Definitivo-Mistérios de Um Amor PROIBIDO-12!05!11

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Claudio Pereira da Silva

Mistrios de Um
Amor Proibido

So Paulo
1 Edio - 2011

Cludio Pereira da Silva

Copyright 2011 Todos os direitos reservados a:


Claudio Perreira da Silva

ISBN: 978-85-7893-000-0

1 Edio
Maio 2011

Direitos exclusivos para Lngua Portuguesa cedidos


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Mistrios de Um Amor Proibido

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Cludio Pereira da Silva

Mistrios de Um Amor Proibido

Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Deus, por tudo que tem
feito a mim e minha famlia, como um todo, meu
pai, me e irmos, Samuel e Paulo Sergio, agradecer
tambm aos meus professores e amigos, Nilda,
Cristiane Faustino, Sabrina, Mrcio, Rita, Sergio e Ana
Paula.
Deus sabe todas as coisas, sabe o dia e o
momento de nos dar aquilo que queremos; o
importante no desistir dos sonhos. Pois so dos
sonhos que a vida feita, sonhar transcender a
vida e ir alm da alma. Assim como ler um livro.
Viver saber esperar o momento de ir alm do que
pensamos ou desejamos. Sem deixarmos de
reconhecer quem nos ajudou, o reconhecimento o
maior sentimento que um ser humano pode ter para
com o outro. Saber reconhecer uma ajuda e gratificla, pois isso coisa de Deus. Jamais devemos ser
arrogantes ao ponto de deixar de agradecer a todos
que o cercam, sejam eles amigos ou pessoas que
querem o seu mal. Pois na hora da adversidade que
vemos a luz no fim do tnel... A ingratido o pior
sentimento que o ser humano pode ter, por isso,
agradeo a todos que esto relacionados acima.

Cludio Pereira da Silva

Nota do autor
Caros leitores, com muita honra que lhes
apresento o meu romance de lanamento no meio
literrio. Este um livro cheio de romantismo, drama
e muita emoo. Espero que a leitura desta obra
traga-lhes muita alegria e compreenso a todos.
Esta obra traz marcas de um passado no muito
distante ao nosso, contudo deixou uma saudade
imensurvel aos amantes do romantismo. Foi uma
era de muito romantismo e de muita luta. Luta por
ideais como a abolio da escravatura, ascenso da
burguesia, queda do Imprio e criao da Repblica
que conhecemos hoje. Devemos ver o passado no
s como coisas que j passaram, contudo como um
aprendizado para o futuro; o passado no apenas
algo que est nos livros, mas est dentro de cada um
de ns. Entender o passado sobreviver no presente
e no futuro; no existe presente nem futuro sem
haver passado.
A narrativa a seguir um texto meramente
ficcional, no h nenhuma ligao com pessoas vivas
ou
mortas.
Qualquer
semelhana

mera
coincidncia.

Mistrios de Um Amor Proibido

Sinopse
A narrativa far uma viagem entre dois sculos,
contando a histria de dois coraes apaixonados.
Beathriz, uma moa linda, meiga e de corao bom
que, diante das dificuldades da vida se v
apaixonada por algum que lhe parece ser o melhor
partido da regio. Henrique, rapaz de boa famlia,
abenoado pela natureza que fora generosa com ele,
pois lhe despejara a fortuna e a beleza. A fortuna que
fora despejada sobre a cabea dos dois na parte
material fora-lhe tirada quando o assunto era o
sentimento. Rodeados por pessoas malficas e
invejosas veem-se em maus lenis, quando se
decidem unir. Tudo isso rodeado por um grande
mistrio, que ser revelado somente no final.
H muito tempo, houve uma poca em que o
cavalheirismo e a magnificncia predominavam; a
honra e a dignidade eram fatores importantes
perante a sociedade e na constituio familiar. poca
em que as damas se vestiam com o maior esmero.
Crinolinas,
anguas,
merinaques,
musselina,
chamalote, entre outros artigos de luxo.
Nesse mundo o galanteio fez sua ltima
mesura. Aqui foram vistos pela ltima vez os
sinhozinhos e suas sinhazinhas, bares e escravos,
procurem-nos apenas em livros, pois no passam de
um devaneio a ser rememorado.
Boa leitura!
Cordialmente,
Claudio Pereira.

Cludio Pereira da Silva

Prefcio
Em algum lugar do passado
So Paulo, dezessete de maio de 1999.
Sempre pensei no passado como um tempo de
amores impossveis com mocinhas, mocinhos,
senhores e escravos. Mas, dentro do meu ser, l no
fundo do meu mago, sempre soube que minha
vinda na Terra no havia sido em vo.
A paixo pelo passado sempre me perseguiu.
Era latente, um sentimento de xtase, dor e alegria
por no ter tido a oportunidade de viver em uma
poca, sculo XIX; quando a vida ainda fazia sentido.
Pessoas lutavam para manter a honra, a moral, os
bons costumes, a classe e o poder. Sangue era
derramado a cada novo defronte em um duelo,
duelos sangrentos que sempre ceifavam a vida de
um ser, ou de outro. Assim como disse o grande
escritor William Shakespeare: Ser ou no ser, eis a
questo! Assim tambm algo dentro de mim no
encontrava a resposta que eu buscava, no passado.
Por que no conseguia me encaixar nessa
sociedade?
Por muito tempo achei que o que havia
acontecido comigo no passara de sonho, porm
nunca encontrei essa resposta. Confesso que no
comeo senti medo; no entanto, o medo foi se
tornando um misto de alegria e satisfao. Um gozo
transcendental, inexplicvel. Devaneio, marasmo ou
apenas realidade? Estas eram algumas das minhas
indagaes; no incio achei que estivesse ficando
louco, mas depois isso passou, tudo era mgico, era
tudo perfeito. Busquei tanto por aquilo e agora
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Mistrios de Um Amor Proibido

temia, seria um parvo, hipcrita se disser no. Porm


fatores me levaram a crer que era a mais pura
verdade, no a verdade absoluta, mas era fato,
estava acontecendo comigo.
Sonhar, sonhar, sonhar?... Ou viver somente a
realidade? No sei... Mas aquilo estava acontecendo.
Vrios
fatores
contriburam
para
que
isso
acontecesse, ou fui escolhido entre milhares por
mero acaso da vida? Mas por que eu? Essa era uma
pergunta latente dentro de mim; eu querendo, ou
no, havia recebido uma misso e deveria conclu-la.
Se aquilo no era sonho, eu estava recebendo a
visita de um esprito de luz, um ser mstico e lindo.
Havia vindo do plano superior para me mostrar algo
e, acima de tudo, dar-nos uma lio de vida. Querido
leitor, pense o que quiser; entretanto, toda noite, na
mesma hora, um ser de luz aparecia do nada e
contava-me uma histria, assim como vinha do nada,
ia para o nada ao final de cada noite. Por dias recebi
a visita daquela senhora, o leitor pode achar que se
trata de uma narrativa esprita, mas classifiquem-na
como desejarem. Quando sentava em frente ao
computador, as coisas iam fluindo e, em poucos
minutos, havia sido transportado para outra poca e
outra dimenso, via, sentia e ouvia tudo que se
passou durante a segunda metade do sculo XIX.
No sei se devo contar essa narrativa iniciandoa com a minha, ou se comeo j pela do esprito de
luz. Creio que devo comear pelo incio para que
possam compreender a histria, seno ficaro
perdidos. Por isso, comearei pelo princpio. O incio
comea comigo ou com a senhora? Como no sei por
onde comear; deixarei que os fatos narrados a mim
fluam conforme queiram, pois no quero modificar os
fatores da histria. Por isso, a vai!...
Ol, meu nome Gustavo Gabriel de Alencar
Albuquerque da Maia. A histria que lhes contarei
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Cludio Pereira da Silva

nos prximos captulos se inicia em uma manh de


primavera do ano 1999; ainda quando eu contava
meus dezesseis anos. Naquele ano, aps o trmino
das aulas, eu e minha famlia decidimos viajar para o
interior do Rio de Janeiro, onde meus pais haviam
recebido uma fazenda como herana. A tal fazenda
estava na minha famlia havia quase cento e setenta
anos. Tudo havia comeado em 1839, quando meus
antepassados se casaram e, como presente, o pai de
minha tatarav deu-lhes a fazenda como dote. Os
anos passaram e, de gerao em gerao, os
pertences foram passando, at que chegaram s
mos de meu pai.
A fazenda enorme e bem mobiliada, a moblia
ainda a do passado, pois de gerao em gerao a
famlia tomou conta e no deixou que os mveis se
deteriorassem. Aquela seria uma das principais frias
da minha vida, pois aquele ano havia sido um ano
muito maante para mim. Estudei o ano todo e, ao
trmino do ano letivo, meu pai havia me prometido
uma viagem para conhecer a fazenda, que havia
passado por uma longa reforma. Aquela seria a
primeira vez que eu passaria frias l; estncia que
eu s ouvia falar em livros de histrias e na
literatura, pois essa uma das minhas maiores
paixes.
Sou
apaixonado
por
literatura,
principalmente os livros clssicos de autores
famosos, como Bernardo Guimares, Machado de
Assis, Jos de Alencar, Ea de Queiroz, Camilo
Castelo Branco, Alexandre Dumas, entre outros. A
loucura da viagem dos meus sonhos havia comeado
ainda antes de nossa partida, no dia vinte de
dezembro desse mesmo ano.
Marcava pouco mais de dez horas da manh,
quando o nosso voo partiu de Congonhas rumo ao
Rio
de
Janeiro;
algumas
horas
depois,
desembarcamos na capital fluminense, l pegamos
10

Mistrios de Um Amor Proibido

um carro de aluguel e partimos na direo da cidade


de SantAnna das Rosas. Alguns quilmetros depois
e, aps atravessarmos um longo cho de terra
vermelha, chegamos quela que havia me roubado o
sono, durante dias. Ah... Mas, antes que eu comece a
narrar a minha incrvel aventura, tenho que lhes
contar um pouco de mim.
Meu nome Gustavo, como vocs j sabem,
tenho hoje vinte e seis anos, mas, quando os fatos
que lhes contarei me aconteceram, eu tinha apenas
dezoito anos. Sou filho nico de uma tradicional
famlia paulista. Minha me se chama Teresa de
Alencar, e meu pai se chama Joaquim Alcntara
Albuquerque da Maia.
Chegamos fazenda faltava pouco mais de seis
horas da tarde, tudo j estava preparado, os quartos
arrumados, e o jantar mesa. Como eu estava
exausto, decidi tomar um banho antes do jantar. Subi
pela escadaria principal, que por sinal era lindssima.
Talvez, se ns cessssemos um pouco os passos e
prestssemos ateno, poderamos ouvir as risadas
dos saraus que provavelmente haviam acontecido
naquela incrvel casa-grande. O aroma do perfume
da poca, o rusgo-rusgo das saias, usadas pelas
senhoras que ali passaram; o cheiro de uma poca
urea parecia ainda impregnado naquelas paredes,
as msicas que eram tocadas ao piano poderiam
ainda ser ouvidas. Subi dois lances de escada e, aps
atravessar um longo corredor com muitas portas,
entrei naquele que seria meu aposento durante as
frias.
Arrumei meus pertences no guarda-roupa, que
havia sido de minha tatarav, coloquei meus
companheiros inseparveis, os livros, na escrivaninha
que havia pertencido a meu tatarav. Banhei-me em
uma espcie de banheira de madeira em um cmodo
denominado casa de banho. Depois me vesti e desci
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Cludio Pereira da Silva

para o jantar. Certa aura tomou conta do ambiente;


como passei parte de minha juventude lendo livros e
sonhado como seria a vida em uma fazenda como
aquela, do sculo XIX, dei-me ao desfrute de me
imaginar um moo de famlia importante da poca.
Meus pais e mais alguns amigos, que estavam
mesa, no sei se real, ou apenas um delrio meu, vi
todos ali, com roupas da poca, e os empregados da
casa se transformaram em escravos. Aps o jantar,
meus pais e alguns amigos decidiram aproveitar para
jogar xadrez na sala de jogos.
Eu no sou muito afeito baderna, por isso,
decidi me recolher na biblioteca, onde estavam meus
verdadeiros amigos. Com certeza eu demoraria anos
para ler todos os clssicos que ali se encontravam,
eram relquias da poca do Imprio. Caminhei e
caminhei por todos os andares da biblioteca; ento
parei na seo de livros de literatura nacional. Folhei
um e outro, at que avistei um livro pequeno de capa
dura e antiga l no fundo; peguei-o, estava muito
empoeirado, limpei-o e desci de novo a escada da
biblioteca. A biblioteca era ampla e tanto a moblia
como o estofado das cadeiras, dos sofs, dos
canaps, as conversadeiras entre outros objetos
eram os mesmos de sculos atrs, mas claro que
reformados. Passei pela escrivaninha que ficava
defronte porta e me sentei em um div.
Abri o livro e comecei a ler, era a primeira
edio do livro A escrava Isaura. Logo nas primeiras
pginas trazia uma dedicatria ao meu tatarav do
prprio autor, que dizia: Para meu grande amigo
Leopoldo, com carinho e com o meu muito obrigado!
Abraos cordiais de seu sempre amigo, Bernardo
Guimares. Aps ler o prefcio e as pginas
seguintes, um assombroso sono tomou conta de mim
e acabei dormindo. Horas depois fui acordado por
uma servial da fazenda, que me disse: v para o
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Mistrios de Um Amor Proibido

seu quarto, pois j estava arrumado. Levantei-me e,


fechando o livro, debrucei-lhe sobre a escrivaninha.
Acompanhado da empregada, fui para meu quarto,
coloquei o pijama e me deitei, na cama que era
tambm da poca e tinha grandes dossis que foram
fechados pela empregada. Assim foi o meu primeiro
dia naquela imensa fazenda. Estava ansioso para
dormir, pois desejava acordar logo, para conhecer
toda aquela propriedade que, a partir daquele
momento, faria parte da minha vida, por anos.
Desde novo nunca encontrei uma resposta para
aquela que faria parte da minha vida. A primeira vez
que tive contato com coisas antigas foi no ano de
1999. Aquela data marcou minha vida, pois ali eu
descobri que houve um tempo glorioso em nosso
pas, uma poca urea. Foi naquele ano que eu
conheci o passado e tudo atravs de uma novela
chamada Fora de um desejo ento em 2004, outra
novela me fez viajar pelo tempo A escrava Isaura,
alm de alguns filmes: E o vento Levou; a trilogia
Sissi e Madame Bovary, entre outros. Tudo o que de
poca me cativa e me faz sempre correr atrs do
passado; cada filme e cada novela de poca a que eu
assisto levam-me a fazer uma busca desenfreada
pelo passado. No sei o porqu dessa busca
desenfreada pelo passado e, principalmente, por
uma data: 1855. Algumas pessoas me dizem que
talvez eu tenha vivido em outra poca, mas
realmente eu no sei. Entretanto, atravs das
prximas linhas, irei lhes contar o que me aconteceu
nos dias seguintes.
Minha vida sempre foi marcada por coisas
estranhas, sempre que pego um livro clssico ou
assisto a filmes e novelas de poca, sinto como se j
houvesse vivido aquilo em algum tempo ou em
alguma poca. O desejo pelo passado sempre me
intrigou, no sei como um jovem, em minha idade,
13

Cludio Pereira da Silva

pode gostar de coisas velhas. Talvez o leitor possa


pensar que eu no passo de um louco, mas isso
real; no sei se sou o nico, mas sei que h algo no
passado que me chama ateno, como se o passado
trouxesse tona o que vivi.
O sol havia acabado de pintar no horizonte.
Quando eu acordei, a primeira coisa que fiz foi
levantar-me da cama, caminhei pelo aposento lavei
meu rosto e sentei-me em um canap que estava
beira de minha cama. Coloquei-me a pensar em
coisas que havia me acontecido na noite anterior.
Ainda no sei lhes dizer se o que aconteceu foi real
ou apenas um sonho, mas posso lhes adiantar que
foram coisas muito curiosas. Possivelmente marcava
pouco mais de meia-noite, quando coisas estranhas
comearam a acontecer em meu quarto. Primeiro a
porta se abriu, e uma pessoa muito dvena entrou,
era uma moa muito linda que tinha os cabelos
negros como a bruma da noite, os olhos eram claros,
trazia na cabea o penteado da poca, assim como o
trajar.
Ela ento caminhou por meu quarto e se
assentou ao meu lado. Talvez fosse apenas um delrio
meu. A moa parecia estar em casa, entrou,
caminhou, mexeu em meus pertences, passou em
frente ao espelho e, aps arrumar o penteado e o
vestido de saia-balo, veio em minha direo
cantando. Parecia que ela havia sado de uma novela
de poca, ou de um livro dos grandes autores.
Aquele ser sublime estava divinamente trajado.
Submersa em um eflvio celeste, seu porte era
senhoril, mantinha a postura de uma dama da alta
sociedade da poca do Imprio. Defini-a como uma
ninfa, cantava uma msica esplendida, os acordes de
um piano acompanhavam-na.
Quando vi aquela criatura aproximando-se de
mim, levantei-me e acomodei-me entre as almofadas
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Mistrios de Um Amor Proibido

de cetim que estavam junto cama. Naquele


momento a combinao de medo e de alegria
pareceu ter tomado conta de meu ser, pois, ao
mesmo tempo em que eu queria pular da cama e sair
correndo pelos corredores daquela imensa fazenda,
minha vontade era ficar ali e abraar aquela deusa
que se apresentava minha frente, ela murmurava
algumas palavras que eu no conseguia decifrar. A
bela dama fazia meno a mim, como se j me
conhecesse, tentei puxar na memria coisas sobre
aquela senhorita, mas nada, vieram apenas imagens
desfocadas em minha mente. Coisas sem sentido e
sem significado; nada muito importante. A nica
coisa que me chamou a ateno foi uma imagem
minha e dela se beijando, mas eu no me
reconhecia, pois eu usava casaca, sobrecasaca,
cartola, uma cala de pelica preta e no bolso trazia
um relgio. Ns estvamos em um sarau. Muitas
damas acompanhadas de suas escravas, o cheiro de
perfume francs se espalhava pelo ambiente, os
senhores e seus filhos moos tragavam charutos e
bebiam champanha e rum, entre outras bebidas
alcolicas. Assim que os primeiros raios do sol
comearam a cintilar no horizonte, aquela senhorita
desapareceu, deixando apenas seu cheiro, era um
perfume de lavanda.
Aquele sonho me acompanhou por mais alguns
dias, at que um dia, aps a partida da moa, eu
despertei e vi quando um pequeno bilhete caa do
teto sobre meu leito. Peguei o papel, abri e o texto
dizia: Vs que tendes recebido minha visita todas
essas noites, no se assuste, pois no estou aqui
para lhe fazer mal, vim apenas, pois vs me
enfocastes todos esses anos, sou apenas uma
pessoa que o aguardou por anos. Espero que um dia
volte, para que possamos concluir aquilo que nos foi
destinado. E no rodap da carta as iniciais de dois
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Cludio Pereira da Silva

nomes, a mensagem estava muito bem perfumada e


a grafia no parecia ser da nossa poca; carta que
me tomou o flego. Parei e pensei, duas ou trs
vezes, at que me veio cabea uma ideia, talvez
aquela carta tenha sido uma pegadinha da minha
me. Sabendo ela da minha adorao por um tempo
que no existe mais, resolveu me pregar uma pea.
Escreveu aquela carta apenas para animar as minhas
frias e ao trmino do vero me diria que aquilo no
passara de uma meninice sua.
Mas como? Se ela no sabia dos sonhos que me
acompanham h dias. E assim fiz naquela noite;
assim que a noite caiu e o sono chegou; l veio ela
toda faceira e com um vestido totalmente diferente
dos outros dias. Eu estava ainda em estado de
torpor, meio acordado meio dormindo, achei que
fosse armao de meus pais, ento cocei os olhos,
mas ela cada vez se aproximava ainda mais. Deixeime levar pelo sono e novamente ela se assentou ao
meu lado e cantou, mas desta vez fez algo me
surpreendeu. Ela no estava sozinha, havia trazido
uma negra de cabelos brancos, alvos mais que a
neve, brancura que me inspirava respeito e devoo.
Aquela senhora se aproximou de mim e, ao p do
meu ouvido, me disse:
Fio, oc ainda no terminastes o que lhe foi
dado como misso aqui. Por isso que oc sente tanta
falta desta poca. Por favor, venha nos ajudar, pois
minha sinh ainda sofre sua partida e, para que no
comeces errado, tudo comear do princpio.
Aps aquelas palavras, as duas desapareceram
e, ao mesmo tempo, os primeiros raios do sol
bateram na cabeceira da minha cama, fazendo com
que eu despertasse. Despertei de certo modo
atordoado, lavei meu rosto, escovei os meus dentes
e desci para tomar o meu desjejum.
Bom dia, meu pai! disse eu, fazendo o
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Mistrios de Um Amor Proibido

mesmo a minha me.


Bom dia, filho respondeu minha me.
Como passou esta noite? Parece-me que muito bem,
pois sua face reluz alegria. Sonhou muito?
Me, esses dias s tenho tido sonhos alegres.
mesmo? Como so esses sonhos?
Pela cara dele, tem a ver com essa fazenda
concluiu meu pai.
Mas como o senhor sabe?
Eu no sei, mas os seus olhos dizem.
mesmo? E o que eles dizem?
Talvez voc tenha sonhado com alguma
sinhazinha!
Ah... Mas, como a senhora sabe?
Apenas hiptese!
Aps essas palavras, minha me se ergueu da
mesa e saiu para encontrar uma amiga na fazenda
vizinha. J meu pai resolveu ir ao escritrio, pois
tinha muito trabalho. Sim, ns estvamos de frias,
mas meu pai um grande empresrio e deve sempre
ficar de olho no escritrio da Paulista.
Naquela tarde eu cavalguei a tarde inteira e,
quando retornei fazenda, fui logo para meu quarto,
tomei banho e me vesti. Em seguida desci para o
jantar. Aps o jantar fui para a biblioteca, onde
continuei a leitura; pouco a pouco, o sono veio
aproximando-se e logo adormeci. Aps ter pegado no
sono, um fato muito curioso me ocorreu: uma
senhora, que contava por volta de oitenta anos,
apareceu para mim. E muito amistosa disse:
Filho... Sou uma ancestral sua e surjo aqui
para lhe dizer: voc ter a misso de contar minha
histria e de levar um pouco da histria de nossa
famlia adiante. Virei aqui todos os dias para lhe ditar
minha biografia. Daquele dia em diante minha
ancestral sempre vinha na mesma hora. Eu no temi
a presena daquela senhora, que me incumbiu a
17

Cludio Pereira da Silva

misso de levar um pouco da histria da minha


famlia. Dia aps dia, estava eu l, sentado
escrivaninha, com meu notebook, e com a senhora,
ao meu lado, ditando suas histrias.
Dia aps dia e semana aps semana, eu recebi
a visita daquela simptica senhora. Talvez o caro
leitor idealize que aquela senhora havia vindo do
desconhecido apenas para me contar uma histria
velha e ultrapassada. Mas talvez para que possamos
entender o presente e o futuro, preciso conhecer o
passado para compreendermos o que nos esperar. A
histria que a senhora estava me contando havia se
passado em um tempo, no to longnquo ao nosso.
A narrativa se passa na segunda metade do sculo
XIX. Em uma poca muito bonita, muito venerada
pelos poetas e adorada por seus admiradores. poca
em que muitas revolues sociais aconteceram para
que acabassem com a desigualdade social,
principalmente a da escravido. Era uma batalha
constante entre os abolicionistas e escravocratas,
enquanto alguns almejavam a abolio da
escravatura, outros lutavam para calar a boca dos
abolicionistas.
poca em que existiam senhores e escravos, na
era dos temveis bares do caf. Perodo que no
volta mais. Momento ureo das damas e de seus
cavalheiros. Tempo em que as senhoras arrastavam
suas enormes saias-bales, merinaques, crinolina,
anguas, botinas, espartilhos, entre outros utenslios
pessoais, nos sales de festas, nos saraus e nas
modistas e ainda quando existiam as revistas de
modas e pessoas eram vendidas como objetos.
poca que teve seu tempo de glria e de runas. Mas
nada que temos hoje existiria, se no fossem nossos
antepassados. O mrito dos nossos antepassados,
pois, se eles no tivessem lutado por nossos diretos,
no seramos essa sociedade que somos hoje. Ainda
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Mistrios de Um Amor Proibido

com muita coisa para mudar, porm muito melhor,


entre aspas, pois no temos mais escravido e
outras injustias sociais. Uma sociedade que ainda
precisa de algumas alteraes, para que possamos
viver em paz.
Aquela senhora estava me contando a histria
de um passado no muito longnquo e queria passar
para as prximas geraes. E vem nos mostrar que
no somos nada sem aqueles que vieram antes de
ns e fizeram a histria do nosso pas, o Brasil, uma
terra melhor.
Aquela senhora me ensinou a respeitar e a amar
aqueles que sofreram por ns, para que as nossas
leis fossem mudadas e transformadas a fim de que
possamos ter um pas mais justo e igualitrio,
mesmo sabendo que precisamos ainda lutar muito,
para termos um pas igualitrio para todos. O nosso
hino nacional proclama isso muito bem, quando diz:
Paz no futuro e glria no passado. Por meio dessa
estrofe, podemos simplificar bem o que essa
simptica senhora veio nos trazer do passado. Um
passado que devemos reverenciar a todo o
momento, pois foi quando muita gente sofreu e
morreu, para mudar nossa histria. Um passado de
glria e de muita beleza, belezas mil. Tudo era
perfeito: as roupas, as construes, entre outras
coisas. Mas isso ns s encontraremos em livros de
histria, pois no passa de uma civilizao
relembrada, uma civilizao que o tempo levou.
Durante a poca em que se passa a nossa
narrativa, muita coisa havia acontecido. Muitas datas
importantes aconteceram na histria do nosso pas,
entre os anos de 1839 e 1856, quando se passa boa
parte da nossa narrativa. Durante os anos de 1835 e
1845, aconteceu a Guerra dos Farrapos, nos Pampas
do Rio Grande do Sul. Em 1847, nascia o nosso
grande poeta, o famoso poeta dos escravos, Castro
19

Cludio Pereira da Silva

Alves. 1848 a data do fim da Revoluo Praieira em


Pernambuco. Alm da publicao da poesia
Timbiras, de Gonalves Dias e o incio da revoluo
de fevereiro, em Paris, colocando fim escravido
em todas as colnias da Frana. J em 1850, foi
publicada a lei Eusbio de Queiroz, proibindo o
trfico negreiro, que foi publicada no livro de poesia
de Gonalves Dias, ltimos cantos. Em 1852, foi
inaugurado o primeiro telgrafo no Brasil e o ano
da morte de lvares de Azevedo; alm da publicao
do Catecismo positivista de Auguste Comte, na
Frana. Em 1853, houve a publicao do primeiro
volume das obras de lvares de Azevedo e a
publicao, em Paris, do ensaio sobre a desigualdade
das raas do conde Goubineau. Em 1854, a chegada
da primeira estrada de ferro do Brasil, ligando o
porto de Mau a Fragoso. E, para terminar, em 1856
foi o incio do Segundo Reinado.

