Anais Simp Emus 2005
Anais Simp Emus 2005
Anais Simp Emus 2005
2005
Reitor
Carlos Augusto Moreira Jnior
Vice-Reitora
Maurcio Dottori
Coordenadora do Curso de Msica
Beatriz Ilari
ii
Anais do
Simpsio de Pesquisa
em Msica 2005
Realizao
Departamento de Artes da UFPR
Apoio
Fundao Araucria
UFPR
iv
|sumrio|
ix
Apresentao
Programao
15
29
37
50
60
72
82
94
105
118
msico-instrumental. Relaes
131
146
159
174
186
197
210
219
231
245
257
268
resumos de psteres
268
268
268
269
269
vi
270
270
Msica e comunicao
Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educao da PMC)
271
271
271
271
272
273
273
273
274
Uma concepo de relao entre arte e vida sob a tica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR)
274
275
275
275
vii
276
277
277
278
viii
|apresentao|
A publicao dos Anais do Simpsio de Pesquisa em Msica 2005 (SIMPEMUS2005) motivo
de orgulho para todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente na organizao deste evento,
ocorrido entre 4 e 5 de novembro de 2005, no Departamento de Artes (DeArtes) da
Universidade Federal do Paran (UFPR).
Os Anais do SIMPEMUS2005 renem 16 artigos completos de docentes e ps-graduandos, 7
artigos completos de alunos de cursos relacionados rea da msica de diversas instituies
acadmicas brasileiras: UFPR, EMBAP, FAP-PR, UEM-PR, PUC-PR, UFG, UDESC,
UNIRIO, UNICAMP, UNESP, Mozarteum-SP, USP, UFES. Todos os resumos de artigos
apresentados para o SIMPEMUS2005 esto publicados nesses anais, totalizando 47 inscries
ao evento.
Os assuntos abordados nos trabalhos ora publicados so bastante variados: desde msica
eletroacstica at estudos sobre o fadango paranaense, passando por anlises de obras de Alceo
Bocchino, de Cyro Pereira ou as de Gilberto Mendes. So assuntos oriundos de pesquisas
relevantes no estudo acadmico da msica brasileira.
Agradeo aos meus colegas de UFPR, os professores Norton Dudeque e Rogrio Budasz
membros da comisso organizadora do SIMPEMUS2005, aos alunos e ao pessoal da secretaria
do DeArtes pela dedicao e empenho na realizao do evento. Agradeo tambm o apoio e o
financiamento concedido pela Fundao Araucria para a realizao do SIMPEMUS2005.
ix
| programao |
Sexta-feira, 4 de novembro de 2005
8h
inscries
9h
abertura
9:30h 10:00h
10:00h10:30h
10:30h11:00h
11:00h11:30h
11:30h12:00h
12h - 14h
recesso
14:00h14:30h
14:30h15:00h
15:00h15:30h
15:30h16:00h
recesso
16:00h16:30h
16:30h17:00h
17:00h19:30h
recesso
19:30h21:00h
9:20h9:40h
9:40h10:00h
10:00h10:20h
recesso
10:20h10:40h
10:40h11:00h
11:00h11:20h
11:20h11:40h
12:00h14:00h
recesso
14:00h14:30h
14:30h15:00h
15:00h 15:30h
15:30h16:00h
recesso
16:00h16:30h
1630h17:00h
17:00h17:30h
17:30h19:30h
recesso
19:30h21:00h
xi
xii
Resumo: Esta comunicao tem como hiptese bsica a idia de que nas msicas
instrumentais indgenas pode estar vigente um carter potico especial que se oculta,
para ns, no que tomamos por mera repetitividade. Nesta direo, comentarei o
repertrio de flautas sagradas dos ndios Wauja, habitantes do alto Xingu, no Brasil
Central, baseando-me em minha tese de doutorado. Discutirei a questo de uma
potica musical aplicada aqui esfera motvica de um repertrio instrumental,
comentando a aproximao entre plano meldico e fala. Por fim, pretendo sugerir que
outras msicas instrumentais indgenas sejam examinadas com ateno especial ao
aspecto de sua repetitividade e sua projeo temporal tanto no nvel motvico quanto
em outros nveis de escala mais larga. Palavras-chave: msica indgena, repetio,
potica musical.
Pode-se notar, nos relatos de viajantes que observaram rituais musicais amerndios a partir
do sculo XVI, que um dos pontos mais salientados a convico sobre a repetitividade das
msicas destes povos. Sculos aps a invaso da Amrica do Sul pelos europeus, tal
interpretao persiste: toma-se, ainda hoje, as msicas indgenas por repetitivas. O fato
que esta qualidade sempre ganha, no discurso do senso comum, um carter de negativo
atribudo a uma falta: a ausncia de elaborao, de cultivo, de sofisticao, enfim, a uma
pobreza. Pode-se argumentar que o carter negativo atribudo repetio na msica
indgena tem suas razes em uma viso evolucionista sobre estas sociedades e suas msicas,
apontando para um tipo de incapacidade aborgine de controle da forma musical e
revelando uma espcie encurtamento de seu pensamento musical que impede sua expanso
para alm do meramente repetitivo. Naturalmente, o espelho destas idias uma concepo
da grandiosidade formal da msica ocidental. A msica europia, em seu desenvolvimento
histrico, entendida como uma evoluo que se inicia no canto gregoriano e se estende at
o dodecafonismo (Barraud, 1975; Leibowitz, 1975). Como resultante de um geist
hegeliano, a msica traa este destino monumental, acima das idiossincrasias locais (cf. a
idia de autonomia musical). Diante deste paradigma, a msica indgena (bem como boa
parte da msica popular)1 compreendida como um estgio primitivo que, congelado no
tempo, repetitivo e pobre. Entretanto, a convico da repetitividade como caracterstica
negativa das msicas amerndias parece colocar-se em suspenso a julgar pelos resultados
de estudos recentes dedicados s msicas indgenas que se propuseram a transcrever e
analisar o texto musical de repertrios musicais indgenas (Bastos, 1990; Beaudet, 1997;
Mello, 2005a; Montardo, 2002; Piedade, 2004).
Para alm de uma negatividade, primeiramente necessrio pensar sobre o que repetio:
um tema com amplo interesse filosfico, relacionado ontologia, pois se trata de
compreender a essncia do ser o mesmo, ser uma cpia de um original que, por sua vez,
. Neste sentido, desde h muito tempo, na filosofia, se discute a questo da repetio de
forma entrelaada da representao e da diferena.2 No campo das artes, a repetitividade
tomada como um fator central na produo de sentido esttico: de fato, trata-se de um
problema da filosofia da arte (ver Kivy, 1993: 329).
Alm de constituir um problema filosfico, a repetio musical uma qualidade fsica do
som percebida pela audio e, portanto, entra em jogo tambm a questo da percepo e da
cognio, bem como a profundidade das diferenas culturais, a pergunta sobre diferentes
formas de ouvir.3
Minha compreenso da repetitividade na msica Wauja me leva a pensar que nesta msica
h uma potica musical que trata da confeco da diferena, dada fundamentalmente do
eixo do tempo e da existncia. Tratarei aqui da repetio musical como um princpio do
pensamento musical que posto em operao em vrios nveis formais e que reflete uma
viso de mundo.
Msica kawok: uma potica da msica instrumental
Comentarei aqui aspectos do repertrio musical de flautas sagradas dos ndios Wauja,
habitantes do alto Xingu, no Brasil Central, utilizando dados de minha tese de doutorado
(Piedade, 2004).4 Estas flautas, chamadas de kawok, so ligadas a entes invisveis
poderosos e perigosos, sendo executadas somente por homens e no podendo ser vistas por
mulheres. comum, nas sociedades amaznicas e na Melansia, existir um complexo
mtico-ritual com estas caractersticas: aerofones interditos viso para as mulheres;
punies terrveis para aquelas que porventura verem os instrumentos; estes instrumentos
so relacionados a espritos perigosos; eles so utilizados em rituais masculinos; h um
mito que narra um tempo originrio no qual os aerofones pertenceram s mulheres, tendo
sido tomados delas pelos homens. A este conjunto de elementos adiciona-se um, ainda que
hipoteticamente: a msica destes ritos masculinos (aerofnica e instrumental) deve ser
ouvida pelas mulheres, que se escondem em seus lares (ver Piedade, 1997, 1999). Este rito
usualmente chamado de ritual de flautas sagradas, exibindo, em todos os contextos
onde ocorre, profundos nexos com questes da socialidade, da cosmologia e de gnero.5
O discurso dos Wauja sobre a msica das flautas kawok aponta de forma clara o nvel
motvico como camada principal: nas exegeses nativas sobre as peas musicais, uma
pequena alterao no nvel motvico era destacada como o fator que fazia com que aquela
pea fosse outra, e no a mesma anterior. Minha percepo foi aos poucos se aguando e,
medida fui aprendendo a ouvir e a tocar estas sutis alteraes, compreendi que no se
tratava variaes fortuitas, mas de princpios de diferenciao que ali eram aplicados. Com
as transcries musicais e anlise musicolgica, constatei o emprego estvel de finas
operaes de repetio e diferenciao entre motivos e frases musicais: aumentao,
diminuio, transposio, inverso, incluso, excluso, duplicao, triplicao, compresso,
fuso, reiterao, fechamento, comentrio e elipse. O emprego sistemtico destas operaes
constitui um jogo que, para alm do plano sonoro, aponta para uma sucesso de idias:
trata-se de uma espcie de manipulao artstica de estados formais pr-estabelecidos que
se assemelha a um procedimento potico, aplicado aqui na esfera motvica da msica
instrumental.
Falar em potica aqui, no contexto de uma msica instrumental, faz sentido com a exegese
nativa, que afirma que a msica de kawok uma fala, a fala do ente sobrenatural
homnimo: portanto, o texto musical tomado pelo discurso deste esprito, sua lngua,
uma linguagem que, como a poesia, exibe caractersticas estruturais inexistentes na
linguagem humana cotidiana.
Sobre a repetio musical do ponto de vista psicolgico e cognitivo, ver Ockelfort (2004). Sobre
diferentes formas de ouvir, ver Mello & Piedade (2005). Note-se que diferentes formas de ouvir esto
em jogo no ato da transcrio musical (ver Mello, 2005b).
4
Para poupar este artigo de uma introduo cultura e pensamento Wauja, remeto o leitor para minha
tese para contextualizar o que ser dito (Piedade, 2004 verso on-line disponvel em
http://www.musa.ufsc.br).
5
Ver o trabalho comparativo entre Amaznia e Melansia Gregor & Tuzin (2001).
H muitos estudos antropolgicos de canes nativas a partir da sua dimenso potica (por
exemplo, Firth & Mclean, 1991), mas o que estou chamando de potica musical aqui algo
um pouco diferente: lembrando de que se trata aqui de uma msica instrumental, portanto
sem poesia. Como na msica Kamayur, o processo de significao musical na msica de
kawok basicamente temtico,6 igualmente caracterizando-se por uma construo de um
espao-tempo memorial, altamente redundante, onde a repetio o trao fundamental
(Bastos, 1990, p. 519). A construo temtica (a idia musical) e a repetio, em suas vrias
formas, so os motores do jogo motvico e do processo de significao, operaes do
pensamento musical que constituem a potica da msica kawok. Esta potica musical se
aproxima do sentido dado por Jakobson ao termo potica, especialmente no que se refere
questo do paralelismo.7 Lembro que, j no perodo final do renascimento e durante todo
o barroco, a idia de uma potica musical esteve em voga na Europa,8 e que o que quero
dizer com potica recupera esta mesma direo. A questo de fundo que na potica
musical a repetio no uma redundncia (nos termos de uma teoria da informao),9 mas
sim um princpio racional originrio, presente no apenas nos discursos artsticos, mas
tambm nas filosofias e cosmologias nativas.
Quando se faz uma analogia entre msica e linguagem, geralmente a poesia ocupa sempre
um lugar especial, talvez porque ambas as artes possuam em comum a possibilidade infinita
de evocao de certos elementos por outros (Ruwet, s/d). A funo potica, que
centralizada na mensagem e que a funo dominante na poesia (cf. Jakobson, 1995),
opera de forma correlata na msica de kawok, que centralizada no texto musical. O
estabelecimento de relaes de equivalncia sobre o eixo sintagmtico, resultando na
repetio regular de unidades equivalentes, princpio constitutivo da linguagem potica,
igualmente constitutivo do jogo motvico: estas relaes de equivalncia esto na base das
operaes de repetio e variao musical. Pode-se dizer que h, na msica de kawok, uma
projeo do nvel motvico-frsico no plano sinttico, ou seja, os motivos e frases so
combinados de tal forma que sua repetitividade e variabilidade configuram uma potica.
Portanto, o prprio jogo motvico constitui a potica da msica de kawok.
Por um lado, o paralelismo envolve o aspecto snico da linguagem: h aqui um princpio
binrio de oposio dos nveis de expresso fonmico, sinttico e semntico, por exemplo,
nas equivalncias sonoras projetadas na seqncia, como as rimas. O paralelismo sonoro
envolve a repetio de sintagmas completos da estrutura fnica. Mas, por outro lado, e o
que nos interessa mais aqui, h aquilo que Jakobson chamou de paralelismo gramatical, a
repetio das estruturas sintticas. Este autor generalizou este paralelismo gramatical em
termos de um paralelismo cannico para pensar as variadas formas como este princpio
aparece na sintaxe das diversas tradies de arte oral (ver Fox, 1977). Para Jakobson,
enquanto a repetio envolve apenas identidade, o paralelismo envolve simultaneamente
identidade e diferena (op.cit: 73), da seu alcance para alm da linguagem: o paralelismo
est presente na msica, dana e cinema, artes que utilizam a repetio, combinao,
justaposio de imagens, sons e gestos como recurso expressivo (Jakobson, 1970).
Estudos antropolgicos sobre as artes verbais tm mostrado a importncia do paralelismo
nas narrativas poticas (ver Tedlock, 1983; Hymes, 1981; Sherzer & Woodbury, 1987).
Para alguns autores, a linguagem inerentemente potica ela mesma, pois influencia a
imaginao de modo a possibilitar a inovao e a reordenao dos itens culturais e
6
Conforme mostra Bastos, seguindo a categoria ip_, tema musical (Bastos, 1999:153).
Para uma viso geral da questo do paralelismo em Jakobson, especialmente pelo seu interesse
antropolgico, ver Fox (1977).
8
Ver o tratado de Burmeister, do incio do sculo XVII (Burmeister, 1993 [1606]). H uma vasta
literatura sobre a retrica musical e sua relao com a teoria dos afetos: ver Chasin (2004), Lpes
Cano (2000) e Palisca (1993).
9
Sobre a importncia da repetio na msica, ver Ruwet (1972).
7
10
Estou mencionando aqui apenas algumas obras mais especializadas na temtica da arte verbal e
estudos das narrativas poticas nativas. Na etnografia xinguana e das terras baixas da Amrica do Sul
em geral, h muitas obras que, em algum momento, investigam estes aspectos. Dentre elas, o estudo
das letras dos cantos do Yawari (Bastos & Bastos, 1995), e dos cantos ma marak dos Arawet
(Castro, 1986), e muitas outras. Para um estudo nesta temtica voltado para as narrativas xamnicas,
alis, trabalhando a reiterao, repetio e justaposio de imagens nas narrativas xamnicas, ver
Cesarino (2003). Para um estudo sobre a conexo da narratividade potica com o mito, ver Langdon
(1999).
11
Sobre o nexo espacial das categorias musicais Wauja, ver Mello & Piedade (2005).
12
Ver Franchetto (2004) para a utilizao do paralelismo nestas categorias analticas (cena, bloco, e
outras) em sua anlise de narrativas kuikro.
Pude observar vrios rituais de flautas kawok entre os Wauja, e tentei mostrar, em minha
tese, atravs da anlise do nvel motvico destas peas musicais, que h nesta msica um
pensamento sobre a repetio, a variao e a diferena. Utilizo a noo de jogo para falar
do jogo dos motivos que se estabelece neste repertrio, mas com isto no pretendo apontar
para um aspecto de permeabilidade ou indeterminao, mas sim para o carter regulamentar
do jogo, para o sentido das regras do jogo.
O jogo dos motivos na msica kawok uma potica musical que trata da confeco da
diferena, dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existncia, ou seja, na
temporalidade. Os diferentes sistemas musicais do mundo resultam no apenas de poticas
diversas, mas de diferentes formas de perceber a temporalidade. O pensamento musical
uma expresso da cosmologia posta em ao na msica, revelando concepes fundantes da
filosofia nativa no mbito da temporalidade. Portanto, o sistema musical tem tambm um
carter existencial, pois reporta a formas de temporalidade concebendo a finitude.
Neste sentido, a msica kawok um exemplo forte de como a temporalidade nativa
instaura possibilidades de recortar e recombinar as estruturas temporais de forma potica.
Pode-se dizer que a msica pronuncia formas da temporalidade, a partir de uma perspectiva
espacial. Quando ouvia as flautas kawok noite, na aldeia, ouvia os instrumentos
investidos de um mximo de significado, no apenas para mim, mas certamente para os
Wauja. Para os flautistas, o esprito presentificado, ele mesmo que estava ali falando, a
msica sua fala, kawokagatakoja, fala do kawok. O esprito apapaatai se pronuncia
pelo jogo dos motivos, entrecortando o tempo de forma potica. Esta qualidade do som
musical, entrelaado originariamente no contexto do panorama sonoro onde foi concebido e
construdo, aponta para a importncia do que foi chamado de acustemologia (ver Feld,
1997). Neste sentido, ouvir uma gravao da msica (ex-tica) como perceber uma
filmagem potica do espao que revela as formas nativas da temporalidade. Trata-se da
experincia de ouvir como o outro ouve o espao e expressa o tempo.13
Para os Wauja, a palavra ki quer dizer som, qualquer fenmeno sonoro. Entretanto,
quando se trata dos sons musicais, no se fala ki, mas sim onaapa, cano. O termo
pitsana, que traduzi por msica-timbre, e watanapitsana msica-timbre aerofnica,
expressam msicas entendidas como imagens acsticas de vozes de animais e outros entes.
Lembro que pitsana e watanapitsana informam que se trata de msica instrumental, que
sempre aerofnica, enquanto onaapa usado para msica instrumental ou vocal. Pitsana e
watanapitsana, portanto, so categorias internas de onaapa, a palavra nativa para msica,
entendendo-se que, para os Wauja, msica cano: o lexema onaapa tem sua raiz no
verbo apai, cantar. Entretanto, o sentido nativo de cantar no aponta apenas para entoar
canes, mas para criar um enunciado musical, produzir um discurso musical, pronunciar
uma frase musical, uma idia. O cerne da msica de kawok, aquilo que a torna msica, o
canto do kawokatop, o flautista mestre que canta, apai, enquanto que os acompanhantes
apenas sopram, ejekepei. Pronunciar uma idia no apenas um fazer sem fundamento
ou conseqncias: uma idia uma possibilidade, uma antecipao do pensamento.14
Diante destas descobertas sobre a msica de flautas kawok, que podem ser em grande
parte generalizadas para o contexto xinguano, cabe a pergunta: ser que nas msicas
instrumentais indgenas vige um carter potico que se oculta no que ouvimos como mera
repetitividade? O que se pode dizer da repetio na msica amerndia?
13
Da mesma forma que na msica, uma pintura de uma poca do passado foi produzida segundo uma
viso de mundo ancorada em um contexto de origem (Baxandall, 1991), e, portanto, feita para ser
vista por um olhar que j no existe, que nos apenas aproximvel.
14
Estou pensando aqui simultaneamente no conceito de poesia na Potica de Aristteles, em Dewey
(Logic II), para quem idia, mais do que representao mental, marca uma possibilidade, antecipa o
real, e em Attali (1993).
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Accio Tadeu de Camargo Piedade Doutor e Mestre em Antropologia (UFSC),
Bacharel em Msica (UNICAMP); professor e pesquisador nas reas de
musicologia/etnomusicologia e composio/arranjo no Departamento de Msica da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa
MUSICS (Msica, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e
Sociedade na Amrica Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International
Council for Traditional Music (ICTM), da Associao Brasileira de Antropologia
(ABA), da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica (ANPPOM)
e da Associao Brasileira de Etnomusicologia (ABET).
O primeiro a ser entrevistado foi Juarez Arajo, msico nascido no Nordeste que emigrara
para o Sudeste do pas ainda na poca das grandes orquestras de rdio. Durante a entrevista,
conduzida aps uma apresentao de Juarez no Caf Allegro, dentro da loja de discos
Modern Sound no Rio de Janeiro, pude notar a emoo com que Arajo falava de sua
1
Standard entre os msicos de jazz, standard uma pea que seria parte do repertrio bsico de
todo improvisador. Uma composio que obrigatoriamente todos devem saber.
2
Foram conduzidas entrevistas com as saxofonistas Juarez Arajo (1930-2003), Nivaldo Ornellas
(1941- ), Widor Santiago (1961- ), Eduardo Neves (1968- ) e Marcelo Martins (1969- ).
10
histria, uma trajetria rica que possivelmente, ele jamais havia tido a oportunidade de
contar. Mesmo no sendo um dos focos da minha pesquisa, deixei ele contar a sua vida
musical. Alguns meses depois, Juarez Arajo viria a falecer e a minha entrevista, conduzida
para a minha tese, viria a ser o seu ltimo depoimento. Nesse instante, decidi que ampliaria
o foco das entrevistas para tentar, mesmo dentro de uma tese sobre as prticas musicais,
tentar contar um pouco das vidas e das carreiras destes excelentes msicos. Em suma, uma
iniciativa de registrar, antes que se tornasse tarde demais, uma parte da memria musical da
minha cidade.
Tradio Oral
A cultura europia se desenvolveu durante grande perodo de nossa histria se baseando em
formas de escrita onde at a escrita musical pode ser includa. Se hoje estudamos Bach,
Mozart, Beethoven e tantos outros mestres porque a obra construda por eles foi, dentro
dos padres disponveis a cada um, registrada em forma de partituras que foram passando
de gerao para gerao.
Outras culturas no tinham essa linguagem como ponto de comunicao ou registro e as
heranas culturais eram transmitidas de outras maneiras, utilizando-se basicamente da via
de transmisso oral. Na msica da Amrica do Norte, assim como na msica da Amrica do
Sul, manifestaes musicais que no fossem oriundas das tradies europias e, por isso
mesmo, tambm no eram grafadas em forma de partitura, sem que isso significasse dizer
que no eram aprendidas pelos mais jovens. Em alguns casos, a msica, na viso de alguns,
chegou-se a se tornar quase a essncia dessa cultura. Ben Sidran (1971) na introduo de
seu livro Black Talk defende que nos Estados Unidos a msica no apenas um reflexo
dos valores da cultura negra mas, de uma certa forma, a base sobre a qual essa cultura
construda(p.XXI).3 A msica se tornou a verdadeira forma de arte de uma camada de
novos americanos impossibilitados de se expressarem de qualquer outra forma. Essa
msica no s se criou fora das bases tradicionais da msica ocidental partituras,
conservatrios, etc como se transformou em uma forma de arte complexa graas
tradio da cultura oral:
Pode-se dizer com certo grau de preciso que a cultura oral foi, por natureza,
uma cultura underground no contexto cultural da Amrica letrada; onde
simplesmente ser negro era razo suficiente para se sentir inconformado. Cada
membro da cultura oral, segundo os padres letrados, era um elemento de
desvio, engajado num comportamento que durante a Era do Jazz (jazz age)
era sem dvida alguma contrrio s normas aceitveis (Sidran, Black Talk, p.
80).4
Yet I contend that music is not only a reflection of the values of black culture but, to some extent, the
basis upon which is built. (Sidan, Black Talk. p..xxi)
4
It could be said with a certain amount of accuracy that the oral culture was, by nature, an
underground culture in the context of literate America; that simply being a Negro in America was
grounds for nonconformity. Each member of culture was, in terms of the criteria of the literate
culture, a deviant, engaging in behavior that reevaluated as it was during the Jazz Age was
nonetheless contrary to the accepted form. (Sidan, Black Talk. p.80)
11
Quando um msico jovem procurava informao fora dos padres da herana europia ele
tinha de recorrer tradio oral. O prprio Mingus na infncia vai estudar na escola
violoncelo e depois de se apaixonar pelo jazz muda para o contrabaixo, no sem antes
receber conselhos de um amigo:
Arrume um contrabaixo e ns te colocamos na banda de swing do
sindicato. Buddy me disse () Isso mesmo! Voc negro. Nunca vai
conseguir nada na msica clssica no importa como voc toque. Se voc
quiser tocar, tem de tocar um instrumento de negro (Mingus, Beneath the
Underdog. p. 41). 6
Mais adiante Mingus vai experimentar a melhor forma de aprender pela tradio oral
quando passa as tardes na casa do pianista Art Tatum e assimila o que de avanado se fazia
no jazz. Durante muitos anos foi assim no jazz, os msicos aprendiam uns com os outros. A
partir da dcada de setenta comeam a aparecer alguns centros universitrios nos Estados
Unidos que criam um jazz department. Atualmente raro uma faculdade de msica
americana que no tenha institudo um departamento exclusivo para o jazz.
Mas aqui no Brasil, essa prtica, de aprender com colegas mais avanados uma das mais
comuns dentro dos universos das msicas no-eruditas pois h poucas escolas onde o
material didtico est organizado. Nos grandes centros existem algumas opes mas ainda
assim fora das universidades. H algumas iniciativas em andamento mas ainda so
relativamente recentes como pude perceber durante as entrevistas com alguns msicos
atuantes no cenrio instrumental visto que nenhum deles havia cursado uma faculdade.
Todos aprenderam com colegas e na busca de informaes sempre que elas se tornavam
disponveis.
O saxofonista mineiro Nivaldo Ornellas conta:
Eu perguntava para as pessoas sobre harmonia e elas me diziam que estava
bom o que estava tocando, mas eu sabia que no estava. Eu achava que elas
estavam escondendo o jogo e ficava revoltado. S anos mais tarde descobri
que no era por causa disso, eram eles que tambm no sabiam coisa
nenhuma. Depois disso conheci um cara chamado Marilton, que era bom de
harmonia e tratei de colar nele. Comecei pelas musicas dos Beatles, que
aprendi todas, eram coisas mais simples e naquela poca tinha muito Beatles
rolando. Ai comecei a conviver com o Chiquito Braga e eu ficava horas vendo
ele tocar, depois conversava com ele sobre improvisao. E me dei conta que
era impossvel improvisar sem saber harmonia. (Figueiredo, 2005, p. 29).
Nivaldo conta uma interessante prtica musical que experimentou nesse perodo:
Outras pessoas importantes para mim foram o Valtinho, o Toninho Horta, que
j fazia umas coisas muito legais, e o Milton (Nascimento), que tocava bem
tambm, e eu tratei de ficar colado nestes caras. Ento comecei a botar em
prtica. O Valtinho reunia a garotada, fazia uma roda, botava o Milton no
5
In Watts, itinerant teachers not always skilful or well educated in music themselves traveled
from door to door persuading colored families to buy lessons for their children. Mr. Arson was one of
them, out of the few bucks he collected weekly from each of many black families whose money paid
his bill in a white only section of LA.(Mingus, Beneath the Underdog. p. 14)
6
Go get yourself a bass and well put in our Union swing band. Buddy told my boy. () Thats right.
Youre black. You will never make it in classical music how good you are. You want to play, you gotta
play a Negro instrument. () (Mingus, Beneath the Underdog. p. 41)
12
Outro saxofonista, Widor Santiago conta experincia semelhante eu e o Nelson (Henriquetrompetista) ramos vizinhos de parede e quando um ouvia o outro estudando batia na
parede e amos estudar juntos (Figueiredo, 2005, p. 51). E quanto mais msicos formos
procurar mais histrias assim ouviremos pois essa msica comeou a se desenvolver pela
tradio oral e ainda continua utilizando desse meio para evoluir.
Na verdade podemos e devemos disponibilizar nas nossas instituies de ensino musical
prticas oriundas de manifestaes musicais no-eruditas pois so conhecimentos que nos
cercam e no h motivo para ignora-los e sim para aprendermos com eles e estimularmos o
seu desenvolvimento. Todavia, essa forma de contato onde os msicos trocam informaes
de maneira informal est no cerne da prtica dessas msicas e jamais ir, felizmente,
desaparecer.
Outra forma de transmisso de conhecimento pela tradio oral seriam as aulas particulares
que possivelmente dez entre dez msicos populares usufruram em algum instante da sua
formao como ilustra o saxofonista Juarez Arajo:
e quando me mudei para outra cidade chamada Araguari, tive a felicidade de
conhecer o maestro Guerra Peixe (1914-1993) que me viu tocar em uma
orquestra muito boa que l havia. Fazia sempre muitas perguntas a ele sobre
msica e ele, ao ver meu interesse, se ofereceu para me dar aulas. (Figueiredo,
2005, p. 24)
Toninho Horta (1948-) guitarrista, violonista e compositor mineiro dos mais influentes na msica
brasileira.
13
Entrevistas
Desde do meu primeiro esboo do projeto que viria a se transformar na minha tese de
doutorado conclu que teria de fazer entrevistas para colher dados a respeito dos
improvisadores e suas influncias pois no havia disponvel nenhuma bibliografia a respeito
dos msicos, apenas alguns mtodos de ensino editados pelo mercado editorial e encartes
de CDs. Muitos desses msicos, verdadeiros artistas com grande domnio instrumental
estavam margem de qualquer registro impresso. Haviam, claro, gravaes onde eles
mostravam a sua habilidade mas isso apenas despertava mais curiosidade a respeito da
formao musical e experincia profissional.
Uma vez iniciado o doutorado comecei as entrevistas pelo saxofonista Juarez Arajo,
certamente por ele ser o mais velho do grupo selecionado para as entrevistas. Encontrei
com Juarez ao final de uma apresentao sua na loja de discos Modern Sound em
Copacabana, bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro. A conversa fluiu com suavidade e
Juarez se emocionou ao contar a sua histria e falar das pessoas que haviam sido
importantes na sua carreira. Mesmo sendo a histria musical de Juarez alm do escopo da
minha tese, deixei ele discorrer sobre esses fatos pensando inicialmente que esse material
seria descartado por mim quando estivesse trabalhando na edio final da entrevista.
Infelizmente algumas semanas aps o nosso encontro Juarez viria a falecer e a minha
entrevista acabaria por ser o seu ltimo depoimento.
Por ocasio de um tributo a Juarez fui contatado por uma das organizadoras que me pediu
uma copia escrita da entrevista pois havia sido alm do ltimo depoimento de Juarez, esse
era um onde ele contava a sua vida. Esse fato me fez pensar que possivelmente eu havia,
por caminhos do acaso, me deparado com uma questo que talvez fosse maior que a minha
tese: a questo histrica. E mesmo a minha tese sendo sobre a prtica musical, dentro do
rea de prticas interpretativas, eu deveria realizar as entrevistas tendo em pauta tambm a
questo documental.
Para entrevistar esse msicos eu recorri a um expediente que foi de extrema importncia:
ser um insider, ou seja, ser tambm um msico com atuao profissional e portanto, estar
em condies de entender os jarges utilizados entre os msicos. No ser tratado como um
estranho ao meio possibilitou um conversa franca onde a confiana do entrevistado foi
fundamental para o resultado final. Como obter essa confiana algo que o pesquisador
deve refletir muito antes de comear qualquer entrevista sobre o risco de ser tratado como
um reprter ou algo similar. Muitas vezes o entrevistado pode no entender bem sobre o
que o pesquisador est trabalhando mas se h confiana do entrevistado o pesquisador pode
direcionar a entrevista sem que ocorra incertezas quanto a seus objetivos por parte de quem
est sendo entrevistado.
As diferenas que existem entre uma entrevista com o intuito de se colher material de
pesquisa ou uma entrevista dada a um reprter de jornal ou revista podem no ficar muito
claras pois as questes formuladas podem parecer similares e cabe ao pesquisador deixar
claro que essa entrevista no ser publicada em poucos dias e que respostas como lano
semana que vem o meu novo CD e conto com os apoios no tem relevncia. Ainda
assim uma questo delicada pois todo artista est sempre preparado para divulgar o seu
trabalho sempre que h um oportunidade, principalmente aqueles que no despertam
ateno dos principais meios de comunicao. No ferir sensibilidades e simultaneamente
manter o foco durante a entrevista pode ser a garantia de um resultado satisfatrio.
14
Concluso
As entrevistas fazem uma ponte entre a tradio oral e o estudo terico pois permitem que
se transcreva, edite e avalie o material obtido dentro do universo do assunto a ser
pesquisado. Aproximar o mundo acadmico das prticas musicais que se processam, na
maioria das vezes, de forma oral em crculos artsticos distantes ou arredios ao estudo
institucionalizado uma necessidade e talvez, uma funo do pesquisador dos tempos
atuais quando observamos uma valorizao dos processos criativos ditos populares.
Contar a histria desses msicos que fazem a msica no-erudita no nosso pas ajudar a
entender a msica do nosso tempo que se desenvolve, na maioria dos casos, ainda fora dos
centro acadmicos e em muitas vertentes fora das mdias principais. Essas manifestaes
culturais que se desenvolveram pela tradio oral possivelmente devem ser abordadas
dentro dos mesmos parmetros para depois, podermos estuda-las em toda a sua
complexidade.
Referncias bibliogrficas
FIGUEIREDO, Afonso Claudio. Improvisao no Saxofone: A Prtica da Improvisao Meldica na
Msica Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do sculo XX. Tese de doutorado.
UNIRIO, 2005.
SIDRAN, Ben. Black Talk. Da Capo Press, New York, USA:, 1991.
MINGUS, Charles. Beneath the Underdog. Payback Press, Edinburgh EH1 ITE, 2000
Introduo
Utilizando o programa MUSIC V, criado por Max Mathews, John Chowning desenvolveu o
que chamou-se Sntese Sonora por Modulao de Freqncia - ou simplesmente: Sntese
FM - por meio de configuraes especficas dos dispositivos espectrais.
Dispositivos espectrais so algoritmos que modelam o funcionamento dos
elementos bsicos de hardware, que combinados formam os instrumentos musicais
construdos para diversos tipos de sntese. Os dispositivos comumente encontrados nas
diferentes tcnicas so (Mathews et al, 1969):
16
Configurao FM simples
O instrumento FM bsico consiste em dois osciladores senoidais. Um sinal de freqncia
constante c (chamada portadora) somado saida do oscilador modulante com freqncia
m, e o resultado aplicado entrada de freqncia do oscilador da portadora. Se a
amplitude do sinal modulante for zero, no h modulao e a sada do oscilador da
portadora ser simplesmente uma senide com freqncia c. Quando a modulao ocorre,
o sinal proveniente do oscilador modulante varia a freqncia portadora proporcionalmente
amplitude do sinal do oscilador modulante, como podemos ver representado graficamente
na Fig. 2.1:
m = freq. moduladora
c = freq. portadora
d = amplitude da moduladora
a = amplitude da portadora
Freqncias:
c k.m ,
[k = 0, 1, 2, 3...n onde n = I + 2]
para k = 0, 1, 2, ..., n
17
c - 3m
c - 2m
cm
c+m
c + 2m
c + 3m
A determinao das amplitudes relativas dos componentes de freqncia de uma dada razo
c:m proveniente das funes de Bessel do 1o. tipo de ordem k, relacionada com a k-sima
ordem de freqncia, superior e inferior. Ento:
g(t) = A(t) { Jo (I(t)).sen(wc.t)
+J1(I(t)).[sen(wc+wm)t - sen(wc-wm)t]
+J2(I(t)).[sen(wc+2wm)t + sen(wc-2wm)t]
+J3(I(t)).[sen(wc+3wm)t - sen(wc-3wm)t]...}
onde:
wc = 2p.fc
wm = 2p.fm
Jk(...) a funo de Bessel do 1o. tipo, de ordem k.
A amplitude de cada banda lateral depende do ndice de modulao como mostra a tabela
abaixo:
18
banda inferior
banda superior
freqncia
amplitude
freqncia
amplitude
c-m
-J1(I)
c+m
J1(I)
c - 2m
+J2(I)
c +2 m
J2(I)
c - 3m
-J3(I)
c + 3m
J3(I)
c - 4m
+J4(I)
c + 4m
J4(I)
19
componente negativa inverte sua fase, ou seja, equivalente a uma componente positiva
com fase oposta.
Exemplo:
banda inferior
freqncia
banda superior
amplitude
freqncia
amplitude
c - m = 200
-J1(I) = -0,5767
c + m = 600
J1(I) = 0,5767
c - 2m = 0
+J2(I) = +0,3528
c +2 m = 800
J2(I) = 0,3528
c - 3m = - 200
-J3(I) = - 0,1289
c + 3m = 1000
J3(I) = 0,1289
c - 4m = - 400
+J4(I) = + 0,0339
c + 4m = 1200
J4(I) = 0,0339
20
(iv)
(v)
(vi)
(vii)
(viii)
(ix)
21
Jki(Ii)
freqncias
n
S ci ki.mi
1
Jk(I)
n
S ci ki.m
1
22
onde
Jk1(I1).Jk2(I2) o fator de amplitude relativa
para k1 = 0, 1, 2,...,n1 onde n1 = I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 = I2 + 2
onde
Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3) o fator de amplitude relativa
para k1 = 0, 1, 2,...,n1
onde n1 ~ I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 ~ I2 + 2
k3 = 0, 1, 2,...,n3
onde n3 ~ I3 + 2
amplitudes
Freqncias
Jk1(I1).Jk2(I2)
c k1.m1 k2.m2
Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3)
c k1.m1k2.m2 k3.m3
P Jki(Ii)
1
23
n
c S ki.mi
1
k1 = 0, 1, 2,...,n1
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n1 ~ I1 + 2
onde n2 ~ I2 + 2
(iii.2) Para 3 modulantes em srie atuando sobre uma portadora tem-se as componentes de
freqncia pela combinao:
c k1.m1 k2.m2 k3.m3
onde
Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3) o fator de amplitude relativa
Para k1 = 0, 1, 2,...,n1
onde n1 ~ I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 ~ I2 + 2
k3 = 0, 1, 2,...,n3
onde n3 ~ I3 + 2
2
1
amplitudes
freqncias
Jk1(I1).Jk2(k1.I2)
c k1.m1 k2.m2
24
Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3)
c k1.m1 k2.m2
k3.m3
2
1
n
c S ki.mi
1
3
2
onde:
xamp = amplitude
kcps* kcar = freq. portadora
kcps * kmod = freq. moduladora
kndx = ndice de modulao
ifn = identificao da funo da forma de onda
iphs = fase inicial
Entretanto, para nossos propsitos, torna-se mais didtico usarmos aqui a conexo de
unidades bsicas de osciladores, mtodo que nos ser til para implementarmos tambm as
configuraes complexas.
25
; configurao FM simples:
amod
oscili indice*ifq2, ifq2, 1 ; moduladora
a1
oscili iamp, ifq1+amod, 1 ; portadora
out
a1
Csound um programa freeware (www.csounds.com) e, por ser cdigo aberto, conta com
desenvolvedores em toda a comunidade acadmica mundial. Uma introduo aos mtodos clssicos
de sntese implementados em Csound, incluindo sntese FM pode ser encontrada em (Fishman, 2000),
no livro Csound Book. No mesmo livro, encontramos um captulo especfico para SnteseFM
(Pinkston, 2000).
2
Diferentemente de Csound, MAX-MSP um programa comercializado (www.cycling97.com).
Entretanto, seu criador Miller Puckette desenvolveu uma verso freeware, chamado Pure Data (PD),
disponvel em (www.puredata.org), tambm multiplataforma.
26
27
28
da
Sociedade
APOIO:
FUNAPE Fundao de Apoio Pesquisa - UFG
Brasileira
de
Msica
Eletroacstica
Introduo
O foco da minha pesquisa a viola branca, instrumento utilizado no fandango do litoral
Sul brasileiro. A investigao se constitui do estudo detalhado deste instrumento nas
localidades de Iguape e Canania, litoral Sul do Estado de So Paulo. A pesquisa se
caracteriza, sobretudo, como etnomusicografia, abordando, ainda, aspectos scio-culturais
que envolvem o uso do instrumento no fandango, enfocando-se tambm elementos tcnicomusicais e exploraes das possibilidades de execuo do instrumento, alm daquelas j
conhecidas e praticadas na regio, gerando um material tcnico-bibliogrfico acompanhado
de CD udio ilustrativo.
A viola branca guarda mais diferenas do que semelhanas com a viola caipira, desde a sua
construo e afinao at a tcnica de execuo. Pouco se sabe sobre ela, pois ao contrrio
do que acontece com a viola caipira, no encontramos, at o momento, registros de estudos
especficos sobre este instrumento peculiar, provavelmente uma reminiscncia do sc. XVI.
O instrumento basicamente utilizado no fandango, com a funo de acompanhar as
canes.
A viola branca citada por alguns autores - como Maynard Arajo e Kilza Setti-,
principalmente como instrumento tpico encontrado no litoral Sul brasileiro, utilizado no
fandango. Roberto Corra, violeiro e pesquisador, cita o instrumento em seus dois trabalhos
editados sobre viola caipira:
No litoral paulista, foram encontradas violas com sete cordas (dois pares e trs singelas),
nove cordas (quatro pares e uma singela), e dez cordas (cinco pares), todas mantendo as
cinco ordens de cordas. (1989, p. 16).
A viola que mais se diferencia a viola beiroa, pois, alm do cravelhal normal, com dez
cravelhas onde as cordas so esticadas apresenta outro pequeno cravelhal, ao lado da
caixa de ressonncia, em cima do brao, com duas cravelhas. No litoral Sul do Estado de
So Paulo e no litoral do Paran, encontram-se, ainda hoje, violas tambm com este
pequeno cravelhal ao lado da caixa de ressonncia, mas com apenas uma cravelha. (2000,
p. 22).
O artigo de Toninho Macedo (outubro de 1997) foi o primeiro trabalho onde encontramos
informaes mais especficas sobre o instrumento. H tambm em nossa bibliografia
trabalhos que tratam, em carter mais geral, do fandango do litoral Sul. De qualquer
maneira, poucos deles se aprofundam em questes tcnicas e especficas sobre o
instrumento.
No litoral Sul do Estado de So Paulo, nas localidades de Iguape e Canania, o folguedo
chegou beira do esquecimento. Alguns fatores como a criao de uma reserva ambiental
de proteo integral, a influncia de grupos religiosos e a busca de novos meios de vida
tiveram alguma influncia para tal fenmeno. H cerca de dez ou quinze anos, alguns
30
2.
3.
4.
Quais so as afinaes?
5.
6.
7.
8.
9.
31
2.
3.
4.
Fazer um estudo detalhado sobre a viola branca em Iguape e Canania, desde sua
construo sua performance e tcnicas de execuo, tendo em vista a escassez de
informaes tcnicas e cientficas sobre o instrumento em nossa bibliografia;
32
Para o autor, h hoje um paradigma relacionado com a arte avanada de esquerda: o autor
como etngrafo (Foster, 1995, p. 302, traduo nossa) . E o que muda o sujeito da
contestao, que passa a ser, segundo Foster, o cultural e/ou o outro tnico (Foster, ibid,
traduo nossa) :
E ainda, apesar desta mudana, suposies bsicas com o velho modelo produtivista
persiste no novo paradigma quase-antropolgico. Primeiro existe a suposio que o lugar
da transformao artstica o lugar da transformao poltica, e mais, que este lugar est
sempre localizado noutro lado, no campo do outro: no modelo produtivista, com o outro
social, o proletrio explorado; no modelo quase-antropolgico, com o outro cultural, o pscolonial oprimido, subalterno, ou sub-cultural (1995, p. 302, traduo nossa) .
Neste sentido, o autor chama ateno ao perigo para o artista como etngrafo, do
patrocnio ideolgico (Foster, 1995, p. 303, traduo nossa):
O que quero dizer mais simples do que parece. Assim como o produtor
procurou fixar-se na realidade do proletariado, em parte somente para situarse no lugar do patro, ento o artista quase-antropolgico deve hoje procurar
trabalhar reunido com comunidades, com os melhores motivos do
engajamento poltico e transgresso institucional, em parte, somente ter este
trabalho re-decodificado pelos seus patrocinadores como escape social,
desenvolvimento econmico, relaes pblicas... ou arte. (1995, p. 303,
traduo nossa).
O que quero reter aqui o conceito de artista quase-antropolgico. O autor tambm trata
em seu texto, entre outras coisas, da perda do espao fsico como o lugar da arte, como,
por exemplo, os museus. Ele atenta tambm para a utilizao dos mtodos etnogrficos por
estes artistas quase-antroplogos.
No entanto, transferindo estas reflexes para meu objeto de estudo, questiono se tal
fenmeno no poderia tambm ser notado em trabalhos etnomusicolgicos? Quero dizer, o
pesquisador, principalmente quando msico e neste sentido, incluo-me entre eles no
corre o risco de assumir este papel, o do artista quase-antropolgico? Certamente
desconhecendo as ferramentas da Antropologia, como alerta Foster para a utilizao dos
mtodos etnogrficos por esses artistas, parece-me possvel traar uma comparao. Neste
caso, pode haver o envolvimento do pesquisador-msico com o objeto pesquisado, e o
perigo de interferir numa tradio iminente. O conhecimento de procedimentos
metodolgicos das reas da Antropologia e da Sociologia fundamental para o
pesquisador-msico, que em alguns casos, s passa a ter contato com temas dessas reas na
ps-graduao.
Outro ponto a ser levado em considerao so os interesses envolvidos no resgate de uma
tradio. H seis anos, em pesquisa de campo sobre o fandango de Iguape, principalmente
com a Associao Jovens da Juria, notava-se por meio de relatos dos moradores e
dirigentes da associao, que a necessidade de resgatar o folguedo nascia da carncia
naquela comunidade de suas razes culturais e principalmente o abandono da regio pelos
mais jovens. Atualmente, o envolvimento de instituies externas em projetos da
comunidade pode acabar atraindo o interesse do poder pblico e o da indstria cultural. H
necessidade de identificar at que ponto existe interferncia destes interesses externos no
resgate do folguedo. Jos Jorge de Carvalho, em seu texto sobre tradies performticas
afro-brasileiras, alerta para o interesse da indstria de entretenimento no que ele chama de
patrimnio cultural imaterial, que aqui so as artes performticas da cultura de tradio
popular (msica, dana, teatro e autos dramticos). Carvalho sugere que o pesquisador seja
mediador entre comunidade e indstria cultural:
33
Para que esse conflito se resolva, penso que o pesquisador dever informar
comunidade exatamente todos os acordos e conseqncias de sua insero na
indstria cultural [...] Ser necessrio um compromisso explcito do
pesquisador de tornar-se no apenas porta-voz da fala do grupo para o
mercado de espetculos, mas tambm de tornar-se um porta-voz para o grupo,
de fora para dentro, instruindo os artistas populares sobre as regras e os
valores desse mundo plenamente capitalista que agora os solicita e absorve.
(2004, p. 75).
Assim como Marcus e Meyers colocam em seu texto introdutrio do livro The trafic in
culture refiguring art and anthropology, que a questo central para arte moderna tem
sido o relacionamento ou limite entre arte e no arte (1995, p. 6), Canclini tambm
tenta encontrar este limite no caso latino-americano.
34
A questo que quero levantar dentro dessa discusso o lugar ocupado pelo objeto de arte
da tradio popular. O fandango uma funo popular, e esta entendida e praticada dentro
de um contexto social. No momento em que transplantado do seu contexto, perde-se a
origem e o sentido de sua funo. H o risco, conforme mencionado no incio do texto, de
outras influncias distorcerem o que tradio popular, ao torn-la um objeto de consumo
da indstria cultural. Para esclarecer melhor, remeto-me uma vez mais ao texto de Jos
Jorge de Carvalho:
O pagamento do espetculo, que sela a compra e a garantia de um tempo de
lazer para o consumidor branco, significa retirar o tempo de que o artista
popular (quase sempre negro) necessita para exibir sua arte humanizante. O
que me leva a refletir que talvez o prprio tempo seja um dos maiores
patrimnios culturais intangveis das comunidades indgenas e afrobrasileiras. Um tipo de patrimnio ameaado justamente pela compreenso do
tempo na indstria cultural do capitalismo contemporneo. (2004, p. 71).
No caso do fandango, como funo popular, ele ocorre (ou ocorria!) aps os mutires.
Dana-se e toca-se a noite toda, at o dia amanhecer, seguindo quase que uma espcie de
ritual. No momento em que levado ao palco, seja em festivais ou apresentaes prpria,
grande parte da funo amputada, j que na indstria do entretenimento, o tempo de
durao do espetculo na maioria das vezes determinante, de acordo com Carvalho.
Outra questo que pretendo discutir, a partir do trabalho de investigao cientfica, em
que medida a apropriao da tradio popular dessas reas rurais, por acadmicos e/ou por
comunidades de reas urbanas, interfere na funo popular em si. Tomando a viola caipira
como exemplo, pode-se esclarecer um pouco melhor a questo. Houve um momento em
que o crescente interesse pelo instrumento por parte de pesquisadores pesquisadoresmsicos, como Roberto Corra e Paulo Freire, entre outros fez com que a viola caipira
fosse transportada do meio rural para os palcos e escolas de msica. Hoje em dia, o
instrumento est presente em curso universitrio no Estado de So Paulo (USP de Ribeiro
Preto, professor Ivan Vilela). Claro que no se pode fazer uma comparao integral com a
viola branca e o fandango, j que possvel que eles no sigam o mesmo percurso da viola
caipira.
