestre do ri(r)gor.
Referncias bibliogrficas
CERTEAU, Michel de. A Escrita da Histria. 2 ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2002.
ELIAS, Norbert. La Dynamique de lOccident. Paris: Calmann-Lvy, 1975.
Um Mestre de Rigor
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Artigos
articles
Sergio Meja
[email protected]
Profesor asistente
Universidad de los Andes
Calle 18, n 0-19
2501 - Bogot
Colombia
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Resumen
Este artculo es un comentario de ltimos das coloniales en el Alto Per (1896-1901), del
historiador boliviano Gabriel Ren Moreno (1836-1908) y su objetivo, inscribir el libro en la
historia de la interpretacin republicana americana en el siglo XIX. Aspiro a demostrar que su obra
trascendi el paradigma historiogrfico americano del siglo XIX el de las historias republicanas
monumentales y que por su actitud ante el tema y ante la misma escritura de la historia, Moreno
super a su tiempo y abri nuevos horizontes a la interpretacin americana. Explico esta libertad
intempestiva, adelantada a su tiempo, con la lectura detallada de la obra y con recurso a su
biografa, marcada por el desarraigo patritico.
155
Palabras clave
Abstract
This paper is a commentary on ltimos das coloniales en el Alto Per (1896/1901), a work by
the Bolivian historian Gabriel Ren Moreno (1836-1908). Its aim is to situate this historical text in
the context of nineteenth-century Latin American historiography. I set out to show that this work
transcended then prevalent historiographical paradigm that of monumental republican histories
and that, due to his attitude toward both his subject matter (clearly forwarded in the book
title) and historical writing in general, Moreno went ahead of his own time, thus opening new
horizons to republican interpretations of Latin American history. I interpret the works insightful
and untimely freedom with by means of a close-reading of ltimos das and with recourse to the
authors biography, which was marked by patriotic distance.
Keywords
Sergio Meja
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Sostengo en estas pginas que con la obra de Gabriel Ren Moreno (Santa
Cruz de la Sierra, Bolivia, 1836 Valparaso, Chile, 1908) terminan un siglo y
un modo de la interpretacin americana. Su obra fue intempestiva, fuera de
tiempo y sazn; su modo, la irona; su mtodo, la zapa erudita, con la que min
las certidumbres patriticas de su siglo. Su libro ltimos das coloniales en el
Alto Per, fue obra adelantada a su tiempo (MORENO 1896).1 Por la poca en
que Bartolom Mitre completaba su biografa de Manuel Belgrano, y con ella el
declogo gratificante, excesivo y sersimo del patriotismo argentino, y cuando
Barros Arana aun no daba largada a sus 16 volmenes sobre el broncneo orden
chileno, Moreno escriba un libro irnico y crtico en el que miraba a Amrica con
ojos nuevos.
Apunto a comprender su libro en la historia de la interpretacin americana,
a la que me he referido con la expresin historicismo americano (MEJA 2007;
2009). No hablo de la historia del concepto de Amrica, ni de la bsqueda de
ideas americanas a la manera de los americanistas, sino de la escritura sobre
Amrica que prolifer desde el siglo XVI y que a lo largo del siglo XIX sirvi
para ordenar, desde Canad hasta la Argentina, pasando por Hait y el Brasil, el
patrimonio histrico de las nuevas repblicas. En el anaquel decimonnico de la
biblioteca americana, ltimos das ocupa el lugar finisecular y trascendental, en
el sentido de camino al porvenir.
El colombiano Germn Colmenares sostuvo en 1987 que los historiadores
americanos del siglo XIX suscribieron en sus obras convenciones historiogrficas
opuestas a la cultura (COLMENARES 1987).2 Quiso decir que adoptaron
convenciones europeas, con lo que omitieron observar de primera mano sus propias
sociedades. Colmenares pierde de vista un hecho fundamental: esas convenciones
historiogrficas evolucionaron durante siglos, incluso milenios, en comunidades
letradas; en ciudades-estado, imperios, cortes, iglesias y escuelas; y en diversos
momentos y lugares muy anteriores a los desarrollos europeos modernos. Con
la consolidacin del mundo atlntico, las convenciones tradicionales siguieron su
evolucin tanto en Europa como en Amrica. No eran otras que la prosa narrativa
cronolgica; el comentario moral de los hechos; la invocacin de alguna forma de
justicia; y la dedicatoria a un poder de este mundo.
El argumento de Colmenares, si bien lcido, padece de una enfermedad
cultural comn en las culturas escritas americanas: la inseguridad con respecto
a nuestro lugar en el mundo. Ello explica las repetidas salidas en falso en la
bsqueda de referentes culturales. Colmenares dedica las ltimas pginas de
Convenciones al libro de Moreno. A diferencia de sus comentarios sobre las
historias de Jos Manuel Restrepo, Bartolom Mitre y Diego Barros Arana, por
ejemplo en cada una de las cuales expone una convencin contra la cultura ,
de ltimos das solo pondera el lenguaje rico y matizado. No percibe diferencias
1
Moreno reuni y trascribi documentos inditos que public en un segundo volumen (MORENO 1901).
Las cuatro quintas partes del libro fueron publicadas por entregas entre 1876 y 1898 en los Anales de la
Universidad de Chile, la Revista Chilena y la Revista de Artes y Letras, las tres de Santiago de Chile.
2
En este estudio Colmenares solo tuvo en cuenta a una seleccin de historias suramericanas, con exclusin
de haitianas, otras caribeas, brasileas, centroamericanas, mexicanas y norteamericanas.
entre ltimos das y las otras historias que comenta. De hacerlo, acaso habra
cerrado su ensayo con una contradiccin de trminos.
No est de ms una nota de aviso al lector. Moreno fue un gran escritor,
y los grandes escritores deben ser comentados con cierta humildad, pero sin
reverencia. El comentador hara un esfuerzo improductivo si acallara su voz.
As pues, ilustro con riqueza y sistemticamente la prosa histrica de Moreno,
verdadero tema de este artculo: una prosa que fue resultado de su particular
comprensin de la escritura histrica y de una sensibilidad entonces nueva ante la
devocin y el deber patriticos. Le pido al lector que acepte la citacin sistemtica
(ordenada analticamente por m), pues es la prosa de ltimos das la que ubico
en la evolucin histrica del historicismo americano. Es decir, en la larga y plural
tradicin de interpretacin y comentario sobre las repblicas en Amrica.
Este artculo es un avance del penltimo captulo de un libro en preparacin
sobre la historia, entre las ltimas dcadas del siglo XVIII y las primeras del
XX, de lo que he llamado el historicismo americano. El captulo sobre Moreno
vendr precedido por un estudio sobre la Historia jeneral de Chile (1884-1902)
de Diego Barros Arana y, en particular, sobre la actitud melanclica del autor
al cabo de un trabajo de veinte aos, pues Barros Arana alcanz a comprender
que la suya sera la ltima historia monumental americana escrita para contener
toda la historia relevante de una repblica. El captulo subsecuente y final ser
un estudio sobre la figuracin de la repblica entre los poetas modernistas, que
ya no ser histrica, monumental y adusta, sino breve, crtica y pronunciada
desde las alturas del Parnaso de la poesa.
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Como las mejores historias, ltimos das es un libro a dos niveles: una
susceptible de demostracin con documentos y pruebas, y que debe restringirse
a un periodo breve y una pregunta clara. Y otro tema mayor, de impronta en
la cultura y la poltica, sobre el que concluye: en Charcas existi una sociedad
educada y floreciente, pero los caudillos de Bolivia la han sometido a la vergenza
y al miedo. Moreno previ tres partes que titul Arzobispo nuevo, Rei nuevo y
Presidente nuevo, de las que escribi solo las primeras dos. En ellas despliega las
interacciones de cinco grupos de personajes de la Chuquisaca colonial, cudruple
corte eclesistica, forense, literaria y social (MORENO 1896, p. 4). Del gremio
eclesistico toma al arzobispo Benito Mara Mox y Francol; de la Audiencia, a
su presidente, Ramn Garca Len de Pizarro; a sus primeros contendores, los
hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 155-171
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7
Moreno utiliza para esta descripcin un retrato al leo que colgaba en la Sala Capitular de la Catedral
Metropolitana de Chuquisaca.
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164
Mox orden una colecta patritica en las provincias altas. Los oidores
vieron en ello un desacato contra su poltica de callar y no innovar. Moreno
concluye que fue entonces cuando penetr claramente en el intelecto de la
plebe de Chuquisaca la idea cvica, por no darle otro nombre, sobre la existencia
de ciertos motivos que deban unir en comunidad jeneral esta provincia con
las dems del Alto Per (MORENO 1896, p. 233). Explica Moreno que los
doctores criollos observaban la madeja de la crisis mientras hacan aspavientos
de lealtad a Fernando VII. Entonces entro Goyeneche en la ciudad, y cuando
present sus pliegos el oidor regente, Antonio Boeto, objet la legitimidad del
gobierno provincial tumultuario que los haba espedido (MORENO 1896, p.
450). Goyeneche increp que andarse enredando en leyes era rayano en
infidencia, a lo cual el regente se dispar en protestas a la voz de Yo traidor,
yo traidor! Goyeneche aclar que tena facultad de hacer presos y requiri la
guardia. Intervino el arzobispo para restituir la calma y entonces Goyeneche
entreg las cartas de Carlota Joaquina para Pizarro y Mox. Con esta explosiva
reunin Moreno cierra su libro. Quedan pendientes las intrigas de los doctores
criollos y los movimientos populares de mayo en Chuquisaca y de julio en La
Paz. Si bien no las narra, Moreno dedica a las intrigas de los doctores doscaras
los comentarios finales del libro:
Los instigadores de la raza no necesitarn de ms para sus planes, tan
solapados como los de Goyeneche [] Sub fallacia regina, quis non
fallitur et fallit? Engaar i ser engaado: he ah el medio social dnde i
cmo deben llevarse a cabo las ms grandes cosas en el reino del engao
[...] Falacia as en el cimiento como en el coronamiento del edificio de la
independencia (MORENO 1896, p. 471-472).
165
8
Sinforosa del Rivero, su madre, fue hija de Juan Rivero y de padre no conocido, como se lee en su partida
de bautismo publicada por Hernando Sanabria (Cf., ROCA 1988, p. 42-43).
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su padre correspondi desde Chile, y sinti mucho no verlo ms, pues muri
antes de su primer retorno a casa. A su madre, Sinforosa del Rivero, la vio en
Santa Cruz luego de quince aos de ausencia. A los quince aos dej Santa
Cruz, la patria que ms quiso, y a los veinte su pas, sobre el que escribi hasta
su muerte. Su extranjera se convirti en exilio cuando quiso servir a su pas
de la peor manera, como agente diplomtico durante la Guerra del Pacfico.
Moreno fue portador de la propuesta chilena al presidente Hilarin Daza, en
que se ofreca a Bolivia cambiar de bando. Salt el escndalo cuando Daza
hizo pblicas las llamadas bases chilenas, y Moreno fue acusado de traicin.
Tena cuarenta y tres aos.9 Su intervencin diplomtica debi figurrsele, con
el tiempo, similar a los desbarres del arzobispo Mox: picado de diplomtico,
sali con el rabo entre las patas. Hasta su muerte, Moreno vivi al margen de
cargos, obediencias, aspiraciones y honores, libre de negociaciones patriticas.
Testigo del arrebatado nacionalismo chileno, ajeno a la carrera de honores y
cargos e ignorado en Bolivia, escribi su obra mientras cuidaba los libros de los
bachilleres de Chile.
