Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca - Imprensa e Cidade

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Série Sociedade, Espaço e Tempo 3

t;
33
Apesar de não ser uma invenção do nosso o
tempo, a troca de idéias e informações Apoio
atingiu, no decorrer do século XX, Projeto Q
velocidades inimagináveis, com uma série Pedagogia □oi
de tecnologias acessíveis a boa parte da Cidadã am midcnle CaSJf».
população. Nesse contexto, é relevante «r T»>vt> Ato c«sp.cir
lífttrr o aumenta
rever o sentido da imprensa e sua função,
na nova sociedade.
O livro aborda a trajetória das
publicações periódicas brasileiras:
o surgimento dos primeiros jornais e
revistas, as transformações no
processo de produção dos impressos e
em sua estrutura interna, a
distribuição e a natureza das matérias
e dos recursos imagéticos disponíveis, a
profissionalização e a especialização
do jornalista, a segmentação dos
periódicos, sua atuação política e social
em momentos decisivos da história do
país, os interesses de que se fez (e se faz)
porta-voz, os desafios impostos pela
mundialização e as novas tecnologias.
Tais reflexões permitem especular se, Imprensa e cidade
na atual sociedade do espetáculo, da
ditadura do marketing e da força
do capital, há espaço para a crítica e
para a autonomia da mídia, força e
motor do mundo contemporâneo. Ana Luiza Martins
Tania Regina de Luca

Ana Luiza Martins é doutora em História


Social pela FFLCH-USP e historiógrafa do
Condephaat. Atualmente desenvolve i
pesquisas sobre a imprensa periódica na
íj
República.
Tania Regina de Luca é docente dos cursos de ISBN 85-7139-587-X
graduação e pós-graduação em História da :
UNESP/Assis e pesquisadora do CNPq.
Atualmente desenvolve pesquisas sobre a
imprensa no Estado Novo.
9 788571 395879
a píimdAÀÁUcvS
-
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho Curador


Marcos Macari ANA LUIZA MARTINS
Diretor-Presidente TANIA REGINA DE LUCA
José Castilho Marques Neto
X
Editor Executivo
Jézio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial Acadêmico


Antonio Celso Ferreira
Cláudio Antonio Rabello Coelho
Elizabeth Berwerth Stucchi
Kester Carrara
Maria do Rosário Longo Mortatti
Maria Encarnação Beltrão Sposito
Maria Heloísa Martins Dias
Mario Fernando Bolognesi
Paulo José Brando Santilli
Imprensa e cidade
Roberto André Kraenkel

Editores Assistentes /
Anderson Nobara
Denise Katchuian Dogniní
Dida Bessana /

COORDENAÇÃO DA COLEÇÃO PARADIDÁTICOS

João Luís C. T. Ceccantini

Raquel Lazzari Leite Barbosa


Ernesta Zamboni
Raul Borges Guimarães COLEÇÃO PARADIDÁTICOS
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SÉRIE SOCIEDADE, ESPAÇO E TEMpO
©2006 Editora UNESP

Direitos de publicação reservados à:


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Tei.:(0xxl 1)3242-7171
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www.editoraunesp.com.br
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©í
u
CIP — Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M34Ii A Coleção Paradidáticos foi delineada pela Editora UNESP


com o objetivo de tornar acessíveis a um amplo publico
Martins, Ana Luiza
obras sobre ciência e cultura, produzidas por destacados
Imprensa e cidade /Ana Luiza Martins, Tania Regina de Luca. São
Paulo: Editora UNESP, 2006 (Paradidáticos. Cultura) 'pesquisadores do meio acadêmico brasileiro.
/
Os autores da Coleção aceitaram o desafio de tratar de con­
Inclui bibliografia /
ISBN 85-7139-587-X ceitos e questões de grande complexidade presentes no debate
científico e cultural de nosso tempo, valendo-se de aborda­
1. Imprensa - Brasil - História. 2. Jornalismo - Brasil - História.
3. Imprensa — Inovações tecnológicas — Brasil. 4. Periódicos brasileiros — gens rigorosas dos temas focalizados e, ao mesmo tempo,
História. I. Luca, Tania Regina de. II. Título. III. Série. sempre buscando uma linguagem objetiva e despretensiosa.
Na parte final de cada volume, o leitor tem à sua dis­
06-2265. CDD 079.81 posição um Glossário, um conjunto de Sugestões de leitu­
CDU070 (81)(09)
ra e algumas Questões para reflexão e debate.
O Glossário não ambiciona a exaustividade nem preten­
de substituir o caminho pessoal que todo leitor arguto e
criativo percorre, ao dirigir-se a dicionários, enciclopédias, \
sites da internet e tantas outras fontes, no intuito de expandir
EDITORA AFILIADA: os sentidos da leitura que se propõe. O tópico, na reali-'

Aaoctackín dc Edllorlajes Universitárias


de América Latina y el Caribe
0S80
Associação DraslJcIra dc
Editoras. Universitárias >A'o,jnoxiO^'
dade, procura explicitar com maior detalhe aqueles con­
ceitos, acepções e dados contextuais valorizados pelos
próprios autores de cada obra.
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA

As Sugestões de leitura apresentam-se como um comple­


mento das notas bibliográficas disseminadas ao longo do
texto, correspondendo a um convite, por parte dos auto­
res, para que o leitor aprofunde cada vez mais seus SUMÁRIO
conhecimentos sobre os temas tratados, segundo uma pers­
pectiva seletiva do que há de mais relevante sobre um dado
assunto.
As Questões para reflexão e debate pretendem provocar INTRODUÇÃO 9
intelectualmente o leitor e auxiliá-lo no processo de ava­
liação da leitura realizada, na sistematização das informa­ CAPfTULO 1
ções absorvidas e na ampliação de seus horizontes. Isso, Imprensa tardia: implantação (1808 a 1889) 16
tanto para o contexto de leitura individual quanto para as
situações de socialização da leitura, como aquelas reali­ CAPÍTULO 2 '
zadas no ambiente escolar. Imprensa profissionalizada (1889 a 1930) 35
A Coleção pretende, assim, criar condições propícias
t'’ •

para a iniciação dos leitores em temas científicos e cultu­


CAPÍTULO 3
rais significativos e para que tenham acesso irrestrito a
j Imprensa em ação (1930 a 1945) 52
conhecimentos socialmente relevantes e pertinentes, ca­ /
/
pazes de motivar as novas gerações para a pesquisa.
CAPÍTULO 4
Imprensa livre (1946 a 1964) 73

CAPÍTULO 5
Imprensa traída (1960 a 1987) 93

CAPÍTULO 6
Imprensa globalizada (1988 a 2004) 116
\

CONCLUSÃO 127

GLOSSÁRIO 132
SUGESTÕES DE LEITURA 134
QUESTÕES PARA REFLEXÃO E DEBATE 136

6
t INTRODUÇÃO

O Sol nas bancas de revistas


Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Alegria, alegria.
Caetano Veloso (1967)

'?

A pergunta não podería ser mais atual. Além da enorme


diversidade de jornais e revistas disponíveis nas bancas,
dós vários noticiários das televisões abertas, das rádios que
ininterruptamente “tocam notícia” e “prestam serviços”,
contamos com canais pagos cujo fim único é colocar, em
tempo real, seus assinantes a par do que se passa nos mais
distantes pontos do planeta, e com a internet, a rede mun­
dial de computadores, fonte inesgotável de dados. Isso sem
7 mencionar os celulares, por meio dos quais se pode rece­
ber e transmitir mensagens textuais e imagens.
Há um exército de profissionais que se dedica a nos
apresentar e explicar o mundo: a previsão do tempo, a si­
Para Mariana de Luca e Aldo de Crescí. tuação do trânsito, o mercado financeiro, a política nacio­
nal, os conflitos e as catástrofes em locais distantes, as
V ocorrências policiais, os resultados das competições espor- \
tivas, as descobertas da ciência, os conselhos para uma
vida saudável, os últimos lançamentos das gravadoras, ‘
editoras e estúdios de cinema, a programação e as novida­
‘í
des das redes de tevê, enfim, procura-se contemplar todos
os interesses, gostos e preocupações. Pode-se afirmar que
ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

o conhecimento que temos da realidade é mediado pelos século XIX, era esta: aos periódicos cabería a nobre fun­
fatos divulgados pela imprensa escrita e radiotelevisiva. ção de vigiar a atuação do executivo, legislativo e judiciá­
É óbvio que a troca de idéias e informações não é uma rio. Os regimes autoritários impuseram (e ainda impõem)
invenção do nosso tempo. Entretanto, foi no decorrer do .9 limites às atividades jornalísticas, por meio da censura,
século XX, graças ao enorme avanço tecnológico dos meios apreensão de edições, proibição de circulação, perseguição
de comunicação de massa, que a circulação de dados atin­ de profissionais etc. Assim, a liberdade de expressão é uma
giu velocidades até então inimagináveis. Telefones fixos, das características definidoras das sociedades democráticas.
rádios, televisores, aparelhos de fax, pagers e celulares fo­ Contudo, tal exercício de vigilância não é isento de
ram se tornando acessíveis a camadas cada vez mais am- tensões e pode ser considerado como uma função de na­
pias da população. tureza pública, desempenhando, muitas vezes, papel fun­
Os satélites tornaram possível a interconexão de todo damental em prol dos interesses da sociedade civil. Jornais,
o planeta e a transmissão dos acontecimentos no mesmo revistas, rádios e televisões são empresas e, portanto, tam­
instante que se desenrolam, cruzando limites antes impos­ bém buscam lucros. De outra parte, negociam um produ­
tos pelas fronteiras nacionais. A rede internacional de to muito especial, capaz de formar"opiniões, (des)estimular
computadores, que também desfruta de significativo grau comportamentos, atitudes e ações políticas. Elas não se li­
de autonomia em relação aos poderes constituídos, inau­ mitam a apresentar o que aconteceu, mas selecionam, orde­
gurou a era dos sites, do correio eletrônico (e-mail), blog, nar^ estruturam e narram, de uma determinada forma, aquilo
messenger e orkut, potencializando o intercâmbio imediato que'elegem como fato digno de chegar até o público.
(on-line) de dados. E importante ressaltar que a revolução j O controle de meios tão significativos determinou
digital não só alterou a nossa forma de apreensão do tem­ aproximações nem sempre éticas entre os ocupantes do
po e do espaço, mas também uniu, num único supor­ poder e os proprietários dos meios de comunicações. Não
te, sons, imagens e a palavra escrita, abrindo ao usuário faltam exemplos, nos mais diferentes países, de subven­
desses materiais novas possibilidades de leitura, manuseio P ções, favorecimentos, financiamentos privilegiados, isen­
e intervenção. ções e facilidades de toda ordem para empresas que se
Do ponto de vista estritamente técnico, não há limi­ mostraram sensíveis às necessidades e interesses governa­
tes para a disseminação das notícias, o que poderia ser mentais. A pressão dos anunciantes, fonte fundamental
saudado como a concretização definitiva de um dos pres­ de sustento, também não pode ser menosprezada e não é
supostos essenciais dos regimes democráticos modernos: à toa que se afirma que o jornal é vendido duas vezes: uma
o direito à informação. X para os que anunciam nele e outra para o leitor.
Atribuímos à imprensa escrita, historicamente o pri­ Nas últimas décadas do século passado ocorreram . ,
meiro meio de comunicação de massa, papel central na transformações importantes no âmbito econômico. A
defesa dos interesses dos cidadãos contra quaisquer tipos automação acelerada, a mobilidade sem precedentes de
y*
de^i°Iações e abusos cometidos pelo Estado. A origem da capitais, mercadorias e informações aumentaram a produti­
noção de quarto poder, forjado na Inglaterra do início do vidade do trabalho e alteraram o processo produtivo como um

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ANA IUIZA MARTINS t TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIOAOE

todo. A auto-suficiência e o isolamento das economias e ___ visões alternativas à instaurada pelos grandes grupos. No
países foram substituídos pelo intercâmbio em escala mun-> Brasil, merece destaque o programa Observatório da im­
dial num processo que tem sido denominado globalização.' prensa, desde 1998 semanalmente apresentado por Alberto
As empresas de comunicações não ficaram imunes a tais r Dines e transmitido pela rede pública de televisão.
mudanças. Surgiram empresas gigantescas que unem, Pode-se perguntar: seria prudente confiar no que está
num único conglomerado, gravadoras, editoras, emisso­ . nos jornais, televisão e rádio? A dúvida, se não é recente,
ras de rádio, tevê, jornais, revistas, parques temáticos, ganhou novos sentidos no contexto atual. Não se pode
\
produtoras de cinema, ou seja, informação e produção alcançar a objetividade completa, como acreditavam aque­
voltadas para o consumo de massa, com interesses globais les que pensavam na separação absoluta entre o sujeito e
e que movimentam enormes capitais e detêm grande dose o objeto investigado, mas isso está longe de significar que
de poder político. No Brasil a situação não é diversa. Se­ a imprensa deva (ou possa) abrir mão da ética e de suas
gundo pesquisa recente, seis redes privadas dominam o responsabilidades sociais.
meio televisivo e a elas estão associados 667 outros veí­ Vários estudiosos têm chamado atenção para o fato de
culos, sendo 309 emissoras de televisão e 358 veículos de os temas abordados e as opiniões apresentadas responde­
outros segmentos, como rádios e jornais diários.1 rem menos aos interesses coletivos dos cidadãos do que
Nesse contexto, vários analistas têm ressaltado que a aqueles defendidos por certos grupos políticos e econômi­
defesa dos interesses econômicos e valores ideológicos cos. Ao mesmo tempo, é evidente a tendência de se dar pre­
compartilhados pelos acionistas dessas macroorganizações ferência,às notícias interessantes e que distraem, mas que
acabou por afetar sua capacidade de atuação crítica, de­ não são/ necessariamente, importantes para o leitor/espec­
núncia e vigilância, porque passaram a integrar o próprio tador, encarado apenas como um consumidor em potencial.
A Confrontação de idéias e posturas, por sua vez, deu
poder que deveríam fiscalizar.
Talvez nada indique de forma mais clara o desgaste do espaço para notícias a respeito de personalidades e auto­
“quarto poder” do que o fato de agora se considerar essen­ ridades públicas, num procedimento que contribui para
cial a criação de um quinto, a fim de examinar as práticas esvaziar o potencial crítico da cobertura política. Assim,
jornalísticas predominantes nos empreendimentos midiá- foi exemplar nesse sentido a atuação das mídias na guerra
ticos e proteger o cidadão delas.2 E sintomático que se contra o Iraque, que repetiram as declarações deTony Blair
tenham multiplicado os fóruns de discussão a respeito da e George W. Bush, como se fossem suficientes para expli­
qualidade da informação difundida pela imprensa e sua citar todas as motivações do conflito.
crescente mercantilizaçao, numa tentativa de construir t Observa-se também um crescente declínio das repor­
tagens de cunho investigativo, elaboradas com esforços dos
1 Pesquisa realizada cm 2002, sob a responsabilidade de Daniel Herz. Entrevista próprios profissionais, que se dedicavam a averiguar atos
do autor disponível em www.tvcbrasiI.com.br/observatorio/programa.Accssoem
janeiro/2004.
ilícitos de instituições ou indivíduos, tal como ocorreu no
2 O termo quinto poder foi proposto por RAMONET, Ignácio. Le cinqutème povoir. caso Watergate (1972-1974), que culminou com a renún­
Le Monde Diploma tique, octobre, 2003. Disponível no site www.monde-
dipIomatique.fr. Acesso em dezembro/2003. cia do presidente norte-americano Richard Nixon. O tra-

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12
ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

balho de ir em busca das informações tem sido substituí­ Neste livro, abordaremos a trajetória das publicações
do pelas "fontes oficiais, documentos secretos, dossiês ex­ periódicas brasileiras: o surgimento dos primeiros jornais
clusivos", que revelam "o essencial” sobre dado assunto, e revistas, as transformações no processo de produção dos
sem que o jornalista se dê ao trabalho de sair da redação e 9 impressos, as mudanças em relação à estrutura interna,
descobrir por si os fatos relatados ou mesmo verificar a cor­ distribuição e natureza das matérias e dos recursos ima-
reção do que lhe é apresentado. \ géticos disponíveis, a profissionalização e especialização
Tal jornalismo, que altera a própria natureza do traba­ do jornalista, a crescente segmentação dos periódicos, que
lho do repórter, é baseado em revelações transmitidas pe­ se destinam a públicos e setores sociais cada vez mais es­
los que tinham interesses na divulgação de certos dados, pecíficos, sua atuação política e social em momentos de­
muitas vezes fabricados nos bastidores do poder. Além dis­ ! cisivos da história do país, os interesses de que se fez (e
so, está associado a uma cultura que valoriza a exclusivida­ se faz) porta-voz, os desafios impostos pela mundializaçãõ
de, informes diferenciados, aspectos e detalhes inusitados. e novas tecnologias, que vêm alterando profundamente
Outro ponto a ser destacado é a grande importância não só o modo de operar das redações, mas também o sen­
atribuída ao presente, propiciada pela cobertura imediata tido e o lugar social atribuído à imprensa.
e ao vivo, o que tem provocado o aprofundamento da des-
contextualização e fragmentação da informação. A velo­
cidade com que as notícias se sucedem e se sobrepõem / .
acaba gerando a tirania do último informe, contribuindo /
/
poderosamenté para que o importante de hoje esteja es­
quecido na edição da noite ou, no máximo, na de amanhã.
Predominam, portanto, a superficialidade, a rapidez e o
acúmulo de dados, sem que o leitor, ouvinte ou telespec­
tador tenha oportunidade efetiva de conhecer. Já não se
trata de perguntar apenas quem lê tanta notícia, mas se
quem ouve e vê é capaz de compreender tanta notícia.
Ao mesmo tempo que a tecnologia amplia de forma
inusitada a circulação de dados e festeja a era da socieda­
de da informação, a atividade jornalística atravessa um
período de descrédito significativo, deixando uma sensa­
ção de desinformação, apesar da avalanche de notícias que
nos alcança em toda parte. Para compreender o cenário
contemporâneo - e o brasileiro em particular - é impor­
tante acompanhar por que a imprensa, antes prestigiada,
chegou ao século XXI sendo tão questionada.

1S
14
k IMPRENSA E CIDADE
!

funcionamento da imprensa no Brasil. O principal bloqueio


também provinha do caráter mercantil capitalista dessa ati­
: vidade, inviável no país analfabeto e escravocrata, sem consu­
1
11mprensa tardia: midores, no qual pesavam a natureza feitorial da colonização,
implantação (1808 a 1889) a presença das populações indígenas, a ausência de urbani­
zação, a precariedade da burocracia estatal, a incipiência das
atividades comerciais e industriais. Não havia condições
Imprensa, universidades, fábricas —nada disso nos convinha, materiais para a implantação e desenvolvimento de uma prá­
na opinião do colonizador. Temiam, os portugueses, deixar entrar tica presidida pelas leis de mercado e que se vinha consti­
aqui essas novidades e verem, por influência delas, escapar-lhes tuindo como negócio nos centros urbanos internacionais.1
das mãos a galinha dos ovos de ouro que era para eles o Brasil. Essa conjuntura, adversa à propagação da palavra es­
Isabel Lustosa crita, não impediu que ocorressem algumas experiências
episódicas com gráficas clandestinas. O exemplo mais
conhecido foi aquele do tipógrafo Antonio Isidoro da Fon­
Para iniciar, um fato surpreendente: a imprensa criada por seca, cuja tentativa de impressão no Rio de Janeiro, em 1747,
Gutenberg, no século XV — e que rapidamente se espalhou custou-lhe a apreensão da tipografia e o exílio para Lisboa.
pelo mundo —, levou três séculos para chegar ao Brasil,
;
Então, como ficavam a divulgação de notícias de inte­
I
aportando no país apenas no século XIX. O registro é alar­ ressada Metrópole e os registros das Câmaras, que deve-
mante, pois no quadro das Américas, as colônias espanho­ rian^ circular nas cidades da Colônia? Na inexistência de
las e norte-americanas conheceram precocemente a im­ jornais, cabia aos “bandos” a propagação das ordens do
prensa, figurando o Brasil como um dos únicos países do governo, isto é, a notícia lida em voz alta, nas praças pú­
mundo a não dispor de prelos, com exceção daqueles da blicas, por emissários do rei, anunciadas após o rufar dos
Ásia e da África. tambores e, em seguida, afixadas na porta da residência da
Várias são as razões desse atraso. A mais flagrante está mais alta autoridade local. Quanto aos registros das Câ­
no caráter severo e censurador da administração portugue­ maras, ocorriam de forma manuscrita, assim como foi
sa, a quem não convinha levar o esclarecimento da pala­ manuscrito o primeiro jornal que apareceu em São Paulo,
vra impressa à população de territórios que se prestavam o bissemanário O Paulista (1823), publicado pelo profes­
apenas à exploração comercial. Outro entrave vinha da sor de gramática latina e retórica, Antonio Mariano de
forte presença da Igreja Católica, parceira do Estado no Azevedo Marques, “O Mestrinho”. Os assinantes apanha­
projeto colonial, não lhe interessando divulgar outro meio vam o jornal na casa do redator e cada cinco assinantes
de comunicação do conhecimento que não aquele da ca­ recebia um exemplar. Isso, em pleno século XIX, logo após ' \
tequese, controlador das mentes.
Contudo, não só a falta de vontade política da Coroa, í 1 MELLO, Josc Eduardo Marques de. Sociologia da Imprensa Brasileira. Petró-
o rigor da Igreja e o peso da censura coibiram o inicial polis: Vozes, 1973. p.92, 94.

!
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ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE IUCA IMPRENSA E CIDADE

a Independência... O Brasil viveu seus três primeiros sé­ regularmente, impresso em Londres, um sério concorrente:
culos de existência imerso em trevas, desconhecendo os era o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa.
meios de comunicação que já marcavam o cotidiano <la
Europa e de alguns países da América, visto que estava Experiência pioneira: Correio Braziliense
entre a forte repressão da Metrópole, o controle da Igreja
e a ausência de mercado. A liberação da imprensa incentivou um homem de visão a
Essa situação mudaria, repentinamente. criar um jornal disseminador de idéias e questionador de
rumos políticos. Considerado o primeiro jornalista do
Enfim, os primeiros prelos... Brasil, o brasileiro Hipólito José da Costa, formado em
Coimbra e exilado em Londres por razões políticas, iniciou
A transferência da Corte portuguesa para o Brasil, pressio­ da capital londrina, em l2 de junho de 1808, a publicação
nada pela invasão napoleônica, foi o começo de tudo. do jornal Correio Braziliense. Antecipava-se à circulação
Naquele mesmo ano (1808) a imprensa aportava no Rio da Gazeta do Rio de]aneiro, cujo primeiro número sairia
de Janeiro com uma tipografia completa. Na grande esqua­ quase três meses mais tarde.
dra que zarpara para o Brasil, trazendo por volta de 1.500 O Correio Braziliense punha a Colônia em contato com _
pessoas, vinham também os livros que faziam parte da o mundo, trazendo as notícias internacionais ao Brasil e
Biblioteca Real. Imprensa e livros entravam pela primeira informando sobre a independência das demais colônias
vez em caráter oficial no país. Mais que uma mudança fí­ americanas. Segundo Alberto Dines, o nosso primeiro jor­
sica, de pessoas e objetos, tinha início — com forte inter­ nalista realizou dupla façanha: “a publicação em Londres
mediação da imprensa — a transformação que quatorze anos do primeiro periódico jornalístico brasileiro e do primeiro
depois levaria a Colônia à sua Independência. veículo livre de censura da imprensa portuguesa.”2 Circu­
A abertura dos portos às nações amigas foi decisiva para lou mensalmente até dezembro de 1822, totalizando 175
romper com o tradicional isolamento do Brasil, inserindo- números de 96 a 150 páginas.
o numa inicial economia de mercado. Nesse novo quadro, Ambos os jornais — Gazeta do Rio de Janeiro e Correio
a circulação de impressos tornou-se imprescindível, razão Braziliense — teriam praticamente a mesma duração e en­
pela qual o príncipe regente D. João criou oficialmente a cerraram suas atividades às-vésperas da Independência.
Imprensa Régia, em 13 de maio de 1808. Em terras brasileiras, o novo contexto incentivou ações
Em setembro foi lançada a Gazeta do Rio de Janeiro, que de particulares, que arriscaram negócios próprios de im­
até 1821 foi a única publicação em forma de jornal do país. pressão gráfica. O mais importante deles data de 181 na
Daqueles prelos saiu todo tipo de impresso, inclusive, em Bahia, iniciativa de Manuel Antonio da Silva Serva, cuja
1813, a segunda revista periódica do Brasil, O Patriota, gráfica publicou a gazeta Idade D Ouro do Brasil, que se
' n
Jornal Literário, Político e Mercantil.
2 Prefácio ao vol. XXX da edição fac-similar do Correio Braziliense, ou Armazém
A Gazeta do Rio de Janeiro não foi o único jornal lido no Literário. Hipólilojoséda Costa. S3o Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasí­
lia: Correio Braziliense, 2002, p.9.
Brasil naquele momento. Com maior qualidade, chegava

18 19
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA
IMPRENSA E CIDADE

estendeu até 1819. Também no Recife, por volta de 1815, meira Constituição Brasileira. Uma imprensa que nascia
Rodrigo Catanho importava uma tipografia que seria de nacionalista e antilusitana.3
muita utilidade na Revolução Pernambucana, de 1817. E vasto o repertório de folhas que marcaram aquele es­
Essas raras manifestações registradas ao tempo da Co­ pecial momento de transição. Em defesa da situação, favo­
lônia ocorreram nas poucas cidades que se constituíam em ráveis à manutenção dos laços com Portugal, circularam O
centros administrativos ou de algum consumo, nas quais Bem da Ordem (1821) e O Conciliador do Remo Unido
uma publicação tinha razão de ser, fosse por necessidades (1821). Posicionando-se contra as Cortes na defesa dos
do governo (caso da Gazeta do Rio de Janeiro), por propa­ interesses do Brasil vieram O Revérbero Constitucional Bra­
ganda política (Correio Braziliense, em Londres), como sileiro (1821), O Es-pelho (1821), A Malagueta (1821); ques-
negócio gráfico (Idade D’Ouro do Brasil, em Salvador), tionador e sagaz, sobreveio O Correio do Rio de Janeiro (duas
como instrumento político (Gráfica de Rodrigo Catanho, fases, 1822 e 1823). Instigantes, ousados e nativistasforam
em Recife). os jornais O Macaco Brasileiro (1822) e O Papagaio (1822).
No entanto, um dos maiores entraves para aquela ati­
vidade advinha do peso da censura que pairava sobre todo Dos Sentinelas para os Auroras
o Império português, situação que mudaria, em parte,
após 1821. A Independência proclamada em 1822 fez da imprensa o
veículo preferencial de divulgação do processo emancipa-
Entre Revérberos, Malaguetas, Macacos e Papagaios dor do país. Circularam então com destaque o Diário do
Gloverno (1823), antiga Gazeta do Rio de Janeiro, O Tamoio
No ano de 1821, a nova Constituição das Cortes de Lis­ (J\ 823), A Sentinela da Liberdade à Beira do Mar da Praia
boa aprovava o fim da censura. No Rio de Janeiro, o prín­ Grande (1823), A Estrela Brasileira (1823), O Silpho{\ 823).
cipe regente D. Pedro antecipou-se à lei determinando pelo Nesses impressos estão as contribuições de nossos
Aviso de 28 de agosto de 1821 que não se criasse nenhum jornalistas inaugurais, inclusive do Imperador. Na sua
obstáculo à impressão de escritos. maioria da elite local, esses redatores eram formados na
Seguiu-se então o jornalismo apaixonado das campa­ Universidade de Coimbra ou provinham dos quadros da
nhas liberais, definidor de práticas e posturas que subsi­ Igreja. Como notáveis oradores sacros figuram naquela im­
diaram o processo de Independência do Brasil. Por aquelas prensa Monsenhor Januário da Cunha Barbosa, d’ O Revér­
folhas, gazetas, pasquins e panfletos, de duração efême­ bero Constitucional, e o cônego Francisco Vieira Goulart, \
ra, delinearam-se linhas editoriais como expressão de gru­ d’ O Bem da Ordem, lembrando também os combativos
pos políticos inflamados, registros do jornalismo polêmico panfletos do Padre Perereca.
e contestador da emergência da nação. Como demonstrou ***
Isabel Lustosa, foram aqueles "Insultos Impressos” que
acabaram por fazer o Fico, fomentaram o movimento de 3 LUSTOSA, Isabel. Iitstillos Impressos. Aguerra dos jornalistas na Independência.
Independência e alimentaram o encaminhamento da Pri- 182 1 *1823. S3o Paulo: Companhia das Lelras, 2000.