20

Mistrios de Um Amor Proibido

21

Cludio Pereira da Silva

Sumrio

Apenas
uma23
infanta ..................................................................
....
Sintra ....................................................................35
............................
O
colgio
de 44
freiras .................................................................
.......
O
incio
de
um
ano-55
bom ................................................................
O brilho de uma nova estrela no cu do68
Brasil ........................
A
74
fazenda .................................................................
........................
As
82
visitantes ................................................................
....................
A
97
debutante .............................................................
..........................
A
107
essncia ................................................................
........................
Mistrios
do116
corao .................................................................
...
O
136
toillete ...................................................................
.......................
As
144
22

Mistrios de Um Amor Proibido

viagens .................................................................
......................
12
O
passado
vem
168
tona ..............................................................
A
177
missa ......................................................................
.........................
A
uma186
lgua .....................................................................
...............
A
191
sombra ..................................................................
.......................
A
visita209
inesperada ............................................................
.............
O
214
regresso ..................................................................
......................
A
chuva
que228
abenoa ................................................................
....
O
dia 241
seguinte! .............................................................
..................
O
250
crepsculo ............................................................
.......................
A
264
preparao ..............................................................
....................
A
grande271
amazona ...............................................................
..........
Armaes
279
diablicas ................................................................
.....
23

Cludio Pereira da Silva

As
festas302
vindouras ..............................................................
.........
A
311
primavera .............................................................
........................
Casada
e323
infeliz ....................................................................
...........
A
face
boa
da331
tirania ...................................................................
..
A
347
corte .....................................................................
..........................
Glossrio ...............................................................369
..........................

24

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo I
Apenas uma infanta

Arraial de Sant Anna das Rosas 1848


Antes que eu comece a contar-lhes as
desventuras amorosas de nossa herona, devo-lhes
contar um pouco de sua infncia e de sua mocidade
que com certeza foram os anos mais felizes de sua
vida. Anos em que ela se refestelou nas coisas boas
da vida. Jamais poderei esquecer-me dos dias em
que ela passou beira do ribeiro, onde as negras
lavavam as roupas da casa-grande. Ela e os
negrinhos aproveitam a lavao de roupa para tomar
banho de rio. A baronesa de Bourbon sempre a
deixava nadar com a negrada, mas ela ia sempre
acompanhada de sua dama de companhia, uma bela
senhorita inglesa, que falava quatro idiomas e lhe
fora trazida dos Estados Unidos da Amrica, uma
dama de origem nobre, filha de um grande amigo do
falecido baro, que Deus o tenha. Por isso, que foi
permitida sua vinda ao Brasil. Estava na famlia
Albuquerque havia pouco mais de dois anos, e ainda
no havia se acostumado com o calor infernal daqui.
Ela vivia a reclamar: pas infernal! Mas no sei
mais viver sem essa gente.
Charlotte Mitchell O Hara parecia uma espcie
de anjo, seus cabelos eram negros transcendentais,
e seus olhos de um azul-celeste. Sem falar de suas
25

Cludio Pereira da Silva

formas,
uma
cintura
finssima,
um
busto
proeminente, sua pele era rosada e macia, mas de
certo modo castigada pelo sol. Seus seios arfavam
sobre o decote do vestido, os cabelos caam por
sobre o decote em lindos cachos. Seus dotes eram
imensos, falava quatro idiomas com extrema
fluncia: ingls, francs, portugus e o hngaro,
pintava, bordava, cozia, tocava piano e cantava
como ningum. Por isso foi trazida dos Estados
Unidos para ensinar-lhe.
Aos dez anos, Beathriz j sabia falar ingls e
francs e estava quase aprendendo hngaro; j sabia
bordar, pintar etc. As jovens sempre acompanhavam
as negras, quando saam da casa-grande para lavar
roupas. Charlotte estava sempre ao encalo da
menina, usando a clssica capa de veludo negro e a
sombrinha escarlate-prpura, pois no podia tomar
muito sol.
Antes das jovens atravessarem o hall da casa, a
baronesa fazia um longo sermo para Charlotte:
Minha filha, no deixe Beathriz por muito
tempo embaixo do sol e cuidado com cobras,
aranhas e bichos venenosos. Ah, antes que eu me
esquea: cuide dos modos dela, no a deixe se
misturar muito com os negrinhos.
O sermo era pior que o sermo do padre da
parquia de Sant Anna. Toda vez ela fazia o mesmo
discurso; a jovem j sabia at o que ela diria. E,
quando saa da casa-grande e subia no coche,
Charlotte repetia com um grande sotaque sulista
americano a alocuo que ouvira h pouco da
baronesa, e as duas caam na gargalhada. Quando
chegavam beira da lagoa, a jovem despia Beathriz
das roupas de passeio e vestia-lhe com as roupas de
banho. Assim passavam a tarde toda, at o debruar
do sol sobre as colinas.
Beathriz venha aqui, menina! Exclamou a
26

Mistrios de Um Amor Proibido

jovem com um grande sotaque. Por Deus, menina...


No faa isso, ou sua me vai me mandar embora.
Sai da, a torrente est muito forte.
Bya corria para junto dela, mas logo se esquecia
e voltava a fazer o que no devia. E de novo ela
ralhava, no entanto ela nem ligava, pois gostava de
banhar-se com as outras crianas. Ento ela dizia:
Menina, venha c, sua madre no a quer
brincando com esses negrinhos, pois tu s uma
menina e deve se comportar como tal!
Deus do cu, que a baronesa no veja isso!...
Ou serei extraditada. Como pode uma menina de
famlia rica, se comportar como uma escrava?
Pensava Charlotte enquanto ralhava com Bya.
Mas a senhorita Beathriz parecia nem ligar,
subia nas pedras e pulava, mergulhava e ficava
muito tempo embaixo das guas. Adorava subir em
rvores frutferas para colher-lhes as frutas e
sabore-las com a mo. Gostava muito de se
lambuzar com manga, acerola, goiaba, jabuticaba,
entre outras frutas. Bya mais parecia um menino de
vestidos. No havia lugar naquela fazenda que ela j
no houvesse frequentado: do estbulo dos cavalos
senzala, do roseiral estufa de vidro suo, alm do
pomar, que era seu lugar favorito. A jovem
Albuquerque j aprontou tanta peraltice que, se
parssemos para contar, precisaramos de dois ou
trs volumes apenas para os seus primeiros quinze
anos de vida.
Charlotte sempre mentia para a baronesa no
intuito de proteger sua aluna, contudo corrigia-lhe
quando preciso. Quando no estava brincando,
estava na biblioteca, estudando francs, ingls,
hngaro ou bordado. Muitos dias se passaram, at
que no ms de abril a jovem foi informada que iria
para a casa de sua av e em seguida para o colgio
de freiras em Portugal.
27

Cludio Pereira da Silva

O dia dez de abril havia chegado junto com uma


forte chuva; uma chuva torrencial com tudo a que
tinha direito: raio, vento forte, granizo e troves. Os
troves iluminavam toda a fazenda. Enquanto isso,
nos aposentos da sinhazinha Bya, a baronesa e um
batalho de mucamas preparavam as bagagens da
moa. L fora o coche que levaria a jovem at a
estao de Sant Anna aguardava-a no alpendre.
Enquanto a b ajudava-lhe a se vestir, a baronesa e
mais duas escravas fechavam as ltimas caixas e os
bas. Logo os aposentos de sinhaninha foram
tomados por dois jovens escravos que carregavam as
coisas para o coche. No aposento ao lado, Charlotte
preparava-se tambm para voltar para os Estados
Unidos, pois sua misso ali havia terminado.
Meia hora depois o coche j estava a caminho
da estao. No coche estavam a baronesa, Charlotte,
Beathriz e Hadassa, uma escrava que Bya havia
ganhado na noite anterior, como dama de
companhia. A diligncia parou diante da entrada
principal da estao, os negros desceram da carroa
e levaram os bas de Beathriz e de Charlotte para
plataformas, onde aguardaram a chegada da
locomotiva. A baronesa, Beathriz e a comitiva
embarcaram no vago e foram conduzidas aos seus
devidos camarotes. Pouco mais de seis horas depois,
saltaram na estao de Maca e pegaram um carro
de aluguel para ir para o porto, onde se separariam.
As duas se despediram, Bya e sua mucama
Hadassa embarcaram no paquete, que iria para
Portugal. Charlotte hospedou-se em um hotel
prximo ao porto, pois o navio que a levaria para os
Estados Unidos, s sairia no dia seguinte. Aquela foi
ltima viso que Beathriz teve de Charlotte,
balanando em um sincronismo desordenado, as
luvas e seu lindo leque de madreprola.
A senhorita Albuquerque da proa e Charlotte do
28

Mistrios de Um Amor Proibido

porto; foi uma viso dantesca. O navio de


passageiros afastou-se da marina e a carruagem
onde estava Charlotte partiu para o Gr-Palace Hotel,
deixando para Bya unicamente as lembranas
alegres dos momentos que viveram juntas. Aquela foi
a ltima vez que a sinhazinha Albuquerque viu as
terras tupiniquins. A pobre partiu sem saber o dia
nem a hora que voltaria a ver sua genetriz. O navio
partiu, e aos poucos a terra foi se perdendo no
horizonte; em poucas horas j no se conseguia ver
mais nada, apenas um fio verde no horizonte
destacava-se diante de tanta gua.
A jovem Albuquerque caminhou pela proa,
sentou-se um pouco para ver o pr do sol que j se
debruava no horizonte. Uma grande angstia tomou
conta de seu corao, apenas por saber que ficaria
muito tempo sem ver suas amigas, primas e irms de
sua mam. Por volta das cinco horas da tarde,
Hadassa chamou Beathriz e ajudou-lhe a trocar as
vestes, naquela noite ela iria ao jantar do
comandante. Era um navio luxuoso, alm da
grandiosidade no tamanho e nos detalhes.
s nove horas da noite o jantar acabou, aps o
trmino, Bya seguiu para seu camarote trancando-se
l. Beathriz trocou de roupa, abriu um ba e em
seguida tirou um livro. Sentou-se em uma cadeira e,
enquanto lia, a escrava Hadassa desfazia seu
penteado,escovando as longas madeixas, com uma
escova de cerdas macias. Hadassa era, sem sombra
de dvida, uma mulata lindssima, escrava de pele
morena e de cabelo lindssimo.
A viagem durou alguns dias de duas a quatro
semanas, no sei bem! Alguns dias aps sua partida
do Brasil, o navio ancorou no Velho Mundo, terra de
Cames, de Gil Vicente, de Ferno Lopes, de Camilo
Castelo Branco, de Almeida Garrett entre outros. A
terra dos desbravadores. Solo dos ancestrais de Bya,
29

Cludio Pereira da Silva

cho da famlia de nosso imperador Dom Pedro II e


de seu pai, o louco que vivia atrs das mulatas
brasileiras. Dom Juan. Que Deus o tenha em um
bom lugar. Dom Pedro I. Assim que desembarcou
em Portugal, Beathriz foi recebida por uma freira,
que se designava madre superiora do colgio de
freiras, onde Bya estudaria. A senhora j estava na
casa de seus quarenta e cinco anos, o hbito que
usava cobria-lhe o corpo todo, deixando apenas as
mos e o rosto desnudos. No nos era possvel ver
muito, mas seu rosto ainda conservava o frescor da
juventude.
Bom dia, senhorita disse a velha. Talvez a
senhorita seja Beathriz, filha da baronesa Isabel?
Sim, sou eu! Respondeu Beathriz, ainda
como o frescor da juventude. Quem a senhora?
Muito prazer! Redarguiu a freira. Sou a
madre superiora do colgio, onde a senhorita devera
passar alguns anos da tua vida!
Prazer... Meu nome Beathriz Emmanuelle
Albuquerque da Maia! Filha do falecido baro de
Bourbon e da baronesa Isabel. Muito prazer...
Murmurou Bya, enquanto fazia uma leve mesura.
O prazer todo meu! Respondeu a simptica
senhora.
Vamos para o colgio?!
, no... A senhorita vai passar alguns dias na
casa de seus parentes, para que possa se acostumar
com o clima.
J que assim, por que minha av no veio
me buscar pessoalmente?
Ah... Ns somos amigas, ela ento me
incumbiu de busc-la, pois est arrumando a casa
para sua chegada!
Ah, t...
Essa senhorita veio com voc?
Que senhorita?
30

Mistrios de Um Amor Proibido

Essa a... que est atrs de vossa merc.


Sim, minha escrava. Ela se chama Hadassa!
Respondeu Bya.
Bela rapariga, jamais diria que uma escrava!
Disse a senhora, enquanto contemplava a beleza
de Hadassa. Se, uma escrava, por que se veste
assim?
Ah... por que ela no uma escrava comum.
Alm do que, no convento no permitida a entrada
de escravas maltrapilhas, no. No ?
Sim! Mas ela est bem-vestida por demais.
Alm disso, no parece ser negra. Se a visse em
qualquer salo daqui ou de Paris, no diria que
escrava.
Pois ... Ela no bem uma escrava, uma
dama de companhia, que me fora dada h alguns
dias. A senhora sabe que uma moa de famlia no
pode andar por a sozinha. Alm do que, ela forra,
h muito tempo. E ganha por seu trabalho. Ela
tambm vai estudar l no colgio, j aprendeu o
bsico l em casa disse Beathriz. Mas ningum do
convento deve saber disso, porque ela est aqui
como se fosse uma prima minha.
A senhora estava diante da fronte de Beathriz,
com as mos debaixo do hbito.
Est bem, filha! Agora vamos? A senhora
sorriu alegremente. Esse ser o nosso segredo?
Agora deixe isso para l dizia a velha, enquanto
sorria. Esses so os seus bas? Indagou a velha.
Sim!
A madre chamou alguns lacaios que pegaram os
pertences da moa. O coche trazia na porta o braso
da famlia Albuquerque.
Peguem as caixas e os bas, e levem-nos para
a carroa onde iro as bagagens. A velha deu as
ordens e logo os bas foram carregados para a
carroa. Vamos ento para o coche, senhorita
31

Cludio Pereira da Silva

Beathriz?
Sim... Podemos ir agora. J esclarecemos tudo
o que tnhamos pendente.
A senhora enlaou o brao de Beathriz e, de
braos enlaados, caminharam at o porto de sada.
A carruagem estava esperando-as soleira da
escadaria. Partindo o coche, no demoram muito
para chegar ao palacete de sua av, Maria Tereza.
O carro parou diante da porta de madeira nobre.
O lacaio desceu, abriu a portinhola e ajudou a
senhora de mais idade descer. Depois fez a mesma
coisa com Beathriz Emmanuelle.
Essa a casa de minha av? Perguntou Bya,
enquanto olhava tudo minuciosamente, atnita com
toda aquela beleza. No que a fazenda onde nascera
no fosse bonita, mas no era naquele estilo
neoclssico.
Ora... Pois no gosta do que v? Indagou a
madre superiora. Achas muito pequena? Sei eu! Tu
estavas acostumada com uma fazenda gigantesca;
onde tu corrias para cima e para baixo de cavalo.
Acertei, no ?
De certo modo, sim, porm no isso.
porque tudo parece mais bonito que nas fotos de
mame!
As duas foram recebidas por uma senhora muito
simptica, no alpendre. E foram conduzidas por ela
at o hall principal. De fato era a governanta.
Eis aqui a neta de tua senhora! Murmurou a
madre, colocando a mo sobre o ombro da senhorita
Albuquerque. Cad dona Maria Teresa?
Ora, pois... Que menina mais linda essa?
Redarguiu a senhora, enquanto passava a mo nos
caracis da menina. Entrem e esperem na sala de
estar, pois ela j descer. A pobre trabalhou muito e
suas roupas estavam sujas, por isso, foi troc-las.
As duas entraram e foram servidas de um
32

Mistrios de Um Amor Proibido

refresco.
Se a casa parecia ser linda por fora, imagina a
surpresa que ela teve ao entrar. Tudo era ainda mais
lindo; a moblia era de madeira nobre toda talhada; a
parede era recoberta por um papel de parede na cor
damasco
com
azul-anil;
as
cortinas
eram
adamascadas, quase no mesmo tom dos papis de
parede; o hall de entrada tinha um lustre de cristal
belga; as paredes eram recobertas com mrmore
italiano; a escadaria principal tinha vinte e trs
degraus, no mais puro mrmore branco.
Beathriz e a irm Felcia foram levadas para um
amplo salo. Aguardaram l cerca de meia hora.
Meia hora depois uma senhora bem trajada se
apresentou diante delas. Entrando ela na sala, nada
disseram; apenas observaram-na. A senhora tinha
um andar imponente e altivo, provavelmente por
causa de sua situao financeira. Aproximou-se de
ambas.
Boa tarde!... Quem essa rapariga, Felcia?
Beathriz continuou calada apenas. uma
senhora de muito bom-gosto, mas que se veste com
cores sbrias. Talvez seja uma viva, todavia parecia
ser bem alegre, pensava a menina. Trajava um lindo
vestido de musselina na cor magenta com algumas
aplicaes de seda na barra, no pescoo trazia um
colar de prola negra, os cabelos estavam penteados
de acordo com a moda da poca e presos em uma
redinha.
a sua neta, senhora Maria Teresa!... Disse
Felcia.
Tinha a visto apenas por foto. Mas na foto ela
ainda era uma menina de colo, no tinha sado dos
cueiros respondeu a velha. Nossa... Como voc
linda!
Obrigada! Respondeu Bya.
Como foi sua viagem, minha neta? Creio que
33

Cludio Pereira da Silva

esteja demasiadamente cansada, no ? A velha


ergueu a mo e com um sininho chamou a
governanta e disse: Mande levar as coisas de
minha neta para o quarto, onde dormir e depois
mande preparar a tina de banho, pois ela est muito
cansada.
A governanta saiu, fechando a porta em
seguida. A av de Beathriz voltou-se para ela e, entre
dentes, disse, rindo a par:
Deseja refrescar-se antes do almoo, minha
querida?
Sim... Respondeu envergonhada.
Novamente ela ergueu o sino, mas desta vez
outra criada entrou.
Pois sim... Senhora? Disse a servial,
enquanto fazia uma leve mesura.
Leve-a para seus aposentos e ajude-a a tomar
banho. Depois desa e ajude a cozinheira a terminar
o almoo.
A
empregada
pegou
Bya
pelo
brao
delicadamente e levou-a para seus aposentos.
Estava admirada com aquela casa. Antes de chegar a
seus aposentos, atravessou um longo corredor, onde
havia vrias portas e muitos quadros. Provavelmente
seriam os ancestrais da famlia Albuquerque.
A porta do quarto onde ela ficaria se abriu, e era
um quarto lindo e amplo. Passou com os olhos por
todos os cantos, em seguida foi levada para a casa
de banho, onde foi despida pela servial, que a fez
entrar em uma tina de mrmore.
No tenha vergonha... Disse a servial, pois
de certa forma Beathriz estava com vergonha.
Aquela era a primeira vez que a via. Venha, menina
linda, entre aqui na tina e se sentir melhor. Quero
ser sua amiga, pode contar comigo para o que
quiser! No, no precisa ficar com vergonha de mim.
Ao ouvir aquelas palavras, Beathriz sentiu-se
34

Mistrios de Um Amor Proibido

confiante. Ento Bya saiu de trs do biombo e entrou


na tina. Em seguida, outra servial entrou na casa de
banho com uma bandeja nas mos e disse:
Bonjour, miss. Trouxe um refresco para
senhorita, vossa av mandou. Ela amparou a
bandeja em cima de uma mesa e deu o copo nas
mos de Beatriz. Era o suco de um fruto que ela no
conhecia. Aceita sequilhos, miss?
Sim!...
Excuse me, Lady... Com licena, senhorita. Se
precisar, s mandar chamar. Em seguida a
servial deixou a casa de banho.
A outra senhora tambm saiu, deixando-a
sozinha.
Senhorita, no saia da gua, j volto... Para
sec-la e vesti-la tambm. Irei ali... J volto!
Minutos depois retornou ela, com uma imensa
toalha nas mos. Beathriz ergueu-se da tina e
enrolou-se na toalha.
Pronto... Senhorita Beathriz, j pode sair
agora!
Bya enrolou-se na enorme toalha e caminhou
pelo quarto. Com autorizao de Beathriz, a jovem
servial abriu o ba, pegou a roupa que a miss usaria
o restante do dia. Depois que ajudou Beathriz
Emmanuelle a se vestir, a servial saiu do aposento,
deixando-a novamente sozinha. Ela ento caminhou
por toda a acomodao, viu cada janela. E meia hora
depois estava a servial l novamente, mas desta
vez para cham-la.
Senhorita, o almoo ser servido. Sua av a
chama.
Caminhou Bya pelo quarto e, ao lado da
servial, desceu para a sala de jantar. A servial
serviu-lhe de guia, pois a casa era enorme, e ela
ainda no a conhecia por completo.
Quando chegaram sala de jantar, a
35

Cludio Pereira da Silva

viscondessa e a madre j a aguardavam, um servial


afastou a cadeira e ela sentou-se, ento a moa que
lhe servia de camareira serviu-lhe um pouco de sopa.
Coma... Minha princesinha! No precisa ficar
com vergonha, alm do que estamos em famlia! No
?
Os dias foram passando, e ela acabou se
acostumando. Dois meses aps a sua chegada, ela e
a viscondessa haviam se tornado boas amigas.
Quando Beathriz completou quinze anos, ganhou de
sua av Teresa um lindo anel de esmeraldas e um
grande sarau, alm do novo guarda-roupa. Agora ela
j usava vestidos, que lhe cobriam os ps, e saias
amplssimas, ou seja, saias-bales como so
chamadas. Ela estava deslumbrada, havia se tornado
mocinha. E agora usava aqueles vestidos usados por
suas irms, que sempre quis usar, mas no podia
porque ainda era criana. A crinolina a incomodava
um pouco no comeo, mas depois acabou se
acostumando. Achava tudo aquilo ali muito lindo e, a
cada novo modelo que via, comprava. A modista da
viscondessa j sabia e, quando saa novo modelo na
revista de moda, ela era a primeira a ser consultada.
A chegada da moa a Portugal foi uma festa,
Todos da alta sociedade lusitana adoravam a famlia
de Beathriz. Dia sim, dia no, l estava ela e suas
primas, comprando roupas e outros objetos.
Porquanto era normal toda noite ir a um sarau ou ao
teatro, ao lado da viscondessa, sua av. Beathriz era
benquista nos sales da nobreza, pois danava
divinamente e cantava como um rouxinol. De dez em
dez dos saraus que se realizavam em Portugal, em
todos estava l a mocinha, com o nome na lista.
Beathriz era realmente uma moa privilegiada
pela vida. Alm da riqueza, a vida havia lhe
derramado a arca da beleza: os traos eram
perfeitos, as linhas da boca eram lineares e davam36

Mistrios de Um Amor Proibido

lhe o trofu da perfeio, com uma colorao


prpura davam-lhe um ar angelical, porm um toque
de sensualidade. O corpo era linearmente delineado,
esculpido em alvo mrmore italiano pelas mos da
deusa Hebe, tudo era perfeito e tudo combinava com
todo o rosto, pele, nariz afilado, boca delineada sobre
o laivo rosceo, pintado a mo por Afrodite e
preenchido pelo cupido, o deus do amor. Sobre o
colo
gracioso,
densos
cachos
caam-lhe
e
emolduravam-lhe ainda mais o semblante angelical.
Fisionomia que mostrava sua pueril e imaculada
condio.
Por tal essncia no passara sequer a bruma da
concupiscncia, da presuno, a ostentao que
faziam parte de outras moas na sua idade, devido
formosura e a rompante fortuna. Demonstrava
apenas a doura, ilusria de um corao sonhador
no inflamado pelo desejo da carne, coisa que viria
com a idade.