La bostoniana Mercy Otis Warren, historiadora de la revolucin
norteamericana, fue hija, esposa y anfitriona de los principales patriotas de
Boston: James Otis, James Warren y John Adams. El colombiano Jos Manuel
Restrepo fue secretario del dictador antioqueo Del Corral, luego constituyente,
despus ministro de Colombia y entonces historiador. El haitiano Thomas Madiou
fue secretario personal de Inginac; ministro de Estado de Boyer; rector del
Lyce National dHaiti; director del peridico oficial del rgimen de Soulouque,
Le Moniteur; ministro de educacin en el rgimen de Geffrard desde 1866.
Gustavo Adolpho Varnhagen fue cortesano de Dom Pedro II, miembro del
Instituto Histrico Geogrphico Brasileiro e investido Vizconde de Porto Seguro
en el Imperio. En fin, el argentino Bartolom Mitre fue presidente, el ecuatoriano
Federico Gonzlez Surez arzobispo y Barros Arana perito de lmites, rector de
la universidad y eminencia gris de sucesivos regmenes. Moreno fue, como l
mismo deca, carga-papeles.
Fue nombrado bibliotecario interino de la Biblioteca del Instituto Nacional
de Chile en 1868, luego de la renuncia del titular (Mss. GRM 146, F.1). Interinos
fueron sus nombramientos como profesor de literatura en el Instituto Nacional
en julio de 1887 y en enero de 1888 (Mss. GRM 146, F.3). En febrero de 1892,
luego de la guerra civil que termin con el suicidio del presidente Jos Manuel
Balmaceda, Amuntegui Solar publicaba en El Heraldo de Santiago una defensa
de la Biblioteca del Instituto y de su director (Mss. GRM 149). Afirmaba que pocos
literatos americanos hai que conozcan ms a fondo la vida social y poltica de estas
repblicas y que fueran ms capaces de narrarla con imparcialidad y elevacin
de miras. Como profesor, Moreno escribi un Manual de literatura preceptiva
que en 1892 era comentado por E. M. Hostos en el peridico La libertad electoral
como libro de gran libertad y personalidad (Mss. GRM 150). De su ctedra de
literatura en el Instituto Nacional, Moreno dijo que era el mayor logro y promocin
9
El asunto dio lugar a un folleto suyo contra el presidente boliviano: MORENO 1881.
que haba alcanzado en su vida. Con sus estudiantes lea y comentaba tragedias
de Eurpides, La Vida es Sueo de Caldern, Los Persas de Esquilo, Hcuba de
Eurpides y Atalia de Racine, entre otros clsicos (Mss. GRM 126).
Celibato, soledad y flirteos con la muerte
Su soledad ntima puede vislumbrarse en los recuerdos de Rosala Calvo
Cruchaga, hija de una familia santiaguina que lo acogi en su fundo, donde el
bibliotecario pasaba temporadas de descanso.10 Recordaba Calvo que Moreno era
retrado, mas consecuente y leal con los que llamaba sus amigos, y que no era
buen jinete, lo que indica que no era amigo de asociaciones masculinas gregarias.
Les propuso matrimonio a Flora y a Luca, hermanas de Rosala, quienes lo
rechazaron. En las veladas con la familia hablaba mucho sobre Santa Cruz, a la
que se refera como all. Y le causaba placer pisar las bellotas en los paseos,
lo que sugiere el disfrute en solitario. A quienes lo conminaron a casarse o lo
reconvinieron por su soltera, les contest en el prlogo de su Biblioteca boliviana:
Algunas personas amigas han dado en la flor de preguntar al autor de
este catlogo, por qu no se casa? He acometido el presente inventario
penetrado de una modestia infinita, llevndolo a cabo con heroica paciencia
i en mitad de los ms grandes conflictos Ir a parar a manos de un
centenar de coleccionistas i a las catacumbas de otras tantas bibliotecas.
Ir tambin a poder de las treinta i cinco personas, segn cuentas, que
se han servido deplorar de algn tiempo a esta parte el no haberme visto
casado i con hijos. Un respetable amigo de esta ciudad, diputado, gran
aconsejador de que se casen, enjendrador mui prolfico (once lejtimos en 9
aos), i que gasta mui mala ortografa, al hojear este catlogo, volvindose
hacia m con una mirada terriblemente injenua, me pregunt: I para qu
sirve todo esto?. Ah! Mi catlogo no ser, no, tan simple ni tan humilde
que vaya a buscarle (MORENO 1879, p. V).
167
Carta de Rosala Calvo Cruchaga de Aldunate Valds a Julio Salmn, Santiago, ene. 1932, publicada por
VSQUEZ MACHICADO 1937.
11
Carta de Gabriel Ren Moreno a Daniel R. Vives, Buenos Aires, 8 de febrero de 1882, compilacin e
introduccin de Jos Luis Roca.
10
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169
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170
WHITE, Hayden. Metahistory: The Historical Imagination of NineteenthCentury Europe. Baltimore: 1973.
171
Renata Sammer
[email protected]
Doutoranda
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
Rua Marqus de So Vicente, 225 - Gvea
22453-900 - Rio de Janeiro - RJ
Brasil
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Resumo
172
Este artigo concentra-se sobre a teoria da interpretao de Johann G. Droysen a fim de elucidar
alguns importantes aspectos de sua teoria da histria (Historik). Procuraremos demonstrar como
a teoria da causalidade aristotlica, alm de estruturar a segunda grande parte da Historik, a
Sistemtica (Systematik) onde encontramos o modo histrico de existncia, nas palavras de
Hayden White , pode ser relacionada s quatro etapas da teoria da interpretao droyseana.
Assim, ilustraremos como a filosofia metafsica de Aristteles fundamenta uma singular
compreenso do pensamento histrico que, sem negar a sua qualidade representativa, abarca
o notrio presentismo droyseano. Por fim, indicaremos como esta filosofia afina-se proposta
formulada por Droysen ao longo da Historik de fundar a Histria na tica.
Palavras-chave
Abstract
This article focuses on Johann G. Droysens theory of interpretation in order to elucidate some
important aspects of his theory of history (Historik). More specifically, it intends to show how the
Aristotelian theory of causality structures the second half of the Historik, the Systematik where
we find the historical mode of existence, as defined by Hayden White , and how it connects to
the four stages of Droysens theory of interpretation. It will be shown how Aristotles metaphysical
philosophy inspires a singular understanding of historical thinking, which without denying it as
a mode of representation also encompasses Droysens openly professed presentism. Finally, it
will be pointed out that this philosophy provides the main support for Droysens idea that History
should be founded upon Ethics.
Keywords
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*
173
1
[A] tarefa dos estudos histricos consiste em que se aprenda a pensar historicamente. No original: die
Aufgabe der historischen Studien ist, dass man historisch denken gelernt hat (DROYSEN 1977, p. 5). As
demais tradues ao longo do artigo so, quando no indicadas, de nossa autoria. Para uma ampla discusso
sobre a questo cf. CALDAS 2004.
2
Como no deixa de notar Pedro Caldas: a pretenso de dissoluo do sujeito no objeto levaria, segundo
Gadamer, o historista a cometer os mesmos equvocos do iluminismo. A crtica ao racionalismo feita pelos
autores historistas no seria suficiente para encobrir o mesmo pressuposto de ambas as tendncias de
conceitualizar a histria, a saber: desconsiderar a temporalidade como produtora de sentido, buscando a
empatia ou a norma como ferramentas que superariam o fosso entre as pocas (CALDAS 2006, p. 145).
Buscando dar conta da especificidade do pensamento de Droysen, Caldas props ultrapassar os limites do
historismo adotando o conceito de Bildung para a anlise que faz da obra de Droysen (Cf. CALDAS 2006,
p. 139). A proposta interessante, pois a Bildung, por ser inconclusiva e potencialmente ativa (CALDAS
2006, p. 149), traduz com propriedade a dimenso formativa da hermenutica droyseana e o presentismo de
sua teoria. Como nota Caldas, Gadamer reduz a conscincia histrica do sculo XIX ao historicismo adepto
de mtodo emptico (Einfhlung) conduzindo assim Droysen obscuridade. Obscuridade esta mantida e
propagada por pesquisadores contemporneos importantes como, por exemplo, Frank Ankersmit. Cf.
ANKERSMIT 2005, p. 193-241. Sobre a inesperada aproximao de Droysen a Heidegger cf. GADAMER 1976,
p. 48 apud WHITE 1987, p. 84.
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distino esta qual Droysen era sensvel: a tica em sua verso droyseana no
dogmtica, antes mantm a maleabilidade de sua homnima antiga.4 Se possvel
identificar luz da Terceira crtica certa flexibilidade na filosofia crtica kantiana,
reconhecer que o enlace entre o sensvel e o suprassensvel no determina a
experincia, tampouco seus fins,5 esse no parece ter sido o caminho escolhido
por Droysen que permanece crtico rigidez determinante da moral kantiana.
Como reflexo deste conflito irresolvel entre o geral e o particular, entre a
natureza espiritual e a natureza sensria, Droysen identifica dois sujeitos que tornam
a representao histrica possvel: um Eu emprico, temporalmente limitado, o ser-Eu (Ichsein) ao qual Droysen atribui a experincia sensvel, e um Eu geral e abstrato
capaz de dotar a experincia individual de universalidade, o Eu da humanidade
(Ich der Menschheit). A relao entre os dois de mtua projeo e referncia tem
como fim comum, nos diz Droysen, o lgos, que em termos droyseanos pode ser
compreendido como certa racionalidade intrnseca histria.
Mas h uma ressalva a ser feita: o sujeito droyseano que interpreta
tambm inconstante, um produto da histria, e, portanto o conceito de fim
(Zweckbegriff) que elabora, que rende universal, tambm varivel. Se a
referncia representao histrica no pode ser encontrada nas leis que regem
o mundo natural, tampouco o sujeito, malevel e inconstante pode oferecer a
referncia necessria coeso histrica. Como seria ento possvel o pensamento
histrico? Onde estariam guardadas as suas referncias? Se ao reconhecer a
historicidade do sujeito Droysen d origem ao problema da referncia, ele no
deixar de estabelecer uma coeso possvel para o pensamento histrico.
neste sentido que devemos compreender a teoria da interpretao droyseana
contemplada luz da teoria da causalidade aristotlica: se o sujeito que
interpreta diverso no tempo, ele jamais deixar de lidar com as aporias da
representao histrica.
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7
Droysen identifica no cosmos do mundo tico (der Kosmos der sittlichen Welt) o objeto do historiador. Seria
este mundo tico-histrico um universo fechado, onde, apesar de sua historicidade, possvel identificar certa
constncia, uma referncia imutvel fundada na natureza poltica, sensrio-espiritual, do homem dotado de
lgos para a filosofia poltica exposta na Historik? Devemos notar que o reconhecimento do mundo tico-histrico como um cosmos incompatvel com a interpretao que faz O. G. Oexle do historismo de Droysen.
Reconhecendo nesse movimento a coexistncia de cincias cujo objeto constitui um cosmos, e de cincias como
pesquisa que, iniciadas sobretudo com a revoluo kantiana que inverte a relao do conhecimento da
razo aos objetos e no mais dos objetos razo , Oexle v no positivismo, no materialismo e no idealismo
histrico cincias fechadas em um cosmos, pois lidam com um objeto finito. J Droysen e Weber, por exemplo,
teriam seguido a tradio kantiana e reconhecido que a cincia como pesquisa jamais alcana sua concluso
reinventando sans cesse seus prprios objetos (OEXLE 2001, p. 9). Buscaremos ressaltar o kantismo moderado
de Droysen indicando na apropriao que faz da teoria da causalidade aristotlica uma possvel definio do
campo do historiador, i.e., a referncia que estar base do prprio pensamento histrico.
