100 Anos de Jorge Amado - Historia, Literatura e Cultura. Coloquio Internacional PDF
100 Anos de Jorge Amado - Historia, Literatura e Cultura. Coloquio Internacional PDF
100 Anos de Jorge Amado - Historia, Literatura e Cultura. Coloquio Internacional PDF
ORGANIZADORES
Apoio:
Ilhus-Bahia
2013
Copyright 2013 by
FlVIO GONAlVES DOS SANTOS
INARA DE OlIVEIRA RODRIGuES
lAIlA BRICHTA
direitos desta edio reservados
editUs - editora da UesC
a reproduo no autorizada desta publicao, por qualquer meio,
seja total ou parcial, constitui violao da Lei n 9.610/98.
depsito legal na Biblioteca Nacional,
conforme Lei n 10.994, de 14 de dezembro de 2004.
ProJeto GrFiCo
Marcel santos
CaPa
andr Loretz a partir da arte de
alexandre Gomes de sousa
reViso
Maria Luiza Nora
roberto santos de Carvalho
APRESENTAO
Por im, e no com menor importncia, registramos os nossos agradecimentos: Fundao de Amparo Pesquisa do Estado
da Bahia (FAPESB) pelo inanciamento que permitiu a realizao
do Colquio Internacional 100 Anos de Jorge Amado: Histria, Literatura e Cultura e, especialmente, deste livro; Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES, atravs do
Programa de Consolidao das Licenciaturas - PRODOCNCIA e
do Plano Nacional de Formao de Professores da Educao Bsica PARFOR, ambos com projetos desenvolvidos na Universidade
Estadual de Santa Cruz, cujo apoio foi igualmente relevante para
a realizao dos eventos; e aos Departamentos de Letras e Artes
(DLA) e de Filosoia e Cincias Humanas (DFCH), da UESC, bem
como s instncias institucionais que colaboraram de modo efetivo
para o xito das aes realizadas.
A todos e a todas que, de diferentes modos, contriburam
com estas importantes atividades acadmicas, externamos o nosso
muito obrigado!
Os Organizadores
SUMRIO
Jorge amado e a
literatura Brasileira
Arnaldo Niskier*
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Arnaldo Niskier
ele mesmo um grande escritor, o assunto volta baila, na recordao do convvio acadmico.
Como se desenvolveu o estilo peculiar de Jorge Amado? O que
o teria inluenciado? Que escritores foram importantes para que ele
criasse um jeito original de escrever que tanto cativou os leitores
brasileiros e estrangeiros?
As respostas no so to simples, j que o enquadramento da
obra de Jorge Amado dentro de uma linha de pensamento baseada em estudos estilsticos deve ser uma tarefa trabalhosa. Basta
observar que o perodo em que surge Jorge Amado, logo aps a
fase de contestao, de polmicas e de busca de novos caminhos,
iniciado em 1922, marcado por extraordinria lorao e esplendor, como bem deiniu Afrnio Coutinho. Por isso se torna difcil
tentar compreender o estilo de Jorge Amado atravs de interpretaes sociolgicas ou teorias ains: corre-se o risco de no se ter
a exata deinio da arte do escritor baiano. Tambm no far sucesso aquele que tentar estabelecer um paralelo entre as obras e os
fatos histricos ocorridos nos perodos em que foram produzidas.
Esses estudos crticos no levam em conta que o autor, com sua
liberdade de criao, com sua licena potica, muitas vezes preocupado com a sua cria, est alm de fundamentaes tericas
ou conceitos literrios. Quer apenas desenvolver o seu romance, o
seu conto, a sua poesia ou a sua crnica do jeito que a sua mente
naquele momento est se propondo, numa viagem muito pessoal e
intimista. Ele criou o estilo jorgeamadiano e foi feliz, legando ao
Brasil obras inesquecveis.
Tudo comeou, em 1931, com o lanamento do primeiro livro,
O pas do carnaval. As palavras escritas por Jorge Amado, naquela
obra, j demonstravam que o escritor baiano seria uma voz polmica na literatura brasileira. Vejamos:
Entre o azul do cu e o verde do mar, o navio ruma o
verde-amarelo ptrio. Trs horas da tarde. Ar parado.
Calor. No tombadilho, entre franceses, ingleses, argentinos e ianques est todo o Brasil (Evo, Carnaval).
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O primeiro livro ainda no trazia todo o vigor que se faz presente nas obras de Jorge Amado, mas polemiza quando aborda a
sua averso delagrao da Revoluo de 30, movimento que marcaria profundamente a sua atuao poltica a partir daquele ano.
Fatos histricos internacionais, que comeavam a se delinear ento
como os movimentos totalitrios tambm foram inseridos na
histria. Os devaneios do intelectual Paulo Rigger, que morava em
Paris e voltou terra natal para questionar fatos polticos, morais e
ticos, so focalizados com maestria por Jorge Amado. Tambm se
destacam na obra personagens como funcionrios pblicos, poetas,
ateus e jornalistas.
Editado pelo poeta Augusto Frederico Schmidt, o livro foi recebido por Rachel de Queiroz, sua amiga, com grande fervor. Esta
obra guarda um fato histrico, triste e lamentvel: foi queimado
pela polcia do Estado Novo, em Salvador, em 1937, por Jorge Amado ter sido considerado um subversivo.
Aps a ecloso da Semana de Arte Moderna de 1922, que tornou aquele ano uma forte referncia para todas as manifestaes
culturais, muitos especialistas apostaram que o Brasil demoraria
algumas dcadas at apresentar algumas novidades no campo da
literatura. Isso porque despontaram no movimento modernista escritores do porte de Oswald de Andrade, Mrio de Andrade, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Alcntara Machado, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Sem falar no apoio dado ao
movimento por Graa Aranha, membro da Academia Brasileira de
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Arnaldo Niskier
Para saber o total da obra vendido at hoje, a pesquisadora Ilana Goldstein, autora de O Brasil Best Seller de Jorge Amado (Senac),
realizou um levantamento junto s editoras antigas do escritor e estima que o montante se encontre na casa dos 30 milhes. Segundo
a autora, Jorge Amado iniciou muita gente na leitura e ajudou um
pas inteiro a aprender a ler.
Arnaldo Niskier
que as obras foram escritas com muito critrio para emitir suas opinies, ele procurou realar a fora potica que detectou nos temas
dos diversos romances analisados. O que vemos a seguir uma declarao de amor de Antnio Cndido, entusiasmado pela simplicidade do estilo do autor de Jubiab: Na nossa literatura moderna,
Jorge Amado o maior romancista do amor, fora de carne e de
sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinrio clima lrico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, dos operrios, que antes no tinha estado na literatura seno edulcorado pelo
bucolismo ou bestializado pelos naturalistas.
Trata-se de uma obra que consegue conquistar leitores e crticos com a mesma intensidade. Uma obra que, para Alfredo Bosi,
teve uma caminhada multifacetada no decorrer dos anos: iniciou
com tintas de romance proletrio, passou por depoimentos lricos,
seguiu a cartilha da pregao partidria, especializou-se na valorizao da regio cacaueira e, por im, estabilizou-se na produo de
crnicas de costumes provincianos.
O foco no social
Ao abordar a questo da infncia abandonada, em Capites
da Areia, Jorge Amado conseguiu captar toda a atmosfera reinante
no perodo do Estado Novo. O texto revela o cotidiano daqueles
meninos, entregues prpria sorte, investindo na prtica de delitos,
construindo uma histria triste e ao mesmo tempo comovente, enim buscando a todo custo uma forma de viver, apesar das adversidades e dos contratempos que surgiam como reao s aes nada
elogiveis por eles empreendidas.
Causa surpresa como o tema, apesar de ter sido concebido em
1937, permanece hoje to atual, como bem frisou o escritor Milton Hatoum, no posfcio da edio de 2009. Soa como uma antecipao do que viria a ocorrer atualmente nas ruas dos grandes
centros urbanos brasileiros, refora ainda Hatoum. Teria sido uma
premonio de Jorge Amado?
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Arnaldo Niskier
Arnaldo Niskier
Depoimentos emocionados
Por ocasio do falecimento de Jorge Amado, eu e o saudoso
Antonio Olinto, como editores do Jornal das Letras, programamos
uma Edio Especial, com depoimentos emocionados de diversas
personalidades. Na capa, numa bonita charge do artista Cludio
Duarte, aparecia o anjo Jorge Amado, com uma asa estilizada,
todo prosa, ostentando uma camisa multicolorida, com livro e caneta na mo, na sua caminhada rumo ao cu.
O poeta Cludio Murilo Leal, por exemplo, assim deiniu o
escritor baiano: Vivo para sempre nos personagens/que criou reinventando a vida,/fundiu erudito e popular duas linguagens /na
mesma prosa gil, alegre, colorida.
O acadmico Carlos Nejar registrou sua opinio atravs de
uma comparao muito feliz: Jorge Amado o Castro Alves do
romance brasileiro. Como ele, trouxe o povo: personagem de sua
gesta. Como o bardo de Navio Negreiro, teve a coragem e o flego
de erguer em grandes painis, os sofrentes, os vivedores, opressores
e oprimidos.
Drio Moreira de Castro Alves, especialista em literatura luso-brasileira, realou de forma contundente a importncia da obra do
autor de Mar Morto: No se pode estudar a literatura do Brasil de
sempre sem dedicar a Jorge Amado a parcela de interesse e ateno
que ele merece por haver interpretado de forma magistral, notvel
e iel o sentimento do povo e da gente do Brasil em todos os nveis.
Veio de Portugal, nas palavras de Antnio Valdemar, da Academia de Cincias de Lisboa, uma airmao forte, sem nenhuma
ponta de mgoa, mas com uma argumentao slida, que trouxe
tona talvez uma das maiores injustias j registradas em nvel de
literatura mundial: Faltou-lhe o Nobel? Sem lgrima de crocodilo,
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Arnaldo Niskier
refernCias
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro Dgua. Rio de
Janeiro: Record, 1979.
______. Capites da areia. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. Cavaleiro da esperana. Rio de Janeiro: Editorial Vitria, 1956.
______. Os subterrneos da liberdade. So Paulo: Martins, 1966.
______. O sumio da santa: uma histria de feitiaria. Rio de Janeiro:
Record, 1988.
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Arnaldo Niskier
ANAIS da Academia Brasileira de Letras. Ano 2001, Vol. 182, julho/dezembro 2001.
BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. So Paulo: Cultrix, 2001.
CANDIDO, Antonio. Brigada Ligeira e outros escritos. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2004.
COUTINHO, Afrnio. As formas da literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Bloch, 1984.
NISKIER, Arnaldo. Comunicao de massa e jornalismo eletrnico.
Revista Brasileira, Academia Brasileira de Letras, Fase VII, Ano I, n 3,
abril a junho de 1995.
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o CHo de CaCau em
Jorge amado
Cyro de Mattos*
omo a civilizao canavieira do Nordeste, de formao familiar patriarcal, o sul da Bahia estabeleceu um modo singular
de vida ao longo dos anos. Formou uma civilizao de caracteres prprios decorrente da experincia histrica, de natureza pica,
que se implantou com a lavoura cacaueira. Menos rica em diversidade cultural do que a civilizao canavieira do Nordeste, fez pouco
uso do brao escravo negro para impulsionar no incio a economia
de bases rurais. Forjado pela mo desbravadora de homens rsticos,
de origens humildes, o complexo cultural da regio cacaueira baiana
desenvolveu-se de maneira independente, embora no se processasse
de forma isolada para a sua consolidao.
Ainda ontem, pouco mais de cem anos, existia nesse cho
baiano do cacau a selva hostil, a mata que dormia no sono milenar
*Cyro de Mattos nasceu e reside em Itabuna, sul da Bahia. Contista, poeta, cronista, autor de livros infanto-juvenis. Publicou 39 livros, para adultos e para crianas. Tem livros tambm editados em Portugal (2), Itlia (2) e Alemanha (1). No
Brasil e exterior recebeu vrios prmios e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Prmio da Associao Paulista dos Crticos de Arte,
Prmio Internacional de Poesia Maestrale Marengo dOro, Itlia, e do Instituto
Piaget de Almada, Portugal. Finalista do Jabuti trs vezes. Participou como convidado do III Encontro Internacional de Poetas da Universidade de Coimbra e
da Feira Internacional do Livro em Frankfurt.
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Cyro de Mattos
Cyro de Mattos
recu-la. Um deus terrvel, a mata, com suas assombraes infundindo medo no corao, nela somente morando o negro Jeremias,
o que vivia com as cobras e fechava o corpo dos homens contra
bala. O feiticeiro com suas pragas e vises, dizendo que cada p de
pau derrubado ia ser um homem derrubado, os urubus tantos que
esconderiam o sol (p.125).
Em Terras do Sem Fim h lugar tambm para o amor, tema permanente em Jorge Amado, representado agora pela histria da ligao
entre o advogado Virglio e Ester, a mulher do coronel Horcio. Mas
a grande arte de Jorge Amado est aqui expressa atravs da superao
dos juzos ideolgicos, construdos na reciclagem inteligente que o romancista imprime s constantes do velho Naturalismo, sempre estruturado com os elementos referenciais de meio, momento e raa. Na
dico potica apoiada nos cordis a que recorre para projetar um vasto mural de cunho pico da civilizao cacaueira baiana, Jorge Amado
alcana com o discurso indireto, s vezes livre, uma das realizaes
mais bem sucedidas a que atingiu a ico regionalista brasileira.
Romancista que narra o que viu, viveu e presenciou, Jorge
Amado usa a experincia pessoal para revelar em Terras do Sem Fim
a situao crtica que certos personagens vivem. Do conjunto de cenas e situaes, que formam o desenrolar objetivo de acontecimentos, o narrador dramtico emerge da expresso latejando sentimentos, vibrante de interioridade. No caso do negro Damio, homem
de coniana de Sinh Badar, certeiro de pontaria, incumbido de
matar o posseiro Firmo na mata do Sequeiro Grande, a tomada de
conscincia desta situao, que sua proisso era matar, sendo assim
a de um jaguno que, quando no havia homens para derrubar na
estrada, ele no tinha nada que fazer (p.80), esse mergulho terrvel em si mesmo acontece no interior do pensamento. Era tambm
um assassino, palavra justa, que o coronel Sinh Badar empregara
a respeito do irmo naquela tarde, quando perguntou a Juca Badar:
Tu acha bom matar gente, negro? Tu no sente nada? Nada por dentro? (p.66). Sentimentos tristes, imagens alitivas, relexes agudas,
pensamentos carregados de dor luem na narrativa hbil para ixar o
estado de remorso do jaguno. No se cumpre a empreitada sinistra, o
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negro Damio preso ao seu desespero erra o tiro pela primeira vez e,
como uma criana castigada pelo destino, vai errar pelos caminhos do
mato com a sua loucura.
O idlio pastoral nasce do desejo de desfrutar a vida em estado
de pureza, como fazem os camponeses e pastores nas suas relaes
com a natureza. Essa concepo utpica para a vida atravessa o Renascimento em convivncia constante com as questes sociais dentro de uma viso genuna do mundo. Em ins do sculo dezoito torna-se veculo de ideias polticas e sociais ambientadas nas cidades.
O poeta e crtico Jos Paulo Paes encontra em Jorge Amado
uma dinmica interna de natureza idlico-pastoral que se processa nos romances Cacau e Gabriela, Cravo e Canela. Sintoma dessa
linhagem pastoral a que se insere o romancista pode ser detectado
em Terras do Sem Fim, com o coronel Sinh Badar, chefe do cl,
que gostava da terra e plantar a terra, de criar nervosos cavalos,
grandes bois mansos, as ovelhas de terno balir, repugnando-lhe
ter de ordenar a morte de homens. Essa viso pastoral do mundo,
em ntima relao com os sentimentos e desejos do coronel Sinh
Badar, desprende-se do nico quadro de parede na casa-sede da
fazenda. Ali se v uma paisagem de campo europeu, ovelhas pastando numa suavidade azul, a camponesa loura e linda bailando,
pastores tocando lauta. Com as cores de paz imensa, azul, quase
cor do cu, por que no haveria de ser assim a vida nessa terra do
cacau?, pergunta o coronel Sinh Badar, antes de decidir dar a
ordem para matar o posseiro Firmo, homem que nunca lhe tinha
feito o mal, uma pena, mas o nico jeito de estender a fazenda pros
lados do Sequeiro Grande... Seno vai cair nas mos de Horcio....
Como se v no romance Fogo Morto, de Jos Lins do Rego, o
regionalismo de Terras do Sem Fim no se restringe descrio de
aspectos exticos da vida e geograia locais, servindo de fundo no
relato de episdios marcados por acontecimentos impressionantes.
No texto que prende, uma realidade tpica aparece sincronizada
com a natureza da ao vivida pelos personagens. O esquema esttico que o autor desenvolve em Terras do Sem Fim, calcado em uma
dinmica formada pelo tempo e modo dos personagens no drama
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Cyro de Mattos
Cyro de Mattos
Cyro de Mattos
refernCias
AMADO, Jorge. Cacau. So Paulo: Livraria Martins, 1959.
______. Terras do sem im. So Paulo: Livraria Martins, 1952.
______. So Jorge dos Ilhus. So Paulo: Livraria Martins, 1961.
______. Gabriela, cravo e canela. So Paulo: Livraria Martins, 1958.
______. Tocaia grande. Rio de Janeiro: Record, 1987.
______. A descoberta da Amrica pelos turcos. Rio de Janeiro: Record,
1994.
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Jorge amado:
fiCCionista, og e oB
Ruy do Carmo Pvoas*
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a doura, o prazer sensual de cada instante e de todas as mincias. Ai, meu Deus, somos faces somadas,
multiplicadas, e dentro de ns, em nosso sangue, as
contradies encontram o caminho da convivncia
(ibidem, p. 28).
Da, no h o que estranhar se a luz que forjou o iccionista forjou tambm o og e o ob. Foi crendo nesta mistura que Jorge
Amado tornou-se povo, num processo de empatia. E s assim o povo
pde constituir-se personagem, na fora criadora de um iccionista
que acreditou na mistura como processo de criar. E foi assim que o
romance naturalista mudou completamente: deixou de ser romance e
transformou-se em epopeia (ibidem, p. 14).
O romancista do povo fundiu-se ao prprio povo e tornou-se
intrprete e arauto de suas lutas e esperanas. E foi nessa condio
que ele se sentou na cadeira de Ob do Ax Op Afonj. O intrprete-arauto no se contentou em ver de longe. Repudiou a viso de
povo massiicado. Cumpria-lhe chegar intimidade de todas as camadas, vivenciar dores e prazeres, lutas e festas, opresses e crenas.
Enquanto as autoridades policiais no Brasil perseguiam as prticas
africanas, a elite econmica espoliava o povo mestio e a classe poltica ignorava, junto com a Universidade, o saber desse segmento,
Jorge Amado foi em busca da vida que palpitava e ainda palpita
entre os que praticam religies e crenas vindas de frica.
O primeiro personagem de renome da cultura religiosa afrodescendente de quem Jorge Amado vai busca Jubiab. Oriundo
das terras de Piranji, atual Itajupe, onde viveu muito tempo, Jubiab tornou-se igura lendria em Salvador da Bahia. Pai de santo de
numerosa prole, igura imbatvel na luta pela preservao dos valores africanos, Jubiab viveu nos tempos difceis, quando imperavam
o arbtrio e a perseguio. Filho de santo dele, Sifrnio abriu terreiro em Ilhus, na localidade do Banco da Vitria, tendo iniciado
um nmero incontvel de pessoas. Pois foi focalizando a igura de
Jubiab que Jorge Amado construiu o Jubiab romance, em que o
personagem torna-se fora de resistncia. Na obra literria, a igura
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presentantes da fora de resistncia. Assim, necessrio reler Jubiab, Mar morto, Os pastores da noite, Dona Flor e seus dois maridos,
Tenda dos milagres, Tereza Batista cansada de guerra, Bahia de todos
os santos, O sumio da santa. Isso propiciaria dar conta da essncia
desses personagens, homens e mulheres que saltaram da vida comum da Bahia, conforme Jorge intitulava a cidade de Salvador, para
a imortalidade literria, a correr o mundo, traduzidos em muitos e
muitos idiomas, embora muitos deles sejam to desconhecidos no
Brasil. Principalmente, reler para que se tome conhecimento das
causas desse desconhecimento.