I
20 21
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

Mais veementes na defesa da liberdade registram-se as Essa linguagem textual engataria com aquela ilustrada
atuações de Joaquim Gonçalves Ledo em O Revérbero da Regência quando, mais que a palavra, coube à imagem
Constitucional e do baiano Cipriano Barata, no Sentinela reproduzir o cotidiano e criticá-lo até de forma perversa.
da Liberdade. Envolvidos no mesmo ideal, traziam sua Para esse jornalismo doutrinadore caricato, foi comum o
experiência de fora o italiano da Sardenha Joseph Stephano uso do anonimato, conseqüência da permanente repres­
Grondona, responsável pelo A Sentinela da Liberdade à são que presidira o país.
Beira do Mar da Praia Grande, e o português Luiz Augus­
to May, redator de A Malagueta. Império de poucas cidades e fracas letras
Seria no período subseqüente que a imprensa brasilei­
ra se faria representar por um dos mais qualificados órgãos A atmosfera de culpa e medo que marcara a Colônia em
políticos do período: o jornal A Aurora Fluminense, que parte se rarefaz no Império, diante do avanço das idéias
não conheceu a vida efêmera dos pasquins, estendendo- liberais. Mas a mudança fundamental ainda não ocorrera.
se por oito anos. Fundado em dezembro de 1827 pelo li­ Em lugar da República laica vingara a Monarquia católica,
beral moderado Evaristo da Veiga, livreiro e deputado por com Igreja e Estado compartilhando o poder, cerceando
Minas Gerais, apresentava proposta intermediária às pu­ educação e mentes.
blicações da época, isto é, conter os arroubos absolutis- A economia rural, assentada na escravidão concentra­
tas de D. Pedro I e também os ímpetos dos jornais radicais, da no campo, contribuiu para a permanência da incipien-
a exemplo de A Nova Luz Brasileira (1829), O Repúblico j te rede urbana, composta de aglomerados que estavam
(1830) e o Jurujuba dos Farroupilhas (1831). • longe de figurar como cidades com dinâmicas próprias.
/
Nessa produção marcada por vocábulos prenunciado­ Jornais e algumas revistas podiam ser adquiridos apenas nos
res da esperança — Aurora Pernambucana (1821), Aurora centros administrativos de maior expressão, cujo quadro
Fluminense (1827) - e da posição de alerta dos tantos Sen­ burocrático, presumivelmente leitor, consumia impressos.
tinelas, insinuou-se a veia jocosa, vocação do país em di­ A começar pelo Rio de Janeiro, sede da Corte, com cem
vulgar os acontecimentos de forma caricata: o Diário do mil habitantes, abrigando comunidades estrangeiras ávidas
Rio de Janeiro (1821), ocupando-se das questões locais por negócios. Ali, o jornal era o veículo disseminador de no­
cotidianas que, pela popularidade, passou a ser chamado tícias, inclusive em língua estrangeira. Salvador e Recife pros­
de Diário do Vintém, em razão do preço, e também Diário seguiam com a imprensa remanescente dos tempos coloniais,
da Manteiga', porque informava o preço daquele produto. assim como Vila Rica e São João Del Rey, em Minâs Gerais;
Daí para os jornais de caricaturas foi um passo. cidades da província do Rio Grande (atual Rio Grande do \
Quanto à imprensa política, que conheceu momentos Sul) já possuíam prelos, chegando a imprimir livros redi­
de altivez e postura qualificada, caiu no achincalhe verbal, gidos por mulheres; São Paulo, núcleo acanhado, antes mes­
valendo-se de termos chulos. A fala solene do púlpito, as mo que o café lhe mudasse a fisionomia, abrigava uma
mensagens de vocabulário castiço de “preito ao rei” deram Faculdade de Direito, geradora de idéias, escritos e jornais,
lugar ao texto informal e irreverente do jornalismo local. figurando como centro promissor do jornalismo no Brasil.

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ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA OE LUCA IMPRENSA E CIDADE

Contudo, a disseminação da palavra se fazia de forma púlpitos para o impresso que circulava no espaço urbano.
lenta naquele exótico Império tropical, a julgar pela limi­ Ali, a imprensa tornou-se instrumento decisivo para o
tada evolução da Impressão Régia. Os primeiros equipa­ exercício da política.
mentos de 1808 só seriam substituídos em 1845 por prelo r À Faculdade de Direito estão ligados o primeiro jornal
mecânico; em 1877 iria se reequipar por meio de módico impresso local, o Farol Paulistano (1827), com redatores
investimento, para modernizar-se com a República, quan­ dos quadros da recém-criada Academia; o segundo jornal,
do adquiriu uma Active, de Marinoni, e duas Alauzet. A de oposição ao absolutismo, O Observador Constitucional
primeira rotativa chegaria só em 1902. (1829) do médico italiano Libero Badaró; o primeiro jor­
Assim como o jornalismo da Independência se fizera por nal diário da cidade, O Constitucional (1853), com qua­
uma imprensa política até expressiva para-o meio, também tro páginas; o Correio Paulistano (1854), primeiro grande
naquele do Império os jornais e gazetas disseminaram-se jornal da imprensa paulistana.
em função da propaganda política e da crítica ao governo. Entre O Paulista (1823) e o Correio Paulistano (1854),
E não abrigaram só a contestação. Naquele momento, a só na Capital, circularam 64 periódicos, em geral de curta
busca da identidade nacional passava pela criação de uma duração, mas servindo a dois propósitos: às correntes po­
literatura pátria e coube àquela imprensa divulgar a pro­ líticas em curso e à produção de uma literatura nacional.
dução literária local. Seus editores e redatores, na maior parte, provinham dos
bancos da tradicional Escola de Direito. Em 1875, forman­
do, seus quadros com ex-alunos, nascia o jornal A Provín-
Do púlpito à academia
cija de S. Paulo, atual O Estado de S. Paulo, até hoje em
çirculação.
O local dessa produção foi a primeira faculdade de cunho Naquela produção confirmava-se a tradicional e uni­
humanístico do país, a tradicional Academia de Direito do versal divisão do periodismo: aos jornais, a função de com­
Largo de São Francisco, em São Paulo, criada em 11 de agosto bate, a imprensa política; e às revistas, a reflexão temática
de 1827, junto com a Faculdade de Direito do Recife.4 aprofundada, a imprensa literária.
Daquela célula de produção de letrados saíram novas
gerações familiarizadas com a palavra impressa, que fize­ A oportunidade das revistas
ram da imprensa o instrumento de sua ação. Interrompiam
a cadeia de escritos produzidos quase que exclusivamen­ O formato revista merece consideração no processo his­
te por representantes do clero ou pelos egressos da Uni­ tórico da imprensa brasileira, espaço alternativo, senão
v
versidade de Coimbra e transferiam a oratória sacra dos único, para o literato colocar-se em letra impressa. A mo- ,
dalidade esteve presente na Colônia, foi expressiva no
Império e difundiu-se como gênero de sucesso no país.
4 Ver: MARTINS, Ana Luiza; BARBUY, Heloísa Arcadas. História da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo. S3o Paulo: Alternaliva/Melhoramen-
í Seu caráter de leitura ligeira e amena, acrescido do recur­
los, 1999. so da ilustração, adequava-se ao consumo de uma popu-

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ANA IU1ZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

lação sem tradição de leitura, permitindo a assimilação tra a censura vigente, bem como o desenho, como expres­
imediata da mensagem.5 são plausível de fácil e imediata comunicação.
Sua introdução no Brasil também ocorreu por um mo­ Da oralidade divertida registrada na Colônia, chegou-se
dismo, dado que o gênero vinha se consagrando na Euro­ rapidamente à proliferação do desenho satírico do papel
pa como espaço suplementar para a publicação de textos impresso da Regência, constituindo-se o traço caricatu­
literários e/ou científicos. Na qualidade de abrigo literário rado numa das linguagens de maior aceitação do Brasil.
editaram-se as duas revistas inaugurais do Brasil: na Bahia, Isso ocorreu não por obra imediata da introdução dos pre­
As Variedades ou Ensaios de Literatura (1812); no Rio de los, em 1808, mas por arte dos tantos transplantes que
Janeiro, O Patriota, jornal literário, -político e mercantil pontuaram nosso ansioso e desesperado ajuste com o tem­
(1813), trazendo no título termo proibido na época, de cu­ po cultural dos países ditos “adiantados”, sobretudo quando
nho revolucionário, suscitando o sentimento nativista. ateliês e/ou oficinas litográficas, engendrando um merca­
Marcante, entretanto, foi o lançamento de Niterói, Re­ do, subsidiaram as iniciais ilustrações..
vista Braziliense, Ciências, Letras e Artes (1836), em Paris. O recurso da ilustração periódica também vinha na
Com a chamada “Tudo pelo Brasil e para o Brasil" preten­ esteira de um modismo — aquele dos jornais caricatos que
dia ser de alta cultura, idealizada pelos representantes de faziam sucesso na Europa. Em particular na França, onde
nossa primeira geração literária romântica: Gonçalves de o talento do caricaturista Honoré Daumier (1808-1879)
Magalhães, Salles Torres Homem, Araújo Porto-Alegre e /'imprimia em desenho as contradições e ironias da Paris
Monglave. ' pós-revolução burguesa de 1830, num quadro de baratea­
/
Um gênero de revista sobressaiu no quadro da impren­ mento das ilustrações e multiplicação das folhas periódi­
sa do Império, representação daquele tempo cultural adver­ cas, espaços de liberdade e recreação.
so: as revistas ilustradas de caricaturas, que através do humor Não seria diferente no Brasil, onde os modismos não
e do chiste espelharam o cotidiano do país e marcaram nossa tardavam a chegar. Desta vez, através de Manoel de Araú­
formação. Foi esta modalidade que obteve enorme suces­ ç jo Porto-Alegre (1806-1879), talentoso pintor brasileiro
so, nas terras de fracas letras, população escrava, forte cen­ que vivenciou a experiência em Paris, transplantando-a
sura e iniciante mercado consumidor. para o Rio de Janeiro. Há consenso em atribuir-lhe a vei-
culação da primeira caricatura no Brasil, impressa no Jor­
"'Rindo se criticam os costumes" nal do Comércio (1827), no ano de 1837. O tema? Uma
cena de suborno, metáfora prenunciadora e recorrente até
A comunicação pelo humor e pela caricatura ganhou re­ nossos dias da corrupção no país. Em 1844 lançou um dos
levo no país avesso à propagação da palavra escrita. A vál­ primeiros jornais de caricatura do Brasil Independente,
vula de escape do humor funcionou como antídoto con- irônico e engraçado: A Lanterna Mágica - Periódico Piás■<
tico-Filosófico.
5 Ver: MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista. Imprensa e práticas culturais Não tardou para que outros impressores, ilustradores
em tempos dc República. 1890-1922. S3o Paulo: Fdusp; Imcsp; Fapesp, 2001,
espccialmcntc Capítulo I. p.38 a 1 10. e jornalistas de talento investissem no gênero, que se pro-

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ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

pagou por todo o Império como uma das formas de expres- - rocambolescas, que introduziram no Brasil a caricatura como
são mais festejadas do período, sobretudo pelos artistas es­ narrativa, recurso poderoso que educava, fazia rir, enfeita­
trangeiros, que sentiram no jovem país oportunidades para va e potencializava uma iniciante imprensa das letras.
seus talentos. A começar pelo alemão Henrique Fleuiss,
que aqui chegou em 1853, e como tipógrafo imperial pro­ Rede urbana e folhas volantes na esteira do café
duziu um dos raros periódicos de caricaturas favoráveis ao
Monarca: A Semana Ilustrada (1860); em 1854, aportava Entre a imagem que fazia rir e o texto pomposo dos bacha­
o piemontês Ângelo Agostini, que se opôs frontalmente à réis, ao alcance de poucos, documentava-se o remanso do
monarquia; em 1874, o italiano Luigi Borgomainerio, di­ Império, com poucas cidades, seguindo curso pacato de
retor artístico do importante jornal humorístico italiano uma economia fechada e dependente em tudo do comér­
Spirito Foletto; em 1875, era a vez do português Rafael cio externo.
Bordalo Pinheiro, crítico mordaz e inspirado. Essa situação mudaria em parte na segunda metade do
Valeram-se da pedra litográfica como suporte técnico, século XIX, ao compasso de nossa balança comercial de
e da crítica política como mensagem de comunicação. A exportação, onde o café, desde 1830, tornara-se produto
litografia permitia a reprodução de custo baixo no territó­ de exportação destacado. Em seu rastro, sobrevieram
rio sem tradição de prelos, e a mensagem se infiltrava de­ transformações importantes. A primeira delas foi a implan­
cisivamente em meio à sociedade reprimida pela Igreja, tação da ferrovia, inaugurada no Rio de Janeiro, em 30 de
pelo Estado e pelo regime escravo. As três temáticas — Igre­ abril de 1854, quando o trem figurou como móvel trans-
ja, Governo e Escravidão - foram recorrentes no lápis de /formador que imprimiu outro ritmo ao Império, marco
sebo de carneiro daqueles caricaturistas, que investiram / também do crescimento da rede urbana, da circulação das
especialmente contra a benevolência dos títulos nobiliár- idéias e do desenvolvimento da imprensa no país.
quicos, o obscurantismo religioso, a presença retrógrada da A agilização da notícia, agora transportada pelo trem,
instituição escrava, as crises ministeriais. Nessa produção, dava significado para uma imprensa que se expandia por
em meio às nuanças em preto-e-branco, surgia o monarca regiões de maior população, especialmente pelo fluxo
D. Pedro II, figura caricata preferencial do período. imigratório para fazendas de café do interior. Na sequên­
Outros assuntos caminhavam em paralelo, como a re­ cia, a melhoria técnica advinda da introdução do telégrafo
tratação caricata e cruel da Guerra do Paraguai e a intro­ e do cabo submarino passou a dar sustentação à produção
dução apressada da modernidade técnica no país tocado a do jornal, transformando-o em negócio potencialmente
escravos, sobretudo por companhias mercantis estrangei­ rentável. Muitas gráficas artesanais surgiram nos centros \
ras, que aproveitaram o momento para infiltrar capital urbanos nascidos à sombra do café, dando origem ao jor­
externo no país. nal do interior das províncias, iniciativa de agentes sociais \
Assim, na imprensa que se construía à sombra do mo- anônimos, acreditando na ação modificadora dos prelos.
delo francês - inclusive adotando o folhetim de pé de pá­ No último quartel do século XIX, pelas folhas da Corte1
gina foram colocadas estorietas ilustradas não menos e mesmo do interior, o questionamento do sistema se acir-

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ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA IMPRENSA E CIDADE

rou, centrado em três temas recorrentes: a campanha da redigido por Rangel Pestana e Américo de Campos. Repu­
abolição; as crises entre a Igreja e o Estado (a chamada blicano também o Diário Popular (1884), embora se decla­
Questão Religiosa); e a insatisfação dos militares com o rasse voltado apenas aos “interesses municipais".
Império (a chamada Questão Militar). Todas elas foram Datam daquela época as inúmeras pequenas folhas de
habilmente trabalhadas pelos jornalistas de plantão, con­ proposta republicana que se espalharam pelas cidades ali­
trapondo uma Monarquia que sufocava à idéia de uma nhadas no roteiro do café, precárias na fatura e de curta
República que libertava. duração, mas de inspiração republicana. Em campanha
orquestrada — em geral presidida por membros das Lojas
Imprensa propagandística Maçônicas - propagavam as Luzes, veiculavam a criação
de escolas de primeiras letras, escolas noturnas para alfa­
Em torno de 1870 gravitam fatos decisivos para o curso his­ betização de adultos e escravos, bibliotecas populares e
tórico do país. Na sede da Corte, fundava-se o Partido Re­ pregavam a República, como tentativas preliminares de
publicano, criava-se o jornal A República e lançava-se um construção do cidadão.6
Manifesto Republicano, assinado pelos “bacharéis-jorna- A imprensa das demais capitais, inclusive da Corte,
listas” Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho e Salvador mantinha-se monarquista, apesar de os jornais O Pais
de Mendonça, nomes que se ligariam à história da impren­ (1884), A Gazeta de Notícias (1875) e Diário de Notícias
sa do país. (1875) insistirem na defesa do regime republicano por vá­
O ideal republicano — acalentado no Brasil desde o sécu­ rios colaboradores. Era o caso de O País, cujo diretor,
lo XVIII - retornava sob a pena dos jornalistas, como progra­ Quintino Bocaiúva, dava espaço para as crises do governo,
ma de partido, através da criação de uma imprensa partidária. especiálmente no caso da Questão Militar. Republicano
Entre 1870 e 1885 essa propaganda republicana reu­ assumido, representava a linha evolucionista do Partido,
niu poucos partidários no país. Mas a idéia de República que propunha a mudança do regime sem revolução, em
foi liderada e difundida por uma imprensa vivaz, na qual contrapartida a Silva Jardim, da ala revolucionária, que se
militaram estudantes, jovens oficiais, cafeicultores do valeria da palavra na imprensa e nos comícios para a con­
sudeste e, em especial, os quadros do PRP (Partido Re­ testação radical à Monarquia.
publicano Paulista).
Em São Paulo, o Correio Paulistano convertia-se em Jornalismo abolicionista
órgão liberal, agasalhando atos oficiais dos republicanos.
A Gazeta de Campinas (1869) abrigou ninho de republi­ I Mais intensa e arrebatadora, pois redigida pelos talentor
canos. A criação do jornal A Província de São Paulo (1875), sos literatos do Romantismo, desencadeou-se pela impren­
a despeito das bases de sua organização enfatizarem que sa a Campanha Abolicionista. O tema foi divulgado como
o jornal “não é órgão de partido algum, nem advoga inte-
6 MARTINS, Ana Luiza. Gabinetes cie leitura cia Província cie São Paulo: a plura­
resse de qualquer deles", levou seus acionistas a divulgar lidade de um espaço esquecido. São Paulo, 1990. Dissertação (Mestrado em
História) - USP.
atos oficiais do PRP; inclusive um “Boletim Republicano",

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ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

bandeira do Partido Republicano, provocando graves ci-


sões em seu interior, quando a luta pela emancipação e/
ou libertação do cativo foi assumida paralelamente, camT
nhando no mesmo passo àquela republicana. A cada linha
de atuação, emancipacionista ou abolicionista, e a cada
sociedade libertadora ou clube abolicionista correspondeu
um jornal. Valendo-se da retórica habitual — mesclada pela \
poesia romântica e pela oratória bacharelesca -, transplan­
taram a causa da abolição para a imprensa, reconhecida
como a mais popular das campanhas até então difundidas
no país.
Toda uma figuração se mobilizou naquela pregação da
imprensa, manifestada pelo uso das camélias nas lapelas
ou pelas capas pretas dos caifases, o grupo radical de Anto-
nio Bento, proprietário do jornal Redenção (1887), marco
do desenrolar da campanha abolicionista. Assim também foi FIGURA 1. O CABRIÃO (1866-1867). SÂO PAULO: 6 JAN. 1867, ANO I, N.14,
a atuação de José do Patrocínio, o jornalista fulgurante ILUSTRADO POR ÂNGELO AGOSTINI E REDIGIDO POR AMÉRICO DE CAMPOS E
MANOEL DOS REIS.
naqueles últimos anos da Monarquia, em que militaram
com brilho, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Raul Pompéia.
As páginas de comemoração da Abolição da Escrava­
Até aqui, a cena coube à imprensa escrita. Mas papel
tura, em 13 de maio de 1888, e aquela da Proclamação da
igualmente decisivo, por vezes mais categórico, estaria
República, em 15 de novembro de 1889, fecham um ciclo
reservado à imprensa ilustrada. Nela, a Revista Ilustrada
e permitem uma conclusão. Parte daquela história fora
(1876), do piemontês Ângelo Agostini (1843-1910), que
feita e contada nas páginas periódicas da imprensa políti-
chegara ao Brasil em 1854, com 16 anos, após ter passado
co-literária em que surgiu o jornalismo no Brasil. Exem­
a adolescência em Paris - politizado, talentoso, perspicaz,
plo mais acabado, o jornal O Estado de S. Paulo, nascido
ousado —, foi o legado mais expressivo e formador de escola.
no curso desses acontecimentos, serviu a essas campanhas
De sua produção paulista tem-se a contribuição de O
e por elas mobilizou-se, em busca de um projeto para a
Diabo Coxo e O Cabrião, ambos de 1866, que tinham a
nação, atuante até o presente.
Igreja como alvo sistemático. No Rio de Janeiro, estreou
com OArlequim (1867), atuou na Vida Fluminense {1868)
Breve balanço
e em 1876 iniciou sua vitoriosa Revista Ilustrada, em so­
\
ciedade com Paul Théodore Robin, proprietário de quali­
Como saldo do Império, no país que ainda não dispunha
ficada oficina a vapor. Ali investiu todo seu talento e
de casas editorais, coube ao jornal acolher a política, a li-
obstinação no combate à escravidão.

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ANA LUJZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA

teratura e qualquer manifestação relativa à palavra im­


pressa, único espaço onde escritores de talento colocaram- i
o
se em letra de forma. Sob a marca do romantismo, teve em
!
José de Alencar um dos expoentes, fosse como jornalista
ou literato; na seqüência, tem-se o legado de Machado de 2 Imprensa profissionalizada (1889 a 1930)
Assis, cronista e folhetinista dos principais jornais da
Corte, construindo no âmbito da imprensa não só a críti­
ca sutil ao Império escravocrata, mas a obra literária de
abrangência internacional.
Assistiu-se também à tímida introdução do “reclame", que O Brasil transforma-se, civiliza-se. Hoje o jornalismo é uma
enfeitava as páginas do jornal de produtos importados e envol­ ;profissão, quanclo antigamente era um meio ■político de ascender;
via o leitor, por meio de tiragens ampliadas pelas moder­ hoje o escritor trabalha para o editor.
nas máquinas Alauzet. Era o engatinhar da publicidade. João do Rio
Cumprira-se a fase heróica do jornalismo brasileiro,
3
arrebatado pelos ideais de gerações que fizeram da imprensa
A imprensa que anuncia a República iniciou morna, se­
o instrumento eficaz de crítica ao regime, arauto quase
não temerosa. Com exceção da Revista Ilustrada e da Tri­
exclusivo das forças descontentes. Seu principal agente —
buna Liberal — francamente republicanos —, os jornais do
proveniente ou originário das Faculdades de Direito do dia seguinte à proclamação veicularam o novo regime com
país - trazia na bagagem o jornalismo de combate, conju­ divisa^ apolíticas, insistindo na necessidade de manter a
gando a causa política, a linguagem empolada e os com­ ordem. Até mesmo a partida da família real, na calada da
promissos literários. Nasce daí a construção da mística noite, foi veiculada de forma corriqueira pela Gazeta de
republicana como proposta de modernidade. Notícias.1 Esse trato banal do fato foi também reproduzi­
Como diferencial do período - em que o anonimato do na imprensa estrangeira, que se mostrou surpresa, so­
também foi uma constante — registrava-se a ampla liber­ bretudo, com a ruptura de um regime sem derramamento
dade de expressão, propulsora daquela rica produção, de de sangue.
credos diversos e ensaios múltiplos, em busca do ideal Naquela cena inicial republicana, a censura não tar­
maior: a construção da nação. dou. Em 23 de dezembro de 1889 o Governo Provisório
Apesar das vozes republicanas dissonantes, a imprensa baixava severo decreto de censura à imprensa, espalhan­
do Império como um todo guardou forte orientação mo- do medo. Conhecido como Decreto Rolha, previa penas
1 narquista, com manifestações de jornalismo áulico de exal­ militares de sedição para os que conspirassem contra o
tação ao Imperador, até as vésperas do golpe militar. Ato governo “por palavras, escritos ou atos". Assinavam o do-
contínuo ao 15 de novembro, porém, essa imprensa de cará­
ter monarquista se transformaria em imprensa republicana. 1 VILLA, Marco Anlonio. A queda do Império. Os últimos momentos da Monar-
quia no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. p.94.

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ANA LUIZ A MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA
IMPRENSA E CIDADE

cumento o Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe- violenta agressão e morte do revisor João Ferreira Romariz
do Governo Provisório, e todo seu ministério: Benjamiri — apesar do pedido prévio de segurança que Antonio de
Constant Botelho de Magalhães, Manuel Ferraz de Cam­ Medeiros, seu diretor, dirigira ao próprio Deodoro.
pos Salles, Rui Barbosa, Eduardo Wandenkolk, Quintino Logo, a censura difundiu-se, incidindo na intervenção
Bocaiuva, Demétrio Nunes Ribeiro, Aristides da Silveira dos centros de reação monarquista, efetivada sob a trucu­
Lobo.2 lência da força policial, com divulgação atenuada nas fo­
Vale observar nesses nomes a presença de republicanos lhas diárias, em que se insistia no “caráter pacífico” das
históricos, alguns militando na imprensa, a exemplo de operações. Mas, superado esse inicial momento de con­
Campos Salles, Quintino Bocaiuva e Aristides Lobo; os fronto e, especialmente, após a ascensão dos presidentes
dois últimos, jornalistas de profissão. Assim, qualquer su­ civis, teria início uma nova fase da imprensa brasileira.
gestão de cerceamento à palavra soava estranha, vinda de No compasso da virada do século, regido pelo capitalis­
um grupo afinado com a inaugural República laica, que mo dos países de economia hegemônica — então Inglaterra
se pretendia liberal. e França — e internacionalmente aberto às conquistas da
Uma das raras vozes a questionar o novo regime pela ciência e da técnica, também o Brasil, inaugurando a nova
imprensa foi a de Eduardo Prado, monarquista convicto ordem republicana, de inspiração positivista, buscava seu
que mais tarde respondería pelo jornal O Comércio de S. lugar na modernidade do mundo. A imprensa foi o espaço
Paulo (1893), de franca oposição ao governo. Seu protes­ no qual esse embate aconteceu com mais visibilidade. Em
to inicial foi por meio de uma revista estrangeira, a Revis­ ritmo acelerado, das gráficas artesanais do Império passa-
ta de Portugal (1889), dirigida por Eça de Queirós, na qual va-se à^ímprensa com foros de indústria, da República.
indagava: "Que valor tem a opinião dos jornais, se nesse
mesmo dia, era anunciada a supressão da imprensa da "Tempos Eufóricos " 4
oposição?”.3 No entanto, o controle da palavra impressa
não se limitou ao texto da lei, mas traduziu-se em inúme­ O jornalismo que marcou a Primeira República foi vibran­
ras prisões de jornalistas, sobretudo no Maranhão, Per­ te e decisivo nos destinos do país, muito embora tenha sido
nambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. nesse mesmo período que a compra da opinião da imprensa
Em 22 de novembro de 1890, novo decreto restaurava a pelo governo tornou-se rotina.
liberdade de imprensa, mas se tornou letra morta. Os arti­ Essa fase próspera resultou da especial conjuntura vi-
gos de Eduardo Prado contra Deodoro e o Exército, publi­ vida pelo país, definida pelo momento econômico de apo­
cados n’A Tribuna Liberal (1888) do visconde de Ouro Preto, geu do café e diversificação das atividades produtivas; pela
resultaram no empastelamento daquele jornal, com atos de nova ordem política republicana, com programas de alfa-
betização e remodelação das cidades; pela agilidade in-
2 Dccrclo n“ 85 de 23 dez 1889. In: Decretos e resoluções do Governo Provisório.
Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1890. p.316, 317.
3 PRADO, Eduardo. Pastos da Ditadura Militar. São Paulo: Livraria Magalhães, 4 Ver: D1MAS, Antonio. Tempos eufóricos. Análise da revista Kosmos. 1904-1909.
1923. p.26. I São Paulo: Álica, 1983.