8
to dia ti Cf. VLASTOS 1969, p. 294. G. Vlastos nota ainda que aition (em ingls cause) deveria ser
traduzido como because, pois respondem as perguntas iniciadas por um por que. Manteremos a traduo
j proposta de aition como causas uma vez que Droysen segue esta direo (Ursache). Inserindo-se na
tradio platnica de investigao do mundo natural tais questes podem ser assim exemplificadas: por que
passam as coisas a existir? Por que deixam de existir? Por que existem? (Plato, Phaedo 96a, 6-10). Mas
Plato teria atentado apenas para as causas material e formal, segundo Aristteles (Metafsica I, VI, 7). Cf.
VLASTOS 1969, p. 293.
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Methodik
Systematik
Material
Heurstica
Formal
Crtica
Eficiente
Interpretao
Final
Exposio
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No original: das Wesen der geschichtlichen Methode ist forschend zu verstehen, ist die Interpretation.
181
12
Cf. DROYSEN 1977, p. 205-08; CALDAS 2004, p. 131. Assim, para recuperar aqui o exemplo citato por
Droysen, Georg von Podiebrad defendeu o direito de Estado face s pretenses da Igreja, conquistando ainda
a independncia nacional da Bomia. Nele encontram-se, lembra Droysen, as idias de Estado, Igreja e nao.
Contudo, a compreenso de seu presente passado s podemos alcanar ao identificar o ponto histrico onde
se encontra. Este ponto encontramos apenas ao cruzar a linha de seu presente com a linha das configuraes
posteriores de Estado, nao e Igreja. Este mundo presente, conhecido, o mundo tico (sittlich) em sua mais
recente configurao, o que nos auxiliar a formular a pergunta histrica (historische Frage) e assim
encontrar o ponto histrico a partir do qual poderemos, atravs de nossa interpretao produzir novo sentido.
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do grande duelo com o Oriente asitico. Pertenceria apenas monarquia macednica, monarquia militar, de
conquistar a sia e de transformar a civilizao grega, ainda estreitamente municipal, em uma civilizao
universal. Droysen fez da poca alexandrina at ento considerada como uma era de decadncia e corrupo,
a grande poca, a poca decisiva para a histria do mundo, aquela que possibilitou o encontro e a fuso
da civilizao grega com a civilizao asitica. A fora, no caso, teria sido o instrumento indispensvel da
cultura. assim que a Prssia de Potsdam oferecia seus servios Alemanha de Weimar, aquela dos poetas
e dos filsofos. Em sua apologia monarquia macednica, Droysen no esquecera de louvar o corpo dos
oficiais macednicos, to ricamente providos do sentido de honra, instrumento da cultura grega no Oriente;
ele inaugurara assim esta aliana entre o corpo de professores e aquele dos oficiais, to caracterstica da
Alemanha oficial at a primeira grande guerra (ANTONI 1963, p. 80).
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No original: Nur in diesem ethischen Zusammenhang ist es richtig, wenn der Dichter sagt, da die
Weltgeschichte das Weltgericht sei.
15
Qualquer tentativa de reconhecer no presentismo droyseano ou em
sua exigncia pela parcialidade do historiador os antecedentes do decisionismo
ps-historicista seria frustrada, pois em sua teoria da histria, presentista e
antropocntrica, mantida a possibilidade de um encadeamento tico. Assim,
no apenas o Estado, o direito e as demais esferas ticas de atuao humana
surgem como objeto para o historiador, mas tambm e sobretudo a coeso
tica que as mantm, i.e. o seu fundamento humano que, apesar das variaes
das formas sob as quais se apresenta, permanece constante. Esta constante
mutvel, fruto da dialtica de algo em si contraditrio, que se conserva ao se
transformar sem descanso, servir como referncia comum ao pensamento
histrico. Se a limitao da tica aristotlica a ausncia de uma reflexo
sobre a histria, Droysen, ao contrrio colocar a histria ao centro de sua
tica estabelecendo assim uma possibilidade de coeso para as experincias do
homem no tempo.
Ter a tica como filosofia da histria, significa reconhecer um modelo
de racionalidade prprio histria, inconcluso, em deslocamento constante,
incapaz de limitar-se ao geral ou ao particular. A teoria da causalidade aristotlica
por questionar o ser desdobrando-o em causas distintas no sucessivas,
contudo complementares oferece um interessante pano de fundo teoria da
interpretao droyseana. Essa deve ser compreendida como atividade inconclusa
no apenas por ser incapaz de abarcar seus objetos definitivamente, mas por
ser sua funo o autoexame e o autoquestionamento incessantes.
Se os antigos nunca deixaram de se questionar sobre a relao entre a
excelncia humana e a ordem natural mesmo uma tica antropocntrica como
a aristotlica no se abstm desta indagao , o rompimento moderno com
esta tradio imporia gradualmente limitaes ao pensamento histrico. Afinal,
como possvel estabelecer critrios imutveis de verdade capazes de abarcar a
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186
187
Resumo
188
Neste estudo, pretendemos demonstrar que as ideias tericas de Fernand Braudel acerca da noo
de temporalidade se desenvolveram por oposio a algumas teorias da descontinuidade temporal
existentes no cenrio filosfico francs da dcada de 1950. Embora tenha usado como exemplo
de apologia da descontinuidade o livro La Dialtique de la Dure (1936) de Gaston Bachelard,
Braudel esboa tambm uma crtica s noes de descontinuidade de Georges Gurvitch. Um
autor que estar nos bastidores deste breve estudo o historiador Gaston Roupnel, que citado
de modo elogioso tanto por Braudel quanto por Bachelard. primeira vista, a rejeio das ideias
acerca da descontinuidade temporal por parte de Braudel parece ter sido antes o resultado de
uma atitude poltica do que a traduo de um consenso entre os historiadores do perodo.
Palavras-chave
Abstract
This study argues that Fernand Braudels theoretical ideas regarding temporality were developed
in contradistinction to a few theories of temporal discontinuity that were available in the French
philosophical landscape of the 1950s. Braudel mainly opposed Gaston Bachelards eulogy of
the discontinuity, as conveyed in La Dialtique de la Dure (1936), but also criticized Georges
Gurvitchs notions of discontinuity. An author who will be behind the scenes of this short study
is the historian Gaston Roupnel, who is quoted, in a laudatory way, both by Braudel and by
Bachelard. At first sight, Braudels rejection of the notions of discontinuity seems to have resulted
rather from his own political attitude than from a historiographical consensus on the issue.
Keywords
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*
Artigo vinculado ao projeto Tempo e Escrita: Ritmanlise e Potico-anlise em Gaston Bachelard, aprovado pelo Edital 01/2011 da FAPEMIG.
189
Acerca do tema dos embates terico-metodolgicos mais relacionados ao meio acadmico francs, ver:
REVEL 2010.
2
No meio acadmico brasileiro h uma considervel bibliografia que discute o tema. Ver: LOPES 2008; REIS
1994; 2004; 2008; RODRIGUES 2009; BARROS 2011.
1
190
191
3
J tratamos deste assunto em outros estudos de modo mais detalhado, publicados entre 2010 e 2012
(VOIGT 2010; 2011; 2012).
192
afirma que o tempo real no poderia portanto fornecer o instante; este provm
do ponto matemtico, isto , do espao. E, no entanto, sem o tempo real, o
ponto no seria mais que o ponto, no haveria instante (BERGSON 2006, p.
62). De outro, Bachelard afirma, com base nos escritos de Roupnel: a tese
de Roupnel realiza, portanto, a aritmetizao mais completa e mais franca do
tempo. A durao no passa de um nmero cuja unidade o instante. []
Roupnel diz que o Espao e o Tempo s nos parecem infintos quando no
existem (BACHELARD 2007, p. 42).
Aps ter lido sobretudo o captulo do livro de Roupnel acerca das relaes
entre tempo e espao, Bachelard encontra uma forma de responder leitura
que Bergson faz da teoria da relatividade einsteiniana. No h tempo sem
acontecimentos, no h um tempo vazio e infinito, no qual o espao deve se
adequar. Somente h tempo com seu espao correspondente, o qual converge
no instante como elemento-chave da relao entre ambos. Portanto, o instante
torna-se, para Bachelard, o centro de sua fenomenologia temporal.4
Roupnel escreve, em Silo, que apenas do presente que temos
conscincia, e que a durao uma construo artificial, uma trama feita de
atos descontnuos (ROUPNEL 1945, p. 147-149). Dessa forma, do ponto de vista
da conscincia, no possvel demonstrar a durao bergsoniana, mas apenas
o instante descontnuo. Assim, Bachelard encontra elementos para sofisticar
sua teoria da descontinuidade temporal, situando-a no somente no interior
da histria das cincias, mas tambm em relao memria, conscincia e
criao artstica.
Entretanto, em seu elogio a Roupnel, Bachelard faz questo de lembrar o
ofcio de seu amigo: o de historiador.
Roupnel, como historiador minucioso, no podia ignorar que cada ao, por
simples que seja, rompe necessariamente a continuidade do devir vital.
Se observarmos a histria da vida em seus pormenores, veremos que
ela uma histria como as outras, cheias de repeties desnecessrias,
anacronismos, esboos, fracassos e recomeos (BACHELARD 2007, p. 28).
Ver, para maiores informaes, artigos anteriormente publicados acerca do tema (VOIGT 2010; 2011; 2012).
193
194
para analisar outros livros de Roupnel, sobretudo aqueles que mais agradam ao
esprito dos Annales. Roupnel foi lembrado, em vrios necrolgios publicados
entre 1946 e 1949 sobretudo o escrito por Lucien Febvre como o historiador
que escreveu Histoire de la Campagne Franaise (1932), dedicado a uma
abordagem criteriosa de histria social, que fez Febvre sentir um tal perfume de
bosques e de campinas de terras recentemente remexidas e de vinhas em flor
(FEBVRE; ROUPNEL 1947, p. 479), logicamente associando-o a uma escrita de
histria ligada s longas duraes da terra e no ao acaso e descontinuidade
dos acontecimentos.
Como Febvre considera, ento, a narrativa acerca do tempo descontnuo
escrita por Roupnel em Silo? Na categoria de livros filosficos (FEBVRE;
ROUPNEL 1947, p. 480), isto , realizando uma separao entre o trabalho de
historiador e o trabalho de filsofo na obra de Roupnel. Considerando que,
para nosso estudo, pouco elucidativa a caracterizao de uma unidade da obra
deste historiador, no seria possvel, por outro lado, concordar com Febvre que
a interpretao da obra de Roupnel se d mediante uma clara distino entre os
livros de histria e os livros filosficos. Esta separao realizada por Febvre
um acontecimento parte da obra de Roupnel. Independentemente do escopo
de sua obra, a interpretao realizada pelo ento editor da revista Annales um
movimento que no pertence obra de Roupnel, mas consolidao de uma
viso de histria defendida pelos historiadores ligados ao conhecido peridico
francs. Portanto, ousamos afirmar que a franca apologia s continuidades
e longas duraes como caractersticas sine qua non do ofcio de historiador,
relegando ao trabalho do filsofo a anlise dos acontecimentos a partir da
descontinuidade temporal, apenas um posicionamento muito especfico de
Braudel e Febvre, o qual no deve ser objeto de generalizaes apressadas por
parte dos historiadores.
Aps o necrolgio escrito por Febvre, repete-se, curiosamente, esta chave
interpretativa para a obra roupneliana. Vejamos um exemplo. No ano de 1949,
na Revue belge de philologie et dhistoire, Bartier publica uma homenagem
a Roupnel (BARTIER 1949, p. 553-554), na qual o autor lembrado como
aquele que, ao escrever Histoire et Destin, combateu vigorosamente a histria
historizante e o estudo do acontecimento, demonstrando ser um defensor da
histria estrutural (BARTIER 1949, p. 553). Ademais, elogia seus trabalhos
histricos como a Histoire de la Campagne Franaise, e afirma que Gaston
Roupnel no brilhou somente como historiador. Ele fez obras de romancista com
Nono e Le Vieux Garain, e de filsofo com Silo e La Nouvelle Silo (BARTIER
1949, p. 554).