O povo dos terreiros um povo contador de histrias, de relatos orais que so transmitidos de gerao em gerao. E Jorge
Amado, que se autointitula intrprete e arauto do povo, vai ao seu
encontro, para beber na fonte as histrias que formam a Histria.
Transcrev-los aqui seria recopiar a maioria dos textos amadianos
ou ento sumari-los sem a qualidade que ele lhes impingiu. Duas
histrias, a ttulo de ilustrao, devem ser relembradas: o batizado
catlico feito por um orix e a derrota de Pedrito Gordo. A outra
histria do povo de santo que corre solta pelo mundo a do enfrentamento de Pedro Arcanjo com Pedrito Gordo, no candombl de
Procpio.
Em Tenda dos milagres, no captulo intitulado Da batalha civil de Pedro Arcanjo Ojuob e de como o povo ocupou a praa,
principalmente nas sees de 10 a 21, Jorge Amado narra este fato,
transformando-o em verdadeira epopeia, numa sublimidade de estilo, numa prosa enxuta, rpida e mgica. Outra vez, o intrprete:
um iccionista og e ob, trabalhando artisticamente a histria do
povo contra a opresso.
No depoimento do prprio autor, em discurso de posse na
Academia Brasileira de Letras, h um inventrio feito por ele mesmo, de seus bens, inclusive a cadeira de ob. A citao longa, mas
vale a pena pela sinceridade e pelo lirismo:
Senhores Acadmicos: chego vossa ilustre companhia sem dios e sem rancores. A vida foi generosa
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para comigo, deu-me mais do que lhe pedi e mereci. Pobre de bens materiais, sou rico de muita outra
coisa, muitos bens possuo em meu surro nem sei
como tanto pude merecer da vida. Esposa e ilhos,
que so alegria diria e incentivo maior para o trabalho, pais de toda a dedicao, irmos perfeitos na
amizade. E tenho o mar da Bahia, os coqueiros do
Nordeste, uma granja e uma praia em Pernambuco,
mesa posta em tanta casa por esse Brasil afora, amigos em tantas partes do mundo, tantas mos estendidas e tantos coraes fraternais, saveiros navegando
para o Recncavo, adolescentes que me sorriem e me
contam seus amores, uma roda de capoeira e uma cadeira de ob no terreiro do Op Afonj, a solta cabeleira de Iemanj, as armas invencveis de Oxssi e de
Xang. Tenho o mel e a rosa, a nfora de gua pura, a
farinha e o po, o obscuro metal, um pasto de veludo,
e a lmpida manh de cada dia (1972, p. 12).
A, a declarao de uma forma de conceber o mundo e a vida idntica ao que se pratica entre o povo de santo: uma viso holstica do universo. No h em Jorge Amado duas vises, a do iccionista e a do og
ou ob. Ele o primeiro quando o segundo e vice-versa.
Em So Jorge dos Ilhus, no captulo intitulado A chuva, seo
9, h o desenrolar de duas cerimnias religiosas. Uma, a bno
na igreja de So Jorge, oicializada pelo bispo, e outra, simultaneamente, um batuque de candombl no terreiro de Salu de Oxssi.
Jorge Amado narra as duas passagens, com o mesmo cuidado, com
o mesmo lirismo, com a mesma generosidade.
No segundo fragmento, a narrativa recai sobre uma festa, tambm sob forma de ritual religioso, realizada por populares. O ritual
africano e tambm celebrado em agradecimento pelas chuvas.
Apenas vale dizer que a reverncia especica para cada um
dos atos. Na primeira, o homem fala pela divindade. Na segunda, a
divindade fala atravs do homem. Formas diferentes para expressar
o mesmo valor. Da, os relatos estarem em p de igualdade. o
iccionista que no se livra do og e do ob. a construo de uma
personalidade que no explora em suas obras a palavra democracia,
to corrompida por muitos, e, no entanto, a exercita a todo o momento, num constante fazer que muitos teimam em no enxergar.
Chegar a ser og e ob foi reconhecimento do povo de santo, isto , para esse segmento, Jorge Amado um de seus iguais: a
mesma forma de ver e interpretar o universo e a vida; de encarar o
mundo; de viver o sagrado e o profano; de gostar da existncia e de
lutar pela Liberdade. ele mesmo quem confessa no discurso de
posse na Academia Brasileira:
Quanto a mim, busquei o caminho nada cmodo do
compromisso com os pobres e os oprimidos, com os
que nada tm e lutam por um lugar ao Sol, com os
que no participam dos bens do mundo, e quis ser,
na medida de minhas foras, voz de suas nsias, dores e esperanas. Reletindo o despertar de sua conscincia, desejei levar seu clamor a todos os ouvidos,
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E foi justamente desse povo que Jorge Amado quis ser o intrprete. No s de tal segmento, mas de tantos quantos vivessem semelhante opresso. o que ele confessa ainda no mesmo discurso:
Nunca desejei seno ser um escritor de meu tempo e
de meu pas. No pretendi e no tentei nunca fugir ao
drama que nos coube viver, de um mundo agonizante e um mundo nascente. No pretendi e no tentei
nunca ser universal seno sendo brasileiro e cada vez
mais brasileiro. Poderia mesmo dizer, cada vez mais
baiano, cada vez mais um escritor baiano. E se meus
livros foram felizes pelo mundo afora, se encontraram acolhimento e estima dos escritores e leitores estrangeiros, devo essa estima e esse pblico condio
brasileira daquilo que escrevi, idelidade mantida
para com meu povo, com quem aprendi tudo quanto
sei e de quem desejei ser intrprete (ibidem, p. 14).
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refernCias
AMADO, Jorge. Discurso de recepo a Adonias Filho. In: ______. A
nao grapina. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965.
______. Bahia de Todos os Santos: guia das ruas e dos mistrios da cidade
do Salvador. So Paulo: Martins, 1944.
. So Jorge dos Ilhus. 52. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
. Tenda dos milagres. 37. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.
JORGE AMADO POVO E TERRA: 40 anos de literatura. So Paulo: Martins
Fontes, 1972.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Jorge Amado, Doutor Honoris
Causa. Salvador, BA: Eduba, 1980.
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as lies de
Jorgeamado
Aleilton Fonseca*
orgeAmado(1912-2001) ocupa um lugar especial na cultura baiana e brasileira e, sobretudo, no universo grapina.
Para os autores e os estudiosos da regio cacaueira, sua obra
uma seara rica de temas, achados e sugestes. So lies de como
compreender e interpretar a nossa prpria cultura. No seu centenrio, em 2012, o seu legado torna-se um monumento cultural do sculo XX. Nascido em 1912, na Vila de Ferradas, em Itabuna-Bahia,
em plena efervescncia de formao da regio cacaueira, ilho de
pequeno fazendeiro de cacau,Amado sai de Ilhus aos 11 anos para
estudar em Salvador, no internato do Colgio Vieira, de onde se
transfere para o Colgio Ipiranga. Em 1927, com apenas 14 anos,
j comea a trabalhar noDirio da Bahiae nO imparcial. O jovem
jornalista passa a viver misturado com o povo, nas ruas do Pelourinho e da Ladeira da Montanha, morando de vaga num casaro do
Pelourinho, hoje um hotel, onde uma placa registra sua passagem
por ali. Assim viveu uma fase rica de sua adolescncia. Em 1930,
segue para o Rio de Janeiro, depois de iniciar sua vida literria em
Salvador, ao lado de outros jovens literatos, nA Academia dos Rebeldes, da qual tambm fez parte o poeta grapina Sosgenes Costa,
seu amigo. Comea cedo sua militncia poltica de esquerda. Sua
*Professor Pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, Doutor em Literatura Brasileira pela USP.
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Aleilton Fonseca
As lies deJorgeAmado
Aleilton Fonseca
na Assembleia Constituinte, e foi autor da lei que pune a discriminao de credo religioso e descriminalizou a prtica de rituais de
Candombl, que sofriam perseguio policial na Bahia de ento.
Ao lado disso, avulta a airmao cultural popular e a resistncia coletiva perseguio oicial, quando o povo torna-se personagem principal, ao ganhar voz para airmar e defender seus prprios
valores culturais e simblicos, de forma aberta ou velada, contra a
represso imposta pela cultura oicial. Exemplares disso soromances como JubiabeTenda dos milagres. O grande emblema dessa
luta o personagem Pedro Arcanjo. A o discurso romanesco, como
asseverou Carlos Nelson Coutinho (2000), se ope queles aspectos
da modernidade baseada nos valores europeus aclimatados s convenincias dos bem-postos, das camadas privilegiadas cuja ao
era voltada a negar, extirpar o atraso das chamadas superties
afro-brasileiras. Esse romance a expresso literria dessa luta de
resistncia e airmao, em defesa do direito de expressar sua cultura mestia, seus valores, sua religio, rompendo com os limites da
modernizao conservadora.ParaAmado, conforme suas palavras
em entrevistas e depoimentos, o que contava no era o contedo de
verdade ou no verdade dos cultos afros e seu imaginrio, ou a verdade ou no dessa ou daquela expresso cultural. Mas sim o direito de
todos liberdade de expresso. Assim, o escritor defende que:
O fundamental era assegurar ao povo, sua cultura e
aos seus valores condies de alcanar um pleno protagonismo na construo da sociedade brasileira e, em
particular, de uma cultura autenticamente nacional,
democrtica e pluralista (COUTINHO, 2000, p. 57).
As lies deJorgeAmado
De fato, o romanceGabrielaquebrou a resistncia da crtica conservadora e o escritor baiano passou a ter uma aceitao mais ampla
nos meios literrios oiciais, culminando com sua entrada na Academia Brasileira de Letras em 1961.
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Aleilton Fonseca
Gabrielainaugura a srie de peris de mulher, uma das vertentes fortes da ico amadiana, ampliada com Dona Flor e seus dois
maridos (1966),Tereza Batista Cansada de Guerra(1972) eTieta do
Agreste(1977). Neles, o escritor apresenta, ao lado de outras questes
candentes, a mulher das camadas populares no primeiro plano romanesco, da suscitando discusses em torno da tradio patriarcal de
submisso feminina e a superao disso mediante a desobedincia, o
alheamento, o exemplo e as circunstncias.
A obra deAmadoadmite vrias linhas de abordagem. Nele se
pode estudar o romance de representao e interveno poltica,
confrontando a cena histrica com a criao romanesca, no sentido de captar e esclarecer como o projeto iccional amalgama os
objetivos polticos, como se resolvem ou no os impasses entre a inveno e a realidade, na tessitura iccional, em romances comoCacau,Suor, Jubiab, Capites de Areia. Outra questo importante o
processo de legitimao da cultura popular, veriicando, por exemplo, comoAmadotrabalha as oposies culturais em processo de
transio e amlgama tnico-cultural, estabelecendo pontes entre
estratos sociais distintos, de forma crtica, irnica, carnavalesca
sempre no sentido de legitimar os costumes, o imaginrio, a viso
de mundo das camadas humildes, na direo de um conceito de nacional-popular, contra os preconceitos de classe e a represso castradora. Os romancesTenda dos milagreseO sumio da santaso
representaes diferenciadas da mesma preocupao do autor.
Um tema importante a presena da cultura e do imaginrio
afro-baianos na ico amadiana, em que se pode analisar como o
autor se apropria dos elementos e os consubstancia enquanto fatores internos da ico e como opera a sua valorizao, contra os
preconceitos vigentes, atravs da ao e pensamento das personagens. Jubiab e Tenda dos milagres so emblemticos desse tratamento romanesco.
EmJorgeAmado expressiva tambm a representao da cultura sul-baiana, o universo dos coronis e das lutas de conquista
da terra para o cultivo do cacau em romances que constituem
uma verdadeira sociologia literria da regio, pois que so ricos em
56
As lies deJorgeAmado
registros de linguagem, costumes, imaginrio, onde o elemento humano, as paisagens e a cultura conluem para constituir uma civilizao peculiar.
Outra vertente a representao da mulher, veriicando como os
peris femininos se constroem, em funo de que valores, de que aspectos culturais, que relaes se estabelecem entre essas personagens e
das estruturas patriarcais contra as quais elas se voltam consciente ou
inconscientemente, qual o seu papel na transio de valores.
Os processos narrativos emJorgeAmadoso variados, suscitando estudos centrados na igura do narrador, que procuram observar como se resolve a voz iccional em face da voz autoral militante e os desdobramentos disso no tecido romanesco. Para tanto,
as modernas teorias do narrador seriam as bases necessrias para
a abordagem. J as estratgias romanescas, a tessitura da fabulao
da tese, a feio documental, o compromisso revolucionrio, nos
romances polticos oferecem timas possibilidades de abordagem.
E, nos romances da 2afase, no se pode esquecer a carnavalizao, a
produo do riso, a apropriao do picaresco, possibilitando abordar aspectos de tcnica e criao de linguagem romanesca.A morte
e a morte de Quincas Berro dgua emblemtico dessa possibilidade de estudo.
Pode-se averiguar a ico amadiana em adaptaes televisivas,estabelecendo confrontos e anlises das adaptaes. O sucesso
de Gabrielaem Portugale no Brasil (o romance e a telenovela) j
mereceu vrios estudos, como aquele desenvolvido pelo pesquisador portugus Antnio Freire (1984) que, inclusive, estabelece
comparaes entre o romance e sua verso televisiva.
Outros temas, ainda que secundrios, permitem boa incurso
analtica e interpretativa. Aspectos da narrativa de natureza biogrica sobretudo nos livrosBahia de Todos os Santos,Farda, fardo,
camisola de dormir e Navegao de Cabotagem, este ltimo dado
como anotaes para uma possvel biograia. Tambm as recorrncias do erotismo em sua representao popular e romanesca, em
passagens apimentadas de vrios romances, um tema que pode ser
um objeto de estudo muito interessante, como mostraJorgeAraujo
57
Aleilton Fonseca
(2000). As verses deAmadoem diversas tradues suscitam estudos de aspectos relativos transcriao literria, seus problemas e
solues, no traslado da ico para outras lnguas e culturas.
Ler os romances deJorgeAmado um ato necessrio. preciso observar que o seu valor vai alm do literrio, pois seus livros
so documentos da cultura, em sentido mais amplo. Sua leitura se
impe, seja como lazer e formao geral, como fontes de conhecimento e relexo sobre o Brasil do sculo XX, seja pelo ngulo
dos estudos baianos, no campo das liberdades culturais, e do sul da
Bahia, no campo da formao tnico-econmica, poltica e social.
O estudo sistemtico de sua obra e de sua atuao cultural deve
continuar, a partir das diversas linhas de abordagem e de anlise,
tanto no mbito dos estudos literrios que levem em conta as relaes texto/contexto, como no mbito dos estudos que conduzem a
abordagem textual para uma compreenso mais geral das culturas.
So estudos que se interpenetram e se complementam, dando uma
viso mais profunda da obra do autor baiano. Conforme se observa
no profcuo ensaio de Jorge de Souza Araujo (2012), da somatria
desses esforos que surge e se airma uma nova etapa de estudos da
obra amadiana, cada vez com maior distanciamento temporal, com
mais equanimidade crtica e, portanto, com maior ndice de acerto
e de compreenso de seu valor literrio e cultural.
Como j salientamos (FRAGA, 2012), em grande parte, cabe
aos estudiosos baianos a obrigao de constituir uma voz forte nesses estudos, porque somos ns e a nossa cultura mestia e afro-baiana, nosso imaginrio, nossas marcas tnicas e sociais, os diversos
aspectos de nossa formao, que ali esto representados. Conhecer
e discutir os sentidos da obra deJorgeAmado revelar uma parte
substancial do nosso carter e identidade mestia, da nossa conformao popular, das nossas matrizes ancestrais, da nossa experincia particular no mundo do sculo XX.
58
As lies deJorgeAmado
refernCias
59
61
refernCia
AMADO, Jorge. Os pastores da noite: romance, v.13. So Paulo: Martins,
[196-?].
63
linguagens e aPresentaes/
rePresentaes da oBra
de Jorge amado
Maria de Lourdes Netto Simes*
*Coordenadora Cientica do Grupo de Pesquisa Identidade Cultural e Expresses Regionais ICER/ DLA/UESC. Professora Titular. Doutora (Ps-Doc) em
Literatura Comparada e Turismo Cultural, pela Universidade Nova de Lisboa.
65
segundo escolas e pocas (LE GOFF, 1988; NORA, 1997); reconhecemos o texto literrio da perspectiva de uma antropologia literria (ISER, 1996); ultrapassamos a produo de sentido para uma
proposio, tambm, de produo de presena (GUMBRECHT,
2005, 2010). E ainda, caminhamos com aqueles que discutem as
identidades nas suas vrias nuances e dinmicas (HALL, 2000;
BHABHA, 1998; CASTELLS, 1999; CANCLINI, 2000; BAUMAN,
2001). Buscamos pensar cada fato da cultura como pertencente a
uma complexa rede simblico-cultural e de poder (BOURDIEU,
2003; GEERTZ, 2008; FOUCAULT, 1979) e, tambm, extrair esse
fato de seu contexto usual para ilumin-lo com uma nova luz, que
revela outras leituras, outras linguagens (BURKE, 2005). Buscamos dialogar com a web, as ferramentas computacionais e as imagens (LVY, 2001; SANTAELLA e NOTH, 1999).
No se trata mais de procurar limites cannicos; muito pelo
contrrio, passamos a valorizar a ruptura das fronteiras entre as disciplinas e, consequentemente, entre as mdias. O boom tecnolgico
e miditico do inal do sculo 20 no d mais lugar para um tratamento estanque das mdias ou das linguagens.
Da mesma maneira, alm da literatura como representao, com a valorizao tecnolgica e a questo das pessoas estarem frequentemente on line, podemos constatar a literatura como
apresentao; nesse caso, cresce a tendncia para se ver a literatura, tambm, como processo. A apresentao passa a ser parte
integrante da identidade do homem moderno: ele como que precisa no somente da literatura, mas da arte em geral, para expressar
tudo aquilo que a vida social lhe cobra em tempo real, acontecendo.
Assim, a literatura muitas vezes produzida em tempo real, como
processo (realizada, por exemplo, on line, atravs de blogs e outras
ferramentas proporcionadas pela internet), conigura-se uma extenso simultnea de nossas vidas, em apresentao. Tal ultrapassagem, certamente, no desqualiica a ideia de representao do
imaginrio como iccionalizado; somente conigura outra forma de
processo literrio, concernente com os tempos atuais. Nesse caso,
a palavra literria, plurissigniicativa, acrescentada em dimenso,
67
de edies pela editora Companhia das Letras (uma caixa que rene os quatro livros das mulheres de Jorge, alm de edies especiais,
como o livro indito de cartas que Jorge trocou com Zlia Gattai),
de citar ainda: a regravao da novela Gabriela, Cravo e Canela; o
ilme Capites da Areia, da cineasta e neta do escritor Ceclia Amado; a pea Dona Flor e seus dois maridos, fora exposies, msicas, esculturas... Dentre muitas outras coisas aqui no enumeradas,
cabe ainda lembrar que, neste ano, Jorge Amado foi tema de carnaval
em Salvador; e foi homenageado com o samba-enredo baseado em
suas obras pela escola Imperatriz Leopoldinense, do Rio. A Bahia tem
estado em festa ao longo de todo este ano do aniversrio dos 100 anos
de Jorge Amado. Afora as comemoraes pontuais, no ms de agosto
do seu aniversrio, em Ilhus, foi realizado o Festival Amar Amado,
com palestras, encenaes, teatro, msica, oicinas... Nesse mesmo perodo, em Salvador, onde ele viveu grande parte da sua vida, aconteceram exposies, palestras, espetculos. E so inmeros os colquios,
congressos, seminrios, conferncias; e artigos, comunicaes.
