Rel Bereshit
Rel Bereshit
Rel Bereshit
BERESHIT
O Livro de Gnesis, ou Bereshit (
), tal como conhecido no hebraico ou Yvrit (
), possivelmente uma das mais conhecidas narrativas bblicas, difundida em quase
todas as lnguas. Hoje, faz parte do imaginrio das mais variadas culturas. Bereshit um
relato que traz a marca da tradio judaico-crist, uma das mltiplas vertentes originrias
do mundo pr-moderno, aquele que antecederia o novo universo de valores criados pela
civilizao contempornea.
TEMPO HEBRAICO
Este texto atenderia basicamente ao debate relativo ao conceito hebraico de tempo. O fato
de o tempo hebraico ser retilneo j foi utilizado por alguns tericos para julg-lo como em
oposio diversidade do tempo, portanto, em contradio a outras leituras e
posicionamentos culturais diante da fruio da temporalidade. Ele se oporia aos ciclos da
natureza, tornando-o responsvel pela degradao do meio natural, alm de incluir uma
estratgia de excluso de outros grupos e povos.
1
Socilogo, autor de vrios livros e artigos. Ex-integrante da equipe do Centro Ecumnico de Documentao e
Informao (CEDI). Atualmente mestrando em Antropologia na USP, com dissertao com eixo na questo da
percepo cultural do espao-tempo.
Por estas razes, e tambm por ser a modernidade uma civilizao baseada na
interpretao de que o tempo, alm de ser dinheiro, acelerado, importaria ater-nos a
uma reavaliao do tempo hebraico. Isto nos possibilita visualizar sua atualidade na tica
dos excludos, marginalizados dos processos de transformao e de perpetuao da vida
pelo tempo da modernidade.
Primeiramente, seriam cabveis algumas observaes sobre a lngua hebraica, na qual o
Livro de Gnesis, bem como a maior parte do Antigo Testamento, esto vertidos. O
hebraico resulta de um antigo dialeto cananeu e alcanou expresso literria atravs do
incansvel trabalho dos profetas e dos trovadores da antiga Palestina. Esta terra era
conhecida na antiguidade como bero de inmeros poetas, msicos e cantores.
Traduzir um texto como o Gnesis, no tarefa fcil. Qualquer traduo incorre nas
dificuldades inerentes busca de palavras e de expresses que no encontram,
necessariamente, uma correspondncia integral de um linguajar para outro.
O hebraico, ou Lashon Ha-Kodesh (
: ou seja, lngua sagrada), nos remete a
uma estrutura de pensamento com muitas associaes com o mundo semtico e oriental
antigo. Lngua "econmica" na explicitao de conceitos, o hebraico, no texto bblico,
apresenta uma melodia potica primordial, um sopro forte, abrupto e enigmtico.
Devemos ao poeta e ensasta Haroldo de CAMPOS (1984), um esforo em captar, na
traduo para o portugus, este estilo bblico, procurando hebraicizar a lngua portuguesa
e estampar as suas vibraes originais. Eis como o primeiro versculo da gesta de origem,
o Yom Echad (
: literalmente dia um), aparece na inteligente interpretao de
Haroldo de Campos :
Alm dos sentidos literrios e lingsticos, h que se atentar para os sentidos simblicos
do tempo hebraico. Embora possivelmente refratrios a uma transcrio direta, eles
podem ser decifrados pela analise da cultura e da religiosidade dos antigos hebreus.
Independente de considerarmos os hebreus como povo, religio ou movimento social, so
indiscutveis os traos marcadamente semticos, orientais e antigos presentes no
pensamento hebraico. Estes rasgos arcaicos da cultura hebraica, compartilhados por
diversos outros contextos civilizatrios do mundo pr-moderno, tornam esta cultura, bem
como o prprio cristianismo, mais prximos do mundo tradicional do que se poderia supor
primeira vista.
Refiro-me basicamente as duas noes bsicas do tempo bblico, anlogo a muitas outras
interpretaes pr-modernas. A primeira associa-se a noo de um tempo qualitativo,
marcado por eventos significativos. A segunda, inseparvel da primeira, a de que este
tempo segmentado, onde cada coisa tem seu tempo, e existe um tempo prprio para
cada coisa.
TEMPO BBLICO
O texto bblico no concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa,
irreversvel e retilnea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro da qual
tudo contido e tudo sucede. A idia bblica de tempo de algo concreto, vivo,
experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, e que no se pode
representar independente deles (ANDRADE, 1971: 170).