Novamente, a obra de Gaston Roupnel foi devidamente selecionada nas
partes que so mais condizentes com o esprito de um grupo de pesquisadores,
os quais elogiam Histoire et destin apenas como uma obra dedicada histria
estrutural, alm de delimitar obras como Silo e La Nouvelle Silo como
trabalhos de filosofia.
Entretanto, quando a obra de Gaston Roupnel relembrada nos anos
seguintes, h uma retomada da polmica acerca de sua abordagem dos
195
196
Notamos aqui, mais uma vez, um movimento tpico dos membros deste
renomado peridico francs. Ao reconhecer a obra de um historiador, h um
cuidado minucioso para selecionar quais so os pontos de convergncia que
o colocam imagem e semelhana dos Annales, e h, do mesmo modo, um
significativo empenho em deixar bem claros os limites que o distanciam do
grupo, sobretudo quando sua perspectiva de histria considera eminentemente
o papel dos acontecimentos e das descontinuidades. importante esclarecer
que Ferdinand Lot publicou boa parte de sua obra durante as ltimas dcadas
do sculo XIX e as primeiras do sculo XX, fato que o distancia sobremaneira
do debate mais acalorado acerca do papel da descontinuidade temporal, como o
estabelecido pela leitura que Bachelard realiza de aspectos da obra de Roupnel.
Enfim, quando Lot considerou a possibilidade de publicar na revista Annales
um artigo/resenha de Histoire et destin como uma homenagem a Marc Bloch
cuja inteno era colocar Bloch lado a lado com Roupnel, em uma apologia
relevncia dos acontecimentos e das descontinuidades na histria , Lucien
Febvre informa a Ferdinand Lot, em uma carta datada de 24 de janeiro de 1945,
que esta resenha j teria sido escrita por Fernand Braudel para a revista. Na
mesma carta, Febvre teve o cuidado de explicar as divergncias entre Marc
Bloch e Roupnel, afirmando que Bloch detestava a histria de Roupnel (LE
GOFF 1966, p. 1180, nota 3).
Alm das observaes colocadas aqui, podemos inferir um dado precioso
acerca da leitura da obra de Roupnel entre os historiadores: no havia um
consenso acerca de seu trabalho. Se ele foi realizado, deve-se perpetuao
da leitura efetuada pelos principais historiadores ligados revista Annales, que
dividiu a obra roupneliana em duas partes bem precisas: a) em seus livros de
histria, Roupnel figura como um exemplo de abordagem dentro da histria
social relacionada s longas duraes e materialidade geogrfica; b)
197
5
Podemos destacar um de seus trabalhos, Les tendances actuelles de la philosophie allemande: E. Husserl, M.
Scheler, E. Lask, N. Hartmann, M. Heidegger, publicado em Paris no ano de 1930, o qual foi prefaciado pelo
filsofo Lon Brunschvicg, com quem Gaston Bachelard mantinha constantes dilogos intelectuais. Disponvel
em: http://www.worldcat.org/title/tendances-actuelles-de-la-philosophie-allemande-e-husserl-m-scheler-elask-n-hartmann-m-heidegger/oclc/491101532. Acesso em: 21 set. 2012.
198
199
E conclui:
Nos dois casos, estamos na presena da identificao da histria como
realidade e da histria como historiografia base de uma filosofia
dogmtica da histria, que conhece por antecipao seu prprio sentido.
Mas a filosofia da histria se mostra a pior inimiga da realidade histrica
quanto da cincia da histria e das duas combinadas, destruindo seu
fundamento e retirando toda significao tanto do estudo histrico quanto
da prpria realidade histrica (GURVITCH 1957, p. 76).
200
201
Referncias bibliogrficas
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BERGSON, Henri. Durao e simultaneidade. So Paulo: Martins Fontes,
2006.
6
Ver os trabalhos: Essai sur quelques problmes concernant le normal et le pathologique, publicado por
Canguilhem em 1943 (livro traduzido para o portugus a partir da edio francesa revisada de 1966, sob o
ttulo de O normal e o patolgico) e La connaissance de la vie, de 1952.
202
203
Resumo
O objetivo deste artigo analisar de que forma o romance Terra Sonmbula (1992), do escritor
moambicano Mia Couto, constitui-se como verso alternativa historiografia a partir da prpria
histria que o romance conta e sobre a qual ele silencia. Para tanto, considero que a narrativa
coutiana assume um vis testemunhal, pois exprimiria a necessidade da fala por parte do autor
aps dezesseis anos de guerra civil em Moambique (1976-1992). Assim, interessa-me saber
a que leitor (que aqui substitui o ouvinte) o autor dirige sua narrativa para compreender os
meandros da histria que ele escreve, levando tambm em considerao a posio ocupada por
Mia Couto na realidade de seu pas. Percebo que o autor escreve sua verso da histria a partir
de trs tendncias interligadas: (i) o dever de memria; (ii) a construo de uma africanidade; e
(iii) a perspectiva do futuro.
204
Palavras-chave
Abstract
The aim of this paper is to show how the novel Sleepwalking Land (1992), by the Mozambican
writer Mia Couto, can be seen as an alternative version to historiography based on both the story
that it actually tells and another one it silences about. For this, I consider Coutos narrative as
a kind of eyewitness testimony, as the novel may be regarded as the result of the writers need
for speaking out after a sixteen-years long civil war (1976-1992) in his home country. I am
thus interested in the reader (who replaces the listener here) to whom the author addresses his
narrative in order to understand the intricacies of the story he writes. However, Im also taking
into account the position occupied by Mia Couto in the reality of his country. I realize that the
author writes his version of history based on three interrelated trends: (i) the duty of memory, (ii)
the construction of Africanness, and (iii) the perspective of future.
Keywords
205
Segundo K. B. Wilson (1992, p. 560-561), os naparamas (tambm conhecidos como napramas, baramas ou
paramas) surgiram entre o final de 1989 e o incio de 1990 na fronteira entre Nampula e Zambzia (provncias
situadas ao norte de Moambique) e constituram um movimento popular de carter militar e religioso que
se opunha Resistncia Nacional Moambicana. At ento, a RENAMO detinha o monoplio dos poderes
espirituais na guerra desencadeada contra a Frente de Libertao de Moambique e utilizava os poderes
que supostamente tinha para aterrorizar e subjugar a populao. Os naparamas eram liderados por Manuel
Antnio, um homem de vinte e tantos anos, com pouca instruo formal, que declarava ter a misso divina de
acabar com a guerra e libertar a nao. Para tanto, ele e seus seguidores lutavam com armas brancas, como
as zagaias, e se diziam vacinados contra as balas.
2
O livro terminou de ser escrito em novembro de 1992, um ms aps o fim da guerra civil em Moambique.
1
206
um nico Estado colonial, os portos entre Cabo Delgado (no extremo nordeste
do pas) e a Baa de Maputo (antiga Delagoa Bay ou Baa da Lagoa, localizada
ao sul) e suas respectivas reas comerciais. A partilha da costa africana seguia,
desse modo, a mesma lgica dos primeiros empreendimentos portugueses do
sculo XVI. Era este, portanto, o sentido dado histria de Moambique pelo
colonialismo lusitano.
No entanto, cerca de setenta anos depois da criao do pas, os filhos de
Moambique passaram a reivindicar no apenas o direito de serem agentes de
sua prpria histria, mas tambm acrescento o direito de escreverem essa
histria. Durante os anos da luta armada de libertao nacional e mesmo aps
a independncia, a FRELIMO procurou contar com jornalistas simpatizantes
da causa (dentre eles, o jovem Mia Couto), encarregados de relatar a verso
dos fatos diversa daqueles que comungavam com a ideologia do agonizante
Terceiro Imprio Portugus. Vale lembrar que os principais quadros da FRELIMO
eram compostos por moambicanos educados no exterior, como o seu primeiro
presidente, Eduardo Mondlane, que estudou na frica do Sul, em Portugal e nos
Estados Unidos, onde obteve o ttulo de doutor em Sociologia.
Foram moambicanos como Mondlane que elaboraram um projeto nacional
para Moambique a partir do qual falavam (e agiam) em nome do povo. Baseada
em homens como eles, a histria do pas passou a estar atrelada histria do
protagonismo da FRELIMO no apenas na luta anticolonial, mas, especialmente,
no surgimento da nao. Recorro aqui neoclssica concepo do cientista
poltico estadunidense Benedict Anderson sobre nao: uma comunidade poltica
imaginada e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo
tempo, soberana (ANDERSON 2008, p. 32). Imaginada porque seus membros,
em sua totalidade, jamais se conhecero; limitada porque possui fronteiras
finitas; soberana porque havia se libertado da dominao divina. No caso
africano, a soberania de Moambique ocorreu medida que o pas libertou-se da
dominao metropolitana. Suas fronteiras, entretanto, permaneceram aquelas
delimitadas pela antiga metrpole, assim como a lngua portuguesa, alada
lngua oficial da ento Repblica Popular de Moambique. O carter popular da
nascente repblica deveu-se autodeclarao do carter socialista do Estado.
Essa orientao poltico-ideolgica desencadeou, por seu turno, um movimento
contrarrevolucionrio capitaneado pela RENAMO, a qual, apoiada pela frica do
Sul, engendrou a guerra civil que perdurou por dezesseis anos.
Durante a guerra, o sentido de comunidade que define a nao havia sido
esfacelado. A profunda camaradagem horizontal a que se refere Anderson
(2008, p. 34) deu lugar a um sentimento semelhante ao de Tuahir: Foi o que
fez esta guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora j no h
pas (COUTO 2007, p. 153). Mia Couto foi perspicaz ao traduzir no romance a
solido que perpassava os moambicanos, ento unidos em torno de uma causa
comum, expressa na luta pela independncia do pas. Mas o escritor no se
refere somente aos vivos: h tambm os mortos, outrora re-presentificados nas
narrativas, ritos e tradies que compunham uma histria viva de Moambique.
A escrita, como lembra Newitt, raramente foi utilizada pela raa humana, no
207
A perspectiva do leitor-historiador
certo que Terra Sonmbula surgiu como forma de Mia Couto exorcizar
seus demnios interiores despertados pela guerra (COUTO 2009a, p. 6), logo a
escrita literria funcionou, para o autor, como a necessidade contida no gesto
testemunhal. No se trata aqui de encarar a narrativa como verdadeira, mas de
perceber nela o desafio de estabelecer uma ponte com os outros, de conseguir
resgatar o sobrevivente do stio da outridade (SELIGMANN-SILVA 2008, p. 66).
Partindo do pressuposto de que a narrativa do autor assume esse vis,
interessa-me saber de que forma ela se constitui como verso alternativa
historiografia a partir da prpria histria que ela conta e daquela sobre a qual
ela silencia. Para isso, questiono em que medida a posio ocupada por Couto
na realidade moambicana intervm na produo de sua obra, o que pressupe
uma breve digresso sobre o papel do leitor (-historiador) nessa relao.
O primeiro ponto sobre o qual vou discorrer a influncia ou no do contexto
histrico nas preferncias literrias (e acadmico-cientficas) do leitor (-crtico-pesquisador). J no segundo ponto, pretendo analisar se a literatura funciona
para o leitor como leitura de seu prprio eu, ao passo que, no terceiro, indago se o
hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 204-218
208
daquilo que define uma boa literatura com o passar do tempo. Embora no
seja meu objetivo encontrar uma definio apropriada para um conceito
aparentemente difuso, importa-me esse passar do tempo. Afinal, retomo,
o contexto histrico do leitor que parece incidir sobre a leitura do romance,
qualificando-o certamente de acordo com critrios subjetivos, mas tambm
com aqueles oriundos da sociedade em que o leitor-crtico est inserido.