Concluso
O que reflito neste texto o perigo, parafraseando Foster, do pesquisador-msico quaseantropolgico. O trabalho de pesquisa etnomusicolgica sem o devido respaldo
antropolgico e/ou sociolgico pode acarretar a execuo de um trabalho ineficiente e
equivocado. H tambm o risco, j mencionado, do envolvimento de interesses polticos e
comerciais nas comunidades e na tradio cultural popular, levando deturpao de sua
funo.
Sobre os estudos da cultura popular, Canclini diz o seguinte:
[...] grande parte dos estudos folclricos nasceu na Amrica Latina graas aos
mesmos impulsos que os originaram na Europa. De um lado, a necessidade de
arraigar a formao de novas naes na identidade de seu passado; de outro, a
inclinao romntica de resgatar os sentimentos populares frente ao
iluminismo e ao cosmopolitismo liberal. Assim condicionados pelo
nacionalismo poltico e humanismo romntico, no fcil que os estudos
sobre o popular produzam um conhecimento cientfico. (1997, p. 211).
35
2.
Neste sentido, estas questes so pertinentes neste trabalho de pesquisa sobre a viola
branca, alm de ser quase inexistente informaes mais especficas sobre este instrumento,
diferente do que ocorre com a viola caipira.
Portanto, como mencionado no incio, busco com este artigo refletir sobre algumas
questes scio-culturais que permeiam o projeto de pesquisa, mais que respostas fechadas.
36
Dessa forma, aponto aqui os rumos que devero tomar tais discusses em meu trabalho de
investigao.
Referncias Bibliogrficas
ARAJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional: Dana, recreao e msica. V2, 2ed. So Paulo:
Melhoramentos, 1967.
BITTAR, Nazir. A Pluralidade do Fandango: Dana, Teatro e Baile. In: BRITO, Maria de Lourdes
da Silva (et. al.). Fandango de Mutiro. Curitiba: Editora Grfica Meleart, 2003. pp. 1519.
CANCLINI, Nstor Garcia. Culturas Hbridas. Traduo de Helosa Pezza Cintro, Ana Lessa. So
Paulo: Edusp, 1997.
CARVALHO, Jos Jorge de. Metamorfoses das tradies performticas afro-brasileiras: de
patrimnio cultural a indstria de entretenimento. In: Londres, Ceclia (et al.). Celebraes e
saberes da cultura popular: pesquisa, inventrio, crtica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte,
Iphan, CNFCP, 2004, pp. 6583.
CORRA, Roberto Nunes. A arte de pontear viola. Braslia/ Curitiba: Ed. do Autor, 2000.
_____. Funes Populares. In: MARCHI, Lia, SAENGER, Juliana, CORRA, Roberto. Tocadores:
homem, terra, msica e cordas. Curituba: Palloti, 2002. Msica e Cordas, pp. 104111.
_____. Viola Caipira. Braslia: Viola Corra Produes Artsticas, 1989.
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Cintia B. Ferrero bacharel em Msica, habilitada em Composio e Regncia
formada pelo Instituto de Artes da Unesp, So Paulo. Teve bolsa CNPq de Iniciao
Cientfica no projeto Gneros de Msica Popular Brasileira: fundamentos tcnicoestruturais e histrico-sociais, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda. Parte do
projeto esteve dedicado a pesquisa de campo sobre a msica caiara praticada no
litoral Sul paulista. Foi assistente de gerncia da Orquestra Sinfnica do Estado de
So Paulo (Osesp) por dois anos, mantendo paralelamente atividades como violonista,
compositora e professora de violo. No curso 2003/2004 realizou especializao em
seu instrumento (violo) em Madri, Espanha, com bolsa da Fundacin Carolina.
Atualmente, realiza ps-graduao (mestrado) em Msica no Instituto de Artes da
Unesp, So Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda, com apoio da Fapesp.
Fig. 1
Enquanto estou em silncio, afasto-me do tambor grande, passando pela frente da bateria. Marcos,
usando duas baquetas, produz sonoridades intercalando os instrumentos: tom-tom/ pratos; tom-tom/
1
38
surdo; tom-tom / chimbal; at que consegue fazer tudo ao mesmo tempo. No olho para Marcos, mas
ele me acompanha e sua expresso facial parece ser de satisfao. Esse momento teve uma durao
aproximada de 2 e 35 (tempo observado no registro da gravao). Na seqncia, Marcos dirige-se
ao piano e experimenta as teclas agudas. Digo que vou buscar uma baqueta para mim no armrio.Ele
volta bateria sozinho, experimenta o tambor e por ltimo o chimbal [Fig. 2]. O clima de expectativa
continua.
Fig. 2 Expectativa no ar
Quando chego com a baqueta maior, ele diz: deixa ver, usando a baqueta no tambor (uma batida no
centro e uma na lateral). Eu pergunto: quer trocar uma das baquetas? Ele, ento, percute no tomtom trs colcheias e responde no.Volta para o tambor grande e, olhando para mim, faz duas
semnimas, duas colcheias e uma semnima, eu o escuto e o imito [Fig. 3]. J na minha primeira
batida, ele olha para minha mo e pra de tocar; eu olho para ele e no paro de tocar;ele aceita este
contato que acontece atravs do olhar e continuamos... ele no tambor e eu na caixa. Ele segue a
pulsao com a cabea e ento olha para o carrilho, aponta com a baqueta e fala para eu tocar no
carrilho. Acelera a clula rtmica. Eu, no carrilho, fao um pulso rtmico passando para o prato,
marcando a pulsao na velocidade sugerida por ele e depois buscando a reverberao que
acompanhada por um movimento de cabea dele enquanto toca no tambor grande, acompanhando o
pulso. Volta-se para o tom tom e eu o convido: vamos l! Ele levanta a baqueta contra mim, mas eu
continuo a contagem: 1,2,3 e... Marcos interrompe a produo fazendo uma pergunta sobre o chimbal,
que eu esclareo.
39
atendimento, onde estaria Marcos? Como musicalmente ele se mostra? Estaria em seu momento de
criao, mantendo um pulso e ainda procurando controlar minha movimentao?
Nos momentos seguintes pergunto se ele conhece alguma msica, sua resposta foi: assim oh! de sua
resposta cantamos e tocamos sua primeira melodia repetindo a frase proposta por ele intercalada
com experimentaes na bateria tocando todos os instrumentos que alcanou. O tema apresentado
inclui uma formao em semicolcheias, colcheias e semnimas com uma marcao definida, [Fig. 4]
uma caracterstica de sua produo musical.
Fig. 5 xilofone 1
40
Para a apresentao das castanholas eu trouxe uma clula meldica [Fig. 6] repetida por Marcos na
ntegra e uma tera acima, soando como pergunta e resposta. At o final de nosso primeiro encontro
essa clula foi se transformando [Fig. 6a e 6b]
No desenvolvimento de cada atendimento, uma rotina de sesso define-se a partir dos objetivos
musicoteraputicos previamente estabelecidos. A organizao dos atendimentos de Marcos deu-se em
trs momentos: 1) o acolhimento, com uma cano surgida de um motivo meldico retirado da
primeira sesso, boca de jacar; 2) o desenvolvimento da sesso, preservando os momentos de
interao musical considerando-se, principalmente, a musicalidade do cliente; 3) uma cano de
despedida que indica o retorno ao setting musicoteraputico na prxima semana.
41
Musicalidade para Blacking (1973) no est apenas nas mos de especialistas, msicos
profissionais, mas uma capacidade humana para msica. Da mesma forma, Zuckerkandl
(1973, 1976) apresenta-a como alm de habilidades, como uma capacidade humana inata.
Todas as pessoas so musicais por natureza e essncia, e essa capacidade no est
simplesmente voltada para o desenvolvimento artstico-musical, mas como forma de
percepo do mundo sua volta. Musicalidade constitutivo do ser humano, ou seja,
encontra-se no domnio de nossas interaes e relaes, constituindo-se assim, no
domnio de nossas condutas humanas (Maturana, 2002, p. 109).
Os estudos de Mechtild Papousek (1996), Trevarthen (1999), Trevarthen e Dissanayake
(2000), focalizam na musicalidade das interaes cuidador-beb a origem das formas
relaes do ser humano, inclusive, com a msica. Os estudos de Trevarthen et all.(1999,
2000) defendem a existncia de intrinsic motive formation (IMF)e intrinsic motive pulse
nas relaes me-beb (apud CROSS, 2000, p. 34, traduo nossa). Desses estudos,
originaram os termos protomusicality e communicative musicality (apud Ansdell, 2004, p.
69). Para Mechtild Papousek (1996), este espao de cuidados e atenes, comunicao
me-beb desde a vida intra-uterina, faz-se na indivisibilidade da msica e movimento e
pelo fato deles aparecerem envolvendo padres de comportamento culturais (apud Cross,
2000, p. 34, traduo nossa). Tambm Hannus Papousek tem notado que elementos
musicais participativos no processo de comunicao desenvolvem-se muito cedo,
sugerindo que eles preparam o caminho para capacidades lingsticas antes que os
elementos fonticos apaream (apud Cross idem, traduo nossa). Sendo assim, as
interaes entre mes-bebs constituem-se eficientes pela inteno expressada nos
movimentos corporais, tonalidade e melodiosidade da voz cantada ou falada. A construo
do domnio relacional do ser humano constitui-se, originalmente, imerso em um universo
de musicalidade que potencializa a compreenso do significado no domnio lingstico.
O trabalho musicoterpico desenvolvido por Nordoff - Robbins, tambm conhecido por
musicoterapia criativa (Bruscia, 1989), constitui-se pelas idias de Rudolf Steiner, o
fundador da Antroposofia, pelas idias de Abraham Maslow, um dos fundadores da
Psicologia Humanista (apud Alvares, 2005, p. 2) e pela concepo de Msica defendida
pelo filsofo Victor Zuckerkandl (Queiroz, 2003; Aigen 2005). Um dos princpios desta
abordagem que em cada pessoa existe uma Music child e isso
denota uma organizao das capacidades receptivas, expressivas e cognitivas
que podem ser o ponto central da organizao da personalidade A criana
estimulada a utilizar estas capacidades com grande envolvimento. Tal
envolvimento, de modo responsivo e criativo, leva a funes de identificao,
percepo e memria. Segurana, inteligncia e determinao so expressas
de forma espontnea na medida que a criana se entrega ao processo musical
(Nordoff & Robbins, apud Alvares, 2005, p. 3)
Outro princpio o condition child que representa os aspectos relacionados sua condio
especial ou sua deficincia. A ampliao da music child leva a mudanas nessa condition
child e, com isso, a criana pode encontrar novas possibilidades de ser no mundo e um
novo sentido para o self , uma vez que
o processo de despertar e expandir o music child est relacionado com o que
Maslow (1999) descreve como o processo de auto-atualizao, que envolve
experienciar a vida de forma plena, fazer escolhas, sentir-se autoconfiante,
42
Termo sem uma traduo direta para a lngua portuguesa. Abrange a formao tcnica/musical de
um msico profissional treinada para construir sua capacidade de falar msica ou seja, traduzir para
elementos estruturais musicais as percepes clnicas que tem de cada cliente em cada momento dos
atendimentos individuais que realiza (Alvares, 2005 curso ministrado na UFG).
43
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47
Construir alguns princpios para acolher essa mudana paradigmtica na Cincia constitui a
obra de Edgar Morin, Teoria da Complexidade. Importamos, deste socilogo da atualidade,
alguns princpios que nos ajudam a compreender um pouco mais o fenmeno msica na
Musicoterapia, assim como importamos dos bilogos Matura & Varela alguns conceitos da
Biologia do Conhecer. Optamos, ento, por conceber as formas de interaes sonoras /
musicais / verbais / corporais entre Marcos e sua musicoterapeuta como um acontecer de
acoplamentos estruturais6 em que nossas musicalidades, ao se tocarem de forma
consensual, possibilitaram a construo de caminhos que levaram a transformaes.
Construmos uma relao dialgica,7 convivendo, de forma harmnica, com a ordem e a
desordem, o estvel e o instvel, com a certeza e a incerteza, a caminho da unidade, a partir
das interaes musicais consensuais.
Dentro de uma recursividade organizacional,8 nossas condutas no foram por mero acaso,
uma vez que os produtos e os efeitos so ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que
os produziu (Morin, 2001, p. 108). Tambm, consideramos que no apenas a parte est no
todo, mas o todo est na parte (o princpio da forma hologrfica), ou seja, a fragmentao
musical de Marcos no apenas uma parte de sua musicalidade e de sua personalidade, mas
sua musicalidade e personalidade esto em cada parte fragmentada, oferecendo, ao
musicoterapeuta, pistas, pontos a serem costurados.
A partir da anlise musicoterpica, tomando por base o conceito de serendipididade, de
Morin (2004), detalhes aparentemente insignificantes, que muitas vezes aparecem nos
elementos da msica, em ritmos, melodias, timbres, harmonias, gestos e tempos musicais
etc., contriburam para favorecer a reconstruo da histria pessoal de Marcos. A partir
6
Acoplamento estrutural para Maturana & Varela (2001) constituem-se nas congruncias entre a
estrutura da unidade e a estrutura do meio que atuam como fontes de perturbaes mtuas (domnio
das perturbaes), desencadeando mutuamente mudanas de estado (domnio das mudanas de
estado) (p. 87)
7
Princpio Dialgico: a Teoria da Complexidade considera a existncia de um pensamento que
congregue as diferenas, acolha a complementaridade de conceitos aparentemente contrrios, que
permita a ordem e a desordem, a certeza e a incerteza de forma dialgica mantendo a dualidade no
seio da unidade (Morin, 2001, pp. 107109).
8
Princpio da Recursividade Organizacional.
48
de e nas experincias musicais, foi possvel compor uma nova histria, um preldio a
duas vozes inspirado em nossas musicalidades. Este, apesar de ainda inacabado, traz
consigo a fora de uma energia transformadora.
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49
Introduo
A riqueza cultural brasileira , em grande parte, decorrente da diversidade de suas origens.
Ao incorporar influncias artsticas das mais variadas etnias, foi construda uma densa
trama musical que se manifesta em diversos gneros e estilos. Procurar identificar os
elementos musicais que fazem parte desta teia multicultural uma constante busca dos
brasileiros para entender a constituio de sua prpria identidade.
Contribuindo para entender os elementos que constituem o fandango, dana relacionado aos
caiaras dos litorais do Paran e So Paulo, esta comunicao discorre sobre a origem da
rabeca, procurando referenciais nas particularidades do violino do perodo barroco. Esta
aproximao se justifica nas semelhanas entre estes dois instrumentos, que vo desde
elementos de construo at modos de execuo.
A literatura sobre o fandango aborda com freqncia os instrumentos que lhe so
caractersticos: as violas, o adufe e a rabeca. No entanto, no que se refere a este ltimo, as
anlises so excessivamente superficiais, prendendo-se unicamente em critrios de
observao emprica, sem o estabelecimento de relaes mais aprofundadas, o que provoca
equvocos cientficos. Como aspecto agravante, partindo de um conhecimento tambm raso
sobre o violino, muitos autores entendem a rabeca com um instrumento rstico, no sentido
pejorativo, que resultado da falta de conhecimento e de recursos materiais de seus
fabricantes, ou seja, simplesmente consideram-na um violino de pouca qualidade que
fruto de cpias mal feitas por construtores ignorantes. Partindo deste panorama, prope-se
neste trabalho uma aproximao com o violino, no como nica forma de anlise, mas
como uma possibilidade de clarificar o entendimento da origem deste instrumento,
enfatizando as particularidades que o fazem um instrumento nico e digno de ser estudado.
O fandango
O fandango, para Fernando Corra de Azevedo (1978) o nome genrico de uma festa de
caboclos das regies isoladas dos litorais do Paran e sul de So Paulo, que ocorre desde o
tempo do entrudo (festividade do litoral precursora do carnaval) em que se danam diversas
coreografias denominadas marcas. Segundo Marchi e Saenger (2002), esta dana est
relacionado ao mutiro (ou pixiro), ocasio em que membros de uma comunidade se
renem para realizar uma tarefa que exige muita mo de obra. O pagamento deste
trabalho se d por meio da oferta de uma festa: o fandango, conforme sua definio
apresentada por Leonildo Pereira que v nesta ocasio o momento em que a famlia a e
comunidade se rene para ... trabalhar, tocar viola e cantar (in Marchi, 2002, p. 41). Estes
eventos populares so extremamente complexos, pois alm de uma reunio coletiva,
nessas ocasies em que se aprende a executar os instrumentos do fandango por meio da
51
imitao e da prtica: E foi aonde ns aprendemos, tudo meus irmos, no teve um que
no aprendesse (Leonildo Pereira in Marchi, 2002).
Apresentando caractersticas de influncia ibrica, esta dana acompanhada de um
conjunto instrumental formado por uma ou duas violas, uma rabeca e um adufe.1 Apesar de
fazer parte da indumentria da dana, os tamancos utilizados pelos homens, especialmente
em marcas batidas, podem tambm ser considerados instrumentos do fandango, uma vez
que fazem marcaes rtmicas que certamente so parte da trama musical da dana,
conforme defende Roberto Correia (2002). Ainda de acordo com este autor, no que se
refere viola, necessrio destacar que existem variantes deste instrumento: a meia viola
(ou macheto) e o machetinho, ambos menos comuns que a viola propriamente dita e
freqentemente relacionados com instrumentos intermedirios para a aprendizagem da
viola.
A maioria dos pesquisadores que se dedicaram ao estudo do Fandango ressalta o gradativo
desaparecimento desta dana que, em muitos lugares, j no expe suas caractersticas
tradicionais. Nas comunidades mais prximas a centros urbanos como Antonina e Morretes
(no Paran), o Fandango j desapareceu, pois, tratando-se de uma tradio transmitida
apenas pela oralidade, ela sucumbiu juntamente com os seus protagonistas mais antigos.
Este fato no acontece da mesma forma em Paranagu - PR, pois nesta localidade esta
dana ainda acontece, mesmo que de duas formas distintas: como experincia
parafolclrica,2 no caso do grupo de fandango Mestre Romo e como manifestao
tradicional, na Ilha dos Valadares (parte do municpio de Paranagu), localidade onde h
bailes de fandango sem qualquer fim turstico. Existem tambm regies remotas do litoral
sudeste de So Paulo e nordeste do Paran que ainda preservam estas festas tornando-se um
campo de estudo importante. Tratando-se de uma regio costeira bastante recortada e de
difcil acesso rodovirio, as tradies folclricas puderam atravessar o sculo XX resistindo
em algumas comunidades de pescadores, que se tornam um dos poucos locais onde o
fandango pode ser estudado.
Mesmo havendo locais que, devido ao seu isolamento, ainda preservam um fandango
bastante autntico, ultimamente, devido crescente facilidade em acessar meios de
comunicao de massa, como a TV e o rdio, existe uma tendncia das geraes mais novas
se desinteressarem pela dana tradicional concentrando a ateno nas novas tendncias
artsticas de abrangncia nacional ou internacional, presentes nestes veculos de
comunicao.
Conforme dito anteriormente, o fandango ocorre por ocasio do mutiro, momento em que
tambm se aprende a sua msica e suas marcas. Entretanto, como estas reunies so menos
freqentes diante do xodo das populaes das regies isoladas, as possibilidades de se
aprender o fandango tambm diminuram. Os caiaras tendem a deixar suas casas isoladas
para tentar melhores condies de vida e trabalho, aproximando-se de centros urbanos,
locais em que o mutiro raro. Para Juliana Saenger (2002) este efeito pode ser verificado
em depoimentos nostlgicos de fandangueiros mais antigos que vm na urbanizao do
litoral um dos fatores que dificultam a preservao do fandango.
1
Tambm denominado adulfe, adulfo, ou adufo, trata-se de uma espcie de pandeiro que pode ou no
apresentar platinelas.
2
Este grupo considerado parafolclrico, pois j h uma descaracterizao dos elementos do
fandango original, fato provavelmente impulsionado pelo modo performtico que grupo se apresenta,
distanciando-se da dana com a adoo de roupas padronizadas e coreografias diferenciadas. Esta
observao no pretende fazer o julgamento do valor cultural de um grupo parafolclrico, mas apenas
diferenci-lo das manifestaes tradicionalmente ligadas dana como opo de lazer.
52
53
tradicional), fitas formadas pelo miolo do cip timbopeva, ou ainda de fios de nylon (em
substituio aos materiais tradicionais).
Este instrumento do fandango do litoral paranaense e paulista construdo em caixeta, uma
madeira tpica da regio que tem qualidades muito particulares (como leveza, maleabilidade
e resistncia a certas pragas). Para os acessrios que exigem uma dureza maior (como o
cavalete, o estandarte e o arco), so utilizadas a canela preta ou o cedro, entre outras
madeiras duras. Desta forma, a construo da rabeca depende do conhecimento dos
elementos da natureza por parte de seus construtores.
A rabeca no de forma alguma exclusiva do fandango, pois pode ser encontrada em vrias
partes do Brasil, sempre relacionada com alguma manifestao folclrica, seja dana ou
folguedo, ou at mesmo na Amrica andina e na Amrica Central em que este instrumento
comum na msica popular, como afirma Dominic Gill (1984). Segundo este autor, a
origem dos instrumentos de corda friccionada est relacionada s primeiras experincias em
friccionar um arco de caa em uma corda livre (que poderia inclusive ser outro arco) a fim
de produzir som. A adaptao de uma caixa de ressonncia para amplificar a vibrao da
corda deu origem instrumentos de corda friccionada das mais variadas formas. No
entanto, a rabeca do fandango paranaense apresenta particularidades que no so
encontradas em seus semelhantes em outras regies do Brasil.
Segundo Aldo Hasse (1977), e conforme escrito anteriormente, os instrumentos do
fandango so feitos pelos prprios executantes e seguem particularidades de construo
muito especiais. Quanto aprendizagem da rabeca, normalmente passa-se antes por outros
instrumentos, como o adufe e a viola, como exemplifica a prpria experincia de Leonildo
Pereira de Guaraqueaba, Paran ...Era a vez que eu comecei a ver tocar viola. E meio
devagarzinho, e logo tambm, entrei em entendimento e j aprendi a tocar na viola (...)
Depois meu padrinho me deu uma rabeca, comecei a tocar rabeca... (in Marchi, 2002).
Nas diferentes variantes de rabeca do fandango, possvel encontrar a rabeca de coxo e a
rabeca de aro. No primeiro caso a denominao se refere maneira de construo onde o
corpo do instrumento, juntamente com o brao e o cravelhal3 esculpido em um s bloco
de madeira, maneira de escavao de um coxo (ou de uma canoa de um s tronco), sendo
apenas o tampo colado para fechar a caixa de ressonncia do instrumento. A rabeca de aro
recebe esta denominao, pois suas partes: tampo, fundo, brao e faixas laterais, so
esculpidos ou moldados em pedaos distintos de madeira e mais tarde unidos por cola. O
aro da nomenclatura se refere s faixas laterais que se formam um contorno de madeira
antes do instrumento ser montado, seguindo um padro de construo semelhante ao do
violino.
Conforme dito anteriormente, as caractersticas pessoais dos artesos que constroem estes
instrumentos esto presentes em cada detalhe e, como a sua construo no segue uma
padronizao acadmica, mas depende da memria e da observao, cada construtor tem
uma maneira nica de elaborar os instrumentos (Corra, 2002). Este fato resulta em rabecas
nicas e com detalhes que identificam o seu construtor (fato bem mais complicado de
identificar em violinos, por exemplo, que seguem uma tradio centenria de construo
que bastante acadmica).
Tomando como exemplo Martinho dos Santos de Morretes e Aorlio Domingues de
Paranagu, que constroem rabecas de aro possvel encontrar alguns pontos interessantes:
54
Uma das marcas registradas das rabecas de Martinho dos Santos a voluta4 esculpida com
uma curva invertida. Neste ponto interessante notar que Yehudi Menuhin (1996) descreve
a voluta do violino como o toque final do luthier,5 ou seja, como a sntese de sua criao,
indicando as habilidades nicas do construtor. Esta uma caracterstica que tambm se
observa nas rabecas do fandango. Outro aspecto notvel nas rabecas de Martinho dos
Santos a confeco do tampo e fundo nos padres da construo do violo ou da viola, ou
seja, com barras que fortalecem a estrutura do instrumento. Trata-se, alm de um indcio de
exclusividade de cada instrumento, e de um vestgio da fonte de conhecimento deste
construtor, que adaptou tcnicas de construo de violas para a rabeca. A mesma adequao
acontece para as faixas laterais que so feitas a partir de um nico pedao de madeira muito
fina que dobrada para fazer o formato em 8 do instrumento (diferentemente, em um
violino, este formato composto de quatro seces distintas, a fim de fazer as angulaes
necessrias).
Quanto aos instrumentos de Aorlio Domingues, destaca-se o fato de possurem uma
grande bombatura6 o que se reflete em um som bastante caracterstico, experincia acstica
semelhante aos violinos construdos por Jacob Stainer e Nicolo Amati no sculos XVI e
XVII (Gill, 1984). Tambm so encontrados nas rabecas construdas por este caiara
detalhes em marchetaria7 que so um exemplo de refinamento na decorao do
instrumento, uma vez que no tm qualquer objetivo acstico, sem influenciar os aspectos
timbrsticos do instrumento.
Os dois exemplos citados acima so uma amostra da riqueza que existe no universo das
rabecas. Como cita Ana Salvagni (1997) cada rabeca sempre um instrumento novo que
conseqentemente apresenta novos timbres. Esta exclusividade resultado de uma maneira
de construir totalmente baseada na experimentao.
A origem da rabeca ainda no totalmente conhecida, o que estimula a pensar em todas as
possibilidades de procedncia, incluindo as principais etnias que formaram os primeiros
brasileiros: os ndios, os negros e os portugueses.
Ao reclamar sua origem indgena, no se descobrem muitas pistas. Encontra-se na msica
indgena uma predominncia de instrumentos idifones, aerfones e membranfones (em
ordem de incidncia). Os instrumentos cordfones so incomuns, sendo inexistentes os de
corda friccionada.8 Como raro exemplo de instrumento de corda, h o ka-txo-st dos ndios
Ramkkmekra do Maranho, que feito com um talo de buriti (espcie de palmeira), em
que fibras so desfiadas sem serem desprendidas da pea principal e so tencionadas por
meio de cavaletes. Segundo Helza Camu (1979) que realizou estas pesquisas, no h
informaes sobre como este instrumento tocado.
Tambm conhecida como a cabea do instrumento, a voluta fica logo acima da caixa de cravelhas,
ou cravelhal.
5
Luthier; aquele que constri e repara instrumentos de corda.
6
Bombatura pode ser entendido como as curvas esculpidas no tampo e no fundo que do maior
volume interno caixa de ressonncia do instrumento.
7
Marchetaria a arte de incrustar finssimas lminas de madeira de diversas cores e tonalidades, no
corpo do instrumento, a fim de produzir smbolos e desenhos.
8
Esta constatao resultado de exaustivas buscas de instrumentos de corda friccionada na literatura
sobre a msica das comunidades indgenas. No entanto, para fazer esta afirmao, no foram
consideradas as comunidades que tiveram um contato ps-descobrimento com a rabeca, como o
caso dos ndios Guarani da aldeia Karugu, em Curitiba. Tampouco foi possvel fazer esta alegao
referindo-se a grande quantidade de tribos isoladas, cujas caractersticas musicais ainda no foram
documentadas.
55
A reforma de alguns elementos do violino (e sua famlia) data de 1830, perodo em que a nova
esttica musical (relacionada com a ascenso da burguesia e salas de concerto maiores) exigia uma
emisso sonora com mais potncia e brilho.
56
pessoas que so, de certa forma, selecionadas por sua facilidade em manejar um arco que
fricciona as cordas e em dedilhar o instrumento sem o auxlio de trastes (referncia ttil de
posicionamento de dedos, comum na maioria dos instrumentos de corda dedilhados como a
viola ou o violo). A partir desta busca, prope-se utilizar a etnomusicologia como
categoria cientfica mais adequada no estudo deste problema.
A etnomusicologia
Na necessidade de aprofundar os estudos sobre fandango considera-se importante utilizar
mtodos que sejam criteriosos na coleta de dados e bem fundamentados na anlise do
material sistematizado. Desta forma, entende-se que a etnomusicologia pode apresentar
respostas satisfatrias para a realizao de uma investigao que pretende entender no
apenas a rabeca, mas o seu tocador: o rabequeiro.
Dentro da necessidade que o homem tem de entender a sua existncia, e sua relao com o
meio no qual vive, foram desenvolvidos diversos caminhos cientficos. Dentre as vrias
vertentes, o campo das humanidades procura entender o homem no tempo e no espao a
partir do ponto de vista humano. A esse nvel, a etnomusicologia almeja compreender o
homem por meio de sua expresso musical (Mukuma, 1983, p. 23).
Segundo Mukuma (Ibid, p. 24), evitando uma definio obsoleta de msica com
concepes eurocntricas (arte de organizao de sons em padres agradveis ao ouvido),
a etnomusicologia considera outra aproximao conceitual: msica tudo aquilo que
assim designado pelo seu produtor. A etnomusicologia se concentra, ento, no estudo da
msica na cultura destes povos. Alam Merian ampliou este conceito de msica, utilizandose de uma viso behaviorista assumindo, segundo Bastos (1978, p. 40), a difcil tarefa de
juntar msica com cultura. A msica pode ser definida como um produto do
comportamento humano da sociedade:
Um produto estruturado do homem, mas a sua estrutura no pode ter uma
existncia prpria divorciada do comportamento de quem a produz. Para
compreender por que que a estruturao da msica existe como tal, devemos
tambm compreender o como e o porqu dos conceitos subjacentes a esse
comportamento que so ordenados de modo a produzirem uma forma
particular desejada de som organizado. (Merian, 1964, p. 7 in Mukuma, pp.
24, 25).
57
58
59
Introduo
Nas primeiras dcadas do sculo XX, ocorreram profundas transformaes na linguagem
dissonncia - e nos estilos pluralismo da arte musical.
Com relao questo da dissonncia, j ao final do sculo XIX, compositores envolvidos
pelo sistema tonal mas preocupados com os conflitos gerados pelos choques de
sonoridades, observaram o relativismo implcito da teoria clssica sobre tenso/repouso,
atravs de ocorrncias como: o emprego simultneo de um si sustenido e um si natural por
Georges Bizet (183875) numa passagem de LArlsienne (1872);1 o emprego sutil e
inusitado das apogiaturas por Maurice Ravel (18751937); o emprego de um nmero amplo
de tonalidades diversas por Wagner no incio do preldio de Tristo e Isolda (1865); o uso
de modos medievais2 e orientais por Debussy (1862-1918), como por exemplo, o modo
frgio no segundo dos Nocturnes (18931899).3
Numa segunda fase, a dicotomia tenso/repouso foi explicada cientfica e culturalmente
pelo compositor austraco Schoenberg. O ponto nodal de sua teoria incide na emancipao
do conceito tradicional de dissonncia. O decodificador das mensagens dos discursos
musicais habituou-se, durante sculos, oposio sons consonantes versus sons
dissonantes, devido insero dos sons dissonantes entre os ltimos harmnicos.4 Em
contrapartida, as escutas mais freqentes dessas sonoridades mais remotas favoreceram as
emancipaes dos acordes de stima, de stimas diminutas, de quintas aumentadas; e
tornaram audveis com maior nitidez, os empregos de dissonncias nas obras de Wagner,
Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler e Puccini.
1
LArlsienne (A Arlesiana): Msica incidental muito popular de Bizet para a pea do mesmo nome
de Alphonse Daudet. Da partitura original foram extradas duas sutes orquestrais, uma pelo prprio
Bizet, em 1872, e outra por Guiraud, aps a morte do compositor.
2
Os modos medievais se originam da escala pitagrica grega, e tm como base o que hoje so as
notas brancas do piano, com certas diferenas de afinao. Por volta do sc. II d.C., os gregos
utilizavam a escala pitagrica de sete maneiras diferentes. Estas foram adaptadas no sc. IV por Santo
Ambrsio, bispo de Milo, para uso eclesistico em quatro modos, mais tarde conhecidos como
modos autnticos. No sc. VI, So Gregrio Magno aperfeioou os modos ambrosianos e
acrescentou-lhes mais quatro, ento designados modos plagais. Esses oito modos so os chamados
modos eclesisticos. Finalmente, no sc. XVI, o monge suo Henricus Glareanus definiu 12 modos e
atribuiu-lhes os nomes gregos: drico, hipodrico, frgio, hipofrgio, ldio, hipoldio, mixoldio,
hipomixoldio, elio, hipoelio, jnico e hipojnico. Com o desenvolvimento da harmonia, dois
desses modos o jnico e o elio passaram a ser mais utilizados, e ficaram conhecidos, a partir do
sc. XVII como escala maior e escala menor.
3
Coleo de trs peas para orquestra e coro feminino. Os movimentos so Nuages, Ftes e
Sirnes.
4
Wisnik, Jos Miguel. O som e o sentido. So Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 195204.
61
Pierrot Lunaire op. 21 (1912). Escrita por Arnold Schoenberg. Pea atonal de coloraes
expressionistas. Compreende 21 melodias para uma Sprechstimme (fala cantada), piano, flauta,
clarinete e violoncelo. A Sagrao da Primavera (1913). Escrita para bal por Igor Stravinsky, com
base nas lendas do folclore russo, utilizando novas estruturas de ritmo, de timbres e organizaes de
alturas. Parade, ballet raliste en un tableau (1917). Escrita por Erik Satie; texto de Jean Cocteau;
cenografia de Pablo Picasso; coreografia de Massime e Diaghilev. Satie incorporou msicas
populares dos cafs-concertos; rudos diversos, tais como mquinas de escrever e sirenes de
ambulncias.
6
Contier, Arnaldo. Modernismos e brasilidade: msica, utopia e tradio. Tempo e Histria
/organizao Adauto Novaes. So Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura,
1992.
7
Mayer, Arno. A Fora da Tradio. A Persistncia da Tradio do Antigo Regime, 18481914. So
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
62
63
Azevedo, Cludia. A Rdio MEC como centro difusor da msica de concerto no Brasil.
Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Msica, n. 5, 2000, p. 5. O maestro Alceo
Bocchino concedeu entrevista autora em 18.09.98, na Escola de Msica da UFRJ.
11
Krieger, Edino. OSN uma orquestra para a msica brasileira. O Amigo Ouvinte, Informativo da
Sociedade dos Amigos da Rdio MEC, ano V, n. 18, julho de 1997, p. 4.
12
Azevedo, Cludia. Op. cit. 2000, p. 8. Considerando-se os movimentos das obras, elas somam 193.
13
Ibidem. A OSN existiu na Rdio MEC at 1984, quando foi incorporada UFF, mas o
arquivamento mais recente nas fichas de 1972.
64
Sinfnica do Paran, da qual foi maestro titular desde sua criao (1985), e atualmente
maestro emrito. Cidado Honorrio do Municpio do Rio de Janeiro e Cidado
Benemrito do Estado do Paran.
Como educador, foi fundador e professor titular da Escola de Msica e Belas Artes do
Paran, ministrando aulas de diversas matrias tericas. Lecionou no Conservatrio
Musical de Santos e na Escola de Msica Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Foi co-fundador
da Academia de Msica Lorenzo Fernandez, com Arnaldo Estrella, Eleazar de Carvalho e
Lcia Branco, entre outros, onde hoje professor titular. Professor e lanador de maestros
consagrados, sua vasta atividade pedaggica revela um homem preocupado com o futuro e
com a formao musical.
Como compositor, sua obra est completamente inserida na corrente nacionalista e inclui
pginas sinfnicas e camersticas, alm de canes e peas para instrumentos solistas,
apresentadas tambm na Frana, Inglaterra, em Portugal, na Argentina e em Israel. Segundo
o musiclogo Vasco Mariz, pode-se dividir a obra do compositor em trs perodos: um
anterior a 1944, de peas juvenis; o segundo, fortemente influenciado por Camargo
Guarnieri, bastante rebuscado e de fisionomia claramente polifnica (como Trova para
piano e Cano de Inverno para canto); e o terceiro perodo, que comea em fins de 1951 e
evidencia tendncia para maior simplicidade, de pesquisa da essncia da msica brasileira,
talvez de maior sinceridade, tcnica mais singela e maior expressividade tambm. Nesse
ltimo perodo as diretrizes gerais foram traadas por Villa-Lobos, a quem estava ligado
intimamente.14
Hoje, Alceo Bocchino mora no Rio de Janeiro, onde, alm de compor, atende a diversos
convites para reger e dar aulas. Tambm pode ser encontrado na Academia Lorenzo
Fernandez e na Escola de Msica Villa-Lobos duas vezes por semana, ministrando com o
mesmo entusiasmo as cadeiras Ritmo, Transposio, Acompanhamento ao Piano e
Regncia.
Sonatina para Piano - estrutura e material
A Sonatina para Piano de Alceo Bocchino representa o pice de sua produo pianstica.
Escrita entre 1950/51 foi dedicada ao pianista brasileiro Joel Bello Soares e considerada
por Edino Krieger uma das mais significativas obras da literatura pianstica do sculo XX
no Brasil, juntamente com a Toccata de Cludio Santoro.15 Segundo Bocchino: A
Sonatina una Piccola Toccata, uma pequena Toccata.16
Compreende trs movimentos: I. Com humor (Piccola Toccata); II. Inveno Andante
mosso; III. Cadenza: Tranquillo - Galhofeiro (Allegretto).
Os movimentos Com Humor (I) e Cadenza (III) esto escritos na Forma-Sonata. No
entanto, a Forma-Sonata empregada diverge da forma das Sonatas e Sonatinas dos sculos
XVIII e XIX, pois possui a diferena de no apresentar a segunda idia (Parte B) ou
segundo tema - na Reexposio. Os dois movimentos contm na Reexposio
exclusivamente a Parte A, exatamente como na primeira vez que ocorre. Esses dois
movimentos se compem de seis sees: Introduo, Parte A, Parte B, Desenvolvimento,
Reexposio da Parte A e Coda. No movimento inicial Com Humor a Introduo, o
Desenvolvimento e a Coda apresentam-se reduzidos em extenso. J o terceiro movimento
14
Mariz, Vasco. Histria da Msica no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 286.
Secretaria de Estado da Cultura (PR). Msica erudita paranaense. Curitiba, v.1, 2000, p. 6.
16
Comunicao pessoal. Curitiba, maio/1999. O compositor refere-se aqui especificamente ao
primeiro movimento "Com humor".
15
65
Cadenza amplia essas partes, o que permite o desenvolvimento sobre maior variedade
de materiais.
O movimento intermedirio (II) recorre ao processo contrapontstico da Inveno, contendo
trs sees: Exposio, Desenvolvimento e Reexposio.
Primeiro movimento - Com humor (Piccola Toccata)
O primeiro movimento da Sonatina possui carter predominantemente rtmico. A
manuteno do desenho rtmico inicial, com unidade de tempo subdividida em quatro
pulsos iguais, andamento rpido e em contratempo com a voz inferior, estabelece um motoperptuo bem caracterstico de uma Toccata, o que justifica a denominao Piccola
Toccata indicada pelo prprio compositor junto ao andamento (Ex. 2.1).
Ex. 2.1. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 1 a 4)
A Seo 3 intermediria (Parte B, cc. 30 a 45, Ex. 2.2). introduz um contraste, ao evidenciar
a melodia sobre os outros elementos. Com o tratamento polifnico das vozes, traz o carter
mais expressivo e cantado.
Ex. 2.2. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 30 a 33)
Incio da Seo 3
Esse movimento inicial construdo a partir de seis motivos bsicos (Tab. 1).
66
67
68
Ex. 3.1. Bocchino, Sonatina para Piano, segundo movimento Inveno (cc. 1 a 3)
Motivos bsicos
Da utilizao do contraponto inversvel, para o ajuste dos Motivos 7 e 8, ento
denominados Motivo e Contramotivo, existem Episdios18 rtmicos, formados
predominantemente por pores desses motivos bsicos.
No segundo movimento da Sonatina os dois Motivos formadores possuem quantidades
aproximadas de variaes. Assim, com suas respectivas variaes, constroem a obra em
conjunto e se desenvolvem em igual proporo. Isso est de acordo com a definio de uma
Inveno, a qual se constitui de uma obra contrapontstica centrada no desenvolvimento de
material derivado de um ou dois Motivos.19
Esse movimento estabelece alto contraste com o primeiro, devido a fatores como: carter
mais melodioso, forma da composio, estilo polifnico, andamento mais calmo,
simplicidade dos motivos empregados e reduo do nmero de motivos.
Fato interessante a se observar da comparao entre os dois primeiros movimentos o uso
da semicolcheia como figura padro, majoritria, porm construindo ambientes totalmente
contrastantes. No primeiro movimento, a unidade de tempo formada por quatro
semicolcheias (compasso 2/4 nos dois movimentos) estabelece uma sonoridade viva,
danante e bem humorada. Isso ocorre tambm devido ao andamento rpido, ao toque
mais seco staccato, e ao tratamento harmnico dos intervalos. No segundo movimento, a
unidade de tempo tambm subdividida em quatro semicolcheias produz o ambiente vocal,
17
Kennan, Kent. Counterpoint Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River:
Prentice Hall, 1999, p. 115. O Contraponto Inversvel ou Duplo Contraponto ocorre quando duas
vozes so inversveis, ou seja, quando qualquer uma delas pode ser utilizada como voz superior ou
inferior, com bons resultados. Para trs vozes, utiliza-se tambm o termo Triplo Contraponto. A
palavra inverso deve ser entendida aqui como o nvel ou posio relativa entre as vozes, e no
deve ser confundida com o artifcio da variao por movimento contrrio, ao qual freqentemente se
denomina inverso.
18
Kennan, Kent. Op. cit. 1999, p. 134. Episdios so sees derivadas de uma poro do motivo ou
do contramotivo, ou at mesmo de outro material novo. Podem ser de qualquer extenso, mas
freqentemente ocupam dois a quatro compassos. O motivo, quando utilizado como base, geralmente
no aparece na sua forma completa, mas em segmentos menores. Os Episdios so quase sempre
seqenciais. Suas funes principais so: a modulao de uma tonalidade para outra, e a interrupo
de repeties demasiadas e sucessivas do motivo.
19
Ibidem, p. 126.
69
Ex. 4.1. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento Cadenza Clula inicial
Para a composio do terceiro movimento Cadenza observa-se que nem todos os
motivos do primeiro movimento so empregados. Os Motivos 1 e 5, por exemplo, no esto
presentes na Cadenza.
Entre os motivos envolvidos, os de nmero 3, 4 e 7 so os que aparecem com maior nmero
de variaes. O Motivo 3 compe a clula inicial e final do movimento. Aparece no incio
em andamento lento, com carter tranquillo e expressivo, destacando o elemento meldico.
Ao final, em andamento rpido, refora o elemento rtmico, em toque staccato seco e com
intensidade fff.
O Motivo 4 possui originalmente forte qualidade rtmica, uma vez que composto por
conjuntos de quatro pulsos iguais para a unidade de tempo, os quais estabelecem um ritmo
motor na maior parte do primeiro movimento. Na Cadenza, esse motivo bastante
explorado, sofrendo ampliaes rtmicas por toda a sua extenso ou parte da mesma.
20
70
Assim, em oposio ao seu carter rtmico original, faz com que a melodia ressalte,
contribuindo para o contraste ritmo-melodia entre as sees do movimento.
O Motivo 7, original do segundo movimento Inveno , o que apresenta maior nmero
de variaes na Cadenza. Na Inveno utilizado como clula principal para a construo
da polifonia a duas vozes. Na Cadenza, especialmente nas sees Exposio da Parte A (cc.
25 a 43), Reexposio da Parte A (cc. 63 a 81) e Coda (cc. 82 a 91), comporta-se de
maneira contrria ao Motivo 4, pois em andamento rpido e com toque staccato, destaca o
elemento rtmico e galhofeiro dessas sees.
O Ex. 4.2 a seguir ilustra uma variao do Motivo 7 durante a Cadenza, que transforma sua
caracterstica original melodiosa e expressiva, com toque legato, para uma qualidade
rtmica, com toque staccato saltitante.
Ex. 4.2. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento Cadenza Utilizao dos
Motivos 2 (a e b), 3 e 7 durante a Exposio da Parte A
Concluso
O estudo analtico da Sonatina para Piano de Alceo Bocchino permite um conhecimento
mais aprofundado da obra, de forma a demonstrar a coerncia estrutural da composio.
Atravs da anlise percebe-se a utilizao de motivos bsicos determinados e variaes em
torno dos mesmos. Esse procedimento caracteriza um mtodo construtivo bastante
praticado, podendo ser encontrado em uma grande variedade de estilos musicais e,
igualmente, nos materiais da msica contempornea.
Da anlise motvica da obra conclui-se que existem oito motivos bsicos, e que todos eles
so apresentados nos primeiros dois movimentos Com Humor e Inveno. O ltimo
movimento Cadenza construdo por variaes de alguns desses oito motivos (Motivos
2, 3, 4, 6, 7 e 8). Esse procedimento a forma cclica de composio utilizado como
proposta para reforar a unidade estrutural de toda a Sonatina, permitindo maior coeso
entre os movimentos.
O terceiro movimento Cadenza - ora recorda caractersticas do primeiro movimento, ora
caractersticas do segundo. O compositor procura uma combinao entre os motivos
anteriormente apresentados, utilizando para isso, artifcios que transformam a qualidade
original dos mesmos, e que acarretam efeitos estticos opostos, como por exemplo, de
rtmico para meldico.
A abordagem analtica-estrutural da Sonatina aponta respostas para a questo Como
funcionam os elementos do discurso musical e quais so suas relaes? Esse estudo
sistemtico orienta e sugere opes para uma interpretao mais consciente em torno de
aspectos como: graus de dinmica, diferenas de sonoridade entre as vozes, andamento,
71
carter expressivo, pontos de tenso x repouso, tipo de toque, uso do pedal. Dessa forma, a
anlise promove uma relao ntima entre a obra e o executante o que, como conseqncia,
favorece maior compreenso por parte do ouvinte.
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SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composio musical. Traduo: Eduardo Seincman. So
Paulo: Universidade de So Paulo, 1991.
WHITE, John D. Comprehensive musical analysis. London: The Scarecrow Press, 1994.
Josely Machado Bark graduou-se na EMBAP/PR. Freqentou cursos ministrados por
Beatriz Balzi, Moura Castro, Yara Bernette, Caio Pagano, Antnio Bezzan, Homero
Magalhes, Eudxia de Barros, Timothy Shafer (EUA), Paul Rutmann (EUA),
Gyorgy Sandor (EUA) e Wolfgang Leibnitz (Alemanha). Aps a graduao,
transferiu-se para os Estados Unidos (Ohio), onde se apresentou junto aos renomados
flautista Michel Debost e obosta Alex Klein. No Brasil, atuou como solista da
Orquestra Sinfnica do Paran e como professora de piano da EMBAP/PR (1998 a
2000). Premiada em concursos nacionais, participou do 21o Concurso Internacional
de Piano & Festival Bartk-Kabalevsky-Prokofiev (EUA/2001), classificando-se entre
os trs primeiros lugares. Na banca examinadora estava Gyorgy Sandor, ex-aluno de
Bartk. Foi pianista acompanhadora oficial das 20a e 21a Oficinas de Curitiba
(2002/2003). Realizou Mestrado na UNICAMP, onde atualmente cursa Doutorado em
Msica. Residente em So Paulo/SP desde 2000, participou do VI Frum 2004 do
CLM na ECA/USP, e do XV Congresso da ANPPOM 2005, no RJ.
INTRODUO
A inteno deste artigo buscar uma adaptao, ou aproximao, da teoria de leitor
modelo com uma possvel teoria sobre o ouvinte modelo, e a partir da chegarmos ao
ouvinte real, tambm em aproximao com o leitor real.
A bibliografia que serve de base quase toda da rea da literatura. Isso por dois motivos
principais: 1) este artigo fruto de um requisito de avaliao para uma disciplina de psgraduao em literatura e; 2) a escassez de bibliografia desse ponto de vista aplicado
msica, ao menos em nosso idioma.
Segundo Vincent Jouve (2002, p. 12), a expanso da pragmtica que vai levar os
estudiosos da literatura a se interessar pelos problemas da recepo. Algumas teorias
desenvolvidas que obtiveram relevncia foram: a de H. R. Jauss, sobre a esttica da
recepo; a de Wolfgang Iser sobre o leitor implcito; de Lintvelt, a do leitor abstrato;
de Umberto Eco, sobre o leitor-modelo e; de Michel Picard, sobre o leitor real.
Essas teorias prosperaram e tiveram um motivo de existncia quando se pensou a leitura, ou
o leitor. A partir do momento em que se admitiu que um texto escrito para que algum o
leia, e s a partir dessa leitura tome vida exista comeou a se pensar o ato, ou o processo
da leitura.
Da mesma forma, esse artigo s tem motivo para ser escrito se considerar que a msica
feita para o ouvinte, e que a msica s existe de fato, a partir do momento da audio, ou
escuta1 at ento, ela apenas msica em potencial. O objetivo, portanto, o de adaptar,
ou aproximar, algumas teorias da leitura para a recepo em msica, mais precisamente, a
de leitor modelo.
O que seria o ouvinte modelo?