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ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

troduzida pelos novos meios de comunicação; pelo aperfei­ Tempo, espaço, velocidade e técnica potencializadas per­
çoamento tipográfico e avanços na ilustração, enquanto aa mitiram crescimento no setor, ainda que num país sem tradi­
máquinas impressoras atingiam velocidades nunca vistas*. ção editorial, mas cuja capital da República, cosmopolita,
A imprensa mais profissionalizada passou a figurar esforçava-se porjuntar-se à vanguarda do jornalismo; país onde,
como segmento econômico polivalente, de influência na repentinamente, brotara um empório comercial vigoroso-a
melhoria dos demais, visto que informações, propaganda - cidade de São Paulo e algumas capitais do país - engrenagens
e publicidade nela estampadas influenciavam outros cir­ que punham em funcionamento os recursos viabilizadores
cuitos, dependentes do impresso em suas variadas formas. de crescimento, testemunhados por uma imprensa vivaz.
O jornal, a revista e o cartaz - veículos da palavra impressa Do telégrafo internacional - ponte invisível, que magica­
— potencializavam consumo de toda ordem. mente nos ligava ao “mundo civilizado europeu” - aos cami­
Apesar desses avanços, a imprensa brasileira ainda es­ nhos de ferro, tudo se mobilizava para o desfrute intenso das
tava longe de sua "fase de consolidação” como quer Jua- maravilhas do novo século, por meio do veículo imprensa. -
rez Bahia e mesmo da "grande imprensa”, como afirma Naquele momento, em particular, pelas revistas, gênero pri­
Nelson Werneck Sodré. vilegiado em relação ao jornal, pela melhor resolução gráfica
Lins e Silva, numa perspectiva temporal mais ampla, dos então ultramodernos recursos visuais- recém-apropriados
relativiza o avanço: "a importação de máquinas, a adoção como a zincografia e a fotografia. Para os jornais, reserva­
de técnicas, a compra de serviços de agências, a incorpo­ va-se a linotipia, o clichê a cores e, em breve, a rotogravura.
ração de valores do jornalismo americano são todos sinais A base indispensável à sustentação da grande empresa
importantes do desejo de fazer do jornal um negócio. Mas editorial/se erguia. Configurava-a, sobretudo, a adoção
a falta de condições na economia local de sustentar essa sistemática da propaganda e publicidade, a aplicação de
vontade faz que ela se frustre, embora alguns jornais con­ capitais, a atração de público consumidor - representado
sigam sobreviver (como o Jornal do Brasil e O Estado de S. pela emergência de uma classe média urbana -, a evolu­
Paulo, ambos inaugurados no século XIX e ainda hoje en­ ção técnica do impresso e, ainda que timidamente, os in­
tre os quatro maiores diários do país)”.5 : centivos à aquisição e/ou fabricação de papel.
Logo, o que vai permear sua trajetória é a sucessão de : Para melhor apreender as conquistas quase instantâ­
tempos diversos num jornalismo de modernidade contradi­ neas desse universo em franco progresso gráfico, convém
tória. A República que se queria dos cidadãos, e ávida de ressaltar várias de suas instâncias, a começar pelo profis­
progresso, assentada numa economia de mercado - mas sional deste novo quadro.
recém-saída da escravidão espelhou as contradições da
modernidade posta em contexto adverso, assistindo ape­ Entre literatos e jornalistas -
nas ao engendrar da imprensa como negócio. a profissionalização do setor
I
Com a República, o jornalista ascende a postos de coman­
5 SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora. A influência americana
sobre o jornalismo brasileiro. Süo Paulo: Summus, 199 J. p.63, 64. do, compõe os quadros do poder, ganha outra visibilidade e

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ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA IMPRENSA E CIDADE

se impõe como profissional. Aristides Lobo, Rui Barbosa e Barreto, de pseudônimo João do Rio, com trânsito nas pá­
Quintino Bocaiuva tornam-se ministros do novo governo. ginas sociais da imprensa frívola e elegante daquela Belle
Em geral, foram literatos que se improvisaram em pro­ Epoque exercitou a reportagem, consagrando o gênero.
fissionais da imprensa, tornando-se figuras influentes no A transformação da pauta desse jornalismo confinou
cotidiano urbano. Paladinos da Ordem e do Progresso na o literato às páginas das revistas. Data desse momento a
República dos cidadãos convertem-se, quase sempre, em proliferação das revistas, espaço alternativo aos excluídos
agentes a serviço de grupos, classes e, sobretudo, de par-' da imprensa política. Revistas de variedades em sua maio­
tidos políticos, numa imprensa que tinha o poderxde ria, em razão da segmentação ainda difusa, e fartamente
tendenciosamente selecionar políticos, fazer governos, de­ ilustradas pelos novos recursos gráficos que ali apresen­
cidir eleições. tavam melhor resolução.
Logo, o literato profissionalizou-se por meio do jor­ A passagem do literato para o jornalismo, contudo, não
nalismo, pois havia um fato real: pagava-sej Os jornais foi fácil, obrigado a uma escrita de circunstância, pouco
introduziram tabelas fixas para salários, contemplando qualificada, assim lamentada por Lobator
com valores substanciosos nomes de expressão no pano­
O jornal nos sufoca todas as tentativas de literatura, com seus repór­
rama político e literário. Isso desencadeou muito ques­ teres analfabetos, com a sua meia língua engalicada os autores dessa
tionamento e crítica. Intelectuais bem-sucedidos, que copiosíssima flora cogumelar de jornalecos e revistas que inunda o
também atuavam com sucesso na propaganda, especial­ País inteiro, é a mesma no Maranhão e na Caçapava riograndense ...6
mente Coelho Neto e Olavo Bilac, tornaram-se alvos pre­
Apesar da crítica corrente, a profissionalização do li­
ferenciais dos ataques.
terato na imprensa era fato irreversível. Oscilando entre
Em 1890, Joaquim Nabuco aceitou o convite de Ro­
o apego às letras e o exercício jornalístico, tornou-se figu­
dolfo Dantas como correspondente na Inglaterra; Eucli-
ra poderosa, temida e adulada, emergindo como agente
des da Cunha, então tenente reformado, foi contratado em
social diferenciado.
1897, pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspon­ ;•
No entanto, como categoria, os jornalistas estavam
dente para a cobertura da revolta de Canudos. Era a novi­
dade do repórter no campo de batalha. desorganizados, ao contrário dos gráficos, que já possuíam
sua organização sindical. Em 7 de abril de 1908, pelo
Estava criado o mercado jornalístico, com hierarquias
empenho de Gustavo Lacerda, jornalista socialista persis­
e tabelas de pagamento definidas. Secretário ou redator-
tente, ocorreu a criação da Associação de Imprensa que,
chefe recebiam os maiores salários, seguidos de redatores,
em 1913, passaria a se chamar Associação Brasileira de
repórteres e colaboradores avulsos.
Imprensa (ABI). Nascera desacreditada, com apoio de pou­
Naquele momento, o escritor Lima Barreto, com agu­
cos jornais, nas dependências de O Pais, jornal que fpra de
da consciência das leis do novo mercado que afastavam o
profissional que não pactuasse com o sistema, colaborou
6 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. Quarenta anos de correspondência li­
com várias revistas que solicitaram sua colaboração, fosse terária entre Monteiro Lobato e Godofrcdo Rangel. São Paulo: Brasiliense,
pago ou mesmo fazendo o trabalho gratuitamente. Já Paulo 1948. v.2, p.70; v.l, p.227. (

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ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA IMPRENSA E CIDADE

Quintino Bocaiuva. A sede própria só viria em 1932 e, em Aos primeiros clichês, de 1895, estampados no Jornal
1938, Getúlio ali assinaria a lei reguladora do trabalho dos do Brasil, seguiram, em 1907, os clichês a cores na Gazeta
jornalistas profissionais. de Nottcias. Introduzia-se também a rotativa Marinoni, que
imprimia, cortava e dobrava exemplares, que saíam aos
Modernidade técnica milheiros. Veiculavam-se novos gêneros jornalísticos: a
reportagem, a fotorreportagem e o sensacionalismo.
A vanguarda da técnica gráfica entrara pelo Rio de Janeiro. Decisivos na inserção internacional da imprensa , no
A revista O Álbum (1893) valeu-se pioneiramente da entanto, foram os serviços das agências de notícias es­
reprodução fotográfica, colada individualmente nas pá­ trangeiras, criadas em 1835 e potencializadas pelo sur-
ginas daquela publicação semanal; a Revista da Semana gimento do telégrafo, presentes no jornalismo brasileiro
(1900) inovou ao empregar métodos fotoquímicos de desde o final do século XIX. Essa internacionalização da
reprodução. coleta de notícias ocorreu no Brasil, inicialmente, pela
No entanto, eram serviços caros. Levaria tempo para agência Havas, que nos chegava via Portugal e completa­
um jornal sustentar as despesas de serviços fotográficos va o cartel composto pela Reuters e Wolff, modificado ao
exclusivos. Em relação às ilustrações, secretários de reda­ fim da Primeira Guerra, com a entrada dos Estados Uni-
ção recortavam figuras de revistas americanas para apli­ dos, por meio da criação da Associated Press e United Press
cá-las nas nacionais, uma vez que inexistia o amparo legal Association.7
do uso da imagem. Essas agências, contudo, apesar da propalada indepen­
Porém, o que mais causou surpresa foi a velocidade que dência de opinião, dependiam dos governos dos países que
insistia em acelerar seu ritmo. Por volta de 1895 o perio- Ih^s serviam de base doméstica. Logo, passamos a ser tam­
dismo diário utilizava-se de uma Dilthey, que imprimia bém reféns de um noticiário da conveniência dessas grandes
5 mil exemplares por hora. empresas jornalísticas, que serviram guerras e interesses
Em 1900, em ritmo ainda mais acelerado, o Jornal do dos grupos e países que as subsidiavam.
Brasil tirava sua edição vespertina, primeiro jornal do país Outra interferência de peso advinda das imensas difi­
a lançar duas edições diárias. Imprimindo 50 mil exempla- culdades para obtenção do.papel, obstáculo crônico na im­
res díários, superava então o La Prensa, de Buenos Aires, prensa brasileira; razão pela qual o surto jornalístico pouco
conhecido como o de maior tiragem da América do Sul. Em se valeu da produção interna do produto. Sujeitou-se, até
1903, rodava 62 mil exemplares. por conveniência, ao artigo importado. Para publicações
Porém, as tiragens também aumentavam em razão do mais luxuosas, que exigiam superioridade do produto, o na*
crescimento demográfico, especialmente em São Paulo, cional não era recomendado; para consumo de papel jor­
empório comercial vigoroso, com população alfabetizada nal, o preço do importado, por incrível que pareça, era mais
e de maior poder de consumo. Em 1896, o jornal O Estado convidativo.
de S. Paulo, que imprimia 8 mil exemplares, atingia em
1906 a tiragem de 35 mil. 7 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Op. cit., p.239.

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IMPRENSA E CIDADE
! ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA

Letras, cores e imagens seduzindo o com base em litografias precisas, caricaturas inventivas,
imagens arrebatadoras de rotogravura, ilustrações florais art-
novo público republicano
nouveciu, soluções fotográficas inusitadas. Logo, formou-
Forma e conteúdo, em ritmos diferenciados, conferiram se o novo mercado dos chamados especialistas gráfi cos.
traços singulares àquele jornalismo que ensaiava a gran­ Ilustradores talentosos ganharam espaço e se conver­
de imprensa, avançado quanto ao tratamento gráfico , mas teram em profissionais requisitados. Inicialmente, por
antigo em seu modelo editorial e no encaminhamento das meio da caricatura, uma tradição de nossa imprensa, que
reproduzia os desmandos da oligarquia vitoriosa pelo hu­
matérias. As máquinas eram modernas, mas os textos e as
mensagens refletiam o acanhado quadro mental do país, mor e pelo chiste, criando personagens-tipo de grupos,
de tradição escravocrata, clientelismo, partidos políticos partidos e classes, porta-vozes do novo leitor cidadão.
tendenciosos, que faziam daquela imprensa extensão de Em São Paulo, o filho de imigrantes italianos Lemo
Leni, de pseudônimo Voltolino, simboliza esse segmento
seus próprios negócios e interesses.
Mas, no país de maioria analfabeta, a ilustração foi de agentes politizados da imagem, dos quais, inclusive,
mais eficaz que a letra, de alcance imenso, levando-se em dependia o sucesso do próprio periódico. A figura do íta-
conta a força da imagem, decisiva para a comunicação de lo-paulista seria focalizada pelo seu traço, bem como a
massa. Assim enriquecido, o periodismo potencializou-se marginalização do oprimido, numa sociedade que se estra-
tificava de forma perversa. Mais tarde, Benedito Bastos
Barreto, de pseudônimo Belmonte, iniciou na Folha da
!
/Noite sua trajetória na imprensa diária, criando o perso-
• nagem Juca Pato, representação da manipulada classe
• média. Na paulistana A Plebe (1917), periódico anarquis­
ta, o discurso da resistência valeu-se da imagem, marcada
pela vanguarda do impressionismo russo e da caricatura
como recurso marcante de doutrinação.8
No Rio de Janeiro, o talento de J. Carlos, pondo em cena
a melindrosa, imprimia em papel a elegância e moderni­
dade pretendidas na cosmopolita capital do país à beira-
mar plantada. Na Bahia, a produção do artista Pataguaçu
também confirmava a chegada da linguagem caricata mo­
derna em Salvador.

UBíék 8 CAMARGO, Dayse de. O teatro do medo: a encenação de um pesadelo nas ima­
gens do periódico nnarquisla “A Plebe". 1917-1951. São Paulo, 1998. Disser-,
lação (Mcslrado em História) — PUC. p, 1 7 c segs.
FIGURA 2. A VIDA MODERNA. SÂO PAULO, 23 ABR. 1914, N.218.

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í
ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

Outro segmento de artistas plásticos de talento aderiu bate disseminou-se, especiaimente nas capitais do Sul,
ao novo mercado impresso. Eram pintores de telas que uma rede de Grupos Escolares de iniciativa oficial, regidos
abusaram da cor nas revistas e colocaram-se em branco- pela proposta do ensino livre, universal e gratuito, resultan­
e-preto nos jornais. O pintor Di Cavalcanti foi constante nes­ do na diminuição da taxa de analfabetismo; longe, porém,
;
! sa atividade, e Tarsila do Amaral balizou uma fase marcante de atingir os níveis desejados. Nada estranho que, hoje,
'
do movimento modernista, via imprensa, ao ilustrar a Revis­ se localizem nestes Estados - São Paulo e Rio de Janeiro -
l ta de Antropofagia (1928), com seu desenho do Abapuru. os maiores conglomerados da imprensa do país.
A fotografia coube a dimensão mais abrangente como Ao lado do “saber ler” da República, colocou-se a neces-
1 recurso de ilustração, invadindo progressivamente o pe- sidade de formar leitores - consumidores. Com forte cu­
\ riodismo. Era o recurso ideal para documentar a transfor­ nho mercadológico, valendo-se de um nicho de mercado
mação das cidades, as cerimônias de impacto nos âmbitos da época, foi lançado no Rio de Janeiro Eu sei tudo (1917);
político e social, a serviço da nova modalidade jornalísti­ também nesse propósito, a revista Vamos Ler (1936), títu­
ca: a reportagem fotográfica. los periódicos sucesso de público, cópias de publicações
Com seu poder multiplicador - instrumento ideal para francesas, que circularam por anos a fio e formaram g era-
“vender” a imagem do país civilizado e moderno - a foto­ ções afeitas ao consumo do livro, da revista e do jornal.
: grafia potencializou a informação, levando aos mais di- Nesse momento, como estratégia de mercado consumidor,
versos públicos a informação até então subtraída às iniciou-se a conquista do leitor infantil, por uma revista
multidões, em especial às camadas desfavorecidas e anal­ de sucesso e lendária na memória de gerações, O Tico-Tico
: fabetas que configuravam o país. (1905), que se manteve por cinqüenta anos.

Naqueia altura, lamentava-se o sepultamento dos re­ /Por outro lado, as grandes levas de imigrantes que engros­
cursos artesanais em favor da técnica, homogeneizadora saram as cidades brasileiras ampliaram consideravelmente
í
' e massificada. Contudo, o processo era irreversível: reda­ a prática da leitura, a produção e o consumo de periódicos.
:=
ções e jornais das capitais aparelhavam-se com tecnologias Em São Paulo, circularam mais de quinhentos títulos de pe­
de ponta, com vistas à comunicação de massa. riódicos étnicos, muitas vezes de redação bilíngüe. Na sua
maioria, eram títulos da comunidade italiana, figurando tam­
Criando um mercado de leitores bém folhas de grupos espanhóis, alemães, ingleses, france­
ses, libaneses e japoneses. Nesse segmento da produção de
Melhoria da produção, aumento de população, desenvol­ imigrantes, destacou-se o jornal semanário domingueiro da
vimento da comunicação e processo de urbanização ace- comunidade italiana Fanfulla (1893) que se transformou erri
lerado fizeram-se acompanhar de uma diminuição da taxa diário, como o alemão Deutsche Zeitung (1897).
de analfabetos. Afinal, na jovem República, a erradicação Ao mesmo tempo, nas cidades de industrialização cres­
do analfabetismo se colocava como prioridade no país que cente e força operária expressiva, assistiu-se ao florescí- .
pretendia formar cidadãos. Não obstante, por volta de mento da imprensa libertária, representada, em especial,
1890, ainda 80% da população não sabia ler. Para seu com- pelos jornais anarquistas, anarcossocialistas, socialistas e

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:
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE
!i
;

comunistas. Muitos circularam na clandestinidade, mas As mensagens veiculadas pela propaganda e publicida­
criaram públicos próprios e desempenharam papel doutri- de passaram a conformar a mentalidade do período, tare­
nador teórico, espalhando práticas culturais valorizadas fa estimulante numa sociedade em transformação, dividida
pelos movimentos de esquerda: leitura, cultivo do teatro, entre a valorização das origens, da tradição e a incorpora­
difusão de jornais propagadores de seus programas e ideais. ção de modelos estrangeiros, veiculados sistematicamente
pela imprensa. O periodismo transformou-se em desa-
Propaganda e publicidade guadouro dessa propaganda e/ou publicidade, enquanto
passava a depender das encomendas publicitárias de comer­
Ao contrário da 'propaganda, de caráter ideológico, contem­ ciantes, leiloeiros, cinematógrafos, empresas teatrais e ci­
porânea do próprio surgimento da imprensa, a publicidade nematográficas, casas de patinação, firmas de importação,
nasceu no quadro desencadeado pela concorrência capita­ casas comissárias, enfim, de tudo que as cidades experimen­
lista empresarial, com a conseqüente formação de holdings tavam de “novo” e precisava ser colocado no mercado.
e a acirrada competição em curso. “Faça publicidade ou se A comunicação publicitária se enriquecia sob a pena
arrebente”, passou a ser o slogan fatal e verdadeiro. Ambas de talentosos literatos, a exemplo de Olavo Bilac, Emílio
colocaram-se como mecanismo crucial dos quadros de de­ de Menezes, Hermes Fontes, Basílio Viana e Bastos Tigre.
manda, decisivas na conduta social do iniciante século XX. Finda a guerra, funcionavam na Capital paulista cinco
No Brasil, a propaganda de ordem política foi uma cons­ agências de publicidade: A Eclética, Pettinati, Eãanée, a de
tante na imprensa local, quando a criação de jornais pra­ Valentim Haris, e a de Pedro Didier e Antonio Vaudagnoti.
ticamente se restringiu ao fortalecimento de partidos e
grupos políticos. Mais ostensiva, ainda, na imprensa da j Novos jornais, novos modelos
Primeira República. Campos Salles, por exemplo, publi­ /
cou a obra Da Propaganda à Política, na qual procurava O Rio de janeiro centralizava a imprensa jornalística na­
justificar a postura político-propagandística de seu gover­ cional, veiculando jornais ainda criados no Império: o jor­
no; a Campanha Civilista, em 1909, liderada pelas facções nal do Comércio (1827), folha conservadora que à chega­
de Rui Barbosa e Hermes da Fonseca, consolidou o jorna­ da de José Carlos Rodrigues se renovou; a Gazeta de Notícias
lismo da propaganda política, tradição de nossa imprensa. (1875), de Ferreira de Araújo, considerado o melhor jor­
Quanto à publicidade, conheceu inicialmente desen­ nal brasileiro da época; O País (1884), que tivera Quinti­
volvimento lento no país de mercado iniciante. Limitada no Bocaiúva como mentor; Cidade do Rio (1887), sob a
por volta de 1870 apenas ao anúncio classificado, sucin­ direção de José do Patrocínio.
to e direto, de natureza meramente informativa, benefi­ Todavia, no panorama renovado da imprensa da Primei­
ciou-se em seguida de recursos visuais que divulgavam ra República, coube aos novos jornais a melhor represen­
produtos e prestavam serviços. Nesse momento, em ter­ tação desta fase de evolução e propagação do impresso
mos de periódico, mais uma vez a revista foi veículo dos periódico no Brasil. A começar pelo Jornal do Brasil, que
mais efetivos. surgiu no Rio de Janeiro, pensado em bases empresariais,

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ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE IUCA IMPRENSA E CIDADE

dotado do melhor equipamento gráfico, pioneiro na ins­ se grupos do poder descontentes com as tradicionais lides
talação da luz elétrica para suas poderosas rotativas, na perrepistas. O Diário Nacional (1927) seria seu porta-voz,
implantação dos primeiros linotipos, com máquinas de tendo como membros José Adriano Marrey Junior, Ama­
impressão a cores e clicheria pelo sistema fotomecânico. deu Amaral, Vicente Rau, Nogueira Filho e Paulo Duarte,
Em 1906, a exemplo do The Times, estampava pequenos entre outros, cobrindo a Coluna Prestes, naquele mesmo
anúncios na primeira página e, em 1907, trazia a inovação ano. Nutrindo simpatias pelo PD e também a serviço dele,
do cabeçalho em vermelho. Em 1922, recebeu o serviço estavam O Estado de S. Paido, Folha da Noite (1921) e Folha
:: da United Press. Inovou também ao enviar correspondente da Manhã (1925).
para a Guerra na Abissínia, a partir de Paris, em 1935. Já A despeito do profissionalismo defendido p or essa nova
em 1918, passara à propriedade de Ernesto Pereira Carnei­ imprensa, o fato político ainda era privilegiado nesse jor­
ro, em que começaria Assis Chateaubriand como editor.-, nalismo de cunho individualista, que enfocava persona­
chefe, quando a sede encontrava-se no propagado “Edifício gens, exaltava afetos e destruía desafetos, atuando sempre
mais alto da América do Sul”, na Av. Rio Branco. na medida de interesses particularizados, personalizando
relações e, portanto, a tarefa jornalística.
I Também inovador, o Correio da Manhã (1901), do jo­
vem advogado Edmundo Bittencourt, que balançou o jor­ Em meio à efervescência de negócios, política, espe­
culações e poder, um bacharel nortista farejou possibili­
nalismo comprometido da República de Campos Salles.
dades de grandes empreendimentos no setor. Era Assis
De acordo com Sodré, o Correio da Manhã “quebrava a pla­
Chateaubriand Bandeira de Mello, que em breve consti­
cidez aparente, alcançada pelo suborno, pela sistematiza­
tuiría o maior conglomerado jornalístico do país, os Diá­
da corrupção, institucionalizada a compra da opinião da
rios Associados. E antes mesmo que a Revolução de 1930
i imprensa ... a monótona uniformidade política das com­
viesse dar nova cara ao Brasil pela mudança dos grupos
binações de cúpula, dos conchaves de gabinete”.9
políticos tradicionais — com o afastamento do PRP e a as­
Em outra escala - de recursos, poder e tiragem - cir­
censão de Getúlio—, surgiram indústrias jornalísticas de
culou o jornal A Tribuna (1890), de Antonio Azeredo, no
vulto, que se tornaram empresas econômicas de porte e
qual já atuava Irineu Marinho como repórter, o mesmo que
participaram intrinsecamente do poder. Coube a essa nova
fundaria A Noite (1911) e, posteriormente, O Globo (1926).
imprensa fazer governos, decidir políticas econômicas,
Em São Paulo, o mercado revelou-se oportuno para
moldar gerações.
investimentos do setor, a começar pela circulação de ca­
pitais, na metrópole que era do café e da indústria; mas
também por conta da renovação dos ares políticos que, a
partir de 1926, colocaram em cena um novo partido — o
Parlido Democrático (PD) - em torno do qual alinharam-

9 SODRÉ, Nelson Wcrneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civi­


lização Brasileira, 1966, p.329.

51
50
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IMPRENSA E CIDADE

arsenal de ícones da modernidade que, de forma lenta,


porém definitiva, inauguravam uma outra sensibilidade,
alteravam valores, comportamentos, papéis e relações so­
3 Imprensa em ação ciais. Os habitantes das cidades iam incorporando ao seu
cotidiano esses novos artefatos, que impunham outra di­
(1930 a 1945)
nâmica à vida, encurtavam distâncias, transformavam os
modos de percepção e esfumaçavam fronteiras antes bem
Sou um homem da imprensa de papel e estou convencido de definidas. Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo,
que a idéia que forma opinião tem que estar impressa em que conheceram significativo crescimento populacional,
letra deforma. O rádio pode ser mais abrangente..., industrial e urbano no início do século XX, apagavam-se
mas o que mexe com o tutano do freguês é o jornal. reminiscências de um tempo alongado, que passava deva­
: Assis Chateaubriand gar por entre ruas empoeiradas e sonolentas.