Assim, a popularidade ou no de uma obra, sua aclamao ou difamao entre
a crtica literria e sua converso em objeto de pesquisa acadmica perpassam
o contexto do leitor-crtico-pesquisador. A obra literria de Mia Couto faz
parte atualmente do rol da pesquisa acadmica brasileira, especialmente
dos programas de ps-graduao em Letras, devido, em parte, ao interesse
crescente pela cultura produzida na frica, mas tambm ao talento atribudo
ao autor. Ademais, ainda que em escala menor, o pano de fundo scio-histrico
desperta o interesse do historiador. Cito dois exemplos.
Um refere-se tese de doutorado defendida em 2008 na Universidade
de Braslia por Maria do Carmo Ferraz Tedesco. A partir dos romances de Mia
Couto e de Paulina Chiziane, a historiadora pretende analisar a reconfigurao
das identidades moambicanas no contexto das transformaes ocorridas no
pas nas duas ltimas dcadas. Ela procura entrever as representaes da
sociedade que os romances estabelecem, bem como a produo de sentidos
na instaurao de determinada imagem para a identidade cultural coletiva.
Ela explica que utiliza o romance como fonte histrica medida que a literatura
uma forma de representao do tempo vivido e que, tal como os estudos
historiogrficos, promove um ordenamento e uma configurao da experincia
temporal dos homens (TEDESCO 2008).
Da mesma forma, o segundo exemplo, a dissertao de Josilene Silva
Campos defendida em 2009 na Universidade Federal de Gois, pretende analisar
a reconfigurao da identidade nacional moambicana aps a guerra civil ou
seja, aps 1992. Para tanto, ela utiliza os romances de Mia Couto por entender
que a literatura um tipo de conhecimento social formado no imaginrio,
que possibilita um acesso privilegiado s sensibilidades de um tempo, s
experincias vivenciadas e s discursividades construdas (CAMPOS 2009).
Percebemos que os argumentos empregados por Josilene Campos no
diferem daqueles j proferidos por Maria do Carmo Tedesco. Ambas no esto
interessadas na boa literatura ou nos efeitos estticos dos romances de Couto.
s historiadoras interessam os romances moambicanos como representao
social e cultural do contexto histrico do qual se originaram. O tema de suas
pesquisas recai basicamente sobre a reconfigurao da identidade nacional
aps dezesseis anos de guerra civil. Logo, a anlise das autoras pressupe um
estudo comparativo, englobando a configurao identitria antes do final da
guerra. Decerto, minha anlise tambm contempla essa perspectiva por estar
inserida no tipo de histria que Mia Couto se prope a contar em seu romance.
No entanto, eu argumento que nosso interesse historiogrfico pelo autor advm,
em parte, de seu reconhecimento literrio para alm de Moambique, o qual
facilita o acesso aos seus livros aqui no Brasil.
209
210
outro mundo remete, por sua vez, a uma frica que deixou de nos ser
completamente desconhecida a partir de um Moambique prprio do autor.
precisamente aquilo que h de diferente na literatura de Mia Couto que nos atrai:
a possibilidade de experienciarmos as dessemelhanas. Mas, curiosamente,
essas dessemelhanas tambm devem atender a certas expectativas nossas.
Da que a frica que Mia Couto nos apresenta no nos parece concretamente
tangvel parte das vicissitudes de Kindzu residiria, antes, nas possibilidades
do onrico. Ao mesmo tempo, como no caso da morte da baleia, subjaz
uma crtica social travestida de uma linguagem esteticamente atraente, que
mitiga o impacto da crueza da palavra para realar a cena aterradora pela
sobreposio de metforas. Nesse sentido especificamente, a forma tambm
contedo. Por meio dela, Mia Couto remete s questes sociais e polticas
de seu pas inserindo o leitor na dimenso humana de seus personagens.
essa dimenso que nos aproxima novamente desse outro mundo onde nos
solidarizamos enquanto humanidade. Mas se, porventura, esse outro mundo
se mostrasse semelhante ao nosso, no apenas em emoes, mas em modo
de vida, continuaramos creditando a ele o estatuto da alteridade? Temos um
exemplo contado pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2009), de
quando ela estudava em uma universidade americana, em que um professor
fez algumas observaes sobre o romance que ela havia escrito. Segundo o
professor, o problema do romance de Adichie era no ser autenticamente
africano isto , os personagens da autora eram muito parecidos com ele, um
homem educado oriundo da classe mdia. Seus personagens no passavam
fome. Eles dirigiam carro. No, com essas caractersticas, eles no podiam ser
autenticamente africanos.
Logo, ns, leitores no africanos, projetamos na literatura originria daquele
continente imagens pr-concebidas da frica. Ou, no caso do leitor americano,
ocorre no apenas uma projeo, mas uma imposio daquilo que ele considera
como legitimamente africano. Michael Chapman (2003, p. 1), professor da
rea de Literatura na Universidade de KwaZulu-Natal, na frica do Sul, diz
apropriadamente que deveramos falar em literaturas africanas, no plural, uma
vez que a frica est longe de ser homognea, seja na lngua, na cultura, na
religio, seja nos processos de inscrio na modernidade. No entanto, lembra-nos
o autor, os escritores africanos que ganharam projeo internacional comungam
da seguinte caracterstica: seus textos esto sintonizados com as expectativas
da crtica literria das universidades britnicas e francesas. Ademais, as editoras
de suas obras so multinacionais cujo mercado principalmente o no africano.
No atenderia tambm Mia Couto a esse imperativo? Conforme o autor,
o ser lido um momento posterior criao, pois a maioria dos escritores
escreve por razes interiores, que eles prprios desconhecem (COUTO 2006a).
Todavia, digno de nota que uma das cenas constantes nas primeiras pginas
de Terra Sonmbula corresponda, em parte, ao meu imaginrio juvenil sobre
o continente, quando Muidinga encontra os cadernos de Kindzu e acende uma
fogueira noite com os papis no escritos.
211
212
213
214
215
Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que viro sero ainda
piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do
tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperana. No
mais procureis vossos familiares que saram para outras terras em busca
da paz. Mesmo que os reencontreis eles no vos reconhecero. Vs vos
convertsteis em bichos, sem famlia, sem nao. Porque esta guerra
no foi feita para vos tirar do pas mas para tirar o pas de dentro de vs
(COUTO 2007, p. 200-201).
216
217
digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2047&titulo=
Couto_revisitado. Acesso em: 30/01/2013.
Mia_
218
Resenhas
review essays
Palavras-chave
220
Keywords
221
222
223
1
Segundo Bruna Paiva de Lucena, a historiografia do cordel brasileiro responsvel pelo cnone do cordel tem
por base as pesquisas da Fundao Casa de Ruy Barbosa, do estudioso francs Raymond Cantel e as que deram
origem ao Dicionrio bio-bibliogrfico de repentistas e poetas de bancada, feitas por tila de Almeida e Jos
Alves Sobrinho, bem como a campanha nacional em defesa do folclore. A partir desses estudos, passou-se
a postular o conceito e os limites da literatura de cordel, tambm seus autores, seus meios legtimos de
publicao, entre outros aspectos. No entanto, conforme observa Bruna Lucena, esse procedimento acabou
por deixar muito do lado de fora, como os cordis de autoria de mulheres (LUCENA 2010, p. 14).
224
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Universidade de Braslia UNB, Braslia, 2010.
MELO, Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetrias da literatura de cordel.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
225
Marlon Salomon*
[email protected]
Professor associado
Universidade Federal de Gois
Faculdade de Histria, UFG, Campus II, Caixa Postal 131
74001-970 - Goinia - GO
Brasil
______________________________________________________________________
Palavras-chave
Keywords
226
__________________________________
* Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq
227
Marlon Salomon
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228
pesquisas nos arquivos operrios, justamente com essa ideia de que era preciso
encontr-los em sua prpria histria. No devemos nos esquecer de que nessa
mesma poca que Michel Foucault organiza o Grupo de Informaes sobre as
Prises (GIP). O GIP no criticava apenas o princpio de falar por algum, a noo
de uma conscincia ou voz autorizada que tomava a palavra e a fala no lugar de
algum. Ele punha em cheque a prpria partilha que dividia a legitimidade dos
discursos sobre as prises, segundo o lugar de sua provenincia. Os prisioneiros
possuam uma teoria das prises que era absolutamente equivalente s teorias
sancionadas ou que os juristas delas possuam. Da se atribua um novo papel
para o intelectual: no mais ser a conscincia dos movimentos sociais, mas dar
voz ao outro, fazer circular esses saberes emudecidos e desqualificados. Essa
reorientao do trabalho de Rancire se faz nesse contexto de transformao do
estatuto desses saberes e no foi indiferente a ele. So as pesquisas iniciadas
nesse perodo que o conduzem noite dos proletrios (originalmente apresentada
como uma tese de doutorado), um livro que no apenas destri os limites que
separam os discursos histrico e filosfico, mas que questiona o modo como os
historiadores articulam em uma intriga os acontecimentos e a ordem cronolgica,
e a maneira como os filsofos concebem o que o texto filosfico.
O segundo bloco de questes denomina-se Linhas (RANCIRE 2012, p.
89-166). Trata-se de uma preparao pelos caminhos que conduzem ao seu
edifcio filosfico. Rancire evita falar em linhas de filiao de seu pensamento.
H, antes, encontros que o marcaram e que em determinados momentos foram
decisivos em sua trajetria. O interessante que, nessa descrio, Rancire
deixa implcito de que aponta nesses encontros apenas aquilo que deles reteve.
Na poca de estudante, Sartre e o afastamento em relao s explicaes
psicolgicas e sociolgicas. Em seguida, Althusser e o modo como questionava
certa concepo de histria por meio da ideia da multiplicidade dos tempos (que
ser fundamental, como sabemos, em A noite dos proletrios [1988] e no modo
como praticar a histria e criticar a historiografia dos Annales). Depois, Foucault
e a reviravolta do que constitui o prprio problema da filosofia: no mais o que
pensar, mas o que faz com que tal coisa seja pensvel, o que consequentemente
o levava a uma nova maneira de articular pensamento e prtica.
A essas referncias que poderamos chamar de formativas, h outras
que, segundo Rancire, intervieram em momentos precisos de seu trabalho.
A reflexo schilleriana sobre a transformao das formas da experincia
sensvel; a crtica kantiana sobre as condies de possibilidade do conhecimento
(revisitada, sem dvida, por Foucault, tal como Rancire o afirma textualmente
em O desentendimento [1996]); a compreenso hegeliana de que o pensamento
no apenas no se separa, mas concomitantemente se transforma com seus
objetos; a reflexo marxista sobre a diviso, de que o que se supe dado j se
encontra em uma diviso de dados. A essas dvidas, Rancire acrescenta um
conjunto de outras que so propriamente extra-filosficas. Com Flaubert, Conrad
e Woolf, ele aprendeu a reconhecer o que chama de micro-acontecimentos:
transformaes na paisagem do sensvel; primordialmente, no que pensvel,
perceptvel. Essa dvida literria o marcou no modo como trabalhou com os
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Palavras-chave
Humanismo; Homem de letras; Renascimento.
Keywords
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* Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq
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Lzaros de papel
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Lzaros de papel
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de existir. E ningum se ressentir disso, pois esse o fluxo natural das coisas.
Se no h recompensas nem castigos, se a vida na Terra nica e irrepetvel,
ela deve ser bem aproveitada com a busca incessante do prazer. E a realizao
do prazer est em praticar o bem, em ser sbrio e justo, pois o melhor caminho
sempre aquele que conduzir mais curta e certeiramente virtude. Assim
sendo, suplcios da carne e demais formas de privao do corpo so aflies
desnecessrias. Em s conscincia, ningum precisa pagar com sacrifcios os
dbitos supostamente acumulados diante das exigncias de um ser enfurecido
porque no se agiu a seu gosto nesta ou em outra ocasio. A lio talvez mais
aguda contida no manuscrito de Lucrcio: se h uma ordem no universo, ela
independe de um ente iracundo a despejar castigos e a distribuir recompensas.