Algumas questes foram levantadas, mas nem todas respondidas, porque isso demandaria
uma pesquisa muito maior do que a que foi realizada. A msica implicada aqui a cano,
ou seja, a msica com letra, e limitaremos os exemplos cano brasileira.
Do leitor modelo ao ouvinte modelo
A teoria do leitor-modelo foi profundamente influenciada pela teoria do leitor implcito de
W. Iser, que data de 1976. Para Iser, o leitor o pressuposto do texto (Jouve, 2002, p.
14). Assim, todo texto prev um leitor (o leitor est implcito) que o execute. O texto o
mesmo para todos os leitores e o seu objetivo organizar e dirigir a leitura. Para que isso
funcione, o escritor deve criar para um determinado leitor que reage no plano cognitivo
1
Barthes, Roland. O bvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. No captulo 2, O corpo
da msica, Barthes discute A escuta, e diz que Ouvir um fenmeno fisiolgico; escutar um ato
psicolgico, p. 217. Assim, mais ligado atividade esttica.
73
aos percursos impostos pelo texto (Jouve, 2002 p. 14). Nas palavras de Iser: repertrio e
estratgias textuais se limitam a esboar e pr-estruturar o potencial do texto; caber ao
leitor atualiza-lo para construir o objeto esttico. (Iser, 1999, p. 9).
Estrutura do texto e estrutura do ato so assim os dois plos da situao comunicativa. O
primeiro se realiza no segundo; o texto, portanto, no pode ser tido como resultado, ele
necessita do ato da leitura para ser concretizado. preciso descrever o processo da
leitura, diz Iser, como interao dinmica entre texto e leitor, pois os signos lingsticos
do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razo de sua capacidade de estimular
atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a conscincia do leitor. E continua o
autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se
o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. que a leitura s se torna um
prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos
nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades (Iser, p. 10).
Em Lintvelt (1981), tambm reconhecemos a teoria de Iser e um passo a mais para o leitor
modelo. O leitor implcito aparece em Lintvelt como leitor abstrato: O leitor abstrato
funciona, por um lado, como imagem do destinatrio pressuposto e postulado pela obra
literria e, por outro lado, como imagem do receptor ideal, capaz de concretizar o sentido
total da obra numa leitura ativa. (Jouve op.cit. Lintvelt, p. 44 Grifo nosso). Essa
capacidade de concretizar o sentido total de uma obra ser o ponto-chave do leitor-modelo
de Eco, aqui chamado de receptor ideal.
O leitor modelo
Na sua obra Lector in Fabula, Umberto Eco trabalha demoradamente a questo da
recepo da leitura. O que interessa aqui seu leitor-modelo. Segundo Eco, o leitor
modelo um tipo de estratgia textual. O Leitor-Modelo constitui um conjunto de
condies de xito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto
seja plenamente atualizado no seu contedo potencial. (Eco, 1986, p. 45)
Para que um texto seja plenamente atualizado, so exigidas do leitor habilidades como
competncia gramatical e enciclopdia bsica. Isso necessrio porque o texto um
mecanismo preguioso (ou econmico), que vive da valorizao de sentido que o
destinatrio ali introduziu. Ou seja, o leitor-modelo deve ser capaz de atualizar todos os
no-ditos, os espaos brancos, os interstcios, as referncias, programados pelo
texto. Deve, enfim, participar desse jogo, cooperando2 para que o contedo potencial
de um texto se concretize. Essa idia de jogo importante na teoria da leitura e foi
desenvolvida por muitos tericos.3 Como Eco trata de como o texto programa sua recepo,
deve ser lembrado que Iser diz que o texto no pretende ser mais que uma regra de jogo, ou
seja, o texto organiza e dirige a leitura (ou ento, programa sua recepo).
2
Umberto Eco diz que como cooperao textual no se deve entender a atualizao das intenes do
sujeito emprico da anunciao, mas as intenes virtualmente contidas no enunciado.
3
Essa questo do jogo no se restringe teoria da leitura, tambm em outras artes isso discutido.
Johan Huizinga discute amplamente em Homo Ludens a questo do jogo nas culturas e nas artes,
assim como Schiller. Referente ao texto, Michel Picard escreveu A leitura como um jogo, onde
destaca o leitor real.
74
Claro que o leitor modelo apenas um modelo, um ideal. H textos em que, por demais
complexos, o jogo pode ser ilimitado e por isso inalcanvel ao leitor real, e at mesmo ao
autor real a propsito, deve ser lembrado que a regra do jogo o texto, e o que est
ativado no texto deve ser atribudo inteno do autor modelo, mesmo que ela no seja a
inteno do autor emprico, ou autor real. (Eco, 1986, p.46).
O ouvinte modelo
Ora, sendo o leitor-modelo uma estratgia textual, devemos encarar o ouvinte-modelo, para
modo de aproximao, como uma estratgia de escuta. A princpio simples e podemos
definir o ouvinte modelo como sendo um conjunto de condies de xito, musicalmente e
textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que uma cano seja plenamente
atualizada no seu contedo potencial. Praticamente a mesma definio que Umberto Eco
deu ao leitor modelo.
preciso destacar o carter musical e textual da cano. Como esta possui texto possvel
utilizar a teoria da leitura para a anlise textual sobretudo as de anlise de textos poticos;
embora as referncias aqui citadas no tenham explorado esse tipo de escrita, que se mostra
mais complexa s vezes, com mais no-ditos, espaos brancos, interstcios, alm de
uma preocupao muito grande com as qualidades musicais das palavras. O leitor modelo,
entretanto, pode ser parte do ouvinte modelo de cano.
O que deve, afinal de contas, ser atualizado pelo ouvinte modelo de cano?
Ora, pretendemos fazer aqui apenas uma proposta primria e na medida do possvel
adaptando caractersticas do leitor modelo.
Parece que o texto, alm de ser atualizado como outros textos poticos ou narrativos, deve
ser tambm visto como condutor de uma melodia (assim como a melodia do canto deve ser
tomada como condutora de um texto). claro que a palavra, independentemente de onde
ela esteja, traz em si uma melodia, mas a melodia na msica desempenha um papel muito
destacado, e a palavra ganha contornos que no conhece na fala diria nem na leitura
potica, apesar de desempenhar papel importante. Ento deve ser pensada a relao de
notas dentro da palavra (do texto), assim como sua prosdia e suas caractersticas rtmicas.
Wolfgang Kayser4 ao analisar o poema La Lune Blanche de Verlaine, segue o seguinte
mtodo: anlise da forma; anlise do ritmo; da sonoridade e do significado. Parece que esse
mtodo apropriado, tambm, para a anlise de textos de cano.5
Alm das capacidades de interpretao textuais, o ouvinte modelo deve ser capaz de
atualizar as caractersticas musicais da cano. E nesse momento a questo deixa de ser
4
Kayser, Wolfgang. Anlise e interpretao da obra literria. Sucessor-Coimbra: Armnio Amado,
1976. p. 164.
5
Dizemos textos de cano porque apesar de alguns autores consider-los poemas isso discutvel.
Poderia ser usada ento apenas a expresso letras de msica, ou ainda letras, no entanto, estas
deixariam de fora poemas, textos em prosa e outros textos quaisquer que foram musicados mas que
no foram compostos para esse fim. Mas preciso esclarecer, j que citamos R. Barthes, que no
entendemos texto como ele entende. Texto aqui so textos escritos, quaisquer textos musicados
para Barthes, qualquer prtica significante um texto.
75
simples. Em uma aproximao com a teoria do leitor modelo, poderia ser dito agora que o
ouvinte modelo deve possuir, alm da capacidade auditiva, uma espcie de dicionrio
mnimo e de enciclopdia bsica. Mas o que seria esse dicionrio e essa enciclopdia
musicais? Prematuramente podemos dizer que um dicionrio de base em msica,
corresponde a um conhecimento mnimo de harmonia, melodia e ritmo.6 E uma
enciclopdia seria o conhecimento do uso desses aspectos. Porque no seu uso ocorrem
jogos. Por exemplo: na cano eu te amo de Tom Jobim e Chico Buarque, a harmonia7
segue uma relao no muito comum na cano popular, o que pode ser entendido como
um jogo - h quebra de expectativas e se o ouvinte no percebe como se no houvesse.
Na cano O pulsar, Caetano Veloso musicou um poema de Augusto de Campos. No
poema, as vogais so inicialmente substitudas por smbolos como estrelas e bolas; ao
musicar, Caetano buscou trazer essa inteno ao atribuir para cada vogal uma determinada
nota.
Na frase:
Onde aparece o pequeno crculo, canta-se com a nota d, onde aparece uma estrela, a nota
r numa oitava superior e onde aparece a, a nota sol. Alm de saber quais notas so, seria
interessante saber que essas notas correspondem ao I, II e V graus da escala, nas quais boa
parte da msica se baseia.
O ouvinte deve fazer atualizao das citaes. A citao musical pode no ser to freqente
quanto a textual, mas tambm ocorre. s vezes ela ocorre de forma muito clara, em
fonogramas introduzidos durante a execuo da cano. Em Jack Soul Brasileiro, Lenine
faz uma homenagem a Jackson do Pandeiro. Nesta cano ocorre referncia no texto:
quem foi? / que fez a ema gemer na boa,
aludindo cano O canto da ema; citao textual:
Tio. Oi/ Foste? Fui/ Compraste? Comprei/ Pagaste? Paguei/
Me diz quanto foi/ foi quinhentos ris,
que um trecho da cano Cantiga do sapo; citao cantando um trecho de Chiclete
com Banana; e citao com insero de fonograma da cantiga do sapo.
Um outro tipo de citao a da melodia. Na cano Baio de Quatro Toques, por
exemplo, de Z Miguel Wisnik e Luiz Tatit, a melodia cita quase que na cano inteira a
Quinta Sinfonia de Beethoven, baseando-se no mesmo motivo rtmico-meldico que a
sinfonia e ainda no texto faz-se a referncia e d a pista:
Esses so considerados os pilares da msica tonal, que abrange quase toda a cano brasileira, pelo
menos a chamada MPB, de onde extramos nossos exemplos.
7
A harmonia a relao entre as notas, quando notas so relacionadas simultaneamente tem-se um
acorde. A seqncia dos acordes segue uma determinada lgica dentro da msica tonal, msica que
abrange a maior parte das canes brasileiras.
76
pra quem comps, pra quem tocou e pra quem ouve / o destino que sempre se quis /
uma quinta sinfonia de Beethoven / que decantou e s ficou a raiz.
Alm dessas, podemos lembrar o arranjo. A identificao dos instrumentos, seus timbres e
o uso desses pode interferir na escuta. Na cano Terra, Caetano Veloso, ao cantar a
palavra Paraba ao final da seguinte frase:
Mando um abrao pra ti, pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta,
E fosses a Paraba.
um tringulo, instrumento fundamental nos arranjos de forr e baio, comea a ser tocado8 mas no aparece em primeiro plano. Esse detalhe do arranjo parte do jogo: a letra faz
referncia Paraba de Luiz Gonzaga (O rei do baio)e Humberto Teixeira, no qual se
canta:
Hoje eu mando um abrao pra ti, pequenina.
Paraba masculina, mui macho sim, sinh.
Em samba de uma nota s acontece um jogo interessante. A letra canta o que acontece
com a linha meldica. Quando se canta:
"Eis aqui este sambinha/ feito numa nota s/ outras notas vo entrar/ mas a base uma
s",
a melodia toda tocada na nota r. Um jogo explcito.
Quanto percepo musical, Jos Estevam Gava faz uma afirmativa importante acerca de
Joo Gilberto, que serve para pensarmos a condio da escuta em geral. Diz Gava que no
num mundo minimalista, como o de Joo Gilberto, uma pequena diferena o que
conta. Mas s adquire sentido quando bem ouvida, com a devida reverncia. Por isso
requer ateno e, outra condio bsica, silncio total. Caso contrrio, os minsculos
detalhes cuidadosamente trabalhados se perdem inutilmente, diluem-se em algo
aparentemente repetitivo e montono (Gava, 2002 p. 97). Os jogos de Joo Gilberto
ocorrem, sobretudo, nos aspectos musicais (harmonia, melodia e arranjo).
Isso importante para destacar duas questes: 1) em quais condies se escuta a cano, e;
2) cada cano requer seu ouvinte modelo.
Podemos perguntar se a cano um mecanismo preguioso, ou ento, to preguioso
quanto o texto. A princpio parece que no. Uma pessoa pode entrar em um restaurante e
ser tomada de assalto por uma msica, inclusive uma msica que no gosta, a qual nunca
escutaria em casa. Mas ela esta sendo tocada, contra a sua vontade. Basta sua faculdade
auditiva para perceber. Ao contrrio, pode ser sua msica preferida, e ento ela ficar
Esse arranjo se encontra no disco Prenda Minha de 1999, faixa 4. Importante notar que muito
comum a mudana de roupagem das canes. Nesse sentido ela muito mais flexvel que um texto.
Pode-se cantar uma cano sendo acompanhada por uma orquestra, ou por um violo apenas. Sem
dvida isso interfere na escuta.
77
satisfeita em ouvi-la e lhe dar ateno. Mas como, em um ambiente com "rudos", algum
pode realizar o jogo da cooperao?
Nesse momento precisamos nos apoiar em Barthes e dizer que a escuta um exerccio de
inteligncia, isto , de seleo. Ento o ouvinte pode direcionar sua escuta para uma
cano mesmo em um ambiente ruidoso. Mas, como lembra o prprio Barthes, se o fundo
auditivo invade todo o espao sonoro (se o rudo ambiente demasiadamente forte), a
seleo, a inteligncia do espao j no possvel, a escuta lesada. (1990, p. 218) Assim,
possvel escutar cano em ambiente no silencioso, mas a escuta lesada (o que
impossibilita a cooperao ideal).
Por isso, muitas vezes o ouvinte real, se distancia do ouvinte modelo: a condio de escuta
no adequada. Ouve-se msica no trnsito, enquanto se realiza uma leitura (que exige
ateno), enquanto bate papo, enquanto janta em um restaurante, enquanto bebe em um bar
etc. (Nesses casos parece que a cano desempenha uma espcie de funo: uma funo de
passatempo prazeroso, ou de preenchedora de espao sonoro, enquanto outra atividade
praticada).
Alm disso, h uma questo de tecnologia: os alto-falantes mais acessveis no comrcio,
muitas vezes no so adequados para a execuo de uma cano - eles tendem a prejudicar
a audio dos sons mais agudos e mais graves.
Ou ento, o ambiente ruidoso foi uma opo. Cada cano, pressupe seu ouvinte modelo
(assim como o texto o seu leitor). O ouvinte modelo de Chico Buarque pode se parecer com
o de Caetano Veloso, que pode se parecer com o de Tom Jobim, ou Joo Gilberto. Mas
certamente eles so bem distintos do ouvinte de Festa no ap, verso do cantor Latino.
Usamos esses extremos para lembrar que se a msica, assim como o texto, apenas a regra
do jogo, o jogo proposto em uma, pode ser completamente diferente do jogo proposto em
outra. Enquanto necessita silncio para seguir as regras do jogo numa gravao de Joo
Gilberto, necessita a dana para seguir as regras do jogo de um funk, ou de uma msica
ax executada em cima de um trio eltrico. Cada cano requer seu prprio ouvinte
modelo.
O ouvinte real
Se o ouvinte modelo, como o leitor modelo, so estratgias e ideais de interpretao, no
podemos perder de vista a lei pragmtica, segundo a qual a competncia do destinatrio
no necessariamente a do emitente (Eco, 1986, p. 38), e nesse caso podemos pensar no
prprio texto como emitente, e ter em vista sua ilimitada gama de referncias possveis.
Michel Picard diz que o leitor real, e podemos estender ao ouvinte real, aquele que
apreende o texto e a cano (no caso proposto), com sua inteligncia, seus desejos, sua
cultura, suas determinaes scio-histricas e seu inconsciente (Jouve, 2002, p. 15), e por
esses fatores delimitados. Jouve diz que apesar de Umberto Eco ter feito uma leitura com
intensidade cooperativa, lucidez e clareza da novela Un Drame Bien Parisien,
legtimo questionar se o resultado seria o mesmo de uma outra leitura lcida, clara e
intensamente cooperativa realizada por outro terico (2002, p. 48). O mesmo pode ser dito
para uma anlise de cano.
78
O ouvinte real , na maioria das vezes, leigo ou amador no que tange aos conhecimentos
musical e literrio. Mas isso no impede que a cano seja obra demasiadamente apreciada
talvez o gnero musical mais consumido atualmente, e certamente o no Brasil. O
ouvinte, mesmo no especializado, extrai prazer dessa prtica.
Nesse ponto queramos chegar: preciso possuir mesmo amplos dicionrio e enciclopdia
musicais e textuais para ser bom ouvinte? Para extrair prazer?
Como j foi proposto antes, essas seriam condies para ser o ouvinte modelo de cano,
mas para ser simplesmente ouvinte no parecem necessrias. No queremos, no entanto,
fazer a defesa da estupidez. certo que participa mais do jogo quem conhece melhor as
regras e sabe delas desfrutar. Por conseguinte, como uma cano no um produto que
surge do nada, ou seja, faz parte de uma histria, o conhecedor de canes tem mais
condies de apreciar uma obra do que quem no tem contato com esse tipo de gnero.
Parece vivel propor que o ouvinte em geral busque participar do jogo. Sendo ou no
ouvinte modelo (mesmo porque esse no existe nos termos postos por Eco, nem o autor
real um receptor modelo!), o que deve ser buscado a interao, a cooperao. Mas por
qu? Por que deve? Por que essa obrigao? Arriscamo-nos responder: porque a cano
serve para isso. Ela uma proposta que s se concretiza no ato da escuta, assim como o
texto s se concretiza no ato da leitura, ela existe porque existe o receptor e quando o
esforo pela sua concretizao maior, mais ela se concretiza, mais largamente, ento: ela
se torna maior. O tamanho dela depender do seu ouvinte. E um dos prazeres do ouvinte
est justamente nesse ato de atualizao.
O que postulamos que um ouvinte atento pode possuir um determinado senso prtico
(ou um conhecimento prtico), que o possibilita a apreciao. Ele capaz de definir
alturas meldicas, ter uma noo da orientao produzida pela harmonia (tenso e repouso,
cromatismo...), reconhecer instrumentos, ter senso rtmico, possuir uma memria auditiva
que o permite fazer comparaes etc. A mesma capacidade que as pessoas em geral
desenvolvem para o texto. Ningum precisa saber o que um lexema ou um morfema para
aprender a ler. Ningum precisa ter a definio de semntica para entender o sentido de um
texto.
Tentemos um exemplo para afirmar a possibilidade de escutas musicais sem o necessrio
auxlio do conhecimento tcnico: a cano O Extremo Sul de Z Miguel Wisnik.
Afirmamos que h uma citao de uma outra cano, uma citao sutil.
Pois bem, o que se exige do ouvinte para que se perceba isso? (como podemos perguntar: o
que se exige do ouvinte para perceber o cromatismo de Eu Te Amo?). Talvez a resposta
seja: perspiccia!
Claro que se ele nunca tiver ouvido Felicidade do gacho Lupicnio Rodrigues, no ser
possvel tecer relao alguma. Mas um ouvinte perspicaz pode perceber a semelhana na
curva meldica entre esses dois trechos apresentados, sem saber quais notas formam os
intervalos semelhantes. A letra ainda d a dica da citao para os mais desavisados: te
amo tanto te chamo tanto / ser sempre mais ao sul / ou mais azul / felicidade / o sonho de
viver.
79
O que estamos rodeando, e pensamos como concluso para a questo do ouvinte real, o
seguinte: leitor e ouvinte modelos no existem. O que existe so leitores e ouvintes reais,
uns mais arrojados que outros, para os quais o conhecimento tcnico fundamental para o
profundo desfrute de uma obra, qualquer que seja. Mas no podemos afirmar que um
conhecedor de msica e texto tenha uma percepo de uma cano necessariamente melhor
do que a do no conhecedor ( bem provvel que seja, mas no o necessariamente), que
um ouvinte seja melhor que um outro. O certo que o ouvinte capaz de atualizar com
argcia os jogos propostos pela letra e pela msica poder ter mais prazer que o ouvinte
muito delimitado e a argcia no um privilgio de tcnicos.
Ningum precisa abdicar do prazer da audio por no possuir um extenso dicionrio e
enciclopdia musicais.
Podemos fazer por fim, mesmo que superficialmente, um comentrio acerca do ouvinte
brasileiro. Essa inteno vem da leitura dos primeiros captulos do Dispersa Demanda de
Luis Costa Lima. Nesse livro, Costa Lima faz uma crtica dura ao sistema intelectual
brasileiro no que tange, sobretudo, sua formao, e tenta encontrar as causas dos
problemas que ele enxerga na nossa intelectualidade. Segundo ele, a cultura brasileira
preponderantemente auditiva, herana de uma forte cultura oral, mas diferente dela,
porque j possui contato com a escrita, com sistema universitrio etc.
A Literatura seguiu por esse caminho, era cmplice da oralidade: e a maneira de
converter a pgina escrita em forma oral consistia em oferecer uma leitura fcil, fluente,
embalada pela ritmicidade dos versos iguais (Gonalves Dias) e pela prosa digestiva (...)
(Lima, 1981, p. 7). Assim tambm os cursos superiores, como o Direito, foram calados
no na realidade dos fatos, no nas confirmaes factuais e sim, baseados no falar bem, nos
artifcios retricos. Os desdobramentos dessa prtica so facilmente identificados nas
tribunas polticas. Costa Lima faz questo de no desmerecer, simplesmente, as culturas
orais. Explica sua crtica ao sistema intelectual auditivo: A base da nossa crtica
oralidade, entre ns dominante, se baseia no fato de que ela no entanto se d no interior de
uma civilizao da escrita (Lima, 1981, p. 15).
Pois bem, talvez isso possa ser aproveitado por um outro aspecto. Essa cultura auditiva
brasileira pode exercer uma influncia positiva para o aspecto musical. No nada
incomum vermos elogios ao jeito musical do brasileiro, do tino musical, do ouvido do
brasileiro para a msica. No Brasil, a cano marca demasiado forte, s vezes considerada
das melhores do mundo (restringindo ao mbito da cano popular).
No so poucos os crticos literrios que j salientaram para a fora da cano popular no
Brasil. Inclusive, vale lembrar que em quase todos os outros pases do mundo, quando se
fala em msica popular, pensa-se sobretudo em msica folclrica (Carlos Sandroni,9 Philipe
Tagg10). Augusto de Campos no seu Balano da Bossa e Outras Bossas (Campos, 1978)
9
Sandroni, Carlos: Adeus MPB. In: Berenice, C., (Org,) Decantando a Repblica: inventrio
histrico e poltico da cano popular moderna brasileira. Vol. I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/
So Paulo, Perseu Abramo, 2004. Nesse artigo, Sandroni faz uma reflexo sobre o termo MPB e
conclui que ele no mais eficaz para definir a cano moderna brasileira.
10
Tagg, Philip, Analisando a musica popular: teoria, mtodo e prtica. In: Em Pauta. Vol. I, n. I.
Ps-graduao em Msica, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989. Nesse artigo, escrito pelo
80
ingls Philip Tagg, professor de musicologia da Universidade de Montreal, fica bem ntido o que se
entende por msica popular para os pesquisadores da Europa e Amrica do Norte.
81
A viso Romntica
A musicologia constituiu-se como disciplina a partir de 1919, desde ento, vrias
concepes do que msica e modos de entender o mundo, influenciaram suas prticas de
pesquisa. A concepo do que msica influencia, no s o objeto de pesquisa, mas o
mtodo e as selees de materiais e fontes. Havendo, portanto, em cada poca objetos
priveligiados ou reconhecidamente dignos de pesquisa e outros relegados ao esquecimento.
Entre as vises histricas que mais influenciaram na pesquisa musicolgica brasileira, duas
merecem especial destaque e analisa: a viso romntica e o positivismo. Tais influncias
no podem ser qualificadas apenas como momentos histricos do desenvolvimento da
musicologia enquanto cincia, mas que perduram at hoje em muitos trabalhos na rea, da
mesma forma como ainda persiste no meio artstico a noo de gnio artstico como algo
totalmente desvinculado de seu contexto histrico e social. O que revela que nenhuma
corrente de pensamento influenciou to decisivamente a esttica e concepo de arte em
geral como o Romantismo, cujas marcas ainda podem ser notadas na forma como o
imaginrio coletivo v os artistas e na forma como eles prprios vem a si mesmos.
O Romantismo, que tem incio na segunda metade do sculo XVIII, se contrape ao
racionalismo do sculo XVII e seu desdobramento no Iluminismo que viam na razo a
nica fonte legtima de conhecimento. Ele busca no sentimento, na imaginao, na
experincia uma nova maneira de conhecer o mundo e o prprio homem.
No Romantismo o indivduo encontra o caminho livre para fazer sua interpretao pessoal
da vida. Nesse esforo interpretativo, alguns romnticos chegam a dotar a sensibilidade
artstica de um poder transcendental, como uma fora criadora capaz de ultrapassar as
limitaes humanas em direo a um ideal que s pode ser intudo pelo gnio artstico.
Dessa forma, a essncia da personalidade romntica o gnio do artista. Para os
romnticos, s a arte capaz de nos aproximar do indizvel, pois nela encontramos algo de
intuitivo, no racionalizado, que nos permite uma aproximao maior com o sentido
profundo das coisas que, muitas vezes, ocultado pelo conhecimento metdico da cincia.
O gnio seria aquele cuja sensibilidade capaz de trazer tona, atravs da expresso
artstica, o sentido profundo oculto para cincia. Shelling afirma que o gnio artstico a
encarnao do divino no humano.
Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas
produes, aquilo que se chama gnio, o gnio, por assim dizer, o divino
que habita o ser humano. Ele por assim dizer, um pedao da absolutez de
Deus. Por isso, cada artista tambm s pode produzir tanto quanto esteja
83
Desse modo, a produo artstica vista como uma emanao de uma fora criadora
transcendente e, portanto, como algo dissociado de qualquer influncia externa, tais como o
contexto social e histrico em que o artista est inserido. Por contraditrio que possa
parecer, o artista aquele que capaz de captar o esprito universal dominante de sua
poca, mesmo que no tenha o propsito de faz-lo, pois esse capaz, por assim dizer, de
sentir o esprito do tempo o que explicaria a concordncia entre a produo dos grandes
mestres e a forma esttica dominante em determinada poca.
Nas pocas de florescimento da arte a necessidade do esprito universal
dominante, a prosperidade e, por assim dizer, a primavera daquele perodo
que produz, em maior ou menor medida, a concordncia universal entre os
grandes mestres, de modo que, como tambm mostra a histria da arte, as
grandes obras surgem e amadurecem muito prximas umas das outras, quase
simultaneamente, como que por um mesmo alento e sob um mesmo sol (...).
(Schelling, 2001, p. 23)
Disso decorre que, para entender uma poca e o esprito dominante desta poca, deve-se
pesquisar os grandes gnios e suas grandes obras. Assim o estudo das obras artsticas
concentram se assim sobre as caractersticas do autor e de sua grande obra.
Mesmo em termos no to idealistas o filosofo filsofo Herder desenvolveu uma teoria da
histria em que afirma que cada poca da histria tem um valor prprio e cada povo sua
forma de ser, ou seja sua prpria alma, mas, ao mesmo tempo, ao expressarem sua
peculiaridade, atingem algo de universal.
A Histria, nessa medida, constitui-se desses esforos dos homens que, em
cada poca, em cada lugar, e de um modo concreto, buscam tornar-se
Humanitt, manifestando-se como povos particulares. No o progresso do
homem em geral, mas a sucesso dos povos, cada qual com sua peculiariedade
e fora, e que, ao progredirem e atingirem a plenitude, tambm entram em
declnio: o tempo impede a eternizao da plenitude.(Valverde (ed.), 1987, p.
476)
Essa viso de histria contribuiu para o sentimento de identidade prpria de cada nao,
inspirando o romantismo nacionalista que se interessava sobretudo pela histria de seu
povo, sua lngua e pela cultura popular.
Historicismo
A chamada escola historista ou historicismo, corrente de estudos histricos cujo principal
representante foi Wilhelm Dilthey (18331911), apesar de partir de uma matriz bastante
diversa tanto em termos metodolgicos como de referencial terico, tambm chega a
84
85
Essa viso subjetiva, muitas vezes tinha a inteno de enaltecer a nao. O nacionalismo
brasileiro estava interessado principalmente nos compositores que conseguiram de alguma
forma expressar o sentimento nacional em suas obras, no se interessando ento por
compositores de uma poca mais remota por entenderem que no incio a msica que se
fazia no Brasil era totalmente nos moldes da msica europia. Por outro lado, uma grande
contribuio dos nacionalistas musicologia brasileira foi a de desenvolver a prtica da
pesquisa musical das msicas folclricas brasileiras.
Outra prtica recorrente de inspirao historicista a de pensar a histria como um todo
homogneo em que cada momento histrico deve ser preenchido para que este no tenha
descontinuidades ou lacunas. Assim, a tarefa do musiclogo brasileiro seria a de
preencher as lacunas que existem no cnon de obras e autores consagrados. sob este
pensamento que Luiz Heitor Corra de Azevedo escreve:
A msica brasileira que o historiador pode apreciar luz da crtica comea no
sculo XIX(...) Mas necessrio que as pesquisas para a reconstituio
prossigam ativamente, pois o interesse histrico que apresenta no padece
discusso; e h que contar com as surpresas, que podem invalidar o que acima
ficou dito e trazer luz obras mais importantes, que faam recuar aquele
marco prematuro, estabelecido, de acordo com os nossos conhecimentos
atuais, para assinalar o incio em memrias histricas, mas, tambm, por
intermdio de realizaes dignas de permanncia, em nossos programas de
concertos ou outros atos da vida musical contempornea (Bispo, 1983, p. 27).
86
A viso Positivista
A viso positivista, ao contrrio da viso historicista, pretende construir uma cincia isenta
de juzos de valor, tendo como modelo as cincias naturais. A relao no mais de um
sujeito com outro sujeito e sim entre sujeito e objeto. mile Durkheim considerado o
fundador da Sociologia, inspirado pelos estudos de Comte tenta fazer da Sociologia uma
fsica social. Durkheim pretende tratar os fatos sociais como coisas, para que dessa
forma possa afastar-se definitivamente da tradio das cincias do esprito e se aproximar
do modelo das cincias naturais.
Tratar certos fatos como coisas no , portanto, classific-los numa ou noutra
categoria do real: ter para com eles uma certa atitude mental; abordar o seu
estudo partindo do princpio de que se desconhecem por completo e que as
suas propriedades caractersticas, tal como as causas de que dependem, no
podem ser descobertas pela introspeco, por mais atenta que seja (Durkheim,
1983 , p. 76)
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88
novas fontes de pesquisa alm das fontes musicais dos arquivos musicais como
j dito, muitas vezes no catalogados, pouco explorados e muitas vezes sob perigo
de extino1, a nova musicologia utiliza tambm com mais freqncia outras
fontes extra musicais , que portanto podem dar a pesquisa informaes
importantes de como era a vida musical de uma determinada poca, comunidade,
grupo, etc; ou at sobre o desenvolvimento do pensamento musical por um
perodo. Essas novas fontes podem ser peridicos , revistas musicais , jornais ,
ordem de pagamento para msico etc.
novas questes A questo posta pela musicologia at ento era o que as grandes
obras e os grandes compositores diziam de sua poca. Na nova abordagem
musicolgica vrias perguntas se colocam:. Qual o cenrio musical de cada
Sobre o tratamento dos arquivos musicais e sua situao ver: Concluses e Recomendaes do I
Colquio Brasileiro de arquivologia e Edio Musical. I Colquio Brasileiro de Arquivologia e
Edio Musical, Mariana, 18-20 jul. 2003. Anais. So Paulo, s.n. 1995. pp. 148159.
89
90
Dessa forma, a primeira coisa que o pesquisador deve analisar qual o papel da produo
musical e da produo de bens simblicos em geral na sociedade capitalista.
Para que seja possvel romper com a problemtica tradicional (...) a condio
bsica consiste em constituir o campo intelectual (por maior que seja a sua
autonomia, ele determinado em sua estrutura e em sua funo pela posio
que ocupa no interior do campo de poder) como sistema de posies
predeterminadas abrangendo, assim como os postos de um mercado de
trabalho, classes de agentes providos de propriedades de um tipo determinado.
Tal passo necessrio para que se possa indagar no como tal escritor chegou
a ser o que , mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma
determinada poca e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus
socialmente constitudo, para que lhes tivesse sido possvel ocupar as posies
que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e,
ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posio estticas ou ideolgicas
objetivamente vinculadas a estas posies ( Bourdieu, 2004, p. 190).
Por exemplo segundo Bourdieu a produo erudita, compreendida dentro do campo dos
bens simblicos, cumpre a funo de assegurar a conservao e a transmisso seletiva dos
bens culturais e dos consumidores dispostos e aptos a consumi-los. O consumo dos bens
simblicos necessita de instrumentos de decodificao desses bens. Portanto, as obras de
arte erudita derivam sua funo de distino social da raridade dos instrumentos destinados
91
Assim se constitui duas categorias de bens simblicos: a arte erudita destinada s pessoas
que adquiriram as disposies para compreend-la, e a arte mdia, produto da indstria
cultural, destinada a um pblico mdio que socialmente heterogneo.
Os produtos da indstria cultural utilizam-se de recursos imediatamente acessveis, em
busca da rentabilidade e da extenso mxima do pblico. Por sua vez, a arte erudita por se
destinar a um pblico reduzido e contar, muitas vezes, com a subveno do Estado, pode
fazer experimentos de vanguarda que podero ser apropriados pela arte mdia por seus
resultados j testados e garantidos. Assim a arte mdia sempre subsidiria da cultura
erudita, pois qualquer inovao poderia por em risco o contato com o grande pblico, por se
tratar de um efeito ainda no testado. Disso decorre que a arte mdia sempre uma cpia
mais acessvel da cultura legtima.
Bourdieu explica que no se pode falar propriamente de uma cultura popular porque
enquanto a cultura da classe dominante transmitida na escola e encontra sua
complementao fora dela como cultura erudita, a cultura popular desprovida de ambos.
Assim para que possa existir uma cultura popular deveria haver uma forma de produo de
obras populares capazes de exprimir o povo de acordo com esquemas de linguagem e
pensamento que definem sua cultura. Mas isso equivaleria, segundo Bourdieu, a exigir ao
povo que tome de emprstimo cultura erudita a inteno e os meios de expresso (como
fazem os escritores populistas, burgueses ou trnsfugas) a fim de exprimir uma experincia
estruturada segundo os esquemas de uma cultura (no sentido subjetivo) que, por definio,
exclui tal inteno e tais meios (bourdieu, 2004, p. 221)
92
93
Introduo
A msica eletroacstica, desde seu surgimento na dcada de 1950, trouxe consigo questes
relacionadas a estratgias composicionais que vieram refletir no processo histrico da
msica como um todo. Durante anos, simpatizantes da linha Musique Concrte (Frana) e
os que seguiram a linha da Eletronische Musik (Alemanha), trouxeram tona discusses
que propiciaram novos meios de realizao e vinculao de obras musicais. Tanto a
utilizao de sons gravados em diversos ambientes, manipulados e estruturados em estdio,
quanto a busca da criao e recriao de sons e timbres atravs de sntese eletrnica foram
incorporados ao conjunto de possibilidades do compositor contemporneo. E a fuso destes
elementos de natureza distinta gerou basicamente o conceito atual da msica eletroacstica.
Esta tendncia tem como caracterstica principal o rompimento com a supremacia dos
parmetros altura e durao, propondo assim, uma nova categoria de escuta, que busca uma
percepo da interioridade dos dados sonoros que trouxeram novos conceitos instaurando
um novo pensar, fazer e ouvir musical.
Boa parte dos estudos relacionados anlise da msica contempornea dedica sua ateno
s msicas conduzidas pelos parmetros regentes da musica tradicional altura, durao,
dinmica e timbre enquanto suportes para as anlises que se apiam na representao
grfica em partitura.
Ao utilizar recursos de fixao e processamento sonoro como estratgia composicional, a
msica eletroacstica traz uma nova problemtica: a questo da escuta no processo
analtico. A escuta musical toma um sentido bem profundo nesta forma composicional, por
esta no possuir o elemento referencial de origem o instrumento, no sentido tradicional -,
e ainda por no possuir uma notao grfica objetiva. Caesar (2000) a esse respeito afirma
que o novo arsenal de ferramentas ocupava um espao privilegiado, cuja suficincia
poderia prescindir daquilo que de mais prprio a msica tinha - seu canal especfico - a
escuta. Por no ser registrada graficamente, mas sim, gravada, esta msica ir trazer um
desafio mais intenso para o rgo principal que conduz a atividade musical: o ouvido. O
importante o som por ele mesmo, as suas relaes com outros e a construo temporal
desse discurso musical, tornando invivel o uso da notao tradicional. Varse (1936, p. 58)
acerca deste abandono de notao impulsionado pela implantao dos instrumentos
eltricos cita: E aqui curioso notar, como ao incio de duas outras eras a alta Idade
Mdia e a nossa era primitiva [...] que nos defrontamos com o mesmo problema: o de
encontrar uma simbologia grfica apta a transformar em som o pensamento do compositor.
Desta maneira, a escuta ser vista neste contexto como ponto de partida da anlise.
Com a nova fase digital de composio eletrnica, outras possibilidades esto se abrindo no
mbito da composio onde o desafio da escuta permanece e defronta-se com as formas de
articulao do sonoro apresentados nesta maneira de criao musical. O fenmeno da
msica em meios eletrnicos trouxe novas possibilidades de combinao rtmicas e
sonoras, oferecendo assim, uma nova viso da criao musical, dotada de uma diferenciada
95
96
objetos sonoros e musicais, bem como a maneira ideal de se ouvir e entender esse tipo de
linguagem musical, e a nova noo de instrumento musical foram novos conceitos
propostos por Schaeffer que se encaixam em toda e qualquer msica, e alguns destes sero
discutidos neste artigo.
O objeto sonoro
O trabalho de Pierre Schaeffer veio trazer no apenas um novo mundo sonoro e musical,
mas tambm, atravs de suas conceituaes interminveis indagaes que originaram
inquietaes sempre experimentadas por muitos compositores e estudiosos de msica. Seus
conceitos at hoje so importantes ferramentas para anlise e temas para discusses em
cima de uma viso mais ntima para com o fenmeno musical.
Um dos conceitos amplamente discutido e adotado pelos compositores o que vem a ser o
objeto sonoro. No seu Tratado dos Objetos Musicais, Schaeffer, busca essa definio
lidando com a percepo do sonoro e do musical, decompondo a experincia musical em
alguns quadros e categorias de conceitos. O compositor prope essa conceituao atravs
da experincia de uma escuta atenta aos sons, e que ao escut-los, deve-se desligar qualquer
referncia que no seja exclusivamente pertinente s caractersticas internas deste som.
Palombini (1999) acerca da nova conceituao Schaefferiana de objeto sonoro coloca que
este:
no um produto esttico, mas uma prtica significante; no uma estrutura,
mas uma estruturao; no um objeto, mas um trabalho e um jogo (...); no
um grupo de signos fechados, mas um volume de traos em deslocamento;
no a significao, mas o Significante; no a velha obra musical, mas o
Texto da Vida.
Mesmo que materializado pela fita magntica, o objeto tal como Schaeffer busca definir,
no est tampouco sobre a fita, a fita no nada mais nada menos que um suporte sonoro,
ou sinal acstico. Da surge a prxima afirmao do autor: o objeto sonoro no a fita
magntica, mas sim, apenas relativo escuta . Sem a escuta de um determinado ouvinte,
estes sons passam a ser apenas sinais fsicos fixados em um meio material, pois somente a
escuta que dar contas do resultado perceptvel, necessrio para a identificao do objeto
sonoro. E, atravs das possibilidades de manipulaes na fita, possvel a modificao e at
a criao de novos objetos, mas no este fato que definir o objeto sonoro, mas sim a
percepo que o ouvinte ter deste, pois existe na verdade uma correlao entre as
manipulaes que se infligem a uma fita ou s suas diversas condies de leitura as
condies da nossa escuta e o objeto percebido (Schaeffer, 1993, p. 87).
Por ser fruto da percepo, o objeto sonoro tem a aparncia de estar fundamentado apenas
na subjetividade de um indivduo. Entretanto, o autor coloca que apesar de existir uma
variao de percepo de um indivduo para outro, ele no se modificar. Nota-se que
97
Schaeffer busca o conceito de objeto sonoro em cima de uma percepo apurada sobre a
matria escutada, para ele o objeto sonoro ir existir quando for completado, ao mesmo
tempo materialmente e individualmente uma reduo rigorosa na escuta, ou seja, no se
deve restringir apenas s informaes dadas pelo ouvido, no se procura mais obter
informaes do evento sonoro (como sua fonte, sua altura precisa, por exemplo), mas sim
o prprio som em sua essncia que deve ser observado.
Deve-se ter em mente - segundo essa teoria proposta por Schaeffer que o objeto sonoro
pode possuir as propriedades fundamentais de outros objetos percebidos (como o agente
produtor do som, por exemplo), ento preciso reconhecer, que em um som, mais fcil
confundir o objeto percebido e a percepo que dele tenho (Schaeffer, 1993, p. 244), ou
seja, a percepo algo particular do indivduo, mas o objeto sonoro no modificar ao ser
apresentado a diferentes ouvintes.
Outro ponto que deve ser colocado em questo a relao do objeto sonoro com o sinal
fsico. Schaeffer defende que o sinal fsico no sonoro em sua essncia, pois se deve levar
em considerao o que captado pelo ouvido. Para a fsica o conceito deste objeto
relacionado com as normas e sistemas de referncia desta, e a percepo deve ser
fundamentadas em suas grandezas particulares (deslocamento, velocidade, presses, etc.).
O fsico considera que o objeto sonoro no passa de um sinal mensurvel, e assim ele acaba
por colocar o sinal fsico no comeo das anlises, e a audio vir posteriormente, o que
contrariar o que Schaeffer quando diz que o objeto sonoro, dado na percepo que
designa o sinal a ser estudado, e que no se poderia, portanto, cogitar de reconstru-lo a
partir do sinal (Schaeffer, 1993, p. 245).
Schaeffer, ainda coloca que para escutar o objeto sonoro necessrio abdicar de qualquer
referncia a alguma fonte que este pode trazer, ou seja, devemos renunciar ao
condicionamento criados por hbitos anteriores. Para essa percepo necessrio voltar
experincia auditiva, recapitular as impresses, para ser possvel encontrar informaes
sobre os objetos sonoros, e no a sua fonte.
Tipologia e morfologia do objeto sonoro
Ao se estabelecer uma definio para o objeto sonoro, surgiu a preocupao se ordenar
critrios auxiliares para uma escuta da msica, especialmente a feita com as novas
tecnologias. Com a msica eletroacstica surgiram alguns problemas composicionais e
analticos, s poderiam ser passados adiante atravs da descrio da escuta. Seus conceitos
baseiam-se em grande parte em cima de uma escuta atenta aos sons com o objetivo de um
relato mais apurado das caractersticas ou traos distintivos da experincia musical,
buscando uma anlise diferente do que a proposta da anlise tradicional.
Atravs da experincia de fragmentao e repetio de um objeto sonoro fixado em um
meio, Schaeffer, volta sua ateno ao som em si, como j dito anteriormente, abdicando da
preocupao com causa sonora, para voltar-se ao objeto, passar a ouvi-lo de outra maneira,
pela escuta reduzida, que ser comentado mais adiante.
Ele coloca que de tanto manipular os sons to diversificados, chegou seguinte concluso:
primeiro foi a necessidade de renunciar toda classificao musical prematura. Mas foi
preciso tambm, por falta de critrio musical, comparar os sons em funo das
caractersticas banais [...]: eles tinham um comeo um meio e um fim (Schaeffer, 1993, p.
328). Desta forma, surgiu a necessidade de uma morfologia comparativa, pois uns sons
possuam a caracterstica de serem mais harmoniosos que outros, e essa comparao surgiu
da decomposio do som em trs partes: seu ataque, seu corpo e sua queda. E esta seleo
98
no podia ser feita, a no ser segundo diferenas morfolgicas. E vale lembrar que na viso
schaefferiana, mais importante e prioritrio constatar e compreender o aspecto
morfolgico e tipolgico do objeto sonoro, do que descrev-lo, prematuramente por
intermdio de uma notao.
A morfologia surge do exame de efeitos e comportamento atravs do tempo do objeto
sonoro. J a tipologia surge do confronto das colees de sons, dos quais, na inteno de
identific-los, no se detm mais do que as caractersticas mais gerais deste som. Assim, a
morfologia tende a uma qualificao do sonoro enquanto a tipologia est relacionada
necessidade de identificao os objetos.
Depois de renunciado a todas as referncias do objeto, resta ento em uma anlise,
compar-los entre si, de todas as formas possveis em seu contexto e suas organizaes,
isso seria a atividade da morfologia. Enquanto a tipologia o ato de separar estes objetos e
identific-los, e estes so feitos a partir de dados morfolgicos.
Na procura de uma caracterizao do objeto sonoro, Schaeffer prope levar da prtica de
corpos produtores de som, uma musicalidade universal atravs de uma tcnica de escuta a
escuta reduzida -, esta a proposta do denominado Solfejo dos objetos musicais.1 E para a
realizao deste solfejo so necessrias fases que compreendem: uma etapa preliminar,
quatro operaes e um eplogo ou sntese. Na etapa preparatria, ou etapa preliminar, os
corpos sonoros heterogneos so colocados em vibrao por processos variados e os sons
resultantes so registrados. Na primeira operao que a da Tipologia, objetos so
extrados de contnuos sonoros e selecionados ou descartados de acordo com uma tendncia
que ele coloca como sendo musical, ou seja, faz-se uma triagem dos objetos que conduzem
determinao de seu tipo; na segunda fase, a da Morfologia, os objetos selecionados so
comparados, os critrios de percepo que os compe so nomeados e os objetos so
qualificados enquanto amostras destes critrios; na terceira etapa, o denominado interldio
arqueolgico, interaes de critrios so identificadas no mbito de um objeto sonoro dado,
sendo ento referidas a um evento produtor de som; na quarta, a da Anlise, os objetos que
elucidam os critrios so confrontados com os campos perceptivos das alturas, das duraes
e das intensidades, a fim de se estabelecerem escalas cardinais (absolutas) ou ordinais
(relativas) de critrios. No eplogo, ou sntese, tem-se a inteno de se produzir novas
msicas baseadas em estruturas de referncia dadas pelos critrios de percepo.
A partir da escuta atenta que se delineia os critrios da morfologia do objeto sonoro o
qual Schaeffer coloca como sendo potencialmente musical, ou seja, passveis de emergir
como valores musicais no contexto de estruturaes.
Estes critrios, tambm so denominados critrios de percepo os quais o autor
estabeleceu dois tipos: os critrios de forma e os critrios de matria. Os critrios de forma
descrevem evolues temporais sobre o fundo dos critrios de matria. Estes so separados
como perfis: meldico - em relao s modificaes na altura -, dinmico - em relao
intensidade - e os de massa em relao ao conjunto das intensidades e dos componentes do
espectro de um som. J os critrios de matria tm a funo de descrever as qualidades
imediatas, espaciais, dos sons e da massa: sua densidade, espessura e complexidade (em
oposio tonicidade dos sons de espectro harmnico dos instrumentos musicais);
avaliando ainda o timbre harmnico existente em determinadas massas.
1
Jean-Claude Risset (in Menezes, 1996, p. 185) define os Solfejo dos objetos musicais, de Schaeffer,
como sendo uma cartografia do domnio sensvel que permite a referncia de qualquer objeto
sonoro no espao de sons percebidos, consistindo no que ele chama de um esboo metdico
suscetvel de esclarecer e de nortear uma procura de correlaes entre as particularidades do som e os
critrios da sensibilidade.
99
Existe na regio que est entre forma e matria ainda dois outros critrios, que so: o gro,
que descreve a experincia que fica na fronteira entre pulso espaado - aspecto temporal - e
diferentes rugosidades ou outras qualidades quase palpveis - aspectos espaciais - da
massa; e a allure, que seria um modo de andar do objeto sonoro, em outras palavras,
modos ondulatrios de se mover no tempo, tais como o vibrato (de altura), o tremollo
(dinmica) e ainda uma allure de massa.
Poderia haver ainda outras maneiras de descrever do sonoro ao musical como recorrer a
analogias, como as que usamos diariamente, por exemplo som agudo, penetrante,
cido, tenso, etc; mas Schaeffer condena o uso de analogias para o descrever sonoro,
defendendo que esta apenas traduz a profunda dificuldade em que nos encontramos para
descrever o objeto em si, fora de toda estrutura (Schaeffer, 1993, p. 388).
Conhecidos as categorias e funes do objeto, cabe ao compositor impor limitaes
pertinentes para se trazer luz tal ou qual mecanismo ligado a essas classificaes prprio
para o ato musical, pois localizar o critrio uma coisa, outra coisa calibr-lo, esta
consiste em uma tarefa mais complexa. O compositor deve ter uma primeira atitude de
explorador, para assim se tornar conhecedor desses critrios e categorizaes, para que se
conceba uma obra dotada de grande originalidade e autenticidade. E para reforar esta
questo, pertinentemente Schaeffer afirma:
o progresso musical se d talvez por tal preo: talvez a meta de um compositor
inteligente no devesse mais ser a de uma casualidade elptica que o levasse
diretamente obra, ele deveria optar pelo mbito estreito [...] de um exerccio
preparatrio. [...] no nvel do solfejo que propomos a abordagem
experimental, pr-condio de uma inspirao musical autntica e realista.
