Paul Cezanne PDF
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Emile Bernard
palavras-chave:
arte moderna; pintura;
Paul Czanne;
Emile Bernard
Bernard afirma (no final de seu texto) ter escrito este artigo em Aix em maro de
1904. Na realidade este deve ter tomado sua forma definitiva mais tarde, pois contm
importantes citaes tiradas das cartas de Czanne datadas de 12 e 26 de maio.
Embora seja conhecido pelos especialistas, este artigo (p. 17 a 30 no nmero de
julho de 1904 do Occident) foi algo eclipsado, nos estudos sobre Czanne, pelos dois
textos do Mercure de France que compem os Souvenirs sur Paul Czanne... e suas
diversas reedies em forma de livro. O artigo do Occident , em grande medida,
consagrado s vises gerais de Bernard sobre a arte, mas, alm da famosa
compilao das opinies de Czanne, oferece citaes aparentemente textuais
do artista e algumas observaes s vezes profundas sobre seus mtodos de
trabalho e sua evoluo como pintor. Os comentrios sobre Pissarro e o perodo
de Auvers parecem exatos. Quanto autenticidade das opinies, devemos ter em
mente, por um lado, que Bernard se preocupa em assinalar, vrias vezes, neste artigo,
as ocasies em que cita as prprias palavras de Czanne e, por outro lado, que as
opinies propriamente ditas so enriquecidas com trechos de cartas, o que permite
supor que a seo inteira seria composta de citaes autnticas. P. M. Doran
keywords:
modern art; painting;
Paul Czanne;
Emile Bernard
Bernard claims (in the end of his text) to have written this article in Aix in
March 1904. Actually, it must have taken its final version later, since it contains
important quotes drawn from Czannes letters of May 12 and 26. This article
(pages 17 to 30 of the issue of July 1904 of Occident), although known among
scholars, was somehow eclipsed, in the studies about Czanne, by the two texts
from Mercure de France which constitute the Souvenirs sur Paul Czanne... and
its various re-editions as a book. The article in Occident is mostly dedicated to
Bernards general views on art, but it offers, beyond the famous compilation
of Czannes opinions, apparently textual quotes of the artist and some
observations, at times remarkable, about his working methods and his evolution
as a painter. The comments on Pissarro and the Auvers period seem to be
precise. As for the authenticity of the opinions, one must have in mind, on
the one hand, that Bernard cares about signaling, many times in this article, the
occasions in which he quotes Czannes own words and, on the other hand, that
the opinions themselves are complemented with excerpts from letters, what
allows one to suppose that the whole section is constituted of authentic quotes.
P. M. Doran
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Paul Czanne, Auto retrato. leo sobre tela, cerca de 1878-80. Neue Pinakothek, Munique.
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Logo tero se passado vinte anos desde que jovens pintores, que
atualmente esto no foco das atenes em Paris, iniciaram uma devota
peregrinao a uma loja pequena e escura da rua Clauzel. Ao chegar l,
pediam a um velho armoricano de semblante socrtico1 quadros de Paul
Czanne. Apesar das paredes recobertas de telas rutilantes, eles apenas
sossegavam quando os estudos solicitados por seu desejo de arte, dispostos
sobre uma cadeira que oferecia seu espaldar como cavalete, lhes ensinavam
o caminho a seguir. Religiosamente, consultavam aquelas pginas de um
livro que escrevia a natureza e uma esttica contempornea como as tantas
tbuas de um dogma cuja revelao, para eles desconhecida, afirmava-se,
entretanto, soberanamente. Dali retornavam, em meio a muitos discursos
admirativos, a suas prprias telas e pincis, tomados da necessidade que
tinham os paralticos de andar quando repentinamente o Salvador operava o
milagre por sua boa vontade. Assim nasceu, de obras praticamente arrebatadas
a seu autor, que, sem dvida, se as julgasse no conformes sua viso, jamais
teria permitido que elas deixassem sua guarda, uma escola de pintura que
outros, ambiciosos demais ou artistas de menos, etiquetaram com nomes
falsos, desviaram para a fantasia e a superfcie.
Mas quo proveitosa teria sido a revelao, caso inteiramente
amada e conhecida!