37

Cludio Pereira da Silva

Capitulo II
Sintra

No dia seguinte, aps o caf da manh, a


viscondessa resolveu levar a neta para conhecer a
cidade de Lisboa e as cidades vizinhas. A velha
senhora levou Beathriz Emmanuelle para ver uma
tourada; a jovem saiu da praa de tourada
horrorizada, visto que jamais vira coisa to terrvel.
Os touros eram provocados e levavam flechadas at
a morte. Aps o trmino da tourada, o coche da
viscondessa seguiu para Sintra, onde Beathriz tinha
familiares. Algumas horas depois j haviam chegado
a Sintra...
Marcava pouco mais de onze horas, quando as
carruagens com seis pessoas deixaram
as
dependncias da fazenda da condessa, Luclia.
Naquele coche iam Beathriz e os quatro filhos da
condessa, tia de Bya. Os jovens estavam
demasiadamente bem-vestidos, as moas usavam
belos vestidos de saia-balo. Beathriz usava um
vestido de musselina na cor lils royal e um
mantelete. Rosrio utilizava um vestido na cor
champanhe perolado. O rapaz que as acompanhava
estava trajando uma linda casaca negra e na cabea
trazia uma cartola de pelica. As jovens damas
traziam nas costas capas de veludo negro. O calor
estava ardente, por isso todas usavam sombrinhas,
para que pudessem se proteger dos raios solares.
38

Mistrios de Um Amor Proibido

Meia hora depois haviam chegado ao lugar


desejado, todos apearam do coche e caminharam
por todo o castelo. Marcava meio-dia quando
cearam. A escrava Hadassa procurou um lugar onde
sua sinh pudesse sentar e comer, aps uma
caminhada por todo castelo, achou um descampado.
E debaixo de uma rvore tpica de Sintra, a mulata
estendeu uma toalha, colocando a refeio sobre ela.
Beathriz e seus primos sentaram-se e foram servidos
por Hadassa. Um longo silncio tomou conta do
ambiente at que a menina Maria do Rosrio quebrou
o sossego do convescote:
Ora, pois, pois, minha prima... O que vossa
merc achou deste passeio? Murmurou Maria do
Rosrio, enquanto estirava-se sobre o pano que
estava no cho. Gostou de conhecer as runas do
castelo dos mouros? Fala... Se isso aqui no a coisa
mais linda que voc j viu?! No que eu queira me
enaltecer, mas isso muito lindo.
Adorei o dia de hoje... Mas esta manh eu
acordei preocupada, porque tudo isso me parece ser
a anunciao de uma tragdia. Hoje de manh
avistei uma nuvem negra na linha do horizonte...
Alm da voz que ouvi ao p do ouvido dizendo: sua
vida est prestes a mudar. Isso me deixou
encabulada!
No h de ser nada, minha querida
balbuciou o rapaz. Talvez seja apenas um sonho.
Que nada! Pareceu-me muito real. Meu Deus,
o que ser?
Deixe isso para mais tarde, agora vamos nos
divertir. Pois a vida curta demais para darmos
ouvidos a essas coisas.
Que nada! Isso foi apenas um sonho...
Murmurou Luiza, filha mais nova da condessa.
No, no... O sonho foi muito real, tenho
certeza disso! Disse Bya, enquanto degustava um
39

Cludio Pereira da Silva

pedao de pastel de Belm. Vocs podem no


acreditar, mas todas as vezes que tenho esse tipo de
sonho, algo acontece! A ltima vez que tive um
sonho igual a esse, meu pai morreu.
Ora, pois, prima. Credo, at parece um agouro
murmurou Azevedo, enquanto se benzia.
Isso no agouro, meu primo, apenas o que
sinto concluiu ela, enquanto erguia-se do cho.
Acho que j hora de partirmos, pois o crepsculo
no tarda. muito perigoso viajarmos noite...
Hadassa recolheu tudo, enquanto seus senhores
caminhavam um pouco mais pelas muralhas. As
moas j estavam exaustas, pois suas roupas
pesavam muito.
Vamos... Vamos. Por favor, vamos embora!
Pois j no aguento mais minhas pernas...
Murmurou a terceira moa, Cristina.
Aps a volta que deram em torno das runas do
castelo, os seis voltaram para os coches. As coisas j
estavam preparadas, apenas subiram no carro, que
logo partiu. Beathriz e sua av passaram mais alguns
dias ali e no dia primeiro de maio regressaram para
Lisboa. Duas semanas aps seu retorno a Lisboa, a
viscondessa havia recebido um convite muito
especial. Ela e a neta haviam sido convidadas para
assistir a um espetculo de pera no teatro So
Carlos.
Na noite do espetculo o teatro estava
superlotado pela alta sociedade lisboense. Tanto os
sales quanto os corredores do teatro pareciam ter
se tornado uma passarela de desfile, tudo era
grandioso, e os membros da alta sociedade no
economizaram no figurino. As damas estavam com
suas lustrosas e belssimas saias-bales de vrios
tecidos das mais variadas cores e modelos. Naquela
noite uma coisa era regra: todas estavam disputando
a amplitude das saias, era uma mais rodada que a
40

Mistrios de Um Amor Proibido

outra. Sem falar das tiaras e adornos de cabea que


usavam e as capas de veludo que cobriam o dorso,
alm das joias que pareciam pelejar entre si, para
ver qual era a mais brilhosa e a mais rica de todas.
Os bares, com suas dignssimas senhoras usando
suas tiaras, as condessas e viscondessas exibiam
suas joias deslumbrantes. Os jovens desfilavam sua
jovialidade e espalhava alegria pelos sales, e os
ancies sua experincia, e traziam memria um
passado alegre e jovial, como aqueles que agora
vivem.
Naquela noite Beathriz usava um lindo vestido
de musselina na cor champanhe com laivos verdebandeira e na cintura trazia uma fita de cetim verde
que lhe marcava bem a cintura. A saia era
amplssima, os cabelos presos em uma redinha e
com uma grossa trana no alto da cabea. J a
viscondessa usava um vestido discreto e num tom
sbrio, visto que era viva e como tal deveria trazer
a marca de sua viuvez. Logo, o burburinho dos sales
e dos corredores do teatro So Carlos acabou, todos
foram para seus lugares na plateia e nos camarotes.
O camarote em que a viscondessa e Beathriz
estavam era ao lado do camarote real. A viscondessa
no havia percebido; no entanto, Beathriz estava
sendo cortejada por um rapaz. Era um rapaz moreno,
belo e herdeiro de uma famlia rica de Lisboa. Aquela
no era a primeira vez que os dois trocavam olhares,
pois haviam se encontrado em um sarau. Desde
ento, todas as tardes, o jovem passava em frente
da casa de Beathriz.
Ao final do primeiro ato, a alta sociedade
regressou ao salo nobre e, entre uma taa de
champanhe e outra, esperavam o princpio do
segundo ato, que no demorou muito a comear. Os
dois jovens continuaram trocando olhares no
segundo ato; enfim, o espetculo chegou ao fim.
41

Cludio Pereira da Silva

Assim que o espetculo terminou, todos se


levantaram; enquanto aplaudiam, o tenor retirava-se
do anfiteatro. Dessa forma, pessoa por pessoa foi
deixando o teatro e, em poucos minutos, o corredor e
a escadaria encontravam-se abarrotados de damas e
cavalheiros que aguardavam seus coches. A
carruagem de Beathriz parou ao limiar da escadaria
principal; ela e a viscondessa tomaram seus assentos
no coche, que logo deixou a entrada do teatro,
regressando assim para casa. Uma chuva torrencial
caa sobre toda Lisboa, causando uma grande
confuso nas ruas.
E agora, vov, o que faremos? Murmurou
Beathriz. Ah... Ainda bem que a chuva aguardou a
nossa entrada no coche?! Ou agora estaramos
ensopadas. Ah... Ah... Ah!...
mesmo, minha filha?! Respondeu a velha.
O relgio da sala deu suas doze badaladas,
quando o coche que trazia av e neta apeou diante
da casa. A caleche parou diante da porta, duas
serviais que estavam no alpendre abriram dois
guarda-chuvas e foram ao encontro de suas
senhoras.
Que chuva essa? Dizia uma criada,
enquanto tiravam as capas molhadas das costas da
condessa.
mesmo! Respondeu a velha. Pode
mandar a francesa preparar nosso banho, pois no
podemos dormir assim, ou pegaremos uma
pneumonia, ou ficaremos tsicas.
Assim cada uma foi para seu quarto e, aps o
banho, tomaram canja de galinha e foram dormir. Os
dias foram passando. E, em um belo dia de inverno,
uma grande nuvem,negra pairou sobre a manso.
Naquela manh, como de costume, Beathriz ergueuse da cama, lavou o rosto, vestiu-se e desceu para
tomar o desjejum. Contudo, achou estranho, pois,
42

Mistrios de Um Amor Proibido

quando chegou sala, no encontrou sua av


cabeceira da mesa, como de costume. Assustada, foi
cozinha, imaginando que poderia encontr-la l,
sua espera. Sem obter qualquer resposta, correu de
volta para a escadaria e, aps subir dois lances de
escada e caminhar alguns minutos, a jovem,
acompanhada de sua mucama, bateu na porta do
quarto.
Vov... Vov... Gritava ela desesperada sem
saber o que fazer, a porta estava trancada e ela era
apenas uma moa. Ento mandou que chamasse o
jardineiro e o cocheiro para que pudessem
desobstruir o caminho.
A porta foi arrombada, caminhou pelo aposento
e percebeu que a viscondessa ainda estava deitada.
Aproximou-se da cama afastou a cortina do dossel e
tocou-lhe a face. A face estava fria e a pele estava
com uma palidez mrbida; os lbios glidos e roxos.
Gritou... Gritou... Aquela cena medonha havia
tomado conta do seu ser. Como poderia sua amiga e
av estar morrendo. No acreditou e com bastante
sacrifcio a deitou em seu colo, percebeu uma leve
pulsao em seu pescoo. No podia ser verdade,
sua av estava morrendo. Chorando muito deu
ordem ao cocheiro. Para que fosse buscar o mdico.
J vou, senhora! Disse ele, enquanto deixava
o aposento.
V... V. Senhor Joaquim, v depressa disse
Bya, enquanto afagava o rosto de sua av entre suas
mos. Hadassa... Pegue mais dois cobertores, ela
est com muito frio lembrou-se da cena que havia
visto ainda menina; a morte de um escravo velho l
na senzala de sua fazenda: Meu Deus! Por que isso
agora? Estvamos to felizes?!
A escrava Hadassa trouxe a coberta, mas j era
tarde demais.
Minha querida neta prometa-me algo? Disse
43

Cludio Pereira da Silva

a viscondessa, ainda na expiao da morte,


agonizava em seu leito. Era uma sensao trevosa,
que arrepiava sua pele, deixando-a apavorada,
sabendo ela que a morte estava ali ao seu lado,
cabeceira de seu leito. Esperando apenas uma
hesitao sua para ceifar sua vida. Levante a
mo!... Beathriz ergueu-lhe. Prometa-me diante
de meu leito de morte e perante Nossa Senhora de
Ftima... Gemia a senhora, enquanto agonizava...
Que jamais deixar de ser feliz... Tu ainda s uma
menina; todavia; quando se tornar uma rapariga e
voltar para o seu pas, algo lhe acontecer! Algo que
mudar completamente o rumo de tua vida, jamais
deixe de mandar em sua vida; pois quem conduz o
teu e o meu caminho o nosso Senhor e Criador,
Jesus de Nazar. Cuidado com as armadilhas do
corao. No entanto, respeite as ordens de tua me,
visto que somente assim ters vida boa e longa na
terra. o mandamento, de Deus, Honrar pai e me,
para que seus dias se prolonguem na terra! Assim
foram suas ltimas palavras, desfalecendo em
seguida! Assustada, Beathriz comeou sacolejar a
viscondessa freneticamente como se aquilo a
trouxesse de volta.
No adianta, sinh... Essa a vontade de Deus
Pai. No podemos fazer nada, apenas rogar por sua
alma disse Hadassa, chorando a par.
Cale a boca... Pois tu no sabes o que dizes!
Disse Bya, aos prantos. Saa daqui agora!... Vai ver
se o mdico chegou?! A escrava saiu, deixando-a a
ss. Assim que a escrava fechou a porta, a
viscondessa recobrou os sentidos e disse-lhe:
No precisa gritar com a moa, ela tem toda a
razo... O Criador me chamou! A viscondessa virou
para o lado. Os olhos toscanejaram e, por fim, deu
seu ltimo suspiro.
Vov... Vov. No morra; no, vov... Por
44

Mistrios de Um Amor Proibido

favor! Quem cuidar de mim?


Quando o mdico chegou, foi apenas para
reafirmar o que ela j sabia, a viscondessa havia
morrido. A viscondessa Maria Teresa havia partido. E
agora o que seria de Beathriz? Pobre menina, no
sabia o que fazer. Assim que o mdico saiu do quarto
Beathriz, foi cozinha e mandou o cocheiro chamar o
advogado da av: o Dr. Juscelino. Logo que ele
chegou, os preparativos para o velrio e o enterro
comearam. Mandaram mensageiros a todas as
provncias de Portugal, onde a viscondessa tinha
parentesco.
A noite caiu. O relgio da sala marcava sete
horas da noite, quando as primeiras pessoas
chegaram manso, pessoas de todos os lugares de
Lisboa, indivduos que queriam render suas ltimas
homenagens viscondessa.
Meus psames, senhorita Beathriz murmurou
a baronesa Victria.
A noite passou e no outro dia, assim que o sol
anunciou sua chegada, saram todos por Lisboa em
uma longa romaria at chegar igreja central, onde
seria a ltima morada da viscondessa. Aps o
sepultamento, partiram de novo para casa. As tias e
os primos de Beathriz regressaram para suas
provncias. Apenas Bya ficou na casa onde morava
com a av. Passou a noite inteira chorando e
procurando razes para tal acontecimento. A noite
passou e no dia seguinte tivera uma surpresa, logo
aps o desjejum recebeu a visita do advogado de sua
nona.
Pois, no senhor? Disse ela ainda
consternada pela noite passada, enquanto entrava
no escritrio. O que o trouxe aqui, a essa hora?
Desculpe-me, senhorita, por incomodar-lhe a
essa hora do dia, mas estou aqui incumbido por sua
av, que Deus a tenha. Ela, antes de morrer, havia
45

Cludio Pereira da Silva

me dito que, se ela morresse antes do seu regresso


ao Brasil, era para mand-la imediatamente para o
colgio de freiras... E assim como havia prometido a
sua madre, devo cumprir. Agora mesmo!...
Naquele mesmo instante o mundo de Beathriz
caiu... Pois estava desnorteada, no sabia o que
fazer! Caiu no choro e, jogando-se sobre um canap,
disse:
Essa foi a ltima vontade de minha av?
Perguntou ela, enquanto secava o rosto.
Sim, senhorita! Lamento... Mas esse foi o seu
pedido.
Com licena?
Mas isso no tudo em seu testamento. A
amada viscondessa deixou-lhe boa parte de sua
herana! Incluindo est casa, a casa do Douro e a
casa de Sintra.
Aps aquela rplica, Beathriz saiu desnorteada
pelos corredores aos prantos, mas teve que acatar
suas ordens, porquanto era ele quem estava com sua
tutela. Durante toda aquela tarde e o resto da noite
passou ela arrumando suas coisas, visto que partiria
no dia seguinte, assim que o sol abrolhasse no
horizonte. A noite passou. E, no dia seguinte, ainda
nas primeiras horas do dia, ela e Hadassa partiram
para o colgio de freiras, onde seria sua moradia nos
prximos anos.
Os primeiros dois meses em que passou no
colgio foram para ela a mesma coisa que ser
sepultada viva. Era realmente muito difcil para uma
sinhazinha, como ela, estava acostumada vida
agitada da nobreza lusitana. Uma vida regada a
compras, passeios, convescotes, saraus e idas ao
teatro para assistir a peas, peras, etc. Deixar de
uma hora para a outra a vida agitada para mergulhar
em uma vida de clausura e de oraes, mesmo para
ela, que todo domingo ia missa ao lado da
46

Mistrios de Um Amor Proibido

viscondessa e obedecia a todas as leis da Igreja, era


difcil...

47

Cludio Pereira da Silva

Captulo III
O colgio de freiras

Lisboa, Portugal, 1853.


Colgio e Convento das Irms Carmelitas.
Faltavam poucos dias para acabar o ano, e
Beathriz ainda no havia se acostumado com a rotina
da escola. Acordavam s cinco horas da manh e iam
dormir s dez da noite. Que tdio, nada de saraus,
nem festas, nem compras sem nada, apenas
estudo, pensava ela.
Estudavam o dia inteiro e, quando no estavam
estudando, ficavam na capela fazendo preces ao
entardecer. Bya j havia feito vrias amigas, alm de
Hadassa, sua fiel escudeira. Porm Maria Eduarda era
uma amiga mais que especial, quase uma irm.
Maria, alm de ser brasileira, era uma moa morena,
de olhos verdes e de cabelos castanhos-claros. Filha
de um rico fazendeiro do Brasil, estava ali com a
mesma incumbncia das outras moas: estudar,
porm no para ser uma mulher cientista, era
apenas um modo de se resguardar at o dia em que
o pai mandaria busc-la para se casar... Assim como
as outras, Beathriz no sabia o porqu de sua estada
ali. Porm muita coisa do que as outras estavam
aprendendo, ela j havia aprendido no Brasil, com
suas irms e a professora americana, Charlotte
Mitchell O Hara.
48

Mistrios de Um Amor Proibido

O sol havia acabado de nascer no horizonte


quando Beathriz abriu os olhos. Dia vinte trs de
dezembro, faltando exatamente oito dias para acabar
o ano. Aquele dia parecia ser um dia atpico aos
outros. Levantou-se, vestiu-se apenas com o robe e
comeou a caminhar pelo aposento, colocando-se
diante de uma janela, janela esta que ficava prxima
escrivaninha. Abriu as cortinas de veludo
adamascado e, em seguida, a janela. Um vento frio
soprou, Beathriz sentiu ento uma brisa fria
percorrer-lhe toda a espinha dorsal, arrepiando-se.
O vento estava to frio que a jovem foi obrigada
a dar trs passos para trs, para pegar um xale que
estava espalhado sobre um canap. Em seguida,
volveu-se novamente para a janela. Colocou o rosto
para fora e viu um denso nevoeiro, estava muito frio
e, para completar, caa uma fina garoa. Temendo
ficar tsica, voltou rapidamente para o interior de seu
aposento; trancando a janela em seguida. Deu
alguns passos largos pelo quarto e parou diante de
sua secretria. Ao lado da escrivaninha, Hadassa
dormia, do outro lado do quarto dormia Maria
Eduarda.
Pegou uma pena de pavo imperial, o tinteiro
de nanquim e uma folha de papel branco. Beathriz
comeou a escrever algumas palavras no papel,
todavia desistiu rasgando-o. A jovem tentava
escrever uma carta para sua me, contudo no teve
xito em suas derradeiras palavras. Na carta pedia
para voltar, entretanto sentiu necessidade de ficar e
esperar que fosse convocada pela baronesa. Olhou
para Hadassa, que se contorcia em seu leito com frio.
Ento levantou da cadeira, pegou seu cobertor e o
estendeu sobre a moa.
Maria Eduarda dormia como se no houvesse
ningum em seu quarto; parecia uma pedra e, de vez
em quando, falava algumas palavras em latim, ou
49

Cludio Pereira da Silva

discutia com algum que jamais dizia o nome. Com


certeza aquelas palavras haviam sido aprendidas na
igreja, durante os sermes. Beathriz caa na risada,
mesmo assim ela no acordava. A jovem
Albuquerque ficou ali por alguns minutos, at que
pegou no sono novamente. Acordou assustada, o
tinteiro de nanquim havia cado no cho.
Meu Deus... Que barulho esse, sinh?
Ergueu-se Hadassa, assustada. Sinh... Sinh
disse-lhe a mucama, enquanto balanava o brao de
sua senhora.
Deus, o que eu fiz? Sou uma idiota mesmo...
Bya e Hadassa caram na gargalhada.
Estava dormindo a, sinh? Indagou-lhe
Hadassa. Vai acordar com dor nas costas?! Vai
deitar em seu leito, deixa que limpo tudo.
No... Pode deixar que eu limpo tudo. Isso no
hora para dormir, j se faz dia claro!... Bya tentou
limpar o cho, no entanto a mucama no deixou.
Ento voltou a caminhar pelo imenso aposento,
lavou o rosto na gua fria, de um jarro de porcelana
indiana que estava sobre uma mesa de cabeceira;
despiu-se da roupa de dormir e vestiu a roupa
habitual. Vestiu-se e acordou Maria Eduarda, visto
que as horas j haviam se esvado e as aulas
comeariam em poucas horas. Depois que se
vestiram, as duas moas partiram para o refeitrio,
onde j eram aguardadas pelas demais.
Hadassa, como era dama de companhia, teve
que ficar nos aposentos arrumando tudo e esperando
sua hora de tomar caf, junto com as outras serviais
do colgio e damas de companhia.
Aps o desjejum partiram para a sala de aula,
onde aprenderiam a pintar, coisa que Bya j sabia!
Perto do meio-dia almoaram e em seguida voltaram
para a sala de aula, duas horas depois tomaram o
ch da tarde. Assim que o crepsculo anunciou sua
50

Mistrios de Um Amor Proibido

chegada, jantaram e foram capela, onde ficaram


pouco mais de duas horas, ouvindo o sermo do
padre sobre o que poderiam ou no fazer. Depois das
preces cada moa voltou para seu aposento. Beathriz
e Maria Eduarda atravessaram um grande corredor, a
cada passo uma nova surpresa, as paredes estavam
repletas de quadros, um quadro em especial
chamou-lhes a ateno.
Era uma moa muito linda, de cabelos louros e
na altura das coxas todo anelado; a roupa era de um
veludo verde-musgo com ampla saia. Seus cabelos
loiros caam-lhe sobre o colo em lindos anis, o
sorriso afetado nos lbios, a matiz parecia uma
ptala de magnlia, banhada pelo orvalho da noite.
Pararam diante da imagem, curiosa, Maria perguntou
freira que as acompanhava:
Senhora, por favor! Quem esta senhorita
aqui? indagou Maria, muito alegre. Ela muito
linda! O que esse quadro representa para o colgio?
A senhora deu alguns passos para trs e disse:
Ah, minha filha... A histria dessa moa
muito longa. Outro dia eu conto... Agora as
senhoritas iro dormir, j tarde! Amanh eu conto,
prometo! E nos mnimos detalhes... Disse a
senhora, enquanto caminhava em direo porta.
A cada passo que davam, o corredor tornava-se
mais escuro, e os quadros tornavam-se monstruosos.
Eram pinturas velhas, no estilo gtico, pareciam
observ-las. Quando chegaram aos aposentos, a
freira deixou-as trancando a porta atrs de si.
Hadassa despiu-lhes das roupas do dia a dia e lhes
colocou as roupas de dormir. Quando j estavam
devidamente vestidas para dormir, cada uma
ajoelhou sobre o seu leito e fizeram aquilo que todo
cristo deveria fazer antes de dormir: rezaram,
deitaram-se, fechando os acortinados de veludo
adamascado do dossel.
51

Cludio Pereira da Silva

O vero j passou, o outono tambm e o


inverno nem se sentia mais. chegada estao
mais linda do ano: a primavera, estao em que tudo
renasce, tudo se transforma, as rvores do seus
frutos, as aves do cu se reproduzem; j no se viam
mais as folhas secas do outono, nem a neblina e o
frio do inverno. Tudo renascera das cinzas, assim
como um ser mitolgico. Desse modo tambm
deveria Beathriz renascer das cinzas, sair do lodo
onde cara. Aps a morte de sua av, passara a
perguntar a Deus o que ele queria dela. Primeiro seu
pai, agora sua av? Passava boa parte do tempo na
capela, procurando respostas para tudo. Achava-se
tola, idiota. Pensou que j estava ficando senil.
A noite passou. E na manh seguinte, assim
que acordou, lavou o rosto, vestiu um vestido de
saia-balo de musselina lils com laivos magenta. Na
sequncia desceu as escadas que separavam os
quartos do resto do convento, passou pela ala sul,
descendo as escadas do fundo; decidiu caminhar um
pouco pela ala norte, Onde parecia tudo estar
destrudo por conta do tempo. Ali entre as runas do
primeiro convento, datado do ano de 1481, ano em
que D. Joo II subiu ao trono de Portugal, havia uma
pequena capela de onde Beathriz pde avistar uma
incidncia de luz, parecia ser uma vela, a imagem
trepidava. Aproximou-se da capela e percebeu que
era uma freira. Entrou e, ajoelhando-se aos ps de
Nossa Senhora de Ftima, fez a introduo de suas
preces.
A irm Perptua parecia estar em um estado de
torpor ou em transe. No sei explicar, no entanto,
parecia no estar neste mundo, porquanto no
percebeu sua entrada. Beathriz ajoelhou-se ao seu
lado, comeou a fazer suas preces, foi quando
percebera a presena da menina e, de cabea baixa,
disse:
52

Mistrios de Um Amor Proibido

O que fazes aqui a est hora, mocinha? No


deveria estar em seu aposento? Junto com suas
amigas! So ainda vinte para as quatro da manh!
Vossa merc no deveria estar ainda no trio de seu
leito? Indagou-lhe a freira, enquanto fazia suas
preces.
Ah, irm, no sei! De repente acordei e no
consegui dormir mais. Ento resolvi andar um pouco
disse Bya, ainda ajoelhada.
Mas no pode andar sozinha por a, porquanto
perigoso disse ela, enquanto pegava a mo de
Beathriz.
Perigoso... Por qu? No estamos cercadas por
muralhas?!
Sim!... Mas isso no quer dizer que estamos
completamente protegidas dos malfeitores. Eles
podem pular os muros concluiu a senhora, puxando
seu xale para cima.
O frio e a neblina da madrugada pairavam ainda
por sobre o convento.
Desculpe-me, senhora concluiu Beathriz,
enquanto rezava o tero.
Mas to cedo?... E a senhorita j est
totalmente vestida?
claro, como eu sairia de meu quarto em
trajes menores? Sem falar no frio que faz essa
madrugada. Tenho medo de pegar uma pleurisia,
tsica.
Ah, t!
As badaladas do relgio da igreja matriz
anunciaram a chegada de mais um dia, eram
exatamente cinco horas da manh. Com certeza a
madre superiora e as outras freiras j estavam de p!
Porquanto comeavam a trabalhar ainda antes das
seis horas.
Vamos, mocinha, faa suas consideraes
finais para que possamos retornar ao convento. J,
53

Cludio Pereira da Silva

j... terei que ir cozinha ajudar a preparar o caf da


manh.
Posso ajudar a senhora, se quiser disse Bya,
enquanto erguia-se do cho e sacudia a saia.
Agradecida!... Agradeo o vosso interesse,
mas isso no coisa para voc fazer. Vocs esto
aqui para aprender etiqueta, a cozer, bordar, pintar,
aprender o latim e no para cozinhar e fazer
trabalhos domsticos. Pois isso quem far para vs
ser vossas empregadas ou escravas, no caso do
Brasil.
Mas isso tudo eu j sei fazer. Aprendi ainda no
Brasil murmurou ela. Vai, por favor?! Isso no
quebrar minhas mos. Nem tampouco me far
menos sinhazinha. Vai, vai, por favor?
No!... E agora volte para seu dormitrio e
aguarde l o nosso chamado...
No conseguindo xito em suas propostas,
regressou ao seu quarto. L Hadassa j estava sua
espera.
Onde estava, minha sinh? Deixou-me
preocupada.
Ah, minha querida, estava por a!...
Aps ter trocado algumas palavras com
Hadassa, caminhou at a janela e, abrindo-a
novamente, debruou-se sobre o peitoril e ficou ali
observando o movimento que havia no ptio. De l,
pde ver vrias coisas, enquanto uma varria o ptio,
a outra colhia erva para fazer o ch, na cozinha o
po era sovado. Porm a figura que mais lhe chamou
a ateno havia sido a de dona Terezinha. Uma velha
freira que parecia no estar satisfeita com nada.
Alm disso, tinha uma leve gagueira e tremia muito.
Beathriz riu a par, de ver aquela cena hilria. Mas
logo fora descoberta por dona Terezinha, a velha
comeou a gritar no meio do ptio, dizendo:
O qu voc quer a, menina? Saia da, agora!...
54

Mistrios de Um Amor Proibido

Bom dia, irm Terezinha... Disse Beathriz,


sorrindo.
Bom dia, nada, minha filha. Hoje acordei com
as cadeiras doendo muito. E no se fazem mais
freiras como antigamente! Essas meninas so loucas,
mal sabem sovar um po disse dona Terezinha,
enquanto caminhava pelo ptio.
S aquilo mesmo para fazer Beathriz gracejar
logo cedo! Enquanto Bya observava as freiras, Maria
Eduarda levantou-se, lavou o rosto e vestiu-se. Uma
hora depois, uma novia passou batendo nas portas,
anunciando que o desjejum estava mesa. O cheiro
de caf e de broa de milho j havia tomado conta de
todo colgio. Quando chegaram ao refeitrio, as
mesas j estavam postas com bolos, compotas,
queijos, pasteis de Belm, dom Rodrigo, cabelo de
anjo, baba de moa, pudim, quindim, ambrosia e
outras especiarias da cozinha portuguesa, tudo
exposto sobre a mesa.
Deram alguns passos pelo refeitrio e se
assentaram em seus devidos lugares. O refeitrio era
composto por seis mesas, que estavam divididas
entre alunas e freiras, as cabeceiras de cada uma
das mesas estavam intercaladas entre professoras e
freiras. Na mesa que Beathriz estava sentada, quem
estava cabeceira era a madre superiora. Assim que
terminaram de tomar o desjejum, a madre superiora
lhe informou que naquele dia teriam uma tarefa
diferente.
Como era antevspera do Natal teriam que
exercitar a vossa subservincia, solidariedade e amor
ao prximo. A senhorita Albuquerque e mais algumas
moas foram levadas despensa, l, foram
informadas o que fariam. E assim cada uma recebeu
uma incumbncia. Meia hora depois, Bya, Maria
Eduarda, Hadassa e mais duas moas foram levadas

parte
pobre
de
Lisboa;
l
distriburam
55

Cludio Pereira da Silva

mantimentos, gua, roupas e agasalhos.