Lentamente,-a programação foi se entrelaçando à vida


na e da cidade, num ensaio do que hoje se denomina pres­
No início dos anos 1920, a grande novidade em termos de tação de serviços. O radiouvinte era informado sobre o
comunicação era o rádio. Ao contrário da imprensa escri­ tempo, a cotação da bolsa, o conteúdo dos telegramas, dos
í ta, o novo veículo chegava fácil à população, seduzindo e jornais e os resultados esportivos.
envolvendo muitos ouvintes que, para seu consumo, pres­ Às potencialidades educativas da radiofonia, aspecto
cindiam da alfabetização. Completava a tradição oral de /
que predominou nos momentos iniciais, logo foram adicio­
nossa cultura e parecia caminhar no sentido oposto ao da nadas outras, associadas ao circuito capitalista. Fabrican­
política educacional republicana, que insistia no proces­ tes e comerciantes não tardaram a perceber as vantagens
so de propagação da leitura. de divulgar seus produtos através das ondas invisíveis. As
j Nesse momento, porém, o novo meio ainda se insinua­
] próprias estações precisavam das receitas publicitárias
va de forma branda ao lado de uma imensa quantidade de para poder modernizar a aparelhagem, procedimentos téc­
jornais e revistas que já se apresentava de forma bastante nicos e assumir, elas próprias, caráter empresarial, à se­
diversificada e segmentada. Estima-se que, entre 1920 e melhança do que ocorrera com parte dos periódicos na
1930, havia apenas vinte estações em atividade no país e passagem do século XIX para o XX.
que o número de aparelhos estava na casa dos trinta mil. Nesse processo, o ano de 1932 é um marco importante. \
:j O decreto presidencial de março permitiu a irradiação de
O rádio e o cotidiano das cidades anúncios, passo essencial para que o rádio viesse a se tor­
!
i nar um meio de comunicação de massa, regido por inte­
O rádio integrava, ao lado do automóvel, do bonde, da resses comerciais, o que se concretizaria no decorrer da
eletricidade, do gramofone, do cinema e da imprensa, o década seguinte.
I:
!;
53
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

A imprensa e o movimento de 1930 rio carioca O Jornal (1919), e adquiriu em São Paulo, no
ano seguinte, o então recém-fundado Diário da Noite.
Os anos 1930 começaram sob o signo da mudança não O jornalista engajou-se resolutamente na campanha da
apenas para o rádio. Em outubro foi deflagrado o movimen­ Aliança Liberal, tendo convencido os aliados da necessi­
to armado que culminou com a deposição do então presi­ \ dade de defender as propostas da chapa antigovernista por
dente Washington Luís e a subida ao poder, em 3 de no­ meio de um conjunto de jornais.
vembro, de Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal Conseguiu recursos para fundar ou adquirir vários, o
derrotado nas urnas. O caráter centralizador do novo go­ que lhe permitiu solidificar a empresa Diários Associados,
verno logo ficou evidente. Foram dissolvidos o Congres­ que também passou a dispor do Estado de Minas (Belo
so Nacional e os legislativos estaduais e municipais; os Horizonte, 1928), Diário de Notícias (Porto Alegre, 1925),
governadores eram substituídos por interventores nomea­ Diário da Noite (Rio de Janeiro, 1929) e do Diário de São
dos pelo chefe do Governo Provisório. Paulo (1929). Portanto, antes que a década de 1920 fin­
Para a imprensa, as conseqüências fizeram-se sentir de dasse, Chateaubriand já se fazia presente nos principais
imediato. Assim que a vitória dos revoltosos foi confirma­ centros nevrálgicos do país e inovava ao lançar as bases do
da, vários periódicos identificados com a chamada Repú­ que seria o maior conglomerado no ramo das comunica­
blica Velha foram alvo de ataques e acabaram sendo ções por décadas a fio. Vale destacar que, desde suas ori­
empastelados, como ocorreu, por exemplo, com O Malho gens, os Associados mantiveram estreita vinculação com
(1902), O País, A Notícia (1894), Gazeta de Notícias, A 4poder político e econômico, característica que só se apro­
Noite (1911) e Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e o Cor­ fundaria com o decorrer do tempo.
reio Paulistano, Folha da Manhã, Folha da Noite, A Gazeta Passada a euforia da vitória, apareceram as divergências.
(1906) e Fanfulla, em São Paulo. A ala tenentísta, formada por jovens militares que, desde o
A mudança política alterou a configuração da impren­ início da década anterior, lutavam por reformas político-ad-
sa. Periódicos comprometidos com a antiga ordem não se ministrativas, voto secreto, educação pública obrigatória, mo­
recuperaram dos reveses sofridos e acabaram desaparecen­ ralidade das instituições e maior participação do exército na
do (O País, Correio Paulistano), outros mudaram de mãos sociedade, criticava duramente o jogo político-partidário e o
e/ou de linha editorial (Jornal do Brasil), havendo os que sistema representativo. Propunham a manutenção'de um
passaram a ocupar lugar secundário, sem recuperar o bri­ governo forte, de teor nacionalista, que implantasse as refor­
lho de antes (A Notícia, Gazeta de Notícias, revista O mas necessárias para modernizar o país. A perda da autono­
Malho). Afinados com a nova ordem estavam, no Rio de mia dos estados desagradava aos aliados civis — oligarquias ^
!
Janeiro, o Jornal do Comércio, Correio da Manhã, O Glo­ dissidentes que se encontravam afastadas do poder no final .
1 bo, Diário Carioca e, em São Paulo, O Estado de S. Paulo, dos anos 1920, defendiam a volta à normalidade política e a t
:i
A Platéia (1888) e o Diário Nacional. realização de eleições para uma Assembléia Constituinte.
Merece particular destaque a trajetória de Assis Cha­ De fato, tratava-se de diferentes concepções sobre os
:
í teaubriand que, em 1924, tornou-se proprietário do diá- rumos que o movimento iniciado por Getúlio Vargas de-
i
54 55
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA
IMPRENSA E CIDADE

veria seguir. Os jornais passaram a expressar essas tensões, ções, algumas com forte dose de subjetividade. A iniciati­
que desembocaram na revolta paulista de 1932, capita­ va tornou ainda mais tensa a relação entre o governo e os
neada pela elite que ocupara ò centro do poder por várias órgãos da grande imprensa.
décadas. Os clamores pró e contra a volta à ordem consti­ Os dirigentes de jornais valiam-se de vários expedientes
tucional, os acontecimentos em São Paulo, os debates em para burlar a censura. Oswaldo Chateaubriand, por exem-
torno do problema do café (principal motor da economia \ pio, que dirigia os jornais do irmão em São Paulo, despis­
e que, em função da crise que se iniciara em 1929, não tou o censor, mantendo-o numa sala enquanto a edição
encontrava colocação no mercado externo) dominavam a do Diário da Noite, de 13 de novembro de 1931, estampando
agenda política. matéria vetada, era atirada à rua pelas janelas da redação.
A grande maioria da imprensa fez brava oposição a Var­ O movimento de julho de 1932 em São Paulo também
gas e aos tenentes. Estes tentaram contornar a situação provocou novos realinhamentos, tendo sido apoiado
lançando seus próprios periódicos para a defesa do que pelos principais jornais cariocas, inclusive os Diários
entendiam ser os verdadeiros ideais revolucionários. Em Associados, o que levou Chateaubriand à prisão e quase re­
São Paulo surge O Tempo (1930) e no Rio de Janeiro sultou na falência do grupo, que enfrentou forte cerco do
O Radical (1932), cujo subtítulo era “A voz da Revolução”. governo.
A instabilidade dos momentos iniciais do novo gover­ Entretanto, a convocação da Assembléia Constituin­
no foi um dos argumentos utilizados para justificar a cen­ te em 1933 sinalizava que a proposta tenentista perdia
sura à imprensa. Porém, deve-se ter presente que os novos espaço para a conciliação com as forças civis. A promul­
ocupantes do poder não se limitaram a insistir em práticas gação da nova Constituição em 1934, que assegurava
; conhecidas, como o suborno ou a violência, antes inova­ amplas garantias para a liberdade de imprensa, e a eleição,
ram ao criar, em meados de 1931, o Departamento Oficial pela via indireta, de Getúlio Vargas para um mandado pre­
;
de Publicidade (DOP), subordinado ao Ministério da Jus­ sidencial de quatro anos pareciam indicar o início de uma
tiça e Negócios Interiores. nova fase da vida política e institucional do país. A ava­
Para impedir a divulgação de notícias “alarmantes, in­ liação não poderia estar mais equivocada...
fundadas e tendenciosas”, decidiu-se colocar um repre­
sentante do-DOP em cada jornal. Em agosto de 1931, o Batalhas em letras de forma
Ministério da Justiça divulgou a lista dos temas tidos como
impróprios, que incluía: notícias derrotistas sobre a situa­ As esperanças depositadas no funcionamento das institui­
ção econômico-financeira do país, então bastante frágil; ções democráticas em breve se frustrariam. Assinale-se
menção a greves e desemprego; comentários de exilados que, ao longo dos anos 1920 e 1930, os princípios liberais
políticos; referências ao comunismo no Brasil e exterior; e democráticos eram alvo de intensas críticas. Considera-
notas sobre tendências separatistas, menções às forças va-se que o liberalismo mostrara-se incapaz de resolveras»
armadas que pudessem gerar desentendimentos internos contradições inerentes às sociedades capitalistas - desi­
l ou antipatias populares; enfim, um amplo rol de prescri­ gualdade social, crises econômicas, disputas entre patrões

56 57
;
!
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IMPRENSA E CIDADE

e operários — o que estaria contribuindo para facilitar o dades públicas e a constituição de um governo popular.
;
i caminho do comunismo. A experiência internacional pa­ Luís Carlos Prestes foi aclamado presidente de honra. Tal
recia confirmar o acerto dessas previsões. Países como Itá­ como a AIB, a Aliança tornou-se um movimento de mas-
lia (1922), Portugal (1932), Alemanha (1933) e, dentro em sas, com dezenas de milhares de filiado s, e promoveu con-
breve, Espanha (1936) eram governados por ditaduras de corridos comícios e manifestações públicas. No Rio de
extrema direita, caracterizadas pelo intervencionismo es­ Janeiro, aderiram aos ideais do movimento periódicos como
tatal, nacionalismo e culto à figura do líder. A Pátria (1920) eA Manhã (1935), este último lançado es­
No Brasil, a oposição entre esquerda e direita também l pecialmente para ser o porta-voz da ANL, ao passo que em
crescia. Em 1932, foi criada a Ação Integralista Brasileira São Paulo merece destaque A Platéia.
(AIB), liderada por Plínio Salgado. Inspirava-se no fascis­ Diante do aumento da crescente mobilização popular,
mo italiano e tinha como lema Deus, Pátria e Família. O o governo tratou de munir-se de instrumentos para enfren­
!
movimento contava com expressivo número de filiados, tar a crise. Um meio eficaz era a divulgação dos seus atos.
promovia grandes desfiles, manifestações de rua e contava Data de meados de 1934 a criação, sob responsabilidade
i com centenas de jornais, espalhados por cidades de diver- do DOP, do Programa Nacional de Rádio, antecessor da
SOS estados brasileiros, além de dois periódicos de âmbito Hora do Brasil, que deveria ser difundido em rede para
nacional, A Ofensiva (1934) e o Monitor Integralista (1932), vários pontos do território. A importância do rádio num
e revistas, com destaque para Anauê e Panorama. país c^è dimensões continentais e de altas taxas de analfa­
Apesar de ilegal, o Partido Comunista seguia editando, betismo não passou despercebida ao novo regime.
de forma irregular e clandestina, o jornal A Classe Operá­ A preocupação com a organização mais sistemática da
ria (1925), muito lido no interior das forças armadas, es­ propaganda governamental levou à substituição, ainda em
pecialmente no exército, no qual era significativo o 1934, do DOP pelo Departamento de Propaganda e Di­
prestígio do expoente máximo do partido, o ex-tenente fusão Cultural (DPDC), que logo passaria a ser dirigido
Luís Carlos Prestes. O periódico também circulava nos por Lourival Fontes. Na avaliação de Simon Schwartzman,
:' meios operários, bem como nas frentes antifascistas, que tratava-se de “um esforço para colocar os meios de comu­
I

condenavam a guerra e os regimes autoritários de extre­ nicação de massa a serviço direto do poder executivo, uma
í: ma direita. iniciativa à qual não faltou a influência do Ministério'da
As frentes deram origem à Aliança Nacional Libertadora Propaganda alemão, recém-criado com a instalação do
(ANL). Os entendimentos para a formação da entidade, governo nacional-socialista em 1933”.1
1 reunia comunistas, socialistas, parte dos tenentes, agora Nas mãos do jornalista e escritor sergipano Lourival
insatisfeitos com os rumos seguidos pelo governo, e seto­ Fontes, grande admirador de Mussolini, profundo conhe­
1
1 res liberais. No início de 1935, veio a público um mani- cedor do fascismo e simpatizante do integralismo, o DPDC
i festo-programa, bastante amplo e que incluía a luta contra
•I o imperialismo, o fascismo, o latifúndio e defendia o aten­ 1 SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria 13.; COSTA, Vanda Ma­
! dimento das reivindicações operárias, a garantia das liber­ ria Ribeiro. Tempos de Capancma. Silo Paulo; lEdusp, 1984. i>.S6-7.

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IMPRENSA E CIDADE

:
fortaleceu-se. O programa de rádio do governo, ainda sem e aprovou, em dezembro de 1935, emendas à Constitui­
caráter obrigatório, passou a chamar-se Hora do Brasil e ção que permitiam ao Presidente da República decretar o
foi reformulado para divulgar, além dos atos do governo, estado de guerra em caso de “comoção intestina grave”. O
boa música, cultura e literatura. A transmissão iniciava- legislativo também aprovou o estado de sítio e, posterior­
se com a ópera de Carlos Gomes O Guarani, que se tor­ mente, o estado de guerra, que assegurava poderes prati­
nou sua marca distintiva. A preocupação de difundir uma camente ilimitados ao executivo. Tal regime de exceção
i'i imagem positiva do país no exterior é confirmada pelo fato vigorou do início de 1936 a meados do ano seguinte.
de o programa possuir uma parte internacional, transmi­ Ainda em janeiro de 1936, criou-se a Comissão Nacio­
tida em ondas curtas, nos diversos idiomas. nal de Repressão ao Comunismo, que vigiava de perto
Entretanto, não se tratou apenas de buscar o consen­ funcionários públicos, empregados de empresas mantidas
timento dos cidadãos. Em abril de 1935, o Congresso com subvenções governamentais e professores. A acusa­
Nacional aprovou a Lei de Segurança Nacional, destina­ ção de comunista implicava afastamento e/ou demissão
da a julgar crimes contra a ordem pública e social. Com sumária dos servidores, podendo ainda resultar em prisão
base nessa lei, a ANL foi fechada em julho, como repre­ ou detenção de qualquer indivíduo acusado de atividade
sália a um violento discurso redigido por Prestes, que con­ prejudicial às instituições políticas e sociais.
clamava a população a derrubar “o governo odioso de Em setembro de 1936 instaurou-se o Tribunal de Se­
Vargas”. Poucos meses depois, em nome da entidade, que gurança Nacional, composto por juizes nomeados pelo
1 continuou atuando na clandestinidade, ocorreram levan­ Presidente da República e que tinha por missão julgar os
tes militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro. O movi­ ’ envolvidos no levante do ano anterior.
/
mento, rotulado de Intentona Comunista, durou quatro A grande imprensa não só aplaudiu as medidas e cer­
dias em Natal e foi rapidamente controlado nas duas ou­ rou fileiras em torno de Vargas, que saiu do episódio mui­
tras cidades. to fortalecido, como contribuiu para criar um ambiente
Os eventos, se não chegaram a colocar em xeque a or­ favorável à difusão da onda anticomunista e para legiti­
dem estabelecida, deram materialidade às constantes ad­ mar as medidas de exceção adotadas pelo governo. Nos
vertências contra os comunistas. A repressão que se seguiu periódicos, em conjunto, clamava-se por medidas enér­
foi virulenta e esteve longe de se limitar aos comunistas. gicas de combate aos inimigos da nação e faziam-se in­
Antes, atingiu todo e qualquer opositor do regime. Vários lí­ sistentes referências à prisão de elementos subversivos
deres operários, políticos, parlamentares, jornalistas e inte­ e à descoberta de documentos, esconderijos e planos se­
lectuais foram presos, enquanto outros eram obrigados a cretos, o que alimentava o clima de apreensão. Órgãos \
deixar o país. No que tange à imprensa, A Manhã foi fechada antigovernistas e defensores das liberdades democráticas
e outros jornais mudaram a linha editorial para sobreviver. curvaram-se ante o medo da revolução social, mal maior v
Sob o argumento de que o país enfrentava uma grave a unificar os inimigos da véspera. O Estado de S. Paulo,
ameaça de subversão da ordem estabelecida, o Congresso por exemplo, defendeu a reforma do recém-aprovado texto
Nacional tornou mais dura a Lei de Segurança Nacional constitucional.

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;
Os editoriais de Assis Chateaubriand, por seu turno, Em 10 de novembro, alegando que o país não poderia
insistiam na necessidade de uma “União Sagrada’’ contra enfrentar a grave crise dentro dos quadros legais, o presi­
os rebeldes e pediam por punições exemplares. Os proprie­ dente fechou o Congresso Nacional, cancelou as eleições,
tários das empresas jornalísticas, ainda que apoiando as outorgou uma nova Constituição e anunciou, pelas on-
medidas do governo, eram vigiados de perto, uma vez que das do rádio, a criação do Estado Novo. Com a oposição
f novamente os censores se instalaram nas redações. já silenciada, não houve qualquer esboço de reação. O
golpe fora cuidadosamente preparado. Uma anotação no
i O Estado Novo seu diário revela que, em abril de 1937, a Nova Carta já
£
havia sido redigida pelo jurista Francisco Campos que, a
Em 1938 findava o mandato de Getúlio Vargas que, pela partir do golpe, passou a ocupar o cargo de Ministro da
legislação em vigor, estava impedido de ser reconduzido ao Justiça. O texto outorgado, de inspiração fascista, distin-
cargo. Em janeiro daquele ano, o seu sucessor deveria ser guia-se das constituições brasileiras anteriores por rejeitar
I escolhido pelo voto popular. O vendaval que varrera o país claramente os princípios liberais que, naquele momento,
em fins de 1935 parecia superado: o estado de guerra não também sofriam sérios reveses no âmbito internacional.
!
: foi renovado e as articulações em torno do futuro pleito O regime particularizou-se pelo caráter autoritário e
í iniciaram-se em meados de 1937. centralizador. Os direitos políticos foram suprimidos, e o
Entretanto, a abertura política não duraria. Com gran­ poder legislativo, em todos os níveis, foi abolido, cabendo
de estardalhaço, foi revelada a existência de uma conspi­ ao executivo exercer suas funções. Os partidos políticos
ração comunista internacional que visava à derrubada do j foram dissolvidos, e a censura aos meios de comunicação
governo, o chamado Plano Cohen, divulgado em 30 de de massa tornou-se regra. Estreitaram-se as possibilidades
setembro de 1937. De fato, tratava-se de um documento de contestação ao regime, que não hesitou em valer-se da
para debate, escrito pelo capitão Olimpio Mourão Filho, intimidação contra seus opositores - durante sua vigên­
chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira, e cia o número de presos políticos ultrapassou os dez mil.
que foi apresentado como sendo verdadeiro.2 Com a concentração do poder na esfera federal, espe­
Apesar de vários órgãos da imprensa levantarem sus­ rava-se colocar os interesses da nação, corporificados pelo
peitas sobre a veracidade do plano, o governo novamente Estado, acima de forças e particularismos regionais. A
solicitou ao Congresso a decretação do estado de guerra, unidade nacional foi expressa, de forma simbólica, na ce­
que foi aprovado apesar de forte contestação da minoria rimônia de queima das bandeiras estaduais, realizada em
oposicionista. Esta argumentava que a medida visava a dezembro de 1937 na capital do país. A partir de então, \
impedir ou dificultar a realização das eleições e duvidava todos deveríam se reconhecer única e exclusivamente na
que houvesse, de fato, ameaça à ordem constituída. bandeira nacional. , '
No campo das relações de trabalho, as ações governa­
2 A respeito do plano c.de seus desdobramentos, inclusive a defesa dc Mour3o mentais pautaram-se pela doutrina corporativa, que se
Filho anos depois, consultar: SILVA, Hélio. A ameaça vermelha: o Plano Co­
hen. Porto Alegre: LP&M, 1980. contrapunha ao liberalismo por considerar que este, ao

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colocar a liberdade individual acima dos interesses cole­ dinava-se a condições e limites prescritos em lei. Ainda de
i
tivos, possibilitava o surgimento de intermináveis disputas, acordo com o texto constitucional, a legislação poderia
conflitos e lutas entre classes, gerando o caos econômi­ prescrever, com o fim de garantir a paz, a ordem e a segu­
I
co. A solução, nessa perspectiva, estaria nas corporações, rança pública, a censura prévia da imprensa, teatro, cinema,
organizações que deveríam reunir empregados e emprega­ radiodifusão, além de permitir às autoridades competen­
dores de uma profissão específica para discutir todas as tes poderes para proibir a circulação, difusão ou represen­
\
questões relacionadas ao exercício dela, sempre sob a su­ tação do que fosse considerado impróprio. De fato, des­
pervisão do Estado, a quem cabería dirimir quaisquer de­ truía-se a liberdade de expressão e dotava-se o poder
sentendimentos. público de instrumentos legais para punir os infratores.
As noções de luta e conflito foram substituídas pelas No início de 1938, o Departamento de Propaganda e
de colaboração; o contrato de trabalho cedeu lugar às con­ Difusão Cultural (DPDC) foi reestruturado e passou a
venções coletivas, a liberdade individual passou a subor­ chamar-se Departamento Nacional de Propaganda (DNP),
dinar-se aos interesses da coletividade. O corporativismo, com Lourival Fontes no comando. Uma das primeiras
que se autoconcebia como nova síntese entre socialismo medidas do órgão foi proibir todas as transmissões radio­
e liberalismo, criticava a igualdade jurídica, assinalando fônicas e a impressão de jornais e revistas em língua es­
que, na prática, os empregados sempre estiveram em des­ trangeira. Vale lembrar que a Carta de 1937 já determinara
vantagem. Dessa forma, justificava-se a intervenção do que apenas brasileiros poderíam ser proprietários ou direto-
Estado nas relações de trabalho, encarada como essencial rés de empresas jornalísticas. As medidas constituíram-se
para estabelecer regras e direitos sociais que inaugurariam /ium duro golpe para a imprensa organizada por imigran­
a verdadeira igualdade entre as partes. tes e seus descendentes, e atingiu particularmente as
O preço cobrado por essa proteção não era pequeno: os
regiões Sul e Sudeste do país, que haviam recebido con­
sindicatos passavam a ser encarados como órgãos públi­
tingente considerável de mão-de-obra européia.
cos, subordinados à estrutura do Ministério do Trabalho
Outro poderoso instrumento de controle foi o decreto
e destituídos de autonomia. As greves foram proibidas,
que dispôs sobre a isenção de taxas alfandegárias na im­
assim como qualquer contestação às rígidas normas ela­
portação do papel utilizado pela imprensa. Sua aquisição,
boradas pelo poder público.
porém, subordinava-se à autorização do Ministro da Jus­
tiça. Segundo Sampaio Mitke, que chefiou o serviço de
A imprensa amordaçada
controle da imprensa:

Em relação aos meios de comunicação, o artigo 122 da O trabalho era limpo e eficiente. As sanções que aplicávamos eram
Constituição de 1937 considerava a imprensa um serviço muito mais eficazes do que as ameaças da polícia, porque eram de
natureza econômica. Os jornais dependiam do governo para a impor­
de utilidade pública e determinava que os periódicos não
tação do papel linha d'água. As taxas aduaneiras eram elevadas e de­
poderíam se recusar a inserir comunicados do governo. O
veríam ser pagas em 24 horas... Só se isentava de pagamento os jornais
direito do cidadão de manifestar seu pensamento subor-

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IMPRENSA E CIDADE

que colaboravam com o governo. Eu ou o lourival ligávamos para a* O cerco à imprensa foi brutal. Estima-se que cerca de 30%
alfândega autorizando a retirada do papel.3
dos jornais e revistas do país não conseguiram obter o regis­
Entretanto, foi com a substituição do DNP pelo De­ tro obrigatório no DIP, tendo deixado de circular. Os autori­
partamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a 27 de de­ zados eram cuidadosamente controlados e todas as matérias
zembro de 1939, que a atuação governamental na área da dependiam de autorização prévia dos censores. O governo
propaganda ganhou maior abrangência. As atribuições do também fundou seu próprio jornal, A Manhã (1941), dirigi­
novo departamento foram estabelecidas por decreto-lei. do por Cassiano Ricardo,5 expropriou outros, como ocorreu
Cabia-lhe centralizar, coordenar, orientar e superintender com O Estado de S. Paulo que, a partir de 1940, permaneceu
a propaganda nacional interna e externa; promover e or­ sob intervenção do DIP, tendo seus proprietários sido obri­
ganizar atos comemorativos oficiais e festas cívicas; reali­ gados a deixar o país, e encampou, no Rio de Janeiro, A
zar a censura prévia de jornais, revistas, cinemas, teatros, Noite e a Rádio Nacional. Não se dispensou o recurso de
livros e diversões públicas, tais como festas populares, cir­ facilitar verbas e empréstimos às empresas de comunica­
cos, bailes, bilhares, esportes, espetáculos e exposições; ca­ ção que se mostraram sensíveis às necessidades do poder.
dastrar todas as empresas e funcionários envolvidos com a A Agência Nacional, por sua vez, “era a executora das
comunicação.4 O órgão estruturava-se em seis divisões: Di­ atividades do setor de imprensa. E atuava como um jor­
vulgação, Radiodifusão, Cinema eTeatro, Turismo, Impren­ nal, durante os três expedientes, dispondo de equipes com­
sa (que englobava a Agência Nacional) e Serviços Auxiliares. pletas de redatores, repórteres, tradutores, taquígrafos etc.,
Os Estados, por sua vez, deveríam criar Departamen­ inclusiv;é editores em áreas específicas e editor-chefe”.6
tos Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIPs), tarefa Mais dè 60% do que era publicado na imprensa provinha
i que foi desenvolvida a contento por São Paulo, que esta­ deste braço do DIP.
beleceu um órgão bastante ativo e controlador. O departamento também era responsável pela edição
I Percebe-se o lugar estratégico ocupado pelo DIP, má­ de várias revistas, com destaque para Cultura Política, que
quina de coerção e propaganda do Estado Novo, que man­ reunia intelectuais importantes, como Francisco Campos,
tinha estrito controle de toda a produção cultural do país Azevedo Amaral e Cassiano Ricardo, responsáveis pela
; justificação ideológica do regime, Brasil Novo, Estiidos e
e determinava seus rumos. O domínio dos meios de comu­
nicação era de fundamental importância para cercear a Conferências, assim como pela produção e publicação de
divulgação daquilo que não era do interesse do poder, uma ampla gama de impressos: folhetos; cartazes e livros,
enfatizar as realizações do regime e sua adequação à rea­ desde cartilhas até obras que justificavam o golpe de 1937,
lidade nacional, levar a efeito a promoção pessoal e polí­ exaltavam as realizações governamentais e a figura de Ge-
:
tica da figura de Getúlio Vargas. 5 Não confundir com/\ Manhã, jornal fundado cm 1935 c porta-voz da Aliança
Nacional Libertadora (ANL), que circulou por sele ineses na cidade do Rio de
3 CALVÀO, F:lávío. A liberdade de informação no Brasil. O Estado dc S. Paulo, janeiro.
29.1 1.1975. Suplemento do Centenário, n.48, p.4. 6 GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial. Ideologia, propaganda e censura no
4 Em 30 de dezembro de 1939, três dias depois da criação do DIP, foi baixada a Estado Novo. São Paulo: Marco Zero; Brasília: CNPq, 1990. p.68. A autora in­
legislação que regulamentou a Constituição de 1937 no que tange á imprensa. forma que cm 1944 a Agência contava com 220 funcionários.
{
í
:■
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túlio. Os títulos são bastante sugestivos: Getúlio Vargas, gens e notícias. Entretanto, seu potencial político era imen­
para crianças, O sorriso do Presidente Vargas, O^perfil do samente maior: além de difundir o projeto político do execu-
Presidente Vargas, Getúlio Vargas, estadista e sociólogo. tivo, podería ser mobilizado para incentivar comportamentos,
Foi justamente nos anos Vargas que se tomou uma sé­ atitudes e valores tidos como desejáveis. Daí o rígido controle
rie de medidas a respeito do exercício da profissão de jor­ a que foi submetida a programação radiofônica e as letras das
nalista. Na Consolidação das Leis do Trabalho (1943) há canções. Além da censura prévia da programação, havia o fato
capítulo específico sobre o assunto, o que denota a com- N de o DIP ter funcionários encarregados de acompanhar as
plexidade da política adotada: por um lado, limita-se a transmissões das estações da capital federal.
liberdade de expressão e por outro se procura atrair os Em 1940, o governo encampou a Rádio Nacional e não
trabalhadores das empresas com o estabelecimento de ga­ poupou esforços para torná-la popular: contrataram-se os
rantias legislativas. locutores, cantores, humoristas e radioatores mais famo­
sos da época; a emissora foi dotada de novos estúdios e de
O controle sobre outras mídias modernos transmissores de ondas médias e curtas. A Na­
cional transmitiu a primeira radionovela brasileira, criou
No cinema, a ação do DIP se fazia presente não apenas pela o Repórter Esso, marco no jornalístico radiofônico, e pro­
censura do que poderia ser exibido, como também por meio moveu vários concursos cujos resultados eram anuncia­
dos cinejornais, documentários de curta metragem exibi­ dos na Hora do Brasil, programa produzido pelo DIP e
dos obrigatoriamente antes de cada sessão. A tônica aqui, retransmitido obrigatoriamente em todo o país.
ainda uma vez, era a exaltação dos atos do poder público: ;0 avanço da indústria e da urbanização foi um dos fa­
festividades, inaugurações, visitas, viagens e discursos. As to^ notáveis do período e que contribuiu para deslocar o eixo
imagens, cuidadosamente selecionadas, retratavam o pon­ econômico do campo para as cidades. Buscou-se integrar
; to de vista oficial e esmeravam-se em destacar o apoio as diferentes regiões do país para criar um mercado interno
popular ao regime, manifesto nas tomadas do público, que articulasse, de fato, todo o território nacional. O de­
sempre aplaudindo seu líder, num clima de unanimidade. senvolvimento da produção industrial e a busca da auto-
No início da década de 1940, o rádio firmou-se como suficiência tornaram-se questões de soberania nacional e
o principal meio de comunicação de massa, administrado passaram a integrar as preocupações de amplos setores so­
a partir de receitas publicitárias. O país contava então com ciais, inclusive militares, que desfrutaram de considerá­
106 estações, das quais 40% estavam sediadas no Estado vel influência nos rumos tomados pelo governo nessa área:
de São Paulo. As empresas jornalísticas estenderam suas A industrialização articulava-se com outro processo em
atividades para a radiofonia, como ocorreu com os Diários curso na sociedade brasileira do período, a urbanização.
Associados, que inaugurou a Tupi (1935), primeira das As migrações internas acentuaram-se significativamente
muitas emissoras do grupo. após a década de 1930, quando grandes levas de indivíduos
As possibilidades do rádio eram enormes e os governan­ abandonavam o campo e se dirigiam para as cidades em
tes souberam utilizar o meio para veicular discursos, mensa- busca de melhores oportunidades de vida e trabalho.