Mas estamos na terra de Jorge Amado, onde a importncia do
escritor, alm de tudo, interfere no desenvolvimento local. Aqui ica
evidente a airmao que iz (SIMES, 1998) do entendimento da
literatura como inluenciada e inluenciadora da histria. O cone
explorado em linguagens e apresentaes/representaes, tambm.
As apresentaes e representaes da obra relacionam cacau
e literatura, numa perspectiva do trnsito turstico. O escritor
potencializado como atrao para a regio. forma de seduzir o
leitor amadiano que resolve um dia visitar as terras iccionalizadas
e se torna turista nas Terras do Cacau, onde convive com os seus
costumes, o seu patrimnio, a sua histria.
Aqui, o cone Jorge Amado est por toda parte. O habitante local busca explorar outras linguagens em valorizao da obra
amadiana, fazendo a sua cidade re-ler a literatura atravs de apelos semiticos. A obra re-apresentada atravs de linguagens vrias: teatro, dana, msica, cinema, fotograia, escultura, pintura,
vdeos-documentrios. Quem visita o Vesvio, pode tirar uma fotograia com o Jorge sentado numa das mesas. A antiga casa do
69
na recomendao de um mais velho sobre os fazeres, saberes, causos, lendas, hbitos, festas, ao da cultura atravs de feiras, comercializao dos produtos, receiturios... Dessa forma, observamos
tradies e hbitos; manifestamos opinies, ideias e atitudes das
comunidades locais, relendo a literatura sul baiana, com nfase na
obra de Jorge Amado. Assim foram produzidas leituras e interpretaes da obra amadiana, em linguagens diversas. representaes
em forma de documentrios, ensaios, artigos, antologias; e apresentaes, atravs de exposies fotogricas, encenaes, palestours, palestras.
Aqui somente cito exemplos. Preiro convidar a todos11para,
logo aps esta mesa, visitarem o nosso stand, no foyer, onde podero constatar as linguagens e apresentao/representaes da obra
de Jorge Amado, realizadas nesta Universidade.
Assim, sugiro que folheiem as pginas do Esteja a Gosto: viajando pela Costa do Cacau em Literatura e Fotograia (2. ed. 2011),
livro que faz conversarem as linguagens literria e fotogrica, onde
a presena de Jorge Amado central. Ou o Grapiunidades: fragmentos postais de um pedao da Bahia (2011), livro objeto, que
busca em linguagem fotogrica, re-apresentar cenas e paisagens
locais, atravs de postais. Ou mesmo que tomem conhecimento
dos estudos reunidos nas antologias crticas Identidade Cultural
e Expresses Regionais (2007) e Expresses Culturais, Literatura e
Turismo (2011), nas quais vrios artigos tratam da obra amadiana,
desde uma abordagem de peris, ambincias, personagens, questes
tnicas e identitrias s relaes da obra e a sua repercusso para o
turismo local.
Convido-os, tambm, para a apresentao da exposio fotogrica Saberes e Fazeres da Comunidade do Rio do Engenho, que
resultou de pesquisa sobre o saber popular, atravs de experincia
de oralidade.
71
refernCias
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Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007.
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72
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TODOROV, Tzvetan. Os gneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch. So Paulo: Martins Fontes, 1980.
73
orge Amado desde a sua apario at hoje o escritor brasileiro mais conhecido, editado e lido em Portugal1. tambm o que mais vezes visitou o pas e o que mais amplas e
profundas ligaes manteve com as suas gentes.
No perodo salazarista, Jorge Amado era para as autoridades
portuguesas um escritor maldito, proibido de entrar em Portugal.
Por isso mesmo, as suas obras no podiam ser ali vendidas, o que
no impediu a sua leitura e divulgao clandestinas. Na dcada de
sessenta, a entrada em Portugal do escritor baiano foi tolerada pelas
autoridades, mas fez-se sob vigilncia mais ou menos discreta. Depois do 25 de abril de 1974, ele pde inalmente passar longas temporadas em Lisboa, tendo tambm viajado muito por todo o pas,
em visita aos numerosos e crescentes amigos que foi fazendo ou
em sua companhia. Alm disso, passou a colecionar homenagens,
prmios e honrarias, entre os quais se destacam o colar e medalho
de Grande Oicial da Ordem de Santiago da Espada (1980) (Foto
1) e o Prmio Cames (1994). Da que Francisco Lyon de Castro,
seu principal editor portugus (Publicaes Europa-Amrica) e seu
caro amigo, reira-se ao
75
E, se nos romances amadianos quase no h referncias a Portugal, a situaes a passadas e a personagens portuguesas, a justiicao pode ser encontrada na dedicao quase exclusiva do escritor
ao universo baiano da regio cacaueira e de Salvador, onde, como
ele mesmo explica, na poca em que se passam as suas histrias, os
portugueses no existiam como imigrantes, embora houvesse sangue portugus misturado com o brasileiro:
Em Ilhus o sangue portugus estava no sangue sergipano, aqui na Bahia no sangue dos mulatos, da gente da Bahia, do povo. Ao lado disso, havia os rabes
[...], imigrantes que tinham chegado mais tarde.
A Bahia foi a capital do Brasil, uma cidade portuguesa. Os portugueses iam para l at uma certa poca, depois isso deixou de acontecer, os portugueses
chegavam s centenas de milhares para o Rio e So
Paulo. Mas no para a Bahia. [...] H na Bahia mil e
poucos portugueses, todos ricos ricos, quer dizer,
no trabalhadores, so pessoas com comodidades
(AMADO, 1992, p. 161-162).
L os vi, sentados no sof, o casal bem-posto, bem-vestido, ele de gravata, ela nos trinques da Galerie
Lafayette, novos senhores. Ainda assim diziam Vossa
Excelncia aos antigos patres, em reverncia diante
dos idalgos; mais difcil mudar por dentro que por
fora (AMADO, 1992, p. 304).
Os vnculos que ligam o autor de Cacau a Portugal so, no entanto, bem mais antigos. Em conversa com Alice Raillard, ele conta
que, tendo trabalhado para a editora Jos Olympio de 1934 a 1937,
tinha certa inluncia na escolha dos livros e brigou muito pelo livro
portugus, recordando:
Naquele tempo havia verdadeiros intercmbios entre
intelectuais brasileiros e escritores portugueses: foi
uma coisa que com o tempo se perdeu muito, mas
que existia ento. Havia um interesse poltico comum, a luta contra o salazarismo. desta poca que
data a minha amizade com Ferreira de Castro e com
vrios outros escritores portugueses.
De uma maneira geral, essa proximidade diminuiu
logo em seguida: actualmente est voltando um pouco, mas est longe de ser aquela fraternidade que
existia entre os escritores do neo-realismo portugus
e os romancistas dos anos 30. Havia grandes trocas,
grandes vnculos, tanto intelectuais, quanto afectivos
(1992, p. 97).
Refere, outrossim, que pouco depois, quando dirigia a coleo Romances do Povo das Edies Vitria, fez publicar A L e a
Neve, de Ferreira de Castro.
Outro dado que mostra a admirao e a simpatia de Jorge Amado pelos escritores portugueses prende-se com a sua candidatura ao
Prmio Nobel. Em 1968, quando a Unio Brasileira de Escritores lhe
props apresentar a sua candidatura Academia Sueca, ele s a aceitou partilhada com a de Ferreira de Castro. Desenvolveu-se ento, no
78
A Editora Livros do Brasil, que comprara, em 1947, os direitos de lanamento de algumas obras do nosso escritor, publicou,
em 1949, Terras do Sem Fim e Jubiab, mas s em 1970 conseguiu
lanar num nico volume Pas do Carnaval, Cacau e Suor, uma
vez que, nos anos 50-60, tanto os romances j publicados como as
demais obras de Jorge Amado estavam proibidos em Portugal. Contudo, em 1958, Francisco Lyon de Castro diretor da Publicaes
Europa-Amrica ousou retomar a publicao da obra amadiana
ao lanar Gabriela, Cravo e Canela. Esse ato de rebeldia obrigou-o
a travar longa e rdua batalha, que incluiu diversas prises, interrogatrios e processos.
tarefa que exige grande esforo e ateno reconstituir o que
representou a leitura da obra de Jorge Amado em Portugal, bem
como precisar a inluncia que ela exerceu sobre vrias geraes, antes e depois de ele ser considerado um escritor maldito.
No garantido que tudo tenha comeado quando, em 1934,
Jorge Amado enviou a Ferreira de Castro um exemplar de Cacau e
este, encantado com o livro, fez-lhe referncia elogiosa numa crnica publicada no jornal O Diabo2 ainda que o autor de A Selva
pensasse que lhe coubera iniciar o vasto conjunto da recepo da
obra amadiana em Portugal e talvez em toda a Europa:
80
E exatamente num desses peridicos O Diabo que o jovem e importante crtico do neorrealismo portugus publica, em
82
novembro e dezembro de 1937, uma srie de trs artigos, que constituem a primeira tentativa de anlise e interpretao mais alargada
e profunda da ico amadiana.
Intitulado, como os outros dois A propsito de Jorge Amado,
o primeiro destes escritos (1937, p. 3 - Foto 4) centra-se em questes tericas sobre a arte e a literatura, tais como a sua inalidade,
sinceridade e valor, o perigo da fuga da vida ou do utilitarismo, etc.
Mrio Dionsio exige para toda a obra de arte uma estrutura realista
e entende o real no apenas como o palpvel, mas como o que ainda
no e ser. Defende que a inalidade da arte revelar o homem,
compreender e orientar a sua marcha. E considera que o romance
tem uma importncia extraordinria, por ser a manifestao artstica mais concreta, saindo imperfeito quando gerado dentro dum
gabinete, pois o escritor deve ter vivido o caso que nos descreve,
deve ter-se emocionado com o problema que nos pe, sentido inteiramente a soluo que nos apresenta. Finaliza o artigo estabelecendo ligao entre as teorias expostas e os romances amadianos
que lhe interessam, de momento, pela sua gradual compreenso
do realismo.
Os dois artigos seguintes3 abordam, portanto, dessa perspectiva, os romances publicados pelo escritor baiano at ento. Para
Mrio Dionsio, em Cacau e Suor se manifesta a primeira noo
de realismo de Jorge Amado e, embora as suas histrias se passem
em ambientes diferentes (campo e cidade), eles se assemelhariam
no tratamento da explorao do homem pelo homem. Em ambos,
o autor teria partido duma ideia poltica e procuraria documentar
a sua opinio, at os ttulos apontando para um panletarismo de
combate. Segundo o crtico, ainda que tudo se passe na realidade
e a linguagem copie a de quem a emprega, as personagens so marionetes, da advindo uma lamentvel confuso entre realismo e
realidade. Mrio Dionsio pergunta, portanto, se estar algum
83
Parafraseando o que disse Joo Lopes sobre a tese de licenciatura de Mrio Dionsio, centrada na obra de rico Verssimo e
datada de 1939, a importncia desses escritos decorre do fato de
o crtico portugus ter feito quase intuitivamente e avant la lettre
interagir sociologia e narratologia, ao colocar o regionalismo de
inteno social do escritor baiano sob o signo da vida contrastada,
85
Mrio Dionsio, [rico Verssimo] Um Escritor Brasileiro, edio de Vania Pinheiro Chaves, Lisboa, CLEPUL, 2011, p. 40.
86
Cumpre observar que o mais importante crtico do Neorrealismo em Portugal jamais poderia aceitar o projeto levado a cabo
por Jorge Amado, no ABC de Castro Alves, e que no estava, provavelmente, capacitado para entender a apropriao de um gnero da
poesia popular brasileira pelo escritor baiano.
A II Guerra Mundial arrefeceu o interesse de Mrio Dionsio
pelo romance brasileiro, mas no impossibilitou que, mais de trinta
87
Em contraposio tambm queles que consideram que a obsessiva ateno dada pelo pblico portugus telenovela Gabriela,
quando o pas enfrentava graves problemas, era uma forma de alienao, Mrio Dionsio sustenta que no possvel
assistir apenas, sem tomar partido, marcha dos
retirantes em confronto com a estabilidade confortvel da boa sociedade de Ilhus, vendo-se bem ali
ao que esta se deve, s manigncias de vrio tipo do
Dr. Maurcio, ao espancamento de Glorinha, destruio da livraria de Fulgncio e aos termos em que
88
Lembrando, por im, o perigo das deturpaes e/ou do esquecimento das obras literrias decorrentes da sua adaptao televisiva
ou cinematogrica, explica que isto no ocorreu com o romance de
Jorge Amado, pois a novela aumentou substancialmente os leitores de
Gabriela, Cravo e Canela, que estava na sua dcima edio portuguesa
quando a novela comeou e vendera 51000 exemplares e ento, ainda bem longe do seu im, j estava na 14 edio, o que signiicava
a entrada no mercado de mais 41000 exemplares. E conclui dizendo
que quer cultural, quer politicamente [...], nada disto indiferente e,
muito menos, prejudicial tratando-se do livro de que se trata (idem,
ibidem).
No plano das relaes humanas e dos afetos que, neste ensaio,
so de particular importncia, cabe ainda referir que Mrio Dionsio foi um dos primeiros escritores portugueses a contatar pessoalmente com Jorge Amado, o que ocorreu em Paris, em 1949, data
em que o nosso escritor era membro do Partido Comunista Brasileiro
e tinha a sua entrada proibida em Portugal. Pode ter sido o segundo
encontro dos dois escritores, o clebre jantar no Aeroporto de Lisboa,
em 12 de fevereiro de 1953, quando o avio que transportava Jorge
Amado a fez uma breve escala (Fotos 2 e 3 j referidas). Desse evento,
Mrio Dionsio conservou, nos seus arquivos, um recorte de imprensa
em que, no dia seguinte, o Dirio de Lisboa o noticiava telegraicamente e dele apresentava a j referida fotograia.
Com trajetrias e formas de ser distintas, Jorge Amado e Mrio
Dionsio tiveram, ao longo dos anos, outros encontros e vivenciaram uma ligao amistosa. Desse relacionamento deve ser possvel
89
Agradeo a Joo Marques Lopes e a Eduarda Dionsio a ajuda prestada na consulta biblioteca e ao esplio de Mrio Dionsio, e a segunda tambm a autorizao para reproduzir alguns dos documentos anexos a este ensaio.
90
amostra no permite seno concluir que ele foi (e ainda ) muito conhecido e apreciado tanto pelo pblico como pela crtica.
Dos laos profundos que ligam o escritor baiano e os seus leitores,
transcreve-se, guisa de concluso, uma passagem de Navegao
de Cabotagem extrada do fragmento em que Jorge Amado relembra a sua primeira sesso de autgrafos em Portugal (Fotos 13 e
14), realizada revelia das autoridades portuguesas que, em 1966,
concederam-lhe um visto de entrada no pas, com a condio de
guardar o anonimato. Essa sesso, realizada s trs da tarde, na
Sociedade de Belas-Artes foi, nas palavras de Jorge Amado
o im do mundo, os leitores abandonaram a clandestinidade, s onze da manh a ila j se estendia rua
afora, dezenas, centenas de pessoas. Escoltado por
Beatriz Costa e Raul Solnado, pelas meninas Eunice
e Zlia, assinei durante horas e horas, perdi a conta.
Havia quem trouxesse malas repletas de livros, todos
proibidos, comprados por debaixo do pano, lidos nos
esconsos das prises, no campo do Tarrafal. Cada
qual tinha uma histria para contar, me lembro de
um camarada que havia lido Capites da Areia transcrito em pequenos pedaos de papel, passados de
cela em cela. Fui acarinhado, ouvi loas que no eram
loas e, sim, ternura, beijaram-me a face e me disseram amigo, companheiro. Se emoo matasse, eu teria morrido naquela sesso de autgrafos em Lisboa
(ibidem, p. 392).
refernCias
AMADO, Jorge. Conversas com Alice Raillard. (Trad. Annie Dymetman).
Lisboa: ASA, 1992.
______. Navegao de cabotagem. Apontamentos para um livro de memrias que jamais escreverei. So Paulo: Crculo do Livro, 1992.
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FOTOS
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Foto 12 - Carto de boas-festas de Jorge e Zlia para Mrio Dionso e esposa (1987).
106
romanCe Brasileiro de 30 e o
neorrealismo Portugus:
o Caso de EstEiros
Maria Aparecida Ribeiro*
1.
107
qual lia Capites da Areia. Por outro lado, para o crtico, o protagonista coletivo existente no texto de Soeiro Pereira Gomes no tinha
lugar na obra de Jorge Amado, onde, em decorrncia das duas situaes anteriores, o contedo revolucionrio no residia "na representao das condies tpicas da resistncia popular ao fascismo e
no aprofundamento da conscincia de identidade e de identiicao
de todos os explorados e oprimidos na base das condies objetivas
da sua existncia e do seu trabalho", mas num "ato de vontade do
romancista". Quereria isto dizer que Amado no izera um romance
que correspondesse s expectativas da nova literatura que sucederia
dos presencistas? Como, ento, explicar algumas das crticas que
adiante veremos?
A discusso em torno das relaes entre Capites da Areia e
Esteiros, porm, no parou em 1976, com lvaro de Pina. Urbano
Tavares Rodrigues, em 1981, recusa a intertextualidade com o livro
de Amado, apoiando o que diz lvaro de Pina, lembra o nome de
Michael Gold, com o seu Judeus sem Dinheiro, como j havia feito
Adolfo Casais Monteiro (1950), e acrescenta:
o que pesa decisivamente no romance o referente
histrico, a vivncia direta da humilhao do homem pelo homem, causa dos ardis, das pirraas, das
aventuras margem da lei, com que os midos da
confraria atenuam e disfaram a sua sorte danada [...]
No foi apenas Soeiro Pereira Gomes quem escreveu
Esteiros; foram a sua gerao, a gente da sua terra de
Alhandra, da fbrica onde trabalhou, a esperana coletiva dos homens e mulheres do seu Partido (RODRIGUES, 1980, p. 24 e 27).
Estas ltimas palavras de Urbano sublinham a posio equivocada que a crtica assumiu ao procurar iliaes diretas entre a
obra de Soeiro e a de Amado: ainda que o romance de Gold tivesse
provocado neste escritor e em Pereira Gomes a resposta de eleger
como personagens crianas e adolescentes de zonas perifricas,
marginalizados ou em vias de marginalizao, personagens que eles
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109
S a ttulo de exemplo: Armando Ventura Ferreira escreveu, sob o ttulo "Modernos romancistas norte-americanos" uma srie de artigos na Seara Nova, entre
1942 e 1943. Julio Quintinha, no artigo anteriormente citado, regista: juntamente com os volumes de autores brasileiros, comearam a vir a montes milhares de tradues de autores estrangeiros"(O Diabo, 31/1/37, p.4).
110
114
Assim tambm acontece n'Os Corumbas: Setembro j fora escasso de chuvas. Os comboieiros do So Francisco, infalveis em
outubro falharam dessa vez. E assim, sem que do cu pingasse uma
s gota, chegou-se a maro (FONTES, 1971)
Esse apagar-se do narrador, porm, no causa o mesmo efeito
dos romances naturalistas, pois algumas vezes e o caso de Vidas
Secas exemplar ele est solidrio com as suas personagens; a
sua viso no uma viso sobre as personagens, mas uma viso
com as personagens, veiculada pelo discurso indirecto livre. s vezes, a distncia entre a voz do narrador, o ponto de vista da narrativa e a focalizao das personagens inexistente. O narrador cola-se
mente dos protagonistas, inclusivamente da cachorra Baleia. Por
vezes, porm, ele se pe de fora, mas de uma forma muito circunscrita s personagens, como se olhasse de cima dos seus ombros, o
que resulta numa espcie de tomada cinematogrica.
Jorge Amado, no entanto, ao invs da penetrao psicolgica
que torna tenso o texto, mostra o lado lrico do narrador e das suas
personagens, sem deixar de lado a assero e a informao prprias
do documento: informao do modo de vida, das lutas e preocupaes das personagens, assero de certos pontos de vista de onde se
descortinam atitudes sociais, reivindicaes e desajustes de classe
(cf. CNDIDO, 1992, p. 51).