Depois retornaram ao cenbio e foram
autorizadas a sair do convento, para fazer compras.
Bya, Maria Eduarda e a mucama Hadassa saram
para as aquisies. Aproveitaram muito, pois era s
nessa poca de festas que podiam atravessar os
portes e as muralhas do colgio. Frequentaram a
confeitaria, a modista, o sapateiro, o perfumista,
entre outros lugares, voltaram somente ao
entardecer. Saram apenas com uma carruagem e
voltaram com a carruagem e um carro de aluguel,
que tiveram que pagar, porquanto haviam comprado
muita
coisa.
Vestidos
variados,
merinaques,
crinolinas, anguas, chapus, capas, luvas, meias,
botinas, xales, perfumes que acabaram de chegar da
Frana, entre outras iguarias. Tiveram um trabalho
ainda maior para levar tudo para o aposento,
precisaram da ajuda de muita gente, tiveram que
fazer trs viagens.
Todos saram, deixando apenas as moas que
apressaram as apresentaes de suas peas novas,
uma a outra.
Olha Bya, o vestido que comprei... lindo no
? disse Maria Eduarda, enquanto desfazia os
pacotes. A modista disse que modelo da Frana e
chegou h poucos dias de l.
realmente lindo!... Tenho que concordar com
voc murmurou Bya, enquanto desfazia um
embrulho. Olha esse chapu, que lindo? Adquiri,
pois assenta perfeitamente com esse vestido aqui,
no ?
As duas olharam para Hadassa e em conjunto
disseram:
O que voc achou, Hadassa?
So realmente lindssimos, senhoras!... Olha
s esse corpinho, achei lindssimo. E essa saia, que
coisa deslumbrante! Que pena que sou mucama!
56

Mistrios de Um Amor Proibido

Murmurou a dama de companhia, em um tom


desolado.
Mas quem disse que mucama no pode usar
um vestido desse? Redarguiu Bya.
Ah, minha senhora... A sociedade!
Maria e Beathriz caram na risada, deram alguns
passos pelo aposento e juntas pegaram uma caixa
que estava sobre um dos leitos, entregando a
Hadassa em seguida.
Toma... Hadassa, abra! Disse Bya, sorrindo.
Mas, o que isso? Hadassa murmurou
surpresa.
Abra!... A tu vers do que se trata!
A escrava apoiou o embrulho sobre uma mesa
e, abrindo, disse:
Mas... Mas... Minha senhora est louca. Onde
usarei isso?
Sei l?
Desculpe-me, mas eu no posso aceitar esse
presente! Disse Hadassa, ainda surpresa.
Por que no? Murmurou Bya... Se no
aceitar, eu e Maria Eduarda ficaremos chateadas.
Pode aceitar, sim...
Isso pode aceitar. Seno ficarei magoada com
voc falou Maria, faceiramente.
Mais... Mais...
Nem mais, nem meio mais. Aceita e fica
quieta!
T bom. Aceitarei apenas porque as senhoras
compraram com muito carinho, mas no pensem que
sou uma interesseira...
Aaaaaah... Deixa disso, mulher! presente de
Natal, no fizemos mais que nossa obrigao.
Posso vestir hoje?
Pode! Por que no? Mas acho melhor deixar
para a noite de Natal, no acha Maria?
Sim, sim... Concordo plenamente!
57

Cludio Pereira da Silva

Mas quando vocs compraram esse vestido


para mim? Perguntou Hadassa, ainda assoberbada
com a boa nova. Pois no sa de perto de vossas
senhorias um s segundo.
Lembra quando perguntei a voc qual
daqueles vestidos voc achava mais bonito?
Sim... Mas no imaginava que fosse para mim!
Ento, quando mandei voc ir ao coche
guardar aquelas caixas, mandei a modista embrulhar
para voc! No gostou?
Como no? Perdoe-me se no aparenta, mas
por que no acredito ainda.
Pode acreditar, seu!
Dia vinte e quatro de dezembro, vspera de
Natal, naquele dia todas as estudantes estavam
ajudando a preparar a ceia de Natal. Passaram a
tarde toda cortando, picando, descascando e
cozinhando, alm das horas que passaram em seus
preparativos. tarde, aps o trmino de suas
atividades na cozinha, as duas amigas subiram e
trancaram-se em seus aposentos. Passaram assim o
resto da tarde, preparando-se.
Marcava pouco mais de sete horas da noite
quando foram informadas que a ceia j havia sido
servida. Beathriz, ainda antes de sair do quarto,
parou diante do espelho, queria ver se seu toillete
estava impecvel. Bya e Maria Eduarda saram de
braos atados do quarto. Beathriz trajava um lindo
vestido de seda e musselina na cor amarelo-ouro, a
saia era ampla e os ombros estavam nus em um
decote meia-lua. J Maria Eduarda trajava um vestido
de musselina e tafet na cor vermelho-prpura. De
braos atados, as duas jovens desceram escadaria
principal e caminharam at o refeitrio, onde j eram
aguardadas! Como o Natal uma festa crist, antes
de dar incio ceia, fizeram uma longa prece. Assim
que o jantar acabou, muitas das moas foram para
58

Mistrios de Um Amor Proibido

os sales e bibliotecas do convento, onde


continuaram a festana. Ficaram acordadas at
pouco mais de uma hora da manh.
Marcava uma e meia da manh quando cada
uma foi para seu quarto. Bya e Maria Eduarda
ficaram mais um pouco; no entanto, logo se
recolheram tambm. Assim que os primeiros raios do
sol entraram pelas janelas do aposento de Beathriz,
Bya levantou-se, vestiu-se e saiu. Sua inteno era ir
capela-mor, porm seu caminho foi alterado e
decidiu esconder-se na biblioteca, l caminhou entre
os seis mil exemplares e pegou um exemplar de Os
Lusadas, do ilustre Cames, texto que ainda estava
em portugus arcaico. E leu...

59

Cludio Pereira da Silva

Captulo IV
O incio de um ano-bom

Aquela seria uma manh como outra qualquer


apenas um pequeno detalhe a distinguiu das outras.
Aquele era o ltimo amanhecer do ano de mil
oitocentos e cinquenta e trs, ano de Nosso Senhor.
Naquela manh Beathriz havia acordado mais tarde
que o habitual, porque na noite anterior passara boa
parte dela fazendo os ltimos retoques no vestido
que usaria naquela noite.
Decorreu o dia todo esperando a noite chegar,
aguardavam o incio do grande banquete. Entre uma
preparao e outra, pensavam como seria o prximo
ano, o que fariam? Qual seria o rumo de suas vidas?
Qual seria a sua sorte? Algumas moas pensavam
em casar, outras queriam seguir a vida religiosa, mas
Bya sempre sonhou com o dia em que encontraria o
seu prncipe encantado. Quando viria lhe buscar?
Quando? Quando? Durante os anos que esteve ali,
viu muita coisa acontecer. Amigas suas que eram
arrancadas do colgio para casar, mesmo sem
conhecer o rapaz. Aquilo sempre lhe indignou, a
maioria das moas j havia se acostumado com
aquela imposio familiar. Foi ento que Maria
Eduarda disse algo que lhe indignou ainda mais.
Enquanto vestia-se disse:
Quando completei dez anos, minha av me
disse uma coisa que no esqueci mais disse Maria.
60

Mistrios de Um Amor Proibido

Diga o que sua av, dizia respondeu Beathriz


asperamente, indignada com o que acabara de ouvir.
Ela me ditava os mandamentos de uma boa
dona de casa!
O qu? Quais so?
Primeiro: Amai a vosso marido sobre todas as
coisas. Segundo: No lhe jureis falso, jamais em
hiptese alguma mentir ou omitir para ele.
Terceiro: Preparai-lhe dias de festas.
Quarto: Amai-o e honrai-o mais do que a vosso
pai e a vossa madre.
Quinto: No o acabrunheis com exigncias,
caprichos, mimos, futilidades, amuos, etc.
Sexto: Jamais mentir para o seu senhor.
Stimo: No subtraiais dinheiro, nem gasteis
com coisas por menor e fteis.
Oitavo: No resmungueis, nem finjam ataques
de histerias de mulherezinhas fteis.
Nono: No desejeis o seu prximo.
Dcimo: No exijais luxo e no vos detenhais
diante de uma vitrine.
Esses
eram
apenas
alguns
dos
vinte
mandamentos para ser uma boa esposa.
isso que voc aprendeu com a sua av?
Indagou Beathriz, indignada.
Sim... Por qu? No gostou?
Gostei, no sabe o quanto... Respondeu Bya,
com bastante aspereza nas palavras.
Aprendi tambm os dez mandamentos de uma
sinhazinha de respeito. Querem saber quais so?
Sim...
Primeiro: Jamais ficars com um rapaz a ss.
Segundo: Nunca, em hiptese alguma, sair
com um rapaz sozinha.
Terceiro: Guardai a rosa da pureza, para vosso
marido.
Quarto: Seja sempre feminina, grite, faa
61

Cludio Pereira da Silva

escndalo, quando avistar algum animal.


Quinto: Gostai sempre de se arrumar. E adore,
sobre todas as coisas, joias, perfumes, tecidos nobres
e roupas de modistas famosas.
Sexto: Gostem de perfume, chapus, vestidos
de saia-balo os mais caros, sapatos, xale,
merinaques, crinolinas, anguas, etc.
Stimo: Ser ftil que goste de esbanjar dinheiro.
Oitavo: Fazer compra todos os meses, roupas
novas e objetos que ocasionem inveja nas outras
moas.
Nono: Nunca deixar ser beijada ou acariciada
por um desconhecido em pblico.
Dcimo: E, sobre todas as coisas, honrar e
obedecer aos desgnios, diante da escolha do pai,
para seu casamento. Casars com aquele que seu
pai escolher, sem nem indagar-lhe sobre quem s.
Credo, Maria Eduarda! Que coisa mais ftil!
Como voc pode guardar esses disparates? Isso no
passa de aforismo de ditos-cujos anacrnicos. Pensa
bem, ser que isso mesmo que voc acredita?
Pensa?... Creio que no, pois tu me mostras uma
coisa diferente em seus atos vociferou Beathriz.
Jamais pensei que voc pensasse assim! Voc me
parece uma moa to contempornea, to adiantada
ao nosso tempo. No foi toa que me simpatizei com
voc.
Por Deus, minha cara senhorita Albuquerque;
no me leve a mal, mas foi isso que aprendi com a
minha av. No disse que acredito, disse?
O crepsculo anunciou sua chegada. Era pouco
mais de sete horas da noite, quando o grande
banquete comeou e transcorreu a noite inteira. As
jovens passaram a noite inteira festejando.
Caro leitor... Agora passarei alguns anos da vida
de nossa mocinha Beathriz, calado. Dias de mudana
que marcaram vrios acontecimentos. Contudo, o
62

Mistrios de Um Amor Proibido

ritmo em que ocorreram os fatos foi o mesmo do


incio. Todo final de ano era a mesma coisa, passou o
vero, o outono, o inverno e a primavera; assim
como aconteceu nas estaes, aconteceu na vida da
moa.
O sol havia acabado de nascer no horizonte e
uma bela figura feminina debruou-se em uma das
janelas do convento, olhava para o ptio, observando
o vai e vem das freiras carmelitas. Ao seu lado, um
ba onde guardava suas roupas. Ficou parada ali por
algumas horas, at que voltou a se mover. Caminhou
de um lado para o outro, sentia-se ainda abalada
pela morte da freira Terezinha, que havia falecido
havia dois meses. Ao lado de sua cama, Maria
Eduarda repousava. Beathriz ainda estava com roupa
de dormir, quando uma senhora informou-lhe que o
caf seria servido. Logo correu para chamar Maria. A
senhorita Albuquerque um tanto faceira, mas muito
humana. E, como qualquer ser vivo, tem seus
momentos de alegria e de tristeza. Contudo, jamais
deixou sua melancolia traspassar as barreiras do
corao, no mostrava de jeito nenhum seus dias de
aflio, estava sempre com um belo sorriso no rosto
meigo e faceiro. Beleza que s uma donzela em sua
idade poderia ter, contava ainda dezenove
primaveras.
Maria Eduarda, Maria Eduarda disse Beathriz,
repousando-lhe a mo sobre sua face. Acorda! O
caf ser servido e ns ainda nem nos preparamos. A
madre j veio nos chamar.
Deixe-me em paz, Beathriz! Respondeu a
jovem.
Beathriz foi ao ba onde estavam suas roupas,
apanhou um vestido lils. A outra dama logo se
levantou.
Hadassa, vem ajudar-me a me vestir pediu
ela sorrindo , aperte mais este espartilho, preciso
63

Cludio Pereira da Silva

ficar com a cintura mais fina.


No achas que j est bom? Hadassa
retrucou-lhe. Assim, vai acabar desmaiando diante
das irms, ou quebrar no meio. se continuar
afinando esta cintura.
Faa o que mando! E cale a boca, atrevida!
Murmurou a jovem. Voc paga apenas para me
servir e no para dar palpite a sua senhora.
Mas ela tem toda razo murmurou Maria
Eduarda. Assim acabars passando mal.
Desculpe-me, no queria ofend-la, senhora.
Est desculpada! Mas no se atreva mais, ou
serei obrigada a deix-la aqui, quando retornar ao
Brasil.
Ah, no senhora, no faas isso! Ou morrerei
de enfado sem a vossa companhia.
Cale-se...! E pegue as minhas botinas,
merinaques, anguas, crinolinas e minha calola.
No h mais tempo para mexericos.
Assim que terminaram de se vestir, as duas
saram do quarto de braos atados.
Maria Eduarda... No sei o que farei, quando
tiver que voltar para o Brasil! Pois est terra j faz
parte de mim. Passei os melhores anos de minha
vida aqui! E agora sei que est perto o dia em que
voltarei ao Brasil.
No fique assim, senhorita Albuquerque, o
Brasil no est to ruim assim. Pelo que leio nos
jornais, o Brasil parece-me um pas abenoado por
Deus. No creio que a senhora seja infeliz l!
Como no? Se no sei o que encontrarei l.
Cruzes, senhora. Bate na madeira... Como a
senhora pode dizer isso?
Com certeza, no foi isso que sonhei para
mim, Maria. Eu esperava viver aqui at morrer. Sinto
que l sofrerei.
Fique em paz, Deus sabe de todas as coisas.
64

Mistrios de Um Amor Proibido

Mesmo que o que voc sonhou no acontea agora,


acredito que um dia acontecer, mesmo que demore
dias, meses ou anos, acredito que vir.
Assim espero!
J havia passado o caf e o almoo. Maria
Eduarda havia retornado para seus aposentos,
Beathriz decidira caminhar pelo jardim. Trazia nas
mos uma bblia. Passou por vrias freiras e
imaginou como que aquelas senhoras aguentavam
ficar, por tanto tempo, enclausuradas atrs daquelas
imensas muralhas, como se fossem princesas
presas em torres espera do prncipe encantado,
para salv-las de um imenso drago. Caminhou por
alguns minutos at que encontrou, no final do jardim,
um banco. Sentou-se. Abriu a bblia, folheou,
folheou... Mas logo seus pensamentos foram
interrompidos pela madre:
Irm Beathriz, com licena! Disse a madre
superiora.
Pois, no madre?! Respondeu Bya.
Estando ela sentada no banco do jardim,
debruada entre montanhas de musselina, tafet,
seda e renda francesa, a jovem parecia esconder-se
sobre rolos e rolos de tecido nobre. Era realmente a
viso de um anjo que se debruava entre nuvens
lilases, sobre a qual uma grande quantidade de pano
ocultava o encosto do banco. Coroava-lhe a fronte o
diadema de suas belas tranas no alto da cabea,
donde resvalavam duas dzias de cachos que lhe
caam por sobre o colo. A velha senhora tirou as
mos de dentro do hbito e em seus dedos viera um
papel que lhe entregara. Assim que recebeu o papel,
levantou e caminhou por entre o arvoredo.
Obrigada, Madre! Agradeceu com uma leve
mesura, diante da senhora.
Pois sim, minha filha retribuiu a senhora, que
logo partira novamente para o interior do convento.
65

Cludio Pereira da Silva

O bilhete que havia acabado de receber dizia:


Imprio do Brasil. Vinte cinco de janeiro de
1854.
Filha, as coisas aqui no Brasil vo de vento em
popa. Espero que, a na terra de Luiz de Cames,
esteja tudo s mil maravilhas, tambm! Sabe aquela
prima da baronesa Leopoldina? Ela se casou a
semana passada com o filho de um rico comerciante
daqui mesmo. Ns fomos convidadas, mas como
vossa merc est a, em Portugal, decidi no ir. As
coisas aqui esto muito bem, mas precisamos de
vossa presena aqui, eu e suas primas no
aguentamos mais de saudade de ti. Por isso, mandolhe o dinheiro para voltar. Minha querida filha, peolhe que parta imediatamente para o Brasil, pois
preciso de vs aqui comigo, venha o mais rpido
possvel, pois vossa famlia precisa de voc em nosso
seio, at o ltimo minuto teu padrinho pediu por ti.
Ass.: A Baronesa Albuquerque da Maia
Assim que terminou de ler o bilhete, dobrou-o e
o colocou em seu colo.
Meu Deus! Pois vim para c muito nova e
nunca mais voltei ao Brasil, e agora serei obrigada a
deixar esta terra para viver em terras tupiniquins,
pensava ela. Depois se levantou e marchou para sua
acomodao. Chegando l, l estavam Hadassa e
Maria Eduarda, repousando em seus leitos.
O que foi, senhora?
No lhe disse, Maria?! Murmurou Beathriz.
O que mais temia aconteceu. Acabei de receber uma
carta de minha me, que me pede para regressar o
mais rpido possvel. Houve ento um longo
perodo de silncio. Devemos comear agora os
66

Mistrios de Um Amor Proibido

preparativos, pois temos muito o que fazer at a


nossa partida, Hadassa!
Quando partiremos, minha senhora?
Indagou-lhe Hadassa.
Partiremos daqui a uma semana...
Ah no, Bya, isso no pode ser verdade! Quer
dizer que voc vai me deixar sozinha? Ah, no... Eu
no aceito isso! Disse-lhe Maria aos prantos.
A semana passou como rastilho de plvora, e o
dia da partida chegou. O convento nunca havia
estado daquela forma. Uma baguna como aquela s
acontecia na festa de Nossa Senhora de Ftima. Os
corredores estavam uma baguna, pois estava de
partida a to ilustre hspede que ficou ali por anos,
as freiras j haviam se acostumado com sua
presena. Ela e Hadassa, sua dama de companhia,
estavam preparando os ltimos bas. E a madre
superiora j havia chamado o coche.
Vamos, Hadassa! Vamos... Brandiu Beathriz.
Tenho que me preparar, ou achas que viajarei
assim?
Estou fazendo o possvel, minha senhora
respondeu-lhe Hadassa, enquanto fechava o ltimo
ba.
Pediu a Maria que lhe ajudasse com o
espartilho.
Mais, mais, aperte mais!... Preciso chegar ao
Brasil com a cintura de uma europeia murmurou
ela. Agora minha sorte est lanada, seja o que
Deus quiser! Minha vida est lanada ao vento, como
uma folha seca que no sabe para onde vai bradou
Bya, em alta voz. Agora pegue o merinaque mais
ampla que tenho.
J passava do meio-dia no relgio da igreja
matriz e Beathriz ainda estava em sua alcova dando
os ltimos retoques em seus trajes. Os ltimos bas
foram fechados. Maria Teresa bateu na porta do
67

Cludio Pereira da Silva

quarto onde Beathriz estava e disse:


Com licena, senhorita Beathriz... A
carruagem que a levara at o porto acabou de
chegar.
Naquele mesmo instante, batalhes de serviais
adentraram o aposento, iriam recolher os pertences
de Beathriz. Os lbios da jovem secaram, a pobre
ficou sem palavras, todavia seu olhar falou tudo. Deu
um giro em torno do prprio eixo, olhou os quatro
cantos daquele amplo aposento. E todas as
lembranas retornaram a sua mente, reviveu tudo o
que havia vivido ali desde o primeiro dia. Imaginava
como seria seu regresso ao Brasil, aps tanto tempo
morando em Portugal. Imaginou tambm como seria
seu futuro no pas de Cludio Manuel da costa, Toms
Antnio Gonzaga, entre outros autores. Deu uma
volta com os olhos pelo quarto, ento se cobriu com
uma mantilha preta, colocou o chapu de veludo
carmim do mesmo tom do vestido na cabea e, nas
mos, uma luva de pelica branca.
Uma batida na porta a fez voltar vida real.
Anda, filha. O coche j est a fora, a tua
espera! Murmurou a velha senhora, encostando o
ouvido porta.
Calma, madre... Estou terminado de colocar o
vestido de saia-balo respondeu ela, ainda do
interior do aposento. Ou a senhora acha que eu
voltarei para casa, mal-arrumada?
A madre riu...
filha, como ser esse convento sem a tua
alegria?
Ouvindo aquelas palavras da boca da madre,
comeou a cantar, respondendo assim sua
pergunta:
No se preocupe, pois eu vou, mas logo
aparecer outra.
A velha suspirou e, com a voz embargada,
68

Mistrios de Um Amor Proibido

disse:
Est bem, mas no demore muito.
Sim, madre!
A madre superiora saiu e ela continuou.
Marcava trs horas da tarde no relgio da igreja,
quando Bya, Hadassa e Maria Eduarda deixaram o
quarto. Bya estava simplesmente belssima, trajava
um lindo vestido de cambraia na moda saia-balo, na
cor vermelho-carmim. Trazia na cabea um lindo
chapu de abas largas, no mesmo tom do vestido, j
no dorso ostentava um lindo manto de veludo negro
e nas mos uma luva de pelica branca. Enquanto
caminhava pelos corredores do convento, as
merinaques de sua saia batiam nas moblias e as
derrubavam.
Enquanto caminhava para a sada, sua mente
fazia um remember dos momentos felizes e tristes
que passou ali. Sentia como se estivesse sendo
arrancada do ventre de s madre. A cada passo que
dava era mais um pedao que lhe era extrado. Aps
ter atravessado um imenso corredor, comeou a
descer as escadas da sada principal. Assim que
chegou ao ptio do colgio, ela e Hadassa caram no
choro, pois em vossa frente estavam todas as freiras
e a principal delas, a madre superiora, uma de suas
melhores amigas, desde que entrara no colgio, alm
de Maria Eduarda.
O condutor do coche desceu da boleia, abriu a
portinhola, para que Beathriz pudesse entrar. Antes
de entrar, Beathriz cumprimentou todas as freiras e,
quando chegou a vez de Maria, as duas se
abraaram e comearam a chorar. Ento a novia
disse a ela:
E agora, minha amiga, o que ser de mim?
No chores! Pois, quando quiser me ver, v a
minha casa.
As duas trocaram algumas palavras e logo
69

Cludio Pereira da Silva

Beathriz embarcou no coche que logo partiu.


Naquele momento como se fosse um flash-back, na
frente dos olhos de Bya, relembrou todos os
momentos em que passou trancafiada naquela
clausura. Quando o coche dobrou a esquina que
separava o convento do mundo exterior, Beathriz
sentiu-se como se a partir daquele momento sua
vida fosse transformada totalmente. Foram dias
maantes em um paquete, at que o navio aportasse
no porto do Rio de Janeiro, e mais alguns dias em
uma diligncia at Chegar a Sant Anna das Rosas,
ou Sant Anna, como era conhecida. No dia em que a
moa chegou fazenda, aconteceu na senzala uma
grande festa, boa parte da escravaria era muito
chegada moa. Algumas negrinhas, que no se
sabe o motivo, se por inveja ou por outro ensejo,
sentiam raiva da moa, todavia boa parte da
escravaria gostava da moa.
Muitos diziam:
Ah, que bom... A nossa santinha est voltando!
Outros diziam:
Ser que ela ainda est boa como era quando
criana? Ou se tornou arrogante? Espero que ainda
seja aquela que conhecemos quando menina, que
brigava com qualquer um por ns. Lembra, Chica?
Como ela nos defendia do chicote do feitor maldito.
Ou quando brincava com nossas filhas, l para os
lados do riacho grande, onde lavvamos as roupas
da casa-grande.
se lembro! Tempo bom aquele, no ,
Joslia?
Oc lembra: quando a gente ajuntava todas as
crianas e, com o balaio nas mos, partamos para a
beira do lago, onde lavvamos as roupas dos
senhores? Depois passvamos horas e horas
esperando a roupa secar. Enquanto isso as gurias se
esbaldavam na gua lmpida do riacho doce
70

Mistrios de Um Amor Proibido

indagou Chica.
Ns tambm adorvamos ficar na gua. No
podemos esquecer que, enquanto tomvamos
banho, o feitor e os capatazes ficavam espreita,
apenas esperando para que uma de ns sasse do
crculo e nos embrenhssemos no mato. Eles nos
apanhava fora e nos fazia mulher redarguiu
Joslia.
Sem contar a alegria da sinhazinha e o dio da
sinh velha, que odiava, pois a menina sempre
chegava casa-grande em um desalinho sem
tamanho.
Lembra... Lembra como a sinh ficava, quando
via a sinhazinha molhada e misturada aos nossos
filhos. Dizia ela: Por lcifer, quando voc aprender
que uma sinhazinha no deve se misturar a essa
negrada?. Por mil demnios, quando, menina? Espero
que logo, pois j est se tornando uma moa e no
deve andar assim, no barro e embrenhada na mata,
dizia a sinh, no , Chica?!
Mas sempre a sinhazinha respondia: mame,
no se deve tratar gente assim, pois eles so negros,
mas so gente. E Papai do Cu no gosta que a
senhora diga isso. Nem dos escravos, nem esse
nome feio, cruz-credo!...
O momento nostalgia durou horas. At que as
negras voltaram a trabalhar. Joslia foi lavar as
roupas no riacho, e Chica levou os urinis para
despej-los no riacho.
Na fazenda, os preparativos estavam em pleno
vapor corri daqui, puxa dali, varre l, espana aqui,
encera ali e aqui, troca a roupa de cama, varra os
tapetes, troque as cortinas, use o escovo nas
poltronas, div, cadeiras e outros. A criadagem
trabalhava em um ritmo acelerado, porm feliz, pois
havia muito tempo sentiam falta de Beathriz. Os
escravos tinham um amor incondicional por Beathriz,
71

Cludio Pereira da Silva

e no poderia ser diferente, ela era a nica que os


defendia, tinha a extraordinria audcia de enfrentar
o feitor e abominava a escravido. Sistema
capitalista escravocrata, um sistema macabro e
horrvel. Uma cena inusitada aconteceu na sala da
fazenda, durante a limpeza a escrava Fabola
lustrava a prataria, enquanto Oflia trocava as velas
dos castiais e do lustre.
Nois s tenque limpa essa casa, pru mode a
chegada daquela idiota disse Oflia.
Olha como voc fala da nhanh, pois ela
uma santa! Redarguiu Fabola.
Santa... Que santa? Aquilo ali mais falsa que
pirita!...
Olha, olha... Como voc fala da sinhazinha,
pois se a baronesa te pega. Ai... Ai! Murmurou a
negra Fabola, aparentemente irritada. Cala a boca!
E faa o teu trabalho, negra insolente. Olha l, l
vem a sinh Fabola ficou intrigada com tamanho
dio.
Que buchicho esse aqui? Posso saber?
Indagou a baronesa, enquanto passava para a
cozinha.
Nada, sinh!... Estava apenas explicando para
Oflia como a senhora gosta dos castiais.
Agora chega de aleivosia! E faam logo o
trabalho, pois minha filha j j est a. E eu quero
essa casa um brinco, ou acha que no sei que vocs
negras so afeitas a fazer mexerico de sua senhora.
V... V...
Assim que a baronesa deu as costas, Oflia fez
uma careta, mas voltou ao trabalho.
Oflia... Oflia, toma jeito, menina! Murmurou
Fabola rindo.