(Schaeffer in Menezes, 1993, p.159).
Parece um tanto quanto bizarra a afirmao de que a msica admitiu que a audio,
qualidade principal da existncia musical, estivesse deixada de lado como questo. A
escrita aparentemente trouxe uma mudana de foco para a escuta na msica. Praticamente
abdicou dos procedimentos reguladores baseados na memria e na improvisao, que
constituem um princpio da prtica musical tradicional. Mas, ao contrrio, por consistir num
aspecto na exterioridade em sua base, a escritura musical exige uma organizao lgica
prvia.
100
A msica eletroacstica a partir do seu surgimento, trouxe ento de volta esta questo do
escutar como principal recurso analtico, que at ento a msica havia de certa forma dado
uma menor ateno em relao escrita durante muitos sculos, por ser a grafia musical um
principal suporte de anlise. Sua elaborao com novos materiais e matrias no interior do
som, trouxe conseqncias irreversveis para o pensamento musical. As novas tecnologias
ainda no se tornaram capazes de apontar modelos de anlise determinantes e objetivos
para descrever, ou de qualquer outra forma representar as obras dessa nova msica. Essas
novas ferramentas para a composio ocuparam um espao privilegiado e suas habilidades
trouxeram a possibilidade de voltar a ateno quilo que de mais prprio a msica tinha, o
seu canal caracterstico - a audio.
Schaeffer, como j mencionado ao longo deste artigo, foi o responsvel pelas primeiras
tentativas de sistematizar aportes para a escuta de msicas feitas com as novas tecnologias.
Seu trabalho era motivado pela inquietao em buscar contribuies que levassem a um
conhecimento mais profundo da msica. Suas pesquisas eram desenvolvidas sob a viso de
que a msica deve permanecer em seu territrio como uma arte para ser escutada por um
sujeito ouvinte.
Com o desenvolvimento da msica em meios eletrnicos, surgiram problemas com os
novos meios de realizao sonora, pois os resultados finais solicitavam conhecimentos para anlise e para sntese que at ento no eram discutidos pela teoria tradicional. No
sendo suscetvel de notao grfica de partituras tradicionais, esta msica dependia
unicamente do ouvido para ser apreciada e analisada. Havia ento, a necessidade de uma
nova linguagem para sua descrio. O material, na msica eletroacstica, no de natureza
discreta, ou seja, no est previamente distribudo em sistemas intervalares. Ele pode ser
analisado na sua natureza fsica, mas, a anlise no estar em seqncia com a imagem
sonora produzida na percepo. Esta srie de rupturas, de no causalidades, entre o som e
sua origem, o gesto que o originou, responsvel pelo grande esforo em encontrar um
repertrio de equivalncias que dem conta da complexidade sonora e composicional da
msica eletroacstica. Por este fato, Pierre Schaeffer assumiu esta nova problemtica pelo
caminho que lhe era mais pertinente, o da escuta orientada com seu projeto mais
ambicionado, o de uma comunicao universal.
As quatro escutas
Na busca de uma escuta significativa dos objetos sonoros e musicais, e em busca do seu
conceito de escuta reduzida, Schaeffer prope a teoria de quatro funes para esse ouvir
mais atento: o ouvir; o escutar; o entender e o compreender.
1.
101
2.
3.
Entender: Ter uma inteno sobre algo, neste caso o som apreendido. Captar um
sentido. Aplicar o ouvido para buscar uma interpretao do dado sonoro, dar
ateno. Para ilustrar: ao participar de uma conversa com diversas pessoas, o
indivduo passa de um locutor a outro conforme seu interesse, sem se dar conta da
mistura de vozes, risadas e rudos que envolvem o ambiente. E Schaeffer (1993,
p.89) complementa acerca do entender: dirigir o seu ouvido para, por onde,
receber a impresso de sons.
4.
Em outras palavras poderamos definir cada processo da seguinte maneira: Escutar trata-se
do gesto de dar ateno aos objetos sonoros captados pelo ouvido; ouvir estabelecer
relaes de semelhana entre significante e significado;2 entender instituir relaes de
causalidade entre estes significantes e significados a aplicar intencionalmente um sentido a
eles. Compreender o promover relaes simblicas; porque ouvir, escutar, entender e
compreender so acepes de entender em relao ao significado etimolgico que o de
ter a inteno de. Desta forma, Schaeffer definiu a palavra entendre no sentido de: ouvir,
escutar, entender e compreender com a conscincia de uma inteno.
Ao definir estas funes, foi proposto o que ele denomina balano funcional do ouvido,
onde sugere que nosso ouvido possui um caminho de percepo em etapas. Mas sua
inteno a de - numa finalidade metodolgica - descrever os objetivos que correspondem
a funes da escuta, e no a de decompor a escuta em uma seqencialidade cronolgica de
acontecimentos que procedem uns dos outros como os efeitos decorrem de causas.
Significante aqui visto como parte fsica ou material que representa qualquer signo; e o significado
o valor representativo do signo (Objeto em sua essncia).
102
4.
1.
compreender
escutar
3.
2.
entender
ouvir
103
atravs do que ele denomina como unidade de inteno, ou atos de sntese que o objeto se dirige
essas vivencias.
104
Referncias bibliogrficas
CAESAR, Rodolfo. Novas tecnologias e outra escuta: para escutar a msica feita com tecnologia
recente. In: I Colquio de Pesquisa e Ps-Praduao, Anais, Rio de janeiro: UFRJ, 2000.
Introduo
Esta investigao um recorte da pesquisa "Fatores do Desempenho e Ao Pianstica Uma Perspectiva Interdisciplinar" cujo foco o estudo de determinados fatores do
desempenho (movimento) que intervm na prtica pianstica, mais especificamente, fora,
fadiga, flexibilidade, rapidez de movimento e coordenao motora. Tem sua origem em
argumentos apresentados por Pvoas (1999) e como referencial os pressupostos de Rasch
sobre o desempenho humano, este entendido como a expresso de vrios componentes
denominados fatores do desempenho (Rasch, 1991, p. 183193).
Entre seus objetivos esto: investigar e discutir sobre os fatores em destaque e suas
implicaes na utilizao de recursos tcnico-instrumentais, estabelecer relaes entre
aspectos a eles inerentes e a ao pianstica1 com vistas eficincia do trabalho tcnicoinstrumental e discutir sobre implicaes que a utilizao das relaes levantadas, na
prtica, tm no desempenho. O movimento considerado o elemento-meio da atividade em
foco cuja ao fsico-motora est sujeita interveno de vrios fatores e,
conseqentemente, aspectos a eles relacionados interagem na atividade instrumental.
A reviso bibliogrfica tem por base pressupostos tericos interdisciplinares. Integra
abordagens da rea pianstica e de reas que tratam de questes referentes ao movimento
humano, a citar, cinesiologia, biomecnica e ergonomia. So discutidos procedimentos para
o desenvolvimento de uma conscincia anatmica e cinesiolgica dos membros superiores
em suas relaes com a prtica, resultado sonoro e a manuteno da sade das estruturas
anatmicas mais ativas durante o trabalho instrumental objetivando a otimizao do
desempenho. As reas que tratam do movimento humano como meio de produo de uma
atividade seguem a tendncia de buscar uma melhor compreenso dos fenmenos
envolvidos na interdisciplinaridade. Esta permite uma maior abrangncia dos recursos
tericos e prticos alicerados tanto na funcionalidade dos recursos j disponveis quanto
nos resultados de novas investidas e experimentos especficos.
Resultados de estudo piloto (experimento biomecnico), realizado em etapa anterior desta
pesquisa, apontam para o aprofundamento das relaes entre questes tcnico-instrumentais
e aspectos mais especficos a cada um dos fatores em estudo. Neste sentido, esto sendo
1
106
107
eficincia da uma ao com resultados timos (Meinel, 1987), a busca por um equilbrio
entre o uso de fora com outros parmetros, deve ocorrer. Este conceito se aplica ao
pianstica quando se pretende que os movimentos adequados ao design da obra, ou de
partes da obra em estudo, sejam organizados e realizados em funo de uma sonoridade
prevista. Desta forma, a razo do movimento deve determinar quais os procedimentos
mais eficazes para que a relao causa - efeito sonoro seja otimizada. Tal condio pode ser
o resultado da conexo entre a realizao da tcnica, e aqui se inclui o equilbrio entre a
aplicao da fora, a real necessidade de energia que o texto musical requer que seja
despendida e o tempo de treinamento ou prtica instrumental.
Um dos fatores do desempenho que est diretamente associado resistncia muscular a
fadiga. Assim sendo, o estudo sobre causas e efeitos da fadiga na atividade humana de
interesse para a rea pianstica. Entre as definies de resistncia, uma delas diz que a
resistncia a capacidade de realizar o mesmo trabalho durante um perodo de tempo [e] a
fadiga definida como uma falha em manter a fora necessria ou esperada de contrao
muscular (Lehmkul & Smith, 1989, p. 115). Segundo os autores, uma atividade muscular
prolongada pode levar a conseqncias que incluem a acumulao dos produtos das
reaes qumicas que diminui a velocidade das reaes subseqentes. Assim, a realizao
de tarefas exaustivas pode resultar em fadigas musculares que so, mais precisamente, o
produto do cido lctico acumulado no sangue e nos msculos devido ao trabalho fsicomuscular alm do limite saudvel.
Quanto ao efeito da fadiga em termos bioqumicos, o relaxamento de um msculo depende
da disponibilidade de adenosina trifosfato (ATP) e, igualmente, do nvel de oxignio e
nutrientes adequados para prover este msculo de ATP e mant-lo apto para responder, por
um perodo mais longo respostas de baixa freqncia de tetania, ou seja, contraturas dos
membros superiores. Assim, para que o msculo possa sintetizar a ATP, esta freqncia
deve ser baixa a uma taxa suficiente para manter a taxa de quebra de ATP durante a
contrao (Nordin & Frankel, 2003).
A informao acerca da fadiga muscular pode ser obtida quando, depois de determinado
nmero de repeties, h uma reduo de teno mxima (torque) de um grupo muscular. A
fadiga de um grupo muscular pode ser causada por falha de um ou mais mecanismos
neuromusculares que participam da contrao muscular (Fox, 1993) e a ausncia de
contrao voluntria pode ocorrer devido a falhas do nervo motor, da juno
neuromuscular, do mecanismo contrtil e do sistema nervoso central. Entre as falhas
relacionadas ao sistema nervoso est a incapacidade de retransmisso dos impulsos
nervosos para as fibras musculares. Assim sendo, a habilidade do msculo de exercer
tenso durante um perodo de tempo a resistncia muscular. Nela, a tenso pode ser
constante ou varivel e fatigabilidade o oposto da resistncia [e] quanto mais rpido um
msculo fadiga-se, menor sua resistncia (Hall, 1993, p. 71).
Se a fadiga dentro do mecanismo contrtil pode ser causada pelo acmulo de cido lctico
no sangue e nos msculos, a recuperao deste estado para um de no fadiga depende da
remoo do cido e o tempo de remoo pode variar dependendo da forma de repouso. A
que se considerar, tambm, que a fadiga est diretamente relacionada aos princpios da
amplitude de movimento e de recuperao que pode ser acelerada durante pausas de
repouso por meio de massagens e movimentos ou exerccios de alongamento (Rasch,
1991). Fox (1993) chama de repouso-recuperao a recuperao que consiste em um
repouso total, ou seja, a completa ausncia de exerccio durante o tempo de descanso. O
chamado repouso-exerccio aquele no qual a recuperao acompanhada de exerccios
leves, como o tambm chamado esfriamento para o atleta. Este mesmo argumento pode
ser altamente vlido na prtica pianstica. Segundo Fox, o acido lctico removido mais
108
109
110
com quase nenhuma velocidade de movimento que pouco favoreceria o sistema circulatrio
e o relaxamento. Exerccios de alongamento anteriormente prtica pianstica vm sendo
praticados com o objetivo de preparar as estruturas do membro superior para um esforo
maior e gerar uma maior conscincia corporal e sensao do movimento.
Para Pereira (in Voigt, 2002), exerccios de flexibilidade no devem ser realizados
momentos antes de competies, pois a flexibilidade excessiva pode ser to prejudicial
quanto falta de flexibilidade. Pode haver risco de leso devido a uma instabilidade
articular causada pela deformao dos ligamentos. Os ligamentos, por serem componentes
plsticos, no retornam sua forma original, promovem [o] relaxamento da musculatura
envolvida no trabalho de flexibilidade, diminuindo a capacidade de esses msculos e
ligamentos atuarem como estabilizadores das articulaes (Pereira in Voigt, 2002, p. 48).
Outro fator do desempenho a ser considerado na atividade pianstica a rapidez de
movimento. Segundo Rasch, a rapidez mxima de um movimento est sujeita, em parte, a
caractersticas individuais inatas. Os tempos de reao e resposta que podem ser
minimizados por treinamento da ateno, estado mental e habilidades influem na rapidez do
movimento que pode ainda ser reduzida pela incapacidade de os msculos antagonistas se
relaxarem adequadamente; at certo ponto, esta uma habilidade e est sujeita a influncia
do treinamento (Rasch, 1991, p. 187).
Kaplan (1987) apresenta trs fatores que influem na velocidade do movimento durante a
ao pianstica: a imagem clara e objetiva a ser alcanada, direo do movimento e as
alavancas sseas utilizadas: ombro, cotovelo, punho e dedo, as quais h uma velocidade
limite passvel de ser atingida (Kotchevitsky, 1967; Kaplan, 1987), podendo-se inferir uma
flexibilizao do brao ao punho, por exemplo, com o objetivo de aumentar a velocidade.
A freqncia de vibrao do punho pode ser aumentada com a ajuda de movimentos
coordenados do brao inteiro em conexes com divises mtricas (Kotchevitsky, 1967, p.
33, traduo nossa). Quanto imagem clara e objetiva a ser alcanada e a direo do
movimento na ao pianstica, Kaplan (1987) chama ateno no sentido de evitar mudanas
de direo e cuidados com o dedilhado. Pvoas (1999) sugere uma anlise anterior da
partitura e um planejamento do movimento em seus ngulos e trajetrias anterior
execuo.
Pvoas (1999, p. 90) apresenta um recurso estratgico de utilizao do movimento, no
sentido de explorar a organizao espacial do movimento em sua trajetria, atravs de uma
racionalizao (realizao objetiva do movimento de acordo com o design musical),
diminuindo o somatrio de distncias a serem percorridas significando menos carga de
trabalho com menor desgaste fsico-muscular. Prope a autora etapas de preparao, de
acompanhamento e de avaliao de resultados: uma fase de anlise prvia (preparao)
para a definio das aes, uma fase de controle (acompanhamento) durante o treinamento
e aplicao dos recursos selecionados e uma fase de anlise dos resultados (avaliao). A
anlise prvia seria anterior execuo, investigando sobre movimentos a serem utilizados,
adequados realizao do design da obra, em funo da velocidade e dos resultados
sonoros pretendidos. Durante a segunda fase, para o melhor o desempenho motor, devem
ser considerados e desenvolvidos ao nvel de conscincia e domnio, os fatores fora,
resistncia, coordenao e flexibilidade articulares. A correspondncia do controle
cinestsico, sensao fsica experimentada a cada movimento com o resultado sonoro,
torna-se essencial. Um terceiro momento no processo seria dedicado avaliao dos
resultados (Op. Cit., pp. 9899).
A racionalizao e a conscincia do movimento so de extrema importncia para aes
muito rpidas e produzidas em ambientes estveis e previsveis (Schmidt & Wrisberg,
111
2001). Aps um movimento rpido ter sido iniciado, o controle consciente sobre este
movimento diminui, ou seja, se o executante perceber a necessidade de modificao, haver
um espao de tempo entre o comando de mudana ou correo do movimento at o
processamento da informao (Schmidt, 1993).
Rasch e Burke (1987, p. 111) afirmam que se uma habilidade refinada exige grande
velocidade e muita preciso (...), as prticas devem enfatizar essas duas qualidades desde o
princpio, tanto quanto possvel e que se for dada uma maior importncia preciso em
detrimento da velocidade, ter de se reaprender muito nas fases finais da prtica, quando se
necessita de maior velocidade, da a importncia da clareza mental e do planejamento do
movimento. Neste contexto, Kaplan (1987) afirma para o estudo de movimentos deve-se
levar em conta o andamento pretendido para a performance, mesmo que em andamento
lento. Pvoas (1999, p. 92) posiciona-se de maneira equivalente quando orienta:
Durante a etapa inicial de treinamento do repertrio, os ciclos de movimentos devem ser
organizados visando a sua realizao instrumental no andamento pretendido. Este
procedimento poder diminuir a diferena entre a reao muscular durante o perodo de
estudo em que determinada obra executada em andamento mais lento e a reao muscular
nos estgios de treinamento em que a velocidade de execuo da pea mais prxima da
velocidade pretendida.
Habilidades manuais de direcionamento tm, na sua maioria, uma caracterstica comum que
consiste no desempenho rpido e preciso de uma habilidade. Velocidade e preciso, quando
relacionadas a um desempenho bem-sucedido de uma habilidade, constituem um dos
princpios fundamentais do desempenho motor: um compromisso entre a velocidade e a
preciso (Maggil, 2000, p. 75). Na medida em que o tamanho do alvo vai sendo reduzido
ou medida que a distncia se torna maior, a velocidade do movimento diminui para que o
movimento seja preciso. Relacionando com a ao pianstica, na execuo de uma
passagem musical que apresente deslocamento dos segmentos em movimento contrrio,
cujo posicionamento de uma mo deva estar localizada na regio aguda do teclado e a outra
na regio grave ao mesmo tempo, a viso poderia ser disponibilizada, primeiramente, para
o ponto mais crtico ou de maior distncia com relao ao eixo do corpo no momento da
execuo do evento musical. Um treinamento neste sentido pode reduzir a dependncia de
necessidade da viso. Neste sentido, a habilidade para estimar distncias um elemento
decisivo para a prtica pianstica, especialmente em trechos que apresentem saltos em
velocidade. (Kotchevitsky, 1967).
H conexo entre a velocidade de ataque do dedo na tecla e resultado sonoro. As variaes
de toque vo gerar diferentes gradaes de intensidade sonora, variaes dinmicas que
dependem da rapidez de retirada do dedo da profundidade da tecla ou durao do toque,
que produzem a articulao requerida pelo design do texto musical. Por exemplo, para
produzir-se um staccato,3 necessria uma sada rpida da tecla e, para realizar-se um
legato, preciso uma retirada do dedo mais lenta da nota e, dependendo da situao musica
e de andamento requerido, com transferncia do peso de brao para a nota seguinte
(Breithaup, 1909). A coordenao motora um fator que est relacionado a rapidez de
movimentos, em diferentes situaes de realizao instrumental.
Nas reas da cinesiologia e anatomia funcional entende-se por coordenao s ordenaes
prprias da atividade de cada msculo e de grupos musculares. Na biomecnica, dentro do
conceito de coordenao so considerados os parmetros coodeterminantes do decurso do
3
Indicao de articulao que diminui pela metade a durao da nota, muitas vezes produzindo um
toque seco.
112
113
tais como aqueles envolvidos no movimento das mos/dedos, que exigem um alto grau de
preciso para tocar ou pressionar as teclas na seqncia e no tempo certos. Embora os
grandes msculos possam estar envolvidos no desempenho de uma habilidade motora fina,
os msculos pequenos so os mais acionados.
O desenvolvimento da capacidade motora o que permite a realizao de movimentos
complexos com o menor dispndio possvel de energia, evitando leses e fadigas
musculares. A habilidade motora o elemento da atividade que capacita o executante a
realizar grande quantidade de trabalho fsico com um esforo relativamente pequeno, sendo
adquirida, especificamente, atravs de um processo de aperfeioamento da coordenao dos
diversos grupos musculares. A perfeita coordenao do sistema muscular necessria para
realizar uma determinada ao (movimentos), faz com que o gasto de energia necessria
para execut-la seja muito menor que no caso daquela estar ausente (Kaplan, 1987, p. 32).
A considerao de alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento da coordenao
motora torna-se essencial. O primeiro relaciona-se idade do indivduo: O indivduo deve
ter a idade apropriada para aprender uma certa atividade antes que a sua prtica tenha um
efeito favorvel. A idade necessria no a idade cronolgica, e sim a idade fisiolgica,
isto , o grau de maturidade atingido pelo sistema nervoso da criana ou do adolescente.
(Kaplan, 1987, p. 52). A dissociao e a maturao so condies essenciais para a
coordenao. Assim, dissociao pode ser definida como a contrao dos msculos
necessrios realizao de uma ao e relaxamento dos que, momentaneamente, no so
necessrios e/ou podem perturbar a mesma ao. Maturao a preparao fsica do
sistema nervoso central necessria para a realizao de um repertrio (Kaplan, 1987). Para
Knapp (1989), a maturao pode ser definida como o amadurecimento fisiolgico de um
organismo.
Toda tarefa que demande a coordenao de movimentos muito precisos e de extrema
rapidez, como no caso da execuo no piano, est baseada em hbitos que so reaes
adquiridas pela repetio do estudo correto, com reforo de uma mesma rede de integrao
neuromuscular. A repetio deve estar baseada na garantia que nos oferecem os hbitos que
no so outra coisa seno reaes automticas adquiridas e/ou esteriotipadas pela repetio
de situaes estimuladoras idnticas, com reforo da mesma rede de integrao
neuromuscular. Assim, os hbitos devem ser o resultado de atos voluntrios transformados
em automatismos, sendo que uma vez alcanados, escapem atividade consciente do
indivduo. O hbito , pois, o produto final da aprendizagem motora. Do ponto de vista da
execuo instrumental, a aquisio e posterior reorganizao dos hbitos constitui a base
sobre a qual ir se construir a tcnica (Kaplan, 1987, p. 45).
Atravs da preparao e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a
habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se
desenvolve o hbito sobre o qual se fundamenta a tcnica pianstica. A diferena bsica
entre hbito e habilidade motora que esta adaptvel e flexvel, enquanto que os hbitos,
uma vez adquiridos, so executados mecanicamente sem referncia s conseqncias. Um
ato executado de forma hbil distingue-[se] pelo seu ajustamento minucioso s
circunstncias do momento com o propsito de obter-se um resultado final, ao passo que
um hbito essencialmente uma reao sem um fim que o justifique ou oriente. (Kaplan,
1987, p. 46).
Postula-se que hbitos motores corretos a partir da individualizao dos movimentos
primrios de maneira que possam, posteriormente, serem reorganizados de acordo com as
exigncias de cada obra, se estabelece como procedimento essencial para a construo de
uma tcnica adequada. O treinamento de elementos isolados tem se revelado mais eficaz,
114
115
116
117
119
Nesta mesma direo, desde o final dos anos setenta, as investigaes sobre as msicas dos povos
indgenas das terras baixas da Amrica do Sul tm revelado, sob a perspectiva do campo da etnologia,
sistemas musicais e cosmologias densamente elaboradas, com trabalhos como os de Aytai (1985),
Menezes Bastos (1990,1999), Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travassos (1984),
Seeger (1987) e Hill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram,
respectivamente, a msica entre os Xavante, Kamayur, Waipi (Beaudet pesquisou no lado da
Guiana Francesa e Fucks no lado brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suy, Wakunai, Cinta-Larga,
Assurin e Arara, e Warao. A partir do final dos anos 90, ocorre um crescimento nesta linha de
pesquisa nos quadros universitrios brasileiros, atravs de trabalhos como os de Bueno da Silva
(1997), sobre a msica Kulina (Alto Purs); Piedade (1997), sobre os Tukano; meu trabalho sobre a
msica Wauja (Mello, 1999); Cunha (1999), entre os Pankarar; Montardo (2002), sobre amsica
Guarani; Werlang (2001), sobre os Marubo e Piedade (2004) sobre a msica das flautas kawok entre
os Wauja.
4
A tese de Piedade (2004) fundamental para a compreenso do complexo musical que envolve as
flautas masculinas e os cantos femininos, na medida em que o repertrio instrumental por ele
analisado serve de modelo para as anlises que empreendo sobre a msica vocal.
5
Peirano (2001) apresenta uma sntese das perspectivas antropolgicas que lidam com o ritual na
atualidade e assume o pensamento de Tambiah como forma de escapar da rigidez das definies que
impedem que percebamos que o carter performativo do ritual est implicado na relao entre forma
e contedo que, por sua vez, est contida na cosmologia (op. cit: p. 26). Para Tambiah (1985), o
ritual um sistema de comunicao simblica culturalmente construdo, composto de eventos
especiais, mais formalizados, esteriotipados, redundantes e condensados do que aqueles da vida
120
Esta pesquisa analisou mais detidamente o ritual feminino de iamurikuma, e sua relao
com o ritual masculino das flautas kawok. Estes rituais apresentam uma relao profunda
entre si e constituem um nico complexo msico-mtico-ritual. No contexto intertribal,
estes dois rituais podem ser chamados de rituais de gnero, entendidos como rituais nos
quais questes relativas s relaes de gnero so enfatizadas.6 Eles podem tambm ocorrer
em verses intratribais, quando participam apenas os membros do prprio grupo.
importante destacar que os rituais de kawok e iamurikuma, principalmente em suas
verses intratribais, esto relacionados ao xamanismo, e desta forma, s doenas cuja causa
a ao dos seres apapaatai, espritos.7 Os apapaatai tm a capacidade de ouvir os
pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfaes e desejos no
realizados pelas pessoas. O estado de insatisfao torna possvel que estes seres penetrem
nos corpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas. Esta explicao, um tanto
sinttica neste texto, serve aqui para fornecer a dimenso metafsica e tica em que os
rituais esto inseridos, bem como lanar alguma luz sobre as concepes Wauja de doena
e cura.8
Note-se que so vrios os rituais promovidos para curar doenas provocadas pelos
apapaatai, estes rituais sendo em sua maioria intratribais e seu repertrio musical podendo
tanto ser masculino (vocal e/ou instrumental), feminino (sempre vocal), ou misto, quando
homens e mulheres cantam juntos. Conforme o discurso nativo, na verdade so incontveis
os rituais de cura, visto que a doena percebida como resultado da ao dos apapaatai e
estes seres existem em um nmero desconhecido. O iakap, o paj, o responsvel por
descobrir qual apapaatai o causador do mal que acomete o doente e, a partir de seu
diagnstico, uma srie de procedimentos e comportamentos rituais podero ser adotados.
cotidiana. Para este autor, a eficcia do ritual advm de trs fatores: primeiramente, dizer algo na
performance ritual significa efetivamente fazer algo, ou seja, o dito um feito (inspirando-se aqui nas
idias de Austin); alm disso, no ritual so utilizados vrios meios de comunicao atravs dos quais
os participantes experimentam os eventos de forma intensa; por fim, h no ritual uma profuso de
valores indexicais vinculados ou inferidos pelos atores durante o ritual.
6
Ficando aqui com esta definio preliminar, a questo de haver rituais especificamente dedicados
oposio ou complementaridade dos sexos muito trabalhada na literatura antropolgica da
Amaznica e da Melansia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982), sendo tomada
ora como uma guerra dos sexos (Gregor, 1985), resultado do antagonismo sexual (S. Hugh-Jones,
1979), por cultos de fertilidade (Hill, 2001), ou como derivao da questo mais funda da
maternidade (Biersack, 2001) ou ainda como expresso de aspectos da consaginidade e afinidade
(Descola, 2001). Lembro tambm que a prpria nfase na questo de gnero pode ser vista como
resultante do vis ocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma posio semelhante).
Destaco ainda que entendo o complexo iamurikuma-kawok como simultaneamente rituais de gnero
e rituais musicais (cf. Basso, 1985).
7
A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por espritos. Estes seres
sobrenaturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenas e mortes, ou se tornarem aliados
dos humanos, desde que estes ltimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai
povoam a maioria das narrativas mticas e representam um elemento fundamental na atividade do
xam, atividade que pode ser vista como uma poltica csmica com estes seres. Esta poltica, que
uma negociao do xam com os seres sobrenaturais visando que eles no roubem as almas dos vivos,
engendra, por sua vez, uma tica e uma esttica que se explicitam tanto no ritual, atravs das mais
diferentes formas visuais e sonoras, quanto na economia da vida diria.Os Wauja distinguem as
doenas causadas por apapaatai daquelas outras que chamam, em portugus, de doena de branco,
estas sendo causadas por outros processos e curveis atravs de remdios de branco: por exemplo,
gripe, sarampo, leishmaniose, malria, etc. Tal distino comum entre os xinganos (ver Menezes
Bastos, 1999a).
8
Todos estes conceitos so densamente elaborados ao longo da tese (Mello 2005), bem como esto
respaldados em amplo corpus mtico recolhido durante a pesquisa de campo.
121
122
ao mito de origem da festa. Tambm foi comum ver as mulheres usarem deste espao ritual
para reclamarem de atitudes dos homens atravs de canes especialmente compostas por
elas. Ao longo de todo o perodo, foram executados cerca de duzentos cantos diferentes,
organizados em quatro sub-repertrios, dos quais, pode-se destacar o de iamurikuma
propriamente (aqueles cantos que se referem ao mito), e o de kawokakuma (cuja referncia
das canes so as flautas kawok) como os principais sub-repertrios.
Com base nas anlises de mitos e em anlises musicolgicas busquei compreender a ligao
entre a msica vocal do ritual de iamurikuma e a msica instrumental das flautas kawok,
pois as mulheres afirmavam que msica de iamurikuma msica de flauta. No entanto,
pelo fato delas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmao parecia um contra-senso.
Caso acontea de alguma mulher ver as tais flautas kawok -tanto em repouso quanto ao
serem tocadas-, ela ser estuprada por todos os homens da aldeia, no importando se ela
infringiu a regra propositalmente ou involuntariamente. Contudo, no se tem registro de
que tenha ocorrido tal fato nos ltimos quarenta ou cinqenta anos.
A partir dos mitos e msicas, das exegeses e tradues de canes, e do discurso nativo
sobre msica, surgiu a temtica das relaes de gnero como fator a ser problematizado,
bem como verificou-se que h uma raiz comum, dada pela estrutura musical, para o
conjunto de canes de iamurikuma e para a msica instrumental das flautas kawok, onde
se nota que os temas principais em ambos repertrios so frases muito prximas do ponto
de vista rtmico-meldico, como variaes de uma frase bsica realizada tanto pelas flautas
quanto pelo canto feminino.9 A partir destas observaes pode-se dizer que o repertrio de
flautas kawok como que transponvel para os cantos femininos, ou vice-versa.
A msica e a dana, atravs do canto das mulheres, so os marcadores dos momentos
densos do rito. A movimentao coreogrfica varia de acordo com o nmero de
participantes, com a disposio das danarinas entre si, e o deslocamento destas pelo
permetro da aldeia. Tais variveis esto relacionadas ao repertrio musical, pensado aqui
como um roteiro, que, por sua vez, deve se adequar aos perodos do dia (manh, tarde, noite
e madrugada) e aos momentos especficos do rito, tais como pescaria dos homens, abertura,
encerramento. H uma srie de diferentes disposies coreogrficas ao longo do ritual que
apontam para momentos com distintas motivaes, enquadrando comportamentos que
podem ir da brincadeira agresso. As idias que Bateson desenvolve em sua teoria sobre a
brincadeira e enquadre (1998 [1972]) ajudam a pensar sobre os conjuntos de mensagens
que esto em jogo em cada um dos diferentes contextos ao longo do ritual. H um pano de
fundo que dado pela diferena entre homens e mulheres, uma disputa por espao, presente
na maioria das falas dos rapazes e no comportamento das moas. Iamurikuma aitsa
awojopai, iamurikuma no legal (traduo livre), dizem os rapazes a todo o momento.
Iamurikuma apokapai, peietepei, iamurikuma est louca, brava, afirmam os mais velhos.
As mulheres parecem indiferentes s provocaes, mantendo-se sempre altivas e distantes,
exceto nos momentos em que resolvem, em grupo, atacar os homens. Elas tanto podem
bater, arranhar, dar belisces, quanto atacar sexualmente, indo, tambm em grupo, at suas
redes. Bateson chama a ateno para o fato de que no h entre a brincadeira, o blefe, e a
ameaa uma delimitao clara, na verdade formam juntos um nico e indivisvel complexo
de fenmenos (op.cit. p. 61). H, portanto, que se adotar o frame correto para no
extrapolar os objetivos.
Esta hiptese j havia sido levantada anteriormente em minha dissertao de mestrado (Mello,
1998), sendo que s se confirmou aps trabalho de campo mais aprofundado durante as pesquisa de
doutorado desenvolvidas por mim e por Piedade (2004).
123
Parte do repertrio musical deste ritual, aquele aqui classificado como iamurikuma, como
que um roteiro para o ritual, baseado no script do aunaki, o mito. Cada canto narra um
momento do mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca uma no linearidade do
ritual. H algo semelhante quilo que Menezes Bastos (1990) detectou no yawari como
uma compresso e distenso do tempo. Este autor usa a imagem do fole de uma sanfona
para evocar a alternncia entre momentos de total retraimento (pensados como
adensamentos) e de completa distenso dos eventos rituais.
Anlise de um canto de kawokakuma.
Se uma parte do repertrio musical ligada ao mito, a outra, chamada de kawokakuma, no
se atm a este, mas s paixes, aos sentimentos de homens e mulheres, e fazem a ponte
sonora entre o iamurikuma e o kawok. So estes cantos, os kawokakuma, que mereceram
maior aprofundamento analtico ao longo da tese. Atravs da anlise de uma parcela deste
repertrio, nota-se que ele est ancorado em operaes musicais complexas, que exigem um
alto grau de conhecimento por parte das mulheres cantoras, principalmente da cantoracompositora central. Estes cantos podem ou no ter letra, mas em todos os casos esto
relacionados aos sentimentos e emoes experimentados pelos Wauja ao londo de suas
vidas.
Para chegar s classificaes musicais apresentadas na tese, foi necessria uma audio
atenta de aproximadamente um total de setenta horas de gravao. Nestas audies, foram
classificadas cerca de duzentas msicas diferentes, pertencentes a gneros musicais
especficos. Para alcanar estas subdivises, foi preciso realizar uma transcrio preliminar
do conjunto total de peas, e efetuar uma anlise prvia deste conjunto que pudesse ajudar
nesta classificao inicial. Diferentemente do repertrio das flautas kawok, sempre
executado em blocos de sutes nomeadas, os cantos de kawokakuma so cantados
alternando cantos de diferentes estilos, alm destes cantos serem intercalados por cantos
propriamente de iamurikuma. A concluso de que estes repertrios constituem gneros
diferentes, iamurikuma e kawokakuma, s pde ser alcanada mediante tais audies e
transcries. Como no pude contar com uma classificao nativa para empreender um
ordenamento dos cantos, a ateno durante as audies teve que ser duplicada em vista da
semelhana de algumas peas. Por vezes, a letra dos cantos auxiliou na identificao,
outras, no entanto, em vista da ausncia de letra, dependeu nica e exclusivamente de uma
escuta acurada.
Nos cantos de kawokakuma cada pea constituda por um conjunto de temas e motivos.
Dependendo da pea, cada motivo pode ser curto, com poucas notas, ou no to curto,
quase uma frase, sendo designados por letras (a), (b), (c), etc., podendo ter uma ou mais
variaes cada um, designadas ento por (a), (a), etc. As variaes so entendidas como
aplicaes de princpios fundamentais de diferenciao no interior dos motivos, operaes
tais como transposio, pequena alterao intervalar ou rtmica no incio ou no final do
motivo, adio ou excluso de uma nota, entre outras. Variaes em conjuntos de motivos,
entendidos como frases que constituem os temas, podem ser pensadas como
transformaes, que ocorrem por mecanismos de incluso e excluso de motivos, ou
atravs de variaes nos seus motivos constituintes. A diferena entre uma variao e um
motivo novo a resposta estrutural da seqncia de notas organizada no interior da pea.
Os motivos, portanto, so as partes constitutivas dos temas a que chamei de
e . H
tambm uma frase, chamada na anlise de , que surge geralmente no incio das peas,
e , e ainda no final, correspondendo sempre ao centro tonal
como separao dos temas
das canes.
124
e
dialgica e dialtica, o primeiro tema
Resumidamente, a relao entre os temas
constituindo o material bsico da pea, e o segundo configurando uma elaborao deste
material em uma camada superior (em termos de alturas), geralmente atingindo a nota mais
aguda da escala. Nesta espcie de transposio, muitas vezes ocorre uma srie de
transformaes, que variam de pea para pea. Um outro fato observado o englobamento
de
por , ou seja: a anttese elabora a tese de forma a inclu-la em sua terminao, s
funciona como ncora, indicador
vezes integralmente. Observa-se tambm que o motivo
e reforo do centro tonal, vinheta de separao entre temas e entre canes. Um outro ponto
importante o tema , que o tema com letra adicionada.
Segue abaixo um exemplo de transcrio e anlise de um dos duzentos cantos realizados
neste ritual. Estou utilizando transcries reduzidas seguindo o modelo criado por Piedade
em sua anlise da msica das flautas kawoka (2004), pois, se as transcries fossem
apresentadas integralmente, facilitariam a leitura, mas ocupariam demasiado espao sem
proporcionar maior rendimento analtico. A transcrio reduzida porta a informao
essencial, encontrada atravs do discurso musical nativo, que ressalta as construes
motvicas. Desta forma, os motivos, conforme citados acima, aparecem escritos
integralmente somente uma vez na transcrio, nas demais repeties, aparecem apenas as
letras correspondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadas sobre uma linha, e no sobre o
pentagrama.
O canto aqui apresentado foi executado duas vezes durante todo o ritual, uma de
madrugada, e outra no final de uma tarde. A composio deste canto atribuda s
mulheres de uma outra etnia, s mulheres Mehinaku. Contudo, pelo fato deste povo falar
tambm uma lngua de origem aruak, os cantos de ambos os grupos so compreendidos e
incorporados mais facilmente em seus repertrios rituais.
Letra do canto em Wauja (Mehinaku) e sua traduo:
Aunumana, aunumana
Patuwato Ukaruw
Aunumana, aunumana
Patuwato Ukaruw
Ukaruw
Ukaruw
Segundo a cantora principal, de nome Kalupuku, a explicao para a letra deste canto a
seguinte: Havia um homem Mehinaku chamado Ukaruw que se casou com mulher de
nome Mukura, talvez ela fosse ndia Matip. As mulheres Mehinaku fizeram esta msica
para a mulher falando de sua boca, pois quando ela sorria, ficava com a boca torta, igual ao
tupatu, um peixe que tem a boca de lado, torta. Com esta msica elas queriam dizer assim:
Ukaruw, traz sua mulher para c, para a gente ver a boca torta dela.
125
126
seja cantado. Em
deste iniciar com o tema , que aparece por duas vezes antes que o
nota-se que o motivo (f) est em dilogo estreito com o motivo (e), cuja alternncia do
tipo pergunta e resposta. provvel que o intervalo descendente, que atinge a nota F,
carregue tal caracterstica, apontando para o carter dialgico entre os motivos. O tema
est englobado em e, portanto, a apario tardia de no causa surpresa. Aps cantarem
,
e novamente
, iniciam uma grande seo de , que ser apresentada quatro
vezes, sendo que entre a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta pea,
fica evidente uma preponderncia de
e , que pode ser considerada uma marca desta
face feminina do gnero musical kawokakuma-kawok. Alm disso, h um destaque para a
letra, que trata da jocosidade: as mulheres Mehinku esto aqui ridicularizando uma mulher
Matip, que quando sorri exibe uma boca torta: trata-se do mote do defeito fsico, muito
freqente em vrios cantos. Neste, as cantoras se dirigem ao marido desta mulher, um
homem Mehinku que se casou com uma mulher de outro grupo, fato que sempre motivo
de reaes deste tipo, e que, no fundo, demonstra o cime coletivo provocado por
casamentos intertnicos.
Das cerca de cinqenta transcries apresentadas ao longo da tese, as anlises musicais
destacam vrias operaes fundamentais no mbito motvico das msicas de kawokakuma,
que podem ser resumidas em: variao ttica, variao sufixal, fuso, tipo bordadura, jogo
alternante 3M/3m, motivo justaposto de citao, adio, excluso, prolongamento rtmico,
motivo de dissoluo e motivo de retomada. Nota-se a importncia das terminaes de
motivos, frases e temas, bem como o englobamento do tema
pelo tema . No mbito
das letras, encontrou-se nexos entre a cano, o mito e as paixes, aparecendo algumas
temticas recorrentes, como por exemplo o do mote do defeito fsico, quando a cantora
expe na letra da cano qualquer defeito que a pessoa a quem ela queira atingir possua. Na
relao letra-msica, notou-se fatores importantes como a inverso de texto e a
flexibilizao rtmica. A distribuio de todas estas operaes composicionais acentua a
idia de que a msica do ritual de iamurikuma no constitui um nico gnero musical, mas
sim dois: iamurikuma e kawokakuma, este ltimo sendo a face feminina de um supergnero
que tem na outra face a msica do ritual de flautas k a w ok. Estudar os processos
composicionais dos repertrios masculino e feminino, sob um prisma comparativo, se
configura como um caminho estimulante para futuros trabalhos.
Consideraes finais
Homens e mulheres usam da ttica de se provocarem mutuamente atravs dos cantos,
principalmente incitando o sentimento de uki, cime-inveja, inserindo uma terceira
pessoa na situao descrita pela letra das canes. Muitos cantos de kawokakuma procuram
provocar uki nos homens ou em mulheres que estejam rivalizando com as cantoras.
atravs da criao potico-musical que os conflitos suscitados por sentimentos como uki
so contornados. A positividade ou negatividade de uki, contudo, uma questo de grau:
todas as estratgias de que eles lanam mo para lidar com este sentimento, atravs de
brincadeiras, mitos, e ritos especficos,10 tudo isto concorre para a busca de um ponto
intermedirio em um continuum entre o excesso e a ausncia de uki. Segundo os Wauja,
cime-inveja no algo com relao a que se deva mostrar indiferena ou rejeitar por
completo, diferentemente de sentimentos como kamusixiapa, raiva ou dio,11 que devem
10
Ver na tese em questo as explicaes sobre o Ritual do Pequi. Esta festa gira em torno de disputas
entre homens e mulheres, durante a qual realizam diferentes brincadeiras fsicas e provocaes
musicais.
11
A raiz desta palavra, usixa, significa queimar.
127
ser prontamente aplacados. Ao contrrio, uki deve ser cultivado, e se deve aprender a lidar
com isto desde cedo. Segundo os Wauja, uki a fasca que acende as relaes: como me
disse um informante, como a pimenta que arde, mas boa, sem a qual a comida ficaria
insossa. O mrito de saber lidar com estes sentimentos estaria no controle da medida certa
em provocar e em aceitar provocaes, em saber a hora certa para o revide, em no
provocar alm do limite aceitvel. Durante as brincadeiras jocosas, avalia-se muito o
quanto homens ou mulheres agentam de provocao sem revidar, mas tambm esperada
e at mesmo apreciada a boa resposta no momento certo. V-se que, atravs de toda a
elaborao esttico-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construo motvica
dos cantos, passando pela transferncia dos cantos de kawokakuma de um gnero sexual a
outro, e por re-elaboraes de fatos do cotidiano que so inseridos nos moldes dos cantos,
todo este processo, enfim, s surge durante a performance ritual, que acaba por dar
concretude ao mito e significado s questes existenciais. Toda a criao ritual trata da
demarcao de limites, de estabelecer propores, de precisar doses, criar diferenas,
construir fronteiras, criar o espao humano de agncia no mundo. E este espao se instaura
no ritual, onde a msica o dito que se torna feito.
A linguagem enfeitada e pintada que o canto, os corpos enfeitados e produzidos, as
formaes coreogrficas e seus traados entrecortando a aldeia, indicam a necessidade da
elaborao ritual por meio de uma alta formalizao. Assim, as regras que observamos nas
prticas rituais Wauja, bem como nas construes composicionais, aparecem
explicitamente como uma forma de codificao, no sentido exposto por Bourdieu,12 e
apontam para a construo de um sistema coerente que d conta das tenses suscitadas
pelos afetos.
Aqui est, creio, a centralidade da msica no ritual: onde se encontra a formalizao em seu
grau mximo. Basso (1985) afirma que esta posio fundante da msica no ritual xingano
est diretamente ligada ao fato dos nativos crerem que, atravs da execuo musical, podem
compensar as iluses da criao verbal. Opinio confirmada por Franchetto ao afirmar que,
neste cenrio, h um continuum indo da fala ao canto, em cujos extremos estariam situadas
a mentira e a verdade, o mais humano e o sobrenatural (1986, p. 249). Para esta autora, os
mitos fundamentam a execuo ritual, e esta, por sua vez, tem a msica como seu aspecto
mais importante, pois os nativos, atravs da sensualidade e dos sentimentos que a
musicalidade inspira, transformam a conscincia de si, a conscincia coletiva e a apreenso
do mundo (1986, p. 288).
Estudar, de forma detalhada, todos os aspectos envolvidos no ritual, como a pintura
corporal, a msica, a dana, os discursos e as narrativas mticas, uma forma de acessar
esta codificao e, assim, buscar uma compreenso mais substancial do evento como um
todo. no momento do ritual que a sociedade Wauja cria condies privilegiadas para que
homens e mulheres, atravs de um jogo em torno dos sentidos e das propores, tratem, de
forma intensa e musical, de questes importantes como namoro e sexo, e de afetos
fundamentais como o cime e a inveja.
12
Bourdieu chama a ateno para o fato de que o grau de codificao adotado por um determinado
grupo em relao a diferentes situaes deve variar de acordo com o grau de risco em que tal situao
est envolvida. quando o habitus d lugar condutas reguladas por rituais metodicamente
institudos e mesmo codificados (1990, p. 98).
128
Referncias bibliogrficas
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130
Introduo
Desde sua primeira publicao em 1966 o Trait des objets Musicaux de Pierre Schaeffer
tem sido uma obra referencial para a composio e para o estudo da msica contempornea,
principalmente as que se enquadram na vertente acusmtica. Dentro desse panorama, o
Trait tambm se tornou obra terica central para o estudo e desenvolvimento de estticas
musicais que colocam a percepo como fundamento para a construo de tcnicas e
procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de
Schaeffer no intuito de completar e expandir sua perspectiva de msica contempornea, dos
quais podemos destacar Simon Emmerson (1987), Franois Bayle (1993) e Michel Chion
(1994). a noo de acusmtica que possibilita a colocao da percepo (coute para
Schaeffer) como foco central para a atividade composicional. Essa transformao de foco
da dupla fazer/ouvir para um ouvir/fazer, entendendo o fazer como o prprio processo
composicional, decorrente de um amplo estudo e crticas s posturas tradicionais da
atividade musical ocidental.
Schaeffer parte de uma anlise, breve, porm profunda da situao da msica que lhe era
contempornea, esboando alguns problemas a serem resolvidos e crticas a posturas
composicionais dominantes de sua poca. Aponta para as transformaes que a musicologia
deveria enfrentar, decorrentes das mudanas das noes de escala de alturas como base para
a construo musical; o crescente desenvolvimento de formas de produo sonora, advindas
dos equipamentos eletrnicos e dos instrumentos no ocidentais; os problemas que a crtica
musical enfrentava por no apresentar nem contedo nem terminologia apropriada para a
explicao do fenmeno musical.
O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em msica, do incio do sculo
XX, foi uma reao a esses impasses da musicologia, j que fica justificada, em meio a
tal crise, o apoio sistemtico em parmetros seguros da fsica. Dessa forma, Schaeffer
refere-se perspectiva estruturalista como geradora de uma msica a priori, por esta
colocar a construo e manipulao abstrata de smbolos musicais, que apresentam uma
analogia com parmetros acsticos, como fato primeiro em relao escuta. Criticando
essa postura que no toma a experincia do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer
sugere uma alternativa que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a
denomina de msica concreta e posteriormente de msica experimental.
132
2.
Our: perceber pelo ouvido. Por oposio a escutar, que corresponde atitude
mais ativa, aquilo que ouo aquilo que me dado na percepo. (Schaeffer,
1966, p. 104)
O quadro de funcionalidades da escuta a base sobre a qual o autor fundar toda a sua
investigao sobre a atividade musical para a construo de uma vertente acusmtica e
experimental, ao lidar com o fenmeno sonoro. a partir dele que Schaeffer realiza uma
anlise das diferentes situaes de escuta decorrentes de diferentes situaes humanas.
Posteriormente, prope uma descrio do fenmeno musical para alm daquela fornecida
pela fsica acstica. Para que tal tarefa seja exeqvel, o autor recorre noo de reduo
fenomenolgica de Edmund Hussler. Tal noo ser de suma importncia para a construo
do seu objeto sonoro e este por sua vez ser a base para o desenvolvimento de seu solfejo.
Alm da diviso da escuta em quatro funcionalidades, Schaeffer organizar posteriormente
formas diferentes de agrupar tais funcionalidades. Uma subdiviso que apresenta relevncia
para este texto a organizao do quadro de funcionalidades da escuta em dois plos
opstos: Banale/Praticienne. Na abordagem crtica de Windsor (1995), para a anlise de
msica acusmtica, encontramos corroborao relevncia da descrio desses dois modos
de percepo tal qual realizada por Schaeffer, de forma a opor dois plos que so
responsveis pela caracterizao de uma escuta de dia-a-dia (banalle) e de uma escuta
especializada (praticienne) que remete um sistema simblico.