2.3 A recepo que o romance brasileiro de 30 teve por parte
da crtica portuguesa indicia diferentes amplitudes no horizonte de
expectativas, tanto por parte dos tradicionalistas, quanto por parte daqueles que lutavam por uma renovao da literatura, mas, de
qualquer forma, revela o que de novo ele veio trazer. Nas pginas
de O Diabo, em 1937, Adolfo Casais Monteiro referia o "realismo
lrico" do autor de Jubiab como uma das tendncias basilares do
novo romance brasileiro" e considerava: "[...] temos visto o romance
na Europa e na Amrica oscilar nos ltimos tempos em busca de
formas apropriadas s exigncias do esprito da nossa poca, que
se harmonizem com formas mais actuais de sensibilidade". E elogiava Jubiab, porque via do "caos de esforos", do "dilema realismo-psicologismo", surgir um "novo mpeto de fora criadora", que
115
trate do feio e tambm o estilo que faa a realidade "potica", enquanto Dionsio lembra com Marx que "quanto mais forado for o
estilo do autor menos convincente ser a sua obra"), o que os dois
crticos observavam de positivo em Jorge Amado era a sua capacidade de mostrar o sonho, como uma propriedade do humano.
Tambm Antnio Ramos de Almeida (Sol Nascente, 15/8/1938)
chamava a ateno para o efeito do sonho na obra do autor de Capites da Areia. E comentando que nela " o sonho que arrasta as
iguras", diferencia-a da de Amando Fontes, onde quem o faz " a
prpria vida, embora em cada personagem exista aquela poro de
sonho que emana de qualquer homem".
O sonho, associado ao heri, aparece nos textos brasileiros de
30. Ele pode ser uma pequena nesga de vida melhor ou uma utopia. Normalmente, ao momento onrico sucede um outro, disfrico,
que revela a dureza da vida da personagem. uma forma cclica,
que tem como efeito o chamar a ateno do leitor para a necessidade de romper o crculo, mas tambm uma forma de mostrar que
o que sustm o homem a esperana, uma esperana sem Deus.
Nesse sentido, Vidas Secas exemplar: a famlia caminha sob um
sol escaldante, mas Fabiano:
Olhou o cu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua
surgiu, grande e branca. certamente ia chover.
Seu Toms fugira tambm, com a seca, a bolandeira
estava parada, e ele, Fabiano, era como a bolandeira. No sabia porqu, mas era. Uma, duas, trs, havia
mais de cinco estrelas no cu. A lua estava cercada de
um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele,
Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta".
119
O que acontecera no Brasil estava a comear a ocorrer em Portugal. Se Amado e Graciliano haviam conseguido uma escrita madura, outros havia como Verssimo a quem faltava ainda o domnio
da tcnica, embora as preocupaes fossem as mesmas. Todos porm,
como observa Mrio Dionsio, "acabam por se encontrar" na busca da
"substituio do letreiro pela coisa". isso que justiica o fato de Redol,
como j se viu, ter encontrado escrito por Amando Fontes o romance
que por certo "nunca chegaria a escrever".
a ausncia disso que motiva as acusaes a Esteiros por
aqueles que no buscavam uma nova forma de romance.
refernCias
ALMEIDA, Antnio Ramos de (Nov.1939) As Sete Partidas do Mundo:
romance de Fernando Namora. Presena, ano XII, srie II, n1.
______. O romance brasileiro atravs dos seus intrpretes. Sol Nascente,
15/8/1938.
______. O meu amigo Z Lins. Jornal de Notcias. Suplemento Literrio,
22/12/1957.
ALMEIDA, Jos Amrico. A bagaceira. Rio de Janeiro: Liv. Jos Olympio,
Joo Pessoa: Secretaria da Educao e Cultura do Governo do Estado da
Paraba, 1978.
ALMEIDA, Jos Maurcio. A tradio regionalista no romance brasileiro
(1857-1945). Rio de Janeiro: Achiam, 1981.
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121
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Das preliminares
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Benedito Veiga
Amado era um iliado s hostes partidrias do PC, recm-chegado ao pas, em setembro de 1942, retornando do refgio poltico
na Argentina e no Uruguai, por ser adversrio da ditadura de Getlio Vargas, no poder. A sua volta e engajamento no plano da Unidade Nacional do governo esto vinculados declarao de guerra
do Brasil ao bloco eixista, como recorda o cronista em Aniversrio
da Hora da Guerra: Um escritor brasileiro que se encontrava no
estrangeiro, voltou ao seu pas mal lhe chegou a notcia da declarao de guerra. Voltou para ocupar um posto de luta, acreditava que
nenhum brasileiro poderia deixar de vir cumprir com o seu dever
perante a Ptria (AMADO. Hora da Guerra: 23 dez. 1943).
Amado, em sua coluna uma pequena trincheira , rediscute algumas ideias que permaneciam na Europa, desde os ins da Primeira Grande Guerra e incios da Segunda, quando as tradicionais
naes europeias, como a Gr-Bretanha e a Frana, coadjuvadas
pela Polnia, Finlndia, Holanda e outras, nutriam-se de reservas
excludentes frente a Unio Sovitica, que havia derrubado o Imprio Czarista e apontava para uma nova forma popular de governo,
deixando de lado as presses da aristocracia remanescente, como
os bares da Prssia, e da pequena burguesia poderosa, como as
citadas quarenta famlias francesas.
Essas ideias vo ganhar corpo com o incio dos avanos do III
Reich alemo, baseado nos princpios hitleristas de mando e, em
especial, com os encontros de Munique, de 1938 e o afastamento
da Unio Sovitica da mesa de consultas , que decretam sob o
comando da Frana, Gr-Bretanha e Itlia , por exemplo, a aceitao das pretenses nazistas: o im da Checoslovquia e a retomada
dos Sudetos.
Isso vai fazer surgir a procura de ligaes polticas entre a
Unio Sovitica e a Alemanha, vigentes at a invaso das fronteiras
soviticas pelos hitleristas, em meados de 1941.
Nas crnicas amadianas, a expresso muniquismo aparece
como uma das marcas ideolgicas do autor, sobretudo como um sinal das tentativas de afastar a Unio Sovitica das decises e de dar
flego ao nazifascismo, em qualquer campo que seja. Foi com essas
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Benedito Veiga
Dos judeus
Considerados um dos responsveis pela civilizao ocidental,
marcada pelos traos greco-romano-judaico-cristos.
Em Solidrios Com a Vossa Dor?..., Amado faz uma ligeira
introduo aos sofrimentos dos judeus, via nazismo, nesta Guerra.
O cronista defensor da miscigenao dos povos, como j iccionalmente visualizara em Jubiab, de 1935, e escreve:
Hoje, todos os que tm sangue judio nas suas veias,
dedicaro as horas a recordar e a honrar os que tombaram sob o gume do machado nazista ou que perecem
na morte lenta dos campos de concentrao. Estamos
solidrios com a vossa dor, israelitas, ns que jamais
levantamos o problema cretino de raas, ns, os brasileiros que abrimos as portas do nosso pas a todos
aqueles que queiram nos trazer a cooperao do seu
trabalho (AMADO. Hora da Guerra: 4 fev. 1943).
So os horrores do incio das perseguies ao povo judeu; perseguies agigantadas com a invaso da Polnia, em 1939, e com
a tomada do gueto de Varsvia, em 1940, sob a alegao de que
poderia servir de abrigo ilegal para quem desejasse viajar para a
capital polonesa. Conforme consta do ensaio de Juan Vsquez, O
Massacre de Katyn e o Gueto de Varsvia, a respeito desse abrigo
forado de judeus:
[...] O permetro foi inicialmente delimitado por arame farpado, deixando os jardins e diversos espaos
verdes no exterior.
[...] No gueto, aglomeravam-se, inicialmente, cerca
de 400 mil pessoas. Apesar de ocupar 5% da rea da
127
Benedito Veiga
Dos ciganos
Pela vida livre a que se acostumaram, tomados pelos ditos hitleristas, erroneamente, como braos desocupados e bocas vazias,
portadores de caractersticas multimilenares, como o desejo de
serem independentes, com uma independncia que transcende a
vontade coletiva de criar uma ptria, como se fosse um dado de
aprisionamento e perda da liberdade. Segundo Amado, em Os Livres
Ciganos, Eles vo, bando vagabundo e estranho, de terra em terra, lendo a sorte dos outros, roubando nas noites, soltos e livres como os teus
cabelos [amiga] (AMADO. Hora da Guerra: 18 jun. 1943).
Hitler, num dio mortal, como aiana Amado, se lanou contra os ciganos da Europa contra a vagabundagem dos ciganos ,
numa luta desigual contra toda a sorte de liberdade, mesmo que
seja a dos sem recursos. Para o nazifascismo, os ciganos e os judeus
so iguais, representam a mesma coisa, e devem ser igualmente destrudos.
O fhrer e seus capangas s distribuam a desgraa e a fome
pelo mundo afora, justo que odeiem e persigam os ciganos, que
queiram terminar com a raa bomia e livre, porque eles querem
terminar com a liberdade e o sonho (AMADO. Hora da Guerra:
18 jun. 1943).
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Dos doentes
Entre os perseguidos pelo nazifascismo, Amado ainda considera os congenitamente insanos ou deicientes, includos entre os
associais marginalizados.
Em Em vez de um madrigal, o escritor inicia mostrando o
caso do Hospcio de Sapogov, na Unio Sovitica, relatando o envenenamento de mil loucos, contando o fato a uma ictcia amiga que o
acompanha, procedimento repetido em diversos de seus textos:
Agora, que recebi notcia tuas, queria te escrever um
madrigal. Porm, como faz-lo, amiga, se os jornais
falam do caso do Hospcio de Sapogov, herosmo
nazifacista? No te poderei escrever um madrigal,
sero severas e tristes minhas palavras. No te poderei falar de amor quando os nazis esto soltos,
assassinando.
[...]
Eram mil os loucos no Hospcio de Sapogov, nas
proximidades de Kursk. E os nazis descansaram
dos combates e dos saques, rindo felizes gargalhadas. Era uma deliciosa e grotesca pilhria, bem digna deles. Nazis se rebolaram em gargalhadas, nazis quase morrem de rir, nazis se devertiam nessa
pndega colossal. Sim, amiga, eles o izeram. Parece
impossvel imaginar, parece incrvel que seja verdade. Mas os nazifacistas envenenaram mil loucos do
Hospcio de Sapogov. Eram mil doentes que os mdicos e as enfermeiras cuidavam. Eram mil loucos,
inocentes da guerra, trancados nos seus sonhos.
Ficaram ali cadveres, burlesca brincadeira nazi,
alegres gargalhadas (AMADO. Hora da Guerra: 29
jun.1943).
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Benedito Veiga
Das crianas
Dos atingidos pelo nazifascismo, nenhum grupo se compara
ao das crianas. Amado, em vrias crnicas, preocupa-se com elas.
Em Natal das Crianas Mrtires, comea o percurso:
Na Europa dominada pela besta pag, a festa crist
do Natal, a festa da paz familiar, do aconchego de todos os lares, os ricos e os pobres, ser apenas uma
lembrana nostlgica de dias melhores. Na Europa
pisoteada pela bota assassina de Hitler no possvel
a sombra boa de Papai Noel debruada sobre o leito
inocente das criancinhas (AMADO. Hora da Guerra,
25 dez. 1942).
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morenas, tmidas e afoitas, olhos tristes e olhos risonhos, quatrocentas cabeas rolaram sobre o solo, cortadas pela espada desonrada dos nazistas (AMADO.
Hora da Guerra: 11 fev. 1943).
Das mulheres
Outros dos atingidos pelo nazismo foram as mulheres, como
aparece no texto E o Arianismo?. O iccionista d sua viso do
tratamento dispensado ao feminino pelo nazifascismo, destacando
a marcante diferena sexual estabelecida no regime:
O nazismo foi antes de tudo contra as mulheres. Degradou a mulher alem, transformando-a em simples
mquina de procriar. Quando Hitler subiu ao poder
o problema dos desempregados era dos mais graves
da Alemanha. O nazismo honra-se muito de hav-lo resolvido. Mas como o resolveu? Proibindo o trabalho feminino numa srie de ofcios, mandando as
mulheres para casa e colocando nos seus lugares os
homens desempregados (AMADO. Hora da Guerra:
5 mar. 1944).
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Benedito Veiga
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Benedito Veiga
Dos homossexuais
Amado no se preocupa com todos os casos de perseguidos ou
atingidos pelo movimento nazifascista, muito embora os debatedores
desse instante de desvio mental do homem retratem o problema da
homossexualidade mostrado por inmeros estudiosos e historiadores.
So exemplos textos como o de Alexander De Grand, em A
Itlia fascista e a Alemanha nazista, que escreve sobre o assunto,
mostrando que o homossexualismo era tratado como uma prtica
em desvio, um procedimento que, como o aborto, tinha que sofrer represso: Em 1936, o chefe de polcia e lder da SS, Heinrich
Himmler, abriu uma repartio para combater o homossexualismo
e o aborto (DE GRAND, 2005, p.106).
Ou mesmo Ian Kershaw, em Hitler: um peril do poder, apresenta os nazistas tratando o homossexualismo como um ato antissocial: Os judeus, uma minscula minoria malquista, foram
submetidos ao terror. Os ciganos, os homossexuais, os mendigos
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refernCias
AMADO, Jorge. Hora da Guerra (Natal das crianas mrtires). O Imparcial,
Salvador, p. 3, 25 dez. 1942.
______. Hora da Guerra (A poesia tambm uma arma). O Imparcial,
Salvador, p. 3, 31 dez. 1942.
______. Hora da Guerra (Tempo do heri). O Imparcial, Salvador, p. 3, 12
jan. 1943.
______. Hora da Guerra (Solidrios com a vossa dor?...). O Imparcial, Salvador, p. 3, 4 fev. 1943.
______. Hora da Guerra (Estes eue matam crianas...). O Imparcial, Salvador, p. 3, 11 fev. 1943.
______. Hora da Guerra (Honra e orgulho do jornalismo). O Imparcial,
Salvador, p. 3, 11 mar. 1943.
______. Hora da Guerra (Refugiados polticos). O Imparcial, Salvador, p. 3,
12 mar. 1943.
______. Hora da Guerra (Os livres ciganos). O Imparcial, Salvador, p. 3, 18
jun. 1943.
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Benedito Veiga
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a histria da literatura brasileira, h um momento especialmente marcado pela presena do chamado romance proletrio. O lanamento de Cacau (1933), de Jorge Amado, um
desses romances e teve grande repercusso entre os crticos
literrios e, tambm, entre a polcia carioca que o apreendeu. Por interveno direta de Oswaldo Aranha (ento, Ministro do Exterior),
o livro foi liberado 24 horas depois. Alm das discusses pelas quais
passava a "literatura proletria" no Brasil, a apreenso do livro contribuiu para o seu sucesso de vendas: a primeira edio, de maio de
1933, contou com 2.000 exemplares e se esgotou em um ms, tendo
na segunda edio, julho-agosto de 1933, 3.000 exemplares.
*Professora Adjunta de Histria Contempornea na Universidade Federal de Alagoas, Doutora em Histria pela UNICAMP.
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fbrica de seu pai. A percepo das injustias do mundo aprofundou-se quando, aps a morte do pai, a famlia tem que vender a
propriedade e vai morar perto da vila operria Cu com bunda
(AMADO, s/d, p. 105). J com um pouco mais de idade, foi trabalhar na fbrica que fora de seu pai, sentindo um certo orgulho
em ter se tornado operrio. Sendo despedido, resolveu trabalhar
em outra cidade, chegando fazenda de cacau onde se desenrola a
maior parte do romance.
O coroamento da percepo de um mundo injusto, j no desfecho da histria, aparece no captulo intitulado Conscincia de
Classe (AMADO, s/d, p.160-162). O ttulo j sugere muito do que
Jorge Amado pretendia. Nesse ponto, revela-se para Sergipano a
atitude do companheiro de trabalho nas roas de cacau, Colodino,
que fugiu da fazenda quando o patro o mandou matar outro trabalhador. Essa atitude de Colodino foi, para Sergipano, causada por
sua conscincia de classe. Algum tempo depois, Sergipano recebe
uma carta de seu amigo Colodino, j instalado no Rio de Janeiro:
[...] Venha embora pra c, Sergipano. Aqui se aprende
muito. Tem resposta para o que a gente se perguntava
ahi. Eu no sei explicar direito. Voc j ouviu falar em
lucta de classe? Pois h lucta de classe. As classes so
os coronis e os trabalhadores. Venha que ica sabendo tudo. E um dia a gente pode voltar e ensinar para
os outros [...] (AMADO, 1933, p. 162).
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O Homem do Povo foi um jornal fundado em maro de 1931, por Patrcia Galvo
e Oswald de Andrade. Pagu, alm de desenhar as ilustraes do jornal, editava
a coluna A mulher do povo, na qual a vida cotidiana das mulheres da aristocracia paulista, da pequena burguesia e das mulheres catlicas eram agrupadas
ironicamente sob a legenda Liga das trompas catlicas, em que denunciava a
explorao das mulheres pobres para sustentar o tipo de vida dessas mulheres
abastadas. Ver: Palamartchuk, Ana Paula. Ser intelectual comunista... Escritores
brasileiros e o comunismo. 1920-1945. Campinas, Dissertao de mestrado, Histria/IFCH/Unicamp, 1997, pp. 75-77.
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malandros, vagabundos... A misria o leitmotiv: ratos caminhando pelos corredores escuros do casaro, o suor dos trabalhadores
infestando cada canto, mulheres que lavam roupas para sobreviver,
bbados encostados nas escadas, prostitutas oferecendo seus corpos por um pouco de comida, crianas barrigudas correndo, o banheiro infestado de sujeira e insetos, os quartos cheirando a mofo...
O carter escatolgico do romance d vida, cheiro e movimento aos
personagens e ao enredo (DUARTE, 1996, p. 63).
A luta dos inquilinos contra o proprietrio do casaro , em princpio, travado por moradores que no conseguem pagar o aluguel. As
doenas causadas pela sujeira do casaro, as mortes que ocorrem e as
visitas da Sade Pblica e dos mata-mosquitos tornam-se elos que,
ao contrrio da desumanizao dos moradores, os une:
- Camaradas! preciso acabar com as exploraes.
Ns somos muitos, pobres, sujos, sem comida, sem
casa, morando nesses quartos miserveis. Explorados
pelos ricos, que so poucos... preciso que todos ns
nos unamos, para nos defender... Para a revoluo
dos operrios... preciso que os operrios se juntem
em torno do seu partido, para acabar com as exploraes... Com os governos podres e ladres... Fazer um
governo de operrios e camponeses... Olhem para o
caso de Joaquim [...] (AMADO, 1934, p. 210).
Aparentemente perdido entre tantos casos de mortes e acidentes, o im de Joaquim liga-se diretamente ao desfecho do romance. lvaro Lima, operrio e morador do casaro, explica aos
outros moradores a necessidade de unio dos explorados para a
luta contra os exploradores. Ele um dos organizadores da greve
da companhia de bondes e buscava adeses entre outros setores
operrios. Dias antes do incio da greve houve uma batida policial
no casaro. Levaram muitos operrios. Os moradores do casaro
mobilizaram-se pedindo a liberdade dos presos. Escreveram panletos, organizaram comcios. Todos os moradores amontoaram-se
em frente ao casaro como se estivessem amotinados, e quando
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A noo de um mundo poltico dividido entre direita e esquerda ganha contornos claros na crtica literria. a transposio de
deinies e demarcaes poltico-partidrias e institucionais para
a criao literria, a criao de um campo literrio nos moldes
da poltica tradicional. No mesmo artigo de Jurema, o romance de
Jorge Amado pertence ao grupo daqueles deinidos como proletrios. E deine o romance como um documentrio, cuja fora est
em retratar, no aquilo que o autor gostaria que fosse, mas sim a
vida cotidiana dos despossudos de Salvador.
romance proletrio no Brasil e inluncias soviticas
No mesmo nmero da revista, h uma nota assinada por Edison Carneiro, sobre o romance recm-publicado pela Unitas, Os
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libertos, de Daniel Fibitch, na qual retoma a classiicao de romance proletrio que a crtica imputou ao livro. Discordando da
classiicao, expe sua deinio:
No vejo por onde se pode chamar este romance, um
romance proletrio. O tema burgus. [...] o esprito
burgus a caracterstica de todos os tipos do livro
[...] A massa, essa fora annima que impulsiona o
progresso na Unio Sovitica, no existe. O trabalho
produtivo no entra na linha de conta. O romance
gira no mundo burgus, que poderia ter como pas
qualquer um menos a Unio Sovitica (CARNEIRO,
1934).