Um louvvel esforo de personalidade deve diferenciar os
pintores, mas que esse esforo seja profundo e no exterior, que sorva
as ondas de sua vitalidade juvenil em fontes sadias. Dessa preocupao
com a personalidade2, doentia, digamos logo, nasce toda deliquescncia,
porque aquele zelo ter faltado. Assistimos anualmente, hlas!, ao
descascamento de jovens caules providos de ramagens viris. Aqui
estamos, diante do cair das folhas, em um outono de monotonia. Toda
seiva se perde em vo diante de um inverno demasiado precoce. Um a
um extinguem-se os sis, a luz do tempo se vai, declinante, e de nossos
mestres, aps Manet, aps Puvis, resta apenas Czanne.
Monet, olho de luz que abriu as portas da pintura sobre o
infinito do cu, do mar e das plancies, deixou uma grande obra que s
a ingratido desconsideraria. Nem Corot, nem Millet saram de uma
arte de museu, sua superioridade inconteste perpetua gloriosamente
as escolas de Claude Gell e de Correggio: Monet observou com
determinao a natureza e viveu-a como pintor.
Manet, admirando Monet, criou este smbolo: os mestres de
outrora (que sua paleta representava, que sua obra venerava) reconhecem
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Portanto, no ser pela pacincia, mas pelo amor, que d a viso e o desejo de aprofundamento, que o pintor chegar possesso de
si mesmo e perfeio de sua arte. Ele precisa extrair da Natureza uma
12. Emprestadas
carta 2 de Czanne a
Bernard (In: DORAN, P.
M. (Ed.), op. cit., p. 28).
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imagem que ser, a bem dizer, a sua; e apenas pela anlise, se tiver a
fora de lev-la at o fim, que ele lograr significar a si mesmo, definitivamente, abstratamente.
As snteses11 expressivas de Czanne so estudos minuciosos e
obedientes. Tomando a natureza como ponto de apoio, ele se conforma
aos fenmenos e os transcreve lentamente, atentamente, at descobrir
as leis que os produzem. Ento, com lgica, apossa-se deles e conclui
seu trabalho com uma sntese imponente e viva. Sua concluso, em
conformidade com sua natureza meridional e expansiva, decorativa;
ou seja, livre e exaltada.
Madame de Stal escreve, em seu livro sobre a Alemanha: Os
franceses consideram os objetos exteriores como o mvel de todas as ideias
e os alemes, as ideias como o mvel de todas as impresses. Paul Czanne
justifica essa opinio de Madame de Stal sobre os franceses, mas sabe chegar
a uma profundidade da arte pouco comum em nossos contemporneos.
Como bom tradicionalista, afirma que a Natureza nosso ponto de apoio,
que no se deve tomar nada que no seja unicamente dela, dando-se a ns,
todavia, a liberdade de improvisar com aquilo que lhe emprestamos...
Em primeiro lugar, o pintor precisa, segundo Czanne, de uma
tica pessoal, tica esta que se pode obter apenas pelo contato obstinado da viso do universo.
Claro, preciso ter frequentado o Louvre, os museus, a fim de
se dar conta da elevao da natureza arte. So as palavras do prprio
Czanne12: O Louvre um bom livro a consultar, mas no deve ser
mais que um intermedirio: o estudo real e prodigioso a empreender a
diversidade do quadro da natureza.
Sem a viso da arte, a cpia da natureza seria uma tolice,
evidente; mas deve-se temer limitar sua inveno a repeties ou
pastiches, perder o p em abstraes ou reiteraes; preciso manterse no terreno da anlise e da observao, esquecer as obras j feitas para
criar, a partir delas, imprevistos, tirados ao cerne da obra de Deus.
Paul Czanne considera que existem duas plsticas13, uma escultural
ou linear, a outra decorativa ou colorista. O que ele chama plstica escultural
teria, em termos gerais, o tipo de significado da Vnus de Milo. A chamada
plstica decorativa estaria ligada a Michelangelo, a Rubens. A primeira, uma
plstica servil, a outra, livre: uma em que o contorno domina, a outra em
que domina a protuso, a cor e o ardor. Ingres pertence primeira, Delacroix
segunda.
Eis algumas opinies de Paul Czanne14:
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constitui um comentrio
sutil e aprofundado.
A modulao uma
noo fundamental
para Czanne (ver
abaixo, nas opinies:
No deveramos dizer
modelar, deveramos
dizer modular), o que
implica uma gradao
obtida por pequenos
toques, por quantidades
discretas, e no por uma
mudana contnua de
tom e cor: as aquarelas
dos ltimos anos, com
seus empilhamentos
de manchas de cor
distintas mas vizinhas,
ilustram perfeitamente o
princpio.