This is not to suggest that Schaeffers ideas per se have no relevance to the
analyst. His discussions of the relationship of listening to culture and nature,
his perspicacious accounts of the problems inherent within traditional views of
listening and musical discourse (Schaeffer, 1966) have been instrumental in
defining the challenges posed by the acousmatic and have been instrumental
in shaping this thesis. (Windsor, 1995, p. 34)
A descrio das funcionalidades da escuta organizada nesses dois plos ser de suma
importncia para as reformulaes que apresentamos no presente artigo. Porm para
chegarmos aos resultados pretendidos realizaremos uma reviso no quadro das quatre
coutes para posteriormente retornarmos a esse ponto.
133
As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seo sero descritos em
maior profundidade nas prximas sees.
2
A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o rgo recebe o estmulo ao invs de
buscar por ele. (Gibson, 1966).
134
135
Na abordagem que propomos neste artigo apresentaremos uma explicao para a percepo
que no necessita deste conceito de intencionalidade por utilizar uma perspectiva no
dualista-cartesiana.
Em relao ao comprendre, Shaeffer o descreve utilizando noes prprias da tradio do
paradigma do processamento de informao para a explicao da percepo. Para o autor,
este estgio envolve a organizao de significaes que foram selecionadas
intencionalmente no entendre. Como Schaeffer coloca, o suposto sujeito autor de
dedues, abstraes, comparaes e relaes de informaes de fontes e naturezas diversas
(1966, p. 110). As atividades realizadas no entender e no compreender so prprias de um
sujeito metafsico, cartesiano e independente da experincia incorporada e situada no
mundo.
Conforme exposto no incio desta seo, apresentaremos uma alternativa explicativa para as
funcionalidades da escuta de Schaeffer, porm para que isso seja possvel buscaremos na
fenomenologia pontyana e no atuacionismo de Varela, fundamentos filosficos mais
adequados para a descrio da percepo.
Um novo paradigma para o estudo da percepo
Os estudos feitos sobre percepo em diferentes reas como a biologia (fisiologia), ou a
psicologia, ou ainda a filosofia vm recebendo contribuies ao longo dos ltimos 50 anos
que apontam o desenvolvimento de um novo paradigma, distinto daquele denominado por
processamento de informao originrio da concepo dualista-cartesiana de mundo. Com
inteno de apresentar brevemente alternativas explicativas para a percepo auditiva a
presente seo trata da noo de percepo para dois autores que podem ser considerados
exemplares na busca por alternativas s propostas dualista-cartesianas. So eles MerleauPonty e Francisco Varela.
A experincia do corpo no mundo
A perspectiva apresentada na Fenomenologia da Percepo permite escapar de
encruzilhadas conceituais dualistas, sobretudo por retomar a experincia como objeto
central de seu estudo e coloc-la como fundamento ontolgico de toda e qualquer descrio
sobre ela, como afirma o prefcio:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por cincia, eu o sei a partir de uma
viso minha ou de uma experincia do mundo sem a qual os smbolos da
cincia no poderiam dizer nada. Todo o universo da cincia construdo
sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a prpria cincia com rigor, (...),
precisamos primeiramente despertar essa experincia do mundo da qual ela
a expresso segunda. A cincia no tem e no ter jamais o mesmo sentido de
ser que o mundo percebido, pela simples razo de que ela uma determinao
ou uma explicao dele. (Merleau-Ponty, 1996, p. 3)
136
Tal maneira de entender percepo e mundo uma grande novidade ainda hoje, tanto para a
tradio filosfica quanto para a cincia cognitiva, ou psicologia e neurocincia. As
conseqncias dessa amostra do pensamento de Merleau-Ponty podem ser destrutivas para
teorias que prope seus fundamentos do conhecer em uma metafsica dualista cartesiana,
que tendem a deixar de fora a prpria experincia cotidiana do conhecer e do perceber.
M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrio do papel do corpo nas atividades
perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano o autor busca alternativas perspectiva do
corpo-objeto da fisiologia e da psicologia clssica. Inicialmente a noo de corpo fora da
perspectiva dualista possibilita M-Ponty dispensar a noo de representao mental e
explicar a percepo como em conjunto com a ao (movimento) formando um sistema que
se modifica como um todo. Continuemos a citao:
Se, por exemplo, percebo que no querem obedecer-me e em conseqncia
modifico meu gesto, no h ali dois atos de conscincia distintos, mas vejo a
m vontade de meu parceiro e meu gesto de impacincia nasce dessa situao,
sem nenhum pensamento interposto. (M-Ponty, 1996, p. 160)
137
como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela
tradio dualista. Nem como um mundo construdo em mim como representao de um
mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o
prprio autor, pela experincia perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty,
1996, p. 275.). Estando ento afundado no mundo, no necessito copi-lo dentro de mim.
Isso no quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrncia de atividade neuronal, por
exemplo. O que ocorre que com a fenomenologia h uma orientao para que o foco do
estudo da percepo esteja na experincia perceptiva, e no em supostas causas ou
conseqncias. Em outras palavras, a orientao dualista direciona o estudo das atividades
perceptivas como se fossem ou conseqncias ou causas das atividades neuronais (que
seriam as prprias representaes mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de
se focalizar a experincia de um corpo em um mundo se a inteno estudar a percepo.
Com isso M.-Ponty apresenta uma definio de percepo completamente diferente daquela
trazida pelo processamento de informao. Entendendo o mundo, as coisas como
correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p. 429) afirma que a coisa nunca pode ser
separada de algum que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas
articulaes so as mesmas de nossa existncia. Nesse caminho no faz sentido a noo de
um sujeito que processe as informaes recebidas de um mundo dado de antemo. Para a
fenomenologia no h esse mundo dado antes da experincia, ou nas palavras do autor: o
que dado no somente a coisa, mas a experincia da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.
436). Tambm esse sujeito no existe desligado do mundo, M.-Ponty muito claro e direto
ao afirmar que:
O mundo inseparvel do sujeito, mas de um sujeito que no seno um
projeto do mundo, e o sujeito inseparvel do mundo, mas de um mundo que
ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p. 576)
138
De acordo com traduo de ennaction para o portugs de Portugal em edio do Instituto Piaget.
De acordo com traduo do termo ennaction para o portugs do Brasil em edio da Artmed.
139
sujeito absoluto que existe e age separado de um mundo (que por sua vez tambm existe e
age independente do sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem
independentes de algum percebedor que as possa distinguir. Concebem ento um
percebedor e um mundo que se fazem enquanto esto atuando acoplados estruturalmente
mantendo sua organizao. Nesse sentido foi o ttulo dessa seo afirmando que o conhecer
atuar, viver, possuir uma histria de acoplamento estrutural com o meio. E perceber a
prpria ao no mundo, que nunca existe sem orientao perceptiva, e no com
representaes ou orientaes para um mundo externo.
Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognio e percepo, H.
Maturana, que no ser aprofundado no presente texto por uma questo do recorte
momentneo, tem uma citao muito rica para concluir a presente seo. Com ela Maturana
amplia a noo de percepo, sa da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por
captao) e entende percepo como o nome que um observador atribui a uma conduta
especfica, ou um mundo de aes. Nas palavras do autor:
O mundo cognitivo que vivemos, atravs da percepo, se assemelha a isso:
produzimos um mundo de distines atravs de mudanas de estados que
experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os
diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, ento,
usando nossas mudanas de estado como distines recorrentes em um
domnio de coordenaes de coordenaes de condutas consensuais
(linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenaes de aes
com as quais descrevemos nossas coordenaes de aes. (Maturana,
1997/2001, p. 103).
140
Percepo Direta, ao contrrio das teorias da Percepo Indireta que explicam os processos
perceptuais com o uso da mediao.6
Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na experincia
sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noes advindas da Teoria da
Percepo Direta de Gibson:
A percepo quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio,
elimina a noo de representao da explicao da atividade perceptiva. Essa maneira de
abordar a percepo como um ciclo de percepo-ao o que Gibson denomina como
percepo direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepo
em dois tipos: primeira e segunda mo. Naquilo que Gibson denomina por percepo de
primeira mo encontra-se um tipo de ao que caracterizada pela imediatidade. O
organismo percebe o mundo e age sem que tal ao envolva aquilo que se caracterize por
um planejamento anterior (representao mental). Como exemplo desse tipo de ao,
podemos tomar o caso de algum que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar
ele desvia dos acidentes e procura um caminho estvel para que seu andar possa ocorrer.
No entanto ao visualizar um buraco, por exemplo, nosso caminhante no tem tempo de
planejar que tipo de posio de perna, de p, enfim, o de corpo inteiro, ele ir tomar. Seu
corpo se coloca, imediatamente, em condies de superar o obstculo. No h como
observar a um plano prvio, por mais rpido que pudesse ocorrer. O corpo se molda
situao, age sem intermedirios, age orientado diretamente pela percepo. Em se tratando
de msica, os exemplos de percepo de primeira mo so tambm esclarecedores.
Tomemos o caso de um regente frente de uma orquestra. Por mais que o regente tenha
preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da partitura,
o momento da execuo exige um tipo de ao imediata do regente, para adequar a
sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variaes em diferentes aspectos
musicais (dinmica, aggica, articulao...) ocorrero e cabe ao regente adequ-las para
conseguir a sonoridade esperada. A realizao de seus padres gestuais, sempre orientada,
no momento da execuo, pela percepo daquilo que est sendo gerado na performance da
orquestra. Forma-se assim o ciclo percepo-ao. Em contra-partida, o planejamento do
gestual para a performance, e todo o conjunto de conceitos tericos musicais utilizados para
a construo de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e
Varela entendem como percepo de segunda mo7. Essa percepo caracteriza-se por um
nvel superior de recorrncia do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que
sempre orientada e orienta a primeira mo. Com isso podemos observar a ao de um corpo
(encarnado) em uma situao especfica (situado) num ciclo de percepo-ao que ocorre
com diferentes nveis de recorrncia. Se optarmos pela descrio de cognio de Varela et
al (1991) e Maturana (1995) podemos entender que aquilo que denominamos por percepo
e por conhecimento so descries condutuais consensuais mais ou menos recorrentes
observadas nos diferentes nveis de sub-redes sensriomotoras em seu operar no meio,
6
Gibson no nega a existncia das representaes mentais, mas afirma que na atividade perceptual
elas no so utilizadas. Para uma viso aprofundada sobre a crtica representao mental no
processo perceptual ver Haselager (2003).
7
Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados
tambm apresentam um tipo de categorizao da percepo que pode ser descrito adequadamente
segundo a noo gibsoniana referida.
141
guardando suas identidade e mantendo seu acoplamento estrutural. Tal nvel maior ou
menor de recorrncia est diretamente relacionado com aquilo que entendemos por
percepo de primeira mo (baixa recorrncia) e percepo de segunda mo (alta
recorrncia).
Como j afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorizao ao agrupar as
funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do
ouvir em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia
primeira mo tal qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em
uma escuta praticienne corresponderia segunda mo. Temos assim uma substituio
possvel s funcionalidades schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de
conceituao e de explicao da percepo apoiadas em uma abordagem dualistacartesiana, que era exatamente o que Husserl e a tradio fenomenolgica pretendia
expurgar.
Devemos ressaltar que nossa reformulao no apresentar prejuzos para o retorno que
Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da msica
tradicional para a msica experimental. Para isso Schaeffer prope a inverso no
direcionamento das atitudes perante o fenmeno sonoro. Na msica tradicional esse
direcionamento ocorre de uma etapa de identificao dos valores musicais, que englobam o
compreender e o escutar como domnio da musicalidade, para uma qualificao, que
engloba o ouvir e o entender em um domnio da sonoridade. Temos assim o domnio da
musicalidade que representa as identificaes abstratas e conceituais sendo posteriormente
efetivadas no mundo no domnio da sonoridade. A inverso se da a partir de uma
qualificao realizada no domnio da sonoridade, atravs da escuta reduzida e sua
decorrncia no objeto sonoro, para posteriores identificaes e organizaes de colees de
significaes no domnio da musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das
funcionalidades da escuta, teremos a escuta como um todo, que num nvel de recorrncia
inferior caracterizado pela percepo de primeira-mo e num nvel de recorrncia superior
pela percepo de segunda-mo.
A inverso da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser
melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorizao
da percepo de primeira mo. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inverso, no
possvel, ou melhor, no objetivo da escuta reduzida a ocorrncia de significao na
percepo de primeira mo, mas ela prpria a proposio de um segundo nvel de
recorrncia (segunda mo) sobre a percepo imediata. Nesse sentido o autor nem
considera a possibilidade da emergncia de significao na percepo de primeira mo. O
que consideramos central para a crtica e proposies realizadas no presente estudo
apontar que diversos autores8 indicam um tipo de significao perceptiva, prprios da
ocorrncia do ciclo percepo-ao de um corpo em um meio especfico. O caminho que os
referidos autores propem um tipo de descrio para as significaes prprias de cada
uma das duas categorias de percepo. relevante observar que Gibson, ao argumentar em
favor de uma significao prpria da percepo de primeira mo, no rejeita a possibilidade
de um tipo de significao que ocorra utilizando mediaes. Ao contrrio, tal autor afirma
142
que o caso de um tipo de significao indireta, mediada por representaes,9 pode ser
descrito adequadamente como de segunda-mo, ou seja, com um nvel maior de recorrncia
da coordenao condutual consensual no operar do organismo em seu meio.
Essa reformulao do quadro de escutas nos direciona para uma reformulao do prprio
conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer obtido pela
reduo fenomenolgica. Tal reduo visa a eliminao dos condicionamentos culturais
(hbitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto est relacionado
noo de essncia, o que coloca a experincia apenas como um aspecto passageiro e menos
importante na percepo. Nesse sentido a experincia uma das etapas na construo das
significaes possveis para o objeto sonoro. Com tal posio Schaeffer incorre ao mesmo
erro cartesiano criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representao do
mundo, ou mais especificamente no caso hussleriano, substituir a experincia do mundo por
suas essncias. Tais essncias se configuram em um conjunto de caractersticas universais
dos mltiplos objetos possveis escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de
categorizao que seja independente de qualquer situao de escuta. Ao comparar as
escutas do msico, do engenheiro e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenas de
significao decorrentes da escuta especializada de cada um deles e atribui escuta
reduzida a funo de revelar o objeto sonoro, enquanto essncia, e a funo de possibilitar
uma classificao que ser comum a todas as pessoas em todas as situaes de escuta. No
entanto, ao propor um tipo de escuta prprio para acessar a essncia da experincia sonora,
seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um grupo de hbitos de escuta, por um outro
hbito, denominado por ele mesmo como antinatural, como podemos ler:
Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...) Necessito
volver experincia auditiva, recapitular minhas impresses, para reencontrar,
atravs das mesmas, informaes sobre o objeto sonoro, e no mais sobre o
cavalo. (...) Na verdade se trata de um retorno s fontes, experincia
originria, como diria Husserl que se tornou necessria por uma mudana
do objeto. Antes que um novo treinamento me seja possvel e que possa ser
elaborado um outro sistema de referncias, desta vez apropriado ao objeto
sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hbitos
anteriores, passar pela prova da poch. No se trata de forma alguma de um
retorno natureza. Nada nos mais natural do que obedecer um
condicionamento. Trata-se de um esforo antinatural para perceber aquilo
que antes determinava a conscincia inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p.
270)
143
A partir de tal citao podemos descrever adequadamente o que propomos como audio
corporificada e situada. De acordo com Gibson (1966) o estudo da percepo no deve ser
concebido apenas a partir da noo de rgo do sentido, alis ele troca rgo do sentido
por sistema perceptivo. O autor ressalta que os ouvidos esto na cabea sobre o pescoo,
sobre os ombros e sobre o resto do corpo. Tal corpo se movimenta no meio em busca de
operar em congruncia com o ambiente para adequar o acoplamento estrutural no sentido
de manter sua identidade.
Aps toda exposio acima podemos apresentar uma alternativa noo do objeto sonoro
schaefferiano. Tal noo encontra-se, como vimos, enraizada na metafsica dualistacartesiana, e como tal, carece de estrutura argumentativa tanto epistemolgica quanto
ontolgica. O que propomos como alternativa o conceito de objeto sonoro como
distines realizadas por um organismo em sua histria de condutas operacionais no sentido
de manter sua identidade, mantendo seu acoplamento estrutural. Aqui fica claro que nos
apoiamos em uma epistemologia prpria especificamente de autores como M-Ponty e
Maturana, como j nos referimos anteriomente.
Assim esperamos tambm propor uma alternativa de fundamentao filosfica para a
metodologia schaefferiana de circunscrever o objeto sonoro atravs da reduo
husseleriana. Acreditamos que a fenomenologia pontyana pode ser muito mais interessante
144
para a composio musical contempornea, uma vez que fundamenta a explicao sobre a
percepo em bases alternativas ao dualismo cartesiano.
Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturao final no quadro
de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de categorizaes
pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possveis. Como
afirmamos acima, tais categorizaes podem ser a descrio das distines que afirmamos
acima, porm em uma histria de acoplamentos estruturais tpicas de um compositor
acusmtico que passou pelo treinamento (aquisio de hbitos) de perceber segundo os
critrios tipo-morfolgicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem que a tipomorfologia passa a ser no um fundamento essencial da percepo, mas sim uma possvel
descrio de um tipo de escuta de um indivduo que possui essa histria de acoplamentos
com o meio. Em Toffolo 2004, sugerimos uma re-adequao do quadro do solfejo dos
objetos musicais que visava uma simplificao das inmeras categorias. Tal simplificao
foi no sentido de limpar alguns conceitos presentes no quadro que apresentavam grande
dubiedade e tal dubiedade decorrente dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os
conceitos chaves da teoria de Schaeffer chegamos um quadro mais funcional e enxuto da
tipo-morfologia que se apresentou como uma ferramenta interessante tanto para a
composio como para a anlise do repertrio acsmtico e de Paisagens Sonoras.
Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovao da teoria de
Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenolgicas modernas, o que s
refora a importncia e a grandeza do Trait e o seu carter de indispensvel para o estudo
da percepo e da composio musical contempornea.
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Rael Bertarelli Gimenes Toffolo: Compositor, professor de Composio e Matrias
tericas da Universidade Estadual de Maring. Pesquisa na rea de psicologia
ecolgica, inteligncia artificial aplicada msica e cincia cognitiva. Andr Luiz
Gonalves de Oliveira: Licenciado em Msica pela Universidade Estadual de
Londrina 1997. Mestre em Filosofia Universidade Estadual Paulista 2002.
Compositor e professor de msica em ensino superior, fundamental e ps-graduao.
Pesquisador na rea de cincia cognitiva e filosofia da mente.
Introduo
Grande parte do repertrio musical brasileiro ainda est por revisar, e de difcil acesso, a
exemplo de muitas obras de Villa-Lobos que ainda no foram editadas, e as que esto, em
sua maioria na Frana e Estados Unidos, ou as de Camargo Guarnieri, que s atualmente
esto sendo editadas tambm no exterior, ou ainda da nossa produo mineira do perodo
colonial que tem muito por revisar e editar. Em contraste com essa situao, ao
executarmos peas de compositores europeus, alm de encontrarmos vrias edies da obra,
encontramos literatura sobre o compositor, sobre sua obra e inmeras gravaes, podendo
assim comear o trabalho interpretativo munidos de informaes sobre o universo artstico
do compositor. A tudo isto se some o fato de o repertrio de viola no ser muito extenso
comparado ao de outros instrumentos como piano ou violino. Estas razes nos motivaram a
escolher dentro do repertrio nacional uma pea que justificasse uma pesquisa.
Tivemos nos ltimos 15 anos contato com o compositor Cyro Pereira por participarmos
como violista da Orquestra Jazz Sinfnica do Estado de So Paulo, onde ele atua como
maestro, compositor e arranjador1 tendo assim a oportunidade de conhecermos uma grande
parte de sua obra.
Justificativa
Cyro Pereira , na nossa opinio, um dos grandes compositores brasileiros da atualidade.
Apesar de se considerar um msico popular2 e ter militado nesse tipo de msica quase toda
sua vida, a sua obra indica que muitas vezes os limites entre msica popular e erudita talvez
no sejam to delineados. Sua obra imensamente diversificada, desde peas para
instrumentos solo, passando por msica de cmara e chegando a grandes formaes
orquestrais. Dentro destas ltimas, existem peas de sua autoria assim como arranjos de
msicas populares. Cyro3 no foi vinculado escola nacionalista, apesar de ter sido
influenciado por ela no contato que teve em seus anos de trabalho em radiodifuso com
1
A Jazz Sinfnica uma orquestra que foi criada por Arrigo Barnab em 1990, na gesto de
Fernando de Moraes como secretrio de cultura do Estado de SP. Seu primeiro diretor artstico foi o
compositor Eduardo Gudin. Seu maior objetivo o de resgatar o passado das orquestras de rdio que
existiram no Brasil at a dcada de 70, em que a msica brasileira era tocada com arranjos sinfnicos.
Esta proposta foi sendo ampliada para as diversas vertentes da msica brasileira. Nestes 15 anos de
existncia, ela alm de ter acompanhado quase todos os grandes nomes da msica popular brasileira,
sejam cantores ou instrumentistas, abriu campo para novos arranjadores que muitas vezes estavam
restritos ao mercado fonogrfico ou publicitrio. Passaram pelos palcos da Jazz muitos nomes, dos
quais citaremos alguns apenas para ilustrarmos a diversidade: Tom Jobim, Milton Nascimento,
Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Dori Caymmi, Zlia Duncan, Sivuca, Nan
Vasconcelos, Cssia Eller, MPB4, Os Cariocas, Leila Pinheiro, Ivan Lins, Zizi Possi, Chico Csar,
grupos instrumentais como Pau Brasil e Uakti, arranjadores como Edmundo Villani e Lus Arruda
Paes, e nomes internacionais como Joe Zawinul, Turtle Island Quartet, Arturo Sandoval entre muitos
outros. Ela dispe de um acervo de mais de 700 arranjos e msicas quase todos escritos especialmente
para ela e conta at esta data com 9 CDs gravados.
2
Entrevista concedida ao autor em 17/05/2004
3
Ao nos referirmos a Cyro Pereira, optamos usar o primeiro nome, Cyro, do que seu sobrenome.
147
alguns compositores desta escola. Sua obra tem uma linguagem prpria, sempre
despretensiosa como uma boa msica popular, e com grande refinamento de escrita e
orquestrao.
Esta pea, a Brasiliana n. 2, se mostrou apropriada para uma pesquisa por ter sido pouco
tocada,4 divulgada e no estar editada. Ela uma obra escrita na forma sute-concerto, em
trs movimentos (rpido-lento-rpido), para viola e orquestra. Estes movimentos so
escritos em formas bem brasileiras, um Samba, uma Valsa Brasileira e um Choro. uma
pea virtuosstica, de grande desafio tcnico ao solista, pela mestria da instrumentao, e
pela originalidade aliada simplicidade das formas. Sua reviso, com possibilidade de
esclarecimento de possveis dvidas com o prprio compositor, somando-se sua edio e
execuo, tem como objetivo preservar, enriquecer, e difundir o repertrio musical
brasileiro para viola e a obra de Cyro Pereira.
Objetivos
a) Fazer anlise interpretativa verificando sua estrutura formal, sua orquestrao, sua
harmonia, aspectos idiomticos, bem como comentrios tcnicos de execuo.
b) Editar, revisar, executar com orquestra e reduzir a partitura orquestral para piano para
aumentar a possibilidade de execuo.
Executar a obra em concertos.
d) Discutir a questo dos caminhos possveis de interpretao da obra.
Procedimentos tcnicos:
1.
At onde pudemos apurar, alm de Marcelo Jaff, esta pea foi tocada, at esta data, somente por
Newton Carneiro e Alexandre de Leon com a Orquestra Jazz Sinfnica e estes ltimos, apenas o 3
movimento.
5
O violista Alexandre de Leon.
148
Cyro Pereira
O compositor e arranjador Cyro Pereira, nasceu na cidade de Rio Grande, RS, em
14/08/1929. Mudou-se para So Paulo em 1950, onde vive e desenvolveu sua extensa
carreira. Trabalhou na rdio e televiso Record e posteriormente na TV Tupi. Na TV
Record participou como maestro e arranjador dos memorveis Festivais de Msica Popular
Brasileira de 1966 a 1969. Foi o criador em 1965, em parceria com Mrio Albanese do
ritmo Jequibau, ritmo este que alcanou grande sucesso no exterior e foi gravado em 23
pases. Ganhou diversos prmios entre eles o Roquette Pinto em 1957 e 1966, e o Prmio
Carlos Gomes em 1996. A partir de 1989 foi professor da Unicamp de orquestrao dentro
do curso de graduao em msica popular at se aposentar em 1999. No mesmo ano de
1989 participou da criao da Orquestra Jazz Sinfnica do Estado de So Paulo, onde
permanece at hoje como Maestro e compositor residente.6
A Sute Brasiliana n. 2
Cyro Pereira escreveu quatro sutes Brasilianas at esta data. Como ele prprio define em
entrevista7, Brasiliana refere-se a uma sute com danas e ritmos brasileiros.
Este nome, Brasiliana, inspirado na obra de Radams Gnattali, que usou este termo para
inmeras peas (Barbosa, 1984, p. 73). Ele comenta nesta entrevista que ouvia muito os
arranjos de Gnattali no rdio, e que este tipo de msica foi que o impulsionou mais tarde a
querer aprender a escrever para orquestra. Sua primeira Brasiliana foi escrita para o
Concurso de Composio Cidade de So Paulo, em que ganhou meno honrosa e foi
estreada em 29 de abril de 1963, com a Orquestra Municipal de So Paulo (Shimabuco,
1998, p. 22, 23). Ela est escrita numa forma um pouco diferente das outras subseqentes,
contando com cinco movimentos tendo o carter mais usual de sute. Estes movimentos se
enquadravam na forma pedida no concurso, a saber: Dobrado, toada, valsa, choro e baio.
J as outras trs Brasilianas so na verdade concertos para instrumento solo, a segunda para
viola, a terceira para violoncelo e a quarta para trompete. A segunda consta de trs
movimentos: Samba, Valsa e Choro. A terceira tambm conta com trs movimentos,
Choro, Preldio e Frevo, sendo o preldio uma adaptao da primeira pea da Pequena
sute para grandes amigos de 1998 para piano solo (Shimabuco, 1998, p. 51). Sua
orquestrao conta com cordas e bateria. At o momento permanece indita. A quarta
para trompete solo e orquestra de sopros, e foi estreada no Festival de Inverno de Campos
de Jordo de 2005, por Daniel DAlcntara no trompete acompanhado pela Orquestra Jazz
Sinfnica. Seus movimentos so: Choro, Cano e Frevo. Seu terceiro movimento foi uma
adaptao do frevo Ventania para orquestra completa, de autoria do prprio compositor.
A Brasiliana n. 2 foi dedicada ao violista Gualberto Estades Basavilbaso8 e estreada em
01/03/94, em So Paulo, com a Orquestra Jazz Sinfnica tendo Marcelo Jaff9 como solista
6
149
(Shimabuco, 1998, p. 51). Sua orquestrao conta com os seguintes instrumentos: Cordas
completas, 3 flautas com a terceira revezando com flautim, 2 obos, 2 clarinetas em si
bemol, 2 fagotes, 4 trompas, harpa, bateria e tmpano. A percusso no usada no segundo
movimento enquanto que a harpa somente utilizada nele.
Mesmo sendo uma sute, a Brasiliana n. 2 tambm um concerto na sua forma mais
corriqueira: Uma pea instrumental que mantm contraste entre um conjunto orquestral e
um grupo menor ou um instrumento solista, ou entre vrios grupos e uma orquestra inteira
(Fuller, in Grove, v.4, p. 626, traduo nossa). Apesar das sutes geralmente serem
formadas por mais de trs movimentos, esta obra possui apenas trs. Este fato no
descaracteriza esta forma, mesmo porque, as formas sempre apareceram na histria da
msica de maneira muito variada (Bas, 1947, p. 296). Vale lembrar que os concertos
barrocos tm sua origem na forma sute, contando geralmente com quatro movimentos com
carter de dana.(Zamacois, 1985, p. 206 e 207), passando em poca posterior a possuir trs
movimentos, como por exemplo, os concertos de J.S. Bach para violino solo.
1 movimento: Samba
O Samba10 um gnero que aparece em formas bem variadas. Suas caractersticas
principais so: compasso 2/4 (s vezes 4/4), melodia sincopada sobre uma batucada
caracterstica. Os tipos mais popularizados so: samba cano, samba enredo, samba de
breque, samba-choro, entre outros. Geralmente a forma mais usada consta de duas partes
podendo ser uma delas um estribilho ou refro: A letra da msica vai mudando numa delas,
e na outra, o refro, ela se repete. Esta forma se parece com um rond, com a diferena que
no rond uma das partes vai sendo variada, no na letra, porm na msica, enquanto que a
outra, que o estribilho, aparece inalterada. Este movimento difere principalmente do que
conhecemos por samba por ter sido escrito para viola, instrumento que tradicionalmente
no toca este tipo de msica. Cyro usou a batida caracterstica do samba na bateria, com
partes na viola solista escritas como se a viola fizesse o papel de um cantor (c. 41 a 47, Ex.
1):
Fontes consultadas sobre o samba: Andrade, 1965, p. 145; Cascudo, 2000, p. 614 e Enciclopdia da
Msica Brasileira, 1998, p. 704.
11
O termo idiomtico e sua aplicao foram amplamente discutidos na dissertao de mestrado de
Ricardo Kubala (vide bibliografia). Adotaremos tambm este termo, pois ele descreve
150
151
Cabe aqui um aparte sobre a histria dessa forma abrasileirada de valsa. Segundo a
Enciclopdia Da Msica Brasileira (1998, p. 803), a valsa aqui aportou com a vinda da
famlia real portuguesa, em 1808, e tornou-se popular nos sales. Logo passou a ser um
gnero popular influenciando as modinhas, que passaram a ser ternrias. Atravs dos
conjuntos de choro transforma-se em um gnero seresteiro, e Ernesto Nazareth a torna uma
de suas principais formas de composio. As valsas foram registradas desde as primeiras
gravaes realizadas e tiveram seu apogeu na rdio na dcada de 1930 nas vozes de grandes
cantores. Foi tambm utilizada por diversos compositores brasileiros eruditos.
Vejamos o que diz Cazes a respeito:
A valsa, dana ternria oriunda da ustria e da Alemanha, que chegou ao
Brasil com a corte portuguesa, desenvolveu aqui caractersticas prprias, com
andamentos bem lentos, para dar vazo a tanto sentimentalismo e um esquema
de modulaes similar ao das polcas. Nazareth aprofundou as possibilidades
desses gneros com uma obra volumosa e de qualidade homognea. (Cazes,
1998, p. 36).
152
Na opinio de Cyro este gnero foi desenvolvido com maestria por Ernesto Nazareth,
Francisco Mignone e Radams Gnattali.15
3 movimento: Choro
O terceiro movimento est na forma de choro. Este segundo Cazes teria surgido devido a
uma nacionalizao de vrios gneros trazidos de colonizadores, principalmente a Polca, e
que foram adquirindo carter nacional. Este processo ocorreu de modo semelhante em
vrios pases, somando-se o sotaque do colonizador e a influncia negra, originando assim a
msica popular urbana que hoje conhecemos (Cazes, 1998, p. 17). De acordo com ele as
caractersticas do choro seriam:
[...]Em resumo: Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na dcada de 10,
passou a ser uma forma musical definida. O Choro como gnero tem
normalmente trs partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Mais recentemente, Choro voltou a significar
uma maneira de frasear, aplicvel a vrios tipos de msica brasileira. A
obedincia forma rond (em que sempre se retorna primeira parte) aos
poucos tem sido flexibilizada (Cazes, 1998, p. 21).
Este choro possui duas partes, e sua forma geral A-B-A mais uma coda. Nos choros de
Pixinguinha observamos que em geral h 3 partes, como por exemplo, nos choros:
Chorando Sempre (As partes esto respectivamente nas tonalidades de Sol, mi e D).16
Naquele Tempo (r, F, R), Um a Zero (D, Sol, F) e Vou Vivendo (F, r, Si bemol),
porm h excees com apenas duas partes como Carinhoso, Atencioso, etc..
J o famoso Brasileirinho de Waldir de Azevedo tem somente duas partes, mas a casa dois
da primeira parte pode quase ser considerada uma segunda parte por sua extensa dimenso.
A primeira est em F maior e a segunda em f menor na partitura consultada.17
Com o passar do tempo o choro foi sendo composto mais em duas partes como nos choros
Noites Cariocas (Sol, Do e coda em Sol) e Nosso Romance (Do l) entre muitos outros de
Jacob do bandolim, ou Choro Negro (sol e Sol) de Paulinho da Viola.18
Colocamos as tonalidades das partes dos choros entre parnteses para demonstrar que as
modulaes nestes choros, que so uma amostragem expressiva do gnero, so feitas em
direo s tonalidades vizinhas como as relativas maiores ou menores, dominantes e
subdominantes. Nos choros tradicionais so usados acordes maiores, menores, de stima de
dominante, menores com stima e diminutos, mas raramente acordes com maiores
alteraes. Nesta obra Cyro utiliza uma harmonia mais complexa, com acordes de nona,
dcima primeira, etc., quartas superpostas, e utiliza-se de harmonia jazzstica (Ex. 5).
Cyro escreve quase que exclusivamente sem armadura de clave em suas obras.
Inquirimos o compositor se a obra estaria escrita em uma tonalidade especfica sobre o que,
ele nos explanou, que apesar de comear numa regio tonal e terminar na mesma, ele
procurou no se fixar em nenhuma, modulando sempre rapidamente e passando por muitas
tonalidades, sendo essa uma caracterstica geral de suas obras desde muitos anos atrs. Esta
15
Entrevista cit.
As tonalidades maiores sero descritas com a letra inicial maiscula e as menores com minscula
17
TA-389, Rio de Janeiro: Todamrica Msica Ltda. 1950.
18
Cyro Pereira fez uma verso deste choro para viola e piano ainda manuscrita e que faremos uma
edio futuramente.
16
153
E mais frente:
Tendo atingido esse ponto, torna-se indispensvel obedecer no a novos
dolos, mas a eterna necessidade de afirmar o eixo de nossa musica, e
reconhecer a existncia de alguns plos de atrao. A tonalidade diatnica
apenas um dos meios de orientar a msica na direo a esses plos. [...] De
modo que nossa principal preocupao menos o que se chama de tonalidade
do que o que poderamos chamar de atrao polarizada do som, de um
intervalo ou mesmo de complexo de notas. [...] (Stravinsky, 1995, p. 41).
Este uso da tonalidade foi abordado Antenor Ferreira Corra em seu artigo Polinimo, para
os anais da 15 ANPPOM de 2005, ainda a ser publicado, que chamado de tonalidade
flutuante, e aproxima-se muito da maneira de compor de Cyro:
Processo composicional que no se atm a um nico plo atrativo, mas
flutua ao redor de vrias tnicas sem se direcionar efetivamente para um
centro exclusivo. Com isto, uma vagueza harmnica impingida ao discurso
musical. Pode haver o uso de harmonia tridica, embora sem sugerir
subordinaes a nenhuma tnica em especial. Guarda semelhana com as
sucesses de acordes empregadas nas sees de transio, sem que, como
estas, atinjam objetivos harmnicos especficos. um estado estrutural no
qual vrias tnicas exercem simultaneamente seu poder de atrao, sem que
uma destas torne-se o plo conclusivo.[...] (Corra, 2005, p. 6).
154
155
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Artstica pela USP. mestrando desde 2004 em prticas interpretativas na Unicamp
sob orientao do Prof. Dr. Emerson de Biaggi. Estudou com Perez Dworecki, Elisa
Fukuda, Paulo Bossio, Alejandro de Len e Alberto Jaff. Em 1984 foi para Israel,
onde permaneceu cinco anos, estudando com Yuval Kaminkowisky, na Jerusalem
Rubin Academy of Music and Dance e participou da Rishon Le Zion Symphony
Orchestra. membro da Orquestra Jazz Sinfnica do Estado de So Paulo, desde sua
fundao em 1990, e da Orquestra Sinfnica Municipal de Santos. Desenvolve intenso
trabalho didtico, tendo lecionado no Conservatrio do Brooklin-SP, Conservatrio
Estadual de Pouso Alegre-MG, no Projeto Guri-SP, Festival de Msica Internacional
de Campos-RJ (2001) , Universidade Livre de Msica Tom Jobim-SP de 1993 a 2003,
entre outros. Emerson De Biaggi: Formou-se em violino com Lola Benda e viola sob
orientao de Johannes Oelsner. Bacharel em Msica pela USP, foi aluno de Perez
Dworecki, Horcio Shaeffer e Marcelo Jaff. mestre pela Boston University sob
orientao de Rafael Hillyer e Steven Ansell e doutor pela Universidade da Califrnia
sob orientao de Heiichiro Ohyama, Donald MacInnes e Ronald Copes. Integrou a
Boston Philharmonic, a Vermont Symphony Orchestra e a Boston Modern Music
orchestra, e regressou ao Brasil em 1997 para integrar a Orquestra Sinfnica Estadual
de So Paulo. Foi professor de viola e msica de cmara no Depto. de Msica da
Unesp de 1997 a 2004 e leciona desde 1998, no Instituto de Artes da Unicamp.
Integra o duo de viola e cravo Sebastian, o trio de cordas Camaleon e o quinteto de
cordas Quintal. Como solista, tem se apresentado em diversas orquestras entre as
quais a de Cmara So Paulo, de Cmera do Teatro So Pedro de Porto Alegre, de
Cmera de Jundia, Sinfnica da Unicamp, Sinfnica Jovem do Estado de So Paulo,
Experimental de Repertrio, de Cmara de Curitiba, Sinfnica de Santo Andr e
Sinfnica Municipal de Santos.
156
157
158
Introduo
Percebe-se que a ps-modernidade no se vincula propriamente a uma circunscrio
geogrfica e nem tampouco a um perodo histrico, pelo menos no se o intuito for
delimit-la de uma forma geral. A respeito do tempo da ps-modernidade, Nicolau
Sevcenko se manifesta:
Ps-moderno, como est evidente, um conceito que supe uma reflexo
sobre o tempo, antes de mais nada. Segue-se a pergunta inevitvel, a que
tempo se refere ento? No a um tempo homogneo, linear, em que se
pudesse estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato inaugural,
como se poderia esperar da viso simplista da histria na qual somos
zelosamente educados. (Sevcenko, 1988, p. 45)
Ela parece atender melhor a uma classificao por especificidade de assuntos, segundo
Fernando Iazzetta: A definio do ps-modernismo ainda um assunto em discusso, e
sua delimitao temporal depende do mbito do qual se est tratando. (In: Guinsburg, J. e
Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 228)
No h ainda um acordo sobre a ps-modernidade, seja quanto aos seus atributos, seja
quanto sua prpria existncia, ou no. Joo Adolfo Hansen corrobora nossa opinio,
afirmando: O objeto implicado nas discusses do ps-moderno , assim, o moderno,
falado a partir de vrios posicionamentos, e sobre o qual no h nenhum consenso. (In:
Chalhub, Samira, 1994, p. 38)
Ao tratarmos o assunto ps-modernismo, invariavelmente recorreremos tambm ao
modernismo, pois pela comparao, no mais das vezes no simtrica, entre ambos, que se
estabelece o que prprio de um ou de outro. Jair Ferreira dos Santos esclarece bem este
aspecto:
Mas se a ps-modernidade significa mudanas com relao modernidade, o
fato que no se pode dispensar o ao, a fbrica, o automvel, a arquitetura
funcional, a luz eltrica conquistas associadas ao modernismo. Assim, no
fundo, o ps-modernismo um fantasma que passeia por castelos modernos.
(Santos, J. F., 2004, p. 18)
160
Isto posto, cremos imprescindvel um breve apanhado histrico para situarmos tanto a
modernidade como a ps-modernidade no mbito desta pesquisa. Para tanto, nos apoiamos
em Teixeira Coelho:
O projeto da modernidade lanado no sculo XVIII e firma-se ao longo do
XIX marcado, neste, por processos como o da Revoluo Industrial, de um
novo pensamento sobre o social (como o de Karl Marx) e o dos passos iniciais
da psicanlise, para ficar nos mais evidentes. Nossa modernidade, porm,
parece cristalizar-se e assumir contornos mais bem trabalhados nos primeiros
anos deste sculo XX. (Coelho, 1995, p. 25)
O sculo XX pode ser alcunhado de o sculo do conflito, pois nele se sucederam duas
guerras com menos de trinta anos de intervalo, para citar apenas aquelas que assumiram
propores mundiais. Tambm no se pode olvidar que, aps a ltima grande conflagrao,
finda em 1945, estabeleceu-se a chamada Guerra Fria, cujo eixo era a disputa pela
hegemonia global entre as duas superpotncias da poca, Estados Unidos e Unio
Sovitica. Sobre este sculo conflituoso, Anthony Giddens afirma:
No apenas a ameaa de confronto nuclear, mas a realidade do conflito
militar, formam uma parte bsica do lado sombrio da modernidade no
sculo atual. O sculo XX o sculo da guerra, com um nmero de conflitos
militares srios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente
mais alto do que qualquer um dos sculos precedentes. (Giddens, 1991, p. 19)
E neste contexto que a modernidade se firma no cenrio mundial, sob a gide do avano
tecnolgico, da produo industrial, inovaes em todos os setores, a cincia como esteio,
O limiar da Ps-Modernidade
161
com a fora do tomo, com o receio da fisso de seu ncleo para fins militares e com a
convivncia, no mais das vezes no-pacfica, entre vrias culturas, cada qual em seu
momento histrico. Sobre a modernidade deste perodo, Jameson elucida:
(...) o modernismo deve ser visto como correspondendo de forma singular a
um momento desigual do desenvolvimento social (...) a coexistncia de
realidades de momentos radicalmente diferentes da histria o artesanato ao
lado dos grandes cartis, as plantaes de camponeses com as fbricas da
Krupp ou da Ford distncia. (Jameson, 1997, p. 312)
162
Na poca moderna, a inovao era o valor fundamental, ao qual todos os demais valores
eram referenciados. A necessidade de enumerar e categorizar foi significativa nesta poca,
a tudo estabelecendo um paralelo em termos de juzo, ou seja, criando juzos de valor,
apoiados na nsia do progresso e no mpeto da ruptura, pilares destes tempos modernos.
Como j vimos, Nietzsche sintetizou de forma lcida que a modernidade era a poca da
superao. Ora surgem sinais de fadiga, compondo este sintoma um sinal prprio da psmodernidade, embora paradoxalmente, seja justamente o desejo da ruptura com tudo o que
as sociedades viveram nestes ltimos sculos que anuncie este surgimento de um novo
estado de coisas. Srgio Paulo Rouanet, citado por Raymundo de Lima em seu artigo Para
entender o ps-modernismo, descreve muito bem este paradoxo:
Depois da experincia de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz [sic],
depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaado pela aniquilao
atmica, pela ressurreio dos velhos fanatismos polticos e religiosos e pela
degradao dos ecossistemas, o homem contemporneo est cansado da
modernidade. Todos esses males so atribudos ao mundo moderno. Essa
atitude de rejeio se traduz na convico de que estamos transitando para um
novo paradigma. O desejo de ruptura leva convico de que essa ruptura j
ocorreu ou est em vias de ocorrer (...). O ps-moderno muito mais a fadiga
crepuscular de uma poca que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino
de jbilo de amanhs que despontam. conscincia ps-moderna no
corresponde uma realidade ps-moderna. Nesse sentido, ela um simples
mal-estar da modernidade. literalmente falsa conscincia, porque
conscincia de uma ruptura que no houve, ao mesmo tempo, tambm
conscincia verdadeira, porque alude, de algum modo, s deformaes da
modernidade (Lima, 2005)
O limiar da Ps-Modernidade
163
164
apresentada em todos os continentes. Sua obra Blirium A-9 foi selecionada, em 1970, pela
Tribuna Internacional de Compositores - UNESCO, para difuso nas rdios da Europa. Em
1971 ganhou o prmio da APCA pela melhor obra experimental, com Santos Football
Music.
Como professor convidado deu aulas de composio na Universidade de Milwaukee
(E.U.A), em 1978 e 1979. autor do livro Uma Odissia Musical (EDUSP) e suas obras
vem sendo executadas nas principais cidades do pas e em vrios eventos internacionais,
como Festival Internacional de Msicas Experimentais em Bourges (Frana); Sonidos de
las Amricas no Carnegie Hall, em Nova York (E.U.A.); Festival de Msica Brasileira em
Bonn (Alemanha); Inter-American Music Festival em Washington (E.U.A) e Festival de
Msica de Vanguarda da Fundao Gulbenkian Lisboa (Portugal), entre outros. (Duprat,
Enciclopdia da Msica Brasileira, pp.179180)
Gilberto Mendes sempre transitou com desenvoltura entre os mais diversos sistemas
musicais, sendo mpar sua propriedade de fundir linguagens diferentes, imprimindo nessa
fuso sua marca pessoal, podendo ser considerado um autntico representante do psmodernismo no Brasil. Desta forma, pela contemporaneidade, relevncia e originalidade do
assunto em questo, justifica-se esta pesquisa sobre como alguns aspectos do ps-moderno
influenciaram o processo criativo deste compositor.
A Vanguarda e o Ps-Moderno
O conceito de vanguarda de origem militar e remonta poca de Napoleo Bonaparte,
quando tambm surgiu o conceito de ideologia. De acordo com Bauman:
Avant-garde significa, literalmente, vanguarda, posto avanado, ponta-delana da primeira fileira de um exrcito em movimento: um deslocamento que
se move na frente do corpo mais importante das foras armadas mas
permanece adiante apenas com o fim de preparar o terreno para o resto do
exrcito. (...) A vanguarda d distncia que a separa do grosso da tropa uma
dimenso temporal: o que est sendo feito presentemente por uma pequena
unidade avanada ser repetido mais tarde, por todas. (...) Num mundo em que
se pode falar de a v a n t - g a r d e, para
frente e para trs tm,
simultaneamente, dimenses espaciais e temporais. (Bauman, 1998, p. 121)
O limiar da Ps-Modernidade
165
primeira, compreendida entre as duas grandes guerras; a segunda, entre 1945 e 1960, com a
formao de dois ncleos composicionais (vanguarda e experimentao); e a terceira fase
da modernidade musical, com o pice das vanguardas na dcada de sessenta, exprimindo a
busca constante do novo, o que levou ao seu exaurimento como linguagem musical.
O modernismo musical chegou esmaecido ao nosso pas. Desde o sculo XIX, o
questionamento sobre a criao de uma msica livre dos esquemas impostos pela Europa
foi preponderante no Brasil. Diante disto, esta primeira fase modernista brasileira
apresentou uma nostalgia das tradies derivadas dos movimentos artsticos nacionalistas.
A produo musical brasileira da Semana de 22 parecia desatualizada em relao s novas
conquistas modernistas como o dodecafonismo, exceo feita s obras de Villa-Lobos, nas
quais encontravam-se superposies politonais, atonalismo, polirritmias e experincias com
novas combinaes instrumentais. De uma forma geral, as trs fases nas quais podemos
dividir o modernismo musical brasileiro so: a primeira, de 1922 a meados dos anos de
1945, quando se firmou a potica nacionalista; a segunda inicia-se em 1946, quando da
declarao do Manifesto Msica Viva, estendendo-se at a dcada de 1960; a terceira surge
tambm com um manifesto, Msica Nova (1963), quando a influncia de Darmstadt se fz
presente aqui no Brasil.
Enquanto Villa-Lobos estava na Europa compondo os Choros, Mrio de Andrade assumiu
o lugar de pensador e crtico da msica brasileira, tendo como fiel discpulo Camargo
Guarnieri. Este compositor, a partir das diretrizes de seu mentor, constituiu escola,
trabalhando com a linguagem neoclssica de Hindemith, tendo com ncora a busca do
carter musical brasileiro.
Aps a Segunda Guerra Mundial, ocorreu, na Europa e nos Estados Unidos, a formao de
dois ncleos composicionais, quais sejam, respectivamente: o serialismo integral, derivado
da Segunda Escola de Viena; e o uso da indeterminao, iniciado com John Cage
(19121992). Nas palavras de Griffiths: Somente um compositor norte-americano poderia
ter empreendido uma reviso to radical do sentido da msica, estabelecendo a no
inteno zen no lugar da realizao de um produto da vontade individual, finalidade da arte
europia desde o Renascimento.(Griffiths, 1987, p. 120) Desta forma, o compositor
assume um papel completamente diferente daquele da tradio musical romntica,
comeando a quebra das categorias de superao e originalidade, que veremos consolidada
na ps-modernidade.
Referindo-nos novamente ao Brasil, pela primeira vez tentou-se aqui desenvolver a
aplicao sistemtica do dodecafonismo, pela iniciativa de Hans Joachim Koellreutter
(19152005). Compositores que estudavam com ele como Cludio Santoro (19191989),
Edino Krieger (1928), Eunice Catunda (19151990) e Guerra-Peixe (19141993)
lanaram o Manifesto Msica Viva no Rio de Janeiro, em primeiro de novembro de 1946.