O fato de ambos tomarem como referncia o romance Cimento na construo de suas respectivas crticas informa que este o
romance proletrio exemplar. A comparao de ambos com o romance russo teve sua razo. Cimento foi publicado em 1925 e foi
considerado o primeiro romance proletrio e o primeiro romance
sovitico. Algumas obras de referncia atribuem a M. Gorki a grande inluncia de Gladkov, algumas consideram o autor de Cimento
um seguidor de Gorki. Cimento narra o heroico esforo dos trabalhadores, depois da Primeira Guerra, para reconstruir o pas, sair da
misria e ediicar o socialismo.
A trajetria de Fiodor Vasilievich Gladkov tambm bastante
signiicativa do ponto de vista de um militante exemplar. Nasceu
147
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Aprendeu com Z Camaro, capoeirista e malandro, que a liberdade est em no trabalhar, est em no manter a tradio negra
de servir. Com Jubiab, pai de santo, aprendeu, atravs das histrias
que ele lhe contava, que a liberdade estava na manuteno da tradio religiosa de seus antepassados africanos.
Depois que a tia que o criava morreu, Baldo foi morar na casa
de um comendador. Persuadido por Augusta, moradora do morro,
que vendia rendas esposa do comendador, este resolveu ajudar
o menino rfo. Pouco tempo, no entanto, Baldo icou nesta casa.
Manteve, desde a sua chegada, uma grande admirao por Lindinalva, ilha do comendador, e uma relao conlituosa com a criada
da casa, Amlia. Quando o comendador o colocou em uma escola
pblica, por exemplo, e logo foi expulso por malandragem, ouviu-se o comentrio venenoso de Amlia de que negro uma raa que
s serve para ser escravo, no nasceu para aprender coisa alguma. E
foi pelos comentrios venenosos de Amlia que Baldo fugiu da casa
do comendador.
Um dia, sentado na escada da cozinha, olhava para Lindinalva
que costurava. Amlia soltou um grito, airmando que Baldo estava olhando para as coxas da moa. Todos acreditaram em Amlia.
Baldo sentiu que foi desacreditado por ser um negro e, a partir de
ento, comeou a manifestar seu dio contra os brancos.
Ainda criana, Baldo mendigava nas ruas. Mas voltava sempre
ao morro para visitar pai Jubiab e seus outros amigos. Comeou a
frequentar a Lanterna dos Afogados, bar no cais do porto, com Z
Camaro. Aprendeu a tocar violo e a fazer sambas, que eram comprados por poetas da parte rica da cidade. Alm de excelente capoeirista, Baldo era um grande boxer, ganhando algum dinheiro com suas
150
151
transformam em mediadores na construo de um saber (conscincia) do trabalhador. Em Jubiab, esta preocupao aparece claramente. Um dia, quando pai Jubiab foi visitar Baldo, que ainda
morava na casa do comendador, contou-lhe a histria de Zumbi:
- Isso foi h um mundo de tempo... No tempo da escravido do negro... Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito... Zumbi tambm apanhava. Mas l na terra que ele tinha
nascido ele no apanhava. Porque l negro no era
escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e danando. [...] Os brancos iam l buscar negro. Enganavam negro que era tolo, que nunca tinha
visto branco e no sabia da maldade dele. [...] Branco
s queria dinheiro e pegava negro para ser escravo.
Trazia negro e dava em negro com chicote. Foi assim com Zumbi dos Palmares. Mas ele era um negro
valente e sabia mais que os outros. Um dia ele fugiu,
juntou um bando de negro e icou livre que nem na
terra dele. A foi fugindo mais negro e indo pra junto de Zumbi. Foi icando uma cidade grande de negros. E os negros comearam a se vingar dos brancos.
Ento os brancos mandaram soldados pra matar os
negros fugidos. Mas soldado no se agentava com
os negros. Foi mais soldado. E os negros deram nos
soldados. [...] A foi um mundo de soldados mil vezes maior que o nmero de negros. Mas os negros
no queriam mais ser escravos e quando viu que perdiam, Zumbi pra no apanhar mais de homem branco se jogou de um morro abaixo. E os negros todos
se jogaram tambm... Zumbi dos Palmares era um
negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte
igual a ele, negro no tinha sido escravo... (AMADO,
1935, p.44-45).
154
Sobre as relaes entre a obra de Jorge Amado e a questo do negro no Brasil ver,
em especial:
GOLDSTEIN, Ilana S. Literatura e identidade nacional: o Brasil bestseller de Jorge Amado. SP: Dissetao de Mestrado, Antropologia/FFLCH/USP, 2000; ROSSI, Luiz Gustavo F. As cores da revoluo. A literatura de Jorge Amado nos anos 30.
Campinas: Edunicamp/Annablume/Fapesp, 2009.
155
Ao naturalismo brbaro e sexual anexou-se a pecha de comunistas para alguns escritores e suas obras. A despeito das acusaes, o debate enveredava pelo terreno moral. Astrojildo Pereira,
em uma crtica ao romance Vertigem, do diretor de Boletim de Ariel,
Gasto Cruls, faz a defesa dos comunistas em relao ideia de
156
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158
Introduo
ntre os anos de 1946 e 1956 o escritor Jorge Amado combinou sua atividade literria com uma intensa militncia
poltico-partidria. Primeiramente como deputado constituinte, posteriormente como representante do Partido Comunista
do Brasil (PCB), no Movimento Mundial dos Partidrios da Paz,
o romancista baiano foi uma das personalidades pblicas de maior
proeminncia do comunismo brasileiro nos anos 40 e 50 do sculo
XX. Esta atividade poltica pblica tambm teve como uma de suas
manifestaes, a colaborao constante de Amado com as publicaes peridicas do PCB. No curso de perodo considerado, foram
publicados por ele diversos textos polticos e de crtica artstica e
literria no jornal A classe operria (rgo central do partido), bem
como nas revistas culturais Fundamentos e seiva. Datam tambm
deste perodo a publicao, pelo autor, daquelas que so consideradas suas obras mais engajadas politicamente e mais problemticas
do ponto de vista literrio, como o livro O mundo da paz e a trilogia
Os subterrneos da liberdade.
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Z Brasil, lanado pela Editora Vitria, em 1947, e publicado sob a forma de folhetim na Tribuna Popular. Em 1948 foi republicado pela Calvino Filho, em uma
edio ilustrada por Candido Portinari.
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Muniz Ferreira
Cf. MORAES, Dnis de. O imaginrio vigiado A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro, Jos Olympio Editora, 1994 e
RUBIM, Antnio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil. In:
RUBIM, Antnio Albino Canelas & MORAES, Joo Quartim de (orgs). Histria
do marxismo no Brasil. Campinas: UNICAMP, 1998.
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Muniz Ferreira
Tambm neste periodo (anos de 1951-1955) Jorge Amado foi o principal editor
do jornal cultural Para Todos, que, no entanto, no ser objeto de considerao
neste trabalho.
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vista das relaes mantidas pelo escritor com o partido bolchevique russo, antes da revluo e naquele momento com o PCUS.
O artigo ilustrado por uma fotograia que mostra o autor de A
Me ao lado de Stalin , tendo ao fundo prateleiras de livros. Atravs de um depoimento de Lenin, enfatizado o pertencimento de
Lenin social-democracia russa. Uma declarao de Gorky sobre
as correspondncias que receberia dos operrios de toda a URSS
apresentada como evidncia do carter proletrio da literatura
produzida pelo escritor russo/sovitico. Foi o primeiro artigo de
Jorge Amado encontrado at agora dedicado crtica literria.
Porm, seu contedo, os argumentos apresentados e os critrios
adotados pertencem muito mais ao universo da poltica e da
ideologia do que crtica literria.
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Esta matria reitera uma constatao j sugerida na matria sobre o Congresso de Wroclaw: Jorge Amado era no apenas
o grande quadro cultural do PCB neste perodo, mas o expoente
oicial da participao do partido no movimento internacional dos
partidrios da paz. Condio que antecipa e de certa forma explica
a posterior elaborao de seu O Mundo da Paz (1954).
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A Alucinante Orquestra14
Relata a visita do autor ao Instituto de Folclore da Repblica
Popular Romena. Ideias principais;
- Os comunistas enquanto depositrios de uma esperana
ilimitada.
- A obra do Instituto Romeno, no sentido de recolher e preservar as manifestaes da arte e da cultura popular do pas balcnico.
- Com a constituio da repblica popular na Romnia e na
Hungria (mencionada incidentalmente no artigo) e o empreendimento da construo socialista, ocorreram modiicaes na forma
e no contedo das manifestaes folclricas. De expresses do sofrimento e da luta dos povos, as canes populares passaram a veicular
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Stalin Imortal17
O artigo de Jorge Amado abre o nmero especial da revista Fundamentos em homenagem a Stalin. Atravs da reao imaginria de
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Fundamentos, N. 39 1955.
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os mdicos Digenes e Epaminondas, os retirantes Jernimo e Jucundina. Critica implicitamente tambm o chamado romance de
tese francs, ao dizer que, diferentemente deste tipo de objetivao literria, a obra dos novos literatos do continente americano se
notabilizaria por dar vidas aos personagens, deixando ao leitor o
encargo de formular juzos sobre as situaes narradas, ao invs de
oferecer tais julgamentos j prontos ao leitor.
, em suma, um interessante exerccio de crtica literria, que,
de certa forma, j antecipa o papel que o autor (Ehrenburg) desempenharia no debate cultural sovitico nos anos do degelo e da
desestalinizao.
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congratulaes e boas-vindas enviadas ao escritor baiano pelo presidente da seo baiana da Associao Brasileira Democrtica dos
Escritores (ABDE), Adroaldo Ribeiro Costa, e outra Mensagem dos
Intelectuais, assinada por um coletivo que inclui do ex-integralista
e editor do Imparcial, Wilson Lins, aos comunistas Nelson Schaun,
Jos Gorender, Luiz Henrique Dias Tavares, entre vrios outros.
Na segunda pgina da matria, aparece uma entrevista feita
pelo pintor Jos Pancetti. Neste entrevista, concedida pelo escritor
na casa de seus pais, no Rio de Janeiro, Amado fala de sua saudade da Bahia, relata os avanos da construo socialista na Polnia, Tcheco-eslovquia e Unio Sovitica, das transformaes
estruturais experimentadas pela China sob o regime da democracia popular (A velha China dos coolies acabou-se), e informa ao
pintor Pancetti, que o nome deste e o de Cndido Portinari seriam
includos na prxima edio da Enciclopdia Sovitica, sendo eles
os primeiros pintores brasileiros a igurar na obra. Por im, Pancetti, informa que continuavam as perseguies do governo brasileiro
contra o escritor, particularmente em consequncia da publicao
de seu livro O mundo da paz.
Como retribuio pelas congratulaes e boas vindas recebidas, Jorge Amado endereou um telegrama ao presidente da seo
baiana da ABDE e outro a Wilson Lins. O texto do telegrama enviado ao j ento deputado udenista diz o seguinte: Agradeo a voc e
a todos os demais amigos, o afetuoso telegrama. Sinto-me feliz em
encontrar-me no Brasil e espero poder muito breve abra-los a,
pessoalmente. Muito obrigado. A) Jorge Amado.
refernCias
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Brasileira, 1979.
FALCO, Joo. O Partido Comunista que eu conheci. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1988.
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Muniz Ferreira
180
na trilHa do negro:
PoltiCa, romanCe e
estudos afro-Brasileiros
na dCada de 1930
Gustavo Rossi*
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Gustavo Rossi
Jorge Amado teria em si um tal dom de simpatia que ir se tornar povo e, pela primeira vez, o povo ir poder expressar-se na literatura brasileira com personalidade
prpria (BASTIDE, 1972, p.42). Dentre os trabalhos que se debruaram mais pontualmente sobre o negro e a questo racial em diferentes momentos da literatura de
Jorge Amado, ver, por exemplo, os trabalhos de Gregory Rabassa (1965), Teilo de
Queirs Jnior (1982), Komoe Gaston Yao (1996) e Antonio Olinto (1999). Sobre
a mestiagem brasileira na obra do romancista baiano, vista especialmente a partir
de um debate sobre o tema da identidade nacional, consultar os trabalhos de Ilana
Goldstein (2000) e de Roberto DaMatta (1997a, 1997b).
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Deste modo, elegendo como foco de anlise a literatura de Jorge Amado dos anos de 1930, este texto pretende apreend-la a partir de um duplo registro: de um lado, busca-se remontar um quadro
de referncias sobre os debates que informaram as concepes e os
signiicados mobilizados por Jorge Amado ao formular seu projeto
como produtor dos chamados romances proletrios, de outro, evidenciar a maneira como as ices do social plasmadas nos romances Jubiab (1935), Mar Morto (1936) e Capites da Areia (1937)
dialogaram com a questo racial do perodo, destacando o tratamento dispensado pelo autor aos repertrios extrados do universo
simblico afro-brasileiro2. Vistas em conjunto, estas duas frentes
visam fornecer um maior controle interpretativo do material literrio em questo, sem os quais corre-se o risco de desentranh-lo
do universo social e histrico que o viu nascer.
* * *
Impulsionado pelas expectativas familiares de ver o primognito formar-se doutor, Jorge Amado muito cedo se transferiu de
Salvador para o Rio de Janeiro em inais de 1929, a im de cursar os
preparatrios da Faculdade de Direito: se no desse certo, voltaria
no inal do ano (AMADO apud GOMES & NEVES, 1990, p.30).
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Na Faculdade estava muito ligado ao grupo da esquerda comunista Carlos Lacerda, ento lder principal da Juventude Comunista, era um amigo ntimo, estvamos constantemente juntos (AMADO apud RAILLARD, 1990, pp.51-52).
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Aqui, um primeiro e importante ponto a ser destacado diz respeito ao ncleo de sentidos em torno do qual Jorge Amado modelou a prtica de seu romance proletrio. Escorado em intensos
debates que se travavam nos jornais e peridicos literrios da poca
em torno das publicaes e tradues pr-soviticas de autores
russos, alemes, franceses e norte-americanos que surgiam no mercado editorial brasileiro (ALMEIDA, 1979 e PALAMARTCHUK,
2003), o romance proletrio colocava em pauta as possibilidades de
existncia de uma literatura ajustada aos interesses da classe operria e trabalhadora. Uma arte que, para recuperar uma expresso
de Oswald de Andrade, deveria ser capaz de desbancar o velho
psicologismo burgus, deslocando o lugar do indivduo como eixo
e valor na produo literria, e assim conceder existncia esttica
s coletividades oprimidas e ideologicamente pertinentes para a revoluo 5. Doutrinrio e panletrio por deinio, o romance proletrio se realizava como um exerccio formal que buscava, antes
de qualquer coisa, fazer valer os contedos e os valores polticos
implicados na sua execuo. Ainal, alm de canalizar os discursos
e as palavras de ordem revolucionrias, esta arte social e proletria precisava tambm conferir plasticidade e rendimento estticos
aos prprios modos de pensar e agir vivenciados por Jorge Amado
e pelos comunistas no mbito da militncia. Em especial, aqueles
pontos mais sensveis do imaginrio das chamadas revoluo, nucleados em torno da luta de classes, da agitao e mobilizao das
massas proletrias e da nfase e prevalncia do coletivo em detrimento do individual.
186
Segundo Jorge Amado, algumas das questes mais signiicativas que distinguiriam o romance proletrio do romance burgus
icavam por conta, sobretudo, da tcnica, do estilo e da inteno
do escritor porta voz da classe explorada: uma literatura de
luta e revolta. E de movimento de massa. Sem heris, nem heris
de primeiro plano [...] sem enredo e sem senso de imoralidade, ixando vidas miserveis sem piedade mas com revolta. mais crnica e panleto [...] do que romance no sentido burgus [fazendo]
do leitor um inimigo da outra classe (AMADO, 1933b, p.292). E
ainda, complementava Amado: Hoje, poca do comunismo e do
arranha-cu, da habitao coletiva, o romance tende para a supresso do heri, do personagem [...] O drama de um nico sujeito no
interessa. Interessa o drama coletivo, o drama da massa, da classe,
da multido. Tudo tem importncia decisiva. O mnimo detalhe, a
personagem mais sumida (Idem, 1934, p.50)6.
Cacau e Suor (1934), por exemplo, materializaram por inteiro o receiturio literrio invocado por Jorge Amado nos dois artigos acima citados, plasmando
romances de narrativas geis, com poucos repousos sobre cenrios ou introspeces de personagens, e de deslocamentos abruptos de uma ao a outra, a exemplo de instantneos fotogricos ou de closes cinematogricos (DUARTE, 1996,
p.65). E justamente em razo da velocidade com que o narrador move sua objetiva, o resultado acaba sendo closes quase sempre desfocados, borrados ou deformados dos miserveis sociais: desta gente que surge indistinta e sem rosto que
a humanidade proletria que se move [...] nas ruas escuras [...] Gente sem pai...
Gente sem nome... Filhas da Puta (AMADO, [1934] 1986, pp.141-42). Tratava-se de procedimentos que podiam ser igualmente observados em outro romance
proletrio da poca: Parque Industrial: romance proletrio, de Patrcia Galvo,
ou Pagu, publicado em 1933, anteriormente s investidas de Amado no gnero.
Ainda que distintos quanto ambientao e aos grupos sociais tratados, Cacau
(trabalhadores rurais), Suor (lumpenproletariado de Salvador) e Parque Industrial (proletariado industrial de So Paulo) guardavam fortes relaes estruturais
no que diz respeito a um tipo de fragmentao narrativa que pretendia desestabilizar a ideia de personagens ou heris principais, de modo que aes, dilogos
e movimentos tendem a gravitar em torno de uma rgida geograia composta por
apenas duas categorias sociais: exploradores e explorados ou burgueses e proletrios. Ao mesmo tempo, nos trs romances pode-se acompanhar um movimento
narrativo modular e ascendente na direo da conscincia de classe, atravs
187
Gustavo Rossi
do qual os conlitos da trama desguam na grande festa dos proletrios: a greve, momento em que todos lutam. No h indivduos. So todos proletrios
(GALVO, [1933] 1994, p.77). Diferente de Jorge Amado, no entanto, Pagu teve
seu romance proletrio refutado tanto pela crtica literria da poca quanto pelo
prprio PCB. Para uma anlise da complexa e delicada equao entre renome,
autoridade cultural, corporalidade e gnero na vida e obra de Pagu, bem como
no campo intelectual brasileiro da poca, conferir Heloisa Pontes (2010).
188
Sobre as experincias de Amado, ainda rapazola, junto de Arthur Ramos, Edison Carneiro e do grupo Academia dos Rebeldes, ver as memrias do escritor
(1992, pp.71-72). Sobre as inlexes culturalistas nos estudos afro-brasileiras
nos anos de 1930, ver Hermano Vianna (1995), Olvia Gomes da Cunha (1999),
Mariza Corra (2001 e 2003).
189
Gustavo Rossi
Sou daqueles que no acreditam na arte pela arte, no romance impoltico [...]