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No início do século XX, quatro cidades haviam ultra­ dente, que sempre presenteava os "trabalhadores do Bra­
passado a casa dos cem mil habitantes: Rio de Janeiro (700- sil” com alguma iniciativa de cunho social. Não p or acaso
mil), São Paulo (240 mil), Salvador (206 mil) e Recife (113 na memória coletiva Vargas segue identificado como pai
mi), seguidas por Porto Alegre (74 mil), Curitiba (50 mil) e dos pobres, indício da eficácia do projeto político-pedagó-
Fortaleza (48 mil). Em 1940, eram doze as cidades entre 50 gico da ditadura estadonovista.
e 100 mil habitantes, oito as que ostentavam entre 100 mil
e um milhão e duas com população superior a dois milhões. E sopram os ventos da liberdade
Populações que estavam fora do mercado, por viverem x
de forma quase auto-suficiente em áreas rurais ou peque­ No início de 1942, sob pressão dos Estados Unidos, o Brasil
nas vilas e povoados, transformavam-se em consumidores rompeu relações com as nações do eixo e se aproximou
e passavam a fazer parte efetiva da economia. Milhares de definitivamente dos aliados, decisão que estava longe de
indivíduos foram arrancados de seu isolamento e lança­ agradar a todos os integrantes do governo. As dissensões
dos num mundo no qual os meios de comunicação de acabaram por determinar o afastamento de Lourival Fon­
massa desempenham o papel essencial de difundir novas tes do DIP. Nas ruas cresciam as manifestações de indig­
formas de convivência social, hábitos e necessidades, além nação pelo torpedeamento de navios brasileiros e os cla­
de informações e ideologias. Foi justamente nas décadas mores pela entrada do país na guerra. Em 1943, foi criada
de 1930 e 1940 que, ao lado dos jornais e revistas, ganhou for­ a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que, a partir do
ça o rádio, potente meio de difusão cujo aparecimento im­ ano seguinte, lutou na Itália a favor da democracia. O
portou significativo deslocamento na forma de comunicação, deçgaste do projeto autoritário tornou-se evidente a par­
uma vez que o meio dispensa o domínio da leitura e chega, tir- desse momento, assim como extremamente contradi­
instantaneamente, aos lugares mais escondidos do país. tória a manutenção do regime.
Não por acaso, o rádio ocupou lugar tão central no Vargas tentou manobras a fim de controlar a transição
projeto do Estado Novo, que deu início a um esforço de­ para a democracia e assegurar sua continuidade no poder,
liberado, especialmente por intermédio do DIP e seus estratégia que obrigou à liberalização do regime. Parte sig­
antecessores, para construir uma imagem positiva de Ge- nificativa da imprensa, que só apoiara o governo em fun­
túlio Vargas. Sua voz podia ser ouvida em todo o país, sua ção do rígido controle a que estava submetida, começou a
fotografia oficial contemplada em repartições públicas, desafiar as proibições, contribuindo para a derrocada da
escolas, estações ferroviárias, aeroportos, bancos, casas ditadura. No final de 1944, a derrota do nazi-fascismo já
comerciais e a data do seu aniversário (19/4) integrava o se tornara clara, o que acelerava a desestabilização do go­
calendário festivo do regime, ao lado do I2 de maio, do 11 verno. Vários jornais passaram a desafiar abertamente proi­
de novembro (implantação do regime), da Independência, bições, estampando entrevistas com personalidades do
do Natal e do Ano Novo. mundo político, que exigiam a volta das liberdades demo- \
No dia do trabalho, grandes multidões reuniam-se no cráticas, tal como ocorreu nos diários cariocas O Globo e
Estádio do Vasco da Gama, para ouvir a palavra do presi­ Correio da Manhã, e divulgando notícias vetadas e/ou não

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S) *
submetidas ao DIP, indício evidente de que a censura per­ \
dera sua eficácia.
ir BI8U0TEC* *
A pressão crescente pelo fim do regime de exceção le-
vou o governo a anistiar os presos políticos e extinguir o • I;
(4
4 Imprensa livre 5% UC0

DIP, substituído pelo Departamento Nacional de Infor­


mações (DNI). As eleições presidenciais foram marcadas (1946 a 1964)
para dezembro. Entretanto a oposição, que nutria sérias
dúvidas quanto à realização delas, articulou a deposição
de Vargas, consumada a 29 de outubro de 1945. Fechava- De um lado, a imprensa realmente livre tem de ser proprieda­
de privada para preservar sua independência ante o Estado;
se o ciclo iniciado com o movimento de 1930.
de outro, para desempenhar seu papel na democracia,
tem que ser acessível a todos os setores de opinião.
Danton Jobin

A conjuntura internacional nascida no pós-guerra altera­


va substancialmente o tradicional quadro de forças dos
países europeus. Estados Unidos e União Soviética emer­
giam fortalecidos pelo conflito em detrimento da Alema­
nha, França é Inglaterra, instituindo uma nova configu­
ração do mundo, definida por dois blocos antagônicos: o
capitalista e o comunista.
Nesse realinhamento mundial tinha início a chamada
■;

Guerra Fria (1947-1989), resultado da disputa entre as


duas superpotências que procuravam ampliar seu raio de
influência geopolítica e ideológica, ficando a ameaça
de uma guerra nuclear. A destruição de Hiroshima e Na-
gasaki pelos norte-americanos em 1945 e o posterior in­
vestimento em armas atômicas por parte dos soviéticos
sinalizaram a existência de aparato bélico de poder in-
comensurável, suscetível de ser acionado a qualquer mo­
mento. Não foram poucas as manchetes do noticiário
internacional aqui reproduzidas, anunciando temeraria-

72
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDAOE
I

mente os conflitos da Coréia, da Indochina, da Palestina Apesar disso, em vários momentos a censura voltaria
e de Suez.1 a funcionar, em particular nos momentos de crise políti­
No Brasil, que se colocara ao lado dos Estados Unidos ca. Em 1953, sob forte crítica dos juristas , seria sancio-
durante a Guerra, assistiu-se então à aproximação cres­ V nada uma nova Lei de Imprensa, em substituição àquela
cente do país aos interesses norte-americanos, momento . de 1934, que se manteria até 1967. A implantação da in­
em que se infiltraram - em movimento que não cessou até dústria de base iniciada por Getúlio criava pré-requisitos
o presente — não só o capital e a ideologia política, mas para o desejado crescimento material e as conquistas téc­
também o modelo norte-americano de fazer jornal e tocar nicas advindas dos mais diversos setores sinalizavam con­
a imprensa. dições favoráveis para o desenvolvimento.
O controle dessa porção da América foi intensificado pela No plano social, uma classe média trabalhadora cres­
potência líder do ocidente, temerosa de um enclave comu­ cia nas principais capitais, envolvida por apelos de con--
nista num país de alto interesse estratégico, fosse por sua sumo, veiculados pelas sedutoras revistas ilustradas, pela
situação geográfica, pelas dimensões continentais ou pela propaganda que invadia os lares através das ondas do
forte presença na América Latina. A imprensa, como instru­ r rádio e pelas mensagens envolventes do cinema, via
mento ideal dessa captação, foi a instância mais cortejada. Holywood. Mas, nessas mesmas cidades, uma população
migrante, em busca de trabalho, já ocupava desordenada­
A imprensa da “experiência democrática" mente o.espaço num processo descontrolado de inchaço
e do desenvolvimentismo urbano/sem planejamento social.
Os finais promissores daquela década atropelavam-se em
O Brasil que despontava no quadro de pós-guerra e pós- meio às imensas desigualdades sociais e econômicas que
ditadura vinha com boas promessas. A extinção do DIP marcavam todo o território nacional. Ocorrências de 1953
(Departamento de Imprensa e Propaganda) em 25 de maio ilustram a latência dos problemas em curso: o Quebra-que­
de 1945 e sua substituição pelo DNI (Departamento Na­ % bra da Central do Brasil; a Manifestação da Panela Vazia em
cional de Informação), também desaparecido em 6 de se­ São Paulo, mobilizando cem mil operários; a Greve Geral de
tembro de 1946, sinalizavam o afrouxamento do controle São Paulo, a chamada Greve dos trezentos mil, que envol­
da palavra impressa no país. A democracia saíra vitoriosa veu, no início, cem mil tecelões e oitenta mil metalúrgicos.
na luta contra os regimes nazi-fascistas, e uma Constitui­ Apesar da construção da nova capital, Brasília, inau­
ção, em 1946, selava o retorno ao estado de direito, insti­ gurada em 21 de abril de 1960 - em uma tentativa de cen­
tuindo também a liberdade de imprensa no Brasil. tralização geográfica do poder, rearranjo das forças
econômicas e melhor distribuição de riqueza os tradi­
cionais focos de divulgação da notícia, Rio de Janeiro e São
1 Sobre os anos de 1950, ver: RODRIGUES, Marly.A década de 50. Populismoc
metas dcsenvolvimentistas no Brasil. S3o Paulo: Álicn, 1996; SKIDMORE, Paulo, permaneceríam como principais centros de difusão,
'Ihomas. Brasil, de Getúlio a Castelo (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 1969; f-
MARANHÃO, Ricardo. O governo Juscclino Kubitschek. Sào Paulo: Brasi-
ainda mais potencializados, palcos de acontecimentos que
iiense, 1981. geravam notícia e vendiam o jornal.

74 75
ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA. I!' IMPRENSA E CIDADE

I ■
;
No final dos anos 1950, o Rio de Janeiro e o Distrito * Assis Chateaubriand, assentado nas práticas manipulado-
Federal somavam juntos 9% da população do Brasil. Só a ras de seu proprietário; a ampla penetração da primeira
Capital Federal abrigava sessenta mil funcionários públi- revista de circulação nacional - O Cruzeiro (1928), tam­
COS , concentrando as principais sedes das instituições . bém de Chateaubriand; a atuação política, inovação grá­
administrativas, econômicas e financeiras. São Paulo, com i fica e editorial de órgãos do porte de O Estado de S. Paulo,
sua posição de maior cidade industrial do país, atingia o ! ■

Correio da Manhã e]ornal do Brasil; a criação de dois jor­


total de 2,2 milhões de pessoas. Nela, acentuava-se a di­ nais lendários, Tribuna da Imprensa (1949) e Última Hora
versidade racial e cultural da população, resultado das le­ (1951), que se confrontaram na defesa das causas então
:
vas de imigração estrangeira, acrescida agora de migrantes cunhadas de “entreguistas” e “nacionalistas”, respectiva­
provenientes das secas nordestinas de 1956 e 1958. mente; a emergência de editoras de revistas em quadrinhos,
A grande imprensa escrita agigantara-se enquanto a revistas de rádio e revistas ilustradas femininas de amplo
imprensa falada — através de 243 emissoras de rádio que consumo, a exemplo da Bloch Editora e da Abril Editora; a
estavam no ar em 1950 - deslanchara com a propaganda e implantação dos jornais televisionados què passaram a dar
a publicidade. Mas também em 1950 surgia a tevê, o mais outra cobertura à notícia, com mais velocidade e arrebata-
[
poderoso veículo de difusão da cultura de massas. Sua mento, apesar da superficialidade no trato do fato noticioso.
força como mídia decisiva, contudo, só se faria sentir al­ O discurso nacionalista herdado da Era Vargas , a neces-
guns anos mais tarde. Em 1953, estreava o noticiário ra­ sidade de aderir à nova etapa capitalista transnacional e o
diofônico mais famoso, o Repórter Esso.2 desenvolv^mentismo de Juscelino Kubitscheck (JK) presidi­
Nesse breve intervalo de quase vinte anos, entre 1945 ram as manchetes e moveram paixões de partidos e grupos
e 1964, mediando duas ditaduras, as cidades e a imprensa políticos. No âmbito do jornal, estava em marcha um ca­
brasileira - instâncias imbricadas - conheceram surto de minho sem volta: sua adesão ao modelo norte-americano.
efetiva modernização. A condução desse processo, mais
uma vez, se fizera de forma imediatista. A questão da desnacionalização da imprensa
Foram décadas marcantes para a grande imprensa, que
se profissionalizou, investiu em maquinário de ponta, O nacionalismo das empresas preconizado na Era Vargas
construiu grandes sedes próprias, fez de seus capitães de seria mantido na Constituição de 18 de setembro de 1946, '
indústria e de seus editores homens de extremo poder, que reiterava a proibição do capital estrangeiro nas indús­
tornando os órgãos da mídia instrumentos decisivos de trias do país. Em seu artigo 160 vedava “a propriedade de
controle da vida nacional. empresas jornalísticas, sejam políticas ou noticiosas, as­
Como expressão daquelas transformações, insista-se no sim como as de radiodifusão, a sociedades anônimas por
poder dos Diários Associados, império da comunicação de ações ao portador e a estrangeiros”.3

2 ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa. 1970-2000. Rio de Ja­ 3 COSTELLA, Antônio F. O controle da informação no Brasil. Evolução histórica
neiro: Jorge Zahar, 2002. p.8. da Legislação Brasileira. Pctrópolis: Vozes, s-d. p. 118.

76 77
ANA LU1ZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

No entanto, este dispositivo constitucional esteve lon­ dependência, principalmente do capital norte-americano,
ge de ser cumprido, permanecendo letra morta, conforme agravou-se em face do condicionamento às agências de
se assistia à crescente desnacionalização da empresa jor­ publicidade e às agências noticiosas, sendo essas últimas
nalística, fosse pela incorporação de capitais estrangeiros todas estrangeiras. Aquelas se representavam, em particular,
a seus negócios, fosse pela adoção de técnicas e modelos pela McErisson; essas, pelas Associated Press e United Press
;
estrangeiros em suas apresentações e pautas. International.
!
Data dessa época a substituição da tradição francesa Apesar de se ter registrado em 1957 uma primeira ten­
de nosso jornalismo em favor das práticas jornalísticas tativa de levar ao Congresso o problema do controle es­
!
norte-americanas, influência que vinha na esteira das agên- trangeiro exercido sobre a imprensa brasileira, o processo
cias de publicidade e de informação, dos primeiros cursos de sua desnacionalização, via publicidade, já deslancha-
I ra, transformando proprietários e jornalistas em seus re-
de jornalismo no Rio de Janeiro e São Paulo, recém-cria-
dos na década de 1940 e da experiência de jornalistas que féns. Daí para a própria autocensura dos jornais foi um
haviam estagiado nos Estados Unidos. A influência nor­ passo. Afinal, não só a quase-totalidade de seus patrocí­
te-americana no meio jornalístico tornou-se incontestá­ nios provinha de fontes estrangeiras como 80% das ren-
vel, acentuada nos anos seguintes. das da imprensa jornalística provinham da publicidade.4
Em 1951,0 Diário Carioca adotava o lead do jornalis- Assistia-se à censura interna dos próprios órgãos de comu­
mo americano, concentrando no parágrafo inicial da no­ nicação, temerosos da perda das verbas publicitárias.
tícia os cinco WeumH: who; what\ when; where; why; Quanto à censura de ordem política — ainda que em
how, isto é, quem? o quê} quando} onde} -por quê} como} período conhecido como de “experiência democrática”-,
Inovaria também ao introduzir uma equipe de copidesque esta não se fez tardar. Num primeiro momento, em 1961,
na redação. quando da tentativa de golpe de Estado, após a renúncia
Entre os tantos debates que ocorreram naquele período do presidente Jânio Quadros; num segundo, de consequên­
constitucional, convencionalmente denominado “expe­ cias drásticas, a partir de 1964, quando do golpe militar.
riência democrática”, o mais famoso foi aquele da defesa
dos interesses nacionalistas contra a entrada do capital O quadro da grande imprensa
externo. Ao tempo de Getúlio, foi exemplar a campanha
“O Petróleo é Nosso”, quando após longo conflito se apro­ Nos limites do eixo formador de opinião - Rio de Janeiro
1 vou o monopólio estatal sobre a pesquisa e exploração do e São Paulo - ainda circulavam em pleno vigor o Jornal do
í produto. Também no governo JK, a abertura do país a em­ Comércio (1827) e O Estado de S. Paulo (1875).
! presas estrangeiras, especialmente automobilísticas, seria Nascidos com a República, ocupavam a cena carioca
alvo de crítica permanente constante nos jornais. os tradicionais Jornal do Brasil (1891), Correio da Ma­
Ü
Mas, essa mesma imprensa que denunciava, vivia in­ nhã (1901), de Edmundo Bittencourt, A Noite (1925),
:
ternamente uma grande contradição: parte significativa de
4 SODRÉ, Nelson Wcrneck. Op. cit., p.467, 488.
nossos grandes jornais valia-se do capital estrangeiro. Essa

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I

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!• [
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE IUCA ; IMPRENSA E CIDADE

i
;
de Irineu Marinho, germe do futuro conglomerado das Tribuna da Imprensa e Última Hora
Associações Globo, e o Diário Carioca (1928). Em São
Paulo, tomaram forma empresarial a Gazeta (1906) e, O jornal Tribuna da Imprensa do jornalista Carlos Lacer­
í
desde 1931, o Grupo Folhas, com as Folha da Noite e da foi criado em 27 de dezembro de 1949, no âmbito da
Folha da Manhã. . organização de forças antigetulistas, em face do retorno
| Como fenômeno empresarial jornalístico, dotado de ; do antigo ditador, vitorioso nas eleições de 3 de outubro
i
poder incomensurável, vinha a rede dos Diários Associa­ de 1950.
dos, de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Porta-voz da UDN, afinado com o Congresso e com
Mello (1892-1968), que em 1929 lançara o Diário de São meios de comunicação de massa - Rádio Globo e TV Tupi
!
Paulo. O gigante da comunicação compreendia agora 34 sua linha editorial foi marcada pela postura antiestatal
jornais, 36 emissoras de rádio, 18 emissoras de televisão e e clerical, carregando o estigma de jornal de direita , em
uma a gência de notícias, a Meridional. A partir de 1952 permanente combate a Getúlio, que só cessou quando de
I •
i passaria a disputar com a Rede Manchete.
í seu suicídio.5
Vários outros jornais circulavam com menor tiragem, Trazendo a tradicional figura do menino gazeteiro em
menos ou mais independentes, mas o que contava em ter- meio ao logotipo da primeira página, tinha fatura ultrapas­
mos de grande imprensa eram os títulos acima nomeados. sada, as seções misturavam-se sem ordem definida, sem a
Ao contrário dos anos ditatoriais de 1940, quando não distribuição dos editoriais segmentados que já marcavam
se registrou o aparecimento de nenhum novo periódico da a moderna diagramação dos grandes periódicos. Os capi-
grande imprensa, a década de 1950 ensejou a circulação tais que subsidiavam o empreendimento também decor
de dois novos vespertinos na capital da República, que em reriarr/de empréstimos do Banco do Brasil, embora num
sua própria historicidade reproduzem o momento vivido: valor bem menor que aquele desfrutado pelos seus con­
a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, porta-voz da correntes.
•I União Democrática Nacional (UDN), que fazia cerrada Em oposição à Tribuna da Imprensa surgiu o jornal Úl­
oposição a Getúlio; a Última Hora, de Samuel Wainer, tima Hora,b que rapidamente conheceu ampla penetração.
:!
: financiada com empréstimos bancários obtidos do Banco Em parte, os resultados de sucesso do periódico podem
do Brasil por Vargas, interessado em um jornal seu, de base ser creditados ao apoio de Getúlio Vargas, eleito presidente
popular, desvinculado da imprensa estrangeira, sem con­ em 1950 e que propiciou ao jornal alto empréstimo do
i:•: tar com Chateaubriand, por sua vez envolvido com a Banco do Brasil em condições privilegiadas, sendo-lhe
Light. Esses polêmicos jornais traduziram, com mais vi­ também facilitada a importação de papel. Apesar de servir
sibilidade, a delicada relação de poder, imprensa e ética à elite econômica nacional, adotou com ênfase o discur-
conjugados. Em competição acirrada e em campos opos­
tos, com linhas editoriais distintas - tendo seus proprie­ 5 Ver: LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Lacerda x Wainer: o corvo e o bessaba-
riano. Silo Paulo: Scnac Süo Paulo, 1988,p. 821.
tários em permanente confronto acabaram por deixar um 6 Ver: VVEINER, Samuel. Alinha razão de Viver. Memórias de um repórter. 13>cd.
retrato vibrante das transformações vivenciadas pelo país. Rio de Janeiro: Record, 1989.
fi
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:

í
'1

ANA LU1ZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA i■ IMPRENSA E CIDADE

so de agrado das classes trabalhadoras, estigmatizado como I .Erri 1954, colocou edições nacionais e regionais em
um jornal de esquerda. Inegável, porém, que pesou forte­ Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pernambuco, pas san-
mente o talento jornalístico de seu responsável, Samuel do a publicar onze edições diárias, em sete Estados. Em
Wainer, fosse na concepção e estratégias inovadoras, bem 1962, organizou um serviço de Copyright da Rede Nacional.
como na condução de sua peculiar trajetória. Na qualidade de único jornal que apoiava Getúlio Vargas,
Desde seu lançamento, o vespertino Ultima Hora des­ % o Ultima Hora foi alvo de campanha liderada por Carlos La­
tacou-se pela produção visual cuidada, com diagramação cerda, da Tribuna, com apoio de Chateaubriand, de O Globo,
I
moderna, entregue ao artista gráfico argentino Andrés e demais parlamentares da reação. O resultado foi a instala­
N i '
Guevara. Com distribuição ágil, instituiu novo horário de ção de uma Comissão Parlamentar de Inquérito contra Wai­
I.
impressão e circuitos estratégicos pelo trânsito carioca. E ner, indiciado tanto por ser estrangeiro — de origem russa —
mais: era o órgão que melhor remunerava seus funcioná­ ; como por se beneficiar de empréstimos do Banco do Brasil.
rios. Ingredientes de apelo popular — romance, futebol e O confronto acirrado entre os dois órgãos espelhou o
crime — ampliavam seu consumo, marcando época a colabo­ i contundente jornalismo de opinião que marcava o perío­
ração de Nelson Rodrigues pelo folhetim A Vida como ela é. do de “experiência democrática”, cuja CPI de março de
1953 revelou os ingredientes mobilizadores daquele espe­
vZzP hmakttM Jj4c kvmrfo *H da Mdtoral cial momento histórico: o comprometimento da imprensa
IIM* com capitais do Governo; a participação inconstitucional
fiiÉÉiÊiik- de estrangeiros na imprensa do país; o confronto entre na­
il $
cionalismo e a ingerência do capital estrangeiro no Brasil.
* v• !
• ■ \ >--•

SUBVERSÃO EM MARCHA í Üm contraponto a essa imprensa, comprometida com


NO INTERIOR ! agencias e políticos, era dado por revistas de cultura, que
DE SÃO PAULO ^ sriTúsn; j a circularam a partir de 1950. Por meio delas veicularam-se
i«* s#vn N debates que não eram discutidos na imprensa com a mes­
a» #'£*«
íb.C->\; £____
ma profundidade, fosse pela agilidade do jornalismo diário,
X»*

í- " " . pelo seu cunho comercial e/ou dependência da propaganda


í
estrangeira. Marcaram época as revistas Anhembi (1950),

Habitat (1950), Visão (1952), Módulo (1955), Revista Bra-
\m lauu fUÀ voa siliense (1955), Revista do Livro (1956), Desenvolvimento
l & Conjuntura (1957), Estudos Sociais (1958), Senhor (1959),

i Tempo Brasileiro (1962), Problemas Brasileiros (1963)'.


Mas essas publicações estavam longe de atingir a maio­
ria da população leitora do Brasil, dado o caráter erudito
i
FIGURA 3. ÚLTIMA HORA. EDIÇÃO DE SÃO PAULO, EM 27 OUT. 1967, e/ou diferenciado que as caracterizava, consumidas por
í ANO V, N.1401. poucos leitores esclarecidos. Apesar disso, um modelo de

! 83
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ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDAOE
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revista, de forte cunho comercial e fotojornalístico, emplã: i
cou como entretenimento, formadora de opinião, propa­
gadora voraz de costumes e modas, veículo certo para a
colocação de produtos do mercado. Disseminou-se pelo país
e espelhou o momento cultural então vivido. Tratava-se de %
i O Cruzeiro, um empreendimento de Assis Chateaubriand.

O Cruzeiro: "contemporânea dos arranha-céus", [


"que tudo sabe, tudo vê"

A revista Cruzeiro, denominação inicial alusiva à conste­


lação do Cruzeiro do Sul e também à nova moeda prestes
a circular no país (a partir do nfl31,de 8 de junho de 1929,
recebería O inicial) foi criada em 1928 e já no lançamen­
to tornou-se a primeira publicação de caráter nacional -
antes mesmo que os jornais o fossem.7 Por quê? FIGURA 4. CRUZEIRO. REVISTA SEMANAL ILUSTRADA. S/D.
Em parte, porque era da tradição de nossa população
leitora, o consumo da revista até mais que o jornal. Nesse
caso, o forte apelo da capa, de tratamento moderno, com / Desde sua concepção inicial — fundada pelo jornalista
imagens de mulher, tornavam-na chamativa para o prin­ português Carlos Malheiro Dias - foi pensada como re-
cipal consumidor do gênero à época: o público feminino. vista de circulação nacional. Impossibilitado de tocar
O aparato de seu lançamento e as estratégias adotadas sozinho o projeto, vendeu-a para Chateaubriand. Era o
também a levariam à ampla circulação de mercado, vitri­ veículo que faltava para dar maior visibilidade ao empreen­
ne sedutora dos principais acontecimentos do país. dimento do empresário, já inferindo que a melhor fatia do
i
Destinada para cinqüenta mil leitores, foi impressa na circuito da imprensa era aquela do controle da propagan­
' Argentina para garantir a qualidade gráfica e anunciada da e da publicidade. A revista O Cruzeiro permitia a cap­
com uma chuva de prata sobre a Avenida Rio Branco. Para tação da renda preferencial de Chateaubriand: aquela da
sua efetiva distribuição, valeu-se de caminhões, barcos e publicidade.
até bimotores fretados, como garantia para que chegasse Em formato de magazine, grande balcão de variedades,
às bancas de Belém a Porto Alegre.8 absorveu a produção literária dos então estreantes João
í Guimarães Rosa e José Lins do Rego; e de artistas plásti- \
7 Pura uma abordagem recente dc O Cruzeiro, ver: GAVA, José Estcvam. Momento cos que exercitaram novas estéticas e arte gráfica nacio­
Bossa Nova: arte, cultura e representação sob os olhares da revista 'O Cruzeiro’.
Assis, 2003. Tese (Doutorado cm História da FCL) — UNESP. nal. Naquelas páginas, a publicidade conhecería avanços, ’
8 MORAIS, Fernando. Chalô: o rei do Rrasil. São Paulo: Companhia das Letras,
I 1994, p. 187. uma vez que metade da revista era ocupada por anúncios.
:

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ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

O sucesso retumbante viria a partir de 1948, quando Ipiranga e Gaby, este também produtor de sucessos de ven­
da contratação da agência McCann. Sabe-se que já inicia­ da da época: o pó-de-arroz Joli e a água-de-colônia Gilca.9
va o ano com todos os espaços das 52 edições anuais re­ Quando não obtinha sucesso na aquisição de negócios de
servados ou vendidos. anunciantes, usava seu jornal para retaliar o produto.
A morte do cantor Francisco Alves, em 1952, em aci­ Essa publicidade que sustentava a imprensa do papel
dente de automóvel, fez as vendas saltarem de 370 mil' I ainda levaria algum tempo para migrar para aquela falada.
exemplares semanais para 550 mil, em um país com popu­ Os anunciantes e patrocinadores preferiram se colocar nos
lação de 50 milhões de habitantes, de poucos leitores. E jornais e revistas, considerados mais seguros de retorno. Já
mais: os leitores da revista ultrapassavam em muito a soma a propaganda política, no quadro do populismo getulista,
dos telespectadores das duas estações de televisão. Entre encontrara nas ondas sonoras do rádio sua melhor difusão.
1957 e 1965, rodaria O Cruzeiro Internacional. Ali se co­ Quanto à propaganda profissional, ao lado da Ayer, a
locaram os melhores profissionais do mercado, como o primeira agência de propaganda norte-americana implan­
fotógrafo Jean Manzon, o humorista Millôr Fernandes e tada no Brasil, em 1930, para atender a Ford, colocara-se
os colaboradores Gilberto Freyre e Rachel de Queiroz, a J. W. Thompson, para atender à General Motors, man­
entre tantos. tendo-se até hoje como a agência mais antiga do país.
O sucesso do modelo foi vigoroso até meados dos anos Com exceção da Antárctica, nossa primeira grande anun­
de 1960. A partir de então, fosse pela nova conjuntura ciante, as demais marcas publicitárias de peso passaram a se
da comunicação do país — já com a entrada da tevê —, fosse fazer por multinacionais, entre elas Mappin & Webb, Nestlé,
pela ampliação do mercado periódico, com a concorrên­ Colgate-Palmolive, General Electric, Souza Cruz (British
cia da similar Manchete (1952) e Fatos e Fotos (1961), a American Tobacco) e Ford. A Bayer inovaria lançando campa­
publicação perdeu seu espaço. Em 1975, encerrava sua nha com peças em seqüência, dotada de estratégia planejada.
primeira fase. Em 1957, a realização do I Congresso Brasileiro de
Propaganda sinalizava a importância da matéria, que exi­
Publicidade: dependência irremediável ! gia regulamentação, sendo aprovadas as bases do código
de ética da profissão, oficializado em 1960.10
Não eram as assinaturas que garantiam a sobrevivência do Desde os anos 1910, o modelo norte-americano de pro­
jornal, mas sim as verbas injetadas pela propaganda e pela paganda e publicidade serviu-nos de matriz, valendo-se,
publicidade. Chateaubriand construiu seu império com a inclusive, de elementos estranhos à nossa realidade, como
motivação de que negócio bom era aquele que anunciava personagens loiros e paisagens com neve. A'partir dos anos
muito. Por essa razão adquiriu em 1937 o Laboratório de 1960, e mais ainda em 1970, se produziría repertório vol-
Cacau Xavier, especializado em produtos farmacêuticos po­
pulares; arrematou em leilão público o espólio de seus gran­
: 9 MORAIS, Fernando. Op. cit., p.367.
des anunciantes, o Guaraná Espumante e, de quebra, levou 10 MARCONDES, Pyr. Uma história da propaganda brasileira. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2002. p.38. '
as Indústrias de Chocolate Lacta; e ainda os Laboratórios