Ao se aproximar a dcada de sessenta, vrios compositores em toda a Europa procuraram
novas solues composicionais: Olivier Messiaen (19081992) elaborou uma arquitetura
sonora esttica, concebida aps incurses pelo canto gregoriano e pelas rtmicas grega e
hindu; Gyrgy Ligeti (1923) construiu densas texturas sonoras em obras como
Atmospheres (1961); o realismo socialista manifestou-se na msica dos poloneses como
Krysztof Penderecki (1933) e Witold Lutoslawiski (19131994). Segundo Gubernikoff,
A msica ocidental se acreditava universal e histrica e baseava sua produo nessas
166
Ainda sobre esta psicose aventada por Buckinx, depreendemos que foi justamente ela que
proporcionou um dos motivos para o esgotamento dos procedimentos de vanguarda. Sobre
a busca do novo e sua relao com o que designa como ps-moderno, o compositor
Ricardo Tacuchian declara:
(...) No ps-moderno todo artista procura o novo porque o artista , por
natureza, um criador, no um repetidor. Mas essa aflio de, a cada segundo, a
cada milmetro eu ter um signo novo, isso deixa de existir como existia na
Vanguarda esse o primeiro conceito para o ps-moderno. O outro, um
corolrio deste, que eu no rompi com a tradio. Eu parti da tradio e
estou avanando com novas idias, com novas proposies. Ento, isso o
que caracteriza o que eu chamo de ps-moderno. (Tacuchian, 1999, pp.
2027)
Na msica, a multiplicidade de vozes tornou-se presente nos compositores alcunhados psmodernos. Nas composies de Sofia Gubaidulina (1931), desde os anos sessenta,
coexistem diversas tradies, sendo uma precursora do ps-modernismo. Alguns
compositores fizeram o retorno ao tonalismo como, por exemplo, Alfred Schnittke
(19341998). Por vezes, suas composies ganham ares neo clssicos; outras tantas, usa
amplamente a poliestilstica.
Na dcada de setenta comeou a se estabelecer uma nova esttica na msica, confluente de
vrias poticas como a msica politicamente engajada, a nova simplicidade (derivada do
neo-romntico), o minimalismo, a nova consonncia, o new age e o modernismo moderado.
(...) comea, ainda que de forma no muito consciente, em 1973, atinge em
1980 um momento de ruptura e por volta de 1985 um primeiro ponto
O limiar da Ps-Modernidade
167
Em linhas gerais esta nova tendncia, denominada ps-moderna (pomo), caracteriza-se pela
tolerncia, inclusivismo e pluralidade, tornando-se acessvel ao pblico. Apresenta
continuidade da tradio, poliestilstica, convive respeitosamente com as contradies e
pode ser cosmopolita ou local. Na ps-modernidade todos os sistemas harmnicos so
possveis (prticas que remontam a qualquer poca), inclusive as mais variadas e incomuns
formas de fuso entre eles. Compositores que apresentam algumas destas caractersticas
so: Cludio Santoro (19191989), Gilberto Mendes (1922), Edino Krieger (1928),
Henryk Mikolai Gorecki (1933), Arvo Part (1935), Willy Corra (1938), Marlos Nobre
(1939), Ricardo Tacuchian (1939), Almeida Prado (1943), John Adams (1947),
Ronaldo Miranda (1948) Wolfgang Rihm (1952), Rubens Ricciardi (1964), dentre
outros. Sobre os brasileiros, Salles observa que estes compositores no pretenderam criar
uma escola e que superaram a polaridade entre nacional e universal que marcou a
trajetria da msica brasileira at a dcada de 1960. (Salles, 2005, pp.186187)
Quer seja no Brasil, quer seja em outros pases, na concepo ps-moderna os recursos
eletroacsticos e concretos podem ser utilizados como tcnicas em meio a uma
problemtica maior da linguagem musical. A crtica indstria cultural permanece, porm,
h a incluso de material do universo popular ou de entretenimento nas composies. Desta
forma, ocorre a diluio do antagonismo das categorias original versus conservador e a
questo da originalidade tem seu valor minorado. O sentido da msica j no trabalhar
com esta novidade ou revolucionar aquela outra, mas sim deslocar o eixo de abordagem da
teoria para o de vivncia da audio.
A partir dos anos 80 a maioria dos compositores brasileiros abandonaram as propostas
consideradas radicais. Grande parte deles est em uma fase ecltica, onde h uma suspenso
de conflitos estilsticos e a adoo de um espcie de sincretismo de vertentes
composicionais que pareciam irreconciliveis. De acordo com Joo Marcos Coelho,
Hoje as palavras de ordem so: sntese (Edino Krieger), mistura de tudo
(Marlos Nobre), fuso (Ronaldo Miranda), esttica da multiplicidade
(Almeida Prado), releitura menos policiada por escolas (Jocy de Oliveira),
qumica de linguagens mltiplas (Gilberto Mendes). Eles falam de
neotonalidade e em transitar entre o pop e o erudito sem o menor sinal de
lhes subir rubor s faces... Est decretado, portanto, o fim das patrulhas
ideolgicas da vanguarda dos anos 60 (...) Esta esttica da multiplicidade onde
tudo cabe e atende tambm pelo nome de ps-modernismo tambm entra na
balana das importaes (...) E todos, sem exceo, atravessaram suas fases
vanguardistas, hermticas, e hoje degustam as delcias de poder usar sem
culpa um acorde perfeito (...). (Coelho, abr. 2005, p. D9)
168
Inicia sua terceira fase composicional com a obra Vento Noroeste (1982). Sobre esta pea,
Gilberto Mendes realizou os seguintes comentrios:
Vento Noroeste foi composta a pedido do pianista Caio Pagano a quem
dedicada e por ele estreada no Festival de Miami, em 1982. Trabalhada sobre
um seqncia de notas distanciadas por tons inteiros e sua inverso, bem
como a sobreposio dessas duas seqncias (do que resulta um
fracionamento em meios tons) e a sua compreenso numa outra seqncia
tambm por meios tons. Esses meios tons se definem ao longo da pea num
eixo descendente/ascendente, em torno do qual se identificam procedimentos
musicais que tanto podem ser do romantismo alemo, como da msica dos
mares do sul, ou da bossa nova; permeados de determinados acordes
O limiar da Ps-Modernidade
169
Olhei para o quadro de meu amigo Gasto...e, seguindo suas linhas e ncleos
abstratos, que pretendem sugerir um novo grafismo, uma nova escrita musical,
fui desenhando, em correspondncia com o que via, notas em seqncias
meldicas e concentraes harmnicas. O resultado serviu de material
musical, uma srie...Mas no se trata de msica serial ortodoxa, como a
dodecafnica. Esse material uma base constante de referncia, fator de
unidade, mas em vrios momentos abandonado, quando a msica segue
livremente, porm sempre inspirada nos motivos e clima meldico/harmnico
desse material. (Mendes, 1994, p. 200)
ltimo Tango em Vila Parisi, 1987, para orquestra sinfnica: obra em que ocorre mistura
de linguagens, com momentos minimalistas e de happening. Gilberto escreveu sobre esta
em seu livro:
A pea tem um pouco de abertura trgica orquestral, la Brahms, mas
apenas na expectativa do que vai acontecer. Na verdade, um divertimento
mozartiano... Obra repetitivo-minimalista, composta sobre somente um acorde
orquestral, esttico, soando dois minutos, seguido de uma frase musical do
170
Ulysses em Copacabana Surfing with James Joyce and Dorothy Lamour, 1988, para flauta,
clarineta, trompete, sax alto, 2 violinos, viola, violo, contrabaixo e piano
(...) integram-se neste meu trabalho materiais que vo desde velhos hinos
gregos at o orientalismo kitsch do tipo Hollywood anos 30, tudo muito
transformado e desenvolvido, numa Sommerreise schubertiana que passa por
muitos climas tropicais e chega a um surf de 3 msicas simultneas, o fox-trot
final que pode estar sendo ouvido num cocoanut grove de Los Angeles, como
num caf em Trieste, ou num bar de Copacabana. Tentativa de uma forma
musical joyciana e de um som schoenberguiano a partir do estilo de
orquestrao de velhas canes cantadas por Dorothy Lamour (...). (Mendes,
1994, p. 219)
Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, 1989, para piano solo. Bezerra
comenta a manifestao da expresso individual e o uso de citaes, peculiar do psmodernismo, presentes nesta pea:
O componente autobiogrfico outra caracterstica das obras deste perodo de
maturidade. Nelas, o compositor presta homenagem aos dolos da sua
juventude: as estrelas de Hollywood e os artistas das vanguardas europias
(Ulisses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour,
1988; Um Estudo? Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul, 1989). O
uso refinado de citaes musicais est presente em grande parte das
composies mais recentes. (Bezerra, set. 2002, p. 22)
Tempo Tempo, 1991, para coro a capela. De acordo com Valente, uma obra composta
apenas para vozes onde encontramos a repetio, caracterstica marcante desta fase de
Gilberto Mendes e a mistura de linguagens, marca do ps-modernismo, representada pela
alternncia de momentos em que utiliza apenas intervalos consonantes, com blocos
microtonais. (Valente, 1999, p. 214)
Abertura da pera Issa, 1995, para orquestra sinfnica: esta abertura no se baseia em
processos sistemticos de repetio em sua totalidade, muitas vezes limitados a partes ou
trechos. Assim, o termo ps-minimalista seria o mais adequado para caracterizar esta
abertura, que lembra o ps-minimalismo europeu, como algumas obras de Arvo Prt, por
exemplo. O compositor utilizou-se da tcnica do minimalismo americano de processo
aditivo (subtrativo) textural, junto com linhas meldicas expressivas, realizando a mistura
de linguagens peculiar do ps-moderno. A primeira parte desta abertura apresenta estrutura
formal contnua e textura rtmica homognea, com construo ps-minimalista a partir de
quatro motivos. Na segunda parte da obra se insere mudana de andamento e carter,
ocasio em que executado pelo obo o segundo elemento estrutural, uma melodia
utilizando escala assemelhada ao modo mixoldio. Para construir esta frase o compositor
usou as mesmas relaes intervalares do primeiro motivo, identificado em nossa anlise,
atravs de duas variaes transpostas, sendo a ltima destas retrgrada. Tanto na segunda
quanto na terceira parte a obra abandona o carter minimalista, apresentando-se o tema
como melodia acompanhada. Na terceira parte, as trompas executam o terceiro elemento
estrutural da abertura, a melodia derivada da escala Ritsu do Gagaku, j que o protagonista
da pera o poeta japons Issa. Esta escala pentatnica, mas o compositor constri a frase
O limiar da Ps-Modernidade
171
com a stima maior, criando uma reminiscncia tonal, que logo esmaecida pelos
contornos vagos da melodia, apresentando assim o sincretismo prprio do ps-moderno. De
acordo com Kaminsky, o que ocorre hoje, porm, uma intensificao das identidades
sincrticas, geradas pelas migraes internacionais, e que refletem/so refletidas nas
produes artsticas. (Kaminsky, 2002, p. 190191)
Como pudemos notar, o universo pessoal de Gilberto Mendes permeia toda sua produo.
Ele navega entre estilos, tendncias e influncias musicais sob o signo da liberdade
criadora, com o ecletismo inerente ao ps-moderno.
Concluso
Atualmente o compositor, carregado de informaes tanto no campo das artes como na
cincia, traz consigo um passado cultural bem mais amplo que em perodos anteriores, com
a possibilidade de realizar metalinguagens usando todo material cultural disposio.
Gilberto Mendes abarca um grande variedade de gneros musicais e suas preocupaes
poticas no se encerram nas obras, mas sim nutrem outros procedimentos de criaes
posteriores.
O estudo sobre as possveis interfaces da ps-modernidade no idiomtico de Gilberto
Mendes, no perodo de 1982 1995, nos leva a concluir ser este um perodo onde impera a
qumica de linguagens mltiplas e a mistura de protocolos, numa fuso de horizontes
musicais peculiar do ps-moderno.
O compositor encara o sistema atonal como uma expanso do sistema tonal e suas obras
revelam seu singular imaginrio musical, que vai desde as lembranas fugazes de Vento
Noroeste at a corte imperial japonesa, presente na Abertura da pera Issa, atravs da
escala Ritsu do Gagaku. Neste sentido, demonstra outra faceta ps-moderna, a expresso da
individualidade do compositor, com cunho quase autobiogrfico.
Nesta fase Gilberto Mendes prezou o ecletismo de sua paisagem sonora, exercendo seu
mister com simplicidade atravs da parcimnia na utilizao de materiais, com tcnicas de
citaes que produzem, paradoxalmente, uma obra complexa e sofisticada. Suas obras deste
perodo parecem imbudas da propriedade de serem captadas de modo direto pelo ouvinte,
remetendo caracterstica ps-moderna da feitura de uma arte que possa ser assimilada
tranqilamente pelo pblico, sem a necessidade de bulas ou teorizaes estreis.
O objetivo de assinalar aspectos ps-modernistas na obra de Gilberto Mendes trazer este
repertrio respectivo para perto dos intrpretes e estudiosos, pois ele ainda pouco
divulgado aqui no Brasil, valendo notar que esta sua produo recente assaz executada na
Europa. Desta forma, esta pesquisa pretende incrementar as execues deste repertrio psmoderno de Gilberto Mendes em seu pas natal.
Devido a to exguo espao, o assunto no se esgota neste leve debruar-se sobre ele,
restando vasto campo para ser abordado. O que aqui resta comprovado a inegvel relao
de Gilberto Mendes com os modos ps-modernos, e a extraordinria fora expressiva que
consegue desta condio extrair, enriquecendo de maneira mpar a msica erudita.
172
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Rita de Cssia Domingues dos Santos Mestre em Musicologia pela ECA - USP. Em
2004 terminou a ps-graduao lato sensu: Capacitao Docente em Msica
Brasileira na Universidade Anhembi-Morumbi. Graduada em Composio e
Regncia pela UNESP e em Educao Artstica pela FASM. Participou do III Frum
de Pesquisa Cientfica em Arte EMBAP com o trabalho Carta de Mrio de
Andrade a Camargo Guarnieri: um estudo sobre Inferncia. Em 1989 obteve o 3
Lugar com a composio Retrato ntimo no V Concurso Nacional Ritmo e Som da
UNESP. Em 1997 teve seu arranjo coral Divertimento executado na Fundao
Memorial da Amrica Latina, pelo Coral Amigos do Mundo e Camerata Ikeda.
Regeu coros da graduao da UNESP (campus Araraquara) e do departamento de
Msica da USP (campus Ribeiro Preto), dentre outros. Atualmente professora de
educao musical no Colgio Benjamin Constant e pesquisa as interfaces do psmoderno com a msica .
Introduo
Os anos iniciais da escola brasileira esto normalmente a cargo de professores generalistas.
Tais professores so aqueles que atuam na escola com todas as reas do conhecimento,
tanto na Educao Infantil quanto nas Sries Iniciais do Ensino Fundamental (1 a 4 srie).
Em alguns sistemas educacionais, normalmente os privados, h professores especialistas
para certas reas do conhecimento, como por exemplo, educao fsica, lnguas estrangeiras
e artes.
A presena de professores especialistas nos anos iniciais da escola de certa forma altera o
princpio norteador da educao neste perodo escolar, pois o que se espera que um
professor seja responsvel pela introduo de conhecimentos diversos atravs de uma
perspectiva integrada. Esta integrao se justifica do ponto de vista psicolgico, e um nico
professor durante os anos iniciais mais adequado para a criana desta faixa etria. Alm
da questo psicolgica, um nico professor atuando com todas as reas do conhecimento de
forma introdutria, uma alternativa que pode evitar a fragmentao do currculo.
Os professores especialistas em diferentes reas certamente podem contribuir para um
ensino de qualidade nos anos iniciais. Mas o professor generalista deveria compreender o
papel de todas as reas do conhecimento que esto presentes na Educao Infantil e nas
Sries Iniciais do Ensino Fundamental, e, de alguma forma, contribuir para o
desenvolvimento destas reas ao longo de seu trabalho didtico-pedaggico.
A rea de artes tem sido tratada de maneira insatisfatria nos anos iniciais da escola
brasileira por diversas razes. Uma delas est diretamente relacionada quantidade e
qualidade da formao artstica oferecida nos cursos que preparam professores para os anos
iniciais da escola. Tal formao tem contribudo para que se perpetue a idia de que as artes
s podem ser realizadas por alguns indivduos dotados de talentos especiais. Esta forma de
pensar sobre as artes est muito arraigada no contexto escolar inibindo a realizao de
trabalhos que envolvam artes de maneira consistente.
Especificamente sobre msica, a formao oferecida em cursos de pedagogia que preparam
professores para os anos iniciais da escola, tem sido precria (Figueiredo, 2003). O
resultado desta formao (ou falta de formao) est refletido na ausncia significativa de
propostas de educao musical para os anos iniciais da escola, gerando uma lacuna na
175
experincia escolar que oferecida para as crianas nesta faixa etria. Quando h
professores especialistas nos anos iniciais atuando na rea de msica, refora-se a idia de
que msica no para todos, e o professor generalista parece no ser capaz de lidar com
atividades musicais em sua prtica escolar.
Ser possvel oferecer uma formao musical durante os cursos de pedagogia de modo que
o professor que atuar nos anos iniciais da escola seja capaz de lidar com aspectos
educativo-musicais em sua prtica docente? Este texto apresenta uma discusso acerca
deste assunto, procurando demonstrar que possvel aprimorar a formao musical de
professores generalistas de modo que tais professores possam contribuir para o
desenvolvimento musical das crianas nos anos iniciais da escola.
Formao musical de professores generalistas
Em pesquisa realizada em 19 instituies brasileiras que oferecem cursos de pedagogia com
habilitaes em Educao Infantil e/ou Sries Iniciais, observou-se a precariedade da
formao musical oferecida na maioria das instituies participantes (Figueiredo, 2003,
2004a). De um modo geral, a msica faz parte de uma disciplina que trata das artes de
maneira plural e polivalente.
A polivalncia para as artes, instituda em 1971, demonstrou resultados insatisfatrios ao
longo de 25 anos, perodo de vigncia da lei 5692/71 que regulamentou esta matria at
1996. A proposta da disciplina Educao Artstica envolvendo Artes Cnicas, Artes
Plsticas, Desenho Geomtrico e Msica, pretendia que um nico professor desenvolvesse
todas as reas artsticas. Alm da inviabilidade de uma prtica consistente em todas as reas
em funo da formao superficial que era oferecida em cursos de licenciatura em
Educao Artstica, a prtica desta disciplina na escola sempre esteve num plano bastante
secundrio em termos curriculares.
Muitas universidades e faculdades que ofereciam cursos de licenciatura em Educao
Artstica optaram pela formao especfica em uma nica linguagem artstica desde o incio
do curso, modificando completamente a proposta da polivalncia. Por exemplo, os
currculos dos cursos de licenciatura em Educao Artstica da UDESC Universidade do
Estado de Santa Catarina formou professores para cada rea especfica desde 1984,
considerando a inviabilidade da formao polivalente.
Apesar das crticas polivalncia (Barbosa, 2001, 2005, Figueiredo, 1999, 2000;
Hentshcke, 1993; Hentschke e Oliveira, 1999; Oliveira, 2000a, 2000b; Tacuchian, 1992;
Tourinho, 1993), diversos cursos de pedagogia ainda sustentam tal prtica em seus
currculos que preparam professores para as sries iniciais. Parece haver uma certa
confuso entre a formao e a prtica do professor generalista. Tal professor atuar de
forma integrada com as diversas reas do conhecimento escolar, mas isto no quer dizer
que a formao deste professor seja feita em uma nica disciplina. No currculo dos cursos
de pedagogia existem especificidades como Matemtica, Lngua Portuguesa, Histria,
dentre outras, que so tratadas de maneira especfica durante o curso. O entendimento de
que Arte pode ser considerada uma atividade nica e, portanto, pode ser ministrada em uma
nica disciplina por um nico professor, reflexo da prtica da Educao Artstica que
difundiu a polivalncia como estratgia de ensino de todas as linguagens artsticas por um
profissional que deveria dominar todas as reas de artes.
176
177
perspectiva utilitria, as artes carregam uma certa dose de inutilidade, o que justifica sua
posio secundria nos projetos curriculares em geral.
4) As artes servem para deixar tudo mais bonito e agradvel na escola. Nesta concepo as
artes ocupam um papel coadjuvante, sugerindo que sua presena na escola deve sempre
estar ligada a algo mais significativo. As artes so utilizadas para entreter, auxiliar na
aprendizagem de outros contedos e para relaxar as crianas, oferecendo perodos de
descanso entre as atividades srias do currculo.
5) Este modelo de ensino de artes o que vem sendo utilizado por muitos cursos de
pedagogia ao longo da histria. A repetio de modelos anteriores sem reflexo tem sido
uma opo de vrios cursos de pedagogia que formam professores generalistas. Ao mesmo
tempo faltam propostas concretas para o estabelecimento de novas perspectivas para as
artes nos cursos de pedagogia.
As cinco razes apresentadas para a falta de uma formao musical mais significativa em
msica e em artes em geral nos cursos de pedagogia ilustram situaes decorrentes de
prticas sem a devida reflexo. O discurso da formao integral da criana diferente da
prtica curricular que privilegia algumas reas em detrimento de outras. A falta de
discusso sobre a formao musical e artstica nos cursos de pedagogia tambm reflete uma
hierarquia curricular que vem sendo praticada, colocando as artes em uma situao
irrelevante na formao dos indivduos.
Um aspecto importante para ser discutido a falta de propostas diferenciadas para esta
formao musical. H cursos que mantm certas prticas em termos de formao musical
porque desconhecem outras propostas possveis. Neste sentido, o que parece ser importante
a reviso de conceitos sobre msica, ensino de msica, e msica na formao escolar.
Para o senso comum, fazer msica tocar instrumentos musicais, e para tanto, preciso ter
talentos especiais, preciso ser muito musical. Ignora-se o fato de que todas as pessoas se
relacionam com a msica de sua cultura e, nesta perspectiva, no existem indivduos no
musicais. Como afirma Hodges (1999), todas as pessoas possuem algum grau de
musicalidade, porque todos os indivduos respondem de alguma forma msica de sua
cultura (p. 30). Alm disso, h diversas maneiras de lidar com msica alm de tocar um
instrumento musical, assim como, possvel realizar atividades musicais bastante simples,
acessveis a todas as pessoas.
Uma proposta de msica para a formao de pedagogos deve rever, em primeiro lugar, a
viso de que msica deve sempre servir para algo que est fora dela, como, por exemplo,
ajudar na fixao de datas, nmeros, ou outros contedos. Msica serve tambm para
auxiliar na realizao de outras tarefas, mas a formao musical deveria ir alm desta
nfase nos valores extrnsecos msica (Temmerman, 1991). A prpria discusso sobre os
significados e as funes da msica na sociedade poderia ser um dos componentes a serem
includos na formao musical de professores generalistas. Merriam (1964) uma
referncia importante para a discusso deste tpico.
A partir da pesquisa realizada (Figueiredo, 2003) constatou-se uma certa fragilidade nas
concepes sobre msica no currculo dos cursos de pedagogia. Tal fragilidade inclua um
grau elevado de superficialidade nas propostas curriculares, oferecendo para os alunos
algumas atividades prontas, espcies de receitas, para serem utilizadas em momentos
especficos na escola (por exemplo, ensinar msica para datas comemorativas). O que se
178
179
A partir destes autores mencionados possvel considerar que a atividade musical deveria
estar conectada com outras compreenses para fazer sentido no contexto educacional. Todo
programa de msica deveria levar em considerao questes essenciais que pudessem
nortear as escolhas e as reflexes do professor. A Fig. 1 apresenta um esquema que inclui
algumas questes essenciais que poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento de
programas de educao musical para professores generalistas.
O qu?
Quando?
Por qu?
MSICA
Como?
Onde?
180
dentro e fora da escola; o professor pode ser um estimulador desta constatao da msica
em diversos contextos, o que tambm poderia ser um estmulo para buscar diversos tipos de
msica, alm de ampliar o contato com msicos e experincias musicais diversas. Quando a
educao musical deve ser includa e de que forma ela poderia respeitar os diversos
aspectos do desenvolvimento da criana tambm deve ser um elemento de reflexo e estudo
do professor.
As questes essenciais apresentadas na Fig. 1 conduzem naturalmente a uma sntese de
componentes que poderiam ser considerados fundamentais na construo de uma estrutura
conceitual atravs da incluso de reas distintas do conhecimento que se somam para
atribuir sentido mais amplo experincia musical na escola. Os componentes desta
estrutura conceitual derivam das questes essenciais. A Fig. 2 apresenta estes componentes.
Durante a formao oferecida nos cursos de pedagogia so oferecidas diversas disciplinas
que se referem aos assuntos aqui propostos. No curso de pedagogia se estuda filosofia da
educao, psicologia, sociologia, didtica, e outras disciplinas cuja funo preparar o
futuro professor como um indivduo que compreende sua atividade profissional num
universo muito amplo. Os componentes propostos na estrutura conceitual apresentada na
Fig. 2 poderiam ser discutidos em diversas disciplinas do curso de pedagogia. Compreender
a importncia da msica no uma questo apenas da aula de msica; entender e refletir
sobre a presena da msica na sociedade tambm um assunto que no pertence
exclusivamente rea de msica; aprimorar o conhecimento sobre a criana e seu
desenvolvimento escolar obviamente tambm inclui questes de msica, e assim por diante.
possvel estabelecer diversas conexes entre as reas que esto sendo estudadas pelo
futuro pedagogo, e a msica deve ser parte desta reflexo.
Aplicando a estrutura conceitual para estudantes de pedagogia
Um curso de msica com 16 horas de durao foi oferecido para estudantes de um curso de
pedagogia com o intuito de desenvolver uma experincia musical baseada nas propostas
contidas na estrutura conceitual apresentada anteriormente. Os participantes do curso
(n=51) faziam parte de 3 classes diferentes de um curso de pedagogia.
O desenho metodolgico escolhido foi a pesquisa-ao. O curso foi ministrado pelo
pesquisador que, ao mesmo tempo, desenvolvia as propostas do contedo definido para o
trabalho e coletava dados para serem analisados posteriormente. Alm destes dados
coletados ao longo do curso, outros dados foram extrados das respostas dos alunos a dois
questionrios: um no incio e outro no final do curso. O questionrio inicial solicitava
informaes gerais sobre: a) a formao musical de cada participante; b) a importncia que
eles atribuam msica nos anos iniciais da escola; c) o nvel de segurana que eles tinham
para trabalhar com elementos musicais na escola; e d) as expectativas que os participantes
tinham com relao ao curso de msica oferecido. O questionrio final solicitava aos
participantes que relatassem suas impresses sobre as experincias musicais realizadas ao
longo do curso e seu grau de segurana para utilizar msica em suas prticas escolares.
181
Componentes
musicais
Componentes
filosficos
Componentes
pedaggicos
Componentes
psicolgicos
Componentes
sociolgicos
182
183
A formao continuada em msica foi uma opo apresentada por diversos participantes,
que entendem que a universidade no pode dar conta da formao completa. O professor
em suas atividades de formao continuada deveria participar tambm de cursos de msica
que pudessem ampliar cada vez mais seus conhecimentos nesta rea.
O curso de msica oferecido, apesar de ser breve, foi avaliado muito positivamente pela
maioria dos participantes, enfatizando que os diferentes componentes do trabalho realizado
propiciaram reflexes importantes sobre diversos aspectos relacionados educao
musical. Nas palavras de uma das participantes, at a parte terica do curso foi
importante. Alguns participantes reconheceram que comearam o curso esperando
algumas receitas prticas sobre como trabalhar com msica na escola, mas
compreenderam que necessrio mais do que um conjunto de canes para serem repetidas
nas datas comemorativas da escola para que seja estimulado um real desenvolvimento
musical das crianas.
Consideraes finais
Os resultados do curso foram considerados positivos pelos participantes, o que pode ser
visto como um estmulo para a continuidade de trabalhos desta natureza. O curso, apesar de
ser curto, propiciou reflexes importantes de acordo com os depoimentos de diversos
participantes.
A conexo entre a msica e diversas outras reas do conhecimento propiciou conexes que
fizeram sentido para muitos dos participantes. A compreenso sobre msica foi ampliada
em vrias direes, demonstrando a eficcia da estrutura conceitual utilizada para a
construo do curso de msica oferecido. Evidentemente, a mesma estrutura deve ser
aplicada em outros contextos e situaes, para que possa confirmar aspectos resultantes
desta primeira experincia, assim como verificar outros elementos que podem ser aplicados
a esta estrutura.
Os cursos de pedagogia que formam professores para os anos iniciais da escola poderiam
rever a qualidade da formao musical oferecida, contribuindo efetivamente para a
formao musical dos futuros professores. O professor egresso do curso de pedagogia um
multiplicador, pois vrias crianas estaro sob a responsabilidade deste profissional durante
alguns anos da escola.
importante que se compreenda a importncia da educao musical como elemento
fundamental na formao dos educadores dos anos iniciais. So estes educadores que
estabelecero as bases para o desenvolvimento da criana na escola, e a compreenso da
msica e suas funes na sociedade imprescindvel para que esta rea do conhecimento
seja tratada de maneira mais significativa no contexto escolar.
O professor dos anos iniciais no ser um substituto do professor especialista em msica.
Ao contrrio, quando mais professores e profissionais da educao em geral tiverem
conscincia da importncia da msica na escola, maiores sero as chances de se conquistar
um espao mais digno e mais nobre para a educao musical escolar.
184
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Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo Bacharel em Composio e Regncia pela
FAAM, SP, Mestre em Educao Musical pela UFRGS, RS, e Doutor (Ph D) pelo
Royal Melbourne Institute of Technology (RMIT University), Melbourne, Austrlia.
Atuou como professor de diversas reas na Faculdade de Artes Alcntara Machado,
SP, e atualmente professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC,
em Florianpolis. Suas reas de pesquisa incluem educao musical, especialmente
formao inicial e continuada de professores, e regncia e prtica coral. Possui
diversos artigos publicados em peridicos nacionais e internacionais. Foi Diretor
Regional da ABEM Sul Associao Brasileira de Educao Musical, e atualmente
representante adjunto da Amrica Latina na ISME RESEARCH COMMISSION
(International Society for Music Education), e no Comparative Music Education
Group CME.
A eficcia da cano
Consideraes preliminares.
Quando a me brinca com seu filho cantando pirulito que bate, bate..., ou quando a
mesma criana adormece ouvindo Nana nenm..., ela no s est criando uma relao
afetiva com o beb, como tambm no est s iniciando-o na sua futura relao com a
msica. Ela transfere uma significativa quantidade de informao musicolgica, acumulada
em sculos de intercmbio histrico e cultural, e que mais adiante vir a ser utilizada na
construo de referenciais de identidade, grupo social, nao, povo, etc.1
Acalantos e cantigas de roda tm sua origem na miscigenao dos povos latino-americanos.
Isso se levando ainda a forte influncia da colonizao ibrica.2 Lydio R. Silva (1961)3
distingue trs pontos principais de influncia na formao da msica no Brasil: a inegvel
presena europia representada pela msica portuguesa e espanhola, os ritmos e sons
negros trazidos pelos escravos, e o aporte amerndio.4 Esta mistura permeia as diferentes
camadas da estratificada sociedade colonial do novo mundo, especialmente em seus
desdobramentos musicais, na msica folclrica. Alm disso, algumas melodias, comuns no
Brasil, podem ser encontradas tambm em outros lugares do mundo, e um recorte
embasado nas concepes de Silva,5 deve ser utilizado com o suficiente cuidado para
evitarem-se complicaes conceituais.
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclrico Infantil: Um pouco mais do que j
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. pp. 527.
2
Ibidem, p. 11.
3
Msico e compositor, arte-educador, musico terapeuta e curitibano, Lydio Roberto Silva mestre
em Psicologia Organizacional pela UFSC e especialista em fundamentos estticos da arte-educao e
especialista em educao especial. Atualmente professor da Faculdades de Artes do Paran (FAP)
4
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclrico Infantil: Um pouco mais do que j
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 10.
5
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclrico Infantil: Um pouco mais do que j
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 11.
187
A msica para crianas no Brasil, ento, faz parte desse universo folclrico ao qual
Fontoura e Silva fazem referncia. Elas apresentam como caracterstica principal a
perpetuao pela tradio oral de um povo, transmitidas de gerao em gerao (Silva,
2001, p. 11). Cabe destacar tambm a relao de predomnio da melodia sobre o texto, que
por sua vez, mostra-se, s vezes, incoerente. Silva explica este fenmeno afirmando que
originalmente a cano teve um sentido, mas com o tempo este se foi perdendo: Na
medida em que tivermos a origem completa e exata do fato, o mesmo deixar de ser
folclrico (Silva, 2001, p. 13). Tentar compreender o significado dela modificaria sua
condio de msica folclrica.
Cantigas e acalantos
O brinquedo, a brincadeira, so parte fundamental do desenvolvimento das habilidades
necessrias para a subsistncia. A brincadeira exerce um papel educador de diferentes
fatores requeridos para a convivncia social, e desta maneira, o indivduo toma conscincia
de suas funes dentro da sociedade, desenvolve sua sociabilidade, sua motricidade, etc.6
As cantigas de roda no escapam a esse processo.
Silva, no segundo captulo do seu livro Cancioneiro Folclrico Infantil, cita a tese do
escritor Loureno Chacon Jurado Filho, que destaca a funo social da cantiga de roda, que
nem sempre foi a mesma. Silva repara na evoluo da brincadeira ao longo do tempo e
como e por quem ela foi praticada. Inicialmente e at o incio do sculo XX, uma atividade
realizada por adultos, jovens e, por imitao, pelas crianas, a brincadeira de roda passa
ento a ser cada vez menos valorizada, devido aos progressivos avanos tecnolgicos e as
mudanas de viso de uma nova sociedade,7 ficando reduzida finalmente s ao mbito
infantil.
A brincadeira de roda sempre foi um dos principais meios de socializao. Nela encontra-se
o divertimento, a representao dos papeis sociais, coreografias que despertam a
motricidade e o apresentam a importncia do trabalho em conjunto, o pretexto para se
iniciar no jogo amoroso, etc. Atualmente a brincadeira de roda utilizada nas escolas com a
finalidade de criar hbitos nas crianas e tendo seus textos modificados, fato que vem a
reafirmar a mobilidade temtica que a msica folclrica apresenta.8
Brincadeiras de roda so danas. O ldico se sobrepe ao estritamente musical, que o foco
principal dessa comunicao. J os acalantos tm outra funo. Eles procuram deixar a
criana relaxada para poder dormir, mas igualmente revelam uma predominncia meldica
sobre a textual.
O modelo de Luiz Tatit
Para realizar-se a anlise de cantigas de roda e acalantos escolheu-se o modelo semitico de
Luiz Tatit (1951).9 O autor elabora uma gramtica lingstica aplicada msica popular
6
Ibidem, p. 17.
Ibidem, p. 18.
8
Ibidem, p. 18.
9
Luiz Tatit Professor do Departamento de Lingstica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade e So Paulo. Tem desenvolvido seu trabalho na Semitica da Cano.
7
188
brasileira. Dita gramtica visa a estabelecer a relao existente entre melodia, harmonia e
texto dentro da cano. Esse modelo foi escolhido segundo sua aplicabilidade decorrente da
semelhana entre a msica folclrica e a msica popular urbana, na sua realidade
estrutural10.
Um fator importante para compreender o modelo de Tatit, o vnculo constante que ele
estabelece entre fala coloquial e canto, que segundo o autor, o aspecto principal de toda a
cano popular, quando depreende sua origem da fala cotidiana11.
O modelo de Tatit baseia-se nos postulados do semioticista francs Algirdas Julien Greimas
(19171992). Para uma melhor compreenso desse modelo, conveniente buscar entender,
ao menos em linhas gerais, o que se conhece como Quadrado de Greimas, que explica as
relaes entre dois termos. Consiste na representao visual da articulao lgica de uma
categoria semntica.12 Pode-se situar o quadrado semitico de Greimas na semntica
fundamental,13 que o comeo tambm do processo gerativo, entendido como o percurso
de produo do objeto semitico, neste caso a cantiga e a cano de ninar, desde um
ponto complexo at um ponto simples:14
s1
s2
s2
s1
Fig. 1 Quadrado de Greimas
Publicou at a data, sempre sobre semitica, suas duas teses e cinco livros. Em 1986 A Cano:
Eficcia e Encanto (Ed. Atual), em 1994 Semitica da Cano: Melodia e Letra (Ed. Escuta), em
1996 O Cancionista: Composio de Canes no Brasil (Edusp), em 1997 Musicando a Semitica:
Ensaios (Ed. Anna Blume) e em 2001 Anlise Semitica Atravs das Letras (Ateli Editorial),
alm de numerosos artigos no Brasil e no exterior.
10
importante sinalar que s na sua parte estrutural pois as caractersticas de gnero fazem delas
dois formas diferentes.
11
Tatit, Luiz. O Cancionista, composio de canes no Brasil. So Paulo. Udesp. 1996. p. 12.
12
Fidalgo, Antnio. O Quadrado Semitico de Greimas. Disponvel em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
13
A semntica fundamental estuda as estruturas elementares da significao e cobre conjuntamente
com a sintaxe fundamental o estudo das estruturas designadas pelos conceitos de lngua (Saussure) e
de competncia (Chomsky); Fidalgo, Antnio. Disponvel em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06
de abril de 2005.
14
Fidalgo, Antnio. O Quadrado Semitico de Greimas. Disponvel em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
189
juntos. A afirmao de s1 vem logo, obtendo-se s2. O processo repetido agora com s2
com relao s1, como representa o grfico (Fig. 1).15
As relaes que vo se estabelecer como conseqncia deste processo podem ser
denominadas de relao de contradio (linhas bidirecionais contnuas); relao de
contrariedade (linhas bidirecionais segmentadas) e; relao de complementaridade (linhas
unidirecionais), tal como mostra o grfico (Fig. 2.).16
s1
s2
s2
s1
Fig. 2
Tatit adverte que desta relao do processo gerativo do objeto lingstico, vai surgir um
termo complexo (S), que vem a determinar que s1 s far parte da complexidade S
encontrando um equilbrio em s2, sem que o grau de importncia, ou melhor, de
dominncia, afete este processo, como explica o grfico18 (Fig. 3.)
s1
s2
Fig. 3
15
O modelo foi extrado de: Tatit, Luiz. Anlise semitica atravs das letras. So Paulo. Ateli
Editorial, 2001, p. 23.
16
O modelo foi extrado de: Fidalgo, Antnio. O Quadrado Semitico de Greimas. Disponvel em:
http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005.
17
Fidalgo, Antnio. O Quadrado Semitico de Greimas. Disponvel em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
18
Tatit, Luiz. Anlise semitica atravs das letras. So Paulo. Ateli Editorial, 2001, p. 24.
190
Tatit explica de uma maneira bastante didtica como se articula o processo gerativo do
nosso objeto semitico cano por parte do cancionista,19 alm de introduzir ao leitor na
compreenso global dos mecanismos que nele participam.
Partindo da primeira escuta, sem prestar ateno nos detalhes e sim no conjunto, aquela
escuta leiga na teoria musical e na semitica, o ouvinte consegue reconhecer alguns
elementos. Ele comea cantarolar uma melodia e com isso pode identificar uma cano.
Tatit faz o leitor reparar neste detalhe. Esse o ponto inicial do estudo das correlaes
numa cano. Para ele, todas as designaes de gnero denotam a compreenso global de
uma gramtica (Tatit, 1997, p. 101), ou seja, que o ouvinte consegue juntar elementos
sonoros com outros e reconhecer o contexto onde eles funcionam de uma determinada
forma. O ouvinte, ento, tem consigo um background de dados incorporados na forma
como ele escuta a msica. Mesmo fazendo generalizaes misturando, s vezes, estilos
que so prximos, como pagode e samba consegue identificar um paradigma. Este
processo denominado pelo autor como apreciao emprica.
Os mecanismos de reiterao, ou seja, aqueles que se fazem freqentes num discurso
musical, operam tambm como outro mecanismo de apreciao emprica. As reiteraes
so, nas palavras do autor de A Cano: eficcia e encanto, um mecanismo de gramtica
meldica que atinge principalmente a memria, ou seja, facilita a reteno de elementos,
frases, clulas, motivos, palavras, etc., e para as possibilidades de prever o que a msica, na
sua temporalidade, pede. A memorizao de refres e estribilhos das canes entra neste
parmetro de entendimento, sendo tambm uma forma de apreciao emprica. A
reiterao torna significativo o fluxo inexorvel do tempo. Basta um ligeiro apuro musical
do ouvido para se depreender reiteraes (Tatit, 1997, p.101).
Um outro aspecto o reconhecimento das relaes tonais do discurso musical. A percepo
de que uma seo de msica mais ou menos tensa no contexto tonal, no tem direta
relao com a teoria que estamos tratando. Esta percepo tem a ver com uma determinada
forma de escuta e, at, com fatores fsicos.
O elemento meldico e o narrativo, vo tendo igual importncia na estrutura analtica
levantada, mesmo que a narrativa seja menos explcita. A fala vem cobrando importncia
no processo discursivo, assim como as rtmicas impostas pelas consoantes e pela
acentuao voclica imprimem um sentido narrativo cano e s vogais, mais ou menos
esticadas, o que nos leva pelo caminho da paixo e do sentimental. A mistura destes
elementos, mais a interpretao (timbre) do discurso definem o estilo e gnero da cano.
Podemos definir estes elementos como entoao.
Na primeira parte do seu livro O Cancionista,20 o autor diz que a juno do fator meldico
e do fator textual fica evidente em trs elementos que, tanto se separam, aparecendo
praticamente isolados numa cano, como se misturam, situao mais comum, para dar
maior fora entoativa. Entramos aqui no mbito das categorias persuasivas. Essa
reiterao, que foi mencionada em pargrafos anteriores manifestando-se como uma grande
unidade textual, agora pode ser vista em fragmentos menores.
19
O cancionista quem cria e/ou canta uma cano. Na obra homnima ao conceito, Tatit sobrepe a
figura do compositor do cantor, mesmo outorgando mrito a este ltimo.
20
Tatit, Luiz. O Cancionista, composio de canes no Brasil. So Paulo. Udesp. 1996.
191
21
Tatit entende a tenso como os pontos mais importantes do discurso cano. Eles so os que
determinaro o carter da mesma.
22
Ibidem. p. 103.
23
Ibidem. pp. 117127.
192
aaai
aaai
iiiii
diiii
nha
aaia
iiiii
iiiiii
dos
Si
Sib
Va
ci
ran
mos
Ab
Semitons diatnicos.
to
Gb
F
AA
da,
Fundamental.
Eb
D
Db
C
AA
Fig. 4
Primeiro Exemplo Iai
193
oscilatrio suave por intervalos de segundas e teras, as vezes lento, as vezes um pouco
mais rpido, e descansando em estiramentos das vogais na metade e no final da msica
(Fig. 5 e 6). O texto, de carter alegre, porm sereno, complementa esta movimentao da
melodia criando um clima de introspeco e com uma alta carrega emotiva.
Parte 1
so
as
I,
que
das
flo
lin
Da
pri
8a
res
ma
ve
ra!
Ia
Fig. 5
194
che
co
mi
go
ra
ve
vem
Ia
I,
Pa
ra
dan
fes
ar
ma
te
jar
pri
Fig. 6
Nas duas partes nas que possvel dividir a msica, evidente passionalizao no discurso
representado nas prolongaes das vogais, no nome da personagem Iai e no final do
acalanto. O fato que seja o nome onde se produze esta tenso reafirma a idia de dilogo.
Esta representao simulada fica de manifesto em frases como ... comigo vem... ou na
mesma invocao do nome.
b) O trem de ferro
O trem de ferro,
Quando sai de Pernambuco,
Vai fazendo fuco-fuco,
At chegar no Cear.
Rebola, bola,
Voc diz que d, que d,
Voc diz que da na bola,
Na bola voc no d.
Rebola o pai,
Rebola a me, rebola a filha,
gou
195
ro,
Quan
do
sai
de
de
bu
trem
co,
Per
nam
Segundos versos
R.
Vai
fa
Zen
do
fu
co,_A
che
gar
fu
ce
co
25
Ibidem. p. 82.
no
196
Pela marcada presena do ritmo que no pra e que sempre leva ao ouvinte dentro de um
trem imaginrio, complicado fazer uma diviso das partes desta msica. A separao
dos dois primeiros versos dos segundos responde s a uma questo de organizao.
Desta maneira, A oscilao apresenta-se s como um recurso cadencial harmnico sem que
o movimento nunca seja maior a uma tera maior. A insistncia na fundamental e o
deslocamento stima maior, cria, com o mnimo esforo a tenso. A passionalizao est
ausente neste exemplo.
Entender a estrutura lingstica do gnero da msica infantil, vem a ser um importante
avano na compreenso de como recebida a mensagem cano por parte da criana, no
seu papel de receptor. A interao que esta criana ter com a cantiga tem direta relao
com o valor simblico que esta tem, o que significa ou pode chegar a significar para ela,
sob a premissa de entender a cano como fala.
O natural desdobramento de uma pesquisa em semitica aplicada implica aprofundar os
estudos anteriores na elaborao de estruturas que suportem a complexa relao existente
entre texto e msica (entendidas como elemento comunicador), seu emissor e finalmente o
seu receptor. Porm, possvel dizer que existem alguns padres recorrentes, e estes
padres dizem respeito a determinados estilos. Nos textos das cantigas e acalantos
encontra-se a tendncia ao privilgio da representao (figurativizao enunciativa). A
presena do dilogo e da histria contada por um terceiro refora este aspecto,
provavelmente pela sua empatia com a criana e pela fcil assimilao das idias principais
por parte da mesma.
Referncias bibliogrficas
FIDALGO, Antnio. O Quadrado Semitico
http://ubista.ubi.pt/.Acessado em 06 de abril de 2005.
de
G r e i m a s . Disponvel em:
TATIT, Luiz. Anlise semitica atravs das letras. So Paulo. Ateli Editorial, 2001.
TATIT, Luiz. Musicando a Semitica. So Paulo. Annablume, 1997.
TATIT, Luiz. A Cano: Eficcia e Encanto. 1 ed. So Paulo. Atual, 1986.
TATIT, Luiz. O Cancionista, composio de canes no Brasil. So Paulo. Udesp. 1996.
FONTOURA, Mara; SILVA, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclrico Infantil: Um pouco mais do que
j foi dito. Curitiba. Cancioneiro, 2001.
Carlos Gustavo Gonzlez Gonzlez, chileno residente no Brasil, formando do curso
de Educao Musical Licenciatura, da Universidade Federal do Paran, UFPR.
Estudou Teoria Musical e Violo Popular no Conservatrio de Msica Popular
Brasileira de Curitiba, com os professores Christiane Rodrigues e Cludio Menandro
respectivamente. At a data, no tem trabalhos publicados.
Histrico da AIDS
Em 1984, foi encontrado um retrovrus, considerado como o agente etiolgico de uma
doena que j havia infectado pessoas pelo mundo e que posteriormente seria designada
como Aids. Dois grupos de cientistas reclamaram ter sido o primeiro a descobri-lo, um do
Instituto Pasteur de Paris, chefiado pelo Dr. Luc Montangnier e o outro dos Estados Unidos,
chefiado pelo Dr. Robert Gallo. O fato que uma das pesquisadoras do Instituto Pasteur de
Paris, Franoise Barre-Sinoussi, conseguiu cultivar um retrovrus em laboratrio e enviou o
material para o laboratrio de Robert Gallo, para que este confirmasse o seu achado, por se
tratar de um eminente cientista. Com base neste material, Gallo divulgou a descoberta como
se fosse sua, vindo a retratar-se somente no incio da dcada de 90. Gallo um importante
virologista, e j havia identificado outros dois retrovrus, o HTLV 1 e o HTLV 2 (Human
T Leukemia-limphoma vrus type 1 and 2) e, por isso, o agente etiolgico da AIDS foi
inicialmente conhecido, nos Estados Unidos, como HTLV 3. Na Frana, ele foi
reconhecido como LAV, associado a linfadenopatia. Depois das disputas da comunidade
cientfica serem devidamente esclarecidas, chegou-se ao consenso de denomina-lo HIV, ou,
em portugus, vrus da imunodeficincia humana.
Em 1986, foi aprovada pelo rgo norte-americano de controle sobre produtos farmacuticos FDA (Food and Drug Administration), a primeira droga antiviral, a
azidotimidina ou AZT. Este revelou um impacto discreto sobre a mortalidade geral de
pacientes infectados pelo HIV. Em 1994, um novo grupo de drogas para o tratamento da
infeco passou a ser estudado, os inibidores da protease. Estas drogas demonstraram
potente efeito antiviral isoladamente ou em associao com drogas do grupo do AZT (da a
denominao "coquetel"). Houve diminuio da mortalidade imediata, melhora dos
indicadores da imunidade e recuperao de infeces oportunistas. Ocorreu um estado de
euforia, chegando-se a falar na cura da AIDS. Entretanto, logo se percebeu que o
tratamento combinado (coquetel) no eliminava o vrus do organismo dos pacientes. Somese a isso tambm os custos elevados do tratamento, o grande nmero de comprimidos
tomados por dia e os efeitos colaterais dessas drogas. A despeito desses inconvenientes, o
coquetel reduziu de forma significativa a mortalidade de pacientes com AIDS.