Naturalmente que tais afirmaes colidiram com as concepes oficiais
acerca da sociedade, da natureza e do universo. E os fundamentos de Lucrcio
ajudaram a catalisar o processo de dessacralizao do mundo natural e das
concepes sociais. As concepes de Lucrcio regaram o terreno para a
germinao das razes da cincia moderna. As ideias do escritor antigo integram,
por assim dizer, a carga gentica de nosso mundo atual. Alm disso, fizeram
florescer mais rapidamente as sementes do atesmo, essa indiferena para
com a importncia conferida a todas as formas de manifestaes divinas, e
cujas fontes mais radicais podem ser situadas nos sculos XVII e XVIII, com
o pensamento de Hobbes, de Spinoza e dos iluministas. Dessa forma, Poggio
Bracciolini, o incansvel ressuscitador dos manuscritos perdidos da antiguidade
clssica, pode ser justamente retratado como um dos inventores do mundo
moderno; ao pr em circulao um texto sepultado por mais de mil anos de
densa histria, ele atuou decisivamente.
Em vista de tais argumentos, creio que o livro de Greenblatt sobre traos
fundamentais do humanismo renascentista pode ser lido com grande proveito,
e isso tanto por sua cativante histria central quanto pelas intrincadas tramas
paralelas. Alm da histria de Bracciolini, a obra tambm uma densa narrativa
sobre a vida particular de livros e autores clebres, uma interessante descrio
das tcnicas de fabricao de livros na antiguidade e Idade Mdia, alm de uma
detalhada exposio dos recursos utilizados no processo de circulao de textos,
desde os gregos antigos at a inveno da imprensa de caracteres mveis nos
meados do sculo XV. E isso sem deixar de fora consideraes de relevo sobre
as regras da retrica e da eloquncia na Roma antiga e na Itlia dos incios da
Renascena, alm das prticas de leitura ao longo da histria cultural do Ocidente
cristo. Quem se interessa por maquinaes palacianas azeitadas com traies
e jatos de sangue tambm se sentir bastante confortvel diante da obra. Em
suma, A virada um desses livros que possuem a virtude de instruir sem enfadar,
fundamento sempre digno de uma meno honrosa, mormente pelo alto grau de
dificuldade de se entregar timo contedo com excelente diverso.
Palavras-chave
Keywords
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244
aos lees, brutais, ferozes e truculentos, e enfim, a maior parte de ns torna-se semelhante s raposas (ACCETTO 2001, p. 41). A astcia, representada
pela raposa, geralmente retrata a fraude, mas, em alguns sentidos, remonta
tambm mtis de Ulisses que, para Accetto, pode muito bem configurar
uma ao prudente. A virtude da prudncia, inclusive, central nos escritos
destes autores, pois somente o homem prudente capaz de fazer reto uso
da dissimulao.
O quinto e ltimo captulo realiza um breve levantamento de questes
relativas composio de Accetto, retomando pressupostos maquiavlicos e
noes presentes em Sneca para, mais adiante, tratar da tpica do corao
oculto, largamente difundida nos escritos cristos. Ele trabalha, por exemplo,
com a tpica da pacincia, presente em Maquiavel e em Accetto (MSSIO 2012, p.
153-154), e com a possibilidade de uma simulao vlida, honesta, pois movida
para efetivao de um propsito reto (MSSIO 2012, p. 155-157). No de se
estranhar que a dissimulao honesta esteja presente nas teorizaes sobre a
razo de Estado e nos tratados de civilidade, j que pode ser entendida como
medida excepcional, remdio e arte virtuosa de governo, cujo uso depende da
ocasio (MSSIO 2012, p. 165). Ela til quando mobilizada prudentemente,
tendo por finalidade restabelecer a harmonia e tranquilidade do Estado. Logo,
prescreve-se a dissimulao como forma de assegurar a integridade do bem
comum, segundo o decoro e as circunstncias.
O livro de Mssio circular, pois a ltima frase remete primeira: nas
palavras do autor, a quantidade das citaes [em Accetto] no impediu a
qualidade do escrito, cujo entendimento da questo pde ser verificado na
trama argumentativa (MSSIO 2012, p. 176). Na introduo, por sua vez,
Mssio principia dizendo: Da vida de Torquato Accetto muito pouco se sabe
(MSSIO 2012, p. 13). A anlise da trama argumentativa supre, em alguma
medida, a nvoa que encobre a biografia de Accetto. Inversamente, esta mesma
nvoa parece conferir certa liberdade mente investigativa do autor do livro,
que busca conhecer, com lente de aumento, os argumentos e pressupostos do
tratado accettiano. Desta forma, Edmir Mssio no persegue a intencionalidade
do autor, pois Accetto no se define como subjetividade psicologicamente
expressiva: o que ele busca, na verdade, sondar a emulao promovida
pelo secretrio, que recicla auctores e preceitos que respaldam suas reflexes
sobre a dissimulao honesta. Este procedimento profcuo na medida em
que no supe que Accetto esteja por detrs da sua obra, mas sim nela, na
prpria escrita. Em outras palavras, o autor o estilo que ele comunica ao
leitor, e seu estilo produto da emulao, da reposio de predicados que no
apenas o secretrio domina, mas tambm o leitor discreto, capacitado a julgar
os mritos da imitao.
A brevidade no somente procedimento accettiano, mas tambm uma das
caractersticas que se espera de uma resenha. Por esta razo, convm encerrar
esta por aqui: que o leitor preencha suas lacunas com prudncia e acate, sem
mais delongas, o convite que ela efetua.
Referncias bibliogrficas
ACCETTO, Torquato. Da dissimulao honesta. Traduo de Edmir Missio. So
Paulo: Martins Fontes, 2001.
GRACIN, Baltasar. A arte da prudncia. So Paulo: Martin Claret, 1998.
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So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. Comentrios de Napoleo Bonaparte. So
Paulo: Hemus, 1996.
MSSIO, Edmir. A civilidade e as artes de fingir: a partir do conceito de
dissimulao honesta de Torquato Accetto. So Paulo: EDUSP, 2012.
PCORA, Alcir. Apresentao. In: ACCETTO, Torquato. Da dissimulao
honesta. Traduo de Edmir Missio. So Paulo: Martins Fontes, 2001.
SEIXAS, Jacy Alves de. Dissimulao, mentira e esquecimento: formas da
humilhao na cultura poltica brasileira (reflexes sobre o brasileiro
jecamacunamico). In: MARSON, Izabel; NAXARA, Mrcia (orgs.). Sobre
a humilhao: sentimentos, gestos, palavras. Uberlndia: EDUFU, 2005.
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Joo Couvaneiro
[email protected]
Professor Adjunto
Instituto Piaget
Rua Ramiro Ferro, 29/10D
2805-346 - Almada
Portugal
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Joo Couvaneiro
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O ltimo texto do livro assinado por Rodrigo Turin e surge com o ttulo:
Entre antigos e modernos: notas sobre o De nostri temporis studiorum ratione
(1708) de Vico. A obra do filsofo napolitano abordada nestas pginas foi escrita
com o propsito de ser lida como orao de sapincia que visava convocar os
alunos a dedicarem-se com afinco aos seus estudos. A partir dela se caracterizam
as referncias, a produo e o legado de Vico. Realando-se os principais marcos
da sua afirmao na Repblica das Letras e apresentando chaves interpretativas
que permitem perceber a conciliao que o autor procurava estabelecer entre os
modos de saber antigo e moderno.
Ao longo dos diversos artigos verifica-se uma enorme qualidade no
tratamento das fontes, na reviso de boa parte da literatura fundamental e do
esforo de sntese, que permitem repensar e dar sentido a uma questo antiga.
No que a histria seja ainda mestra da vida, mas h na expresso formulada
por Ccero algo que nos ilumina ainda, persistindo a compulsiva preocupao
de justificar a utilidade desta disciplina cientfica, como se no fosse bastante a
virtude de procurar conhecer e transmitir a experincia humana.
Referncias bibliogrficas
COTRIM, Joo Paulo; ROCHA, Miguel. Salazar: agora e na hora da sua morte.
Lisboa: A. M. Martins Pereira, 2006.
RSEN, Jrn. Como dar sentido ao passado: questes relevantes de metahistria. Histria da Historiografia, n. 2, p. 163-209, maio 2009.
SILVA, Tase Tatiana Quadros da. Maquinaes da razo discreta: operao
historiogrfica e experincia do tempo na Classe de Literatura Portuguesa
da Academia Real das Cincias de Lisboa (1779-1814), Tese (Doutorado
em Histria Social), Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
251
Fbio Franzini
[email protected]
Professor adjunto
Universidade Federal de So Paulo
Avenida Monteiro Lobato, 679 Macedo
07112-000 - Guarulhos - SP
Brasil
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Palavras-chave
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Keywords
253
Interessante, seno instigante, notar que o mesmo no acontece com as Cincias Sociais: da ampla e
importante Histria das Cincias Sociais no Brasil (MICELI 1989; 1995), na qual a FFCL-USP muito aparece, a
discusses mais especficas (apenas como exemplo: PONTES 1998; PULICI 2008), parece haver neste campo
uma preocupao muito maior (e mais crtica) com o processo de sua institucionalizao.
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Fbio Franzini
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mais no quadro amplo e complexo que reconstitui, deixando para lhe conferir
mais peso no bom Apndice 1, intitulado Entre a graduao e a ctedra: a
movimentao dos alunos do curso de Geografia e Histria na Faculdade de
Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo. Afinal, o duplo
exerccio que Roiz aqui realiza, de apresentar a dinmica entre os sexos
segundo a escolha dos cursos [da FFCL], tendo em vista quais eram mais
escolhidos por mulheres e quais eram mais escolhidos por homens, e destacar
o perfil social dos alunos selecionados para o exerccio de funes docentes no
curso de Geografia e Histria (ROIZ 2012, p. 187), em relao direta com o
primeiro captulo, acolheria de modo muito mais adequado suas consideraes
acerca do lugar da mulher no regime de ctedras.
Nos dois captulos seguintes, As transformaes na estrutura curricular
e Caractersticas e dimenses do ensino e da pesquisa, Diogo Roiz reconstitui
os arranjos, adaptaes e reformas ocorridos no interior das ctedras, em
suas tentativas de melhor se adequarem s demandas postas pelas prticas e
possibilidades acadmicas e, ao mesmo tempo, de contornar ou se conformar
s limitaes materiais e legais que as envolviam. Ao faz-lo, consegue
recuperar com muita clareza o dinamismo do curso, das preocupaes iniciais
em caracterizar, aos alunos, as grandes linhas da Histria mundial e nacional,
os aspectos geogrficos do processo e a formao histrica e lingustica do
territrio brasileiro (ROIZ 2012, p. 62) at a separao das cadeiras de
Geografia e de Histria em formaes independentes, momento em que cada
uma passa a buscar identidade prpria.3 Mais importante ainda, ele evidencia
com propriedade como as mudanas formais e informais que ocorreram no
curso entre as dcadas de 1930 e 1950 no deixaram de ser, tambm, as
primeiras tentativas, por meio de seminrios e trabalhos prticos e tericos, de
se formar, seno um ofcio de historiador (e de gegrafo) a partir do curso de
graduao, pelo menos a iniciativa de se produzir os primeiros profissionais na
rea (ROIZ 2012, p. 76-77).