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ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA OE LUCA : IMPRENSA E CIOAOE

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tado ao cotidiano do país. Nascia a propaganda com sota­ divulgação da mídia escrita, um fato marcante de 1960 — a
I:
que brasileiro, hoje uma das mais premiadas e festejadas, inauguração de Brasília, a nova Capital Federal - já expe­
I
também no mercado internacional. : rimentava a ampla propagação da transmissão televisiva.
Esse processo de retransmissão da imagem ocorreu ao
A notícia pela imagem: a implantação da tevê compasso do ritmo desenvolvimentista e propagandístico
I do governo, dando-lhe sustentação. Espelhavam-se, em
A década de 1950 assistiu à consolidação da forma moder­ tela, os tempos de JK.
na de fazer jornal, à consagração do rádio e à regulamen­
tação da propaganda. Assistiu também, “literalmente”, ao Imprensa a serviço do progresso: tempos de JK
!
nascimento de outro veículo revolucionário no quadro da
cultura de massa: era a televisão, cuja primeira emissora, Em 31 de janeiro de 1956, o mineiro Juscelino Kubitschek
a PRF-3 ou TV Tupi, foi inaugurada em 18 de setembro era eleito presidente.do Brasil pela coligação de forças _
de 1950, às 22 horas, com duas horas de atraso. populistas PSD-PTB. Sua prioridade centrava-se no Plano de
Quarto país do mundo a transmitira imagem televisi­ Metas, num total de 31 metas, entre as quais a expansão de
va, a iniciativa ousada coube a Assis Chateaubriand, que ! setores de energia, transporte, alimentação, educação, indús­
se valeu da tradicional habilidade para canalizar verbas de trias de base - em particular a indústria automobilística - e,
propaganda, obtendo previamente o patrocínio de anun­ i como7 meta síntese, a construção de Brasília, a nova capital.
ciantes de peso, que garantiram a retransmissão do veículo partir de então, a venda de imagens associadas ao
>
por um ano: a Sul América, a Antárctica, a laminação Pigna- progresso e ao desenvolvimento moderno do país foi tare­
tari e o Moinho Santista. fa contínua dos órgãos oficiais da imprensa. A cobertura
Nessa década se iniciaria também a acirrada concorrência da inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, pela >
das indústrias brasileiras, que necessitavam de fórmulas de tevê, foi um dos momentos de consagração do veículo.
atuação em um mercado extremamente competitivo. A che­ A nova câmera, contudo, foi documentarista permanen­
gada dos supermercados, em 1953, acelerou esse processo. Em te de cenários de progresso: das ruas e estradas invadidas
paralelo, o plano de metas de Juscelino, — cultivando a por frotas de veículos de design moderno, substituindo os
velocidade nas conquistas e a ampla exposição de realizações velhos modelos importados; de uma nova arquitetura,,de
espetaculares em curso — acentuou a comunicação via ima­ ! linhas retas, na esteira da construção de Brasília; da apro­
gem, modalidade para a qual a tevê entrava como veículo ideal. priação do Palácio da Alvorada pela febre de reformas ao
Inicialmente, apenas se prestou às amadoras retrans­ estilo da nova capital, a “Novacap”. Da mesma forma am- ' \ ^
missões ao vivo, sob o comando de garotas-propaganda plamente divulgada, a visita de Eisenhovver, sinalizando
inseguras e titubeantes; a partir dos anos 1960 se coloca­ prestígio internacional e o rompimento do governo com o * *
ria como o veículo mais importante da comunicação con­ FMI, obstáculo para o Programa de Metas. , J
temporânea. Enquanto a cobertura de um fato marcante, i
Mas também a imprensa escrita dava suporte à imagem
em I954-o suicídio de Getúlio - ainda se dera pela ampla de empreendimento vitorioso, através da revista Manchete, u

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de Adolpho Bloch, a serviço da publicidade de JK, em parte na cidade uma pequena editora, a Abril, que se tornou a
criada para desbancar O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand. maior empresa de comunicação gráfica do país, hoje tam­
i
No clima de avanço da propaganda, a publicidade in­ bém de comunicação televisiva.
tensificava conteúdos ufanistas de um país em acelerada Seu primeiro lançamento era um filão de mercado: as
modernização. Nesse contexto, nasceram duas editoras i revistas infantis de quadrinhos. Pato Donald foi a primei­
que, inicialmente, dominariam o mercado de revistas, mas ra delas, em 1950. Em 1951, punha em funcionamento sua
: gráfica própria e, em seguida, uma distribuidora, engrena­
em seguida se expandiríam por novos caminhos da difu­ :
são: a tevê e o jornalismo on-line. gem fundamental num país de dimensões continentais
como o Brasil.
Homens certos, na hora certa, no lugar certo Seguindo as necessidades de diversificação, lançou em 1952
. Capricho, revista feminina voltada para público adolescente e
jovem, que se tornaria campeã de mercado. Não parou mais,
Inicialmente foi Adolpho Bloch (1908-1995), ucraniano^
cobrindo praticamente toda a segmentação da imprensa de
que chegara com a família ao Brasil, em 1921. O pai trazia !
revistas, lançando em 1965 a novidade dos fascículos.
na bagagem a experiência gráfica, e em 1923 montou no
A participação do filho Roberto Civita, que chegara ao
Rio de Janeiro a Josef Bloch & Filhos. Em 1950, Adolpho,
Brasil em 1958, com 22 anos, possibilitou implementar o
o mais novo, investiu em máquinas que durante a sema­
empreendimento familiar. Com vivência do mercado nor­
na imprimiam as revistas infantis de O Globo. Com as te-americano e europeu, enriqueceu os títulos periódicos I
máquinas paradas aos domingos e segundas, começou a da empresa, lançando Veja (1968), modalidade pioneira no
imprimir a Manchete, suporte propagandístico de Jusceli- I país, bem como a qualificada Exame (1967). Apostando
no. Ocupava um nicho de mercado promissor, desdobran­
do-se em leque de publicações periódicas propícias à pu­
nu^ segmento ousado, lançou a revista Playboy (1975). I
O crescimento da editora de Victor Civita também se
blicidade e ao imaginário de novos consumidores. assentou num tripé de forças conjugadas, conformado:
No tripé desse sucesso compareciam o apoio do gover­ pelo momento político-econômico de abertura então vi­
no, através de JK; o surto de investimentos na propaganda í vido; pelo empenho e sensibilidade de seu proprietário,
e na publicidade; a longa experiência gráfica e o empenho cercando-se de profissionais competentes; pelo aporte de
de seu proprietário. capitais significativamente carreados dos Estados Unidos.
O curso da “experiência democrática”, do deslanchar da Esse surto da imprensa periódica no país — noladamente
propaganda, da publicidade e da euforia do desenvolvimen- de revistas — contou com nomes de peso, que deixaram
I!
tismo possibilitaram outra experiência bem-sucedida: a marcas e criaram escola. Mino Carta, Domingos Alzüga-
criação da Editora Abril. \ 3
ray, Thomas Souto Corrêa - da primeira hora da empresa
Em 1949, chegava ao Brasil o ítalo-americano Victor — devem ser consignados na construção de um império do
Civita (1907-1990), posteriormente naturalizado brasilei­ papel que hoje se desdobra na multiplicidade de mídias da A
ro. Inferindo a presença do capital em São Paulo, fincou i comunicação contemporânea.
f.
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• V
★{Bi6üÕT£CA)a
: Apesardo recorrente discurso nacionalista, a interna­ !
i cionalização do capital se impôs. Ensaiava-se a sociedade ,v
'; do espetáculo contemporânea, que teria na imagem sua
força propagadora. Não sem obstáculos. A qualificação
observada nos órgãos da imprensa ao longo daquele perío­
fjS: 5 Imprensa traída
do da “experiência democrática” seria em breve interrom­ \ (1960 a 1987)
pida. Nos trinta anos subseqüentes, a ditadura militar
implantada no país levaria a imprensa a um dos mais se­
veros controles de sua trajetória. A Polícia Federal proíbe a divulgação do discurso
: do líder da Maioria, Senador Filinto Miller,
i
! negando a existência da censura no Brasil.
19 de setembro de 1972.
!

Os anos iniciais da década de 1960 foram marcados por


profunda instabilidade política: eleição, posse e renúncia
de Jânio Quadros em agosto de 1961; crise em torno do
sucessoyuma vez que a Constituição determinava a in­
vestidura do vice-presidente João Goulart (Jango), que,
entretanto, não contava com o apoio de setores da socie­
dade civil e das forças armadas. Jango estava entre os prin­
i
cipais quadros do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já
ocupara o cargo de Ministro do Trabalho durante o segun­
do governo Vargas e de vice-presidente no quadriênio de
Juscelino Kubitschek, sendo considerado herdeiro do var-
í

guismo e simpatizante das esquerdas. Na visão dos grupos >


conservadores, a sua efetivação no poder representava uma
grave ameaça à ordem estabelecida. A imprensa atuou
como importante ator político no desenrolar dos acon­
tecimentos. Jornais como O Estado de S. Paulo, O Glo­
bo e, sobretudo, Tribuna da Imprensa, que ainda perten­
i cia ao então governador da Guanabara, o udenista Carlos
;
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-i IMPRENSA E CIDADE

Lacerda,1 faziam previsões alarmistas e posicionaram-se . como subversão da ordem estabelecida, versão que foi alar­
contra a posse de Jango. deada pela imprensa.
-A temida infiltração comunista nos órgãos do Estado
A imprensa e o governo Goulart parecia materializar-se na proposta presidencial de reali­
zar a reforma agrária, na aproximação e negociação direta
Não eram poucas as vozes contrárias que insistiam no res­ com os sindicatos, no crescimento do número de greves,
peito às normas vigentes. O governador gaúcho Leonel na lei de remessa de lucros, na política externa de não ali­
Brizola organizou a rede da legalidade, mais de uma centena nhamento imediato e irrestrito com as posturas norte-
de emissoras de rádio dos estados do sul do país que defen­ americanas. Atravessava-se um momento de particular
í .
diam a saída constitucional. A articulação em torno de Gou­ intensidade da Guerra Fria, em função da vitória de Fidel
lart cresceu. Os jornais de Assis Chateaubriand, o Correio i
Castro em Cuba, que implicou redobrados esforços dós
da Manhã, a Folha de S. Pardo,2 o Jornal do Brasil e Ultima Estados Unidos para manter sua hegemonia na região.
Hora, postaram-se ao lado dos que defendiam a legalidade. : Nesse contexto de crescente polarização política, aprovou-
Diante da ameaça de aprofundamento da crise, chegou- se a antecipação do plebiscito para janeiro de 1963.
se a uma solução comum: Jango assumiría o cargo com Os proprietários d'0 Estado de S. Pardo não escondiam
poderes limitados graças à emenda constitucional que ins­ sua oposiçãcyao presidente. No dia do referendo popular,
I
tituiu o parlamentarismo, regime a ser referendado por ple­ o editorial “Um esbulho aos direitos da nação” criticava a
: biscito em 1965. João Goulart recebeu a faixa presidencial consulta e insinuava a possibilidade de fraudes, praticadas
i em 7 de setembro de 1961. pelo próprio chefe do governo.
Entretanto, os ânimos não eram os melhores. O fraco O leitor que folheasse o Ultima Hora confrontava-se com
i
desempenho econômico do país aumentava o desempre­ situação muito diversa. Na primeira página anunciava-se em i
i tom triunfal: “Democracia está vitoriosa sem sangue e sem
go, a inflação e o déficit externo. A mobilização dos tra­
.! lágrimas”, “Povo disse 'não'em todo o país!”. O jornal deixa­

balhadores rurais e urbanos atingiu proporções até então
I
: desconhecidas, envolvendo sindicatos, ligas camponesas, va clara sua posição ao afirmar que “a camarilha golpista, a
i
setores progressistas da Igreja Católica, estudantes, inte­ que forjou o Ato Adicional, sofreu uma inapelável derrota”.3
lectuais, sargentos, soldados e marinheiros. Após o plebiscito, as forças em disputa tenderam aos ex­
A intensificação das reivindicações da força de traba­ tremos do âmbito político, criando uma atmosfera alarmis­
lho e de outros estratos da sociedade civil era apreendida ta, de confronto e tensão, que tinha na imprensa um de seus
canais privilegiados não só de difusão, mas também de cria- I
1 Lacerda vendeu o jornal, dois meses depois da renúncia dc Jünio Quadros, para
Francisco do Nascimento, que, por sua vez, revendeu o periódico, em março do
3 OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte dc .João Goulart na imprensa. Dc personalida­
ano seguinte, para Hélio Fernandes.
de a personagem. 2.cd. rcv. e amp. São Paulo: Annablume, 1993. A obra traz
2 A partir de janeiro dc 1960, os jornais do grupo Folha foram reunidos sob o títu­
■!
lo Folha de S.Paulo, publicado em três edições diárias. Em 1967, a edição ves­
encarte com fac-símile de páginas inteiras e matérias publicadas nos periódicos
O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Última Hora, cntre 1961 c 1964, do
I
pertina voltaria a ostentar o título Folha da Tarde. Vale lembrar que, em 1962, o
qual foram reLiradas todas as citações. I
•I jornal passou para as mãos dc Octavio Frias de Oliveira c Carlos Caldeira Filho.
;;
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ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA
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ção e realimentação. Os principais grupos jornalísticos se­ Já o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes, da­
guiam atuando como porta-vozes de partidos e/ou correntes tado de 1963) era integrado por empresários paulistas e ca­
políticas, criticando e combatendo por ideais, valores e apreen­ riocas, inclusive proprietários dos principais jornais e que
sões do mundo em campanhas apaixonadas que se valiam do pretendiam defender a livre iniciativa por todos os meios
poder da escrita. Ao longo da empreitada, os proprietários dos a seu alcance. O instituto reuniu diversos grupos insatis­
veículos de comunicação de massa— grandes jornais, revis­ feitos com Goulart e manteve estreitas relações com a
tas, estações de rádio e da ainda principiante rede de televisão E$cola Superior de Guerra (ESG), que defendia um esta­
- demonstrariam, de forma inequívoca, os limites do libera­ do centralizado, forte e modernizador.5
lismo que professavam e a relativa rapidez com que estavam Sem contar com uma base de sustentação no Congresso
dispostos a abrir mão da democracia, da liberdade de expres­ I Nacional que lhe permitisse levar adiante as reformas de
são e do respeito às instituições e preceitos legais. base (administrativa, bancária, fiscal, universitária, urbana
e, especialmente, a agrária), pressionado pelos setores
mais à esquerda, João Goulart e assessores mais próximos
Comunismo e continuísmo nos periódicos
esperavam vencer a resistência parlamentar a partir do
clamor das ruas, daí a proposta de realizar grandes comí­
A exemplo do que ocorrera pouco antes do golpe militar cios populares, fonte de apoio para a implementação de
que instituiu o Estado Novo, o comunismo, caracteriza­ medidas por decreto. A estratégia contribuía para poten­ 3
do como doutrina exógena e contrária aos princípios cris­ cializar os rumores acerca das veleidades ditatoriais do 3
tãos do povo brasileiro, voltou a ser mobilizado como o presidente, j
grande inimigo da nação. O argumento de que o presidente preparava um golpe
No Congresso Nacional, havia grupos organizados
como a Ação Democrática Parlamentar, organizada ainda
foi mobilizado diversas vezes na imprensa, especialmente l
depois que Goulart solicitou ao congresso a decretação do
durante a presidência de Jânio Quadros e que articulava estado de sítio (outubro de 1963), pedido retirado antes
contra Jango, e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática de ir à votação diante da oposição da esquerda e da direi­
(Ibad, criado em 1959) que apoiava, por intermédio da ta. Sob o argumento de que Jango decretaria estado de sí­
revista Ação Democrática, o anticomunismo. A revista, tio e daria um golpe durante o recesso da Câmara e do
distribuída gratuitamente, moveu intensa campanha para Senado, a Folha de S.Paulo defendeu, em fins de 1963, a
convencer empresas a não anunciar em órgãos pró-Goulart, convocação do Congresso em caráter extraordinário para
tachando-as de financiadoras do comunismo.4 O impacto manter a ordem democrática no país.
!
dessa atuação pode ser avaliado se considerarmos que a Já o diretor d’0 Estado de S. Paulo, Ruy Mesquita, re­
publicidade respondia por quase 80% da receita dos jornais. lembra:
]
F
5 Sobre a importância da tríade Ipes, Ibad, ESG na preparação do golpe, consultar:
DREIEUSS, Rcnc Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e
]
4 GOLDENSTE1N, Giscla Taschen. Do jornalismo político à indústria cultural.
S3o Paulo: Summus, 1987. golpe dc classe. Petrópolis: Vozes, 1982, I

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semanalmente o nosso grupo de civis reunia-se com quarenta, cin­ já o moderado Correio da Manhã alertava, em editorial de
quenta oficiais e discutia o que fazer para resistir ao golpe que achá- 15 de março: “delegação de poderes é mais que emenda da
vamos inevitável ... Nós achavamos que, na hora em que ele declarasse Constituição. E modificação do regime. Significaria a radi­
a reforma institucional, poderiamos resistir e aí fazer uma espécie de calização do país oficializada. Seria nada mais nada me­
guerra de guerrilha...6
nos que, atrás de uma fachada constitucional, a ditadura”.7
No dia 19 de março, como resposta ao comício da Cen­
Os boatos sobre continuísmo e o temor de uma guinada
tral, foi organizada no centro de São Paulo a Marcha da
para a esquerda contribuíam para a sensação de insegurança.
Família com Deus pela Liberdade. A imprensa paulista deu
\
f, ampla cobertura ao evento. O Estado e a Folha dedicaram
Basta! Fora! grande parte de suas primeiras páginas às fotografias da
multidão. Enquanto a Folha enfatizava a adesão espontâ­
t Ao primeiro e único comício, realizado na Central do Bra­ nea, o Última Hora referia-se à dispensa dos trabalhado- -
sil (RJ) a 13 de março de 1964, compareceram cerca de du- res, ao fechamento do comércio pouco antes do evento e
zentas mil pessoas que ouviram discursos inflamados sobre à presença de muitos curiosos, sem deixar de apontar a.ori-
reforma agrária, contenção dos aluguéis, extensão do direito gem social dos participantes.
de voto aos analfabetos e praças, além de testemunharem a Os setores das forças armadas que ainda não haviam
assinatura de dois decretos: o que determinava a encampa­ emprestado seu apoio à deposição de João Goulart o fize­
ção das refinarias particulares e o que previa a desapropria­ ram quando a situação nas forças armadas indicava o
ção de áreas valoradas por investimentos públicos. Tudo risco de/quebra da hierarquia. A crise envolvendo os ma-
transmitido ao vivo pelas emissoras de rádio e televisão. rinheirps, que em março de 1964 exigiram e conseguiram
As repercussões não se fizeram esperar. A imprensa de I a deposição do ministro desta arma, foi considerada pela I
todo o país, exceção feita ao jornal de Samuel Wainer, Folha, em 29 de março de 1964, como tendo "... todas as
í características de uma capitulação. A indisciplina saiu
Ultima Hora, colocou-se contra João Goulart. A Folha de
S.Paulo clamava, em editorial datado de 14 de março, pela vitoriosa, e aos indisciplinados só falta conceder medalha
intervenção das forças armadas: de honra ao mérito”.
E característico dos novos tempos que o general Olím­
O comício de ontem, se não foi um comício de pré-ditadura... pio Mourão Filho, o elaborador do plano que serviu de
Resta saber se as Forças Armadas, peça fundamental para qualquer pretexto para o golpe de 1937, tenha precipitado os acon­
mudança deste tipo, preferirão ficar com o Sr. João Goulart, traindo tecimentos ao assistir pela televisão, no dia 30 de março,
a Constituição e a Pátria, ou permanecer fiéis àquilo que devem de­
o discurso em que Jango se solidarizou com marinheiros
fender, isto é, a Constituição, a Pátria e as instituições. ■H
recém-rebelados e reafirmou o propósito de levar adiante
f
6 MOISÉS, José Álvaro; RENEVJDES, Maria Victória.A imprensa ca história. 7 Apud ANDRADE, Jeferson. Um jornal assassinado. A última batalha do Correio
Lua Nova. Rio dc Janeiro, v. I, n.2, jul./sct. J984. p.28-9. da Manhã. Rio dc Janeiro: Josc Olympio, 1991. p.21. I

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as reformas de base. O episódio mereceu ácido comentá­ — são do povo brasileiro à comunização”. A Tribuna da
rio do Jornal cio Brasil: “não pode mais ter amparo legal Imprensa especificava o tratamento a ser dispensado aos
quem no exercício da Presidência da República, violando senhores da véspera:
o Código Penal Militar, comparece a uma reunião de sar­
... não podemos ser generosos ou sentimentais. Para os civis, cassação
gentos para pronunciar discurso altamente demagógico e dos direitos políticos. Para os militares... o caminho é um só e inevi­
de apoio à divisão das Forças Armadas”.8 Irritado com o que tável: a reforma pura e sim pies. Não falavam tanto em reforma? Pois
vira e ouvira, o general Mourão decidiu sair de Juiz de Fora apliquemos a fórmula a eles.9
e colocar suas tropas em marcha para o Rio de Janeiro.
Dois editoriais contundentes do Correio da Manhã, O substituto legal do presidente foi posto de lado pelo
datados de 31 de março (Basta!) e l2de abril (Fora!) de autodenominado Comando Supremo da Revolução, que as­
1964 sintetizam a postura dominante, principalmente sumiu o controle. Em 14 de abril, o novo presidente, gene­
porque o jornal não estava entre os que conspiravam aber-. _ ral Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe do Estado
tamente contra Jango. Maior do Exército e da conspiração militar, tomou posse.
A deposição, na madrugada de 2 de abril, ocorreu sem Com poderes para cassar mandatos parlamentares, sus­
resistências e contou com significativa articulação civil. pender direitos políticos, demitir funcionários públicos,
Informado da sublevação, Jango deixou o Rio, foi para decretar estado de sítio, propor reformas constitucionais,
Brasília e daí seguiu para Porto Alegre. Apesar da insistên­ o novo regime excluiu os “elementos subversivos”. Mui­
cia de Leonel Brizola, decidiu não resistir. Ainda com o tos foram presos, outros procuraram asilo político, além
presidente em território brasileiro, o cargo foi declarado de montante impreciso que deixou o país. Nas Forças Ar­
vago e ocupado pelo presidente da Câmara dos Deputa­ madas, oficiais foram punidos com passagem obrigatória
para jà reserva e grande parte das diretorias de entidades
dos. Em 4 de abril, Goulart e família solicitaram asilo no
Uruguai. sindicais foi deposta, estimando-se que o expurgo atingiu ■■:

;
a casa das dez mil pessoas.10 :
!:
A imprensa e os militares
O saldo na imprensa
A imprensa saudou a deposição de Goulart e a nova ordem,
como indica a sugestiva manchete do Estado de 2 de abril Publicações identificadas com reivindicações populares,
partidos ou idéias de esquerda foram as primeiras a sentir :•
de 1964: “Vitorioso o movimento democrático”, ou a aná­ í
o peso da nova ordem: órgãos do clandestino Partido Co­
lise do jornal do Brasil que afirmou, no editorial do dia 3:
“A virilidade do movimento cívico que reinstalou o impé­ munista, das Ligas Camponesas, do movimento estudan-
rio da lei e da liberdade no país, que demonstrou a aver- l

I 9 Tribuna da Imprensa, 2 de abril de 1964. http;// www.uol.com.br/rionosjornais.


Acesso cm março/2004.
8 http:// www.uoI.com.br/rionosjornais. Sile O Rio de Janeiro através dos jornais 10 GASPAPRI, Elio. A ditadura envergonhada. SiSo Paulo: Companhia daè Letras,
(1888-1969), elaborado por Jo3o Marcos Weguelin. Acesso cm março/2004. 2002. p.130-1.
1
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til, de setores progressistas da Igreja Católica ou de ten­ guia apoio do Congresso para aprovar reformas, via-se
dência nacionalista foram fechados. Destino idêntico ti­ confrontado com crescentes denúncias de abuso de poder
veram coleções voltadas para a divulgação de temas polí­ e encontrava resistência para o seu plano de crescimento
ticos e revistas de reflexão teórica, que reuniam parte da econômico e controle da inflação à custa de amplo arro-
intelectualidade.11 cho salarial.
Sucursais e a sede do Ultima Hora, que sempre se man­ A Tribuna da Imprensa, por exemplo, posicionou-se de
tivera fiel a Jango, foram invadidas e empasteladas, e forma cada vez mais crítica, o que valeu ao proprietário,
Samuel Wainer teve seus direitos políticos cassados e, Hélio Fernandes, a proibição de assinar artigos no seu jor­
constrangido a sair do país, deixou o periódico em mãos nal e a impugnação da sua candidatura a deputado fede­
de terceiros. O jornal não mais se recuperaria e o título aca­ ral nas eleições de 1966.
bou sendo vendido em 1971.0 Diário Carioca, que tam­ O Correio da Manhã desempenhou papel particular­
bém se colocara ao lado do governo deposto, deixou de mente importante, pois esteve entre os jornais que logo se
circular no final de 1965.12 opuseram ao regime: Em editoriais e noticiário criticou-
Entretanto, a ampla reunião de forças que atuou na se a onda de perseguições e o terrorismo cultural, prati­
queda de João Goulart não tardou a apresentar fissuras. cado em nome do combate à subversão. A campanha contra
No interior das forças militares definiram-se dois grupos: a tortura foi constante. “Da arte de falar mal”, coluna diá­
um associado aos quadros que haviam freqüentado a Es­ ria de Carlos Heitor Cony, tornou-se uma trincheira con­
cola Superior de Guerra, denominada de Sorbonne em tra desmandos e arbitrariedades praticadas pelo regime, e
alusão à renomada universidade francesa, como era o caso o jornalista acabou sendo processado sob alegação de que
dos generais Castelo Branco, Golbery do Couto e Silva e os textos causavam intranqüilidade no exército e poderíam
Ernesto Geisel, e a chamada linha dura, formada por ofi­ inspirar insurreição.13
ciais, na maioria jovens, que defendiam o fechamento do
regime. Tal disputa marcou todo o período da ditadura A"Sorbonne"cede
militar e desempenhou papel fundamental nas mudanças
de rumo do regime. Ao ser empossado na presidência, Castelo Branco prome­
Na área civil, o coro dos admiradores da nova ordem teu entregar ao seu sucessor, legitimamente eleito em elei­
começou a apresentar discordâncias crescentes à medida
que o governo acumulava desgastes políticos, não conse­
ções livres, uma nação coesa. A previsão não se cumpriu 5
e, sob o clamor da linha dura por medidas mais enérgicas,
o que ficou, de fato, como herança, foram os fundamen­
:
11 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Nos tempos da imprensa tos institucionais que colocavam o regime no caminho da ' \
alternativa. 2. cd. rev. e ampl. São Paulo: Edusp, 2003. p.38-42, contém dados !
sobre o assunto. ditadura aberta. :
12 A respeito das causas da crise do Diário, que também teve componentes de or­
dem interna, e dos anos finais de Última Hora, que circulou até 1991, consul­
tar: ABHEU, Alzira de Abreu (et al.). Dicionário histórico-biográftco brasileiro 13 Os artigos foram reunidos no livro O alo e o fato. Rio de Janeiro: Civilização
pós-193>0. 2.cd. rev. e ampl. Editora FGV; CPDOC, 2001. Brasileira, 1979, relançado cm 2004 pela editora Objetiva.