72

Mistrios de Um Amor Proibido

Capitulo V
O Brilho de uma nova estrela
No cu do Brasil

Sant Anna das Rosas, Brasil, vinte e trs de


maio de 1854.
Fazenda dos Albuquerque da Maia.
Acaba de surgir uma nova estrela no cu do
Brasil.
Mais
precisamente
na
fazenda
dos
Albuquerque. Essa data ficaria marcada para todos
de Sant Anna, principalmente para os moradores da
fazenda. Data marcada pela chegada de uma lady
muito importante ao estado do Rio de Janeiro e
provncia de Sant Anna, s margens do Paraba.
Senhorita essa que foi morar em Portugal muito
nova e nunca mais voltou sua terra natal. Por muito
tempo conservou-se em Lisboa, Portugal. Primeiro
morou com sua av, aps sua morte, foi morar em
um convento. Havia se enclausurado aps a morte
da av e s sara de l agora, depois de sete anos de
estadia. Saiu aps ter recebido uma carta de sua
me, anunciando seu regresso ao Brasil e deveria
partir imediatamente. Partiu uma semana depois de
ter recebido o bilhete, mas o que ela nunca imaginou
era que seu corao a trairia e acabou conhecendo
um sentimento jamais sentido antes por ela.
Assim que o coche parou soleira do alpendre,
a baronesa e suas duas sobrinhas ergueram-se das
73

Cludio Pereira da Silva

cadeiras e foram para o alpendre. O negro que


conduzia o coche desceu da boleia e abriu a
portinhola. Beathriz, por sua vez, estendendo-lhe a
mo e apoiando-se no negro, desceu delicadamente.
Aps muitos anos de estudos em Lisboa, Beathriz
regressou a fazenda; agora no mais como uma
menina, mas como uma mulher feita. Invejada pelas
moas e desejada pelos rapazes. Sua educao era
primorosa e no poderia ser diferente, porquanto
havia estudado em um colgio de freiras, colgio
para meninas ricas. Seus passatempos favoritos
eram cavalgar, ler bons livros, ou folhear revistas de
moda.
Beathriz, de certo modo dcil, meiga, simptica,
carinhosa, carente, jamais aceitou a sua condio de
mulher, pois nunca acreditou que os homens fossem
melhores que as mulheres. Nunca desacatou a
autoridade de seu pai, quando vivo. Sabia bem o seu
lugar. Jamais passara na sala, quando seus pais
estavam com visitas e nunca entrou no salo sem ser
anunciada ou convocada. Mesmo aps a morte de
seu pai, nunca contestou as ordens de sua me.
Alm de ser sua me, era tambm mais velha. E
como mais nova lhe devia respeito.
De certa forma, Bya havia herdado os trejeitos
de seu pai, era doce, meiga, afvel e adorava ajudar
o prximo, e era abolicionista (abolicionismo,
movimento que se estabeleceu na capital da
provncia e se espalhava por todo o Brasil). Por um
lado, ela era doce e amvel, mas por outro, havia
puxado o gnio forte da me. No gostava de ser
ignorante e rspida com ningum, mas nunca aceitou
ser humilhada e enxotada; sabia bem se defender,
contudo nunca perdeu seu lado inocente e
desprotegido, adorava ser paparicada.
Dama alta, de cintura fina, cabelos negros
brilhosos e sedosos. Seu casaco preto tinha um corte
74

Mistrios de Um Amor Proibido

de estilo, suas luvas e fitas eram da mais alta


qualidade. Seu chapu vistoso estava enfeitado com
uma linda pluma de pavo. Caminhava com bastante
altivez; seu andar tinha um leve toque de arrogncia.
Assim subiu as escadas e deteve-se no alpendre,
ignorando os olhares curiosos dos escravos que a
seguiam, admirados pela beleza da jovem, enquanto
ela caminhava com elegncia e altivez pelos
corredores da fazenda, subiu a escadaria principal e
entrou em sua alcova.
A baronesa observava a entrada triunfal da
filha, enquanto a bela moa corria com o olhar a casa
toda. Ela suspirou aliviada, quando Beathriz sentou
em um sof que ficava embaixo da janela frontal. O
quarto era ricamente mobiliado, todos os mveis
haviam sido feitos de jacarand imperial. Tudo era
bem detalhado, cada quanto daquele aposento havia
sido refeito, para receber sua antiga dona, que j no
era to criana assim. Cada talho na madeira remetia
fineza e delicadeza de Beathriz. As cortinas de
veludo adamascado eram no mesmo tom
das
almofadas e estofados dos canaps e divs. As
marquesas eram belssimas, feitas de palha, com
uma palha nobre; a escrivaninha e a penteadeira
eram de um vermelho envernizado.
Obrigada, minha me... por ter conservado
meu quarto do jeito que deixei! J pode mostrar o
lugar onde Hadassa ir dormir murmurou a jovem,
enquanto tirava a capa de seu dorso.
Por alguns momentos tudo era alvoroo; os
escravos acendiam as velas dos candelabros,
levavam os bas e as malas para o toucador da
moa, como lhes era ordenado por Hadassa.
Enquanto isso, Beathriz tirava o chapu, o casaco e
acomodava-se ao p da janela. Bya ordenou a
Hadassa que lhe preparasse o banho, pois desejava
refrescar-se antes do jantar.
75

Cludio Pereira da Silva

Assim que saiu do banho, pediu mucama que


lhe apertasse o espartilho. Foi o que a escrava fez:
apertou tanto, que Beathriz acabou ficando sem ar e
ofegante. Colocou o merinaque, duas anguas e uma
crinolina que a deixou com a cintura ainda mais fina.
Vestiu ento o vestido de cambraia escarlate e
desceu para a sala, onde j era aguardada por sua
me e primas.
Marcava pouco mais de sete horas da noite no
relgio da sala, quando Beathriz saiu de seu quarto.
A noite estava lindssima, o cu estava banhado em
um azul profundo e enigmtico, no vamos uma
nuvem sequer. Estrelas davam o toque de Midas,
deixando a paisagem ainda mais perfeita. A lua dava
o ar da graa, iluminando tudo, luar de serto, lua
cheia de paixo, lua dos amantes indolentes.
Houve ento um longo perodo de silncio. A
baronesa ficou boquiaberta, pois no acreditava que
aquela fosse a menina de quem havia trocado os
cueiros. Estava realmente uma bela moa. O silncio
logo fora quebrado pelas palavras da velha senhora:
Meu Deus... Quem essa moa?! Murmurou
a baronesa, quase sem palavras.
No conhece mais o teu rebento, mezinha?!
Disse Beathriz, sorrindo.
Mas s tu?
, sou eu!... Ou a senhora conhece outra
Beathriz?
Caro leitor, deixarei agora um pouco de lado as
personagens, para lhes descrever o panorama em
que se passa a narrativa de agora em diante.
A fazenda uma das mais ricas da regio e uma
das mais bonitas tambm. Sua beleza era
monumental, de arquitetura francesa. A frente era
deslumbrante e a entrada principal apresentava
quatro colunas, talhadas em mrmore italiano, no
mais puro estilo francs. frente da casa, um lindo
76

Mistrios de Um Amor Proibido

jardim e um lago, atrs o mar verde, ou seja, o


cafezal.
Naquele dia, aps o jantar, aconteceu um
pequeno sarau ntimo, apenas para a famlia
comemorar o regresso de Beathriz. Enquanto uma
tocava piano, as outras danavam, comiam e
declamavam poemas. Beathriz foi para seu quarto,
acompanhada de sua mucama, despiu-se das roupas
do dia e vestiu a roupa de dormir. Trocavam algumas
palavras.
Tenho que dormir muito, pois amanh ser um
novo dia em minha vida! Afirmou Beathriz,
enquanto tirava o merinaque e desapertava o
espartilho.
A negra pegou as saias de baixo junto com o
merinaque, as crinolinas e as anguas, e os colocou
em um div. E retornou a penteadeira, para terminar
de ajudar sua sinh.
mesmo, sinh... A senhora deve dormir,
porquanto suas primas a levaro para passear a
cavalo, amanh cedo, como de costume, por aqui!
Afirmou Hadassa, desfazendo os laos do
espartilho.
Mas como voc sabe disso?
Ah, sinhaninha, j andei me informando sobre
o que acontece aqui.
Aps ter retirado toda a roupa e ter colocado a
roupa de dormir, Beathriz desfez o penteado e se
deitou em sua cama.
Meia hora depois j estava dormindo. A negra
ento fechou as cortinas que cercavam o dossel e
saiu, fechando a porta. A noite passou e mais um dia
anunciou sua chegada. Foi exatamente no instante
que o sol anunciou sua chegada que Beathriz
acordou, levantou-se, decidida a cavalgar por toda a
fazenda. Marcava sete horas da manh, quando a
porta de comunicao entre o quarto e o toucador
77

Cludio Pereira da Silva

abriu-se e por l Hadassa entrou e ligeiramente abriu


as cortinas das janelas e em seguida as cortinas do
dossel.
Sinh, Beathriz!... Sinhazinha.
O qu foi, Hadassa? A casa est pegando
fogo?!
Credo, sinh! Cre em Deus Pai, vira essa boca
para l, sinh!
Ento, o que ?
J so sete horas da manh e a senhora
ontem disse-me que queria acordar bem cedo hoje.
Antes do desjejum! Pois queria cavalgar antes do sol
ficar forte. No foi?
Beathriz levantou ainda sonolenta da cama e
disse:
Cad meu vestido?
J est separado, no toucador!
Beathriz, acompanhada por Hadassa, foi para o
toucador onde lavou o rosto e penteou os cabelos
que estavam envoltos em uma touca de algodo. A
jovem encostou-se ao umbral da janela e disse:
Nossa, que dia lindo! Enquanto olhava para o
horizonte. Vamos... Vamos! Vai, Hadassa, est
esperando o qu? Aperte logo isso!
Calma, sinh...
Chega, agora peque minha roupa!
Hadassa deu alguns passos pelo aposento e
debruou-se sobre o canap, onde o vestido
repousava. Era um vestido de veludo negro com
alguns babados na gola e um grande laivo rendado
sobre o colo donairoso. O cabelo estava moda
francesa da poca. Calou as botas de montaria e as
luvas, pegou o rebenque e partiu para o alpendre,
onde um cavalo selado com uma sela feminina a
aguardava, (sio). Cada uma montou em seu cavalo
e partiram as duas sem rumo. Beathriz queria
reencontrar todos os lugares onde passara a infncia
78

Mistrios de Um Amor Proibido

e no conseguira passar a adolescncia. Foram


estufa, ao cafezal, reviu os escravos mais velhos em
suas choas, passou pelo orquidrio, pela cachoeira e
na volta para casa encontrou uma gata branca no
meio da estrada. Assim, pegou-a e levou-a para casa,
dando-lhe o nome de Melindrosa. Era uma gata persa
cinza de pelos longos.

79

Cludio Pereira da Silva

Captulo VI
A fazenda

Beathriz aquela que faz os outros felizes


esse o significado de sua vinda ao mundo. Bya
havia vindo ao mundo apenas para brilhar e para
iluminar a vida dos desgraados. Nome to bonito
para to bela moa. Denominao bonita, no entanto
no conseguiu ofuscar seu brilho e sua beleza;
beleza que nunca houve e jamais haver igual sobre
a terra. Beathriz de Albuquerque trazia sobre si o
diadema da formosura, da graa, encanto que era
facilmente confundido com um ser celestial, um anjo,
uma fada, uma ninfa ou uma deusa grega, no sei,
mas uma perfeio singular. Cada centmetro de seu
rosto era perfeito, a cor de sua pele era de uma
brancura e de uma sade jamais vista, nem Hebe, a
deusa da beleza e da juventude, era to bonita.
Seus olhos eram de um brilho inexistente, seus
dentes de uma branquido perfeita, seus cabelos na
altura da cintura e mais escuros que a asa da
arana, suas curvas perfeitas ainda mais ressaltadas
pelo espartilho, que comprimia a cintura e elevava
seu seio como os montes de Vnus. O andar era um
tanto quanto afetado, trazia em si o sangue nobre e
o diadema da riqueza e da nobreza. Uma beleza que
jamais foi encontrada; olha que procuraram do
Oiapoque ao Chu do Brasil, no entanto no foi
encontrada nem nesse mundo nem no outro. Seus
dotes colocavam qualquer princesa das histrias da
80

Mistrios de Um Amor Proibido

carochinha na poeira de suas saias-bales. At os


deuses do Olmpo duvidavam que ela fosse humana,
parecia mais um anjo, ou um ser mitolgico da
beleza. Beathriz!... Oh! Beathriz... Como pde Deus
ter feito to perfeito ser? Creio que jogaste a forma
fora, tu s o ser mais perfeito e mais enigmtico que
j vi. Beathriz, Beathriz... Tu s o ser mais divinal que
j vi. Beathriz...
Aquela era a manh mais primaveril do ano, os
pssaros cantavam, os campos estavam floridos, as
flores desabrochavam, o lago corria ao lado da casagrande mansamente. As vacas mugiam, os cavalos
relinchavam. Aquilo era apenas o preldio de uma
nova estao.
A casa-grande era enorme, uma das mais
luxuosas da regio de Sant Anna, mesmo uma
linda casa. O estilo da fachada era clssico e nico, o
alpendre era enorme e enredado de trepadeiras, o
jardim era lindssimo e tinha vrias espcies de flores
e de aves. Havia faises, paves, entre outros
pssaros exticos que ficavam presos em um imenso
viveiro. Era ainda bem cedo e as quaresmeiras
estavam floridas e iluminadas pela luz do sol. Atrs
da fazenda, em manhs como aquela, era possvel
ver o imenso mar verdejante, o cafezal. Cafezal que,
durante sculos, ajudou a famlia Albuquerque a
adquirir riquezas.
A suntuosa escadaria de madeira imperial
frente da fazenda, ou seja, casa-grande, como era
conhecida na senzala, tinha de cada lado uma coluna
que ia do cho ao teto; sobre a porta, o braso da
famlia estava cravado. O alpendre era todo
envidraado e na frente da casa, alm do jardim,
havia sete palmeiras imperiais. Pela grandiosidade
da fachada, podamos ver quo grande era a
importncia da famlia naquele local.
Os primeiros raios do sol vieram anunciar o
81

Cludio Pereira da Silva

nascimento de mais um dia e, como era de costume


em manhs como aquela, Beathriz levantou-se da
cama, caminhou pelo aposento, aproximando-se da
janela mais prxima de seu leito, chegando janela
ainda com sua camisola de seda, espreguiou-se; em
seguida, caminhou at a penteadeira e olhou-se
ainda antes de lavar o rosto na bacia de porcelana
inglesa. Caminhou pelos cmodos que lhe foram
dados para acomodar seus pertences.
Marcava cinco horas da manh no relgio da
sala, quando batidas na porta que dava para o
corredor fizeram com que Beathriz despertasse de
seus pensamentos matutinos. Era a negra Hadassa
que viera ajud-la a se vestir para o desjejum. A
negra adentrou o aposento e, aps um longo perodo
de conversa, ajudou sua senhora a escolher a roupa
que usaria, pois ela encontrava-se indecisa sobre o
que usaria naquela manh.
Levou at as sete experimentando alguns
vestidos. Insatisfeita, via-se sempre em vestidos da
moda, mesmo que fosse apenas para ficar em casa.
Corpinhos de linho e seda sobre o espartilho de
barbatana. A crinolina, o merinaque, a angua e as
sete saias de baixo extremamente franzidas, feitas
de renda francesa para dar mais volume saia,
babados nas pontas apenas para mostrar sua
posio social espalhados pelo cho de madeira
nobre, nas cadeiras, conversadeiras, divs, canaps
e sobre a cama. Uma variedade de vestidos de saiabalo de cores claras escuras e de fitas. Ali
facilmente havia mais de trs mil quilmetros de
tecidos nobres.
O de musselina rosa royal com a faixa larga de
cetim branco ia-lhe bem, porm j havia sido usado
na semana passada, de bombazina rosa de mangas
bufadas e gola de renda francesa a ressaltar
maravilhosamente a brancura de sua pele. O de
82

Mistrios de Um Amor Proibido

Cambraia
amarela,
listrado
com
grandes
incrustaes de renda e de fil junto bainha era
lindo, todavia para ela j se fazia fora de moda. O de
seda azul com babadinhos debulhados de fitas de
veludo azul-anil e com muita renda francesa
assentuava-lhe muito bem. E era o seu favorito por
acentuar seus olhos e suas formas, principalmente a
cintura, que era a menor da regio de Sant Anna das
Rosas. Possua ainda muitos vestidos de casa e de
gala, Beathriz tinha tantos vestidos que precisou de
cinco aposentos e de vinte e cinco bas sem contar
os dez guarda-roupas.
A mucama apertou-lhe o espartilho para
quarenta e cinco, entretanto seria preciso apertar-lhe
ainda mais. Empurrando a porta, Beathriz encostouse ao dossel da cama; a mucama por sua vez
apertou-lhe ainda mais a cintura. Horas depois,
Beathriz havia finalmente escolhido o vestido sem
decote, como era de costume. Nenhuma mulher
deveria usar decote antes das dezesseis horas.
Hadassa deu-lhe um xale de casimira na mesma cor
do vestido. Enquanto caminhava para o corredor, Bya
lembrou-se de que deveria deixar um vestido de
montaria separado, pois cavalgaria aps o desjejum.
Beathriz havia escolhido um lindo vestido de
musselina com aplicaes em tafet verde-bandeira
e trazia sobre o dorso um lindo xale de casimira, a
saia era ampla, tinha por volta de dois metros na
circunferncia; o corpinho era bem estreito e afilado
na delicada cintura. O cabelo caa-lhe por sobre o
decote, em voluptuosos anis, trazia sobre a cabea
o diadema, parecendo-lhe uma coroa.
Quando terminou de se vestir, Beathriz
debruou-se sobre o peitoril da janela, esperando
que os outros moradores acordassem. Uma a uma as
janelas e porta se abriam o vento frio ainda soprava
no horizonte; nada melhor que os festes de sol para
83

Cludio Pereira da Silva

esquentar-lhes a carne. As escravas varriam o ptio,


limpavam as janelas, etc... O aroma de po j se
fazia presente o de caf, tambm.
Epstola de apresentao:
Primeiramente gostaria de agradec-los por
ouvir a minha humilde histria. Humilde que nada,
minha histria muito luxuosa, adoro riqueza e luxo,
no vivo sem vestidos do mais nobre tecido. Ah, no
entanto deixarei isso para o meu amigo narrador
contar.
Ol, meu nome Beathriz Emanulle
Albuquerque da Maia, tenho dezenove anos e sou da
linhagem dos bares de Bourbon, mas todos dizem
que tenho cara de quinze; sou uma moa linda,
recatada, afetuosa e afvel, no gosto de fofoca s
as que so do meu interesse ouo, mas no gosto
de ver meu nome na boca da escria, e tampouco na
boca das mexeriqueiras do vilarejo, gente de baixo
escalo que no tem o que fazer. Gosto muito dos
escravos, principalmente de minha mucama e exama de leite. Quando meu pai faleceu, eu tinha
apenas oito anos. Agora vivo com minha me na
fazenda em que me foi deixada de herana.
Desde nova fui mimada e sempre tive o que
quis, minha me diz que sou uma moa como as
outras de minha idade, lindas, no auge da beleza e
fteis. Porm no me sinto assim, sou guerreira, no
abaixo a cabea to fcil. Meu maior sonho ser
independente e no precisar obedecer aos homens
que me cercam, mas sinto que isso ser impossvel,
pois no sculo que nasci quem manda so os
homens.
Ah, antes que eu me esquea, tenho duas
irms. No sou muito exigente, s gosto de coisas
boas, como roupas de boas modistas, tecidos finos.
Adoro andar na moda de Paris e me parece que a
84

Mistrios de Um Amor Proibido

moda por l agora usar a cintura bem fina e a saia


bem ampla, para isso preciso muitas crinolinas e
anguas, para deixar a saia com 2,00 na
circunferncia. Obrigada por me ouvirem.
Ass. Beathriz Emmanuelle Albuquerque da
Maia.
Assim que terminou as derradeiras palavras
sobre o papel, Bya colocou a pena sobre o tinteiro,
fechou o dirio, guardando-o em uma gaveta e
trancando-a em seguida. Ergueu-se da cadeira,
olhou-se no espelho uma ltima vez e saiu para o
corredor. Como o dia ainda no se fazia alto, o
caminho estava de certo modo sobre o efeito de
meia-luz. Caminhou pelo corredor, desceu as escadas
e seguiu para a sala de jantar, onde era servido o
caf da manh. Percebendo ela que a me ainda no
havia descido, decidiu deter-se um pouco na
varanda. Caminhou pelo alpendre, olhava para a
vastido que se apresentava a sua frente. Lembrouse de uma frase que havia ouvido uma vez da boca
de seu pai. Em um momento de descontrao, a
imagem ainda era viva em sua memria. Foi ali
mesmo, naquele alpendre, tinha ela por volta de
cinco anos, era ainda uma criana, fora a ltima vez
que vira o pai, que dizia: Filha, tudo isso aqui ainda
ser teu, todavia desta vida nada levar. Por isso,
nunca deixe o dinheiro e a ganncia falarem mais
alto!. Guardou aquelas palavras por toda uma vida.
Sentia-se abenoada por ter nascido em uma famlia
abastada; contudo, sabia que tudo aquilo havia sido
erguido com sangue e suor dos negros. Temia nunca
poder retribuir. Sentou-se na cadeira de balano e
ficou ali cismando com os dedos sobre um vaso de
rosas. Parecia entorpecida, havia viajado em seus
pensamentos. Chica entrou de repente no alpendre:
Sinh?... Sinhazinha... Oi? Beathriz no
85

Cludio Pereira da Silva

respondia, ento Chica cutucou-lhe: Hei, sinh...


De um salto na cadeira, Beathriz parecia ter
recobrado os sentidos.
Aps terminar o desjejum, Beathriz retornou ao
seu aposento, trocou de roupa e saiu para cavalgar.
Como de costume tomou banho na cachoeira,
caminhou pelo roseiral, entre outras coisas... Quando
voltou para casa, estava exausta, decidiu dormir at
a hora do almoo.
Havia muito tempo Beathriz no cavalgava
daquela forma. Passou cerca de dez anos de sua vida
em um colgio, no podendo sair nem mesmo para
fazer compras. Foi enviada para l aps a morte de
seu pai, o baro Joaquim. A baronesa achava que o
estudo lhe faria bem, alm do mais era a filha mais
nova e teria que tomar conta da fazenda um dia.
Isabel sempre achou que o estudo fosse a melhor
coisa aplicada a uma mulher; entretanto, o baro
Joaquim jamais permitiu ensinar as filhas, achava
que o estudo fosse coisa de homem. Sendo assim, na
primeira oportunidade que teve, mandou a filha ao
colgio de freiras, oferecendo-lhe antes aulas
preparatrias com a sulista-americana, Charlotte
Mitchell O Hara.
Talvez o leitor ache que a baronesa fosse uma
boa senhora, por mandar a filha a um colgio;
porm, seus planos eram outros, queria manter a
filha fora do convvio social para mant-la alheia das
paixonites juvenis. Temia que a filha desgraasse a
vida com algum forasteiro, devido a seu
temperamento enrgico. L a jovem se dedicou
extremamente aos estudos, porm o que mais
gostava de fazer, alm de estudar, era ler. Adorava
passar horas e horas trancada em seus aposentos,
lendo um bom livro. Livros de escritores portugueses
e franceses.
Beathriz era uma grande apreciadora dos
86

Mistrios de Um Amor Proibido

espetculos de pera da Europa. Quando viajou para


a Frana, o lugar de que mais gostou de l havia sido
o museu do Louvre; por sua passagem por Veneza,
adorou passear nas gndolas, adorou conhecer as
antigas edificaes na Grcia, passeou pelo Coliseu.
Em sua viagem a Paris, havia comprado cerca de dez
mil peas de roupas. Vestidos que certamente s
encontraria ali na Frana; talvez encontrasse sim no
Brasil com certeza uma cpia barata.
A baronesa Isabel, me de Beathriz, sempre
fora um tanto quando seca. Em sua juventude fatos
fizeram-na tornar-se uma mulher seca e insensvel.
Filha de um rico comerciante, com destino
aparentemente j traado na vida, porm pareceulhe querer pregar-lhe uma pea. Na semana que
antecedeu o sarau que comemoraria seus quinze
anos, Isabel, acompanhada por sua me, foi
modista encomendar uma dzia de vestidos novos e,
assim que o coche passou pela Rua do Ouvidor,
Isabel trocou olhares com um rapaz que estava em
uma confeitaria. Foi amor primeira vista!
E o amor trrido tinha tudo para dar certo,
talvez se a baronesa no tivesse descoberto.
Temendo pelo futuro
da filha, arrumou-lhe
casamento, obrigando-a a ir s vias de fato. Alm de
temer pela honra da filha, pensou no jogo bilionrio
que teria, unindo as duas fortunas, um belo jogo
comercial.
Os anos passaram e, em uma trrida tarde de
primavera, Isabel voltou a encontrar o rapaz no
passeio pblico; contudo, o jovem havia ficado rico e
estava casado com dona Amlia. A mesma que tivera
um envolvimento com o noivo de Isabel, o falecido
baro.
Desde ento, a baronesa nunca mais foi a
mesma, no sorria mais, nem mesmo gostava de ir a
bailes, coisa que adorava antes do casamento
87

Cludio Pereira da Silva

forado. Passava boa parte do tempo trancada, ia a


convenes sociais com o marido apenas quando era
obrigada. No incio desejou a morte, porm, aps a
primeira gravidez, o sentimento pelo baro chegou;
no entanto, no era o mesmo que sentira outrora
pelo fulano.