198
Atualmente, na rea, h duas linhas principais de pesquisa: uma busca uma vacina eficaz,
visando imunizar os indivduos pertencentes a populaes sob risco; e outra visando buscar
drogas antivirais mais potentes e com menos efeitos colaterais, visando erradicar o vrus do
organismo de pacientes infectados. Os resultados com os antivirais tm sido melhores,
entretanto dificilmente a AIDS ser curada farmacologicamente. As esperanas depositamse no desenvolvimento de uma vacina eficaz. Infelizmente, at o momento no h relatos
promissores sobre vacinas.
Uma nova viso sobre a doena
Porm h alguns anos, alguns pesquisadores e mdicos comearam a questionar a idia de
que o HIV seria o responsvel pela transmisso da AIDS e possvel causador da morte de
pessoas infectadas por ele.
A definio original para a AIDS, consistia em um conjunto de 12 doenas: pneumonia por
Pneumocystis carinni , sarcoma de Kaposi, toxoplasmose, estrongiloidiase, citalomegavrus, herpes simples, leucoencefalopatia multifocal progressiva, aspergilose,
criptococose, candidase, criptosporidiose e linfoma cerebral. Em 1985, houve uma reviso
da definio da AIDS, sendo adicionada mais 7 doenas, as 12 iniciais: complexo de
Mycobacterium avium, histoplasmose, isosporase, linfoma de Burkitt, linfoma
imunoblstico, candidase dos brnquios, traquia e pulmes, alm de um teste positivo
para anticorpos do HIV.Em 1987, mais uma vez ocorre o aumento das doenas, para o
diagnstico da AIDS, so mais 6 doenas: encefalopatia, tuberculose por micobactria,
sndrome de definhamento, coccidioidomicose, retinite por CMV e septicemia por
salmonela. Em 1993, novamente h um acrscimo de mais 3 doenas: pneumonia
bacteriana por repetio, cncer cervical invasivo e tuberculose pulmonar.Foi acrescentado
tambm uma contagem de clulas T<200 ou <14% do total de linfcitos. Portanto, a uma
primeira estncia, podemos analisar que as definies para uma correta avaliao sobre
quem era portador do vrus HIV, foram sendo alteradas e acrescentadas novas doenas, para
abranger um maior nmero de pessoas. Um exemplo muito interessante que ocorre
quando h ou no a presena do HIV. Analisando que uma pessoa tem tuberculose. Se ela
tem s a tuberculose, ela considerada tuberculosa, porm se nela estiver presente o vrus
HIV, seu estado passa a ser como uma pessoa aidtica.
O HIV entra na definio de vrus como retrovrus citotxico, ou seja, no tem mecanismos
para atacar clulas. Durante a dcada de 60 e 70, ele foi meticulosamente estudado, pois os
cientistas achavam que ele poderia ser a causa do cncer. Um dos principais cientistas que
estava envolvido nessas pesquisas era Robert Gallo, o mesmo que em 23 de abril de 1994,
convocou a imprensa internacional, anunciando a descoberta da possvel causa da AIDS.
Ao anunciar a sua hiptese para o mundo, ele violou uma regra fundamental do processo
cientfico. Os pesquisadores precisam, antes de mais nada, publicar dados comprovando a
hiptese em revista mdica ou cientfica, documentando a pesquisa ou ensaios usados para
formul-la. Posteriormente, a hiptese analisada e discutida por outros peritos no assunto,
que tentam repetir os ensaios originais, para confirmar as idias. Robert Gallo ignorou todas
essas regras, e ainda foi acusado por Luc Montagnier de ter furtado sua amostra de HIV.
Gallo e Montagnier entraram em um acordo, no qual eles dividiriam os crditos pela
descoberta, como tambm os direitos sobre a patente do teste. Atualmente, Montagnier
afirma no acreditar que o HIV sozinho seja capaz de provocar a AIDS. O prprio Gallo
199
citou uma frase bem interessante, ele disse s vezes ns, virlogos temos um vrus em
busca de uma doena.
Os testes que so usados para a contagem de carga viral tambm so duvidosos. O
PCR(Polymerase Chain Reaction), tambm conhecido como teste de quantificao viral,
aparece com algumas controvrsias.O PCR detecta e multiplica genes isolados, no o vrus,
e mais freqentemente, fragmentos de genes.Quando detecta dois ou trs fragmentos de
vrus genticos de talvez uma dzia de genes completos, isto no uma prova de que todos
os genes, ou o genoma completo, esto presentes ou que uma partcula viral completa do
HIV esteja presente. Alm disso, uma pessoa pode trazer um genoma retroviral inteiro em
suas clulas por toda a vida, sem nunca produzir um nico vrus. Os testes que detectam o
HIV no corpo humano tem em seus kits escrito assim, Atualmente no existe um padro
reconhecido para estabelecer a presena ou ausncia de anticorpos do HIV-1 e do HIV-2 no
sangue humano, e sobre os testes de carga viral, No se destina a ser usada para triagem
ou como diagnstico para confirmar a presena de infeco por HIV. Alm disso, os testes
para deteco do HIV, apresentam 68 tipos diferentes de alterao, como: artrite
reumatide, gripe, hepatite, malria, clculos renais, vacina contra ttano, hemofilia, entre
outras. Ou seja, pessoas que tem algum desses 68 tipos de alterao, podem estar infectadas
e receberem o resultado negativo para a infeco, podendo tambm, acontecer o contrrio.
O pesquisador que criou o PCR, e que ganhou o prmio Nobel de qumica de 1993, Kary
Mullis, disse No sequer provvel, muito menos cientificamente provado, que o HIV
provoca a AIDS. Se existe alguma prova de que o HIV causa AIDS, deveriam existir
documentos cientficos que comprovem esse fato. No existem tais documentos.
Os cientistas at hoje, no conseguiram de maneira satisfatria, comprovar o ataque
fulminante do vrus HIV em clulas defesa. O HIV s consegue atacar as clulas, quando
utilizados elementos qumicos nas culturas onde ele est inserido. E mesmo assim, ataca um
nmero mnimo de clulas, que no poderiam afetar o sistema imunolgico a ponto de
causar danos a sade. Na medicina, existe um parmetro que se usa para identificar as
causas e de como essa doena se manifesta. Ele conhecido como os Postulados de Koch,
que foi formulado para estabelecer uma relao de uma bactria ou vrus com uma provvel
doena. So 4 postulados que se resumem em: o patgeno deve ser identificado em todos os
casos da doena; o patgeno deve ser isolado do hospedeiro e deve crescer em cultura pura;
o patgeno deve reproduzir a doena original quando inoculado em um hospedeiro
suscetvel. (capacidade para transformaes); o patgeno deve ser identificado no
hospedeiro experimental infectado. Em nenhum desses 4 casos o HIV se encaixa.
Esse prximo pargrafo talvez abra a verdadeira resposta sobre o que causa a AIDS.
Juntamente com esses outros aspectos j mencionados, o uso de medicamentos pode ser a
principal causa da doena.
O tratamento convencional para a AIDS chamado de tratamento anti-retroviral, ou mais
popularmente conhecido coquetel para a AIDS. H uma variedade grande desses remdios,
que podem ser tomados combinados entre si, fazendo com que o paciente possa se adaptar
ao melhor coquetel. Ou seja, para que ele possa ter menos reaes adversas no
tratamento, podendo assim ter uma melhor qualidade de vida. Porm, h muitas
controvrsias sobre a utilizao desses medicamentos. Vamos analisar aqui apenas 3 tipos
desses medicamentos, como forma de exemplificar o que , discutido severamente sobre os
pesquisadores que adotam a opinio de que a causa da doena est nesses medicamentos.
200
201
202
Por essa teoria apresentada, seus defensores afirmam que a AIDS decorrente de uma srie
de fatores inter-relacionados e no pela simples infeco pelo HIV. A AIDS pode ser uma
co-relao de diversos fatores, entre eles: uso de drogas(inclusive remdios, como o prprio
AZT); sexo sem proteo, no pela AIDS, mas pelas DSTs , por sua destruio em parte do
sistema imunolgico; m alimentao; pouco descanso; estresse; depresso; angstia; falta
de exerccios; etc.
Essa teoria que foi estudada e analisada tem como principais encorajadores: Peter
Duesberg(professor titular da cadeira de biologia molecular e celular da Universidade da
Califrnia e foi eleito membro da Academia Nacional de Cincias em 1986, devido ao
mapeamento da estrutura gentica dos retrovrus); Charles Thomas(Phd, antigo diretor do
departamento de biologia celular do Scripps Research Institute); Rob Hodson(Ex-professor
de anestesiologia da Universidade do Alabama); Kary Mullis(Prmio Nobel de Qumica em
1993, pela inveno do exame PCR); entre muitos outros, em todo o mundo.
Leon Tolstoi, escritor russo nascido em 1828, nos indaga com o seguinte pensamento:
Sei que a maioria dos homens, incluindo aqueles que se sentem vontade
com problemas muito complexos, tm dificuldade em aceitar a verdade
simples e bvia se isso vai obrig-los admitir que suas concluses, explicadas
com tanto prazer aos colegas e ensinada com orgulho a outros, so falsas.
Aspectos psicolgicos
Os pacientes portadores do HIV tm um aspecto psicolgico deteriorizado, por conta de
toda a informao que a mdia e os profissionais de sade colocam em sua vida. Depresso.
Sndrome do pnico e transtornos afetivos so algumas das variantes desse contexto
psicolgico que esto presentes no comportamento do indivduo portador. Aqui vamos
somente tratar da depresso especfica em pacientes com AIDS.
O termo Depresso pode significar um sintoma que faz parte de inmeros distrbios
emocionais sem ser exclusivo de nenhum deles, pode significar uma sndrome traduzida por
muitos e variveis sintomas somticos ou ainda, pode significar uma doena, caracterizada
por marcantes alteraes afetivas. A sintomatologia depressiva muito variada e muito
diferente entre as diferentes pessoas. A psicopatologia recomenda como vlida a existncia
de trs sintomas depressivos bsicos, os quais daro origem a variadssimas manifestaes
desta alterao afetiva. Essa trade sintomtica da Depresso seria: sofrimento moral,
inibio global e estreitamento vivencial. comprovado que relacionamentos pessoais
insatisfatrios e a falta de apoio social podem afetar intimamente o sistema imunolgico.
Na Quarta Conferncia Anual Brasil em HIV/AIDS, o Dr. Thomas Koenig faz uma
interessante explicao sobre a depresso em pacientes com HIV.
H muitas razes porque importante tratar a depresso em pacientes com HIV. Primeiro,
eu acho o mais importante, porque possvel melhorar a qualidade de vida de nossos
pacientes. A depresso impe ao paciente fardos enormes. Na rea psicolgica, a depresso
influi em como a pessoa v o mundo. como se estivesse olhando para o mundo por culos
escuros - tudo parece mais difcil; os desafios crescem e podem parecer inconquistveis. A
depresso rouba da pessoa a motivao e, at mais importante, a esperana, a capacidade de
acreditar que as coisas podem melhorar. Neste estado psicolgico o paciente pode perder o
203
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O papel da musicoterapia
Depois de ter abordado o tema AIDS sob uma nova viso, os aspectos psicolgicos do
indivduo portador da doena e um possvel tratamento atravs das emanaes de
freqncia, veremos agora como a musicoterapia pode ajudar nesse conjunto varivel de
aspectos.
A msica sempre foi uma constante na vida do homem desde os primrdios das
civilizaes. Era com ela que os povos conseguiam intervir perante os deuses, curar
doenas, tanto fsicas, quanto psicolgicas, alm de todo o aspecto religioso que tinha uma
interao ntima com a msica.
A musicoterapia processo no qual o indivduo entra em contato com o seu ISO
(Identidade Sonora), e aonde ele comea a ser trabalhado junto com os aspectos psicosocio-culturais da pessoa. No princpio do ISO, o indivduo se identifica com os primeiros
sons, rudos, barulhos, melodias no qual ele ouvia quando era criana. A utilizao da
musicoterapia de extrema importncia para esse primeiro contato com o indivduo que se
encontra com algum dficit psicoemocional.
O Dr. Aschoff, criador do mtodo dos ritmos biolgicos, considera os principais ritmos
como: cardacos, celulares, digestivos, hormonais, metablicos, entre outros. Esses ritmos
tm relao com os ritmos externos, onde se criou uma especialidade chamada
cronoterapia.
J o Dr. Gardner, usa os efeitos do som para aliviar as dores em pacientes de consultrios
odontolgicos. Conhecida como audioanalgia, o mtodo se explica porque qualquer
impulso sensitivo passa obrigatoriamente pelo tlamo, ou seja, se este estmulo for
aumentado, um grande nmero de neurnios que ali esto, se retiram por no ter uma
passagem suficiente de impulsos algsicos(via tlamo), para o crtex cerebral.
Andr Brandalise, musicoterapeuta brasileiro, trabalha com um mtodo chamado de
musicoterapia msico-centrada. Nesse mtodo, ele coloca a importncia da msica, como
ela, em muitas vezes, sendo a prpria terapia.
A musicoterapia atualmente, se encontra inserida nos mais diversos campos da medicina e
da psicologia, podendo se estender psiquiatria. Doenas como sendo consideradas novas,
esto tendo uma boa aceitao e timos resultados quando tratadas pela musicoterapia.
Sndrome do pnico, transtornos afetivos, cncer, AIDS, e outras, tm um efeito benfico e
duradouro na qualidade de vida dos pacientes expostos a essas doenas.
No caso especfico da AIDS, no qual estamos trabalhando nesse artigo, o paciente que
acometido pelo contgio desse vrus, e posteriormente pela doena, deve receber um
tratamento especial. Sua condio psicolgica est debilitada a ponto de uma fcil
instalao da depresso em seu organismo. Essa depresso est tanto em mbito
psicolgico, quanto no fsico. A palavra depresso parece estar relacionada somente ao
estado psicolgico, porm ela definida tambm como um abaixamento de nvel, que
tambm pode se estabeler a nvel corpreo. Portanto, deve se fazer o processo
musicoterpico, levando em considerao tudo que deve estar se passando no
psicoemocional do indivduo.
209
Fragmento de Balaio, meu bem, balaio (extrado de Braslio Itiber, de Jos Maria
Neves)
Compositores paranaenses ou radicados no Paran, da primeira metade do sculo XIX,
acompanham esta tendncia e nos mostram indcios de aproveitamento de elementos
folclricos, principalmente regionais. No mbito do acervo da Biblioteca Renn
Devrainne Frank, includo no Museu da Imagem e do Som de Curitiba, destacamos a
produo de Benedito Nicolau dos Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e
Braslio Itiber II. Todos eles realizaram, em algum perodo da vida, estudo galgado
nas tradies populares.
Folclore Regional
Por folclore regional refere-se s manifestaes tradicionais que assumiram, no Paran,
caractersticas nicas. Cludio Alfredo dAlmeida cita, no boletim da comisso
paranaense, a existncia, atualmente, de 264 danas e folguedos folclricos no estado,
sendo as mais recorrentes a folia de reis, a dana de So Gonalo, o cateret ou catira, o
fandango, a congada, as cavalhadas e o folguedo do boi. Das danas citadas, restringiuse este estudo ao fandango - expresso popular que hoje sobrevive no litoral
paranaense, e que rene uma srie de danas coreogrficas - por maior
representatividade no universo pesquisado.
Sobre os costumes populares do Paran antes do final do sculo XIX, Magnus Pereira
analisa a mudana de olhares na questo das tradies. A exaltao do progresso e da
modernidade sinnimo de adoo de posturas morais e hbitos burgueses -
substituda pelo lamento perda da singeleza e pureza de antigamente, inclusive das
danas populares, que eram vistas, no incio do sculo, como lascivas. Numa provncia
em processo de firmao e modernizao, os batuques e fandangos foram reprimidos
e adquirindo aspectos de dana adotados pelos bailes da burguesia, e cujos
remanescentes so as expresses atuais dos fandangos.
Alm das danas, foram encontradas, no acervo, as temticas expressas em lendas e
mitologia nativas, bem como aspectos da cultura indgena e sertaneja. Inmeros ttulos,
como caboclo, cano ao pinheiro, campeiras, cantares do serto paranaense,
chimarro, guairac, saudade do caboclo, toada sertaneja, chamaram a ateno
para este estudo, demonstrando a valorizao da temtica regional como material de
criao. Outras obras, apresentadas no catlogo do acervo com subttulos (gnero)
como folclore, toada tingui, toada a moda caipira, cano regional, toada
paranaense tambm indicam a inteno de aproximao com a cultura popular. Dentro
do universo pesquisado, foram escolhidas as obras que atenderam, da forma mais
explcita, aos propsitos deste trabalho.3
Infelizmente uma partitura que poderia acrescentar conhecimentos aqui propostos no pde ser,
at ento, encontrada, intitulada No serto: cateret quasi uma cano, de Bento Mossurunga.
211
212
Fandango Paranaense
Tida como a mais autntica manifestao cultural popular do Paran, o fandango
objeto de crescente interesse no campo de pesquisas musicolgicas e artsticas locais,
fazendo parte, tambm, da cultura litornea paulista e da cultura gacha, com as quais
compartilha algumas similaridades. No Paran, adquiriu sentido genrico de festa ou
reunio com danas e atualmente vivenciado no litoral, apesar de encontrarmos
evidncias de que o baile, em tempos remotos, ocorria tambm no interior paranaense e
nos centros urbanos. Fernando Azevedo aponta, em estudo realizado na dcada de 70, a
existncia de cerca de 30 marcas - como so tipicamente chamadas cada dana
coreogrfica - divididas em batidas e bailadas, acompanhadas instrumentalmente por
viola, rabeca e adufe, alm dos cantos. Entre as mais recorrentes, citamos: anu,
queromana, cana-verde, vilo de leno, marinheiro, domdom, xar, andorinha,
chamarrita e serrana. (Fandango do Paran, 1978). Praticamente todas as msicas so
apresentadas em compasso binrio.
Suas origens, de acordo com Roselys Roderjan, remontam s danas dos sales
aristocrticos europeus do sculo XVIII, principalmente do norte de Portugal, de onde
partiram muitos migrantes ao Paran. A historiadora observa a afinidade das danas
populares portuguesas s dos demais pases europeus, conferindo-lhes uma origem
comum na Idade Mdia, ocorrncia que explicaria as constncias meldicas comuns ao
canto gregoriano presente no fandango e em outras msicas folclricas.
Apesar dos primeiros relatos de prtica do fandango datarem do sc. XVIII, no h
conhecimento de registros sonoros at a dcada de 30. Oneyda Alvarenga confirma a
escassez de documentao musical sobre o fandango, especialmente do Paran (Msica
Popular Brasileira, 1950). Se tal panorama ocorria j nos anos 50, poucos exemplos do
fandango tradicional foram preservados ou resgatados. Restam algumas iniciativas,
iniciadas na dcada de 60, como a criao do Grupo de Folclore e Arte Gralha Azul de
Curitiba (fundada em 1969) por pesquisadores e artistas interessados, pesquisas atuais
baseadas, principalmente, no conhecimento emprico dos caboclos, e o estudo das
obras que utilizaram o fandango e que esto, hoje, alocadas nos acervos de msica
paranaense.
Uma dessas obras, utilizada por Renato Almeida, a transcrio de duas canes
recolhidas por Antonio Melillo e Odilon Negro. As canes pertencem a uma
querumana e um anu, ambas sem data. Do anu, diz-se ser a primeira dana do baile,
onde s os homens sapateiam, como, alis, acontece com todas as marcas. Os
tamancos batem fortes no cho, unssonos, numa cadncia perfeita e substituem o
batido. (Azevedo, 1978). A queromana tambm batida e valsada, considerada das
mais difceis e por isso pouco danada.
H, tambm, a pea para canto, piano e sax em Mi bemol intitulada Fandango,
cuja letra, de Odilon Negro, infelizmente no pode ser encontrada. A data tambm no
descrita. Apesar de apresentar harmonia diatnica simples, recorrente na msica
popular, no foi encontrado parentesco prximo msica de alguma marca particular
de fandango. Mas esboa claramente, atravs do ritmo, um tempero regional, como
pode ser atestado pelo fragmento seguinte:
213
214
Benedito Nicolau dos Santos escreveu, dentre outros, o livro Lendas e Tradies do Paran
lanado pela Imprensa oficial da UFPR em 1973.
215
216
Este estudo foi realizado no mbito dos acervos da Casa da Memria de Curitiba e Museu da
Imagem e do som, compreendidos no projeto de catalogao Acervos de Msica Paranaense.
Porm, para adequar-se ao objetivo proposto, foram utilizados apenas exemplos do acervo do
Museu da imagem e do som, com exceo de A sertaneja, de Braslio Itiber, que pertence ao
acervo da Casa da Memria, e cujo fragmento, entretanto, foi extrado do livro de Jos Maria
Neves.
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Curitiba: FUNARTE, 1980. Ano 4, n. 4.
Llian N. Nakahodo graduada Turismo pela Universidade Federal do Paran e
atualmente estuda Produo Sonora na mesma universidade. Foi bolsista, em
2001, do programa kenshu em Okinawa (Japo), monitora da disciplina de
Histria da Msica Popular Brasileira em 2004 e desde ento, participa do
217
218
220
disso, quase todas as anotaes de que se dispunha eram, de forma geral, informaes
assistemticas (Lhning, 1991). Essas expedies cientficas davam ateno especialmente
s diferenas raciais entre os diversos povos, e eram feitos estudos das caractersticas
morfolgicas do ser humano: altura, estatura, etc. Alm disso, ainda que de forma
superficial, tambm foram estudadas questes ligadas esfera social, incluindo assuntos
como religio, rituais e artes e mesmo que a comisso de cientistas fosse formada quase que
apenas por especialistas na rea das cincias exatas, foram recolhidos alguns exemplos de
cultura material, que foram ento guardados em museus de antropologia. Lembre-se que o
pensamento social, nesta poca, marcado pelo paradigma do evolucionismo.
Com o surgimento do fongrafo, em 1887, inventado por Thomas Edison, surgiu a
possibilidade pela primeira vez da fixao de um som e sua reproduo.3 A partir de ento,
todas as expedies cientificas passaram a levar fongrafos consigo, para gravar msicas e
lnguas desconhecidas. Estas gravaes, consideradas inicialmente simples complementos
das pesquisas, num primeiro momento no mereceram grande ateno por parte dos
pesquisadores, ficando assim guardadas sem qualquer comentrio ou descrio. Somente no
incio do sculo XX, pesquisadores comearam a se interessar por estes documentos
sonoros que continham msicas to diferentes de tudo que se conhecia na poca: Erich Von
Hornbostel, Carl Stumpf, Curt Sachs, entre outros.4 Curiosamente, nenhum deles era da
rea da msica.5 A partir deste interesse em compreender os sons gravados, estes cientistas
desenvolveram mtodos de trabalho que so importantes at hoje, como a transcrio
musical. Inicialmente, nas transcries era utilizada a escrita ocidental com alguns smbolos
adicionais, mas com a diferena de que a partitura resultante no tinha como funo a
execuo, mas sim a anotao descritiva do som para criar uma visualizao da msica
gravada. Talvez por serem ligados s cincias exatas, estes cientistas tentaram analisar a
msica com um esprito analtico, como se a msica fosse apenas uma acumulao de
elementos mensurveis. Alm disso, estavam influenciados pela teoria de Darwin e
voltados para uma busca das origens e para a evoluo da msica, sempre convencidos de
ser a msica ocidental o auge de toda a arte musical, isto de forma coerente com o
pensamento evolucionista.
Essas idias foram as diretrizes dessa primeira fase em que se estuda a msica extraeuropia (ressaltamos: inclua-se aqui o universo popular) atravs desta chamada
musicologia comparada. O nome se d justamente porque um de seus mtodos principais
a comparao dos diversos parmetros constitutivos da msica, como escalas, tonalidades,
ritmos, sempre em relao ao modelo ocidental. Este primeiro momento duro at as dcadas
de 30 e de 40, e pode ser resumido como uma tentativa de compreenso das culturas
musicais do mundo atravs das gravaes contidas em arquivos de fonogramas
importante ressaltar que as anlises destas gravaes no foram feitas por quem as coletou:
ou seja, os cientistas no conheciam pessoalmente os msicos e nem a cultura do povo que
estavam estudando. Porm, havia a conscincia de que, alm das questes diretamente
ligadas ao nvel sonoro, existiam muitas outras que pertenciam mais rea da antropologia
e que somente pelas gravaes no se era possvel abordar (cf. Lhning, 1991).
O termo musicologia comparada foi abandonado em prol de etno-musicologia, termo
cunhado por Jaap Kunst em 1950 (Kunst, 1950), isto acompanhando uma transferncia do
centro de excelncia de Berlim para os Estados Unidos, onde a disciplina se consolidou.
Este hfen posteriormente foi cancelado, e surgiu o termo etnomusicologia, isto nos
3
Para Bastos, congelar os sons uma idia arquetpica do Ocidente, apontando para a tentativa
de suprimir a distncia (Bastos, 1995, pp. 1820).
4
Estes pesquisadores trabalharam em torno do arquivo de fonogramas de Berlim (ver
Christensen, 1991; Bastos, 1995; Lhning, 1991 e Pinto, 2001).
5
importante ressaltar que o fato destes pesquisadores no serem originalmente da rea de
msica significativo, sendo este um fato importante at hoje, como comentaremos adiante.
221
6
Por exemplo, estudos antropolgicos da msica indgena, repletos de transcries e anlises
musicais, como Bastos (1990), Mello (2004), Montardo (2002) e Piedade (2004).
7
Veja-se, por exemplo, as diversas publicaes da editora 34 sobre msica popular (por exemplo
Calado, 1997; Dreyfus, 1999; Giron, 2001).
222
223
Dentre suas principais obras, podemos destacar (Mariz, 1983; 1985; 1997).
Esta uma narrativa ainda muito freqente que reflete uma espcie de cime pela vivacidade
da msica popular brasileira. Trata-se de um nexo importante que navega na dicotomia
popular/erudito no Brasil: o que est em jogo o reconhecimento ou a falta de reconhecimento
pblico. O outro lado da moeda, aquele que vai reconhecer ou deixa de faz-lo, , na verdade, o
cenrio internacional, palco onde o Brasil se espelha e onde anseia refletir sua profundidade
interior. Esta questo est imersa naquilo que Bastos (1995) chama de concerto das naes.
Veja uma recente apario deste tipo de queixa, no caso do ano do Brasil na Frana (2005),
quando diversos artistas da msica erudita brasileira lamentaram a ausncia da msica
brasileira de concerto no evento, em contrapartida com a abundncia de apresentaes das
msicas populares do Brasil.
10
224
225
Para concluir estes comentrios, lembramos de Jos Ramos Tinhoro, autor que parece
diferir desta linha mais crtica mencionada por Eugnio (2000). Tem sido um importante
colaborador na construo da histria da msica brasileira, com muitos livros publicados
sobre o assunto (Tinhoro, 1997; 1998), alm de ser organizador de um grande e importante
acervo de dados sobre a msica brasileira. Tinhoro se aproxima mais da linha
historiogrfica, que est em busca da origem, da preservao do autntico, e, desta forma,
se afina mais a Mario de Andrade. Tambm quando trata da indstria cultural, Tinhoro
discorda radicalmente das teorias de Vianna, vendo esta indstria como uma instituio que
promove a homogeneizao em escala planetria, pondo em risco a preservao das msicas
verdadeiramente brasileiras. A se manifestam, portanto, pressupostos j presentes no incio
da musicologia no modernismo.
Mapeamentos
Destacamos agora os esforos de construo de mapas da msica no territrio brasileiro.
Estes mapeamentos da msica brasileira constituem buscas etnogrficas da musicalidade do
Brasil profundo: ou seja, um territrio, imaginado como qualquer outro, entendido como
interior, que abriga as mais profundas razes da musicalidade (Piedade, 2005).
Em 1928 e 29, Mrio de Andrade faz sua primeira viagem ao nordeste e, em 1938, o
Departamento de Cultura do Estado de So Paulo, chefiado por este pesquisador, enviou ao
nordeste uma Misso de Pesquisas Folclricas. Esta misso representou um fato histrico
importante nos estudos sobre msica brasileira. Na dcada de 1940, Luiz Heitor Correa de
Azevedo, compositor e estudioso do folclore brasileiro, realizou quatro expedies a quatro
regies do Brasil, alcanando um estado em cada uma delas. Nas regies centro-oeste,
nordeste, sudeste e sul, foram visitados os estados de Gois (1942), Cear (1943), Minas
Gerais (1944) e Rio Grande do Sul (1945). Estas expedies revelam a aspirao deste autor
de construir um mapa da musicalidade brasileira em suas vrias manifestaes regionais:
retratos da musicalidade do Brasil (Azevedo, 1943; 1950; 1954).
Na dcada de 90, enquanto o esprito da world music imperava no cenrio internacional,
msicos e musiclogos retomaram a busca do Brasil profundo. No Brasil, ocorre o
ressurgimento de prticas musicais tradicionais que estavam relegadas ao mundo tradicional
e que ganharam a mdia e o universo jovem: gneros nordestinos, chorinho, entre muitos
outros. Neste perodo surgiram grupos musicais que praticaram suas prprias pesquisas,
como, por exemplo, o grupo paulista A Barca, que viajou pelo pas coletando
informaes sobre ritmos e danas como jongo, carimb, coco e samba de roda, servindo de
12
base para o repertrio de seus prprios discos. A partir desta dcada comea a se falar em
resgate, conceito importante e revelador,13 justamente como aquele de tradies
ameaadas, idias que hoje fundamentam aes de Estado e polticas culturais
internacionais14. Um esforo de mapeamento o caso da srie de programas para televiso
Msica do Brasil, produto de expedies a vrias regies do Brasil sob o patrocnio da
12
226
Abril Cultural15. Surgem tambm mapeamentos regionais, como o projeto Bahia Singular
e Plural.16
Os mapeamentos, portanto, continuam sendo entendidos como algo que deve ser feito, que
tem utilidade representacional na construo da brasilidade. Nesta primeira dcada do sculo
XXI, o Brasil volta-se para dentro mais uma vez, acreditando na autenticidade das razes e
na profundidade de sua musicalidade. Estes esforos musicogrficos merecem uma
abordagem musicolgica mais fina e uma reflexo antropolgica, no sentido de alcanar os
nexos scio-culturais e os diversos significados envolvidos.17
Comentrios finais
Pode-se observar que grande parte da nova e crescente bibliografia sobre msica popular
publicada no Brasil escrita por profissionais de reas como jornalismo, estudos literrios,
comunicaes, cincias sociais. O interesse pelo estudo da msica popular urbana no Brasil
se deu primeiramente entre radialistas, produtores, jornalistas, j que os musiclogos que se
interessavam pelo assunto se voltavam geralmente para o folclore, herana do incio da
musicologia brasileira no modernismo (Ikeda, 2000). O envolvimento de musiclogos (de
formao) com os estudos sobre msica popular ainda incipiente, j que estes continuam
tendo um maior interesse na rea da msica erudita. Mesmo quando se torna objeto de
estudo acadmico, a msica popular brasileira continua sendo objeto de estudo
preferencialmente de reas como estudos culturais, antropologia, sociologia, histria, e a
msica erudita continua a ser estendida como provncia de estudos da musicologia. Alguma
mudana neste cenrio vem ocorrendo nos ltimos anos, com a consolidao da superao
do positivismo e de uma postura mais reflexiva e relativizadora na pesquisa em msica
(Lucas, 1995).
Longe de ser um fenmeno da musicologia brasileira, podemos perceber esta questo j em
Kerman (1987). Este autor afirmou que a msica popular tem que ser entendida, em
primeiro lugar, em termos de uso e valores sociais, afirmao esta que at hoje
compartilhada por muitos musiclogos. Mas podemos nos perguntar: por que o estudo da
msica popular em especial deve ter essa abordagem sociolgica? No incio do captulo de
introduo, quando o autor fala sobre o impulso de musiclogos em seus estudos, a paixo
pela msica aparece como principal motivo para o mergulho nas estruturas musicais. Mas
ser que essa justificativa no suficiente tambm quando se trata de msica popular? Esta
abordagem especialmente scio-antropolgica que tm os estudos em msica popular talvez
se deva ao fato de que uma partitura de msica erudita em geral parea muito mais rica do
que uma de msica popular. Porm, isto se deve no a uma falta de complexidade, mas a
escolhas de elementos para transcrio: se fossem transcritos com preciso todos os eventos
sonoros de uma pea de msica popular, incluindo acentuaes especiais, variaes
microtonais, escrita para percusso, etc., a partitura se tornaria igualmente rica. Portanto,
no preciso que se aplique conhecimentos da sociologia ou da antropologia como que para
preencher uma lacuna de msica na msica popular: no h esta falta. As perspectivas
scio-culturais so fundamentais na compreenso de um repertrio musical,
independentemente de se utilizar ou no partituras, seja msica erudita ou popular. Como
15
Destacamos tambm a srie de vdeos Som da Rua, da Zero Produes, e a Cartografia
Musical Brasileira (2000/2001), projeto coordenado pelo msico Benjamim Taubkin e
produzido pelo Ita Cultural.
16
Coordenado por Fred Dantas, este um projeto do Instituto de Radiodifuso Educativa da
Bahia (IRDEB), tendo produzido at o momento oito CDs.
17
Para Ikeda, musicografia um procedimento pr-cientfico, mera descrio do objeto
estudado ou colees de msica e documentos de interesse geral (1998). Este autor argumenta
que o material musical per se no revela as redes de significado que envolvem sua produo
enquanto objeto histrico e o cultural (Lucas, 1998).
227
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230
Introduo
A cidade da Lapa, por conta de sua importncia histrica e sua participao herica na
histria do Brasil, apresenta neste incio de sculo um potencial turstico crescente. Com
uma histria de 236 anos, tambm cenrio de destaque no campo da cultura popular e
religiosa, especificamente na manifestao folclrica devocional da Congada ... folguedo2
de formao afro-brasileira, em que se destacam as tradies histricas, nos usos e
costumes tribais da Angola e do Congo, lembra coroao do rei Congo e da rainha Ginga
(Cascudo, 2000, p. 149). Por meio do projeto de revitalizao3 ocorrido em 2004, este
folguedo tem acontecido com mais freqncia, ganhando espao e destaque no cenrio
atual.
A Congada da Lapa faz parte da histria deste municpio, sendo apresentada de costume, no
dia 26 de dezembro de cada ano,4 na tradicional festa em louvor a So Benedito5, alm de
outras datas.6 Entretanto, apesar de sua importncia, apenas uma pequena parcela da
populao lapeana conhece em detalhes a Congada alm dos prprios participantes (Terno
de Congos).
Assim, o objetivo desta pesquisa foi levantar histria do folguedo, suas caractersticas
mais marcantes, a transmisso entre geraes, desvelando processos nativos de
aprendizagem etnopedagogias entre os Congos, e a sistematizao de algumas de suas
msicas, compondo um material conciso que venha a servir de consulta para possvel
aplicao nas aulas de artes da Lapa. Justificando esta pesquisa, por se tratar de uma
manifestao regional e importante (Congada), entende-se que suas msicas consistem em
1
Formalmente este artigo traz um recorte de um trabalho mais amplo, homnimo, elaborado como
pr-requisito para concluso do curdo de Educao Musical da Universidade Federal do Paran,
realizado neste corrente ano.
2
Manifestao folclrica que rene juntos os seguintes elementos: letra, msica, coreografia e
temtica ex: Congada (Cascudo, 2000, p. 241).
3
Projeto realizado em 2004 que teve como objetivo principal o resgate e a continuao das Congadas
no municpio da Lapa, dando-a condies de subsistncia (DVD Congadas da Lapa, 2005).
4
Segundo dona Laura Baron, diretora da cultura da Lapa, ... ainda na poca da escravido, todo o dia
26 de dezembro - dia do santo preto So Benedito - os senhores davam as sobras da ceia de natal aos
negros para que festejassem ao seu modo (Stival.; Mota.; Markus.; 2005, p. 1).
5
Tambm chamado "Santo Preto", este santo objeto de devoo dos Congos, os quais, segundo a
histria, foram os responsveis pela construo da primeira capela para abrigar a sua imagem.
(Fernandes, 1977, p. 4).
6
A Congada, aps o projeto de revitalizao, tambm vem sendo apresentada em datas cveis e
comemorativas como o aniversrio da cidade da Lapa, o que a tornou atrao turstica do municpio.
232
... Fernandes formou-se mdico em 1927 pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro.
Entre os cargos que ocupou, se destacou como professor da UFPR. Foi fundador do Museu de
Arqueologia e Artes Populares, da UFPR. Dr. Loureiro era ainda membro da Academia Paranaense
de Letras e do Instituto Histrico Geogrfico e Etnogrfico do Paran (Garcia, 2000, pp. 205207).
De acordo com as autoras Lakatos e Marconi (1991), consiste nas tcnicas de observao (fotos e
anotaes em dirios), e entrevista (feitas neste caso de forma mais aberta, em conversas informais
nos ensaios e na casa dos participantes).
Congadas da Lapa
233
Aps inmeras pesquisas, esta foi nica fonte encontrada pelo pesquisador que informa a data da
chegada deste folguedo ao Paran.
10
Garcia provavelmente referiu-se a 1 montagem das Congadas feita para gravao e documentao,
ou ainda, a primeira montagem aps o fim da escravido, o que parece sensato, visto que uma das
formas encontradas pelos congos para manuteno do folguedo, foi recorrer aos rgos pblicos.
234
Congadas da Lapa
235
13
Fidalguia se refere representao das pessoas que freqentam a corte, incluindo prncipes,
vassalos e serviais.
236
Sintetizando o enredo da Congada, a histria representa um mal entendido entre ambas (do
rei e da rainha). O conflito travado por meio de dilogos agressivos, na forma de versos,
ditos pelos participantes e simulando uma guerra:
... Oi l vois secretrio.
Vai me v que gente essa.
Entrando meu Reino adentro.
Sem ordem e sem licena.
(Filho, 1979, p. 103).
As falas so intercaladas com danas14 e evolues com espadas e lanas ao som dos
instrumentos. Aps os desentendimentos, a embaixada da rainha Ginga dominada e tem
seus integrantes presos.
Ao final, desfaz-se o mal entendido, os membros da embaixada da Ginga so perdoados e
todos cantam e prestam louvores a So Benedito, que se torna a razo principal da
Congada, como o santo que influenciou o perdo do rei.
Nas Congadas apresentadas na Lapa, nota-se influncia dos costumes portugueses:
... O Rei e sua corte constituem sem dvida uma marqueao da monarquia
portuguesa. H na Congada da Lapa, uma influncia muito acentuada dos
costumes da nobreza portuguesa, influencia que provavelmente se exerceu
atravs dos conhecimentos que tinham dos antigos hbitos da nossa corte, que
se refletiam os dos antigos fidalgos portugueses. (Fernandes, 1977, p. 5).
Esta influncia tambm ocorre nas indumentrias usadas para encenao do folguedo, que
sofreram mudanas aps a escravido (deixando de ser vistosas e luxuosas):
... a vs unanime [SIC], que, antigamente, fino era o vesturio, pois, quando
eram cativos, vestiam-se melhor que agora, que so forros. Sente-se nessas
narrativas, a influncia da instituio social que era a escravido, na realizao
e no desenrolar da Congada. Era a emulao, entre os senhores, a melhor
apresentarem seus negros, com a colaborao das sinhs [SIC], para que, nos
festejos pblicos, os Congos representantes da escravaria de casa louvassem o
auto, no s pelo fiel desempenho de seu papel, mas pelo apuro da
indumentria com a qual se apresentavam. (Fernandes, 1977, p. 5).
Atualmente (aps revitalizao em 2004), novas roupas puderam ser adquiridas, elaboradas
de acordo com as antigas, dando um brilho complementar ao espetculo.
Revitalizao das Congadas da Lapa: um projeto de resgate do folguedo
Ao final do ano de 2004, a agncia de desenvolvimento Lux,15 atravs da lei de incentivo
cultura e com o patrocnio da estatal Petrobrs, elaborou um grande projeto de revitalizao
14
A dana caracteriza-se ... por uma performance multi-expressiva de cores, formas, movimentos,
sons, palavras, gestos, disputas, unio, competitividade, ... (Arroyo, 2003, p. 15).
15
... agncia de desenvolvimento, uma entidade que desenvolve projetos na area da cultura (Correio
Metropolitano, 15 de outubro de 2004, p. 6).
Congadas da Lapa
237
16
... Construdo em estilo elisabetano, o Teatro So Joo continua sendo o centro cultural da Lapa.
Com capacidade para 212 espectadores, foi construdo em 1873 e possivelmente inaugurado em 1876.
Ddiva dos tropeiros. (Revista Cidades do Brasil, junho/2002).
17
Frase do encarte das Congadas para distribuio turstica, elaborado pela secretaria da cultura da
Lapa.
18
Os pais dos conguinhos de hoje, herdaram este costume de seus pais, que por sua vs tambm
herdaram de seus pais e assim sucessivamente, o que evidencia a importncia do parentesco na
conservao do folguedo, pois so os mais novos que vo perpetuar a tradio.
238
Nas Congadas da Lapa, seu Miguel Ferreira (rei Congo) e seu irmo Ney (embaixador),
ambos nascidos e residentes neste municpio, so os responsveis principais pelos
encontros, reunies e ensaios do grupo, tarefa s vezes desafiadora, como contou Miguel:
... A jornada longa de trabalho semanal s vezes dificulta bastante os ensaios
do grupo, que encontra muita dificuldade em reunir todo pessoal (Miguel,
abril de 2005).
Os textos, as falas e definies de papeis ficam por conta do Rei da Congada,19 que possui
lugar de destaque na hierarquia. Segundo informaes dos prprios Congos, por ocasio
dos ensaios, ele pode anotar em um pedao de papel a fala de cada um dos participantes,
que devem decor-las, assim o rei reconhece nos ensaios o papel de todos e pode ajud-los.
Geralmente os mais velhos j sabem suas falas dcor, repassando-as aos mais novos.
Da mesma forma dos textos e da dana, as msicas tambm so ensinadas aos mais novos
nos ensaios, como o caso do filho de seu Ney Ferreira, de apenas cinco anos de idade, que
j possui e toca um tambor (especialmente desenvolvido para ele, em tamanho menor), em
todos os ensaios e apresentaes do grupo. Sempre acompanhado dos mais velhos, o
menino vai aprendendo o batido pelo ato da escuta, da imitao gestual e do fazer musical
dos msicos mais experientes.
De acordo com Arroyo, ocorrem a processos nativos ou informais de aprendizagem,
etnopedagogias (Arroyo, 2003, p. 16). A educao no est subordinada a professores e
educadores na escola, ela acontece em locais diferentes, de acordo com os ensaios do
grupo. Nestes mltiplos espaos, os mais velhos por meio da imitao e do fazer musical e
gestual, procuram demonstrar aos mais novos seus conhecimentos do folguedo.
Souza (2001), falou desta real possibilidade de aprendizado em seu artigo mltiplos
espaos e novas demandas, apresentado no X encontro anual da abem, onde relatou:
... Na rea especifica da educao musical, a tarefa de ensinar e aprender
msica tambm j no exclusividade da escola. Crianas e jovens talvez
aprendam musica, hoje, mais em seus ambientes extra-escolares do que na
escola propriamente dita, pois no h dvida de que possvel aprender e
ensinar msica sem os procedimentos tradicionais a que todos ns
provavelmente fomos submetidos (Souza, 2001, p. 85).
19
"... OS REIS CONGOS sempre foram muito respeitados na comunidade e mesmo as pessoas mais
gradas tinham-lhes grande considerao. Sua presena na CONGADA era solicitada com empenho e
indispensvel era a sua orientao nos ensaios (Filho, 1979, p. 101).
Congadas da Lapa
239
A autora exemplifica citando dois autores, Damatta e Brando: ... o ritual um dos
elementos mais importantes no s para transmitir e reproduzir valores (Damatta, 1990, p.
26 in Arroyo, 2003, p. 15). ... tudo o que acontece (no ritual) ensina (Brando, 1984, p.
35 in Arroyo, 2003, p. 15).
Para Arroyo, o fazer musical ocupa lugar de destaque no ritual, tornando-se um dos
smbolos dominantes20. Segundo a autora ... por meio das aes de tocar, danar, cantar,
fazer msica, sentidos de continuidade, identidade, resistncia, pertencimento so
constitudos, reafirmados e aprendidos (ibid, 2003, p. 15).
Msica das Congadas da Lapa
Coleta do material
Feitos exaustivos levantamentos bibliogrficos no foi encontrada pelo pesquisador a data
das msicas relacionadas para o estudo. O primeiro registro foi feito por Fernandes (1951),
que as transcreveu e editou.
Para levantamento das musicas, foi utilizado o DVD Congadas da Lapa (elaborado,
gravado e lanado pela agncia Lux em maro de 2005), e o material recolhido por
Fernandes, fundamental para elaborao das transcries.
As quatro msicas selecionadas para estudo foram:
Calunga.
No queremos guerra.
Dana dos bastes.
Chamada dos Conguinhos.
Transcrio e Editorao das Msicas.
Como a gravao foi feita ao vivo e ao ar livre, apesar dos novos recursos tecnolgicos
adquiridos (aparelhagem), e um tcnico de som (auxilio e montagem), uma das dificuldades
principais encontradas pelo pesquisador, foi que em alguns trechos no possvel
reconhecer auditivamente parte das letras cantadas, a gravao no traz legenda. Ento foi
de grande valia o material coletado na dcada de cinqenta por Fernandes. Com ajuda de
um violo (como referencial de afinao), ritmos e notas foram escritos na partitura.
Feitas as transcries, a prxima etapa foi a editorao das msicas para partitura, feita com
por meio do software Finale 2003 (que permite ao redator atravs dos meios eletrnicos
conferir a veracidade daquilo que se est transcrevendo). Como exemplo, segue abaixo uma
das transcries feitas:
20
A autora explica que (...)como smbolo, ele participa do processo dialtico de veiculao de
mensagens(...). (Ibid, p. 15.).
240
Forma
Refro
Introduo
Nmero de
Compassos
Calunga
A / a
No
No
08*
No queremos guerra
A / a
No
No
08*
A / a / a
No
No
12*
Congadas da Lapa
Chamada dos Conguinhos
241
Sim
Sim
26
Nas musicas analisadas notou-se um certo padro de composio em sua forma. Das quatro
musicas transcritas, apenas uma possui introduo e refro, nas outras apenas ocorre uma
variao do tema principal.
Harmonia
A anlise harmnica apresentou as tonalidades de cada musica. A tabela a seguir mostra as
tonalidades praticadas nas Congadas de 1951 (transcritas por Fernandes) e as praticadas em
2005 (selecionadas e transcritas pelo pesquisador), para fins de comparao:
Tonalidades
Msicas
1951
2005
Calunga
No queremos guerra
F maior (F)
//
L maior (A)
//
F maior (F)
//
Tabela 2: Harmonia; relao das tonalidades encontradas nas musicas em 1951 e em 2005.
Apesar das tonalidades permanecerem maiores, nota-se que foram transpostas todas para
sol maior (2005). Segundo os msicos do grupo, esta transposio para mesma tonalidade
foi um meio encontrado para facilitar a prtica de conjunto entre ambos.
Instrumentao Utilizada.
As Congadas da Lapa atualmente contam com os seguintes instrumentos: uma viola, um
violo, duas sanfonas (sendo uma delas um acordeom e um a gaita ponto), uma rabeca21,
trs xeques-xeque,22 trs tambores, sendo dois maiores (adultos) e um menor, (infantil),
distribudos e organizados conforme Tabela 3:
Instrumento
Funo
Famlia
N de Instrumentos.
Viola
Harmonia
Cordofones
01
21
uma espcie de violino, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa, afinadas em quintas,
sol, r, l, mi, e friccionadas com arco de crina, untado no breu. Tem sonoridade ranfenha,
melanclica e quase inferior (Cascudo, 2000, p. 567). Vale lembrar que a rabeca utilizada na Congada
a do Fandango do Paran, possuindo apenas trs cordas, mas as caractersticas so idnticas.
22
Caracteriza-se ... por uma cabaa grande, envolta num tranado semelhante rede de pescaria,
tendo presos pequenos bzios nos pontos de interseco das linhas. Tambm conhecido por xaquexaque, cabaa, ge, piano-de-cuia (Cascudo, 2000, p. 10).
242
Harmonia
Cordofones
01
Rabeca
Melodia
Cordofones
01
Acordeom
Melodia/harmonia
Aerofones
01
Gaita Ponto
Melodia
Aerofones
01
Xeque-xeque
Rtmica
Idiofones
03
Tambor
Rtmica
Membranofones
03
Congadas da Lapa
243
A Congada da Lapa j ultrapassou cinco geraes, ou seja, sua histria quase to antiga
quanto a histria do prprio municpio. Por esta razo, atualmente so consideradas como
parte da identidade cultural dos lapeanos, tratadas por alguns pesquisadores como raiz no
municpio. Este fato motivo de orgulho entre os Congos remanescentes da Lapa.
Outra questo se refere ao processo implcito de educao que ocorre a cada ensaio
realizado pelo grupo (no qual as geraes de agora esto sendo ensinadas). Esta discusso
vem ganhando forca entre os educadores, que a cada dia, esto mais atentos aos mltiplos
espaos e novas demandas do mercado (Souza, 2001, p. 85).