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Os partidos políticos foram extintos e criou-se uma desta vez em prol da melhoria das instalações e da quali­
estrutura bipartidária, que resultou na organização da dade das refeições. Entretanto, o local foi cercado pela
Aliança Nacional Renovadora (Arena) e no Movimento polícia e um estudante, Edson Luís Lima Souto, de de­
Democrático Brasileiro (MDB); as eleições para os cargos zessete anos, caiu morto.
do executivo federal (presidente) e estadual (governador) O fato provocou indignação e reanimou a oposição aos
passaram a ser todas indiretas. procedimentos policiais. O velório e o enterro de Edson -
Castelo Branco não dispôs de espaço político para in­ secundarista pobre, sem ligações com movimentos políti­
dicar seu sucessor e amargou, em outubro de 1966, a “elei­ cos e que estudava no Rio de Janeiro - sensibilizaram e
ção" de Arthur da Costa e Silva, tido como porta-voz de reuniram intelectuais, artistas, camadas médias e popu­
setores mais radicais. Meses antes da entrega do cargo, lares. Estima-se que cinqüenta mil pessoas acompanha­
marcada para 15 de março do ano seguinte, aprovou-se ram o corpo. Na edição de 29 de março, o Correio da Manhã
uma nova Constituição (janeiro de 1967), a Lei de Segu­ manifestou profunda indignação diante do ocorrido:
rança Nacional, que definia os crimes contra a ordem po­
Atirando contra jovens desarmados, atirando a esmo,
lítica e social, e a Lei de Imprensa, que disciplinava a
ensandecida pelo desejo de oferecer à cidade apenas mais um festiva!
divulgação de informações, ambas de março de 1967.
de sangue e morte, a Polícia Militar conseguiu coroar, com esse assas­
sinato coletivo, a sua ação, inspirada na violência e só na violência.
Troca-se: “um homem sem pescoço Barbárie e covardia foram a tônica bestial de sua ação, ontem.15
por outro sem cabeça”14
Ziienir Ventura relata os vários protestos desencadea­
Os dois primeiros anos do governo Costa e Silva foram dos pela morte de Edson, ocorrida às vésperas do quarto
marcados por intensa agitação estudantil. Reclamações ano do golpe militar.16 Após violentos choques que mar­
específicas relativas à melhoria da qualidade do ensino, caram a passagem da data em várias capitais do país, o
;
: aumento de vagas e verbas para cursos superiores, mescla­ confronto seguinte ocorreu por ocasião das missas de sé­
vam-se com o combate ao regime. A seqüência das mani­ timo dia. A Igreja da Candelária (RJ) foi palco de cenas
festações no decorrer do ano de 1968, ápice das mobiliza­ violentas logo após as celebrações. A Folha de S.Paulo es­
ções, torna claro o clima crescente de confronto. tampou, na primeira página do dia 5 de abril, fotografia da
Em 28 de março, no restaurante apelidado Calabouço cena com a seguinte legenda: “Os padres que participaram
- alusão às condições precárias do edifício improvisado no da missa na igreja da Candelária, na Guanabara, avançam
à frente do povo, para evitar o choque com cavalarianos \
qual se alimentavam —, os estudantes organizavam o que
devería ser mais uma das muitas passeatas de protesto, da Polícia Militar, o que conseguiram parcialmente". En­
cimando a foto a manchete: “Sítio: Costa amanhã no Rio
14 A piada, relativa à substituição do ocupante do Palácio do Planalto, foi contada
à Rachel dc Queiroz, pelo primo, o marechal Castello Branco, que linha sérias 15 http://www.uol.com.br/rionosjornais. Acesso em março/200-í.
duvidas a respeito da capacidade de seu sucessor. PILAGALLO, Oscar. Op. 16 VENTURA, Zuenir. i 968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fron­
cit., p. 113. teira, 1988.

104 I 105
ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA
IMPRENSA E CIDADE

para decidir”, sinal claro de que ganhava força a campa­ Em 12 de dezembro de 1968, o Congresso forneceu o
nha em prol do fechamento do regime, que de fato ocor­ ! pretexto que faltava para a linha dura ao não conceder li­
rería meses depois. cença que permitiria a punição de Márcio Moreira Alves,
Os defensores do golpe dentro do golpe ganhavam for­ autor de um discurso considerado ofensivo às forças armadas.
ça, quando o governo perdia a batalha para a opinião pú­ A derrota do governo precipitou a edição, no dia seguinte,
, blica. A invasão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Ato institucional n2 5 (AI-5), de há muito reclamado
marcada por cenas de extrema violência, não pode ser des­ pelos que defendiam um aprofundamento da revolução.
vinculada do apoio que a população emprestou aos estu­
dantes no dia seguinte, durante as manifestações da AI-5: a imprensa novamente amordaçada
chamada “sexta-feira sangrenta” (21/6). Zuenir Ventura as­
0 Congresso foi fechado por tempo indeterminado, cas-
sinala: “durante quase dez horas, o povo lutou contra a po-
sações e perda de direitos políticos voltaram à ordem do
Iícia nas ruas, com paus e pedras, e do alto dos edifícios,
dia, as prisões ficaram abarrotadas e o cerco à cultura e à
jogando garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até
imprensa fechou-se. Sem constrangimentos jurídicos —
uma máquina de escrever”.
vale lembrar que o haheas corpus foi suspenso para crimes
Pouco depois, em 26 de junho, realizava-se no Rio de
políticos —, a ação dos órgãos de repressão exerceu-se com
Janeiro a passeata dos cem mil, que reuniu estudantes,
desenvoltura até então inédita. A tortura, os abusos de toda
clérigos, intelectuais, artistas, saudada pelos jornais como ordem e os assassinatos nas dependências policiais torna­
raro exemplo, pois não se registrou qualquer incidente mais ram-se moeda corrente.
1
sério, em grande parte graças à não-intervenção das for­ / Mal o ato foi divulgado, os principais órgãos da impren­
ças policiais. O Ministro da Justiça não se deu por venci­ sa escrita e radiotelevisiva foram imediatamente coloca­
do e, embora reconhecendo o caráter pacífico e ordeiro do dos sob censura. A sede do Correio da Manhã foi invadida
evento, declarou à imprensa que houve “distribuição de por agentes policiais, que prenderam o redator-chefe. Parte
panfletos altamente subversivos”. da edição do Jornal da Tarde foi apreendida, enquanto
A página inicial da Folha do dia 27 testemunha a cisão
1 do país: na primeira metade da parte superior, uma fotografia
O Estado de S. Paulo foj proibido de circular, em função
de um editorial de Júlio de Mesquita Filho, que criticava
da passeata carioca, na segunda o caixão de um soldado duramente o general Costa e Silva.17
morto em São Paulo por um atentado. As esquerdas se di­ No Jornal do Brasily por sua vez, Alberto Dines* editor-
vidiam entre os que viam na luta armada a única saída e chefe, encontrou uma forma de tornar claro ao leitor que
.•
os que investiam na associação de uma frente ampla e na o jornal fora censurado. Na primeira página do dia 14 de \
:
organização da sociedade civil; a direita apresentava-se mais
17 0 editorial foi reproduzido cm PONTES, José Alfredo Vidigal; CARNEIRO, Ma- \
coesa e também agia, como atestam a invasão do teatro Ruth ! ria Lticía. 1968, do sonho ao pesadelo. São Paulo: O Estado de S. Pauto, 199,8.'/
Escobar (SP), em julho de 1968, pelo Comando de Caça p.60-1. O Jornal da Tarde foi lançado em janeiro de 1966, lendo à frente do pro­
jeto o jornalista Mino Carta. Tratava-se de um jornal graficamente inovador, com
aos Comunistas e o espancamento dos atores de Roda Viva. muitas reportagens e textos mais leves. A linha editorial era a mesma d’0 Estado.

1
106
107
IMPRENSA E CIDADE
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE tUCA

dezembro, do lado esquerdo do título, haviauma peculiar prietário, Hélio Fernandes, foi constrangido a conviver
previsão meteorológica - “Tempo negro. Temperatura sufo­ com a apreensão de edições e perda da liberdade, por mais
cante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido.por de uma vez. Tampouco faltaram interferências governa­
I mentais na substituição de editores, como ocorreu, por
fortes ventos” - enquanto no lado oposto anunciava-se:
“Ontem foi o dia dos cegos”. A atitude enfureceu os mili­ exemplo, com Mino Carta, afastado de Veja (1976) e Cláu-
tares e resultou na prisão de um dos diretores do jornal. , dio Abramo, que saiu da Folha de S.Paulo (1977).
Com o correr dos meses, o controle das publicações foi A censura prévia foi instituída nos órgãos que ultrapas­
exercido por meio de telefonemas e/ou bilhetes não assi­ saram o que se considerava tolerável, tal como ocorreu na
nados, que prescreviam o que poderia ou não ser publica­ Tribuna da Imprensa (1968 a 1978), revista Veja (1974 a
do, instaurando-se a autocensura. Recorria-se a fórmulas 1976), que se tornou o semanário de maior circulação
genéricas, como “de ordem superior”, “por determinação nacional, e nos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da
da Censura Federal”, sem que uma autoridade específica Tarde (1972 a 1975). As matérias vetadas tinham que ser
pudesse ser responsabilizada pelo ato, que tampouco era substituídas, não sendo permitida a presença de espaços
assumido publicamente. Esperava-se que o público leitor em branco. Nos periódicos da família Mesquita adotou-
não tomasse conhecimento dos limites e impedimentos a que se a estratégia de preencher o que havia sido cortado com
estavam constrangidos os meios de comunicação de mas­ trechos de poemas, especialmente Os Lusíadas, de Luís de
sa, com vistas a ocultar a dimensão autoritária do regime. Camões — caso do Estadão —, e com receitas culinárias, no
Jornal da Tarde. A estratégia era surpreender o leitor com :
Apesar de ter havido tentativas de homogeneizar as
interdições por meio de ordens gerais, o que predominou textos qye aparentemente estavam fora de lugar, levando-
foi a decisão momentânea, tomada no calor dos aconteci­ o a compreender a interferência sofrida pelas publicações.
i
mentos e ao sabor dos interesses e do jogo político. Em Surgiram e ganharam força as editorias de economia: se a
;
pouco mais de um ano — de setembro de 1972 a dezembro política era um campo minado, as realizações do regime
do ano seguinte —o Jornal do Brasil recebeu 133 proibições, podiam ser cantadas em verso e prosa.
documentadas por Alberto Dines, algumas hilariantes, A truculência não ficou restrita aos jornais. Zuenir
como aquela acima mencionada.18 Ventura informa que, durante os dez anos de vigência do ;
Alguns jornais da chamada grande imprensa foram par­ AI-5, cerca de quinhentos filmes, 450 peças de teatro,
ticularmente visados, caso do Correio da Manhã e Última duzentos livros, dezenas de programas de rádio, cem re­
Hora - que acabaram saindo de circulação, em parte pe­ vistas, mais de quinhentas letras de música e uma dúzia v
las retaliações econômicas e perseguições políticas de que de capítulos e sinopses de telenovelas foram censurados.
I
foram vítimas — e da Tribuna da Imprensa, cujo então pro-
A imprensa e o flerte com o poder

18 DINES, Alberto. O papel do jornal. Uma rcleitura. 4.cd. amp. e atual. S3o Pau­ A diminuição do número de grandes jornais em circula­
lo: Summus, 1986. p. 135-8, reproduz as regras gerais da censura enviadas aos |
jornais cariocas em 1972. ção durante o período militar foi alarmante. No Rio de

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\
f
I
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IMPRENSA E CIDADE

Janeiro, de 22 matutinos e vespertinos nos anos 1950 pas* setor de comunicações e o poder, lembrando que a dita­
I sou-se a 16 na década seguinte e a apenas sete no final de dura afagava com uma mão e batia com a outra: censura­
1970. Isto por um conjunto variado de causas como o au­ va o conteúdo e propiciava recursos, grande quantidade de
mento vertiginoso do preço do papel, problemas adminis­ publicidade, isenções fiscais, financiamentos e favores.21
trativos e de má gestão financeira, caso típico da cadeia
de Assis Chateaubriand, que não resistiu ao desapareci­
A imprensa alternativa
i mento de seu fundador. Tais circunstâncias desfavoráveis
:
foram, em vários casos, ainda mais agravadas pelas pres­
sões e constrangimentos de ordem política.19 Tais facilidades não estavam disponíveis para a imprensa
Se os proprietários dos veículos decomunicação opu­ alternativa, que floresceu durante a ditadura militar. Ber­
nham-se à censura, não se pode afirmar que se posiciona­ nardo Kucinski informa que, entre 1964 e 1980, foram
ram de forma igualmente decidida contra os preceitos do criados 150 periódicos, com duração, alcance e tiragem
regime em si. Vários estudos têm insistido “na complacên­ muito variáveis. Compartilhavam, porém, a oposição in­
cia recíproca entre o regime e as empresas jornalísticas’', transigente ao regime militar e atuaram como espaço de
conivência que pode ser atestada pelo fato de o governo reorganização política e ideológica das forças de esquer­
não haver criado seus próprios veículos de comunicação. da, num momento em que poucos ousavam desafiar a or­
A grande maioria da imprensa submeteu-se à autocensu- dem estabelecida.22
ra e foi mesmo além, uma vez que “freqüentemente os jor­ A perseguição a essa imprensa, que não se pautava pela
nais resvalavam para o colaboracionismo veiculando notícias busca d^D lucro, foi feroz: prisão de editores, bombas nas
plantadas pela polícia sobre fugas ou atropelamentos de redações, apreensões de edições inteiras e censura e cor­
tes que atingiam grande parte do material produzido. En­
presos políticos, indiscriminadamente chamados de terro­
ristas”. Quando o país foi acusado de violação de direitos tretanto, apesar de toda a adversidade, os alternativos
humanos, O Globo apressou-se em defender os poderes renovaram a diagramação, a linguagem jornalística e in­
troduziram novos temas, ligados ao cotidiano e às mudan­
constituídos.20
ças comportamentais, como foi o caso do semanário O
Note-se que foi exatamente durante o período militar
Pasquim (RJ, 1969), que chegou a vender mais de cem mil
que os grandes jornais modernizaram-se. Importaram no­
exemplares. Opinião (RJ, 1972), Movimento (SP, 1975), ,
vas máquinas e equipamentos, construíram sedes, em gran­
Coojornal (Porto Alegre, 1976), Versus (SP, 1976), Em
de parte com recursos oficiais. O jornalista Evandro Carlos
Tempo (SP, 1977) estão entre os principais títulos.
de Andrade expressou a ambigüidade da relação entre o

, 21 Ver depoimento cm ABREU, Alzira; LATTMAN-VVELTMAN; ROCHA, Dora.


Eles mudaram a imprensa: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: EGV,
19 ABREU, Alzira Alves. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janei­ 2003, p.36. Para os favores e incentivos, ver: GASPARI, Elio. A ditadura escan­
ro: Jorge Zahar, 2002. p. J 8. carada. Süo Paulo, Companhia das Letras, 2002. p.2 15-7.
20 KUCINSKI, Bernardo. Op. cit., p.78-9, grifos no original. 22 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Op. cit.

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:
:
J
ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

[
:
i Imprensa em tempos de abertura se de liberdades plenas. Em 1975, a censura prévia deixou
as redações do Jornal da Tarde e d’0 Estado de S. Paulo.
Em fins de agosto de 1969, vítima de trombose cèrebral, Nesse mesmo ano a Folha de S.Paulot com as finanças
Costa e Silva deixou o poder. Uma junta militar escolheu saneadas, deu início a ousado projeto de reforma editorial
o novo presidente, Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), que contou, no início, com a presença de Cláudio Abra-
i
em cujo quadriênio as forças repressivas atuaram com gran­ mo. O jornal, que segundo Alberto Dines “não possuía
de desenvoltura. Foram os anos de chumbo. página de opinião, nem muito menos opinião”,23 abando­
; Os presidentes generais que se seguiram, Ernesto Gei­ nou a postura acrítica e apoiou a abertura idealizada pelo
sel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985), engaja­ general Geisel. A força dos opositores da distensão polí­
ram-se no processo de abertura política, que visava, de tica ficou evidente nos assassinatos do jornalista Wladi-
forma “lenta, gradual e segura”, de acordo com a máxima mir Herzog (outubro de 1975), que se apresentou para
i
cunhada por Geisel e seu chefe da Casa Civil, General prestar depoimentos no Destacamento de Operações de In­
; Golbery do Couto e Silva, recolocar o país no caminho formações - Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-
da democracia. Codi), e, meses depois, do operário Manuel Fiel Filho
O projeto, contudo, estava longe de ser compartilhado (janeiro de 1976), que supostamente teriam se enforcado.
í pelo conjunto das Forças Armadas e pelo aparelho repres­ O estudo de Lilian Perosa sobre o caso Herzog constatou
!
sivo. Nesse contexto, a imprensa atuou como a ligação en­ posições bastante diversas: condenação incisiva pelos jor­
tre o Estado e a sociedade civil. Abrandou-se o controle nais dos Mesquitas, oscilação e cautela no caso da Folha,
sobre os meios de comunicação, embora não se dispuses- e conivência absoluta no caso da Folha da Tarde.24
f
A demissão do comandante do II Exército, Ednardo
MOVIMENTO rrHtsísS.CJL- Dnvila Mello, representante da linha dura, demonstrou
3 a disposição governamental de levar adiante seu projeto.
Asgr&ades Nada mais distante, porém, do que a imagem de uma linha
oprtsu hrMüeiru
.t-.
contínua e certeira em direção à democracia. O significado
(BmtMru?)
■ 1 da tríade “abertura lenta, gradual e segura” foi sendo apreen­
dido na medida em que o governo evidenciou que não pre­
tendia abrir mão do controle do processo. O pacote de abril
(1977), que fechou o Congresso, introduziu reformas nò
! judiciário, aumentou o mandato presidencial de cinco para
i UEcSt*
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V CL*
í; seis anos, criou a figura dos senadores indicados.
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I 23 DINES, Alberto. O papel do jornal: uma releitura. 4.ed. ampl. e atual. São Paulo:
Summus, 1986, p. 109.
24 PEROSA, Lilian M. F. de Lima. Cidadania proibida. O caso Herzog através da
í FIGURA 5. MOVIMENTO. S.D. FICURA 6. OPINIÃO. S.D. imprensa. São Paulo: Imprensa Oficial: Sindicato dos Jornalistas ,2001.
;

112 113
r

ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

Geisel fez seu sucessor, João Batista Figueiredo, e en­ "Diretas Já"
tregou o país sem o AI-5, revogado no início de 1979. Os
anos Figueiredo foram marcados por crescente inflação e O sucessor de Figueiredo deveria ser escolhido pelo Con-
baixo desempenho econômico. O descontentamento com gresso Nacional. Foi nesse contexto que se desenrolou a
a situação foi o motor das greves dos metalúrgicos paulis­ campanha pelas Diretas Já , em prol da aprovação de
tas (1978-1979), que desafiavam proibições legais. emenda que previa eleições diretas.
Em maio de 1979, os jornalistas de São Paulo também A princípio tímida, a campanha angariou crescente
paralisaram as redações em prol de 25% de aumento sala­ apoio popular no início de 1984 e contou, desde a primei­
rial. A greve, sem sucesso, teve conseqüências de longo ra hora, com o apoio da Folha de S.Paulo. Maio registrou
alcance, uma vez que sob a influência dela houve a cria­ as maiores mobilizações. Um comício no Rio de Janeiro
ção da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que congre­ I reuniu mais de um milhão de pessoas. Na véspera da vo­
gava proprietários de empresas jornalísticas.25 tação da emenda, a população manifestou-se, de forma
A campanha pela anistia também ganhou as ruas, como . sincronizada, às 20 horas, buzinando, batendo panelas e
ocorreu na praça da Sé, em São Paulo, quando cerca de fazendo piscaras luzes das residências. Faltaram 22 votos
cinco mil pessoas compareceram a um ato público em favor para que a constituição fosse alterada. A capa do Jornal da
da medida, efetivada em agosto de 1979. Nesse mesmo ano, Tarde, inteiramente em negro, simbolizou o luto nacional.
os meios políticos agitaram-se com o fim do bipartidaris- O ciclo militar encerrou-se com a posse, em 1985, de
mo, que originou uma série de agremiações, entre elas o José Sarney, vice-presidente na chapa liderada por Tancredo
Neves, <^ue, por motivo de doença, não assumiu o cargo.
Partido dos Trabalhadores (1980).
A extrema direita, inconformada com os rumos do país, Para a imprensa abria-se um novo período cujo desafio não
tentou obstruir o processo em curso com atentados. O mais estava em superar restrições e constrangimentos, mas em
ousado deveria ter ocorrido em 1981. Seriam colocadas assumir, de fato, o papel que sempre se atribuira: o de
bombas no Rio Centro, onde cerca de vinte mil pessoas ! quarto poder, atento defensor dos interesses coletivos.
assistiam a um show musical. A tragédia não se concreti­ Resta saber se tem sido capaz de desempenhar a tarefa.
zou, pois um dos artefatos explodiu no carro dos militares
responsáveis pela operação. O episódio encerrou as pos­
sibilidades políticas dos radicais. Entretanto, permanecia
aberta a questão de.como se realizaria a transmissão do
poder aos civis.

25 Sobre a Importância da associação, seu papel no processo dc homogeneização


dos jornais e na política implantada nas redações, veras observações de Alberto
Dínes em ABREU, Alzira; LAITMAN-WELTMAN; ROCHA, Dora. Op. cil.,
p.129-32.

114 11S

i
IMPRENSA E CIDADE

I tores dos temas em pauta: aquele do padrão de excelência


► da transmissão televisiva, um produto de exportação; aque­
le da qualidade arquitetônica e urbanística que tem na
6 Imprensa globalizada cidade de Brasília a síntese dessa representação , cuja ar-
(1988 a 2004) quitetura de Oscar Niemeyer também é de apropriação
internacional.
A “modernidade” retratada no país que se colocava
É necessário criar um “quinto poder"... como a 8a economia mundial convivia com altos índices
Um ",quinto poder" cuja função será denunciar os de pobreza, violência e atraso, fruto de heranças secula­
superpoderes da mídia, dos grandes grupos midiáticos. res de má administração. A péssima distribuição de ren-
Ignácio Ramonet da, que se espelhava sobretudo no quadro das grandes
cidades, traduzia o descompasso entre as várias regiões do
país e refletia as imensas desigualdades das classes sociais.
Sobre a população espoliada pairava o descontrole da in­
Os trabalhos da Constituinte de 1988, presididos pelo
flação, além dós altos custos dos empréstimos internacio­
deputado Ulysses Guimarães e transmitidos do Congres­
nais, quando/o endividamento externo passou a ser uma
so Nacional, de Brasília, foram divulgados por ampla co­
pressão constante. “Belíndia” foi a expressão cunhada para
bertura da imprensa escrita, radiofônica e televisiva, que
definir a contradição de uma minoria da população com
documentou momento histórico de enorme significado no
( índices de qualidade de vida similaràquele da Bélgica, para
âmbito da conquista das liberdades civis.
uma quase-totalidade convivendo com índices de pobre­
Na perspectiva histórica das transformações da impren-
za comparáveis aos da índia.
sa e das cidades no quadro nacional, aquele mesmo mo-
: i A Constituição de 1988, concebida num plenário en­
mento da Constituinte de 1988 constitui-se em marco
? riquecido por novas representações sociais - em que um
balizador da história das comunicações e do avanço dos
jovem Partido dos Trabalhadores já tomava assento -,
centros urbanos no Brasil. Basta retroceder à cobertura da
apontava para a renovação da vida nacional. Era vedada
li
imprensa e ao cenário da última Constituinte brasileira, toda e qualquer censura, estabelecendo que: “Nenhuma
! no ano de 1946, no Rio de Janeiro, quando ainda não sè lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à
conhecia a televisão. A então capital do país estava ligada plena liberdade de informação jornalística em qualquer
a um tempo passado, no qual, por vezes, sobrepunha-se a veículo de comunicação social”.
!i
imagem da Corte e a própria lembrança do Império. 1
Quanto ao direito de propriedade de empresas de co­
Em 1988, o quadro mudou radicalmente. Quase qua­ i municação, prescrevia-se: “A propriedade de empresa jor­
: renta anos mediavam as duas Cartas Magnas, distância nalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é
Ií? pontuada por conquistas que referendam o Brasil em se- privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de

117
IMPRENSA E CIDADE
ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE IUCA

dez anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua mento aos finais de semana, permitindo a efetiva leitura dos
administração e orientação intelectual .1 acontecimentos, fizeram desses veículos instrumentos
Nesse contexto renovado de exercício de liberdade, im­ poderosos de informação e de propagação da notícia.
prensa e sociedade experimentariam outras relações e inter- E foi através desse tratamento renovado que em 23 de
viriam decisivamente nos destinos do país. A meteórica março de 1988 - ano dos trabalhos da Constituinte - a
ascensão e queda, por meio de inipeachment, de Fernando revista Veja trouxe como matéria de capa, em memorável
Collor de Melo, primeiro Presidente da República eleito pelo foto de Ubirajara Dettmar, a figura jovem e bem posta do
voto popular após trinta anos de ditadura, foi exemplo inques­ então governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo.
tionável da força dessa nova mídia e dessa nova sociedade. Conferindo-lhe aura épica, trazia ao fundo o detalhe he­

Do caçador de marajás ao motorista Eriberto,


róico da tela Avançar, do artista alagoano Rosalvo Ribei­
ro, pintada em Paris, em 1894, com título criado por Tales í
um brasileiro de Alvarenga: O Caçador de Marajás.3
Estava lançada na mídia - e dela fazendo uso em to­
Os jornais da grande imprensa continuavam os mesmos, dos seus segmentos - a futura candidatura de Collor de
no eixo Rio-São Paulo, com a novidade da Gazeta Mercan­ Melo à Presidência da República.4 O candidato era her­
til, que em São Paulo, sob direção de Roberto Muller, deiro de históricas lideranças políticas e de família proprie­
conhecera transformação de monta, leitura obrigatória tária da Gazeta de Alagoas, do complexo das Organizações
para o complexo cotidiano econômico do país. Emergia Arnon de Mello. Já em seu estado, portanto, contava com
também, uma Folha de S.Paulo totalmente remodelada, o respaldo da máquina.
dona de jornalismo ágil e moderno, assentada em sólido Em 14 de dezembro de 1989, o debate final da campanha
império construído por Otávio Frias e que tinha no jovem presidencial - nos estúdios da Rede Globo -, tendo como
Otávio Frias Filho a concretização de um novo modelo de opositor o ex-metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da
fazer jornalismo. Silva, sagrou-lhe a vitória nas urnas. Para isso concorrera o
Ganharam força como formadoras de opinião as revis­ recurso dos debates televisionados, uma cópia do modelo
tas semanais que, desde a pioneira Veja, da Editora Abril, norte-americano, com altos índices de audiência medidos
lançada em 1968, cobriam com mais profundidade algu- , pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Esta­
mas das manchetes estampadas nos jornais diários. Em tística), empresa privada de pesquisa de opinião pública.
1976, surgira a concorrente IstoÉ, da Editora Três.2 Pro­
fissionais competentes, estratégias de editoração e o Iança- 3 CONH, Mário Scrgio. Noticias do Planalto. A Imprensa e Fernando Collor.
SiSo Paulo: Companhia das Letras, 1999. Esta obra, por sua abrangência, é re­
ferência desta abordagem.
1 http://www.igutenberg.org/constiti.html
2 Veja, capitaneada por Mino Carla, foi concebida como revista semanal de infor­ 4 Como governador cm Alagoas, em 1987, Collor de Melo foi lema cm reporta­
mação. Rompeu o padrão dominante, no qual pontificavam as publicações ilus­ gens de impacto: 2 de abril, cm Globo Bepórter sobre os marajás; 5 de abril, re­
tradas, de caráter geral, como O Cruzeiro, baios c Fotos e Manchete. O exemplo portagem do Jornal do Brasil sobre o “Furacão Collor"; 22 de abril, entrevista de
multiplicou-se, com o lançamento, nas décadas seguintes, de IstoÉ, Afinal, Collor nas páginas amarelas de Veja;outubro, entrevista a Playboy; 22 de de zem-
bro, entrevista Senhor.
Época e Carla Capital, entre outras.