88

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo VII
As visitantes

Os dias que antecederam a sua apresentao


alta sociedade fluminense foram para Beathriz dias
de clausura. Desde sua chegada ao Brasil, passou
cerca de duas semanas trancada em seus aposentos
e na biblioteca. Dificilmente Bya atravessava as
cancelas da fazenda; poucas foram as vezes que a
jovem foi cidade de Sant Anna da Rosas, na
verdade, rarssimas vezes. Somente quando ia
missa ou s compras, que dificilmente eram feitas na
cidadezinha, Beathriz e a me, a baronesa, sempre
iam corte comprar seus alfinetes (ou seja, coisas
pessoais, como roupas etc.).
Mas, durante aqueles dias, a fazenda dos
Albuquerques estava de certo modo povoada por
demais. Beathriz encontrava-se acomodada em um
canap da biblioteca, quando ouviu o barulho das
rodas de um coche, passando pelo caminho de
paraleleppedos. Curiosa, como de costume, correu
para a janela e, abrindo-a, debruou-se sobre o
parapeito. O coche era fechado e de aprazvel
aparncia, na boleia um lacaio conduzia-o pela
alameda, at que parou diante do alpendre. O lacaio
desceu. Desceu a escadinha que vinha junto
portinhola e com muita delicadeza estendeu a mo.
L do alto Beathriz seguia toda a cena e, curiosa para
saber quem era o (a) ocupante do coche, saiu da
89

Cludio Pereira da Silva

biblioteca e, correndo pelos corredores, parou no hall


de entrada, onde aguardou a recepo de Hadassa. A
bela jovem desceu do coche, apoiando-se no brao
do negro. Beathriz observava tudo, curiosa; Hadassa
aguardava no alto do alpendre de onde bradou:
Pois no, senhora? Disse Hadassa
amigavelmente.
A rapariga aproximou-se da casa e, de cabea
baixa disse:
aqui que mora Beathriz? Retrucou a jovem,
enquanto subia o primeiro lance de escada, ainda
com a cabea baixa.
Do interior da casa Beathriz disse:
Ora, pois conheo essa voz?! Murmurou
animada. Ento saiu para o alpendre.
O que deseja com minha senhora?!
Perguntou Hadassa.
Ora, pois no est reconhecendo uma velha
amiga? nesse minuto a jovem ergueu a cabea e
debaixo das grandes abas do chapu surgiu...
No poderia ser outra, com esse sotaque?!
Brincou Beathriz vossa merc, mesmo? No
acredito.
Sou eu, minha amiga! Bradou Maria
Eduarda.
As duas abraaram-se e de braos atados
entraram. Beathriz conduziu a amiga sala de visita.
Hadassa por sua vez foi cozinha, informar
baronesa a chegada de Maria Eduarda. Beathriz
indicou uma cadeira para Maria e sentou-se na outra.
Ento aqui... Nesta magnfica fazenda que
minha amiga e irm mora? Se soubesse teria vindo
antes! Disse Maria Eduarda s gargalhadas.
Beathriz riu.
Mas o que fazes tu em terras tupiniquins?
Indagou Bya jovem assustada.
Pois ...! O chamado de meu pai trouxe-me de
90

Mistrios de Um Amor Proibido

volta.
Seu pai?
? Por que tanta surpresa?!
Sei l... Esperava nunca mais v-la!
No gostou da minha visita...?
Ora, pois... Claro que sim!
Ah t!... Pensei que havia me esquecido?
Como poderia?!
Sei l?! Vai saber!
como dizer que Jesus esqueceu o mundo...
Nada a ver.
Qual foi a promessa que fiz, antes de deixar o
convento? Hein?...
A personagem que acabou de surgir em cena
nada mais nada menos que Maria Eduarda, a antiga
amiga de Beathriz, aquela do convento. Assim como
Beathriz, Maria veio ao Brasil aps a convocao do
pai. A jovem trajava um lindo vestido de veludo
adamascado na cor marfim; seu porte era senhoril,
caminhava com segurana e altivez; com talhe de
grande dama, silhueta angulosa, porm afetada. O
quadril sacolejava conforme o andar, a cintura fina
dava ainda mais afetao ao caminhar.
Cheguei ao porto de Maca h duas semanas,
todavia s ontem pude procurar-te. Achei voc por
causa do edital que saiu no jornal: sobre o baile
oferecido por sua me sociedade, em sua
apresentao.
? Que bom... Pelo menos, voc veio!
A porta da sala abriu-se, e a baronesa entrou.
Boa tarde, minha filha! Disse a baronesa,
enquanto caminhava.
Beathriz ergueu-se da poltrona e foi ao encontro
da me dizendo:
Sua bno, minha me disse Bya, enquanto
beijava a mo da me. Ah... Essa aqui Maria
Eduarda, uma amiga minha que chegou de Portugal
91

Cludio Pereira da Silva

h duas semanas. aquela que eu disse senhora,


lembra?
A baronesa foi cadeira onde Maria Eduarda
estava e estendendo a mo disse:
Seja bem-vinda...! Se amiga da minha filha,
bem-vinda...
As duas se abraaram.
O prazer todo meu, baronesa!
Nossa, Beathriz?... Voc havia me dito que ela
era bonita, mas pessoalmente ainda mais formosa.
Obrigada! Dessa forma ficarei encabulada!...
Redarguiu Maria.
Hadassa entrou na sala acompanhada por uma
escrava.
Com licena, senhora?! Pigarreou Hadassa,
interrompendo a conversa.
A escrava colocou a bandeja sobre a mesinha
de centro e serviu-lhes um refresco.
Vossa merc passar esta noite conosco?
Perguntou a baronesa.
Sim... Sim gritou Beathriz animada.
No, no posso. Pois no avisei minha
famlia!... Ah, sei l! Retrucou Maria.
Mas isso fcil de resolver disse Beathriz
rindo. diga onde fica sua fazenda que mandaremos
um pajem avis-los.
Ah, no gostaria de incomod-las.
Mas isso no um incmodo! Vociferou a
baronesa.
Maria gostou muito da sugesto de passar um
dia na companhia da velha amiga; no entanto, ficou
envergonhada, pois acabara de conhecer a baronesa.
Mesmo assim, aceitou o convite.
T, t bom. Eu aceito o convite, mas com uma
condio: se eu incomodar, eu seja advertida disso.
Est bem?
Sim! Com certeza, no nos amofinar. Ser
92

Mistrios de Um Amor Proibido

at bom. Pois eu e Beathriz passamos muito tempo


sozinhas nesta casa...
A baronesa mandou chamar o feitor, que logo
apareceu em uma das janelas. No era de costume o
feitor e os capatazes entrarem na casa-grande.
Primeiramente, boa-tarde, sinhazinha disse o
feitor, fazendo uma leve mesura. Pois no, sinh?
Preciso que o senhor mande um pajem a uma
fazenda...
Sim, senhora! Pode dizer.
Fale senhorita, Maria Eduarda. Onde fica sua
fazenda?
A moa levantou da cadeira e, dirigindo-se
janela, disse:
A fazenda fica l para os lados do riacho azul,
do outro lado do Paraba! E a jovem continuou
dizendo: uma grande propriedade branca,
facilmente de encontrar, s chegar a qualquer
fazenda e perguntar onde mora o coronel Leopoldo,
que todos o conhecem, por l!
Ouvindo as instrues da sinhazinha e com um
bilhete escrito pela baronesa nas mos, o feitor saiu
e foi senzala, onde garimpou um pajem,
mandando-o fazenda.
Hadassa, mande a Chica arrumar o quarto de
hspedes!
Sim, senhora respondeu a mucama,
enquanto saa da sala.
Com licena... Irei cozinha ver se o jantar
est pronto murmurou a baronesa enquanto
caminhava para a sada. A senhorita Maria Eduarda
deseja um banho antes da janta?
Pois sim!
Mandarei preparar e, daqui a pouco, Beathriz
a levar para casa de banho essas foram as ltimas
palavras da baronesa, enquanto fechava a porta,
atrs de si.
93

Cludio Pereira da Silva

Est bem, minha me!


As duas voltaram a ficar sozinhas no amplo
salo.
Agora me fale de sua vinda repentina ao Brasil
pediu Beathriz.
A jovem ia iniciar, porm foi interrompida por
uma escrava:
Sinh, seu banho est pronto.
Pode ir, Chica, muito obrigada!... Eu mesma
levarei Maria Eduarda aos seus aposentos! Qual o
quarto mesmo em que ela ficar?
A escrava graciosamente respondeu:
O quarto que fica ao lado do da minha sinh!
Respondeu Chica, enquanto saa da sala.
Beathriz ergueu-se da poltrona e foi janela,
queria mostrar o resto da fazenda para a amiga.
Primeiro mostrou-lhe o cafezal, o jardim, o pomar, o
roseiral, o orquidrio e a estufa de cristal belga, onde
tomavam o caf da manh, em manhs especiais.
Porm o silncio novamente foi quebrado, com o
tropel de cavalo juntamente e o barulho de um coche
que se aproximava rapidamente da casa-grande.
Beathriz esticou-se sobre a janela.
Quem ser agora? Perguntou ela a si
mesma.
O coche parou diante da casa, e uma bela
jovem desceu, era Liriel, uma antiga amiga de Bya.
Beathriz, ao ver a antiga amiga, ficou animadssima e
disse:
Pronto, agora minha alegria est completa...
Maria Eduarda no entendeu e perguntou:
O que voc quer dizer com isso?
No, porque mais uma amiga minha chegou
explicou ela.
Ah t.
Segundos depois, a porta da sala se abriu; era
Chica, anunciando a chegada de Liriel.
94

Mistrios de Um Amor Proibido

Pode mand-la entrar, Chica. Obrigada!


Beathriz correu at a porta e pulou no pescoo
da amiga. As duas rodopiaram pelo salo, pareciam
duas crianas a brincar. Maria manteve-se junto
janela, aguardava a apresentao formal, que
provavelmente Beathriz faria. Deixou as amigas
rememorarem o passado, Beathriz levou Liriel onde
estava Maria Eduarda e fez a apresentao.
Maria Eduarda... Essa Liriel, uma velha
amiga minha!
Maria fez uma leve mesura, aproximou-se dela e
cumprimentou-lhe com um beijo na face.
Prazer, senhorita Maria Eduarda! Replicou
Liriel, retribuindo o gesto de Maria.
O prazer todo meu...
Liriel... Ela chegou de Portugal, h alguns
dias...
Aps os cumprimentos e a troca de algumas
palavras, as duas pareciam ser amigas de longa
data. Tanto Liriel quanto Maria Eduarda haviam se
simpatizado uma com a outra.
Vamos, Maria, o banho a aguarda disse
Beathriz, enquanto caminhava pelo aposento.
Esperarei aqui!... Murmurou Liriel, sentandose.
Ah, no... Venha conosco! Redarguiu Maria.
Beathriz enlaou o brao das amigas, e as trs
saram da sala, subindo as escadas em seguida.
Caminharam pelo corredor e pararam diante da porta
do quarto de hspedes; primeiro Beathriz entrou,
abrindo caminho para as outras duas, que seguiram
seus passos.
Nossa?!... Esse o quarto de hspedes?
Rodopiou Maria.
Sim, por qu? Replicou Bya.
Se o quarto de hspedes assim, imagine
como so os quartos principais?!...
95

Cludio Pereira da Silva

Liriel
no
ficou
muito
abismada,
pois
frequentara muito aquela casa em sua infncia. Liriel
trajava um lindo vestido de saia-balo na cor lils
imperial. A tez era clarssima e ressaltava ainda mais
o vestido; na fronte, cachos caam-lhe sobre os
ombros e duas tranas pendiam no alto da cabea.
Caminhava com segurana, era delicada e meiga.
Beathriz conduziu as amigas ao toucador, onde Maria
Eduarda tirou o vestido que usava e todo o resto da
vestimenta, com a ajuda de Bya entrou na tina. Liriel
acomodou-se em um canap, prximo tina. Bya
esfregou as costas da jovem. Maria Eduarda de
Alcntara Queiroz demorou aproximadamente meia
hora dentro da tina. Durante esse tempo muitos
assuntos foram conversados, Maria narrou como
havia sido sua viagem e descreveu o rapaz que
conhecera na viagem.
Deixemos agora um pouco nossas pessoas
notveis em seus aposentos, para que possamos
falar das secundrias, ou seja, dos escravos, feitores,
capatazes, entre outros. Enquanto as damas
preparavam-se
para
o
jantar,
as
escravas
terminavam suas tarefas. Chica, junto ao fogo de
lenha, preparava o arroz; ao seu lado, uma negrinha
colocava o frango na tigela.
Na sala de jantar, Hadassa, acompanhada por
outra escrava, preparava a mesa. Primeiro
estenderam a toalha de linho branco sobre a mesma,
colocaram os copos, as taas de cristal, pratos de
porcelana chinesa, jarras com gua, sucos variados,
etc. Hadassa era escrava, porm forra, distinguia-se
das outras pela educao e pela forma que se
portava. Havia recebido educao e vestia-se de
acordo com a moda.
Antes de ser entregue a Beathriz como dama de
companhia, receberam na corte aulas de tudo que
precisavam saber para servir uma senhora. Talvez, se
96

Mistrios de Um Amor Proibido

a vssemos na rua, no falaramos que era uma


escrava, pois era branca e vestia-se com distino e,
assim como sua senhora, falava ingls, francs, sabia
geografia, histria e tocava piano. Boa parte das
escravas mantinha grande dio da jovem. Como
pode uma escrava ser tratada assim?, pensava
Oflia.
Mesmo tendo certa superioridade diante das
outras, no era arrogante e vivia dizendo que sabia
bem seu lugar e que no era nem melhor nem pior
que as outras, era apenas forra! Algumas diziam que
ela era apenas uma farsa passava imagem de boa e
ingnua moa, porm era uma cascavel. Assim que
terminou a arrumao da sala, Hadassa foi cozinha,
pegou as tigelas e as colocou sobre o aparador,
aguardando a chegada das senhoras.
Lucina?... Voc colocou os dois pratos a mais
que eu havia-lhe pedido?
Sim, Hadassa!... Respondeu a negra,
abaixando a cabea, ao ver a baronesa entrando na
sala.
Assim que viu a baronesa, Hadassa fez uma
leve mesura.
T bom, obrigada! Agora pode ir para a
cozinha Hadassa olhava a mesa. Pode ir... Na hora
de servir, eu a chamo! Hadassa virou-se para a
baronesa e, com as delicadas mos cruzadas sobre a
saia-balo, disse: A mesa est ao seu agrado,
sinh?!
E com seu olhar altivo a baronesa percorreu
toda a extenso da mesa, ento soberanamente
disse:
Parece-me estar! Mas verei apenas quando
minhas convidadas vierem caminhou pelo cmodo
e, passando a mo sobre a toalha, retrucou
novamente, dizendo: lavaram essa toalha com
folhas de lavanda, sim ou no? Se no, mande tir-la,
97

Cludio Pereira da Silva

agora! E coloque outra.


De cabea mediana a jovem escrava respondeu:
Sim, minha senhora... Essa tolha foi lavada
conforme sua ordem... Baixou a cabea, pegou um
guardanapo e estendeu a mo: Sinh... Veja se
esse guardanapo foi o que a senhora mandou colocar
na mesa.
Isabel, a baronesa, pegou o guardanapo das
mos da escrava e disse:
Sim, foi esse mesmo! Afirmou ela, saindo da
sala em seguida.
Hadassa foi para a cozinha.
A tarde estava quente, porm uma brisa suave
aoitava as rvores. No pasto os cavalos trotavam,
as vacas mugiam e ruminavam, as ovelhas baliam e
os ces perdigueiros ladravam. Um vento quente e
mido entrava pelas janelas, as cortinas danavam
de acordo com o vento. Aquele dia inexplicvel
parecia que estava sendo o dia mais plcido de todo
o ms. O silncio e a calmaria eram quebrados por
uma revoada de quero-queros, que cantavam ao
longe. Junto porta da cozinha, uma mangueira
servia de poleiro e recanto para muitos pssaros,
entre eles, canrios do reino, periquitos, granas,
papagaios, araras, tucanos e maritacas. Durante
toda extenso do ptio, que se estendia da porta da
cozinha porteira, separando a sede da fazenda do
cafezal, vrias aves eram vistas: patos, gansos,
marrecos, paves, galinhas, galinhas da angola etc.
Antes de servir o almoo para o feitor e para seus
subordinados, Chica foi casa dos ces e soltou-os.
Os perdigueiros correram por todo o ptio, a
animao era tamanha que quase abateram uma
velha escrava que saa do quarto das fiandeiras.
Correram e correram at ficarem sem flego e, com
as lnguas estendidas para fora, foram ao lago dos
patos e se refrescaram um pouco. Chica os chamou.
98

Mistrios de Um Amor Proibido

Os ces vieram para junto da porta aos pulos, a


negra ento colocou a cabaa que trazia nas mos
sobre o umbral da porta, em seu interior uma
espcie de mingau. Os ces comeram. Chica os levou
de volta para suas casinhas e os trancou de volta.
Como de costume, a porta da cozinha
mantivera-se aberta durante todo o dia, pois era por
ali que os capatazes, o feitor, os escravos e as
pessoas de menor nvel social comiam ou eram
recebidas.
Chica apareceu na porta e, em plenos pulmes,
gritou:
Senhor Gumercindo, traga seus subordinados
para comer, pois a comida est pronta... Dizia ela,
enquanto tocava um sino.
Hadassa estava prximo porta da cozinha,
quando ouviu um burburinho. Parou! Diminuiu os
passos e com p de algodo aproximou-se um pouco.
No porque tinha o costume de ouvir conversas
alheias, mas porque ouvira seu nome. Ento, detevese atrs de uma porta, encostou o delicado ouvido na
porta entreaberta e com as lindas mos segurou a
ampla saia, para que no fosse vista. Oflia e Lucina
discutiam. Oflia odiava Hadassa, j Lucina era
grande amiga da dama de companhia de Beathriz.
Lucina dizia: Hadassa boa... uma grande amiga.
Porm a outra contestava, dizendo: Ela uma
cobra, voc vai ver. Assim que puder far com que
oc v para o tronco. Espia s!... Hadassa, atnita,
no teve reao, seus olhos marejaram-se e uma
lgrima correu por seu rosto. No sabia o porqu de
tanta raiva. Desde que fora comprada, no se
lembrava de ter feito algo contra aquela negra.
Tentou puxar em sua memria algum fato, mas nada
veio. Teve o mpeto de entrar na cozinha e brigar
com Oflia; no entanto, aquela no havia sido a
educao que recebera. Respirou fundo e continuou
99

Cludio Pereira da Silva

ali parada. A conversa prosseguiu, Oflia a acusar e


Lucina a defender. A jovem conseguiu segurar-se,
queria ver onde acabaria aquela conversa.
Chorava. O rusgo-rusgo de uma saia fez
Hadassa voltar a si. Era a baronesa que estava
atravessando o longo corredor, parecia estar
preocupada. Hadassa, para no ser pega ouvindo
atrs da porta, bateu com o salto da botina no cho,
o burburinho cessou. A escrava entrou pela porta,
Oflia se comportou de maneira falsa, dizendo:
Oi, Hadassa. Que cara essa? Disse ela, ao
perceber os olhos rubros da jovem. Estava
chorando? O que foi?...
Hadassa manteve-se aptica, secou os olhos e
arrumou as pregas da saia.
Ai vem a sinh baronesa. Creio que esteja com
raiva.
O barulho do salto da baronesa foi aumentando,
e o rusgo-rusgo da saia tambm. At o momento em
que a baronesa cessou seus passos sobre o umbral
da porta e aos gritos disse:
Suas negras insolentes, idiotas. No fazem
mais negros como antigamente! Bravejou ela, a
clera deixou seu rosto rubro. Agora essa negrada
faz o que lhe d na telha segurava um punhado de
sua saia.
Hadassa manteve-se de cabea baixa com os
olhos fitos no cho de madeira.
Queira se retirar daqui, Hadassa! Pois tu no
mereces ouvir o que tenho para derramar nos
ouvidos dessas idiotas.
A dama de companhia tentou intervir, mas foi
impedida por Lucina.
No, Hadassa... Murmurou a negra que
segurava uma vassoura. Ns merecemos ouvir isso,
sim, pois Oflia vive falando mal de voc.
Saia... Saia! Bravejou a baronesa. V pegar
100

Mistrios de Um Amor Proibido

um vestido de Beathriz para a senhorita Maria


Eduarda. Ela a espera... No toucador dos hspedes.
Alm do que, esse no o trabalho de vossa merc.
Oflia derrubou sobre Hadassa um olhar
diablico, uma mistura de raiva e inveja, enquanto
ela se retirava do recinto. Assim que Hadassa deixou
o ambiente, a baronesa abriu o ba de insultos e
vomitou tudo o que estava preso em sua garganta, o
fel e o veneno escorriam pelo canto da boca.
Mantinha uma postura impvida, arrogante e
soberana. Mostrava seu poder diante de duas
serviais.
No deixei a vossemecs a incumbncia de
limpar a sala de estar! Hein, suas idiotas?
Desculpa, sinh murmurou Oflia de cabea
baixa. Mas ns havamos limpado...
A baronesa sorriu ironicamente.
... Ento por que a sinhazinha Maria Eduarda
sujou o vestido? Hein? Dizia a baronesa, enquanto
batia o salto da botina com contundncia no cho de
madeira. Anda, estou esperando uma resposta,
suas idiotas! Esbravejava ela. Chica...
Chicaaaaaaaaaaaaaaaa!...
A negra estava no ptio, mas, quando ouviu a
baronesa gritar seu nome com tanto dio no tom de
voz, correu temendo uma represlia. Entrou pela
porta desesperada, parando diante de sua senhora.
O que foi, sinh? Dizia, enquanto olhava para
a baronesa. Estou aqui.
A baronesa parecia um drago, soltava fogo
pelas ventas!
Estou vendo... Sua idiota! J vi que voc est
a! Est me chamando de cega, negra insolente?
Batia com as mos na saia fofa. J no me bastam
essas duas idiotas, agora voc tambm... Deu para
fazer o que quer, a hora que quer?
Chica baixou a cabea e com muito respeito
101

Cludio Pereira da Silva

respondeu:
No, sinh. Desculpe-me?!... que eu estava
l fora dando comida aos ces. E agora ia servir o
feitor e os escravos. Chica trazia as mos dentro de
seu avental de chita barata. Mil perdes, sinh, se
faltei com respeito minha senhora...
T... T... Agora pegue uma vassoura, o
esfrego, um pano e um recipiente com gua e sigame, vocs tambm, suas imbecis!
Assustada, Chica pegou o recipiente com gua,
Oflia e Lucinda pegaram a vassoura, o pano e o
esfrego, e seguiram-lhe. Com certeza aquele dia
terminaria mal, a baronesa no estava com o esprito
mui amigvel. Acordara com o p esquerdo naquela
manh. Logo pela manh havia brigado com outra
escrava, uma jovem mucama que at pouco tempo
colhia caf e agora servia na casa-grande. A pobre
havia derrubado o urinol.
Isabel ia frente, bufava mais que bfalo
selvagem; logo atrs vinham as escravas acuadas,
acuadas mais que lebre diante de seu predador. A
baronesa abriu a porta da sala, as trs entraram.
Isabel aproximou-se do lugar sujo e, olhando para o
cho, disse:
Olha aqui, sua idiota... Venha ver! Apontava
ela para o cho.
Chica e Lucina aproximaram-se do local e
disseram:
Pode deixar, sinh, limparemos isso tudo
agora!
As negras ajoelharam-se diante da imundcie;
Chica pegou o esfrego e comeou esfregar o lugar.
A baronesa indicou o outro lugar que estava sujo e
com a vassoura Oflia varreu. Depois que se
certificou da limpeza, a baronesa saiu, deixando-as a
ss.
De p junto a uma mesa Oflia disse:
102

Mistrios de Um Amor Proibido

Essa mulher ainda vai morrer com o prprio


veneno. Tenho f em Nosso Senhor, que hei de ver
essa cena... Resmungava a negra, enquanto varria.
Oc... Cala a boca, pois, se a sinh te pega
falando isso, tu vers o que lhe acontece!...
Retrucou Chica, de ccoras, esfregando o cho. Por
muito menos ela mandou arrancar os dentes de
outra negra, alm daquela que ela mandou marcar a
ferro. Lembra-se da Joana?!
Ah, quero que ela v se ferrar. Essa sinhazinha
de merda!
, sua imbecil... isso que voc fala de sua
senhora, pelas costas?
Oflia engoliu a seco. A garganta secou, e seu
rosto parecia pegar fogo; a negra olhou para trs
assustada. As outras baixaram a cabea. Oflia
continuou atnita e, com os olhos estatelados,
pareciam querer sair da rbita ocular, Oflia virou-se
de manso e percebeu que a baronesa estava do
outro lado da janela observando-a.
Desculpe-me, sinh!... No isso que oc
escutou; eu falava de outra sinh, a sinh da fazenda
vizinha. Os olhos estavam esbugalhados sobre a
baronesa. Ela muito ruim, mandou uma negra
velha para o tronco.
Quer dizer que eu estou surda, ou estou
escutando mal... T dizendo que eu estou surda?
No, sinh... Por Deus!
A baronesa voltou-se para o ptio onde o feitor
estava e rispidamente gritou:
Venha aqui!...
Logo o feitor apareceu no alpendre. Oflia,
assustada, tentou se explicar, mas no teve muito
xito. A baronesa entrou na sala e, pegando-a pelos
cabelos, arrastou-a para fora, onde o feitor a pegou.
Ferozmente a senhora da casa disse:
Leve essa idiota para o quartinho dos fujes.
103

Cludio Pereira da Silva

S sair de l quando eu quiser... E a deixe sem gua


e sem comida!
O feitor a arrastou pelo ptio inteiro, levando-a
para a senzala e a trancou no quartinho. Era um
lugar sujo, cheio de ratos e animais. Tinha uma porta
de ferro e alguns instrumentos de tortura, l ela foi
presa a uma corrente. A negra atravessou o ptio
inteiro gritando. Da janela de seu quarto, Beathriz viu
tudo, tentou intervir com sua me, mas no
conseguiu. Ainda teve que ouvir:
Ests louca?... Se voc soubesse o que ouvi da
boca daquela negra maldita!... Disse a baronesa,
enquanto escrevia uma carta.
Chica e Lucina terminaram de limpar a sala e
foram para a cozinha.

104

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo VIII
A Debutante

Uma brisa suave e morna entrava pelas janelas


da imensa acomodao, o tapete era pintado pelo
sol, que entrava por uma fenda do acortinado. Na
cadeira da escrivaninha Beathriz, sentada, escrevia
alguns poemas; ao passo que Liriel, junto a uma das
janelas, lia um livro. Bya no estava muito contente
com o que vira h pouco, diante de seus olhos uma
barbrie fora cometida contra um ser vivo, uma
pessoa! Que coisa atroz era a escravido! Tirava do
ser humano aquilo que era mais importante para um
indivduo: a liberdade e a possibilidade de amar, pois
um escravo no era apenas impedido de fazer o que
queria, mas tambm de amar. Dignidade no tinha.
Como pde sua me fazer aquilo.
Trazia nas mos uma pena e sobre a
escrivaninha um papel e a publicao do ms do
jornal provinciano: o jornal de Sant Anna das
Rosas. A publicao daquele ms trazia em primeira
pgina um poema de lvares de Azevedo, o poema:
Quando Noite no Leito Perfumado.
Beathriz lia e parecia viajar o olhar inconstante
na vastido que se apresentava a sua frente; corria
ligeiramente com os olhos pela folha como se
quisessem devorar as palavras. Liriel a observava de
longe e percebeu a inquietude da amiga. Ergueu-se
da cadeira e caminhou pelo aposento, parou diante
105

Cludio Pereira da Silva

da escrivaninha e, com o olhar fixo sobre a amiga,


disse:
O que tens, meu anjo de candura?... Liriel
usou o tratamento de infncia.
Beathriz ergueu os olhos e, fitando a amiga,
disse:
Nada!...
Como nada?! Murmurou ela, passando a mo
sobre os ombros de Bya. Conheo vossa merc
desde menina, acha que me engana? Espero que
no, pois no engana... Liriel pegou as mos de Bya
e as colocou entre as suas. Pode falar-me... O que
anda amofinando minha amiga?
Os olhos de Bya marejaram-se; a jovem ergueuse e, aps um longo abrao, disse com voz terna e
chorosa:
Sei no, minha amiga... So coisas que me
passam pela cabea. Devo estar louca? Estava ela
debruada sobre o ombro de Liriel. H dias venho
tendo um sonho. Nesse sonho tudo me pare perfeito,
parece: estou eu em um lindo salo de festa, um
rapaz me conduz na valsa. No conheo esse rapaz,
mas ele lindo! De repente o salo fica escuro e, no
lugar do rapaz, aparece um ser diablico e
demonaco.
Liriel benzeu-se.
Credo!... Cruz-credo...
O dia 17 de agosto de 1854 ficaria marcado
para todo sempre na vida de Beathriz. Aquela data
marcaria, pois era a data em que ela seria
apresentada alta sociedade fluminense. Logo pela
manh, aps o desjejum, Beathriz levantou-se da
mesa decidida e, ao lado de Hadassa, cavalgou por
toda a fazenda. O dia permanecia belssimo, e o sol
estava um tanto quanto quente. Por isso mesmo
Beathriz usou um vu sobre o rosto, ou ficaria toda
sardenta ao final do dia. As flores do campo
106

Mistrios de Um Amor Proibido

danavam conforme a direo do vento; o mormao


estava muito forte, no entanto o vento que vinha do
sul refrescava a tez de Beathriz.
Por alguns segundos ela at pensou em
cavalgar com o vestido que deixava seus ombros
mostra, mas havia sido impedida por sua b, uma
escrava matrona que j contava seus sessenta anos:
No, fia, oc no deve sair de casa com os
ombros mostra, pois ficar toda sardenta. E eu
acredito que oc no qu isso. Qu?
Enquanto isso, na casa-grande, os preparativos
seguiam como um trem desgovernado nos trilhos.
Eram escravos para c e para l, puxa daqui,
empurra de l e em poucas horas o que outrora era o
salo de uma luxuosa fazenda havia se tornado um
salo de baile ainda mais luxuoso. Beathriz resolveu
aproveitar a tarde para cavalgar. Enquanto descia as
escadas do alpendre, Bya notou que algo no estava
bem com sua mucama, ento perguntou:
O que est acontecendo com minha melhor
amiga?! Diga-me.
A mulatinha tentou disfarar, mas perante sua
senhora e amiga no conseguia esconder nada.
Amedrontada, disse:
Nada, sinh! Disse Hadassa de cabea baixa.
No me venha com essa... Porquanto a
conheo mui bien! Murmurou Beathriz, cessando os
passos. Eu sei que voc est me escondendo algo e
eu quero saber agora! V, diga-me.
A escrava continuou em silncio, e as duas
continuaram
caminhando;
depois
de
terem
atravessado todo o ptio inferior, chegaram baia,
onde estava o cavalo selado e amarrado a um tronco.
Beathriz desamarrou o animal e com a ajuda de um
escravo montou. Hadassa montou em uma mula.
Beathriz bateu com seu rebenque nas ancas do
animal, que logo saiu aos trotes na direo do
107

Cludio Pereira da Silva

campo. A moa saltou uma moita de rosas selvagens


e, em minutos, havia chegado ao campo.
A negra apeou da mula e, com suas frgeis
mos, ajudou sua senhora a desmontar. Beathriz, por
sua vez, deu alguns passos beira do lago at que
avistou o tronco, ento disse:
Ali?! ali que quero me sentar. Ento...
Estenda o pano, pois o tronco ainda est mido. Pode
apostar! No quero sujar meu lindo vestido de veludo
lils.
A escrava ento o fez. Depois de ter estendido o
pano, Beathriz acomodou-se ao cho. Foi quando a
escrava desatou a chorar e, com uma s palavra,
disse:
Medo!
Beathriz, espantada com a palavra que havia
acabado de ouvir, disse:
Medo... Mas do qu?
Do feitor?
Mas por qu? Perguntou Beathriz, enquanto
passava a mo na cabea da mucama.
Ah, sinh. Isso no coisa que uma sinh
deve escutar murmurou a escrava, chorando.
Por qu no? Ainda mais de voc que me foi
dada como dama de companhia disse a jovem,
tirando um leno e entregando-o a negra.
A senhorita no deve envolver-se em assuntos
dos escravos murmurou Hadassa.
Pare de suspense... E diga logo, pois, se no
falar, no poderei ajud-la. O que aquele feitor
maldito lhe fez?
A escrava abaixou a cabea e, chorosa, disse:
Isso no coisa que uma sinh deve escutar
de uma escrava. Mas, como a senhora minha
amiga, dir-lhe-ei... Aquele maldito disse que, se eu
no me entregar-se a ele, ele matar minha me e
meu irmo.
108

Mistrios de Um Amor Proibido

O qu? Perguntou Beathriz braviamente.