Outro aspecto de grande relevncia abordado em ambos os captulos diz
respeito formao de professores, uma vez que este propsito esteve na
raiz da Faculdade de Filosofia. significativo, nesse sentido, que, como diz o
autor, a primeira alterao representativa no programa curricular do curso
tenha ocorrido no incio dos anos 1940, para, entre outras coisas, adequ-lo
legislao federal que redefinira e padronizara as condies para a diplomao
de bacharis e licenciados (ROIZ 2012, p. 64). Assim, de 1942 em diante, os
alunos que conclussem os trs anos da grade receberiam o grau de bacharel;
caso quisessem obter tambm a licenciatura, deveriam ainda cursar, por
mais um ano, cadeiras especficas de didtica. Isto provocou, na prtica, uma
apartao entre o bacharelado e a licenciatura, mas nem por isso deixou de
haver, segundo Roiz, tentativas de especializar os programas das disciplinas
oferecidas no curso, para adequ-las s necessidades de formao dos alunos,
255
3
Embora Roiz no avance nessa questo, sugestivo descobrir que, com a separao do curso de Geografia e
Histria, verifica-se uma maior incorporao de disciplinas histricas na grade curricular de Geografia, limitando-se no curso de Histria a apenas uma disciplina geral sobre o conhecimento geogrfico (ROIZ 2012, p. 74).
Fbio Franzini
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Alfredo Ellis Jr. esteve ligado historiografia tradicional, nos moldes dos
institutos, com posturas prximas aos positivistas da escola metdica;
por sua proximidade com [Affonso de] Taunay, escreveu uma histria
dos grandes feitos da populao paulista, a qual chamava de raa de
gigantes. Era, como afirmou Antonio Celso Ferreira, o ltimo e mais
radical expoente de uma safra de intelectuais dispostos a contar as
glrias de So Paulo, e com ele se encerra esse captulo. Srgio Buarque,
em contrapartida, afinado ao que havia de mais novo no pensamento
historiogrfico alemo, francs, italiano, norte-americano e ingls,
mesmo com toda a sua paulistanidade, apresentava um bandeirante
que, ao invs de ser um esprito aventureiro e empreendedor, nada mais
fazia do que lutar contra a fome. O amor exacerbado a So Paulo levou
Alfredo Ellis Jr. a escrever a histria do Brasil a partir da histria de So
Paulo; mesmo ocupando a cadeira de Histria da Civilizao Brasileira,
suas pesquisas se concentravam na histria de seu Estado. Srgio
Buarque, por sua vez, alm de tratar da histria de So Paulo, teve como
preocupao escrever uma histria do Brasil que abarcasse as demais
regies, e em comparao com a Amrica Latina. [...] utilizou o espao
aberto pela cadeira de Histria da Civilizao Brasileira para por no bojo
da histria do Brasil os atores e aspectos esquecidos pela historiografia
tradicional: o negro da terra, o bandeirante empobrecido, as mincias
do cotidiano, etc. [...] (ROIZ 2012, p. 159-160).
fez com que o curso convivesse, segundo ele, com duas tradies intelectuais:
uma francesa (e ligada ao movimento dos Annales) e outra nacional (e ligada,
muito genericamente, ao que se convencionou chamar de escola metdica),
acabando por impedir o desenvolvimento de um procedimento comum de
ensino e pesquisa (ROIZ 2012, p. 185); pela mesma razo, a renovao da
historiografia ento praticada e ensinada tambm no se deu por completo,
ficando circunscrita, at a dcada de 1950, s cadeiras de histria geral (ROIZ
2012, p. 171). Assim, ao inserir Frana nesse contexto, discutindo sua formao
em meio a tais dicotomias e a sua filiao a esse grupo renovador (como
aconteceu com outro nome central para o curso e para a prpria Faculdade de
Filosofia, Eurpedes Simes de Paula),4 Roiz demonstra como ele representava,
como professor e como pesquisador, mais uma faceta do curso, a da afirmao
do historiador por profisso.
So evidentes, enfim, as virtudes e a relevncia do livro de Diogo Roiz, e seus
leitores decerto encontraro vrias outras mais. H que se enfatizar, contudo, que
ele poderia ser melhor, no fossem seus vrios e comprometedores problemas
de ordem formal e material, a comear dos vcios da escrita acadmica que
atravessam o texto. Embora compreensveis, todos poderiam ter sido evitados
sem muita dificuldade, como a retomada insistente de argumentos considerados
centrais, o que na maior parte das vezes gera repeties desnecessrias: apenas
na introduo, por exemplo, os propsitos do trabalho so anunciados nada menos
que cinco vezes, com praticamente as mesmas palavras... Tambm causa certo
incmodo encontrar, no incio de cada captulo, a apresentao dos objetivos a
serem nele alcanados, bem como o seu complemento natural, o resumo das
anlises ao final; depois de mais de duzentas pginas, tal procedimento causa
a impresso de que o leitor precisa ser tutelado pelo autor e suas ideias, como
se outras leituras, percepes e apropriaes do texto no fossem possveis ou,
pior, permitidas. Sem tais enquadramentos, o texto ficaria bem mais fluido e
agradvel, como tambm ficaria bem mais fluido e agradvel com uma reviso
apurada, que o escoimasse de passagens mal redigidas que, ao invs de explicar,
atrapalham a compreenso, quando no a confundem como o caso, tambm
apenas como exemplo, deste pargrafo inteiro do Apndice 2:
257
Fbio Franzini
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258
ROIZ, Diogo da Silva. A dialtica entre o intelectual-letrado e o letradointelectual: projetos, tenses e debates na escrita da histria de Alfredo
Ellis Jr. e Srgio Buarque de Holanda (1929-1959). Tese (Doutorado em
Histria). Curitiba, Universidade Federal do Paran, 2013.
______; SANTOS, Jonas Rafael dos. As transferncias culturais na
historiografia brasileira: leituras e apropriaes do movimento dos
Annales no Brasil. Jundia: Paco Editorial, 2012.
SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Trajetrias intelectuais: professoras do curso
de Cincias Sociais da FFCL-USP (1934-1969). So Paulo: Humanitas;
Fapesp, 2011.
259
Srgio da Mata
[email protected]
Professor adjunto
Universidade Federal de Ouro Preto
Rua do Seminrio, s/n - Centro
35420-000 - Mariana - MG
Brasil
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Palavras-chave
Keywords
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Assim abriu a prestigiosa Revista para Histria das Ideias um de seus
ltimos editoriais. O mundo d voltas, e como: num ensaio originalmente
publicado em 1972, Reinhart Koselleck (1977) se levantava contra a indigncia
terica dos estudos histricos. J hoje, multiplicam-se os sinais, aqui e ali, de
cansao ante a hybris terica. No diria tanto que se trata de uma hipocondria
terica, semelhante hipocondria epistemolgica diagnosticada por Clifford
Geertz algumas dcadas atrs. Mas talvez chegue perto. Mesmo no campo
dos estudos literrios aumenta nmero daqueles que abdicam das iluses do
teoricismo (PATAI; CORRAL 2005).
Um historiador estrangeiro, em recente visita a nosso pas, perguntava:
Por que todos aqui parecem to preocupados com teoria?. Numa revista como
esta, que se tornou o principal frum de reflexo sobre a histria da historiografia
e a teoria da histria em nosso pas, a discusso sobre os limites da teoria no
tem como ser evitada. Seria dar as costas aos sinais dos tempos.
O livro do socilogo Luis de Gusmo presta-se, como nenhum outro
disponvel em nosso mercado editorial, a esta tarefa tanto mais porque ele
tambm a expresso mais visvel de uma nova atitude das cincias sociais em
relao cincia histrica. Atitude pautada por uma vontade sincera de dilogo;
algo que, seja dito, no existia at bem pouco tempo. Estamos inclinados a ver
em O fetichismo do conceito um caso exemplar daquele gnero que, em outras
plagas, foi batizado de antissociologia. Gusmo se encontra numa situao similar
de autores como Helmut Schelsky e Friedrich Tenbruck, os mais conhecidos
antissocilogos produzidos pela tradio sociolgica alem. Trata-se de um gnero
kamikase, onde a desmistificao das pretenses desmedidas da prpria disciplina
confunde-se com a crtica dos intelectuais, e no qual a afinidade em relao ao
pensamento histrico inegvel. At onde pude perceber, participando de um ou
outro debate, conversando com um ou outro colega, a reao ao livro de Gusmo
entre os socilogos brasileiros foi de uma discreta simpatia, mais que de rejeio.
Isso valer tambm para os historiadores? Quando da publicao da primeira
edio que se esgotou rapidamente deu-se uma acalorada discusso a seu
respeito nas redes sociais. Como sempre, entre ns, as polmicas em torno de
uma obra so mais intensas quando ningum teve ainda ensejo de ler o livro.
Esta resenha resultado de minha tentativa de submeter as crticas de Gusmo,
duras muitas delas, a um escrutnio mais cuidadoso e sereno.
Primeira constatao: a sociologia de Gusmo no padece deste pecado
tpico da juventude, a arrogncia (e isso talvez descreva com relativa preciso
a atitude das disciplinas mais novas ante as mais velhas). Desde princpios do
sculo passado, passou-se a acreditar que esta vetusta senhora, a histria,
261
Srgio da Mata
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nada tinha a ensinar s nascentes cincias sociais. No: ela, a histria, quem
deveria aprender com as novas cincias do homem. Praesens tempus magister
vitae et historiae... Mas em Gusmo, felizmente, no se v nada disso.
Alguma confuso pode ser suscitada pelo ttulo escolhido por Gusmo.
O fetichismo da teoria certamente seria mais adequado. De toda forma, tudo
est dito no subttulo, e para o qual o leitor dever estar atento: Limites do
conhecimento terico na investigao social. O que Gusmo nos prope
colocar em questo as iluses do teoricismo. Em certo sentido, ele escreve o
livro que Thompson verdadeiramente deveria ter escrito em seu A misria da
teoria. Depois de tomar de assalto as cincias sociais pelo menos desde meados
do sculo passado, o teoricismo adquiriu, gradativamente, o estatuto de atitude
intelectual dominante. Diante disso, trata-se, acredita Gusmo, de reabilitar a
importncia das investigaes sociais conteudsticas (GUSMO 2012, p. 127137). E, inclusive, de defender o emprego da terminologia vulgar ante as
pretenses do jargo tcnico (GUSMO 2012, p. 50).
Antes de ceder tentao de desqualificar tais crticas recorrendo a este
termo inapelvel (posto que vago, e quanto mais vago mais inapelvel), o de
positivismo, proponho ao leitor acompanhar os argumentos e a exposio de
Gusmo. O teoricismo estaria caracterizado, por exemplo, na apresentao
quase ritual de credenciais tericas (GUSMO 2012, p. 21). Ningum h de
negar que a carteirada terica o po nosso de cada dia nas humanidades
hoje. Basta pensar ainda no famoso captulo terico de nossas dissertaes
e teses universitrias (o autor desta resenha receia ter de admitir que no foi
capaz fugir regra). O automatismo em torno das premissas tericas levou-nos a um ponto tal em que no mais se sabe onde termina o esforo analtico
e onde comea a mera observncia das rgidas regras de composio do texto
acadmico; onde termina a teoria e onde comea a retrica. As analogias
estruturais entre teoria e retrica, de resto, h muito foram postas s claras
por Hans Blumenberg. A retrica, como a teoria, tudo o que resta aqum da
evidncia. Sendo o efeito retrico a alternativa evidncia que no se pode, ou
ainda no se pode obter, pelo menos aqui e agora (BLUMENBERG 2001, p. 411412), fica claro por qu o captulo terico, via de regra, posto na abertura
dos trabalhos acadmicos. Cumpre-se uma obrigao e, ento, finalmente se
pode passar ao que interessa. Se o leitor e o prprio autor do trabalho ainda se
lembram das premissas tericas assumidas l no incio, j outra histria.