17. Cf. a carta 1 a
Bernard (In: DORAN,
P. M. (Ed.), op. cit., p.
27): Trate a natureza
conforme o cilindro,
a esfera, o cone, o
todo disposto em
perspectiva, de maneira
que cada lado de um
objeto, de um plano,
se dirija a um ponto
central. As linhas
paralelas ao horizonte
do a extenso,
ou, a saber, uma
seco da natureza,
se voc prefere o
Espetculo que o
Pater omnipotens,
oeterne Deus [Pai
onipotente, Deus
eterno] instala diante
de nossos olhos. As
linhas perpendiculares
a esse horizonte do a
profundidade.
18. uma mancha
dominante: a noo
de dominante era
fundamental para
Seurat e seu crculo
(cf. COQUIOT, Gustave.
Seurat. Paris: Albin
Michel, 1924, p. 232 e
HOMER, William Innes.
Seurat and the science
of painting. Cambridge,
24
Tal Czanne, tal sua lio de arte. Como vemos, ele se diferencia
essencialmente do impressionismo, do qual deriva, mas no qual no pode
aprisionar sua natureza. Longe de ser espontneo, Czanne refletido,
seu gnio um relampejar em profundidade. Resulta disso ento que tal
temperamento de pintor o conduziu a criaes decorativas novas, a snteses
inesperadas; e essas snteses foram em verdade o maior progresso nascido das
apercepes modernas; pois elas esmagaram a rotina das escolas, mantiveram
a tradio e condenaram a fantasia apressada dos excelentes artistas de que
falei. Em suma, Czanne, pelo fundamentado de suas obras, provou ser o
nico mestre no qual a arte futura poderia transplantar sua fruio. Todavia,
como foram mal apreciadas suas descobertas! Consideradas injustamente por
alguns, devido a seu inacabado, como pesquisas sem concluso; por outros,
como extravagncias sem futuro, devidas unicamente fantasia de um artista
doentio; por ele prprio que ergueu diante de si um ideal de absoluto ,
mais como ruins do que boas, sem dvida porque provocava-lhe despeito
ver-se trado nelas (ele as destruiu em grande nmero, no as mostrou); tais
como so, entretanto, constituem o mais belo esforo para um renascimento
pictrico e colorista que, desde Delacroix, a Frana j pde ver.
No temo afirmar que Czanne um pintor de temperamento
mstico e que equivocadamente sempre foi includo na deplorvel escola
inaugurada pelo sr. Zola, que, a despeito de suas blasfmias contra a
natureza, outorgara-se hiperbolicamente o ttulo de naturalista. Digo
que Czanne um pintor de temperamento mstico em razo de sua
viso puramente abstrata e esttica das coisas. Ali, onde outros se
preocupam, para se fazer traduzir, em criar um assunto, ele se contenta
com algumas harmonias de linhas e tonalidades tomadas a objetos
quaisquer, sem se deter nesses objetos em si mesmos20, tal como um
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imagens dpinal ou as
estampas japonesas,
fizeram comentrios
semelhantes: assim
Courbet: plano, no
modelado, dir-se-ia
uma dama de espadas
de um baralho, saindo
do banho (citado por
Albert Wolff no Figaro de
1 de maio de 1833); e
Daumier: Regressamos
a Lancelote. O prprio
Czanne pintou uma
Mulher deitada,
atualmente perdida (cf.
Souvenirs, op. cit., p. 68
e a nota 33 referente),
que lembrava Manet pelo
tratamento e pela cor
e que, aparentemente,
representava uma
imagem dpinal no
fundo. Certas cartas a
Pissarro, datadas de
25 de junho de 1874 e
de 2 de julho de 1876,
pareciam ainda indicar
um interesse equvoco
pela mancha plana
que j o antpoda
do modelado. Essa
limitao da mancha
era, porm, largamente
reconhecida, de modo
que Bracquemond
(que participara, com
Czanne, da primeira
exposio impressionista
de 1874) destaca, em
seu tratado de 1885 (op.
cit., p. 42), o fato de que
quanto mais a mancha
assume importncia
em si mesma, mais o
modelado desaparece.