8:

S
118 119
ANA IUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE IUCA IMPRENSA E CIOADE

Em 15 de março de 1990, Collor de Melo subia a ram- - semanais numa seqüência de reportagens investigativas
pa do Palácio Alvorada como novo presidente da Repúbli- \ que escancaram os bastidores do poder. Duas, especial­
ca. No dia seguinte, em ampla divulgação televisiva, era mente, sinalizaram o que estava por vir:
anunciado o Plano Collor, bloqueando por dezoito meses
as contas correntes, poupança e aplicações financeiras '• Em 29 de junho de 1991, a capa da Veja, igualmente
superiores a 1.250 dólares. Também congelados os aluguéis \ épica, trazia Collor e sua equipe como personagens
e as mensalidades escolares, instituindo-se o tabelamento de célebre quadro da Proclamação da República, de
de preços. autor anônimo, sob o título: A República de Alagoas.
Mas, após dois anos e meio de exercício na presidên­ No subtítulo: Como a turma de Collor está fazendo
!
cia, em 2 de outubro de 1992, o mesmo Collor de Melo, e acontecendo.
deixava o poder, em razão de um processo de impeachment, • Em 23 de maio de 1992, a mesma revista trazia na
no qual a imprensa e a sociedade tiveram participação capa o irmão do presidente, Pedro Collor, sob o tí­
decisiva. As capas das revistas semanais contam parte dessa tulo: Pedro Collor conta tudo, onde denunciava que
história. Paulo César Farias era testa-de-ferro de Collor.

O discurso das capas A veiculação desta matéria explosiva fora de alta res­
ponsabilidade, considerando-se que sua publicação ocor-
Empossado com amplo apoio da cadeia de comunicação
mais poderosa do país — a Rede Globo —, a utilização da mí­
dia foi redobrada na exposição da imagem de um presiden­
te saudável e dinâmico, que andava dejetski, festejado tam­
bém pelos jornais internacionais. Apesar do inicial apoio,
as relações de Collor com a imprensa tornaram-se tensas.
Muito grave fora a invasão do jornal Folha de S.Paulo
por agentes da Receita e da Polícia Federal, em 24 de março,
sob pretexto de averiguar “se a empresa estava cobrando
em cruzados novos ou cruzeiros as faturas publicitárias
referentes à primeira quinzena de março.”5 Em 20 de ou­
tubro de 1990, a revista IstoÉ trazia matéria sobre Paulo
César Farias (PC Farias), tesoureiro da campanha de Co­
llor, sob o título: Ele complica a vida do governo. A partir
de então, o governo Collor voltaria às capas das revistas
FIGURA 7. REVISTA VEJA: CAPA DE 29 DE JUNHO DE 1991

5 CONTI, Mário Sérgio. Op. cit., p.305. (A REPÚBLICA DE ALAGOAS).

120 121
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

Em paralelo, assistiu-se a toda uma movimentação


orquestrada da mídia, que mobilizara a população. Em 14
de julho de 1992, a Rede Globo iniciava a série Anos Re­
beldes, cuja temática enfocava a contestação aos Anos de
Chumbo. Em 16 de agosto, à conclamação de Collor para
o povo ir às ruas de verde e amarelo em sinal de apoio, a
população respondeu saindo em passeata com roupas, tar­
jas e bandeiras negras. Finalmente, com base no relatório
da CPI de 26 de agosto, uma comissão de dezoito juristas
“redigiu o pedido de afastamento de Fernando Collor do
cargo e de início do processo contra ele por crime de res- -
ponsabilidade”.8 Em cena memorável, o jornalista Barbosa
Lima Sobrinho, defensor das lutas da imprensa e presiden­
FIGURA 8. REVISTA VEJA: CAPA DE 23 DE MAIO DE 1992 te da Associação Brasileira da Imprensa (ABI), foi o pri­
(PEDRO COLLOR CONTA TUDO).
meiro a assinar o pedido, por ele mesmo entregue ao
presidente da Câmara em Ia de setembro. Barbosa Lima
reu sem uma investigação rigorosa da veracidade das afir­ Sobrinho tinha então 95 anos.
mações de Pedro Collor.6 Em 2 de outubro, a citação de afastamento era entregue ao
Estava deflagrado um processo de apuração dos fatos presidente, que deixou o Palácio do Planalto. Em 29 de de­
pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito zembro, Çernando Collor de Melo renunciava à presidência.
(CPI), estabelecida já em 26 de maio de 1992. Em 27 de Da construção do mito do jovem caçador de marajás à
junho de 1992, nova capa de IstoÉ trazia o motorista Eri­ sua destituição, deflagrada com base em um jornalismo
berto França,7 confirmando que PC Farias era quem pa­ investigativo, sucederam-se fatos e lances surpreendentes.
gava as despesas do presidente e sua família. O depoimento A denúncia do próprio irmão, Pedro Collor, e o depoimento
do motorista à CPI, em Ia de julho, foi transmitido ao vivo comovedor do motorista Eriberto foram apenas dois de­
pela Rede Bandeirantes, quando se deu voz a um homem les. À imprensa coube uma das coberturas mais audacio­
comum, que trouxe a público as irregularidades do governo. sas de sua trajetória. Pela ampla mobilização de seus meios
de difusão, conduziu processo inédito na história do país,
pondo em cena personagens, passagens e fatos, como se
6 Ver depoimento de Alberto Dines a Alzira Alves Abreu em ABREU, Alzira Alves
de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; ROCHA, Dora (Orgs.). Eles mudaram fora uma catarse dos trinta anos de repressão.
a imprensa: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Na perspectiva da história da imprensa, o episódio ga­
p. 1 48.
7 Eriberto França era lotado na Radiobrás e servia como motorista de Ana Acioli, nhou estatura simbólica, marco da dimensão da nova mí-
secretária da Presidência. Entre outras funções, pegava cheques e dinheiro em
espécie na Brasil -Jet e os entregava ao mordomo da Casa de Dinda (residência
do presidente), Berto Mendes, que fazia vários pagamentos. 8 CONTI, Mário Sérgio. Op. cit., p.654.

122 123

I
w

ANA IUIZA MARTINS E TANIA RECINA OE LUCA IMPRENSA E CIDADE

dia do país. Cabe lembrar que todo esse processo se dera materiais para essa adequação nos órgãos da imprensa jus­
no quadro de reconquista da abertura política e do exercí­ tificaram-se de imediato pelo subsequente barateamento
cio democrático, ratificado por uma Constituição. Naque­ dos custos operacionais dos respectivos veículos.
le contexto inaugural, a imprensa pôde se colocar a serviço Como resultado inicial dessa nova empresa de comuni­
dos interesses da nação, sob o crivo dela, não obstante sua cação informatizada — além da velocidade que imprimiu qua­
indefectível dependência dos interesses do mercado, do se uma outra noção de tempo no cotidiano —, passou-se a
marketing publicitário, das notícias que rendiam e vendiam conviver com o visual mais ordenado e agradável do jornal,
no competitivo mercado do impresso jornalístico. O episó­ textos curtos, linguagem acessível, de forte apelo popular,
dio de ascensão e queda de Collor de Melo foi uma delas. manchetes estratégicas para atrair o consumidor e a ampla
i
i
segmentação e difusão de publicações, temas e notícias.
No ensaio da informática e do jornalismo eletrônico A esse tratamento formal qualificado e ainda mais ágil
das coberturas, correspondeu um novo conteúdo da infor­
A imprensa que atuava pós-ditadura também vinha alta­ mação, presidido pela força do marketing e pela homoge­
mente qualificada pelos recursos de suas instalações, que neização das notícias. —
reuniam infra-estrutura de ponta e quadros de extrema No Brasil, as conquistas de ponta do setor foram rapi­
competência. A profissionalização do setor, que contou damente incorporadas, dado que a infra-estrutura via
com novas gerações saídas dos cursos superiores de Co­ • satélite já havia sido implantada e dispúnhamos de con­
municação, otimizou um trabalho que se desenvolvia-em glomerados jornalísticos aparelhados para sua apropriação.
meio a grande complexidade, a serviço da indústria cultu­ São exemplos contundentes a Rede Globo - no âmbito da
ral e da comunicação de massa. veiculaçao televisiva e da impressa; o pioneirismo do Jor­
Juntamente a toda essa transformação de ordem qua­ nal do Brasil na instalação da versão eletrônica da impren­
litativa, uma outra, de ordem técnica e até revolucionária sa, em 1995; a iniciativa do Grupo Folhas, na implantação
permitia, através do computador, outra agilidade nas re­ do sistema UOL, da internet.
dações e nas pesquisas, bem como o aperfeiçoamento dos Em outra escala, rapidamente as demais empresas de
instrumentos de investigação e rastreamento da notícia. comunicação adaptaram-se às nòvas tecnologias e formas
Ingressava-se no mundo da informática e na era do jorna­ de produção da notícia, requisito obrigatório na socieda­
lismo eletrônico. de globalizada e informatizada do mundo contemporâneo. >
De fato, a partir dos anos de 1980, o desenvolvimento Mais ainda quando da introdução da internet, nos anos
das telecomunicações e a difusão da informática altera­ 1990, quando se passou a ter uma nova sociedade global,
ram substancialmente a forma de produção, divulgação e mediada pelo computador. Nesse contexto, registram-se
consumo da notícia. Tinha início a grande transformação duas modalidades de jornalismo, que tipificam, em gran­
de ordem tecnológica e a mudança das práticas de fazer o de medida, a atual indústria de notícias: o “jornalismo ci­
jornal, com reflexos na forma, edição e recepção das mí­ dadão”, voltado para a prestação de serviços de utilidade
dias escrita, falada e televisiva. Os altos investimentos social e o “jornalismo investigativo”, que teve no caso

124 125
ANA LUIZA MARTINS E TANIA REGINA DE LUCA

Watergate (1942-1974) uma referência para a apuração da


notícia. Hoje, contudo, ambos padecem da falta de enca­
minhamentos isentos. Tanto o “jornalismo cidadão'’ vale-
se de escândalos propícios à venda da notícia como o
“jornalismo investigativo” utiliza-se do “denuncismo”, como Conclusão
forma de elevar níveis de consumo e audiência.9
Importa considerar que no novo quadro da comunica­
ção eletrônica do mundo globalizado - que tornou a im­
prensa ainda mais competitiva - acentuaram-se as relações Fortalecida, a indústria da mídia passou a figurar qua­
de mercado entre empresa e consumidor, quando se im­ se como um novo poder quando, mais do que nunca, sua
pôs a “ditadura” do marketing. Os resultados das pesqui­ fiscalização se mostra imperiosa, sobretudo num país com
sas sobre as demandas do público passaram a determinar expressiva população de baixa escolaridade e, até bem pou­
os rumos das coberturas e a atenção da mídia, também a co, sem canais de exercício de cidadania.
serviço de uma indústria cultural poderosa, que desde os Ainda em 1975, com apoio de Otávio Frias da Folha de
anos 1970 alimenta os meios de comunicação. S.Paulo, o jornalista Alberto Dines criara a coluna “Jornal
Estabeleceu-se, pois, o dilema entre a veiculação de dos Jornais” naquele órgão, voltada para a crítica da mí­
matérias e programas de níveis de tratamento elevados, de dia. Era uma inovação audaciosa em momento ainda de-
interesse de poucos, em favor da demanda das camadas licadcy pois a imprensa vivia sob a censura da ditadura
mais pobres da população, que efetivamente compõem o militar. Rememora o jornalista que “Ninguém ousava di­
país. Para o primeiro segmento surgiram os canais de te­ zer que a imprensa precisava ser controlada, porque sem­
levisão paga que, ao lado das já existentes emissoras radio­ pre se pensava neste controle da imprensa como censura”.1
fônicas e dos periódicos alternativos, relativizaram a Mas foi também o momento em que a Folha iniciou sua
massificação da notícia e dos programas, de acordo com grande virada como jornal moderno, desviando o foco de aten­
interesses do público economicamente rentável. Com re­ ção jornalística do Rio de Janeiro para a capital paulista.2
lação ao segundo segmento, a grade de programação da Em 1989, a Folha de S.Paulo lançaria o omhudsman, jor­
tevê, as transmissões radiofônicas e os jornais adequaram- nalista responsável por criticar o jornal e por defender seus
leitores. Todavia, essa ação limitava-se ao próprio jornal que'
se significatívamente ao consumo de sua população mais
abrigava a coluna. A imprensa como um todo exigia um
expressiva, as classes ditas “C e D”.
contrapoder, um controle sobre sua indiscriminada atuação.
Ao final dos anos 1990, a privatização das telecomunica­ i
ções no Brasil e posterior parceria com o setor de telefonia Desde 1993/94, o jornalista Alberto Dines cogitava a
otimizou ainda mais os novos recursos técnicos da comu­ criação de um instituto voltado para esta crítica da mídia.
nicação, ampliando extraordinariamente seu consumo. 1 Entrevista dc Alberto Dines às autoras cm 4.4.2004.
2 DINES, Alberto. In: ABREU, Alzira Alves de; LATTMAN-WELTMAN, Fer­
nando; ROCHA, Dora (Orgs.). Eles mudaram a imprensa: depoimentos ao
9 ABREU, Alzira Alves de. Op. cit., p.44-50 e 55. CPDOC. Op, cil., p.l 19.

126
ANA LUIZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA •IMPRENSA E CIDADE

Foi um longo processo, iniciado junto à Unicamp e, poste­ compõem um jornal, contemplando economia, política,
riormente, abrigado na internet sob o título Observatório í cidades, colunas sociais, indústria cultural, esportes etc. ...
da Imprensa. Mais tarde, a home page do programa, por Ao mesmo tempo, a necessidade de enxugamento da má­
meio de convênio com a Folha de S.Paulo, colocou-se no t quina determinou a supressão de sucursais pelo país, com
site daquele jornal e a atividade deslanchou, com inúme­ dispensa de profissionais e a manutenção dos mais quali­
ras parcerias, difusão impressa e televisiva. ficados por meio de terceirizações de “figuras jurídicas”.
Hoje, sob o comando do mesmo Alberto Dines, é trans­ Os centros difusores de notícias e sedes de empresas
mitido semanalmente pela TV Cultura e pela internet, de comunicação na geografia da mídia do Brasil permane­
numa prestação de serviço única na imprensa brasileira, cem historicamente os mesmos, alocados sobretudo no
voltada para a crítica da mídia em face de seu incomensu- eixo São Paulo-Rio de Janeiro.
rável e delicado poder. A despeito de avanços dos meios e formas de comuni­
Cumpre ressaltar que a esses avanços corresponderam cação no Brasil, o consumo quantitativo e qualitativo da
altos investimentos das empresas de comunicação, que notícia ainda deixa muito a desejar, sobretudo em função
ultrapassam em muito aqueles tradicionalmente elevados do alto grau de analfabetismo funcional do Brasil, con­
da imprensa do papel. Os custos operacionais daquelas dição em que se encontra quem não entende o que lê. O
indústrias transformaram-nas em empresas múltiplas, em que não é estranhável, considerando-se que no presente,
que a diversificação se tornou imperiosa e cuja adminis­ acenas 20% dos brasileiros concluíram o ensino médio.
tração é exercida por profissionais de formação variada, / Vale repetir a pergunta que dá início a este livro, empres­
caracterizando-a como instituição de serviços diversos, tada da letra de Caetano Veloso: “Quem lê tanta notícia1?”
sobrepondo-se por vezes àqueles do jornal. fi
As empresas de comunicação no Brasil, tradicionalmen­ ■!
Para finalizar
te familiares, passaram a ter seu controle exercido por um
conselho de profissionais especializados, comprometidos f' As inúmeras discrepâncias que caracterizam as relações da
sobretudo com a busca do lucro empresarial. mídia com a população, leitora e consumidora no Brasil
Nessas circunstâncias, também o papel do jornalista se refletem nosso processo histórico peculiar. Por aqui, a
alterou, seja em função da revolução técnica da impren­ imprensa demorou a chegar, a educação formal sempre
sa, das novas exigências do mundo globalizado e do cará­ esteve a reboque dos programas de governo e as novida­
ter mercadológico da notícia. des tecnológicas foram automaticamente transplantadas,
em nome da busca da modernidade e do acerto com o tem­ \
O convívio das redações foi substituído pelo trabalho f. \
individual e solitário do jornalista com seu computador, po cultural dos países hegemônicos.
pressionado entre a coleta de notícias e os press releases dos Mesmo com obstáculos, uma imprensa escrita vigoro­
clientes do mercado. A necessidade de especialização, ge­ sa brotou no país e hoje, sua mídia televisiva bem como
rou o expert, voltado para um só tema, demanda das pági­ I sua criação publicitária são referências para os padrões
nas setorizadas dos inúmeros cadernos que atualmente internacionais de comunicação. O jornalismo on-line, con-

128 129
ANA LU1ZA MARTINS E TANIA RECINA DE LUCA IMPRENSA E CIDADE

tudo, ainda engatinha em termos de usuários, dada a bai­ da mídia. Também entre nós, o jornalismo está se tornando
xa renda da população com acesso restrito à informática e mais complexo, regido por tendências múltiplas, ganhan­
aparelhos de computação. A internet, ao alcance de pou­ do novos significados no país de dimensões continentais
cos, ainda não é uma mídia superior às demais. A esse pro­ f e que vive momento florescente de exercício democráti­
pósito, confirma Alberto Dines: “A Internet disputa í co, no quadro dos poderosos recursos da informática e da
primazias mas não é sempre que ela consegue oferecer a tecnologia de ponta a seu serviço.
primazia. Eu não consigo me lembrar de uma cobertura de Resta saber se na batalha diária da fabricação da notí­
Internet que tenha realmente se sobreposto à cobertura das cia na sociedade do espetáculo, da ditadura do marketing
mídias tradicionais, seja eletrônica ou impressa.”3 e da força do capital, haverá espaço e voz para o exercícip
Em razão da globalização, as crises atuais por que passa da crítica e para a autonomia e independência da mídia,
força e móvel do mundo contemporâneo.
i
nossa imprensa refletem não só um problema local, mas aque­
le das mídias internacionais, quando também a imprensa
brasileira registra declínio na circulação dos jornais, redução
drástica do mercado jornalístico e credibilidade em que­
da. Em outra escala os jornais gastam cada vez menos com
a apuração da notícia e mais com as formas de divulgá-la. /
Nesse sentido, é oportuno concluir com a menção ao /
t

mais completo estudo já realizado sobre a mídia america­ /


na, conforme veiculado na obra O Estado da Mídia Infor­ í
mativa 2004:
O jornalismo em 2004 está no meio de uma transformação histó­
rica, provavelmente tão impactante quanto a invenção do telégrafo
e da televisão _ O jornalismo não está se tornando irrelevante. Está se f
1
tornando mais complexo. Estamos testemunhando tendências
conflitantes de fragmentação e convergência simultaneamente, e I
elas às vezes levam a direções opostas.4

No Brasil de hoje, a função da imprensa em sua rela­


ção com a cidade é decisiva, potencializada pelas inúme- >
ras demandas de serviços que dependem exclusivamente

3 Entrevista de Alberto Dines às autoras cm 4.4.2004.


4 O Estado da Mtdia informativa 2004, estudo realizado pelo Projeto pela Exce­ i
lência no Jornalismo, associado à Universidade dc Columbin (Nova York), dis­
ponível em www.stateofthemcdia.org

r i

130 131
IMPRENSA E CIDADE

Glossário Milheiros - Refere-sc ao milhar na contagem de objetos, no caso,


na tiragem dos jornais.

Pasquim — Originário dos tempos romanos, relacionado a panfletos


Censor - Indivíduo responsável pelo controle do conteúdo das in­ satíricos e difamadores, afixados em locais públicos, transformou-
formações, com poder de vetá-las. se em jornal tablóide alternativo de crítica aos costumes. No Bra­
sil, tornou-se nome de um dos mais argutos e veiculados jornais da
Clichê - Placa, em geral de zinco, gravada fotomecanicamente em imprensa alternativa - O Pasquim (1969) —, voltado para a crítica
relevo, imprimindo imagens ou textos em prensas tipográficas. à ditadura.
Clicheria - refere-se à técnica de fazer o clichê e também à oficina Perrepísta — Alusivo ao membro do PRP (Partido Republicano
onde ele é feito. Paulista).
L
Componedor de linotipo - Dispositivo onde mecanicamente são Prelo — Máquina tipográfica de imprimir, criada originalmente por S■
reunidos as matrizes e os espaçadores do linotipo. Gutenberg, que funcionava por meio de um parafuso vertical mo­
! vido à mão. Foi substituído pelo prelo holandês de madeira e mais
Copidesque — Redator que dá acabamento ao texto, de forma que
tarde pelo prelo com mesa e platina de aço. Em 1818 o prelo de
se torne agradável e facilmente legível.
Stanhope substituiu toda a madeira por ferro fundido. Esse proces­
Empastelamento — ato de empastelar, que consiste em misturar os so manual foi substituído pelo mecânico, com rolos de impressão.
:
tipos gráficos em caixas diferentes, de forma que inutilize a oficina de
Púlpito —Tribuna ocupada por pregadores, geralmente situada no
um jornal. Em sentido mais amplo refere-se à destruição do jornal. I interior das igre'jas em lugar de visibilidade, de forma que o prega­
Holdings - Conglomerado de empresas. dor possa ser visto e ouvido pelos fiéis. Lugar de pregação, geral­
mente religiosa.
Linotipia — Arte do trabalho com linotipo.
Rotativa — Máquina de imprimir, inventada por Marinoni, que fun­
Linotipo - Máquina composta de um teclado que permite dispor
ciona por meio de rotação de formas cilíndricas, em torno das quais
das matrizes em canais condutores (denominados magazines), por o papel enrolado em bobinas se desenrola e recebe a impressão.
onde, através de vários estágios, as matrizes são levadas para o i:
componedor. Rotogravura — Impressão obtida através de prensa rotativa, onde a
! gravação se faz em placas, que encurvadas'são adaptadas aos cilin­
! Litografia - Um dos mais antigos processos de gravação da imagem dros; ou direlamente nos cilindros revestidos de cobre; ou nesses
: em que o gravador desenha às avessas, diretamente sobre uma cilindros, por eletrodeposição, isto é, por decomposição do compo­
pedra calcárea. Essa base é'primeiro molhada para umedecer as nente químico, por passagem de corrente elétrica.
!
partes não cobertas pelo desenho e, em seguida, recebe uma tinta,
que, incompatível com a água, concentra-se sobre a área seca, Zincografia - Processo de impressão da imagem que segue o mes­
mo princípio da litografia, embora a gravação se dê sobre folha
imprimindo o desenho.
de zinco.
Marinoni (Hipólito) - construtor mecânico francês (1823-1904),
inventor das máquinas rotativas de impressão.
Mass-Midia — Conjunto dos meios de comunicação de massa, que
inclui veículos, recursos c Lécnicas variados: jornal, rádio, televi­
são, cinema, outcloor, páginas impressas, propaganda, mala-direta,
balão inllável, anúncio em sile da internet.

i. 133
!
k-...

IMPRENSA E CIDADE

li

I Sugestões de leitura Trabalho fundamental, em que o autor realizou levantamen­


to exaustivo da chamada imprensa nanica das décadas de 1960
;j a 1980.

ABREU, Alzira Alves de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Ja­
i
ROCHA, Dora (Orgs.). Eles mudaram a imprensa: depoimen­ neiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
tos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 2003. Em linguagem agradável, o livro traz uma das melhores sín­
teses do nascimento da imprensa no Brasil, situando de forma
Livro fundamental para acompanhar as transformações da im­ didática nossos primeiros jornais.
prensa nos últimos trinta anos, pelo depoimento de seis impor­
tantes diretores de redação dos principais órgãos de comunica­ MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. São Paulo: Companhia
ção periódica do país. das Letras, 1994. ,
Biografia de Assis Chateaubriand, figura central na história
ABREU, Alzira de Abreu (et a 1.). Dicionário histórico-biográfico da imprensa brasileira, responsável pelo maior conglomerado
brasileiro pós-1930. 2.ed. rev. e ampl. Editora FGV; CPDOC, de comunicações da América Latina.
•J 2001.
SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora. A influência
í
Obra de referência obrigatória para os acontecimentos políti­ americana sobre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus,
í
cos do período pós-1930. Particularmente útil para a história 1991.
. da imprensa, pois contém verbetes específicos sobre os princi­
Trabalho fundamental para compreensão, entre outros as­
pais jornais e revistas do período.
pectos, da influência do jornalismo norte-americano na im­
CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto. A imprensa e Fernando prensa brasileira.
Collor. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. jjSODRÉ, Nels/i
n Werneck. Idistória da imprensa no Brasil. Rio de
Através da análise da ascensão e queda de Fernando Collor, o Janeiro: Mauad, 1999.
autor recupera, com profundidade e crítica, o histórico dos Com uma primeira edição em 1966, contempla a história da
principais órgãos de comunicação do Brasil. imprensa dos primórdios até o último quartel do século XX.
Trata-se de obra abrangente, indispensável para o tema.
D1NES, Alberto. O papel do jornal: uma releitura. 4.ed. ampl. e
atual. São Paulo: Summus, 1986.
Livro que conheceu várias edições e se tornou um clássico
Sites
para análise do fazer jornalístico. Discute a questão da censu­
ra, imposta pelo regime militar. www.tvebrasil.com.br/observatorio/programa. Site do programa
Observatório da Imprensa, que contém entrevistas e debates
HALIMI, Serge. Os novos cães de guarda. Petrópolis: Vozes, 1998.
sobre a atuação das mídias brasileira e internacional.
Coleção Zero à Esquerda.
www.uol.com.br/rionosjornais. O Rio de janeiro através dos jornais
O autor tece uma série de críticas à postura da mídia francesa, (1888-1969), elaborado por João Marcos Weguelin. Site que
desnudando os vínculos e os interesses econômicos que presi­ contém matérias integrais de vários jornais cariocas.
dem a dílusão das notícias na imprensa escrita e televisiva.
yKUCINSKl, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da
imprensa alternativa. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Edusp 17
2003.

/
5
13S
!
Questões para reflexão e debate

1. Na Introdução mencionamos as propostas de Ignácio Ramonet,


defensor da criação de um quinto poder que examine as práticas
jornalísticas predominantes nos empreendimentos midiáticos.
Você concorda com a proposta do autor? Justifique sua resposta com
exemplos retirados de jornais, revistas ou noticiários televisivos.
l
2. O Capítulo 1 abrange largo período da imprensa no Brasil, re­
:!
velando etapas e características muito próprias de sua implanta­
1
ção e difusão no país. Discrimine os traços próprios e as etapas que !
marcaram esse processo.
1 3. Após a leitura do Capítulo 2, que trabalha um dos períodos
1
mais fecundos da imprensa escrita brasileira, sistematize aspectos
1 registrados da evolução técnica, das novas práticas de difusão do
:! impresso, da profissionalização do setor e da atuação da censura.
4. No Capítulo 3, reproduzimos o depoimento de Sampaio Mitke
il
acerca do controle exercido pelo Estado Novo sobre a imprensa: h
!; i íi.-
I O trabalho era limpo e eficiente. As sanções que aplicávamos

j eram muito mais eficazes do que as ameaças da polícia, porque
eram de natureza econômica. Os jornais dependiam do governo para /
j :!
a importação do papel linha d’água. As taxas aduaneiras eram eleva­ /
'} das e deveríam ser pagas em 24 horas (...). Só se isentava de paga­
mento os jornais que colaboravam com o governo. Eu ou o Lourival
lígávamos para a alfândega autorizando a retirada do papel.
i
Discuta outras formas de controle colocadas em prática no pri­
f meiro governo Vargas (1930-1945).
1

5. Ao longo do Capítulo 4, infere-se que o Brasil do pós-Segunda


Guerra já dispunha de razoável rede urbana, que se espelha na
'!
;! imprensa e sc vale dela. Comente as relações entre imprensa e ci­

dade e, mais especificamente, as relações entre os centros urba­


nos e a grande imprensa brasileira.
6. Nas crises que culminaram com o golpe de 1964, que depôs o
presidente João Goulart, e com a renuncia do presidente Fernando
Collor de Melo, a imprensa atuou como importante ator político.
Com base na leitura desse livro e em leituras sugeridas, forneça
argumentos que comprovem a afirmação.

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