Gusmo entende que faramos melhor em deixar de lado a parafernlia
dos modelos e o jargo teoricista, pois a leitura mais atenta, mais exaustiva
dos grandes tericos sociais [...] no transforma, como num passe de mgica,
pessoas intelectualmente acanhadas em indivduos de esprito (GUSMO 2012,
p. 45). Significa assim colocar em campo, subrepticiamente, uma noo tornada
politicamente incorreta hoje em dia, mas que o nosso cotidiano no se cansa
de evocar e confirmar: a de talento. Talento, esse impondervel da vida, sem
dvida mais decisivo que a teoria.
O elogio que Gusmo faz da obra historiogrfica de Tocqueville (GUSMO
2012, p. 93-94) expressa a sua rebelio contra as iluses holsticas de autores
como Marx, Bourdieu, Luhmann e tantos outros. O que propriamente atua ali
so as classes, os campos ou os sistemas, enquanto que os indivduos no
passam de pees no grande tabuleiro das teorias sociais de longo alcance. Ao
usurio de tais esquemas tericos resta uma nica e pequena satisfao: a de
encaixar as peas no tabuleiro algo que Arnold Gehlen ironizava com a expresso
Erfllungsglck. A reabilitao ora em curso de estratgias individualizantes de
pesquisa, inclusive no campo da sociologia qualitativa e da histria das ideias,
atestada pelo recente livro de Dieter Heinrich (2011) sobre a lgica e a histria
dos grandes insights filosficos. precisamente nesse esprito que Gusmo fala
no risco de negligenciarmos o papel do indivduo na vida social (GUSMO
2012, p. 156). Tendo sido, desde sempre, a cincia do individual, do singular,
apenas natural que para ele a histria se torne um interlocutor privilegiado na
crtica ao teoricismo e s iluses holsticas.
Que qualidades fazem o grande historiador, ou o grande estudioso da
conditio humana? Para Gusmo bastaria um forte senso de honestidade
intelectual e acuidade de viso para que as cincias sociais e a histria fossem
capazes de levar adiante sua tarefa de interpretar/explicar a realidade. como
se tudo se resumisse a uma questo de vocao, por um lado, e de bom senso,
por outro (talvez devesse ainda acrescentar: de amor verdade). Bastaria,
numa palavra, recorrer ao que Gusmo chama de senso comum.
Mas o que vem a ser tal coisa? Gusmo no enfrenta a questo. Ele apenas
nos mostra como grandes escritores (Stendhal, Flaubert, Ea de Queirs etc.)
foram perfeitamente capazes de descrever e dar explicaes adequadas para
uma infinidade de questes unicamente base do senso comum (GUSMO
2012, p. 100). Ao mesmo tempo, porm, Gusmo critica duramente todo aquele
que desrespeita o imperativo da neutralidade axiolgica. Censura Leon Tolstoi por
seu tom moralista e doutrinrio, por confundir sermo e realidade (GUSMO
2012, p. 40); enquanto que Georg Simmel mais lhe parece um filsofo moral
travestido de socilogo (GUSMO 2012, p. 147).
Tal juzo est longe de fazer justia a Simmel. Far tambm justia a
Tolstoi? Coloca-se, antes, a questo: a literatura no estabelece ou se baseia
amplamente em juzos de valor?1 Ademais, h algo de demasiado ligeiro na
ideia de que as obras daqueles grandes romancistas expressaria o senso
comum. Diria que Gusmo se torna vtima do efeito bumerangue do prprio
argumento. O fato de que se possa fetichizar conceitos no significa que devamos
abrir mo do conceito tout court. O uso pouco elucidativo que faz da noo
de senso comum prova disso. Veja-se, por exemplo, sua crtica que em
larga medida partilhamos fetichizao das generalizaes nas cincias do
homem. Gusmo defende, sadiamente, que no estabeleamos uma ruptura
epistemolgica com o universo intelectual do homem comum (GUSMO 2012,
p. 54). Todavia, a realizao de um trabalho sistemtico de investigao por
vezes exige que faamos exatamente isso: que no tomemos por expresso
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O Settembrini de A montanha mgica no estava to longe assim de Tolstoi quando perguntava: A arte
moral na medida em que desperta. Mas o que sucede quando ela faz o contrrio?. A tentativa de depurao
moral da literatura me parece ainda menos factvel que a da historiografia.
Srgio da Mata
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nas ltimas dcadas sobre o mestre paulista. Por esta razo, o pesquisador
interessado em aprofundar-se no estudo dos livros de Srgio Buarque extrair
relativamente pouco das anlises de Gusmo.
De toda sorte, no pouco o que Gusmo poderia ter ganho caso
tivesse prestado maior ateno s muitas investigaes conteudsticas que a
respeito tm sido publicadas. Vrias delas tm, inclusive, relativizado cada vez
mais a hiptese do weberianismo latente de Razes do Brasil. Onde Gusmo
cr identificar um excesso de ascendncia do socilogo alemo em Mones
(GUSMO 2012, p. 262-263), poder-se-ia igualmente apostar (convm ser
cuidadoso) numa ascendncia spengleriana. A passagem de Mones em que se
explora a conexo entre o uso de canoas e racionalizao do habitus sertanejo
s aparentemente se baseiam em Weber. H aqui, provavelmente, muito
maior influxo do estilo de pensamento caracterstico de O declnio do Ocidente.
Este no o lugar para discutir a importncia que teve o grande nome da
filosofia vitalista do entre-guerras sobre Srgio Buarque. O que cabe ressaltar
antes o fato de que, neste ponto, a abertura do socilogo Gusmo face
historiografia no chega s ltimas consequncias. Se no incio de O fetichismo
do conceito a histria surge um exemplo a ser seguido, ao fim ela se torna
objeto de dissecao, sem que, para isso, a prpria histria tenha sido chamada
a contribuir. Fosse este o caso, Gusmo teria evitado formulaes como a da
pgina 272, em que lamenta a adeso incondicional de Srgio Buarque tese
weberiana. Na verdade, Buarque aproximou-se relativamente cedo de um dos
primeiros grandes crticos da chamada tese weberiana: Henri Hauser, de quem
foi assistente na Universidade do Distrito Federal.
A excessiva acribia com que Gusmo localiza e critica longamente (GUSMO
2012, p. 310-314) um suposto paramarxismo em Buarque pelo simples fato
de fazer uso, inclusive com as devidas ressalvas, do conceito de classes mdias
em Do Imprio Repblica no mnimo desproporcional. Desproporcional face
acuidade e liberdade de pensamento ali expressas. Desproporcional, se pensarmos
no emprego infinitamente mais rgido e mecnico que, quela poca, se costumava
fazer dos conceitos marxistas. Desproporcional, enfim e sobretudo, porque, como
reconhece Gusmo, so bem raras (GUSMO 2012, p. 319) as evidncias de
paramarxismo em Srgio Buarque! Se os riscos do paramarxismo para a histria
e para as cincias sociais so assim to iminentes como acredita Gusmo, bastaria
o exemplo do prprio Max Weber para matizar um pouco o furor antimarxista de
O fetichismo do conceito. De Weber, Gusmo parece ter assimilado como poucos o
postulado da neutralidade axiolgica; entretanto Weber estava longe de demonstrar
a mesma rejeio pelo materialismo histrico. O estudo cuidadoso das primeiras
grandes publicaes acadmicas de Weber mostra a que ponto ali se lana mo, de
forma criativa e nada subserviente, de inmeros conceitos marxistas (MATA 2013).
Mais: se de fato h um projeto normativo em Razes do Brasil, no se pode dizer
que um estudo clssico como A tica protestante e o esprito do capitalismo estivesse
inteiramente livre do que Gusmo rejeita sob a expresso preocupaes normativas
tutelares (GUSMO 2012, p. 282). Tais preocupaes, a comear por Comte e
Durkheim, nunca estivarem inteiramente ausentes das cincias sociais.
265
Srgio da Mata
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Referncias bibliogrficas
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Thema.
Zeitschrift
fr
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Historiographical debates
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Palavras-chave
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Keywords
Debates historiogrficos
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270
reafirmar alguns ensinamentos dos pais da Escola dos Annales, Bloch (s/d) e
Febvre (1970): o de que a tarefa do historiador compreender; o de que o acesso
ao passado sempre feito de forma indireta, mediada; e aquele segundo o qual
cada poca constri mentalmente a sua representao do passado histrico.
Questes relacionadas ao conceito e tendncias da histria intelectual
so abordadas no captulo assinado por Fbio Hahn. Ao refletir sobre as
dificuldades de definio termo, Hahn recupera a discusso feita nas tradies
francesa, norte-americana e italiana, alm de mapear as linhas mestras desse
debate no Brasil, capitaneado por Francisco Falcon.1 No mbito das tendncias
da histria intelectual, embora reconhea a existncia de um grande nmero
de caminhos possveis, o autor destaca trs correntes: a contextualista, de
Quentin Skinner e John Pocock, a hermenutica, de Hans-Georg Gadamer,
e o desconstrucionismo de Jacques Derrida. Com base no dilogo com essas
correntes, Hahn analisa alguns conceitos que, na sua perspectiva, formam a
base estrutural da histria intelectual.
Como foi construda discursivamente a ideia de nacionalidade no Brasil
ao longo do sculo XIX e em incios do XX? Como foi tratada a questo racial?
Essas questes so debatidas no captulo de Jos Carlos dos Santos, que fecha
a primeira parte do livro. A temtica j foi objeto de estudo de diferentes
especialistas como Skidmore (1976), Lippi (1990), Carvalho (1990), Sandes
(2000) e Guimares (2006), ignorados pelo autor. Em A Hermenutica da
nao, Santos, professor da UNIOESTE, em vez de dialogar com essa produo,
opta por mergulhar no romance histrico Choque das Raas, de Monteiro Lobato,
para discutir a racialidade e a formao do carter do brasileiro.
A segunda parte do livro rene trabalhos especficos sobre o Paran
abarcando diferentes temporalidades e temticas. Falta entre a primeira e a
segunda parte uma maior relao, j que no segundo bloco os autores no
retomam as reflexes desenvolvidas no primeiro.
Abrindo essa seo, o captulo assinado por Antnio Marcos Myskiw ao
mesmo tempo em que reafirma a importncia da histria regional produzida
nas universidades pblicas do estado, como a UFPR, a UEM, a UEL a UNIOESTE
e o UNICENTRO, destaca a carncia de reflexes em relao a essa produo.
Myskiw visa preencher nesse trabalho uma lacuna detectada na histria do
Oeste do Paran para o perodo compreendido entre as ltimas dcadas do
sculo XIX e as primeiras do sculo XX, explorando a potencialidade e riqueza
dos relatos de viagens, escritos e publicaes entre os anos de 1876 e 1946. De
acordo com o autor, essas narrativas acabaram constituindo importantes fontes
na fundamentao de uma identidade regional paranaense.
O Oeste do Paran tambm trabalhado por Marco Aurlio Sella. O
enfoque, contudo, voltado para a histria das mulheres. No captulo Mulheres,
historiografia, gnero e o Oeste do Paran, num primeiro momento, Sella
discute questes que h muito povoam o universo dos debates empreendidos
1
Curioso que o autor no tem a mesma viso de Falcon de que a histria intelectual no Brasil h muito
caminha a passos lentos. Hahn mais otimista.
Debates historiogrficos
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Referncias bibliogrficas
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SANDES, No Freire. A inveno da nao: entre a monarquia e a repblica.
Gois: Editora da UFG, 2000.
SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento
brasileiro (1870-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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Pareceristas
deste nmero
reviewers of this issue
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Normas de
publicao
editorial guidelines
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279
Diretrizes para
autores
guidelines for authors
281
2) Sobre as palavras-chave
As palavras-chave devem comunicar os conceitos e/ou categoriais centrais do
estudo. A seleo criteriosa das palavras-chave facilitar a recuperao das
pesquisas, uma vez que tais palavras so utilizadas na indexao e busca de
estudos nas bases de dados cientficos.