Como j falado anteriormente, o aprendizado informal, ou seja, fora da escola, pode se
dar de maneira muitas vezes mais eficiente que o escolar( ibid, 2001, p. 85). Arroyo (2003)
tambm explana a este respeito, e vai alm, a autora desenvolve uma parte de sua tese de
doutorado estudando os processos de ensino-aprendizagem no contexto do Congado. A
autora relata que ao se estudar estes processos que chama de nativos de educao
(etnopedagogias), o pesquisador est ampliando seu prprio universo como educador.
A terceira questo referente a uma velha discusso que abrange desde folcloristas a
cientistas sociais. sabido que o folclore dinmico, ele atravessa geraes e se mantm
vivo entre ns, os folguedos so prova disto (exemplo, cirandinha).
Entretanto, ao se pretender trabalh-lo na escola, algumas questes bsicas devem estar
bem claras ao educador, por exemplo: O que se quer trabalhar ao us-las em sala de aula e
quais ferramentas devem ser utilizadas pelo educador para repassar este conhecimento.
Estas questes so fundamentais para que o processo de ensino no ocorra em vo, e possa
estar a servio da educao. Este um dos desafios do educador, possuir habilidade para
trabalhar tais processos e aproveit-los no ambiente escolar.
Por fim, este trabalho no possui pretenses de nenhum mtodo prtico sobre Congadas. A
inteno deste estudo foi levantar alguns aspectos do folguedo para uma possvel aplicao
em sala de aula, como material de apoio para consulta.
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do Folclore - Goinia - Universidade Federal de Gois, 1853.
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244
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LAZ012005 Produo Audiovisual. Maro/2005.
FERREIRA, Miguel. Entrevista cedidas ao pesquisador em 17 de abril de 2005, em sua residncia na
Lapa/PR.
Mrcio Horning graduando do 4 ano do curso de Educao Musical pela
Universidade Federal do Paran. Desenvolveu atividades como monitor da disciplina
de atividades prticas complementares com os professores Valter Lima Torres
(UFPR) e Beatriz Senoi Ilari (UFPR), no 1 semestre de 2005. Atualmente professor
auxiliar no curso de musicalizao infantil do departamento de msica desta
universidade.
Esta comunicao uma exposio inicial do trabalho de pesquisa que estamos realizando
sobre a importncia do Manifesto de 1946 do grupo Msica Viva na histria da msica
brasileira do sculo XX e est sendo desenvolvido no mbito do Ncleo de Estudos
Musicolgicos1 coordenado pela Prof. Dr. Mnica Vermes da Universidade Federal do
Esprito Santo.
O interesse pela produo de um trabalho de pesquisa com uma temtica relacionada ao
grupo Msica Viva foi despertado durante o curso da disciplina de Histria da Msica I, na
qual abordava-se tambm a histria da msica brasileira. Como trabalho final da disciplina,
apresentamos um trabalho expositivo e uma monografia sobre a histria do Msica Viva. O
contato com o tema e a descoberta de afinidades com as idias adotadas pelo grupo e
principalmente por Koellreutter, nos levaram a dar prosseguimento a uma pesquisa
acadmica mais profunda sobre este tema, que, por sua vez, s recentemente tem sido
abordado de forma mais ampla pelos pesquisadores nacionais. Chegar deciso de
trabalhar com o cruzamento das idias de Mrio de Andrade e do grupo Msica Viva2 foi
fruto de um extenso trabalho de leitura, visto que a possibilidade de estudar apenas o
histrico do grupo seria algo redundante, j que o musiclogo Carlos Kater publicara um
trabalho bastante detalhado sobre o assunto.
Nesta comunicao, apresentemos dois tpicos que pertencem redao oficial do projeto:
Introduo e Justificativa, e Objetivos. Logo em seguida, j comearemos a expor alguns
tpicos desenvolvidos no trabalho.
Introduo e Justificativa
As trs primeiras dcadas do sculo XX da histria da msica brasileira so marcadas
pelo embate entre o modernismo nacionalista e a cultura musical da poca, centrada em
posturas provenientes do perodo romntico, com uma esttica ainda voltada apenas para a
beleza, e para a aceitao e apreciao da obra pelo pblico.
O surgimento do Movimento Modernista, principalmente com a Semana de Arte
Moderna de 1922, teve fundamental importncia para o incio do desenvolvimento de um
processo de reflexo e atualizao em todos os campos das artes e da literatura brasileira.
Mais tarde, no campo musical, o modernismo provocaria um novo embate, agora, entre as
1
Este trabalho foi concebido de forma independente e mediante criao do Ncleo de Estudos
Musicolgicos, foi incorporado ao mesmo. Lembramos que o Ncleo est em processo de registro no
CNPq e na Pr-reitoria de Pesquisa da UFES.
2
Durante a comunicao ser exposto o porqu do cruzamento de duas idias aparentemente to
contraditrias.
246
suas idias para a formao de uma msica nacional e as novas correntes que surgiriam a
partir da dcada de 1930. Mas o florescer das novas idias modernistas foi essencial para
acabar com o marasmo na vida artstica brasileira no comeo do sculo XX. Graa Aranha,
um dos grandes nomes do movimento, na sua conferncia proferida na abertura da Semana
de Arte Moderna, no dia 13 de fevereiro de 1922, afirmou (Teles, 2000, pp. 280286):
A remodelao da esttica do Brasil iniciada na msica de Villa-Lobos, na
escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfaltti, Vicente
do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, ser a libertao da
arte dos perigos que a ameaam do inoportuno arcadismo, do academismo e
do provincialismo.
247
A atuao do grupo Msica Viva e a divulgao das suas principais idias no Manifesto de
1946 se mostraram como uma extenso atualizada das propostas modernistas direcionadas
s artes plsticas e literatura, porm, desta vez adaptadas msica. J as propostas de
Mrio de Andrade, manifestadas tambm nO Banquete, acabaram por influenciar msicos
adeptos ao nacionalismo a rechaar qualquer aproximao com as novas propostas que
surgiam, atentando-se apenas ao folclore. Mas, no era essa a verdadeira proposta do autor,
pois o prprio sempre afirmara ser a temtica do folclore nacional apenas o primeiro passo
na estruturao de uma msica brasileira: A reao contra o que estrangeiro deve ser
feita espertalhonamente pela deformao e adaptao dele. No pela repulsa (Andrade,
1972, p. 21).
O fato que isso gerou um dos maiores conflitos estticos e filosficos da histria da
msica brasileira. De um lado, os msicos nacionalistas liderados por Camargo Guarnieri,
seguidores das idias andradeanas mesmo que de forma inconsciente eles no as
interpretassem como o proposto ; e do outro, o grupo Msica Viva, tendo sua frente H.J.
Koellreutter, defendendo a postura de absoro do universal. Ora, percebe-se que as
propostas de Andrade foram muito melhor interpretadas pelo grupo Msica Viva do que
pelos seus prprios seguidores. Neves (1981, p. 96) refora a falta de entendimento do ideal
nacional pelos compositores nacionalistas:
248
Mesmo o grupo demostrando repulsa pelas idias nacionalistas, da forma como elas
estavam sendo aplicadas msica brasileira, ntido a absoro dos propsitos de Mrio de
Andrade. Essa sntese de idias divulgadas atravs do Manifesto de 1946 se tornaria um
pilar fortssimo na msica brasileira, pois, logo aps o fim do grupo, surgem novas
correntes que viriam a reforar a importncia destes princpios, como o Grupo Msica
Nova (1960), que mais tarde teria grande importncia e influncia no trabalho do
movimento Tropicalista, principalmente com a atuao dos maestros Rogrio Duprat e
Jlio Medaglia como arranjadores. Consideramos, ento, que o estudo da ligao entre
Mrio de Andrade e o Msica Viva, principalmente no Manifesto de 1946, constitui uma
vertente frtil para a reflexo sobre a msica brasileira do sculo XX.
Objetivos
Existe, j publicado, o trabalho de Teca Alencar de Brito, Koellreutter educador (2001), na
rea de educao musical, relacionado forma como H. J. Koellreuter prope a educao e
os seus mtodos de trabalho, baseados nas suas premissas filosficas, que o acompanham
desde o grupo Msica Viva, e o trabalho do compositor e musiclogo Carlos Kater, Msica
Viva e H. J. Koellreuter: movimentos em direo modernidade (2001), que retrata a
histria do grupo e as atividades que este desempenhava.
Tanto Brito (2001) como Kater (2001) trazem ao pblico trabalhos que representam uma
nova faceta para a discusso sobre a importncia de H.J. Koellreuter e do grupo Msica
Viva para a histria da msica brasileira contempornea. Visto que antes havia uma
carncia de material que abordasse esses temas, do ponto de vista educacional e do ponto
de vista musicolgico histrico, salvo alguns autores como Mariz (1970, 1994) e
principalmente Neves (1981), que dedicaram pequenos captulos a Koellreutter e ao Msica
Viva em seus respectivos livros de histria da msica nacional.
At onde chegamos em nossa pesquisa, ainda no encontramos trabalhos que abordem de
forma aprofundada a importncia dos princpios adotados pelo movimento de Koellretteur
para outros msicos e grupos pertencentes histria da msica brasileira ps-Msica Viva.
Tambm fato que ainda no observamos a existncia de estudos sobre a importncia que
outros movimentos brasileiros anteriores ao grupo exerceram sobre a concepo de sua
postura vanguardista. Kater (2001, p. 92, nota 97), alerta:
A influncia de Mrio de Andrade, especialmente atravs de seu O Banquete,
aflora muitas vezes citaes diretas e ligeiramente adaptadas (vrias das quais
sem meno explcita do autor original). Carece ainda um estudo detalhado e
profundo da pregnncia das idias de Mrio sobre seus contemporneos, em
especial Koellreutter, pois ela parece ser bem maior do que temos
considerado.
249
250
Mrio de Andrade utiliza-se deste artifcio para expor suas idias nO Banquete6 a respeito
de uma temtica variada que permeia o campo musical da poca, sem se preocupar em ser
essencialmente pedaggico ou expositivo. Ele no pretende criar uma filosofia, mas deixase levar por um desenvolvimento dialtico do texto e usufrui desse meio para proferir seu
pensamento pragmtico, concreto.
Temos, ento, dois textos: um dilogo, sutil, irnico, bem-humorado e escrito de forma
simples, mas que expe assuntos que foram cruciais para o amadurecimento da msica
brasileira e que acaba desembocando num manifesto, escrito com extrema seriedade e que
prope de forma muito mais agressiva a ao dos msicos em relao, principalmente,
utilidade social da arte.
Guardados os devidos problemas contraditrios dos dois textos7 e os devidos conflitos entre
nacionalismo vs. universalismo, perceptvel que esta transfuso de idias de Mrio de
Andrade para o grupo Msica Viva (e aqui leia-se tambm para o trabalho de Koellreutter)
5
Resgatado por Kater (2001) que afirma no ter obtido informao suficiente para se certificar de que
ele tenha vindo a ser veiculado ou se foi apenas um esboo pessoal de Koellreutter para a elaborao
do Manifesto de 1946.
6
Idias esttico-filosficas que remetem o leitor obra Banquete de Plato, porm so longnquas as
ligaes entre os dois textos (Andrade, 2004, p. 13).
7
Durante o trabalho os dois textos sero analisados em tpicos separados e sero apontadas algumas
situaes contraditrias de cada escrito.
251
ser atingida na publicao do Manifesto de 1946, e que este, por sua vez ser refletido,
mesmo que involuntariamente, no trabalho de artista posteriores, principalmente no debate
sobre a funo social da arte.
Ser ento o Manifesto de 1946 uma continuao do inacabado O Banquete?
Mapa dO Banquete
O Banquete destaca-se na obra de Mrio de Andrade como o seu ltimo momento de
debate sobre a arte, assunto que sempre freqentou os questionamentos do literato. Foi
lanado trinta anos depois de sua morte em forma de livro. Na realidade, O Banquete uma
srie de textos publicados na Folha da Manh, na coluna intitulada de Mundo Musical,
onde Mrio de Andrade expunha suas idias regularmente s quintas-feiras entre maio de
1943 at o seu falecimento em 1945. O projeto inicial do autor era de escrever dez captulos
para a srie, mas a obra foi interrompida na primeira parte do captulo 6 devido sua morte,
restando somente a anotao dos tpicos que ele pretendia abordar nos captulos
posteriores. Esta foi a mais longo srie de textos do autor.
Mrio de Andrade cria um banquete fictcio com cinco personagens de diferentes nveis
sociais e culturais para promover um dilogo provocador de cunho esttico-filosfico sobre
a problemtica da msica, da arte e da criao na sociedade brasileira dos anos 40. Ele
aproveita a forma dialogada para lanar mo de suas ambigidades e s vezes insegurana
no texto, fazendo com que as falas das personagens nasam das contradies, do processo
dialtico que ele promove, ou melhor, em que as personagens se envolvem, j que o autor
inicia o texto afirmando categoricamente (Andrade, 2004, p. 47):
Oh meus amigos, si lhes dou este relato fiel de tudo quanto sucedeu e se falou
naquela tarde boa, boa e triste, no acreditem no, que qualquer semelhana
destes personagens, to nossos conhecidos, com qualquer pessoa do mundo
dos vivos e dos mortos, no seja mais que pura coincidncia ocasional. E
tambm certo, certssimo, que ao menos desta vez, eu no poderei me
responsabilizar pelas idias expostas aqui. No me pertencem, embora eu
sustente e proclame a responsabilidade dos autores, nesse mundo de
ambiciosas reportagens estticas, vulgarmente chamado de Belas Artes.
252
pilar para a comparao com a msica de sua cidade, porm em alguns momentos em que a
discusso toma um teor mais tenso, Andrade, mesmo tentando omitir-se do texto, reflete
sua opinio pessoal na voz da personagem, ou seja, confunde-se ela. Ao perceber essa
confuso, faz o texto voltar a realidade de Mentira.
Um exemplo bem claro quando Janjo fala sobre o princpio de utilidade, e Sarah Ligth o
traz realidade (Andrade, 2004, p. 144):
(..) Toda arte brasileira de agora que no se organizar diretamente do princpio
de utilidade, mesmo a tal dos valores eternos: ser v, ser diletante, ser
pedante e idealista. Que bem me importa agora si eu no fico que nem um
Racine, que nem um Scarlatti?... Que bem me importa si no vou ser
bustificado num jardim pblico, dentro de cem anos?... Que bem me importa
no ficar eternamente redivivo, se vivi...?
Mas meu amigo, nesse caso sempre voc tambm esta fixando o Brasil como
elemento da relao, para os seus julgamentos, de valor.
Percebemos que quando Janjo diz: Que bem me importa agora si eu ..., ele coloca-se
como cidado brasileiro, e isso ocorre em vrios momentos do texto, mas logo no captulo 1
Abertura , quando o autor est apresentando a personagem Siomara Ponga e expondo
sua vontade de cantar em Mentira, ele mostra a nacionalidade de Janjo, at ento omitida
no texto (Andrade, 2004, p. 55): (..)E si eu desse ao menos um recital das primeiras
cantatas italianas, das primeiras pastorais?... Si eu desse em Mentira, afinal ptria dele, ao
menos uma parte de recital dedicada s canes de Janjo?(...)
Desta maneira, Mrio de Andrade se torna Janjo ou Janjo se torna Mrio de Andrade? De
fato, o autor provoca este tipo de confuso para o leitor. Durante o texto, ele s vezes
tambm assume o papel da personagem Siomara Ponga, principalmente no captulo 3 Jardim de Inverno quando ela disserta sobre as sensaes estticas.
Fica claro que ele tenta omitir-se, mas a fora de seus questionamentos o faz, mesmo sem
querer, entrar no texto e ao perceber, retira-se, usando como ponto de fuga as prprias
personagens para alert-lo. Apontando alguns pontos contraditrios do texto, confirmamos
que o mesmo desenvolve-se de forma dialtica. Todavia, o que importa que a contradio
que toma conta dO Banquete o primeiro ponto em comum com o Manifesto de 1946,
outro texto bastante contraditrio. bvio que o mbito das contradies funcionam de
forma diferente nos dois textos, mas, o desenvolvimento dialtico dos pensamentos tanto de
Mrio de Andrade quanto do Msica Viva que chama a ateno para como seus princpios
foram elaborados e apresentados sociedade.
Aps esta pequena anlise do texto, levantamos um mapa das temticas abordadas durante
as discusses das personagens, para mais frente, compararmos com as idias propostas
pelo Manifesto de 1946 do Msica Viva. Seguem abaixo relacionados os pontos a serem
comparados:
253
A funo do artista.
254
Quando Kater fala em mosaico de flashes intensos de conscincia, ou ainda, grande painel
de idias, nos remete citao de Teles feita anteriormente,8 na qual fala sobre uma das
formas como os movimentos de vanguarda concebiam seus textos-manifestos. A publicao
do Manifesto de 1946 teve o aval dos seguintes participantes do grupo: Egydio de Castro e
Silva, Eunice Katunda, Gen Marcondes, Guerra Peixe, Heitor Alimonda, Koellreutter,
Santino Parpinelli e Cludio Santoro.
Sua redao foi inicialmente feita por Koellreuter e Jenny Pereira (que teve atuao de
secretariado no grupo), e foi apresentada ao grupo que, aps debater as idias propostas,
definiu o texto. Cludio Santoro, que estava ausente do grupo naquele momento, s teve
acesso ao texto quando este foi publicado na revista n. 12, e, apesar de ter dado o seu aval
a qualquer posicionamento que o grupo tomasse, discorda de alguns tpicos apresentados
no manifesto e aponta tpicos contraditrios a Koellreutter em carta direcionada ao
alemo9.
fato que apesar das evidentes influncias do pensamento andradeano na Declarao dos
Princpios, individualmente Mrio de Andrade no era unanimidade. Vejamos o que diz
Kater (2004, p. 93):
Mrio entretanto mltiplo (desde a Paulicia Desvairada, ele j se dizia ser
muitos). Veremos cada qual tomar dele o que mais lhe convm: para os
nacionalistas referncia mxima e bastante; aos propsitos de Koellreutter,
serve de maneira particular pela reflexo dilacerante que oferece; por sua vez,
as opinies dos membros do grupo Msica Viva em relao s suas teses no
so unnimes. Por um lado Guerra Peixe considera que a msica brasileira
comea em Carlos Gomes e termina... em Mrio de Andrade e Eunice
Katunda tem no Ensaio sobre a msica brasileira seu livro predileto de
cabeceira. Santoro, por sua vez, no reconhece nenhuma virtude nas
formulaes polticas e estticas, do poeta modernista, muito ao contrrio. (...)
Inicia-se ento um abalo na estrutura do grupo que culminaria mais tarde em divergncias
de idias mais srias, principalmente, entre Cludio Santoro e Koellreutter, mas a inteno
agora mostrar que assim como nO Banquete de Mrio de Andrade, o Manifesto de 1946
um grande foco de contradies, palavra que permeia os movimentos de vanguarda, salvo
que esses sempre se posicionam na contrariedade do momento e acabam por completar o
processo tese/anttese, proporcionando, atravs da dialtica, o surgimento de novas
proposies a respeito do campo artstico no qual esto submetidos.
Aps esta exposio sobre a Declarao dos Princpios, fizemos, assim como no texto dO
Banquete, um mapeamento inicial dos assuntos que sero aproximados obra de Mrio de
Andrade e ponderados juntamente com ela. Dada a reflexo que Neves (1981, p. 94) faz
255
sobre o manifesto resolvemos adotar como pontos bsicos para o trabalho os cincos tpicos
em que ele resume a exposio do grupo:
Prximos passos
Depois de avaliar os dois textos de forma individual, pretendemos aprofundar ainda mais a
anlise desse material para validar os pontos selecionados em cada tpico e observar como
os pensamentos de Mrio de Andrade e do Msica Viva se desenvolviam em relao aos
temas propostos para cada texto central de pesquisa. Depois desta avaliao, partiremos
para a aproximao das idias selecionadas nos dois textos a fim de estudar o que de fato
foi absorvido e repelido pelo grupo em relao s idias sugeridas por Andrade em seu
ltimo trabalho, e como elas foram traduzidas para um posicionamento considerado
antagnico ao do escritor modernista.
Referncias Bibliogrficas:
AMARAL, Aracy. Artes Plsticas na Semana de 22: subsdios para uma histria da renovao nas
artes no Brasil. 4. Ed. So Paulo: Perspectivas, 1979.
ANDRADE, Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. 2 Ed. So Paulo: Martins, 1972.
_____. Introduo esttica musical. So Paulo: Hucitec, 1995.
_____. Msica, doce msica. 2. Ed. So Paulo: Martins, 1963.
_____. Msica e Jornalismo. So Paulo: Hucitec, 1993.
_____. O Banquete. 3. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004.
_____. Obra Imatura. 3. Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
_____. Prefcio Interessantssimo. Paulicia desvairada. In Poesias Completas, So Paulo: Martins,
1966.
BASBAUM, Ricardo. Migrao das palavras para a Imagem. Gvea 13. Rio de Janeiro: PUC-RJ, set.,
1995, pp. 373392.
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador. Petrpolis: Fundao Petrpolis, 2001.
Caderno de Estudos: Educao Musical, Belo Horizonte: Atravez/EM-UFMG/FEA, n. 6, fev., 1997.
256
Introduo
Este artigo sobre a chamada msica instrumental, ou seja, a msica popular
instrumental brasileira. Chamada de instrumental brasileiro ou msica instrumental
pelos msicos e apreciadores, este gnero da msica popular brasileira, alm de ser
instrumental, tem como caracterstica fundamental uma tenso com o jazz norte-americano
e uma tenso com a MPB, conforme os estudos de Piedade (1997, 1999, 2003, 2005). A
msica instrumental tambm conhecida como jazz brasileiro, principalmente no
cenrio internacional, e doravante ser referida pela sigla MI. Neste artigo, inicialmente
comentaremos a tenso entre MI e MPB, que envolve a dicotomia msica/letra, elementos
importantes na compreenso da MI. Em seguida, este artigo traa um esboo do
desenvolvimento histrico da MI.
A voz, a cano e a msica instrumental: MI vs. MPB
O termo msica instrumental aponta para uma msica tocada exclusivamente por
instrumentos, ou seja, sem texto ou letra. Esta parece ser uma identidade bsica da MI,
porm h comentrios a se fazer. Primeiramente, o fato desta msica ser instrumental no
exclui o uso do canto, mas apenas da letra. A voz no est fora da MI justamente porque ela
ali utilizada como um instrumento: no circuito da msica instrumental h diversos
trabalhos com voz, como no disco Mundo Verde Esperana, de Hermeto Pascoal
(Pascoal, 2002) e Meu Brasil, de Teco Cardoso, (Cardoso, 1997). A voz na MI exerce um
papel diferente do que na MPB, onde existe uma distino clara entre o cantor e os
instrumentistas. Isto envolve uma questo de hierarquia que denuncia um aspecto da tenso
entre a MI e a MPB: a posio superior em que se encontra o cantor em relao aos
instrumentistas que o acompanham. Esta proeminncia do cantor parece incomodar os
instrumentistas, na medida em que ele que ganha mais visibilidade e popularidade.
Haveria, na MI, uma tentativa de diluir esta hierarquia? Ou ela migra, ali, para a dicotomia
instrumentos meldicos/instrumentos harmnicos, ou instrumentistas solistas/
instrumentistas de base? Isto seria mais plausvel, pois no possvel um igualitarismo
completo em msica, onde constante o jogo entre frente e fundo, significado literal e
profundo.1
O esforo de retirar o peso da hierarquia cantor/instrumentista est muito presente na
consagrao do termo msica instrumental, que aponta inicialmente para a excluso do
canto. Porm, como vimos, na MI a voz aparece como um outro instrumento, dobrando a
1
258
importante notar que a oposio MI/MPB tem a ver com a dicotomia msica/letra.
importante lembrar que estes cantores de msica instrumental so em geral compositores e
intrpretes de suas prprias composies, e no somente intrpretes propriamente falando. O perfil
destes artistas parece mais com o de compositor-cantor do que com o de cantor-intrprete.
4
Apontando para um desejo (ou iluso) de universalidade tipicamente atribudo ao repertrio erudito
ocidental, tanto no senso comum quanto na musicologia a partir de Hanslick (1996). Note-se que,
para Hamm (1995), o discurso da autonomia musical constitui uma narrativa modernista.
3
259
modinha questionada, sendo que alguns autores afirmam que ela portuguesa. Conforme
este autor, as modinhas brasileiras so anlogas s portuguesas no que confere melodia,
mas a modinha brasileira teria uma caracterstica rtmica acentuada que lhe vital,
caracterstica compartilhada pela maior parte da msica popular urbana do Brasil. Na
origem da modinha encontra-se o compositor e tocador de viola Domingos Caldas Barbosa,
figura importante da msica popular brasileira (Bastos, 2000; Tinhoro, 2004). Este msico
levou a modinha brasileira Europa, mostrando seu carter essencialmente amoroso.
Muitas das modinhas eram tocadas em duos, com linhas meldicas em teras ou sextas
paralelas, com acompanhamento de viola. Surgida nos sales da elite, em pouco tempo a
modinha j estava nas camadas populares (cf. Kiefer, 1986). claro que a modinha no
msica instrumental, porm seu lirismo melanclico constitui uma importante faceta da
musicalidade brasileira que se faz presente no choro e na MI, aparecendo ali claramente em
temas e improvisos.
O lundu descende diretamente do chamado batuque das populaes afro-brasileiras.
Segundo Tinhoro (1975), a palavra batuque era aplicada de forma genrica a todos os
ritmos produzidos base de percusso. No final do sculo XVIII, devido ao fracasso das
medidas repressivas tomadas pelas autoridades colonizadoras e pela igreja em relao s
msica afro-brasileira, a metrpole acabou cedendo e as danas dos pretos passaram a
ser toleradas, ao contrrio das danas gentlicas e supersticiosas. Neste perodo, o lundu
surge como uma adaptao da coreografia do fandango ao batuque dos negros, realizada
por brancos (Kiefer, 1986). Tanto o ritmo quanto as chamadas umbigadas permanecem
no lundu como marcas de sua africanidade. Apesar da confuso entre batuque e lundu, o
aparecimento do lundu no eliminou o batuque (op.cit.). Note-se que o lundu era um gnero
instrumental, somente mais tarde se tornando vocal. No incio do sculo XVIII, o lundudana instrumental inicia sua ascenso classe dominante, percorrendo o caminho
contrrio do que seguiria, mais tarde, a modinha. Kiefer (op.cit.) levanta a hiptese de que
foi Caldas Barbosa quem transformou o lundu-dana em lundu-cano, isto pela
impossibilidade de v-lo danado em Portugal (em sua forma instrumental) e para que, l
vivendo, pudesse matar as saudades do Brasil. Para Oneyda Alvarenga (1950), o lundu
deu msica brasileira caractersticas musicolgicas importantes, como a sistematizao da
sncope e o emprego da stima abaixada, ou seja, acordes de stima menor.
Na segunda metade do sculo XIX o lundu perde a fora, fundindo-se com a polca, dana
instrumental importada da Frana. A polca-lundu tomou conta do Rio de Janeiro na
poca. Por outro lado, o lundu-dana foi desembocar, juntamente com elementos de outras
danas, no maxixe, gnero que foi, por algum tempo, expoente mximo da dana urbana
brasileira. Alm disso, o lundu-dana manteve-se, em manifestaes espordicas, at o
sculo XX (Moura, 1983). Vejamos, ento, alguns pontos sobre a polca e o maxixe.
A polca foi lanada no Brasil pelas companhias teatrais. Sua semelhana com o lundu na
diviso rtmica fez com que acontecesse uma fuso entre os dois e que surgisse uma
forma moderna de danar que teria seu desdobramento no maxixe. Moura (1983) sugere
que, em 1873, com um anncio no Jornal do Comrcio sobre a polca-lundu intitulada
Quem no tem cimes no ama, surge a msica popular brasileira moderna.
Vindo dos bailes negros e das gafieiras da Cidade Nova (bairro que fazia a fronteira entre o
Rio de Janeiro da elite e aquele dos subalternos) o maxixe era uma dana marcada pela
corporalidade africana, interpretada como sensual ou ertica, passando a atrair o pblico
masculino de classe mdia. O maxixe, que comeou ao som dos chamados tangos
260
brasileiros, foi inicialmente mais um modo de danar do que um gnero musical. O pice
do maxixe se deu na segunda dcada do sculo XIX, continuando depois com menos peso
at ficar praticamente desaparecido a partir da chegada do fox-trot no Brasil e, depois, com
o surgimento do samba. O conceito de maxixe chegou a se confundir com o de samba,
aparecendo em composies como Pelo telefone (cf. Moura, 1983), de Donga e Mauro de
Almeida. O maxixe um elemento muito importante na formao da msica instrumental
do choro, como veremos.
Com estes breves apontamentos sobre modinha, lundu, polca e maxixe, procuramos
destacar que se tratam de gneros fundamentais da musicalidade brasileira, e que se
encontram presentes na MI. Um estudo musicolgico do repertrio da MI poder revelar
como ali se encontram nexos com o lirismo melanclico da modinha e a sensualidade do
lundu. Passaremos agora para o choro, que constitui um gnero instrumental da msica
brasileira que se prolonga at o presente momento.
Para o folclorista Lus da Cmara Cascudo, a palavra choro viria de xolo, baile de
escravos, que teria se modificado at chegar em choro. J Vasconcelos afirma que a
origem do termo est nos chamados choromeleiros, msicos do perodo colonial
brasileiro, sendo que na poca passou-se a chamar qualquer agrupamento instrumental de
choromeleiros e, depois, teria surgido a abreviao choro (Vasconcelos, 1964).
Tinhoro menciona outra origem: o termo viria da impresso de melancolia gerada pelas
baixarias do violo (Tinhoro, 1998). Se a idia de melancolia, ou mais propriamente
nostalgia, coerente com o esprito do choro, as linhas de baixo do violo de sete cordas
no parecem abrigar este ethos: parecem muito mais surgir como emulao do papel de
instrumentos de sopro como tuba ou bombardino5. Lembre-se que, desde a segunda metade
do sculo XIX, as bandas de sopros eram uma formao muito popular e, portanto, tuba e
bombardino eram instrumentos comuns.
A palavra choro apareceu, portanto, com diversos significados no decorrer da histria.
Choro podia significar grupo de chores, a festa aonde se tocava choro, um modo de
tocar. Somente na dcada de 10 que o termo passa a designar uma forma musical fixa e a
significar um gnero musical (Cazes, 1998). Segundo Oliveira (2000), a origem do choro
est na nova classe formada no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do sculo XIX,
que ele chama de pequenos burgueses. Nesta poca eram comuns, principalmente na
capital do imprio, os chamados grupos de pau e corda, constitudos por violo,
cavaquinho (cordas) e flauta (pau, pois eram de bano).6 Devido carncia de eventos
pblicos para o divertimento dessa classe, os funcionrios pblicos faziam encontros nas
suas prprias casas. Para animar estes encontros, os prprios participantes da festa tocavam
em trios de pau e corda, e foi nesses encontros que o choro nasceu. No final do sculo
5
261
XIX, o trio mais conhecido era O Choro Carioca, do qual Antnio da Silva Callado fazia
parte. Callado foi um dos muitos flautistas virtuoses da sua poca (Diniz, 2002) e
contribuiu com o seu grupo no abrasileiramento da polca e na afirmao do choro como
gnero musical (Oliveira, 2000).
O choro nasceu da mistura de estilos e sotaques: partindo das danas europias
(principalmente da polca), do acento portugus (o nostlgico toque metlico da guitarra
portuguesa) e da influncia negra (essencialmente no mbito rtmico). Note-se que o
processo de desenvolvimento das msicas populares urbanas, como o choro, aconteceu de
forma similar em diversos pases: por onde houve colonizao portuguesa, a msica
popular se desenvolveu basicamente com o mesmo instrumental, cavaquinho e violo, nem
sempre com flauta. (Cazes, 1998).
Em termos formais, o choro tem normalmente trs partes e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Um tipo de forma rond (sees diferentes intercaladas pela
repetio do A), sendo tambm caracterstica a improvisao e o esprito de competio
(cf. Cazes, 1998). A competio, no choro, acontece em dois patamares: entre os grupos e
entre os msicos de um mesmo grupo. A competio entre os grupos tem uma herana dos
trios de pau e corda, que tocavam no mesmo recinto, disputando sucesso. A competio
entre os msicos do mesmo grupo funciona como uma espcie de jogo do solista, que tenta
derrubar os acompanhadores, e vice-versa (Oliveira, 2000). Comentaremos a seguir
aspectos da improvisao no choro.
O improviso no choro deve ser entendido como uma variao da melodia do tema principal.
No jazz, o improviso muito mais a criao de novas melodias em cima de uma harmonia
fixa (cf. Oliveira, 2000). De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com
liberdade para interpret-la, flore-la, vari-la, mantendo seus traos temticos sempre
claros. Pode-se dizer que o solista, assim como o acompanhamento de base, especialmente
as linhas de baixo, esto improvisando (variando) durante a msica inteira. Atualmente,
temos notado choros com improvisos em sees do tipo chorus, ou seja, o foco no
improviso de um msico solista sobre a base harmnico-polifnica do tema. Este tipo de
improviso com chorus provavelmente uma influncia do jazz no choro.7 Um aspecto
comum entre o jazz e o choro , sem dvida, a improvisao generalizada e o carter de
interao entre os msicos na performance (para o caso do jazz, ver Monson, 1996). Um
exemplo de grande improvisador de choro Pixinguinha, que ainda adolescente tocava
flauta na Orquestra do Teatro Rio Branco e j era conhecido como grande improvisador,
pois floreava as melodias (Oliveira, 2000).
Pixinguinha foi um grande instrumentista (tocava flauta e saxofone), arranjador e
compositor. Segundo Cabral (1978), houve um momento em que Pixinguinha trocou a
flauta pelo sax: foi a que, tocando com Benedito Lacerda e desprovido da condio de
solista, passou a compor e improvisar contracantos. Abaixo comentaremos aspectos deste
momento importante no choro. Pela sonoridade que tirava do saxofone e pelo seu estilo,
Pixinguinha acabou tendo muitos seguidores da sua msica, criando uma verdadeira escola
do saxofone no Brasil. Alm disso, a sua forma de arranjar influenciou e continua
influenciando grandes msicos brasileiros, sem falar nas suas composies consagradas,
7
Note-se que nos primrdios do jazz no havia improvisao tipo chorus, mas sim variaes, a
exemplo do choro.
262
que so tocadas at hoje em qualquer roda de choro e por muitos instrumentistas (Cabral,
1978).
Falar de Pixinguinha falar dos chamados Oito Batutas. Surgido em 1919, este grupo
possua em seu repertrio msicas instrumentais e cantadas: maxixes, lundus, canes
sertanejas, batuques, caterets. A estria dos Oito Batutas foi na sala de espera do renomado
Cine Palais, no Rio de Janeiro, e no fim de 1919, j estavam fazendo viagens pelo interior
do Brasil (ver Cabral, 1978). Em 1922, so convidados para ir a Paris, ali ficando em torno
de seis meses, em contato com o jazz do cenrio francs dos anos 20. Quando voltaram
foram acusados de terem sofrido influncia das jazz bands (Oliveira, 2000). De fato, o
saxofone entrou para o mundo do choro com a volta de Pixinguinha, que trouxe um sax de
Paris (Coelho, 2004), e neste mundo ele foi incorporado de modo impressionante.8 Tanto
que um dos maiores expoentes atuais do choro, Paulo Moura, saxofonista. Em geral, estes
instrumentistas tocam clarinete, e o papel do saxofone no choro est ligado a este outro
instrumento.
J comentamos a importncia da entrada do saxofone no choro, ligada ao papel polifnico
de contracantos. Coelho (2004) notou que Pixinguinha passa gradualmente da primeira para
uma segunda voz, criando uma textura polifnica no choro, fundamental no
desenvolvimento deste gnero (ver tambm Oliveira, 2000). Os contrapontos de
Pixinguinha eram to bem feitos que acabam muitas vezes roubando a cena do tema
principal, que nos Oito Batutas era tocado por Benedito Lacerda na flauta (Coelho, 2004).
Os Batutas voltaram ao Brasil com algumas novidades: uma delas, bem marcante, que, ao
invs de percusso, os Oito Batutas agora tinham tambm uma bateria. O grupo passou,
ento, a se chamar Bi-orquestra Os Batutas, com bateria e trombone. Seria ao mesmo
tempo um grupo de choro e uma jazz band.
De fato, a idia de jazz band, ao menos para o jazz francs do incio do sculo XX, estava
ligada formao instrumental de banda de sopros com piano e bateria (ver Cabral, 1978
apud Coelho, 2004). As jazz bands tocavam marchas, emboladas, maxixes, choros e
msicas latino e norte-americanas (Cabral, 1978). Por volta de 1933, foi criada uma
orquestra nos moldes norte-americanos para tocar ao vivo na recm-inaugurada Rdio
Tabajara, na cidade de Joo Pessoa. Esta orquestra foi montada com a nata musical
paraibana da poca, e tocavam arranjos trazidos da Europa e dos Estados Unidos. Em 1936,
Severino Arajo foi convidado a integrar esta orquestra e, logo em seguida, substituiu o
falecido regente Olegrio. Severino tinha apenas vinte e um anos quando assumiu a
regncia da Orquestra Tabajara e mesmo assim fez exigncias para aceitar o cargo: quis
modificar o som da orquestra de salo e fazer dela uma big band brasileira. Severino
assumia a influncia norte americana: nesta poca, j admirava Benny Goodman
(clarinetista e arranjador que fez muito sucesso no incio dos anos 30). Quando a Orquestra
Tabajara veio para o Rio de Janeiro, em 1944, Arajo passou a escrever arranjos de peas
do repertrio de msica popular brasileira conforme a linguagem americana de
orquestrao de jazz. O novo repertrio inclua msicas de K-Ximbinho, importante
compositor e arranjador que fundia muito bem o choro e os elementos harmnicos do jazz.
Segundo Cazes, K-ximbinho compunha choros que sugeriam acompanhamentos do tipo
daquele da futura bossa nova (Cazes, 1998).
8
263
264
grupos de tendncia jazzstica. Pode-se dizer, em termos da estrutura formal, que a forma
de improvisar um demarcador importante entre choro e MIl: enquanto o primeiro
calcado em princpios de variao, o segundo segue o modelo de criao e articulao de
frases-padro em estrutura do tipo chorus. Assim, a MI se mantm como MI, mesmo
quando se toca choro.
claro que estas duas tendncias do choro atual no so separadas com tanta clareza.
Existem interseces e trocas entre as duas categorias9. Podemos citar aqui o nome de
algumas pessoas que esto no campo do choro e que atuam em uma ou ambas tendncias:
Isaas, Israel, Maurcio Carrilho, Pedro Amorim, Paulo Moura, Proveta, Jorginho do
pandeiro, Altamiro Carrilho, Luiz Otvio Braga, Paulinho da viola e Yamand Costa. Mas
se h uma preocupao em distinguir MI e choro, e se o choro no a matriz bsica de
onde surgiu a MI, onde ela se encontra? Para Piedade, no mundo instrumental em torno da
bossa nova (Piedade, 1997, 1999, 2003).
A bossa nova surgiu nos anos 50, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali, cantores,
instrumentistas e compositores amantes do jazz americano, da msica brasileira e da msica
erudita se reuniram e criaram este gnero que viria a influenciar a msica mundial (Castro,
1990). Esta triangulao est expressa por Scarabelot (2004) na diviso da bossa nova em
trs pilares: Joo Gilberto com seus sambas peculiares, Tom Jobim com sua experincia
erudita e jazzistas de Copacabana. Nos anos 60, com Laurindo de Almeida, Charlie Byrd e
Stan Getz, a bossa nova apresentada ao pblico norte americano. Foi nesta poca que o
jazz comeou a incorporar elementos da bossa nova, assim como nos anos 40 incorporou
elementos da msica cubana. Se o samba e a msica de Carmem Miranda representavam
para os americanos a criatividade extica, a bossa nova penetrou intensamente na cultura
americana, mas pela inovao na mescla de refinadas harmonias, esprito cool e batida
rtmica tpica (Scarabelot, 2004). Embora a influncia do cool jazz na bossa nova seja
reconhecida pelos prprios bossa-novistas, as razes da bossa nova podem estar muito mais
fortemente estabelecidas na prpria msica brasileira, na dimenso dos arranjos (ver
Pinheiro, 1992) e mesmo na meldica das modinhas (Bastos, 1996).
Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma gerao
de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gnero no Brasil. Estes
instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertrio de bossa nova e jazz
instrumental, sendo que muitos eram na formao clssica jazzstica de trio (piano,
contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio,
Bossa Trs, Sambalano, e outras formaes, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal),
samba-jazz (de J.T. Meireles) e os Copa 5.
Para Piedade (1997, 1999, 2003), neste universo instrumental da bossa nova que surge a
MI. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, a
destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan
Getz e Joo Gilberto simboliza um dilogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz
norte americano que , para este autor, uma caracterstica fundamental da msica
instrumental brasileira.
Assim, chegamos ao momento no qual o esboo da histria da msica instrumental
brasileira est traado, da modinha bossa nova. A partir da, o gnero se consagrou pouco
a pouco. De incio, atravs de msicos brasileiros que moravam nos Estados Unidos, como
9
O choro tem sido objeto de diversos estudos recentes, tais como Freitas (2005) e Oliveira (2003).
265
Airto Moreira, Eumir Deodato, Flora Purim, Oscar Castro Neves, entre outros. Atravs da
atuao destes msicos e dos expoentes da bossa nova, elementos da msica brasileira
foram incorporados msica norte-americana, da se difundindo para o mundo. E,
especialmente no caso do jazz, estas leituras e apropriaes acabaram voltando para
fertilizar a msica instrumental brasileira, no movimento reflexivo entre duas musicalidades
globais.
Apesar da cultura brasileira ter sido bastante afetada pela ditadura militar, no Brasil (anos
70) surgem alguns selos no eixo Rio/So Paulo que veiculam a MI, como o Lira Paulistana.
O selo Lira Paulistana tinha tambm um teatro para apresentaes musicais, o que
contribuiu para a consagrao da MI.
Em outros centros urbanos do pas o gnero tambm se desenvolveu significativamente,
como, por exemplo, em Minas Gerais, onde surge o Clube da Esquina. Clube da Esquina
o nome de dois LPs de Milton Nascimento (Clube da Esquina e Clube da Esquina II) que
reuniam diversos instrumentistas, cantores e letristas mineiros como: L Borges, Tavinho
Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e Mrcio Borges.
Segundo Caetano Veloso (BORGES, 1996), Milton Nascimento foi -- o elemento
catalisador, o prprio lugar de inspirao do movimento. Para este autor, a msica de
Milton Nascimento e do Clube da Esquina um desdobramento da bossa-nova (...), uma
continuidade em relao ao samba-jazz carioca, uma fuso que partindo de premissas
muito outras e de uma perspectiva brasileira conflua com a fusion inaugurada por Miles
Davis. Em 1964, alm de cantar em bailes, Milton Nascimento tocava baixo acstico em
um trio de bossa nova e jaz com Wagner Tiso e Paulinho Braga, o Tempo Trio. Fica claro
que a relao do Clube da Esquina com a MI, independentemente da letra ou da voz, est
fincada em uma relao de continuidade com a bossa nova e no dilogo com o jazz e os
jazzistas.
A partir dos anos 80, o jazz brasileiro entra no circuito internacional de festivais de jazz
(por exemplo, o de Montreux). A partir deste momento, as obras de Hermeto Pascoal e
Egberto Gismonti tm sido muito importantes para a formao da MI como um gnero
pleno, com termos temticos, estruturais e estilsticos relativamente estveis. Com a
maturidade do jazz brasileiro nos anos 80, os anos 90 representaram um perodo de
impressionante crescimento e vigor. Atualmente, a produo da MI gira em torno de
gravadoras que so, na maioria das vezes, administradas pelos prprios msicos (p. ex.
Ncleo Contemporneo, Maritaca, entre outras). Ou seja, a MI continua inscrita em um
circuito alternativo, havendo um mercado restrito para o gnero no Brasil. Faz parte deste
mundo da MI festivais e oficinas peridicas, realizadas em vrias cidades brasileiras. Estes
encontros renem nomes como: Proveta, Daniel S, Man Silveira, Vincius Dorin, Arismar
do Esprito Santo, Cizo Machado, Paulo Moura, Lea Freire, Raul de Souza, entre outros
instrumentistas conceituados.
Comentrio final
Neste artigo, pretendemos focalizar, inicialmente, uma caracterstica da msica
instrumental brasileira que se relaciona justamente com o fato de ser uma msica
instrumental e, portanto, que exclui a letra e o cantor, sendo que procuramos destacar as
questes da hierarquia e da ambigidade destes fatores. Em seguida, o artigo apresentou um
breve panorama histrico da MI, especialmente em contraste com a histria do choro. Com
os subsdios at aqui obtidos, acreditamos que seria importante investigar mais a fundo a
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MI, principalmente no que toca profundidade antropolgica de toda esta faceta da msica
brasileira. Ao mesmo tempo, justamente com estes nexos scio-culturais e histricos em
mos, a anlise musical propriamente dita de peas do repertrio da MI poder consolidar
uma musicologia deste importante gnero da msica brasileira, e revelar toda a sua riqueza
e interesse.
Referncias bibliogrficas
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Marina Beraldo Bastos: Estudante de graduao em Msica (UDESC); bolsista de
iniciao cientfica (PROBIC/UDESC); Membro do grupo de pesquisa
MUSICS/UDESC/CNPq; Atua na cidade de Florianpolis (S.C.) nos grupos Por
Por e Quarteto Sonoroso, como flautista, no Poliphonia Khoros, como cantora,
e na Escola Livre de Msica Compasso Aberto, como professora. Accio Tadeu de
Camargo Piedade Doutor e Mestre e Antropologia (UFSC), Bacharel em Msica
(UNICAMP); professor e pesquisador nas reas de musicologia/etnomusicologia e
composio/arranjo no Departamento de Msica da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa MUSICS (Msica, Cultura e
Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e Sociedade na Amrica Latina e
Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International Council for Traditional Music
(ICTM), da Associao Brasileira de Antropologia (ABA), da Associao Nacional
de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica (ANPPOM) e da Associao Brasileira de
Etnomusicologia (ABET).
|resumos de psteres|
Resumos
estocstica, estabelecendo relaes entre as massas sonoras e seus elementos
constituintes, no caso destacando-se especialmente as clulas rtmicas utilizadas pelo
compositor, com uma srie de referenciais pertencentes escuta. E por causa desse
dilogo com o repertrio tradicional, combinando-o com elementos contemporneos
da linguagem musical, o discurso musical em Psappha adquire uma riqueza e
densidade que a caracterizam como uma obra importante dentro do repertrio musical
contemporneo.
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Msica e comunicao
Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educao da Prefeitura Municipal de
Curitiba)
Resumo: Palavras-chaves: educao musical; indisciplina; msica e comunicao.
Este um projeto de educao musical chamado Brincando com Sons, que est sendo
desenvolvido na Escola Municipal CEI Eva da Silva. Observando a indisciplina que
havia na escola e o interesse dos alunos pela msica, esto sendo desenvolvidas
atividades, como uma alternativa de ensinar e aprender de maneira ldica e
significativa. Este projeto tem como primcias melhorar a aprendizagem do aluno para
um desenvolvimento global, estimulando e valorizando suas habilidades e
competncias, melhorando sua auto-estima e interesse atravs da msica. O projeto
surgiu com o intuito de trabalhar a msica como forma de comunicao e suas
propriedades em sala de aula, onde os alunos possam utilizar suas realizaes
musicais com maior preciso e significao. O projeto busca a sensibilizao ao som
atravs da Apreciao, Execuo e Composio Musical utilizando canes
folclricas, brincadeiras de roda, brinquedos cantados, trava-lnguas, quadrinhas,
contos sonoros, composies coletivas, etc, manipulando instrumentos de percusso,
sendo alguns confeccionados pelos prprios alunos.
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Resumos
menor ou igual a 12 meses. Alguns modelos de evoluo da comunicao humana,
bem como estudos sobre as relaes entre a msica e a linguagem oral sero revisados
e utilizados para fundamentar a discusso. De acordo com a idia de replicao,
altamente conhecida na biologia, caso algum desses modelos seja vlido para o
desenvolvimento infantil, ento talvez possamos generaliz-lo para a evoluo da
espcie humana. Apesar de ser um tema de interesse comum entre musiclogos,
lingistas e diversos outros especialistas, a falta de estudos interdisciplinares e de uma
taxonomia comum muitas vezes prejudica os resultados e dificulta um avano
significativo. A presente pesquisa apresenta-se como interdisciplinar na medida em
que busca em diversas reas do conhecimento respostas para as questes relacionadas
origem da msica e da linguagem oral e pretende com isso possibilitar a criao de
termos que possam tornar possveis pesquisas multidisciplinares futuras.
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Uma concepo de relao entre arte e vida sob a tica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR)
Resumo: Partindo de um dos pilares do pensamento do filsofo alemo Friedrich
Nietzsche, a saber, a assim considerada viso ontolgica dos gregos e a relao destes
com a sua arte e a sua religio, pretende-se mostrar at que ponto se torna possvel
prescrever uma separao entre a vivncia artstica e a prpria vida, levando-se em
conta as implicaes desta separao no que se refere s possibilidades de relao do
ser humano considerado em seus aspectos racionais, ticos, estticos e filosficos.
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