Quem ele pensa que ? Aquele maldito ver do que
sou capaz. Ainda hoje terei uma conversa com ele!
Porco, imundo... S pensa em satisfazer seus desejos
libidinosos e infames! Mas ele ver o que o poder
de uma mulher.
Beathriz levantou-se do tronco e, com muita
fria, disse:
Todos podem dizer que ainda sou uma
menina... Mas... A fora que h em mim, no o vi
ainda em outra moa. A no ser em minha bisav!
A escrava temia que Beathriz fosse tirar
satisfaes com o feitor, pois com certeza o maldito
se voltaria contra ela. Ento, assustada, murmurou:
Ah... Sinh, no fale nada! Porquanto temo
pelo que pode ele fazer, contra mim e contra minha
famlia.
No se preocupe. Uma vez, que tu s minha
escrava. Ele nada far contigo! Talvez ele pense que
esteja em sua casa, no entanto eu serei a portadora
da m notcia.
Aps o trmino da conversa, Beathriz pulou
sobre sua montaria e partiu em disparada para o
cafezal, onde certamente o encontraria. Quando
chegou ao cafezal, o feitor estava sobre seu cavalo,
chicoteando um velho escravo, dizendo algumas
palavras:
Vai, seu preto maldito, tu j no serves para
nada... Voc j deveria ter morrido!
Quando levantou o chicote e insinuou desferirlhe contra o negro, ela deu um pulo, segurou-o como
faz uma leoa ao ver seu filhote ameaado. Com a
brutalidade que Beathriz segurou o chicote, o cavalo
do capataz assustou-se e, erguendo-se, jogou o feitor
no cho. Com o susto, Beathriz tambm foi
arremessada ao cho. O feitor se apoiou nas rdeas
e, erguendo-se, disse violentamente:
109

Cludio Pereira da Silva

O que faz aqui? Bravejou o brutamonte


malcheiroso. Ah, sinh... Se a sua me a ver aqui!
O seu lugar l na casa-grande, ao lado de vossa
me e de vossas amigas. V, suma daqui!
O
feitor
estendeu-lhe
a
mo,
mas
impetuosamente e dignamente Beathriz apoiou-se
em um balaio que estava ao seu lado e ergueu-se.
Passou as mos pela saia e, olhando nos olhos do
brutamente, disse:
Eu que pergunto disse Beathriz, com muita
altivez nas palavras. O que voc pensa que est
fazendo?
Rosauro, o feitor, envergonhado por estar sendo
tratado daquela forma por uma mulher que em sua
concepo no deveria em nenhum momento
levantar a voz a um homem, respondeu:
Olha como fala comigo, mocinha!... Pois tenho
plenos poderes para lev-la para casa na marra. E
posso fazer o que quiser com os escravos!
Na minha frente, no. Voc no ir fazer
nada... Contra essas pessoas!
Mas de que pessoas ns estamos falando?...
Esses negros no passam de animais sem alma.
Animal a senhora sua me!
Olha como fala...
Eu, c, falo como me d na telha! Pois no sou
nenhuma escrava que voc leva para o mato e d
vazo aos seus atos libidinosos e torpes disse
Beathriz, de cabea erguida. Alm do que, tudo que
vem de voc sujo!
A dama de companhia parou atrs dela e, de
olhos arregalados, disse:
Vamos, sinh, pois a hora do sarau vem. E
voc deve se preparar. Vamos!... Vamos...
Isso! Faa o que vossa mucama diz, pois tu s
apenas uma mulher. E creia que isso chegar aos
ouvidos de vossa me.
110

Mistrios de Um Amor Proibido

Beathriz j ia dar as costas ao feitor, mas


lembrou que deveria dizer algo. Ento se virou e
disse:
Veja bem! Faa o que voc bem entender,
entretanto esteja ciente de que eu estarei na sua
cola. E, se voc fizer algo com qualquer escravo,
vers do que sou capaz. E tenho tido!
Beathriz deu as costas ao feitor.
Hadassa foi puxada pelo feitor ainda antes de
seguir sua senhora.
Sua maldita, o que oc disse sinh Beathriz
disse o feitor ferozmente, segurando-a no brao.
Ai... Ai... Ai. Solte meu brao, esta me
machucando, seu amaldioado!...
Hadassa foi jogada ao cho.
Seu animal imundo. Se a sinh fizer algo
contra mim, tu vers o que te acontecer. O feitor
deu as costas e saiu, porquanto sua frente vinham
alguns escravos.
A pobre ficou ali no cho chorando a par. Aps
ser amparada por outros escravos, a escrava limpouse e, secando os olhos, voltou fazenda, onde era
aguardada pela moa.
Quatro horas e meia antecedentes ao incio do
grande sarau, Beathriz passou por vrios rituais de
beleza utilizados na poca. Primeiramente ficou
cerca de uma hora submersa em leite de cabra,
rosas, leos aromticos e sais de banho, depois mais
uma hora e meia na frente da penteadeira,
escolhendo qual seria o penteado, os acessrios e as
joias da noite. Noite que marcaria sua apresentao
sociedade.
As horas passaram, e o crepsculo anunciou
sua chegada. Meia hora depois que o ltimo
convidado chegou, Beathriz apareceu, como uma
viso de Afrodite sobre o cu do deus Apolo; e de l
do alto da linda escadaria talhada em madeira nobre,
111

Cludio Pereira da Silva

desceu ela na mais perfeita harmonia, tudo estava


perfeito: cabelo, pele, acessrios, joias e, o mais
importante, os trajes que pareciam ter sido cortados
e talhados em seu prprio corpo. A cintura mimosa e
donairosa estava talhada em um lindo espartilho e
recoberta de um lindo corpinho de seda, que dava a
maior sutilidade e delicadeza em suas formas. A saia
caa em uma ampla saia-balo muito plissada. Nos
ps trazia um lindo sapatinho de camura na mesma
nuana do vestido, que era um rosa perolado.
Ela desceu degrau por degrau, e todos os
olhares voltaram-se para ela, principalmente dos
guapos mocetes. Porm s um entre eles chamoulhe a ateno. Beathriz tentou disfarar, mas no
conseguia.
Aps a valsa principal, Beathriz decidiu retirarse do salo e abrigou-se em uma saleta prximo
biblioteca gigantesca, que tinha por volta de sete mil
e quinhentos livros, nacionais e internacionais.
Passou com os dedos sobre as prateleiras e, puxando
um livro de poemas de Almeida Garrett, poeta
portugus, deu alguns passos e sentou-se em um
div, voltando-se para a parede, ento comeou a ler
em voz alta:
Anjo s tu, que esse poder jamais o teve
mulher, jamais o h de ter em mim. E continuou
ela to empolgada com a leitura que mal percebeu a
entrada de uma pessoa na saleta.
A sombra aparentemente masculina caminhou
pelo amplo salo e, pondo-se atrs da jovem,
aguardando o momento certo para falar, pigarreou e,
com a voz mscula, mas suave disse:
Ao teu capricho se inclina, e minha alma
forte,
ardente,
que
nenhum
jugo
respeita
covardemente sujeita anda humilde a teu poder. Anjo
s tu, no mulher.
Foi quando Beathriz percebeu a voz estranha e,
112

Mistrios de Um Amor Proibido

voltando-se para trs assustada, articulou:


O que faz aqui? Oh... Jovem insolente. No
sabe que o sarau apenas no salo principal. Que
atrevimento esse?
Mas o rapaz nada respondeu, apenas continuou
a dizer:
Anjo . Mas que anjo tu s? Em tua fronte
anuviada no vejo a coroa nevada das alvas rosas do
cu.
Ela se sentiu atrada pelo rapaz, que ali
declamava poemas de amor, ento se ergueu e,
juntando-se a ele em s uma voz, leu:
Em teu seio ardente e nu no vejo ondear o
vu com que o sfrego pudor vela os mistrios do
amor.
E, continuando, o rapaz disse:
Teus olhos tm o azul cor, cor de manhs
sem nuvens; a chama vivaz e bela, mas luz no
tem. Disse o rapaz, passando a mo na cabea da
moa. Que anjo, tu s? Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxe de Jeov ou de belzebu.
Beathriz deixou-se levar pelas palavras do rapaz
e beijou-o. O rapaz retribuiu e, cingindo-lhe a cintura,
disse:
Desde que a avistei no alto daquela escada,
tive certeza de que eras uma deusa e agora vi que
a mais pura verdade.
Assim que recobrou os sentidos, ela o
empurrou, como um sinal de desaprovao,
braviamente. Como uma leoa que rugi, ao ver seu
filhote em apuros:
Quem pensa que s para entrar em minha
casa e me desrespeitar dessa forma?!
Assustado, o rapaz deu um pulo para trs e,
mansamente, como um domador faz para domar sua
fera, disse:
Calma, senhorita, no quis desrespeit-la!
113

Cludio Pereira da Silva

Beathriz virou-se e desferiu-lhe um tabefe.


Mas o fez... E agora o que farei? Pois, se minha
me descobrir que me dei ao desfrute de beijar um
mancebo, ela me mata. Ento caminhou para perto
da porta e abrindo-a disse: Saa daqui, agora! Ou
chamarei meu pai.
Desafiando-o, o rapaz a cingiu pela cintura e
mais que rapidamente roubou-lhe um beijo, beijo que
foi retribudo com um bofeto na cara.
Isso para voc nunca mais se atrever a
beijar-me dessa forma! Seu calhorda...! Saia daqui
agora, ou gritarei minha me disse Beathriz, aos
berros.
Garota idiota. Qualquer moa naquele salo
daria tudo para me ter, mas parece que uma idiota e
imbecil como voc no quer?! Voc louca?
Respeite-me, louca a sua me, que parece
no ter te ensinado direito como se trata uma
dama?! No foi? Retrucou Bya. Ah... Eu no sou
qualquer uma, eu sou eu!
Com licena?!
Suma, seu idiota!
O rapaz no hesitou, uma vez que temia
escndalos com seu nome. Todavia, antes de sair,
disse:
Queira perdoar-me, pois no queria chate-la;
entrei apenas porque ouvi tua voz e decidi ver quem
era.
Beathriz, j mais calma, bradou:
Est bem! Desta passa... Mas nunca mais
entre antes de se anunciar. J que, se minha me
entrasse aqui e nos visse a ss, com certeza tu no
sairias vivo daqui.
O rapaz desculpou-se e saiu sem pestanejar.

114

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo IX
A Essncia

J so passados cerca de dois meses depois dos


acontecimentos que acabei de narrar. Marcava pouco
mais de cinco horas da manh, quando Beathriz
acordou. O leitor pode pensar que muito cedo para
uma sinh acordar. Mas uma coisa eu digo, para os
trabalhadores braais, o dia havia comeado s
quatro e meia. Hora em que os escravos j haviam
ido para o cafezal, as mucamas j haviam comeado
a preparar o desjejum e a arrumao da casa, e o
jardineiro j havia recolhido as flores que enfeitariam
os sales da casa-grande. O cheiro de caf modo
exalava por toda a fazenda e se misturava aos outros
quitutes, como pes, bolos, comportas, biscoitos e a
famosa pessegada da nh Joaquina.
Naquele amanhecer, o astro rei salteava,
atravs das gigantescas vidraas, e deixava a sala
ampla e bela, ainda mais bonita. Uma brisa suave e
clida que vinha do sul fazia esvoaar os cachos
faiscantes de uma linda sinhazinha, que tocava o
piano a seis passos da sacada do salo principal. Ao
seu lado esquerdo, quatro jovens sentadas, moas
belas, mas nenhuma conseguia ofuscar a formosura
de nossa moinha, Beathriz. Enquanto logo atrs,
perto dos aparadores e das janelas que estavam
emolduradas, com acortinado de veludo adamascado
na cor azul real, mais uma bela sinhazinha de olhos
115

Cludio Pereira da Silva

turquesa inclinava-se sobre um canap aveludado,


canap que fazia par com as cortinas. Prximo dela
encontravam-se uma mocinha e uma matrona, que j
contava seus cinquenta anos, cujo semblante
arrogante e esnobe suavizava-se ao analisar a jovem
enquanto tocava piano. Ficou surpresa, pois aquela a
quem havia cuidado e lhe trocado as fraldas agora
era uma moa linda e esplndida cujos dotes eram
superiores aos de suas filhas legtimas. A dois passos
da porta que separava o salo nobre da biblioteca,
encontrava-se um rapazinho que brincava com uma
gatinha.
A nuana da voz era suave, sua pele era alva e
macia como a casca do pssego, os cabelos eram
negros e brilhosos como as noites sem luar. Os trajes
eram impecveis. O modo de agir era sutil e
delicado, entre outros atributos que lhe colocariam
como uma deusa facilmente.
Junto ao piano, do outro lado do salo nobre
ricamente mobiliado, sentava-se uma donzela,
verdadeiramente majestosa, mas visivelmente triste.
Tristeza que no lhe roubava a beleza da face, nem
os donaires da alma. Os raios do sol faziam com que
os cachos da bela dama que cingiam-lhe os olhos e
caam por sobre os teclados do piano ficassem ainda
mais dourados, porm uma grande clera podia ser
vista, uma clera mista, a faceirice que era s dela,
uma faceirice que lhe colocava no pedestal de ouro,
como uma deusa, uma ninfa ou apenas um ser
celestial. A partitura continuava sua frente, no era
uma partitura comum, mas era a partitura que o
prprio Chopin havia escrito. Os dedos estavam
sobre o piano, mas os olhos pareciam perdidos pela
imensido que se apresentava, sua frente, atravs
das largas janelas.
Espero que a condessa Emmanuella e seus
filhos no demorem a chegar, pois o almoo est
116

Mistrios de Um Amor Proibido

quase pronto. Sem contar que o sol j est


abrasador. E eu no gosto de caminhar com o dia
assim, pois me enche de sardas murmurou Isabelle,
a moa mais jovem que estava na sala prximo a
janela. Diga-me, Isadora, se Francis no
verdadeiramente mui guapo?!
Ah, Deus, queira me perdoar, pois pequei! Ao
imaginar aqueles olhos verdes! Disse Isadora, uma
das trs que estavam no sof. Ele realmente um
galanteador!
Meninas!... Que conversa essa? Falando
assim, nem parecem moas de famlia! Queira Deus
que o reverendo no nos oua falar assim. Pois
pensar que so moas da casa de dona Madalena.
Por Deus, minha tia!... Como a senhora pode
ns comparar com aquelas meretrizes bradou
Isadora, que ficou indignada com a comparao de
sua tia.
Vai l, meu filho. E pergunte ao escravo
Barnab se o coche j est prximo fazenda
bradou a baronesa, com veemncia.
O mancebo faceiramente, junto gatinha, saiu
aos trotes pelo meio da casa. Caminhou at chegar
ao terreiro e, aps receber a mensagem do negro,
voltou aos saltos.
Vem... Vem!... Melindrosa gritava o rapaz
para a gatinha, enquanto corria. No, minha tia.
Barnab disse que no h nem rastro da carruagem
da condessa! Mas, quando ela chegar, ele tocar o
sino, senhora minha tia! Disse o rapazinho,
enquanto retornava para seu assento de madeira.
Senhora minha tia, fale-nos um pouco de
Francis. Como ele era quando nasceu? Ele bonito
mesmo, ou apenas conversa de minhas primas?!
Disse Katarina, enquanto se abanava com seu leque
de madreprola.
A baronesa nada disse. Ento, dos fundos do
117

Cludio Pereira da Silva

salo, uma voz meiga e suave disse:


Vs vereis quo guapo o senhor Francis!
Afirmou Isabelle.
Est bem! Para que vocs no fiquem
fantasiando, lhes contarei a histria do senhor
Francis e de sua famlia. Murmurou a velha senhora.
Iracema, venha c!
Sim, minha senhora. O que queres?! Indagou
a negra, que estava junto a uma porta.
Venha arrumar os cabelos de Isadora, pois
nossas visitas j... J... Estaro a! Murmurou a
baronesa. E depois v arrumar os outros sales,
onde receberemos nossas visitas.
Todas as moas se voltaram para a baronesa,
menos Beathriz, que se manteve ao piano.
Bem, tudo comeou em 1834, quando em um
sarau do imperador acabei conhecendo a condessa,
sua me. Na poca em que a conheci, ela no estava
grvida; entretanto, dois meses depois, ficou prenhe.
Os anos se passaram e, quando mandei Miguelzinho
para Lisboa para estudar, os dois se tornaram
amigos. Ele se tornou um irmo para Miguel, que
havia ficado tsico em Lisboa.
Ele o filho mais velho do conde e da condessa
de Sorocaba, o conde e seus trs irmos haviam sido
assassinados dois anos antes de seu retorno ao
Brasil, aps uma rebelio de escravos e, assim, com
suas irms mais novas, ascendeu debaixo dos
cuidados da genetriz, que era aristocrata e
arquimilionria. Poucos teriam levado uma vida
abastada como a dele. A vida havia-lhe derramado
as porfias da riqueza e da beleza fsica. Manuella e
Katerinne eram suas nicas irms e lhe tinham o
maior apreo, pois eram suas irms, amigas e
confidentes.
Ele um jovem moreno, de olhos verdes e
cabelos acastanhados. Seu porte senhoril e sua
118

Mistrios de Um Amor Proibido

gentileza digna de um prncipe europeu, jamais


maltratou uma senhora nem lhe faltou com o
respeito. No colgio em que estudou com Miguel, era
um dos melhores alunos. Depois de Miguel, claro!
Aps retornar do colgio, ficou noivo de uma senhora
que logo depois fugira com um rapaz mais novo. Ele
um bom rapaz, e vocs devem prezar por sua
amizade e at um casamento com ele. Aps esse
fato, toda famlia se mudara para So Paulo e eu
nunca mais os vi.
Por que choras, meu anjo de candura?
Naquele momento, a baronesa percebeu uma
lgrima que comeava a escorrer sobre a face de
Isadora.
Oh, minha tia. Que histria triste esta deste
rapaz! Resmungou a jovem, enquanto enxugava as
lgrimas que teimavam em escorrer pelos olhos.
Sim, realmente uma histria linda, mas
vossa merc ainda no nos disse se Francis noivo,
ou no! Concluiu Isadora. Vamos, minha tia. Diganos se ele , ou no, comprometido.
Um breve silncio se instaurou no ambiente,
deixando todas irrequietas, para ouvir a notcia.
No, meninas. Ele no comprometido!
Murmurou a baronesa, enquanto caminhava pelo
amplo salo. Aps alguns minutos de silncio, a
baronesa concluiu: Calma... Ouam! Sem dvida
o rudo de um coche, acompanhado de um tropel de
cavalo.
Isabelle rapidamente ergueu-se da poltrona
onde estava bordando. Isadora foi logo atrs, as duas
ergueram-se rapidamente, mas no perderam a
postura de damas educadas e caminharam
delicadamente at o balco que ficava acima do
alpendre.
J o jovem Albuquerque, sobrinho e afilhado da
baronesa e protegido de Beathriz, no se manteve na
119

Cludio Pereira da Silva

sala, saiu correndo para o terreiro. As outras


sinhazinhas permaneceram na sala, apenas a
baronesa foi ao encontro das visitas, enquanto isso a
jovem Beathriz retirou-se da sala, em sigilo, como
era de costume.
O coche ligeiramente atravessou a alameda de
quaresmeiras e de palmeiras-reais e, em poucos
minutos, apeou a soleira do alpendre. As moas
olhavam os passos da carruagem pela janela e,
quando o jovem debruou-se na carruagem e deixouse mostrar, as jovens se abanaram. Alguns minutos
depois, a condessa e seu filho foram anunciados por
um negro.
O jovem rapaz usava uma casaca preta e uma
capa. Ao entrar na sala, a condessa tirou a mantilha
que lhe cobria o dorso e o chapu que trazia na
cabea; em seguida, o jovem fez o mesmo e tirou a
cartola e a capa. Quando os primeiros cumprimentos
foram trocados, Isis e Isadora tornaram a olhar para
aquele jovem rapaz que se apresentava a sua frente
e lhes beijava a mo com tamanha gentileza. Todas
as moas sentiram um estremecimento ao olhar para
aqueles olhos verdes que se apresentavam a sua
frente. O jovem tomou as mos das jovens e, uma
por uma, foi beijando-as.
Era plcido, mas sua pele era corada, pele de
um verdadeiro brasileiro. Como contara sua tia, com
cabelos aloirados, penteados moda da poca, sobre
a testa morena, sob a qual faiscava um par de olhos
verdes, da cor do mar. Ele era alto e de corpo bem
talhado, com certa empfia no andar, que lhe caa
muito bem. Uma altivez real, como de um prncipe.
Um sorriso angelical iluminava-lhe o rosto e,
enquanto a terna luz do crepsculo sobrevinha-lhe
sobre ele, a sinhazinha Isabelle refletiu na admirvel
e sublime alma que necessitava conhecer sua
essncia.
120

Mistrios de Um Amor Proibido

Naquela tarde, Isabelle estava trajando um lindo


vestido de seda real, na moda saia-balo, na cor rosa
perolado. Os comprimentos passaram, e o almoo
tambm. E, aps o almoo, todas as moas partiram
para seus quartos, para tirar a sestas; j Miguel e
Francis saram para cavalgar.
Marcava pouco mais de quatro horas da tarde,
quando todos se reuniram em uma sala, mas dois
convidados ficaram mais afastados do grupo, foi
quando Gabriel voltou-se para Miguel e disse:
Da outra vez que eu estive aqui voc disse
que me levaria para conhecer a fazenda assombrada
e a casa de caa, que ficam no alto da colina, perto
da casa dos colonos. No seria bom, voc me levar
agora, para aproveitarmos a tarde, que est to
bonita com esse sol. A a gente d uma passada na
antiga senzala da fazenda, onde a negrada diz haver
assombrao.
Boa ideia, meu caro amigo Francis; iremos,
sim. Miguel voltou-se para sua prima e irms. Ento
disse sorrateiramente: Senhoritas, gostariam de
nos acompanhar em uma visita s runas, da casa de
caa e da antiga senzala? Adoraramos ter a
companhia de vossas mercs, no , Francis?
Francis ficou um tanto quanto encabulado,
ento disse:
Sim, meu amigo. As senhoritas sero muito
bem-vindas!
Venham, meninas! Pois hoje a tarde est linda,
e a brisa est esplndida. Sem contar que a brisa
lhes far bem. Creio eu que uma visita aos
escombros da fazenda de nossos vizinhos e a casa de
caa tambm, pois o crepsculo logo vem. Esse
passeio combinar muito com minhas irms e minha
prima, pois todas no passam de mooilas
romanescas, que vivem a sonhar com o prncipe
encantado e jamais atravessam a cerca para visitar a
121

Cludio Pereira da Silva

fazenda dos nossos antigos vizinhos e jamais foram


cabana de caa, onde amigos de meu pai e ns,
meninos, amos para caar ao final da primavera.
Karolina, talvez vossa merc fique comovida e
conclua a sua novela. Isso lhes far muito bem antes
de dormir. Agora vo! E pegue o necessrio para
uma moa sobreviver ao relento.
Sim, meu irmo. Ns iremos pegar nossas
capas e luvas murmurou Isabelle. Ah, antes que
eu me esquea. Ns iremos a p ou a cavalo?!
A cavalo, minha irm! J mandei colocar o Sio
para que vocs possam montar.
Ah, bom. Pois no conseguiria caminhar muito.
As moas se retiram da sala. A baronesa e a
me de Francis preferiram ir para a biblioteca.
Minutos depois, j estavam todas prontas. Miguel e
Francis j as aguardavam no alpendre sobre os
cavalos.
As moas pararam no alpendre e faceiramente
todas rodopiaram e disseram ao mesmo tempo:
Como estamos? Perguntou Isadora.
Como estamos, Francis? Perguntou a outra.
O silncio se instalou sobre o ambiente, mas
logo o rapaz disse envergonhado:
Se meu amigo Miguel me permite, vocs esto
esplendorosas.
Est bem, meninas! Agora vamos, pois no
iremos a um sarau, mas iremos a uma fazenda
antiga.
Com a ajuda dos escravos, as moas subiram
nos cavalos e logo partiram aos trotes. Caro leitor,
deixarei de lado agora um pouco os personagens.
Para lhes descrever um pouco dos acontecimentos
que levaram aquela fazenda se tornar assombrada.
Tudo aconteceu em 1810. Ali naquela fazenda, vivia
uma famlia linda e alegre; entretanto, aps uma
noite terrvel, tudo havia mudado e o que era alegria
122

Mistrios de Um Amor Proibido

tornou-se tristeza e em ranger de dentes. Em uma


noite fria e chuvosa de outono, aps um escravo
velho ser chicoteado at a morte, a escravaria se
revoltou contra seus senhores.
Marcava pouco mais de meia-noite, quando os
escravos invadiram a fazenda e mataram boa parte
da famlia. Aquela noite foi tenebrosa, aconteceu um
trucidamento em srie. O nico ser que foi poupado
da morte foi uma pequena criana, uma menina que,
dias mais tarde, foi encontrada com uma escrava no
meio da mata. E, aps aquela trgica noite, a
fazenda foi trancada e nunca mais ningum ouviu
falar dessa sobrevivente. Desde ento, todos os
vizinhos temiam passar por sua frente, mas, para
aqueles jovens, no passava de uma histria do
povo. E pagavam para ver seu interior. Por vrias
vezes, aquelas moas e Miguel se aventuraram ao
entrar naquela imensa fazenda.
Os anos passaram, mas a arquitetura no havia
sofrido modificaes, apenas algumas interferncias
do tempo. Sua frente se mantinha perfeita, no estilo
colonial: uma imensa escadaria logo no alpendre,
atrs um imenso ptio, e o jardim havia ficado
intocado, como se naquele local houvesse um feitio
que pairava por sobre toda a casa.
A fazenda era enorme, tinha por volta de
trezentos cmodos, sem contar os jardins internos e
as palmeiras-reais. Votarei agora para nossas
personagens. Aps terem montado, em seus
receptivos cavalos, o grupo cavalgou cerca de vinte
minutos, at que pararam frente dos portes da
imensa casa colonial. Miguel e Francis desceram de
seus cavalos e, com muito custo, abriram os pesados
portes de ferro macio. J as moas continuaram
em suas montarias e foram as primeiras a entrar na
fazenda. Segundos depois de terem atravessado os
portes, todos apearam no alpendre. Ficaram
123

Cludio Pereira da Silva

deslumbrados primeira vista com aquela riqueza


intocada. A fazenda era datada de 1710 e era da
famlia Pereira da Silva, uma famlia muito distinta da
regio.
Naquele
ano
a
propriedade
estava
completando cem anos, porm sua opulncia e sua
beleza pareciam estar intocadas, como se estivesse
enfeitiada. Aps um longo passeio todos retornaram
para casa.