O que no se admite so os que querem agradar a todo mundo, a Deus e ao
Diabo, se colocando na cmoda posio de romancistas puros e sem cor poltica
(AMADO, [1935]1988, pp.262-63 nfase minha). Estou ciente de que Jorge
Amado no discutiu ou problematizou gnero em sua produo iccional, o
que seria, no mnimo, anacrnico, ao imputar uma categoria que no fazia parte
do universo histrico, social e mental do autor. Deste modo, quando airmo que,
nos romances analisados neste texto, possvel problematizar lexes de gnero,
estou lidando com certas categorizaes veiculadas em sua narrativa que, seguindo as relexes de Marilyn Strathern, se fundamentam em imagens sexuais
[...] pelas quais a nitidez das caratersticas masculinas e femininas torna concretas as ideias das pessoas sobre a natureza das relaes sociais (2004, p.20).
190
10
Como ser visto na sequncia, este tipo de abordagem da questo racial no foi
exclusividade de Jorge Amado. Outros intelectuais comunistas se valeram de
aspectos histricos e culturais associados aos negros para invocar seu suposto
potencial revolucionrio.
191
Gustavo Rossi
corpos, passando a ser deinida mediante apropriao e ao agenciamento de repertrios culturais especicos, bem como em razo
de seus pertencimentos s classes marginalizadas e exploradas. O
que parecia estar em jogo para Jorge Amado neste momento era
uma ideia de que no se negro, mas se est negro: a identiicao
ou o sentimento de pertencimento a uma raa se explicita mediante
as posies especicas ocupadas pelos sujeitos na estrutura social e
no campo das lutas polticas. Ainal, como airmava o narrador nos
momentos inais de Jubiab: a greve era dos condutores de bondes,
dos operrios das oicinas e fora e luz [...] tinha at muito espanhol
entre eles, muito branco [...] mas todo pobre j virou negro (AMADO, [1935]2000, p.278 nfases minhas).
Este movimento enegrecedor que o escritor emprega em seus
personagens marginalizados ganha maior nitidez, por exemplo, no
romance Capites da Areia, na medida em que coloca como protagonista um menino isicamente branco. Disposto a salvar uma
esttua sagrada coniscada pela polcia de um candombl do qual
era prximo, o personagem Pedro Bala provoca a sua prpria priso para ter acesso sala onde se encontrava o artefato religioso, e,
assim, devolv-lo me-de-santo. Entretanto, o sucesso da empreitada de Pedro Bala em salvar a esttua do orix somente foi possvel
em funo de sua cor social. Figura conhecida por liderar o maior
grupo de meninos de rua da cidade, os Capites da Areia, o personagem consegue escapar ileso da empreitada, j que sabiam dele
apenas que tinha um talho no rosto [...], mas o pensavam maior do
que era em verdade e tambm faziam idia de que [Pedro Bala] devia ser mulato (AMADO, [1937]1991, p.91). O narrador joga com
as possibilidades disjuntivas da raa, da cor e da classe, ao submeter
o personagem a uma situao que desestabiliza os sentidos supostos ou esperados da relao entre essas categorias naquele contexto
social, deslizando o signiicado de mulato para um plano que no
est dado de antemo pela corporalidade. A informao quanto
brancura fsica do heri em nenhum momento (so)negada, no
entanto, ela parece ser tomada como um aspecto secundrio e de
menor relevncia mediante esta outra raa que, existindo no plano
192
Gustavo Rossi
11
Talvez seja interessante mencionar que toda a estrutura narrativa de Mar Morto
teve como mote um entrecho mtico sobre o nascimento dos orixs, o qual podia ser consultado nos trabalhos de etnograia religiosa da poca, como os de
Arthur Ramos e Edison Carneiro, e mesmo nos estudos mais antigos de Nina
Rodrigues.
194
como raa e como classe, ento, faz sentido falar nas cores da revoluo, j que para o romancista a revoluo era como a voz de
um negro [...] uma voz que vem de todos os pobres [...] que chama
para lutar todos [...] Voz poderosa como nenhuma outra [...] Voz da
liberdade (AMADO, [1937]1991, p.229). Assim, nesta ico social
e poltica da realidade brasileira foi o negro masculino que emergiu
enquanto representao ideal do sujeito revolucionrio amadiano.
O homem racializado pela cor de sua posio social e a mulher enegrecida e masculinizada pelas exigncias do carter revolucionrio.
* * *
Parece claro, neste sentido, que no foi por razes to somente
literrias e tampouco por seu dom de simpatia pelo povo (BASTIDE, 1972) que Jorge Amado se apropriou da temtica racial. Tal
como Amado, uma srie de outros escritores e militantes do PCB,
tais como Edison Carneiro, Carlos Lacerda e Aderbal Jurema, se
mostraram igualmente dispostos a construir seus retratos do negro brasileiro, convertendo-o, em maior ou menor medida, numa
espcie de cavalo de santo ideal para a entronizao ou personiicao das ices sociais que amparavam a luta revolucionria 12. E
embora fossem poucos, no deixaram de ser extremamente signiicativos e dignos de nota ensaios como Insurreies negras no Brasil, de Aderbal Jurema, o romance Jubiab, de Jorge Amado, e O
quilombo de Manoel Congo, de Carlos Lacerda (1914-1977). Todos
12
Ou, nos termos de Bourdieu, os esforos em tornar eicaz a magia social das
delegaes de representao e de instituio de porta-vozes. Magia atravs da
qual se disputa a legitimidade e a eiccia simblica do poder de se identiicar
com e de falar em nome de outros grupos ou entidades sociais (o povo, a nao,
o Estado, os negros, os proletrios etc.): o porta-voz dotado do pleno poder de
falar e agir em nome do grupo e, em primeiro lugar, sobre o grupo pela magia
da palavra de ordem, o substituto do grupo que somente por esta procurao
existe; personiicao de uma pessoa ictcia, de uma ico social, ele faz sair do
estado de indivduos separados os que ele pretende representar (1989, p.158 nfases minhas).
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13
O livro de Carlos Lacerda, O Quilombo de Manoel Congo, por razes que desconheo, foi originalmente publicado sob o pseudnimo de Marcos. Contudo,
pode-se aventar a hiptese de que Carlos Lacerda estivesse seguindo alguma
orientao partidria. Vale dizer que, no ato de fundao da ANL, coube a Carlos Lacerda a leitura do manifesto que props o nome de Lus Carlos Prestes
(ento em Moscou) como seu presidente de honra (CASCARDO, 2007, p.466).
196
O trecho acima, mesmo no sendo, poderia perfeitamente servir de epgrafe ao romance Jubiab, de Jorge Amado, sem qualquer
prejuzo compreenso de seu projeto literrio e poltico. A trajetria do negro Balduno, tendo como cenrio a Roma africana, Salvador, era seno o esforo sensvel de Amado para dramatizar este
processo de transformao explosiva do potencial revolucionrio
197
Gustavo Rossi
14
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202
do PoPular ao erudito:
a Histria dos Pedros arCHanJos
Flvio Gonalves dos Santos*
ersonagem criado por Jorge Amado, Pedro Archanjo protagoniza o romance Tenda dos Milagres, que se passa nas
ruas de Salvador entre o inal do sculo XIX e as quatro
primeiras dcadas do sculo XX. A narrativa do romance possui
dois tempos. O primeiro marcado pela chegada Salvador do
Dr. Levenson, um etnlogo de renome internacional, em busca de
informaes sobre um escritor baiano at ento desconhecido ou
ignorado pela intelectualidade local. Esse fato provoca uma srie
de homenagens de ltima hora e a busca pela histria do ilustre
desconhecido. A partir da se descortina uma espcie de feedback
revelando o universo e os personagens com que a igura dramtica
se relacionava.
Archanjo, em conjunto com os demais afro-brasileiros do romance, estava em um processo constante de conlitos com os poderes constitudos, quer pela persistncia em participar das festividades do carnaval, a despeito das proibies, quer mantendo-se iel ao
culto dos Orixs, apesar da represso policial ou pela discordncia
das idias racistas dos doutores da Faculdade de Medicina. Foi esta
ltima posio que levou Pedro Archanjo a escrever livros que o
203
tornaram conhecido do Dr. Levenson. Esses conlitos representavam a guerra onde estava em jogo a sobrevivncia fsica, cultural e
material dos afro-brasileiros.
Em sua trajetria, Archanjo circulou por diversos ambientes
da Cidade. Malandro, verstil, vadio e inteligente, ele foi uma tentativa de resumir o tipo fsico e comportamental dos afro-brasileiros
que habitavam a Bahia no perodo de que trata o livro. Durante o
desenrolar da trama, alguns elementos do interesse deste trabalho
se fazem presentes. Dentre eles, destacam-se a disputa entre a cultura popular e a chamada cultura erudita; a represso s tradies
africanas e as manifestaes pblicas por elas inspiradas; a exaltao do mestio e da miscigenao; e, por im, o processo de transio por que passa Pedro Archanjo, no sentido de deixar de ser um
crente e convicto no mistrio do candombl para se transformar
em um intelectual a servio do povo pobre.
[...] Tomo a incumbncia, me Pulquria, obrigao de Ojuob e prazer de amigo, com uma condio: fao de graa, no aceito pagamento, no
me ofenda, minha Me. Pensou consigo: se ainda
acreditasse no mistrio, se no houvesse penetrado o segredo da adivinha, talvez pudesse, crente e
convicto, receber dinheiro do santo [...] (AMADO,
1989, p. 304).
das do sculo XX. Entretanto, ainda que imerso no universo cultural das ruas de Salvador, o Ojuob de Xang est destacado dele por
sua forma mais crtica e consciente de perceber esta realidade. Ele
habita aquele ambiente por ser seu de origem e tambm por opo,
mas est ali como um estudioso, sempre a tomar notas do que v,
ouve e vivencia. Porm, um estudioso comprometido, tornado estudioso por fora do seu envolvimento.
Entendo que a atribuio desse comportamento a Archanjo responde a um anseio de Jorge Amado de se posicionar em relao s
discusses da dcada de 1960 sobre uma crtica dialtica da cultura
popular. Nesse momento de crtica, h uma valorizao do conceito
de alienao, e as crenas populares eram vistas como obstculos para
a humanizao das massas por serem fatores alienantes. Elas estariam
envoltas em um misticismo fatalista e passivo, que submeteriam as
massas ao jugo econmico e dominao burguesa.
Essa forma de percepo das crenas populares e o credo na
passividade inerente ao povo perceptvel nos ilmes de Glauber
Rocha, particularmente Barravento, Terra em Transe, e em Os fuzis, este de Rui Guerra. A noo comum que permeia essas trs
obras e Tenda dos Milagres a de que a luta pela libertao do
povo sempre iniciada por pessoas exteriores comunidade (ou,
generalizando, ao povo), um intelectual ou algum que vem (ou
v) de fora, com um olhar mais crtico e que reage com estranhamento ou distanciamento com relao ao credo dessa comunidade (ou desse povo).
Assim, na lgica desses intelectuais da dcada de 60, para defender-se, o povo havia que se distanciar de suas crenas e tradies irracionais. A razo impunha esse distanciamento (XAVIER,
1983M pp. 17-43; CARVALHO, 1990).
Entretanto, assim como em Barravento, em Tenda dos Milagres o
que salta aos olhos so justamente aqueles elementos que conscientemente seus autores criticaram, mas que funcionam como elementos
congregadores, como amlgama das solidariedades populares.
Archanjo, ao se converter em uma liderana que conduzia
o seu povo, e ao exercer esse papel, passou por um processo de
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est sublinhada a caracterstica do negro saber o seu lugar e, mesmo quando este era possuidor de alguma qualidade ou dote particularmente desejvel, associada a essa caracterstica deveria estar a
discrio e a humildade (AZEVEDO, 1996, pp. 67-70), caractersticas essas, que ao que sugere Antonio Vianna, sobravam em Manoel
Querino.
Deveras, essa caracterstica comportamental de Manoel Querino se que ela existiu aceitvel e desejada aos olhos da elite, o
faz distanciar-se de Pedro Archanjo. Este ltimo j vaticinado nas
primeiras pginas do livro de Jorge Amado, antes mesmo de sua
histria comear, como: Pardo, paisano e pobre - tirado a sabicho
e a porreta (AMADO, 1989, p. ix). Seguramente caractersticas
opostas s apontadas no estudo de Talles de Azevedo.
Sado ou no das maltas de capoeira, o fato que Querino
descreve uma trajetria que o leva do anonimato, a que estava relegado a grande maioria de escravos e ex-escravos de sua
poca, para figurar entre os maiores estudiosos baianos de seu
tempo, estudando e, mais que isso, empunhando a bandeira da
contribuio do africano civilizao brasileira. Poderamos dizer sobre esse ponto que Querino foi mais afortunado que Pedro
Archanjo no reconhecimento de sua contribuio intelectual.
Talvez porque, alm da seriedade de seus estudos, seu suposto
comportamento discreto o tornasse, apesar de suas idias, mais
palatvel.
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Entretanto, apesar dessa inluncia, a partir de sua participao no I Congresso Afro-brasileiro, organizado por Gilberto Freyre
e realizado em Recife no ano de 1934, que dison Carneiro resolveu
aprofundar seus estudos sobre o negro e, particularmente, sobre as
manifestaes populares de origem africana. Assim, empolgado e
ao mesmo tempo decepcionado com o Congresso de Recife, pela
ausncia nele de respeito aos espaos prprios de manifestao da
cultura afro-brasileira, Carneiro, juntamente com Aydano Couto
Ferraz e Reginaldo Guimares, organizaram em 1937 o II Congresso Afro-brasileiro em Salvador.
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O que pode ser mais irritante aos olhos das elites republicanas
e ps-escravistas que um afro-brasileiro metido a porreta, isto ,
que sabe se impor, e se impe, por suas qualidades pessoais? E tirado a sabicho, ou seja, que possui e utiliza com competncia os
sinais diacrticos e informaes da cultura erudita?
A irritao provocada pelos tirados a sabiches tambm
registrada no estudo de hales de Azevedo, j referido. Embora
nele o autor se reira a um perodo posterior aos marcos deste
trabalho, ele revela a existncia de certa irritao entre denominados brancos, assim como, entre os ditos negros contra afro-brasileiros que possuem alguma posio ou habilidade especial.
Espera-se deles uma certa modstia e comedimento. O fato de
desviar-se do consenso ou se impor perante uma situao estava
associado, para as elites, a indivduos que sabem o seu lugar e nas
camadas populares provocavam profundos ressentimentos (1996,
p. 69).
Mais uma vez o jornal O Tempo oferece um exemplo desse
comportamento, ainda associado ao artigo A Bahia caloteira!
Depois da nota publicada no dia 15 de outubro de 1919, o autor do artigo que gerou tanta consternao ao jornalista de O Tempo, que inicialmente duvidara da autenticidade da assinatura do
artigo, surpreende-se por saber que o Professor Cincinnato Franca
conirmara ser de sua autoria o A Bahia caloteira!, e volta o ataque
nos seguintes termos:
[...] Hoje, porm devidamente autorizados pelo pae
do monstrengo, que disto tem garbo e faz alarde nos
bondes, nas quitandas, nas feiras de Itapagipe, declaramos sem nenhum constrangimento, que o artigo
em questo da lavra do sr. Professor Cincinnato
Franca[...]
Do que se deve admirar o leitor no das asneiras do
mestre-escola, por que ainal de contas intelligencia
e saber no so coisas que se possa introduzir na cachola do individuo fora de martelo e escopo [...] (O
TEMPO, 1919).
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Quitandas, bondes e feiras, estes no eram territrios de convivncia das camadas populares, espaos tambm de manifestao
dos costumes e valores da cultura afro-brasileira?
E concluiu o jornalista o seu repdio da seguinte forma:
[...] Eis o perigo a que esto sujeitos os rebentos do
nosso professor Cincinnato Franca, que alm de pernstico insuppervel, atrabiliario e grosseiro, vista
do que destroem por completo a fama de que immerecidamente vinha gosando tambm um nullo, um
para no dizer tudo incompetente (idem).
Para fechar...
Foi nesse ambiente cheio de convenes e de expectativas com
relao conduta dos afro-brasileiros que Manoel Querino e dison Carneiro desenvolvem as suas obras. Cada um, ao seu modo,
tentou demonstrar o papel dos afro-brasileiros na formao sociocultural do Brasil.
E um dos aspectos mais relevantes, no meu entender, da obra
de Jorge Amado a sua sensibilidade para compreender e registrar,
com cores fortes, mas no irreais, os contextos e dramas vividos pelos seus personagens. Da a sua muito bem justiicada e fundamentada relevncia para literatura e para a cultura brasileira. Sua escrita
no era a escrita de um homem do povo, mas de um militante, de
um intelectual cooptado pela cultura (e pelas classes populares), revelando a trajetria inversa da de Pedro Archanjo.
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refernCias
AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. Rio de Janeiro: Record, 1989.
AZEVEDO, Talles de. Elites de cor numa cidade brasileira: um estudo da
ascenso social x classes sociais e grupos de prestgio. Salvador: EDUFBA/EGBA, 1996.
XAVIER, Ismail. Serto Mar: Glauber e a esttica da fome. So Paulo: Brasiliense, 1983.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A ideologia em Barravento: estudo
de Roteiro. Salvador: Centro de Estudo Baianos da UFBA, 1990.
GUINZBURG, Carlos. O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
GUERREIRO, Goli. Mapa em preto e branco da msica na Bahia: territorializao e mestiagem no meio musical de Salvador (1987/1997). In:
SANSONE, L. e SANTOS, J. T. (orgs.) Ritmos em trnsito: socio-antropologia da msica baiana. So Paulo: Dynamys Editorial; Salvador: Programa a Cor da Bahia e Projeto S.A.M.B.A., 1997.
OLIVEIRA, Waldir F. e LIMA, Vivaldo da C. Cartas de dison Carneiro a
Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. Salvador:
Currupio, 1987.
PeridiCos
A Tarde, Salvador, 26 de junho de 1981.
A Tarde, Salvador, 14 de outubro de 1919.
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Rita Chaves
de algumas mudanas na nossa forma de encarar o lugar do continente africano reforam tal convico.
A assinatura da Lei 10.639 em janeiro de 2003, a organizao
de alguns eventos e uma certa sacudida no plano editorial so para
mim sinais da permanncia e da vitalidade de uma relao que resistiu at mesmo determinao das nossas elites, sempre despertas
e empenhadas em diluir os traos da frica em nossa formao econmica e cultural. No difcil compreender que isto tenha acontecido. Na sua equao, a das elites, a cultura que conta era tributria
da importao europeia. E na produo da riqueza basta contar o
capital; o trabalho e deve permanecer na rea da subalternidade,
quer dizer, no silncio.
As contradies desse lado de c ns conhecemos bem e conhecemos tambm, de certo modo, a dimenso, sempre discutvel,
dos nossos intelectuais e de nossos escritores, seja de que lado da
barricada eles se tenham colocado nesse itinerrio complicado da
nossa histria. E uso o termo discutvel, no no sentido redutor, mas
como atributo do que no se calciica. Mas esse nosso conhecimento pode tambm ser fermentado se estudamos um pouco a projeo
do Brasil em imagens diferenciadas, na formao do pensamento
nacionalista de pases como Angola, Cabo Verde e Moambique.
Principalmente atravs da literatura, mas no s, da cultura brasileira, que desempenhou um forte papel no processo de conscientizao de muitos setores da intelectualidade africana, fornecendo
parmetros que se contrapunham ao modelo lusitano. Socorro-me
j da palavra autorizada de Mia Couto que com a tranquilidade que
o caracteriza reconhece:
A nossa dvida literria com o Brasil comea h sculos, quando Gregrio de Mattos e Tomaz Gonzaga
ajudaram a criar os primeiros ncleos literrios em
Angola e Moambique. Mas esses nveis de inluncia foram restritos e no se podem comparar com as
marcas profundas e duradouras deixadas pelo baiano
(COUTO, 2011, p.61).
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Rita Chaves
Ex-colnia portuguesa, o pas, para onde tinham vindo tantos africanos, oferecia-se como uma referncia importante. Aos
olhos dos africanos, o Brasil emergia como um espao onde se
projetavam os sonhos de uma sociedade ainda limitada pelas leis
da excluso colonial. Principalmente entre os anos 40 e a dcada
de 50, quando reforou-se a contestao do colonialismo, o roteiro de construo da identidade cultural incorporava sugestes
associadas a um universo que na evocao de aspectos de uma
histria comum apontava para a possibilidade de um presente
mais alentador.