E neste sentido que o relato da criao articulado em sete dias. A cada dia (
: yom
em hebraico) so atribudas as falas da criao: a separao da luz e da treva, no dia um;
o cu no dia dois; o mar e as plantas no dia trs; a luz e os astros no dia quatro; os
animais no dia cinco; o homem e a mulher no dia seis; o sbado, a coroa da criao, no
dia sete.
O fato destes sete dias da criao serem anormais porque distribudos desigualmente com
relao ao sol, na realidade pouco importante, visto no serem dias astronmicos. So
os primeiros dias de uma sucesso de dias que marcar a vida da criao. No se trata,
na perspectiva bblica, de uma pr-histria, mas do comeo da historia (NEHER, 1975:
182).
UM NOVO TEMPO
Propor a retilinearidade do tempo uma das formas que os textos vtero-testamentrios
encontraram pare evitar o recurso linguagem mtica. O Deus de Israel inaugura um novo
tempo que no se identifica com um ciclo de tributos repetido imemorialmente, abatendose sobre os grupos sociais no representados no edifcio do poder.
Em toda a Bblia, o verbo bara (
), que designa o ato criador, se reserva ao Altssimo.
S Deus pode criar, ou dito hebraicamente, fazer jorrar, de maneira sbita e soberana, o
tempo. A palavra que inicia a narrativa, Bereshit, revela que o essencial ao narrador do
Gnesis no o que houve no princpio, mas sim, que houve um princpio. Bereshit, no
significa no princpio, mas num princpio (NEHER, 1975: 176-177).
A retilinearidade do tempo, tpica da inculturao bblica, talvez a mais proeminente
contribuio do pensamento hebraico. Ela se diferencia de todas as demais interpretaes
do mundo oriental justamente por dispor o homem diante da histria, a qual em Bereshit,
tem o seu comeo consagrado.
Por intermdio de Bereshit, os hebreus entendiam que a origem do mundo no estava
oculta inteligncia humana. Para o homem permanecer em unio com a criao, no
necessita transcender sua histria e chegar a uma dimenso mtica. Por ser histria, e no
um mito, a gesta da criao convida o homem a ser um participante permanente da
construo da histria como fonte libertadora.
Com base nestes apontamentos, no possvel visualizar o tempo hebraico como
"precursor" do tempo retilneo da modernidade. No tempo hebraico h um encadeamento
linear que obedece a lgica da particularidade e da diversidade. Cada coisa, ao ter seu
prprio tempo, est numa relao de parceria com outros tempos a outras coisas. No h,
pois, uma hierarquia entre eles.
Bereshit ordena cardinalmente os dias da criao. Numa transcrio de cunho
hebraicizante, poderamos ler: dia um, dia dois, dia trs, at o dia sete, o sbado, dia
culminante da criao. Neste, se institui o descanso sagrado para a terra, para o gado,
para os homens e as mulheres, que pelo seu trabalho, foram encarregados de preservar
(guardar) e transformar (cultivar) os bens dispostos pelo Criador nos seis dias anteriores.
A temporalidade moderna tem outro significado. Inclui um sentido de acelerao, de
progressividade que estranho ao pensamento bblico. No Ocidente, a retilinearidade do
tempo resulta de um entendimento ordinal, e no cardinal da fruio da temporalidade.
Assim, a ordenao do tempo se configura em termos de um dia primeiro, seguido do
segundo, terceiro, e assim sucessivamente. Essa viso se traduz numa perspectiva
evolutiva que contraria a diversidade e o compartilhamento dos tempos e dos espaos. O
ELEMENTOS DE DILOGO
Alm de um irmanamento j existente entre as igrejas crists e dos esforos que se
verificam nas relaes com o judasmo, o fato de o tempo bblico constituir uma das
vertentes originarias do mundo da tradio, o habilitaria a credenci-lo como um elemento
fundamental para um dilogo imprescindvel com outras culturas e outras tradies
religiosas.
Bereshit uma narrativa que inicia uma ampla sucesso de referncias qualitativas,
afetivas, sensveis e avessas imposio da hierarquia. Essas referncias podem ser
encontradas em outras tradies religiosas, como na do tempo espiralado, prprio do
conjunto de valores civilizatrios do mundo negro-africano.
A discusso do tempo hebraico teria, pois, pelo menos duas implicaes teolgicas e
ecumnicas que so:
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