Czanne dir, todavia, no
final da vida: Procuro
[...] representar o
aspecto cilndrico dos
objetos (cf. RIVIRE,
R. P.; SCHNERB, J. F.
Latelier de Czanne.
In: DORAN, P. M. (Ed.),
op. cit., p. 88). E se
queixa, antes disso,
provavelmente em 1904,
da falta de modelado
ou de graduao nas
imagens chinesas
26
de Gauguin (Souvenirs,
op. cit., p. 62-63).
Definitivamente, a
modulao a
inveno tcnica
primordial de Czanne,
reconciliando a mancha
com o volume na
imagem pintada (cf. a
nota 16, acima). Para
sua ltima opinio sobre
essa 19. reconciliao
(em um outro pintor
Rafael e por meios
um pouco diferentes),
cf. DENIS, op. cit., p.
94. (O contexto geral
e grande parte da
documentao detalhada
dessa discusso do
termo mancha foram
tirados de BADT, Kurt
(The art of Czanne.
Londres: Faber, 1965,
p. 114-17), REWALD,
John (The history of
impressionism. Nova
Iorque: Museum of
Modern Art, 1961, p.
207-10) e BOIME, Alfred
(The academy and
French painting in the
nineteenth century.
Londres: Phaidon, 1971,
p. 152).)
19. O resto desta
seo inteiramente
composto de citaes
tiradas das cartas 2 e 3
de Czanne a Bernard
(cf. op. cit., p. 28).
20. sem preocupar-se.
Isso bem discutvel. Cf.
GEFFROY, Gustave (La
vie artistique... troisieme
srie. Histoire de
limpressionnisme. Paris:
Dentu, 1894, p. 253): o
ardor de sua curiosidade,
de seu desejo de possuir
as coisas que v e que
admira; e a carta
a Gasquet de 21 de
julho de 1896: Venho
recomendar-me ao sr.
e a suas lembranas
para que os grilhes
que me prendem a este
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Emile Bernard (1864-1941) foi pintor, ilustrador, poeta e terico da arte. Antes de passar
pela fase do impressionismo, do pontilhismo e do sintetismo, havia sido discpulo todavia
rebelde do pintor Cormon. Em 1887 esteve muito prximo de Van Gogh; em seguida, entre
1887 e 1890, trabalhou em Pont-Aven junto a Gauguin, na formulao da esttica sintetista.
Foi o artista mais amplamente representado na exposio do Caf Volpini, em 1889, na qual
o pblico pde ver, pela primeira vez, uma mostra de certa envergadura da obra de Gauguin e
seu crculo. Em Pont-Aven, em 1889-90, Bernard passou a defender um catolicismo mstico,
e, nos anos seguintes, seu crescente fervor religioso foi de par com seu encaminhamento a
uma arte idealista. [...] Passou a mostrar, cada vez mais, rejeio arte contempornea e a
preconizar um retorno aos ideais da Renascena. De 1893 a 1904 passou a maior parte do
tempo no Egito, fazendo, no perodo, algumas viagens Espanha e Itlia.
Traduo de Julia Vidile.
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24. As publicaes
de Vollard no
compreendem um
catlogo exaustivo.
Matisse fala
favoravelmente
de Vollard em sua
entrevista com Jacques
Guenne (1925) e o louva
por haver mandado
fotografar as telas de
Czanne que detinha:
Ambroise Vollard
prestou a elas um
[servio] maior, ao
tomar a iniciativa de
mandar fotografar as
telas. Essa medida
teve uma importncia
considervel, pois,
sem isso, no se teria
deixado de terminar
todos os Czanne,
assim como se tinha o
costume de acrescentar
rvores a todas as telas
de Corot (MATISSE,
H. Ecrits et propos sur
lart. Texto, notas e
ndice estabelecidos por
Dominique Fourcade.
Paris: Hermann, 1972,
p. 87).
25. Do verbo
magnificare, a palavra
latina Magnificat aparece
no cntico em louvor
Virgem Maria, Magnificat
anima mea Dominum
(Minha alma magnifica
o Senhor); o termo
pode tambm designar
o livro de oraes
popularmente usado
pelos fiis na liturgia
das igrejas crists, no
qual so reproduzidos
os cnticos de louvor
Virgem Maria.
[Nota dos editores].
Ao lado, Paul Czanne,
Auto retrato com barrete.
leo sobre tela, cerca de
1898-1900. Museum of
Fine Arts, Boston.
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