Como decorrncia da circulao de ideias e informaes ou
apoiados simplesmente no plano das sugestes ditadas pela afetividade, setores intelectualizados ou segmentos populares buscavam no
Brasil traos de inspirao e/ou elementos de compensao para as
insuicincias do cotidiano. A distncia favorecia a disseminao de
imagens que, mesmo sem lastro na realidade, produziriam resultados
positivos para o processo de transformao que os africanos reclamavam. A impresso desse pas, ameno, quase paradisaco, surgia como
uma fora capaz de catalisar faculdades ainda adormecidas nas terras
africanas. O entusiasmo do cronista angolano Ernesto Lara Filho
emblemtico:
Sou uma espcie de brasileiro. Um angolano, nascido em Benguela, ilho de pai minhoto. Um portugus
de Angola, que conhece melhor Erico Verssimo,
Jos Lins do Rego e Graciliano Ramos do que Ea de
Queiroz e Aquilino Ribeiro.
Sou um angolano capaz de sentir o Brasil, capaz de
recitar de cor um poema de Manuel Bandeira, capaz
de sambar com inteno ao som de uma marchinha
de Luiz Gonzaga, ouvindo o bater ritmado dum tambor com acompanhamento de reco-reco. O mesmo
reco-reco que foi exportado no bojo das caravelas
com os escravos de Angola. Sou capaz de entender
to bem uma noite de luar, uma noite de batuque,
como Catulo da Paixo Cearense.
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A dimenso desse comrcio intervinha na organizao econmica, e repercutia vivamente na ordem sociopoltica e cultural das
duas margens. Na intensidade desses luxos forjava-se a convergncia
de procedimentos, hbitos, formas de viver. Os laos ultrapassavam o
horizonte da economia e penetravam na dimenso da cultura. Selava-se, embora sob a violncia da explorao extrema, no se pode esquecer, uma aproximao com marcas indelveis nas nossas histrias.
Embora a relevncia de Angola seja inquestionvel, o sentimento
expresso na crnica de 1960 tambm se manifestava nas duas costas
africanas, e tocava intensamente o Arquiplago de Cabo Verde. Por
cima das enormes diferenas entre as terras ocupadas pelo colonialismo lusitano, multiplicavam-se formas de representao do Brasil,
com ressonncia indiscutvel no projeto de transformao em curso.
A partir dos anos 50, a atividade literria ganha vigor nas ex-colnias
e os laos de parentesco que podemos identiicar entre literatura e
sociedade no Brasil seriam considerados pelos escritores africanos e
enfatizados na constituio de sua prpria histria literria.
Noutras palavras, se a Literatura Brasileira caracterizada por
uma associao com o nosso processo poltico, em se tratando das
Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa a relao quase simbitica, o que no signiica, entretanto, um simples aparelhamento
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Rita Chaves
procurava-se criar outros universos de referncia que se contrapunham padronizao imposta pela ordem colonial.
Os africanos vivenciavam a diiclima situao de recuperar marcas de um tempo anterior fratura colonial e, ao mesmo
tempo, investir numa ideia de futuro que no poderia renunciar
modernidade. A fora da invaso colonial e a desagregao que
dela decorreu colocavam um conjunto de dilemas, entre os quais a
urgncia de lidar com um instrumental terico constitudo fora de
seu universo cultural. O Estado-nao era um desses conceitos a
que recorreram para embasar suas lutas.
A certeza de que era preciso romper com os valores da metrpole levava certeza de que era preciso buscar outras referncias. A
cultura brasileira apresentava-se, ento, como uma rica hiptese de
interlocuo. Evidentemente, no se pode acreditar que o nosso repertrio cultural alterou o panorama das ex-colnias portuguesas,
porm, cabe reconhecer que com base nesse luxo seriam dinamizadas as discusses que possibilitariam uma mudana, inclusive, nas
relaes internas.
Sem desconsiderar o peso de outros repertrios, como a literatura norte-americana de autores como John dos Passos e Steinbek
e dos neorrealistas portugueses, so muitas as fontes indicativas da
centralidade do Brasil. Em artigo sobre o tema, Russel Hamilton
destaca a seguinte declarao de Leonel Cosme:
Os angolanos sabiam do Brasil tudo quanto lhes era
til. Conheciam a sua literatura (designadamente a
nordestina), tanto ou mais que a portuguesa. Reputados jovens prosadores e poetas bebiam a inspirao em
autores como Jorge Amado, Rosa ou Mrio de Andrade
e at na crnica jornalstica era patente a inluncia de
David Nasser [], mas principalmente o processo que
recriara um homem que j no era s europeu e muito
menos s portugus (HAMILTON, 2003, p. 143).
sociedade era uma das lies que os africanos extraam dos textos
dos nossos escritores. Nessa espcie de constelao, o nome de Jorge Amado uma constante. E pode-se observar, por muitos depoimentos, que no se trata de apenas uma estrela. H uma supremacia
na sua igura, claramente reconhecida pelo depoimento de muitos
escritores. o que se nota, por exemplo, numa entrevista com o
escritor moambicano Jos Craveirinha realizada em 1998:
Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve
uma inluncia muito grande na populao suburbana daqui () desde o futebol. Eu joguei a bola com
jogadores brasileiros, como, por exemplo, o Fausto,
o Lenidas da Silva, inventor da bicicleta. [] Ns,
na escola, ramos obrigados a passar por um Joo de
Deus, um Dinis, os clssicos de l. Mas chegados a
uma certa altura, ns nos libertvamos. Enveredvamos por uma literatura errada: Graciliano Ramos
Ento vinha a nossa escolha; pendamos desde o
Alencar. Toda a nossa literatura passou a ser um relexo da Literatura Brasileira. Ento, quando chegou
o Jorge Amado, estvamos em casa. Jorge Amado
marcou-nos muito por causa daquela maneira de expor as histrias. E muitas situaes existiam aqui. Ele
tinha aqui um pblico (CRAVEIRINHA em entrevista a CHAVES, 1999, 157).
Na declarao enftica de Craveirinha evidenciam-se os sinais de que aos escritores moambicanos tambm chegavam os
ecos de uma sociedade mitologicamente construda sobre a mesclagem de raas. Habitante da Mafalala, um bairro que se distinguia na geograia segregacionista da capital Loureno Marques,
o poeta partilhava a convivncia pacica entre diferentes etnias,
religies, raas e tradies culturais, caracterstica que favorecia a
associao com o Brasil. Esse lugar que abrigava msicos, poetas
e jogadores de futebol, tambm conhecido como bairro de mulatos, embora ali vivesse gente variada e fosse dominante a religio
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As letras de um lado, o esporte de outro e ainda a msica compunham um quadro de referncias de grande utilidade para a conigurao de uma identidade j encaminhada para a ruptura com os
padres em vigor. To amplo e diversiicado, o repertrio projetava
vrios brasis, que atingia os diferentes estratos sociais, penetrando
de forma abrangente no imaginrio de signiicativas parcelas da populao urbana ou periurbana desses territrios.
Uma relao dialtica se atualizou, uma vez que tanto a metrpole quanto os que a ela se opunham viam no Brasil uma fonte de
inspirao para os seus argumentos e expectativas. Portugal, com
amparo nas formulaes de Gilberto Freyre, sempre simptico
colonizao lusitana, vendia a hipottica "harmonia racial" como
resultado de sua especial vocao para lidar com outros povos,
qualidade que no reconhecia entre franceses e ingleses, por exemplo. Os nacionalistas, naturalmente, apostavam na independncia
como um pressuposto para realizar a utopia que o Brasil parecia representar. Os mais crticos incorporavam a concepo de literatura
de denncia que sobretudo o chamado romance de 30 abraava.
Atraa-os a possibilidade de transformar em personagem os seres
socialmente excludos, os negros e mulatos marginalizados pelo
cdigo colonial. Convert-los em protagonistas de mudanas, em
contraposio ao lugar de mero elemento do cenrio que lhes era
reservado na literatura colonial, era um modo de defender a sua
humanidade, como, alis, sintetizado por Mia Couto:
Essa familiaridade exisitencial foi, certamente, um
dos motivos do fascnio nos nossos pases. Seus personagens eram vizinhos no de um lugar, mas da
nossa prpria vida. Gente pobre, gente com os nossos
nomes, gente com as nossas raas passeavam pelas
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num outro portugus, mais aucarado, mais danvel, mais a jeito de ser nosso (idem, 2011, p.64).
A valorizao do registro popular em detrimento do respeito gramtica da norma culta, um dos tpicos defendidos pelos
modernistas, deiniu-se como uma boa soluo ao impasse gerado pela situao lingustica, pois se a expresso em lngua portuguesa colidia com a busca de valores refratrios cultura imposta
pela colonizao, por outro lado, por outras razes, o recurso s
lnguas nacionais mostrava-se invivel. A apropriao da lngua,
aproximando-a da "lngua errada do povo / lngua certa do povo",
nos famosos versos de Bandeira, adequava-se ao sentimento experimentado pelos escritores africanos.
Para Mia Couto e antes dele tantos outros, a nossa literatura
tinha o mrito de casar a lngua com o tal jeito de ser nosso, numa
mescla que foi tambm captada pelos escritores de Cabo Verde, que
cultivavam as similaridades tanto no plano da geograia fsica quanto humana. Isso explica a projeo, por exemplo, do poema "Pasrgada", de Manuel Bandeira, transformado em verdadeira matriz
potica no Arquiplago. Depoimentos como o de Gabriel Mariano
demonstram o fato:
[] os poetas caboverdeanos sempre estiveram a par
dos movimentos poticos e literrios do Brasil: do
Olavo Bilac, do baiano no o Gregrio de Matos,
o Castro Alves [].
Estivemos sempre a par. Mas nessa altura, nos anos
40, 41, do Modernismo Brasileiro no tinha conhecimento. S tive conhecimento do Modernismo a
a partir de 1947, pelo meu tio Baltasar que me deu
os livros. Ento comecei a conhecer o Mrio de Andrade, o Manuel Bandeira, o Ribeiro Couto, o Jorge
de Lima, o Frederico Schmidt, depois dele o Drummond, o Ledo Ivo, o Melo Neto e tambm a ico em
prosa. Em 1947 comecei a conhecer os contos admirveis do Marques Rebelo [] Bom, o Jorge Amado
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A energia dessas leituras, que podemos hoje discutir e relativizar, naquele contexto, transformou Jorge Amado num cone da
cumplicidade to necessria. A cadncia de sua prosa convertia em
poesia um mundo de imagens que ganhava lastro na sua trajetria
poltica. Isso explica que, preso no Tarrafal, um terrvel campo de
concentrao no Arquiplago de Cabo Verde, onde se concentravam tantos prisioneiros das colnias e no s, Jos Luandino Vieira
tenha feito passar clandestinamente um original e com ele um bilhete em que dizia: Enviem meu manuscrito ao Jorge Amado para
ver se ele consegue publicar l no Brasil. No sei se at ele chegaram o manuscrito e o bilhete, mas sei que houve uma campanha
pela libertao de Luandino e que dela participou o Jorge Amado.
Diante desse inventrio de trocas, nossa atitude no deve ser
contemplativa. H muito a discutir sobre a intencionalidade e outros
aspectos desse legado. O que no se pode questionar a relevncia
do escritor baiano na produo de uma utopia que, entre desacertos,
participou do sonho de independncia desses pases e lhes estimulou a conquistar uma literatura. Nesse contexto, so muitas as histrias envolvendo Jorge Amado e as fricas que ele ajudou a criar com
os brasis inventados em suas narrativas. Eu poderei contar outras
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Ns te rodearemos
e te compreenderemos e amaremos
teus heris brasileiros e odiaremos
os tiranos do povo mrtir, os tiranos sem corao...
E te cantaremos tambm as nossas lendas,
e para ti cantaremos
nossas canes saudosas, sem alegria ...
E no im, da nossa farinha te daremos
e tambm da nossa aguardente,
e o nosso tabaco passar de mo em mo
e, em silncio, unidos repousaremos,
pensativamente,
olhando as estrelas do cu de Vero
e a lua, nossa irm, enquanto os barcos balouarem
brandamente
no mar prateado de sonho...
refernCias
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Os africanos e as falas africanas no
Brasil. In: GALVES, Charlotte et al. frica-Brasil: caminhos da lngua
portuguesa. Campinas: Editorada UNICAMP, 2008.
CHAVES, Rita. Jos Craveirinha, da Mafalala, de Moambique, do
mundo. In: Via Atlntica, n. 3. Revista da rea de Ps Graduao em
Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa. So Paulo:
USP, 1999.
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras interinvenes. Ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Pensatempos. Textos de opinio. Lisboa: Caminho, 2005.
HAMILTON, Russell. A inluncia e percepo do Brasil nas literaturas africanas de lngua portuguesa. In: LEO, Angela Vaz. Contatos e
ressonncias. Literaturas africanas de lngua portuguesa. Belo Horizonte:
PUC-Minas, 2003.
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Rita Chaves
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CaValeiro da esPerana
(testemunHo de um reenContro)
Jos Lus Cabao*
o tive o privilgio de conhecer pessoalmente Jorge Amado. Mas ele , posso diz-lo sem hesitao, um companheiro de minha adolescncia, um mais-velho, como se usa
dizer em frica, que ajudou muitos de ns, jovens das dcadas de
1950/60 em Moambique, a rasgar horizontes que conduziram a
opes deinitivas de vida. emoo de visitar pela primeira vez
essa Ilhus que povoou a minha imaginao juvenil se associa o
enorme prazer de poder participar da abertura das celebraes do
centenrio do grande escritor brasileiro.
Amado tambm pertence um pouco a Moambique, hoje pas
independente, e essa dimenso que pretendo aqui convocar. Para
as geraes urbanas daqueles anos, que se indignavam com a ocupao e as injustias sociais da ento colnia portuguesa, suas obras
alimentaram o desejo de uma sociedade democrtica e o sonho da
nossa independncia.
O colonialismo atravessava, nos anos entre o im da II Guerra Mundial e o incio da dcada de 60, sua fase mais arrogante. Foi
um perodo de consolidao do poder da metrpole imperial e de
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Essa categoria da legislao colonial portuguesa atribua, a pedido do interessado, direitos de cidadania aos colonizados indgenas que provassem ter abandonado os valores e comportamentos de sua cultura tradicional, adotando valores
e comportamentos da cultura portuguesa.
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Ferraz, Sozinha no Mato. Narrativa indita da vida da autora sozinha no mato, no meio indgena, publicado em 1955 e galardoado
com o primeiro prmio do Concurso de Literatura Colonial, promovido pela ento Agncia Geral das Colnias. A autora narra sua
vida no interior da colnia como a nica pessoa branca naquele
local. O sozinha, evidenciado no ttulo, demonstra a total falta
de identiicao humana com as centenas de pessoas que viviam e
trabalhavam sua volta!
Todos os brancos, sem distino de grupo etrio ou da funo
que ocupavam na rea produtiva, deviam ser chamados de patro;
todos os negros, velhos ou novos, eram rapaz (com conotao
bem diferente do uso atual do termo no Brasil, j diludo de sua
carga colonial).
Os que, vivendo nas esferas do privilgio ou perto dela, se indignavam com este estado de coisas, eram estatisticamente irrelevantes. Sentamo-nos, principalmente, jovens de ento, vivendo num
pesadelo sem sada, esmagados pela ditadura colonial, humilhados pelo
racismo vigente, sem esperana e sem destino por falta de uma organizao qual pudssemos referir. ramos incapazes de formular um projeto de futuro. No divisvamos os caminhos para libertar nossa terra da
ocupao e dominao dos colonos.
Quando essas angstias esto tomando forma nas nossas vidas de urbanos intelectualizados e adversrios da ordem colonial,
entramos em contato com os livros de autores brasileiros. Devoramos romances de Graciliano, Lins do Rego, Verssimo, Raquel de
Queiroz etc. Deixamo-nos empolgar com a Pasrgada de Manuel
Bandeira, que lamos ento como o hino a uma liberdade ainda sem
contornos polticos. Mas Jorge Amado quem nos toca profundamente os coraes e as conscincias.
Jubiab foi o primeiro romance que eu li em que os personagens centrais, Antnio Balduno, seu companheiro o Gordo,
o pai de santo Jubiab e outros, eram biolgica e culturalmente
negros. At ento, s conhecia o negro como personagem literrio nas pginas da literatura colonial de Moambique, onde,
como exemplificado pelo j mencionado livro de Mrcia Ferraz,
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ele passava discretamente como elemento da paisagem e, quando ganhava existncia, era simples comparsa, personificao do
mal ou da submisso fiel.
Jubiab foi uma revelao dentro da revelao que representava j a obra de Jorge Amado. Nela descobramos essa outra frica
to distante e to prxima, to diversa e to familiar. Reconhecamos Moambique na capacidade de sobrevivncia dos deserdados,
na interlocuo quotidiana com o mundo dos espritos, na riqueza
do candombl, na miscigenao social e cultural entre os emarginados, na intimidade com a natureza, no estoicismo perante a explorao, no gosto pela vida que, mesmo em situaes dramticas,
animava a maioria de seus personagens.
Como nos lembra Mia Couto no seu belo texto Sonhar em Casa:
Jorge no escrevia livros, ele escrevia um pas [...] era
um Brasil todo inteiro que regressava frica. E ns
precisvamos desse Brasil como quem carece de um
sonho que nunca antes soubramos ter (2011).
nascente moambicanidade. Os poemas e os textos de nossos escritores h muito que vinham dialogando com essa literatura brasileira e com a produo musical e literria da Amrica do Norte e
Carabas. Na esteira dessa gerao, escutei muito jazz, blues, spirituals, li emocionado Steinbeck, Caldwell, Baldwin, Dos Passos,
Richard Wright a par de Nicollas Guillen, Csaire, entre outros. S
depois conseguiria iludir as malhas da censura e descobrir os intelectuais e artistas africanos e da dispora.
Esse Brasil, que sentamos prximo pelo idioma comum e por
ter sido uma colnia portuguesa que se emancipara da metrpole,
pelos elementos de africanidade e pela fora vital dos personagens
que aloravam nos textos de seus escritores inspirava e reforava os
sonhos que alimentavam nossa nsia de liberdade.
Constru, naquela poca, a imagem mtica de um Brasil alegre e pujante de vitalidade no qual, mau-grado as desigualdades
sociais e a persistncia de preconceitos, se ediicava uma sociedade rica de humanidade. No tinha ainda ideias sobre como se
poderia conquistar a independncia de Moambique e vencer as
desigualdades sociais e raciais gritantes que aligiam a colnia,
mas o Brasil que nos chegava nas pginas dos seus escritores e de
revistas como Cruzeiro e Manchete2 propunha-se aos nossos olhos
como um salto em frente, como um caminho para romper o trgico imobilismo social em que se vivia, como um pas do futuro,
simbolizado em Braslia.
Descobramos essa nao, escreve Mia Couto no texto acima
citado, num momento histrico em que nos faltava ser nao. O
Brasil - to cheio de frica, to cheio da nossa lngua e da nossa
religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.
Estas duas publicaes peridicas brasileiras eram vendidas nas colnias portuguesas (pelo menos em Angola e Moambique), onde chegavam por correio martimo, e lidas com grande interesse por colonos e alguns setores de colonizados.
A elas se viriam mais tarde a juntar Fatos & Fotos e outras publicaes de diverso
tipo como revistas infanto-juvenis (como O Guri), de crimes, etc.
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Como mais tarde compreenderia, ramos ns quem construamos o mito: amos colher, nesse Brasil imaginado, elementos da
utopia que precisvamos construir.
Jorge era, portanto, o meu mais-velho, sempre atual, universal,
comprometido, aquele que me incentivava a rasgar novos horizontes e
ensinava segredos da vida e do mundo.
Nos anos que se seguiram, vieram o amadurecimento poltico,
as grandes opes, o trabalho revolucionrio, a preparao da batalha pela emancipao das mulheres e homens de Moambique e
pela libertao da terra ocupada.
A dialtica do ativismo poltico e da luta armada pela conquista da independncia de meu pas, com seus problemas e tenses
bem concretos, foi extinguindo o modelo brasileiro como possvel
alternativa. Em nossa anlise, o Brasil tornara-se independente por
iniciativa de colonos radicados e seus ilhos, defendendo seus bens
e interesses de classe contra a espoliao pela metrpole; em Moambique, onde o domnio estrangeiro no permitira a formao
de uma burguesia nacional, o movimento nacionalista preconizava
uma independncia que eliminasse politicamente o poder dos colonos e estabelecesse a justia social.
Com o desenvolvimento da luta pela independncia fui, pois,
perdendo a intimidade com o velho amigo baiano. Sabia que ele
apoiava nossa luta pelas inequvocas declaraes de solidariedade
de que me iam chegando notcias, mas ele habitava longe do meu
quotidiano.
O mundo que construamos, as novas utopias que se alimentavam em nossos sonhos e projetos tinham existncia prpria, eram
fruto de uma experincia real forjada muitas vezes em situaes
dramticas e j no se reconheciam facilmente no universo de Jorge
Amado.
O prprio Brasil, com o mais profundo conhecimento que se
teve do pas e para o qual contribuiu tambm o retrato social e vivo
que trouxe o Cinema Novo, revelou-se uma realidade bem mais marcada pela misria e a ignorncia e bem menos idlica do que a que tnhamos construdo. A face otimista do pas, emblematizada no sorriso
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refernCias
AMADO. Jorge. Jubiab. Lisboa: Livros do Brasil s/d.
CABAO, Jos Lus. Moambique: Identidade, colonialismo e libertao.
So Paulo: Ed. UNESP, 2009.
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244
orge Amado um dos autores brasileiros mais lidos dentro e fora do Brasil, e com um nmero de tradues para
lnguas e pases os mais diversos que talvez ainda hoje
no tenha sido superado.1 Tornou-se um escritor universal tratando, em geral, de sua aldeia, o Brasil, tomando de emprstimo um postulado de Leon Tolsti quando este se referira a sua
pequena Rssia do sculo XIX. Quando pensamos nos romances
amadianos, notamos que em sua absoluta maioria o autor retratou e ambientou a Bahia para falar de sua nao, problematizando questes mais amplas, que se referem s relaes econmicas,
polticas e sociais no mundo em que viveu. considerado por
diversos pesquisadores como um escritor que colaborou imensuravelmente para a criao de identidades e representaes do
Brasil no sculo XX.
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o povo historicamente explorado na luta contra o sistema capitalista causador da pobreza da grande maioria e da opulncia de uma
minoria detentora do poder, o Partido contou com a militncia de
intelectuais empenhados no processo de conscientizao das camadas populares (PALARMATCHUK, 1997, p.5-9). A participao de
Jorge Amado no PCB icou marcada na publicao dos trabalhos literrios das dcadas de 1930 a 1950, e por seu mandato de Deputado
Federal entre 1945 e 1948. Sua principal baliza esteve assentada na
valorizao de aspectos de origem popular que o inspiravam tanto
para a criao de personagens e enredos de suas narrativas iccionais
quanto para projetos de lei, como a liberdade de culto no Brasil. Sua
obra, portanto, foi marcada por temas, formas e ritmos inspirados em
uma concepo de fala, linguagem e cultura advindas das camadas
populares no Brasil.
Sua atuao no Partido foi bastante ampla e orgnica. Sua
candidatura e eleio para Deputado Federal se deu pelo colgio
eleitoral de So Paulo, atuando no curto perodo de abertura poltica que ocorreu com o im da ditadura de Getlio Vargas, no
governo do Gal. Eurico Gaspar Dutra. Foi eleito com a bandeira de
ser O Escritor do Povo e permaneceu no Congresso at o Partido
ser posto novamente na ilegalidade, em 1948, o que acabou por
gerar a cassao de seu mandato e dos demais da bancada comunista. No breve perodo de sua atuao como deputado, contudo,
Amado apresentou o projeto de lei aprovado em Congresso que
garantia a liberdade de culto no Brasil (CONSTITUIO, 1946,
art. 141, 7). Ao fazermos um breve estudo de sua a obra e trajetria, notamos que o tema da liberdade - fosse religiosa, poltica,
econmica, sexual, cultural - foi uma bandeira presente em seu
projeto poltico-literrio, iniciada em seus escritos de ico e levados ao campo poltico.
A dcada de 1940 foi de intensa atividade poltica, pois alm de
sua tarefa como deputado federal e secretrio do PCB, Amado no
cessou sua atividade literria e publicou diversos livros, ampliando seus gneros narrativos, abordando sempre questes polticas
e sociais que lhe pareciam urgentes. Foi assim que publicou duas
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Laila Brichta
Esse foi o contexto da guerra fria, que fez surgir no mundo comunista um Movimento pela Paz, tambm chamado de Movimento
dos Partidrios da Paz, que se traduziu em um conjunto de atividades de forte carter ideolgico que visava garantir a serenidade
mundial pelo discurso antiblico e pelo desarmamento nuclear, mas
tambm pela expanso do socialismo (RIBEIRO, 2008, p.2-3). Esse
movimento se expandiu em mbito cultural e poltico e contou com
aes de diversos intelectuais dos Partidos Comunistas, incluindo
Jorge Amado, que foi representante brasileiro no Comit Internacional dos Partidrios da Paz. Esse comit organizou o I Congresso
Mundial em Paris no ano de 1949. E foi por conta dessas diversas
atividades polticas que acabou sendo expulso da Frana, exilando-se na antiga Tchecolosvquia, morando no Castelo dos Escritores,
em Praga (RAILLARD, 1992).
Em 1951, j residindo no leste europeu e diante das atividades
partidrias, Amado publicou o Mundo da Paz, um relato de viagens
pelas repblicas soviticas e pelo leste europeu. Por este livro Jorge Amado foi enquadrado no Brasil na lei de segurana nacional e
impedido de entrar nos EUA, por conta da poltica de condenao
e perseguio ao comunismo. Por ter sido uma apologia explcita
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rados nos presdios portugueses por alguma ao de carter revolucionrio. Contudo, no parece ter havido apoio inanceiro e logstico na formao de lideranas africanas, nem ajuda organizao
dos movimentos de contestao na frica. H de se destacar que a
principal reivindicao dos africanos era precisamente a descolonizao e a autonomia poltica frente a Portugal, e isso se conigurava
um n grdio para os portugueses de forma geral.
Percebemos, com essa circulao de pessoas e ideias, que,
por conta de um alinhamento ideolgico com o comunismo, Jorge Amado, atravs de seus escritos, panletos e romances, esteve
participando tanto do combate ditadura salazarista em Portugal,
quanto na frica, destacando que na frica a luta contra a ditadura
ganhou foros de descolonizao. oportuno registrar novamente
que sua obra chegava no continente africano atravs de uma circulao clandestina dos partidrios ou simpatizantes do comunismo,
do socialismo ou do anticolonialismo.4
A campanha da qual participaram Amado e Neruda, em 1954,
no libertou Cunhal e nem promoveu a independncia dos pases africanos dominados por Portugal. Mas a produo literria de Amado,
alm de ter colaborado para a formao da literatura e dos escritores em pases africanos de lngua portuguesa (CHAVES, 1999), talvez
tambm tenha contribudo para colocar holofotes sobre uma pessoa
que corria srio risco de vida, salvando-o de uma morte anunciada,
como pontuara o brasileiro em seu texto:
Pretendem mat-lo e ns sabemos que so frios assassinos os que querem mat-lo. uma vida preciosa, preciosa para Portugal e para o mundo, ajudemos o povo
portugus a salv-la! (AMADO apud AVANTE, 1954).
Ver nesta coletnea o artigo de Jos Luis Cabao Cavaleiro da esperana (testemunho de um reencontro).
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refernCias
ALEXANDRE, Vlaentim. O roubo das almas: Salazar, a Igreja e o totalitarismo (1930-1939). Lisboa: dom Quixote, 2006.
AMADO, Jorge. Hora da Guerra. So Paulo: Companhia das Letras,
2008.
______. So Jorge dos Ilhus. So Paulo: Companhia das Letras, 2010.
______. Gabriela, cravo e canela. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CHAVES, Rita. Formao do romance angolano: entre intenes e gestos.
So Paulo: Coleo Via Atlntica, 1999.
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Entrada
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importante papel que os meios de comunicao de massa, acrescidos de dispositivos audiovisuais, tiveram para o uso e abuso da
literatura impressa e, por extenso, para a popularizao de obras
literrias, at ento, inacessveis. O tema tambm adquire importncia ao trazer tona o papel de destaque alcanado pelo cinema
e pela TV como instrumentos e meios de um ambicioso projeto
de integrao nacional, para uma nao com propores continentais, que, at a metade da dcada de 1950, tinha quase metade
da populao analfabeta. Importante tambm considerar que
a emergncia da apario das obras amadianas nas telas coincide
com as gestes do governo ditatorial militar e com o projeto integracionista dos presidentes generais, que teria nos investimentos
nas indstrias de entretenimento e lazer seu ponto forte.
dentro de tal panorama que as obras adaptadas de Jorge
Amado acabavam abarcando ndicies surpreendentes de audincia
e, com isso, transformavam produtos distintos agregados s adaptaes em enormes sucessos de venda. As trilhas sonoras das novelas e dos ilmes adaptados so ilustrativas. O sucesso alcanado
por algumas composies junto ao pblico movimentava tanto a
indstria de discos, como a indstria do rdio, os programas de
auditrio, a publicidade, o mercado editorial, alm de mercados indiretos. As adaptaes alavancavam outras indstrias. A indstria
fonogrica foi, talvez, a que mais se beneiciou disso, a partir da
popularizao de composies ligadas aos personagens e s tramas
adaptadas. Modinha para Gabriela, trilha de abertura da telenovela Gabriela, exibida pela Rede Globo de Televiso, em 1975, ainda
hoje reconhecvel, mesmo para os que no assistiram novela. O
mesmo valia para os atores intrpretes dos personagens amadianos fosse no cinema ou na TV. As adaptaes multiplicavam
a popularidade de atores conhecidos e davam visbilidade a atores
desconhecidos. A atriz Snia Braga, tida como a musa amadiana,
exemplo.
As adaptaes de obras literrias em produes audiovisuais
(televisivas, sobretudo) no Brasil, ao mesmo tempo em que proporcionaram o acesso a obras clssicas da literatura impressa para
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as primeiras adaptaes amadianas, 40% da sua populao analfabeta, a adaptao da literatura e texto impresso para mdias audiovisuais era uma iniciativa louvvel (cf. ORTIZ, 1988).
A TV, uniicando o povo pela emoo, encontraria nas obras
de Jorge Amado fortes aliadas para dar cabo de mltiplos projetos
que vigoravam de acordo com os interesses de cada novo governante e com os relexos do panorama cultural e poltico internacional.
Como Jorge Amado produziu textos por quase sete dcadas1, sua
obra, no que concerne aos interesses das muitas fases polticas e
gestes de governos brasileiros, serviria tanto quelas regidas pelo
populismo, como quelas regidas pelo desenvolvimentismo e pelo
integracionismo brasileiro.
Mas, o que, de fato, promove a popularizao da obra amadiana, a sua escrita em texto impresso ou a sua adaptao em imagem
em movimento?
Se considerarmos o pblico atingido pelo produto audiovisual
em comparao ao nmero de leitores, a resposta levaria s adaptaes para cinema e TV. Entretanto, importante considerar que
o que determina a adaptao o reconhecimento da qualidade da
obra, assim como seu sucesso, ainda poca de veiculao na mdia
primrdia (nesse caso, o livro) frente s projees de atrair e seduzir
novos pblicos. Desse modo, a combinao entre texto escrito e
imagem que determinar a positiva recepo da obra adaptada e,
por extenso, seu possvel sucesso.
De acordo com Robert Stam, a obra de Welles um
excelente exemplo de que a arte da adaptao no
simplesmente tirar as histrias das pginas de um livro
e coloc-las na tela, mas um exerccio de criatividade e
liberdade, a criao de uma nova obra e s vezes at
mesmo de uma nova histria (BUENO, 2010).
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Importante ressaltar que, ao no considerar que o produto audiovisual (ilmes, sries e telenovelas) tem linguagem e vida prprias, corre-se o risco de ver, na adaptao, a transposio, pura e
simples, para uma obra impressa recheada com som e movimento,
pulverizada pela pressa do timing das histrias vistas e ouvidas em
contraposio ao tempo livre das histrias lidas.
Tal viso, no que reconhece a literatura como arte pura e o cinema como arte tcnica e serial, retoma o debate sobre a unicidade
da arte e sua reprodutibilidade.
O fato que a serialidade dos meios de comunicao de massa
deu arte produzida pelos meios tcnicos o atributo de degenerada
e desonesta em oposio serialidade honesta do artesanato ou
univocidade da obra de arte tida como desinteressada e, por isso,
pura questo esta to cara teoria crtica.
Tal discusso, de modo quase maniquesta, o que tem dividido nesses mais que cinquenta anos a crtica, mesmo a atual, entre
os que veem as adaptaes de obras literrias para o cinema e a TV
como uma ofensa obra impressa, em clara aluso creditao de
valores entre arte e tcnica, entre a aura da obra de arte e o simulacro da tcnica, entre negatividade da imagem e positividade da palavra escrita, aos moldes do que foi elaborado por Walter Benjamin
(1994).
Arlindo Machado (2001), ao reletir sobre o lugar destinado
imagem na contemporaneidade, diz que estamos vivendo um novo
iconoclasmo, ao revelar importantes momentos na histria ocidental em que as imagens foram interditas e tidas como abominveis.
Ao reconhecer, em quatro tempos histricos, a superioridade e
transcendncia do texto, dos escritos, sobre as outras formas de expresso em arte, o autor traduzir iconoclastia por uma espcie de
literoletria o culto do livro e da letra.
Arlindo Machado (2001) acredita que essa nova onda de repulsa imagem nasce a partir da segunda metade do sculo XX.
O paradoxo que tal iconoclastia surge em plena era da civilizao
imagtica (do espetculo, como proposto por Guy Debord (2000);
do simulacro, como proposto por Jean Baudrillard (1978).
263
Essas cenas serviram, tambm, aos interesses do mercado televisivo, publicitrio e discogrico (estritamente atrelados), num
momento de reorganizao da economia, motivada pelo milagre
econmico brasileiro e pelo aumento do poder aquisitivo das classes populares. Paradoxalmente, o Estado autoritrio e repressor,
ao promover o capitalismo desenvolvimentista, contribuiu para o
desenvolvimento de diversas atividades culturais.
Jorge Amado criou estilo to expressivo que autores que posteriormente o adaptaram no tiveram problemas para criar expresses que pareciam iis s obras originrias, mas que eram, na
verdade, iis ao estilo ou aos temas e no, necessariamente, s
obras. So adaptaes livres, baseadas nos livros, mas, no necessariamente, cpias destes. Ainal, o cinema tem a sua prpria linguagem. Boa ilustrao reside na caracterizao dos personagens para
a linguagem visual. So tipos criados pelos diretores dos ilmes ou
das telenovelas, j que Jorge Amado, o escritor, jamais descreveu
isicamente seus personagens em livros. Nunca descrevo minha
personagem... Jamais... Isso a a parte do leitor. O segredo do romance que o romance sempre uma cumplicidade entre o autor
e o leitor (AMADO, 20122). De outro modo, Amado descreve com
preciso cinematogrica as suas cidades. Tanto para o caso dos
personagens como para o caso das cidades, a imortalidade da obra
, rapidamente, repassada para os cenrios reais (Ilhus e Mangue
Seco, so exemplos), para a trilha sonora e para os atores intrpretes
(Snia Braga, bom exemplo) das adaptaes.
Entretanto, tais adaptaes, ao centrarem-se nos temas e interesses centrais das obras literrias amadianas, acabam criando um
tipo de trao acerca do cinema ou da TV amadiana, o que acaba
por lhe render certo estilo em termos de produo audiovisual. Tal
estilstica pode ser creditada tanto fora da expressividade da obra
Entrevista para o programa Fantstico, exibido pela Rede Globo de Televiso, em outubro de 1988. Disponvel em: http://www.youtube.com/
watch?v=gXHYGwkpt3g Acesso em: 26 de janeiro de 2012.
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Sada
Como militante do partido comunista, Amado dedicou ateno especial s coisas do povo, sua viso de mundo, aos seus modos de vida, cultura popular e, por que no dizer, s possibilidades
de elaborar iniciativas inclusivas que dissipassem a desigualdade
social na Bahia do sculo XX.
As adaptaes para cinema e TV (com exceo de Terras Violentas, de 1948) ocorrero j na dcada de 1960, aps a publicao
do romance Gabriela, que provoca uma ruptura na narrativa literria
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do autor, ao substituir a dura realidade social das plantaes pela jocosidade e sensualidade das relaes urbanas, ao trocar a tristeza e o
sofrimento pela alegria desenfreada e pelo otimismo quase alienado
pela magia, pelo misticismo e pela religiosidade popular negro-brasileira. Isso vai culminar numa radical ruptura com o maniquesmo
da viso comunista de um mundo dividido entre o bem e o mal, em
prol da airmao das contradies e negociaes da diversa e plural
nao brasileira.
A expressidade da religiosidade afro-brasileira, tanto do catolicismo popular afro-brasileiro como do candombl, com o Compadre de Ogum, Tenda dos Milagres e Jubiab, por exemplo, foi bastante
importante para o avano do debate sobre diversidade e liberdade
religiosa no Brasil. Nesse sentido, pode-se mesmo airmar que Jorge
Amado ocupa o mesmo lugar destinado Clara Nunes (no mbito da
msica popular brasileira, MPB) em termos de visibilidade das formas e modos de religiosidades afro-brasileiras. Alis, a religiosidade
popular brasileira, representada na obra amadiana pelo catolicismo
popular e pelo candombl, muito contribuiu para a reformulao esttica na obra de Amado, ao reunir o mundo espiritual com o mundo
material, o mundo ordinrio com o mundo extra-ordinrio.
Outra questo levantada pelo advento da adaptao o fato
de que ela traz tona o debate sobre as fronteiras entre o real e a
ico, pois se a literatura for entendida como uma ico, o ilme
adaptado/transmutado seria, pois, uma metaico, j que uma ico da ico. Da, a possibilidade da liberdade na produo e expressividade da obra adaptada, o que nos remete a uma nova obra,
no mais cpia da obra antes tida como originria, mesmo que
identiiquemos traos comuns s duas obras. Exemplo disso pode
ser encontrado nos dilogos livres presentes no ilme Quincas Berro
Dgua, de 2010, adaptado da novela escrita em 1959.
A positividade do dilogo intertextual, como aplicado ao audiovisual, reside no fato de que o sujeito primeiro transforma-se em espectador para posteriormente transformar-se em leitor. Esse seria o
poder dos meios de comunicaao de massa. Isso se deve ao aumento
das vendas dos livros provocado pela exibio no cinema ou TV.
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refernCias
AMADO, Jorge. Os pastores da noite. Rio de Janeiro: Editora Record,
1978.
__________ . Gabriela cravo e canela. Rio de Janeiro: Editora Recor, 1983.
__________ . Jubiab. Rio de Janeiro: Editora Record, 1982.
__________ . Tenda dos milagres. Rio de Janeiro: Editora Record, 1978.
BAUDRILLARD, Jean. sombra das maiorias silenciosas. So Paulo:
Editora Brasiliense, 2004.
BENJAMIN, Walter. A arte na poca da reprodutibilidade tcnica. In:
Magia e tcnica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. 7. ed. So
Paulo: Brasiliense, 1994.
BUENO, Chris. Literatura e cinema: adaptando lingugagens. Revista
Cincia e Cultura. vol. 62. no. 1. SBPC: So Paulo, 2010.
ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1989.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2004.
269
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