124

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo X
Mistrios do corao

Marcava pouco mais de dez horas da manh,


quando a locomotiva Baronesa dobrou a aresta que
separava a mata da estao, onde cessaria a
marcha. Aquela era a locomotiva Baronesa,
chamava-se assim, porque foi o baro de Mau que
trouxe a primeira estrada de ferro para o Brasil e,
para homenagear a esposa, dera locomotiva o
nome de Baronesa.
O trem percorreu todo o trajeto e parou diante
da plataforma II. Assim que as portas da rica
locomotiva se abriram muitas pessoas saltaram, mas
as personagens que nos interessa no desceram no
meio daquela amlgama, mas sim de uma portinhola
mais ao fundo do vago. Daquela porta desceram
duas lindas moas com ar europeu, um rapaz j
adulto, uma senhora na flor da idade e um senhor
mais velho. Tratava-se de Clara, Melissa e Henrique,
a viscondessa Emmanuella e o visconde Sebastio.
Todas essas pessoas que foram apresentadas
fazem parte da mesma famlia. Essas pessoas so
filhos desta terra, mas partiram daqui havia muitos
anos, aps um acontecimento terrvel. Clara a filha
mais nova do visconde e da viscondessa
apresentados acima. Ela uma moa linda, com ares
europeus, seus lbios so bem-feitos, seu rosto de
uma boneca de porcelana, seu talhe senhoril,
125

Cludio Pereira da Silva

parece ser uma moa de outro pas, sua ctis lvida


e alva como de uma gara nobre. Na tarde em que
desembarcou na estao de Sant Anna, estava
trajando um vestido de saia-balo na moda francesa,
na cor carmim.
O penteado era da moda, assim como o de sua
irm. J Melissa, alm de todos os adjetivos da
beleza que podemos lhe atribuir, uma coisa no to
bonita lhe era atribudo, ela era de uma ignorncia e
de uma altivez sem tamanho, mais algumas coisas
poderiam ser atribudas ao seu carter presunoso:
era estpida, arrogante, prepotente, mentirosa,
perspicaz, metida, entre outras coisas que lhe
caberiam muito bem; uma de suas maiores alegrias
era ver um negro ser surrado no pelourinho. J
Henrique era de um carter exemplar e, junto com
Clara, os dois levavam a campanha abolicionista com
bastante veemncia.
Credo, meu pai. Para onde o senhor nos trouxe
indagou Melissa. Essa cidade muito estranha, as
pessoas so feias. Ah no, eu no quero morar
aqui, quero voltar para Petrpolis! Por Deus, o que
farei aqui, neste fim de mundo?
Cale a boca! E pode ir se acostumando, pois
de agora em diante aqui ser a tua nova morada.
Isso aqui no o fim do mundo, pois foi aqui que eu
e sua me nos conhecemos e nos casamos, e foi aqui
que o teu irmo nasceu. Por isso exijo respeito com
os moradores desta terra.
Ah no, meu pai! Pea-me o que quiser, mas
no me pea para respeitar este quinto dos infernos!
Retrucou Melissa.
Oh, minha filha, pensa pelo lado bom, esta
cidade tem o nome da nossa Sant Anna das Rosas
murmurou a viscondessa.
Qual, minha me! Isso apenas mera
coincidncia. E quem foi o idiota que deu esse nome
126

Mistrios de Um Amor Proibido

a esta cidade ridcula? Ainda se fosse uma cidade da


Europa, Frana, ustria, Sua, entre outras, mas aqui
no fim do mundo. Por Deus, olha o tanto de negro
que tem aqui, at parece que estamos no continente
africano. Sente s o mau cheiro, e a roupa que esse
povo usa, a maioria j est ultrapassada, j at saiu
de moda muitas delas. Veja... Veja...
Clara e Henrique discriminaram a atitude da
irm:
Cale a boca, Melissa. Se voc est achando
ruim a roupa dos moradores, abra o seu ba e lhes
d as suas bradou Henrique.
Ai... Seu grosso! Creio que voc j esteja se
acostumando com a educao desta gentinha. Pois j
est tratando uma dama com tamanha grosseria.
Olha ele, minha me, como fala comigo!
Infantes, olhem s como esto se
comportando, tenham compostura, ou essas gentes
crero que ns somos mais mal-educados do que
eles, que so caipiras concluiu a viscondessa.
Naquele momento o visconde disse:
Venham, pois j h um coche nossa espera
na outra extremidade da estao.
A famlia Pereira foi conduzida pelo visconde
extremidade da estao, onde um coche j a
aguardava. Clara passava por entre as pessoas,
desejando-lhes bom dia; j Melissa repudiava tudo
aquilo e caminhava com certo nojo, caminhava na
ponta dos ps para que no sujasse a barra de sua
linda saia-balo de seda. Atrs da famlia, vinham
carregadores com as bagagens. As trs senhoras
subiram na diligncia; j Henrique e seu pai foram ao
lado do carro a cavalo; alm do coche, que conduzia
as senhoras da famlia, vinham mais quinze carroas
abarrotadas de malas, bas, caixas de chapus e os
pertences pessoais da famlia, como penteadeiras,
chapelaria e as mucamas particulares, itens
127

Cludio Pereira da Silva

fundamentais para qualquer senhora da alta


sociedade.
O coche que levava as damas estava
abarrotado de seda, musselina, pelica, merinaques,
crinolinas, anguas e muitas outras coisas do
vesturio feminino. Era tanto pano, que faltava
espao para elas mesmas se moverem. Melissa
uma rapariga de carter duvidoso, mesquinha,
dobre-maldade, carter esnobe, embriagado em uma
clera infame que vinha diretamente dos infernos.
Na antiga morada da famlia de Melissa, alm
dos escravos, a populao temia a menina de gnio
forte e impulsivo; na cidade e no campo ao redor da
fazenda da famlia, corria um boato de que Melissa
havia mandado matar uma negrinha apenas porque
a negrinha havia-lhe levantado os olhos enquanto a
moa passava; reza a lenda que Melissa mandou
esquentar um ovo e, quando o ovo estava quase
estourando, de to quente, mandou que abrissem a
boca da negra que a havia entregado ao visconde.
Naquela mesma noite, enquanto os escravos serviam
o jantar, uma mulatinha, sem a menor inteno de
manchar a roupa de sua senhora, deixou a tigela de
sopa de ervilha cair sobre o lindo vestido de Melissa.
Isso foi o estopim para que a mandasse para o tronco
e lhe dessem trinta chibatadas; essas foram as
coisas menores que essa infernal rapariga havia
aprontado. Seu mpeto de maldade era enorme e no
tinha fim; era freada s vezes por seu pai, ou por sua
afetuosa me, e por sua irm Clara, a nica que
conseguia puxar as rdeas da irm.
Duas semanas se passaram desde que a famlia
chegou cidade. Durante aquelas duas semanas a
famlia havia trabalhado dia aps dia para colocar
tudo em ordem na fazenda; alm dos preparativos
para o sarau que aconteceria mais noite. Sarau em
que a famlia debutaria diante da nova vizinhana.
128

Mistrios de Um Amor Proibido

Os preparativos para aquela festa haviam se iniciado


ainda antes dos senhores da casa levantarem-se.
Logo pela manh, ainda na primeira hora do dia, dois
ou trs pajens saram pela vizinhana, distribuindo os
convites. A maior parte dos convites j havia sido
entregue nos dias que antecederam; entretanto,
aqueles foram deixados por ltimo, pois se tratava
de vizinhos prximos. A viscondessa e suas duas
filhas no se perturbaram, no quesito trajes, pois
haviam trazido vestidos da corte.
A casa-grande, ou a sede da fazenda como
queiram chamar, estava lindssima, esplendorosa aos
olhos humanos. De hora em hora coches e mais
coches paravam diante do alpendre da fazenda, e
damas, cavalheiros, crianas, idosos e ancies
desembarcavam das carruagens que vinham de
diversos lugares, abarrotados de tecidos dos mais
finos, e carroas que vinham logo atrs com as
mucamas, que serviam de companhia a suas
senhoras.
A festa ia de vento em popa; estavam presentes
ali as figuras mais importantes de Campos dos
Goytacazes, Paquet, Maca, guas Lindas e da
cidade imperial, ou Petrpolis. Eram bares, condes,
viscondes, marqueses, duques, embaixadores e
alguns ricos comerciantes que ainda no haviam
adquirido ttulos perante o imperador Dom Pedro II.
Mas no pense o leitor que nessa festa s havia
homens e seus pensamentos revolucionrios, guerra,
rum, charuto cubano ou de havana, mulheres e
outras concitas mais. Alm de todos esses
aristocratas que acabei de narrar, l estavam
tambm suas mucamas, filhas e filhos, alm de suas
esposas: as baronesas, condessas, marquesas,
viscondessas e embaixatrizes, com suas enormes
saias de tecidos finos, como seda, tafet, musselina,
pelica, veludo, entre outros trazidos da Europa, alm
129

Cludio Pereira da Silva

do aroma que se espalhava por todos os sales,


aromas que se misturavam com o cheiro que vinha
dos cmodos destinados cozinha. Um grande
burburinho espalhava-se por toda a casa, os sales
estavam cheios, alm dos espaos que foram
destinados s valsas e quadrilhas, havia tambm os
sales de jogos e de outras prticas. Um aposento
quase no fim de um corredor havia sido destinado s
moas, ou como era conhecida sala do desmaio,
lugar onde as moas aps as refeies iam no intuito
de tirar a sesta e afrouxar seus espartilhos.
Do lado de fora, os escravos que no
trabalhariam no sarau, pois eram escravos da
lavoura e no tinham a delicadeza necessria para
servir um jantar, podiam apreciar a festa atravs das
janelas e ouviam os rusgo-rusgos das saias-balo. As
escravas velhas lembravam-se de quantos saraus j
no presenciaram, e as novinhas sonhavam com
aqueles vestidos lindos, viam-se nos lugares
daquelas damas da alta sociedade.
Nomes ilustres haviam comparecido naquela
noite, nomes como o grande baro de Mau com sua
me, sua tia, sua sobrinha e esposa. As senhoras
Mariana de Jesus Batista, me de Mau, Guilhermina
de Sousa Machado, tia e sogra do baro e sua
esposa, a baronesa Maria Joaquina de Souza, ou May,
como era conhecida; a mesma que havia recebido
uma homenagem do esposo que, aps trazer a
estrada de ferro ao Brasil, havia dado o nome da
locomotiva de Baronesa. Entre muitos outros nomes
influentes da corte, poetas escritores e outros.
Sem contar a presena de uma figura muito
ilustre e conhecida pelos leitores; era uma
personagem que havia nascido na senzala, mas tinha
alma de uma deusa; aps muito sofrimento, essa
personagem deu sorte e foi muito feliz; aps muita
luta, a bela rapariga conseguiu conquistar o seu
130

Mistrios de Um Amor Proibido

lugar nos sales da alta sociedade. Isaura havia se


tornado sinhazinha e se tornado tambm a mais
conhecida do Imprio.
Depois de ter conquistado sua alforria, a
rapariga se casou com lvaro, um rico rapaz. Aps
sua liberdade, ela passou a ser conhecida como a
lady da senzala. Depois que se casou, Isaura
adquiriu respeito diante da sociedade fluminense.
Personagem que o caro leitor j conhece, pois sua
histria j foi contada por nosso brilhante autor
Bernardo Guimares.
Mas agora voltemos narrativa anterior. O
visconde e a viscondessa conservavam-se porta na
recepo dos convidados, e no alpendre o feitor
servia de anunciador, anunciava os recm-chegados.
O baro de Mau e sua esposa a baronesa
May disse o feitor, continuando disse: lvaro e
sua esposa Isaura dos Anjos. E assim continuamente
um aps outro convidado.
Os convidados chegavam e, aps passarem pelo
feitor, seguiam para o hall da casa, onde o visconde
e a viscondessa os recebiam. Mesmo com as
desavenas do passado, a famlia de nossa mocinha
Beathriz havia sido convidada.
Marcava pouco mais de onze horas da manh,
quando os coches da famlia Albuquerque pararam
diante do alpendre. Aquela seria a primeira vez em
que a sociedade de Sant Anna seria apresentada
famlia do visconde. Primeiro desceu a baronesa,
antiga amiga do visconde, depois Beathriz e o resto
da famlia Albuquerque. A baronesa subiu as
escadarias do alpendre de braos dados ao seu
sobrinho Miguel, seguidos logo atrs pelas moas,
sobrinhas e a filha da baronesa Isabel.
Na sequncia, como em uma fila indiana, Bya
foi a ltima a entrar no salo, a jovem foi a que mais
chamou a ateno, a orquestra parou; os que
131

Cludio Pereira da Silva

valsavam cessaram os passos, os jogos detiveram-se


e o burburinho cessou. Os rapazes olhavam com
admirao, desejo, luxria, lascvia; j as mulheres
admiravam-lhe com dio e inveja, pois estavam ali
havia algumas horas e no haviam conseguido parar
o sarau como aquela forasteira.
Naquela manh, Beathriz estava trajando um
lindo vestido de saia-balo na cor marfim, com
pingos de diamante, a saia bem ampla e o corpinho
era bem estruturado. Foi ali, naquele mesmo
instante, que os olhares se encontravam, foi um
amor primeira vista; naquele momento, Henrique
ficou sem cho e Beathriz sentiu-se flutuando, era
uma sensao esquisita, pois jamais havia sentido
aquilo antes. Com apenas um olhar, Beathriz e
Henrique sentiram como se j se conhecessem h
anos; era um sentimento recproco.
Ela caminhou pelo salo, cumprimentando um
por um, mas logo aps as apresentaes decidiu se
recolher em um cantinho do salo, pois percebeu os
olhares invejosos por parte das moas e cobiosos
por parte dos rapazes.
Viu s o jeitinho que ela entrou? Murmurou
Melissa irm Clara. No fui nem um pouco com a
cara dela. Parece-me uma garota desfrutvel.
Impresso sua, minha irm. Eu j esperava
isso de voc, pois voc no aceita que outra pessoa
aparea mais que vs! Voc adora ser o centro das
atenes, vossa merc no gosta de ser preterida.
No ?! Voc viu a roupa dela, muito humilde,
o penteado j est fora de moda; ela no passa de
uma roceira matuta.
Para de ser hipcrita, ela uma moa linda e
est muito bem trajada e penteada.
, Clara, voc no perde a mania de defender
os pobres e oprimidos disse Melissa com muita
raiva. Com licena, patrona dos fracos e oprimidos!
132

Mistrios de Um Amor Proibido

Aps essas palavras, Melissa se retirou da presena


da irm deixando-a a ss.
Por alguns minutos, Beathriz e o rapaz trocaram
olhares, mas, enquanto trocavam olhares, Henrique
maquinava uma maneira de se aproximar da jovem.
No demorou muito para que a ideia e a coragem lhe
aflorassem na pele. Ideia que lhe veio quase sobre
presso, pois se espalhava pelo salo um bochicho
de que Gabriel, o filho de um rico comerciante, a
tiraria para danar na prxima contradana. Ento
tomou um gole de champanhe e, tomando coragem,
Henrique se aproximou da marquesa em que ela
estava assentada e, estendendo a mo, disse:
Com licena, senhorita.
Beathriz ergueu o olhar que at ento o
conservava junto da saia.
Pois no, senhor?
Ser que a senhorita me daria a honra da
prxima contradana. Isso , se a senhorita estiver
de acordo, claro?!
Beathriz voltou a declinar a cabea e, ao
mesmo tempo, ficou rubra de vergonha. Mas, graas
ao cupido, Isadora, sua prima, estava ao seu lado e
disse:
V, Beathriz... V, pois no so todos os dias
que temos saraus nesta redondeza.
Ainda encabulada e vermelha de vergonha,
Beathriz estendeu a mo para Henrique. Ento o
casal esperou que terminasse a contradana e, assim
que a orquestra comeou a tocar Chopin, Henrique a
conduziu ao meio do salo, e comearam a rodopiar
de um lado para o outro. Isso aconteceu durante
duas ou trs valsas, o sentimento que os unia era to
grande que mal perceberam as valsas passarem,
nem sentiram o cansao e, uma aps outra,
danaram. Ela estava deslumbrante e passo a passo
sentia-se mais leve; seus braos estavam juntos
133

Cludio Pereira da Silva

daquele que lhe roubaria o corao e a alma;


flutuava como uma pena nos braos de seu amor. No
auge do sarau todos j haviam percebido o clima que
rolava entre os dois.
A baronesa Isabel queria os separar, mas
conteve-se, pois seria vergonhoso; igualmente o
visconde, pai de Henrique, queria fazer, mas
levantaria suspeita por parte de sua mulher, que no
conhecia sua trgica histria. Mas os dois temiam
que aquilo se prolongasse, por mais tempo; ento o
visconde mandou que servissem logo o almoo. E
assim foi feito. A orquestra parou de tocar e os
convidados seguiam para a sala de jantar, mesa que
j estava posta. O mvel era de jacarand nobre e
havia lugar para sessenta pessoas. Como estava na
festa boa parte da corte, a mesa principal foi para os
donos da casa e para os convidados com patente ou
brases de baronato, conde, visconde, marqus e
embaixadores; j as outras pessoas ricas, mas que
no
possuam
patentes
ou
brases,
foram
acomodados em mesas ao redor da mesa principal. O
baro de Mau e sua esposa foram um dos casais,
alm deles, o conde de Bourbon e o de Bragana e
suas receptivas esposas, um visconde e embaixador
que foi representar a famlia imperial; a to
conhecida Isaura e seu esposo lvaro estavam l
tambm. A mesa era enorme, e o anfitrio estava
cabeceira, seguido pela viscondessa Emmanuelle, a
menina Clara, Melissa e Henrique. Logo aps os
moradores da casa, estavam o baro e visconde de
Mau e sua esposa, e assim sucessivamente.
A mesa estava repleta de guloseimas e de
pratos nacionais e da gastronomia europeia. Primeiro
foi servida uma sopa de pistache moda italiana,
depois uma salada francesa; aps alguns outros
pratos, foram servidas as sobremesas: macarrons,
negrinhos, quindins da Iai, beijinhos, pudim, dom
134

Mistrios de Um Amor Proibido

Rodrigo, cabelo de anjo, baba de moa, pastis de


santa clara, pastis de Belm, brioches, beijo de
sinh, cajuzinhos, pedaos do cu, , pat de foie
gras, charlotte, pessegada, doce de abbora, entre
outros doces.
Aps o trmino da refeio, foi servido o caf
tradicional e os grupos se dividiram; boa parte dos
cavalheiros foi para uma sala, para fumar charuto
cubano e tomar champanhe, usque e conhaque; j
as moas foram levadas para os aposentos
femininos, ou vulgo sala do desmaio, pois queriam
tirar a sesta antes do baile, que aconteceria mais
noite.
Beathriz e suas primas foram levadas para os
aposentos pela viscondessa Emmanuelle; Beathriz e
suas primas foram levadas para um aposento mais
afastado da escadaria principal, pois o outro j havia
sido ocupado, alm dela, Isaura tambm foi levada
para o aposento onde ficaria a famlia Albuquerque.
Ol, sinhazinha Isaura disse Beathriz. Como
voc est? Graas a Deus, posso ver que voc est
livre, pois da minha fazenda pude acompanhar a sua
histria. O que aconteceu com o senhor Lencio?
Ah, que Deus o tenha! Respondeu Isaura.
Aquele infeliz se matou, quando soube que lvaro
havia comprado toda sua hipoteca. Ele mesmo deu
um tiro em sua cabea. No ficou sabendo dessa
parte? Concluiu Isaura.
No, em minha fazenda s chegava a histria
de seu sofrimento murmurou Beathriz com
surpresa. Ainda sim porque os escravos traziam.
mesmo. Sofri muito nas mos daquele
maldito, o que me sustentava era a presena de
minha madrinha e de sinh Malvina, que est no
outro aposento. Mas em minha fazenda chegaram
histrias sobre a sinhazinha. Os escravos dizem que
a sinh uma grande lutadora contra a escravido e
135

Cludio Pereira da Silva

muito boa na senzala. Dizem por l que a sinh


amada na senzala.
Beathriz corou e, baixando a cabea, disse:
No fao mais do que a minha obrigao.
Nosso Senhor no criou ningum para ser dono de
ningum. Nem pessoas para serem vendidas como
objetos. Ainda no libertei todos os escravos l de
casa, pois minha madre no me permite; mas l em
casa nenhum escravo tratado como bicho. Todos
recebem uma boa alimentao, e os escravos j de
idade recebem um pedao de terra para construir
sua casa de tapera.
Fiquei sabendo tambm que voc busca
doaes para comprar a alforria de pessoas de idade.
Vossa merc muito engajada na luta pela abolio,
parabns... Parabns mesmo. Pode contar com a
minha ajuda e com minha amizade, desde j!
Quando quiser ir minha fazenda, pode ir, pois ser
bem-vinda. Voc pode pensar que Campos muito
longe daqui, mas no . So apenas meia hora
daqui!
Essa conversa percorreu todo o corredor, at
que chegaram ao aposento. A conversa foi
interrompida pela viscondessa:
Aqui esto vossos aposentos disse a
viscondessa enquanto abria a porta. Podem ficar
vontade. E no se esqueam de que o sarau
recomear s sete horas da noite. Boa-tarde e boa
sesta!... Disse a viscondessa, enquanto se retirava
do quarto, deixando as convidadas sozinhas.
A mucama que seguia as moas da famlia
Albuquerque ajudou Beathriz a tirar a crinolina, as
anguas, as sete saias, o merinaque e o corpinho,
deixando apenas o espartilho, mas afrouxou-lhes as
fitas de cetim, tirando em seguida o par de
sapatinhos. As outras da famlia fizeram o mesmo;
uma aps a outra tiraram a roupa e, aps tirar a
136

Mistrios de Um Amor Proibido

roupa de suas sinhs, Hadassa ajudou Isaura a tirar


as suas. Cada uma se deitou em um mvel, duas ou
trs se deitaram nas camas, outras se deitaram nas
marquesas, canaps, divs e outros.
As jovens tiraram a sesta durante a tarde toda,
at a to esperada hora, a hora que recomearia o
baile. Beathriz ergue-se da casa e, com a ajuda de
sua mucama, lavou o rosto e comeou a se preparar
para o baile.
Por favor, Hadassa, venha e aperte mais o
meu corpete, pois sinto que ainda respiro com
facilidade. Isso um sinal de que ainda no est bem
ajustado replicou Beathriz, enquanto se segurava
ao dossel da cama.
Benza Deus, minha amiga Beathriz. Pois tu
tens a cintura mais fina de toda Sant Anna. A
quantas anda a circunferncia de tua cintura? Digame, para que eu possa imit-la bradou Isaura de
onde estava.
Ah, minha cara Isaura, no creio que tu
conseguirs chegar finura da minha, pelo menos
por enquanto! Pois isso vem de anos e anos de
aprimoramento. Essa mulatinha a e minha me que
fizeram chegar a esta finura. Tenho, mais ou menos,
trinta e cinco centmetros de cintura.
E agora, sinh, o que oc vai us?
Mas, Hadassa, qual foi o vestido que trouxe?
Aquele, sinh. De chamalote amarelo real
com bombazina na orla, cor de ouro.
Ah. Aquele bem amplo?
Sim sinh, aquele mesmo!
Ah. Agora, sim, o espartilho est apertado na
medida certa. Agora pegue o resto da roupa.
O monte de crinolinas, anguas, merinaques e
de saias estava ao derredor e espalhado pelo cho.
Beathriz caminhou alguns passos, ergueu o p e se
colocou dentro da montanha de pano que estava
137

Cludio Pereira da Silva

estendida
ao
cho.
Hadassa,
com
muita
graciosidade, reclinou-se aos ps de sua sinhazinha
e, pegando o tufo de pano, ergueu e cingiu-lhe a
cintura, abotoando camada por camada. Aps
apertar bem o espartilho e colocar todas as camadas
de tecido que cingia a saia da moa, a escrava pegou
o vestido de gala e o colocou sobre aquele monte de
saias, que j se encontravam sobre o merinaque. Ela
ento caminhou e, olhando-se no espelho, disse:
Creio que agora s me falta dar o ltimo
retoque no penteado penteado que estava firmado
base de muita gua aucarada.
Isaura e as outras moas ainda tentavam
apertar o espartilho, mas no conseguiam passar dos
quarenta e cinco. Algumas no suportavam tamanha
presso na cintura e desmaiavam, outras chegavam
a apertar, mas ficavam sem ar e arroxeavam. Isaura
conseguiu chegar aos quarenta e cinco, sem passar
mal.
- Beathriz, minha filha, como tu consegues ficar
com a cintura to comprimida. H pouco quase
desmaiei disse outra moa, quase sem flego.
Amiga, mesmo, como vossa merc
consegue?
Ah, no sei, mas creio que j me acostumei
com isso replicou Beathriz, enquanto terminava o
penteado. Desde que completei doze anos minha
me branca e minha me preta obrigam-me a usar o
espartilho todos os dias e cada dia mais apertado.
Tiro apenas para banhar-me e para dormir. como se
fosse um ritual de famlia. Minha bisav dizia que,
quanto mais fina a cintura da moa, maior ser o
dote que lhe empregaro. Ela dizia e agora minha
me, diz que uma mulher adquire postura usando
isso e que os homens gostam de nos ver assim!.
Elas no me deixam sair de casa de estmago vazio,
pois fcil saber se uma moa ou no uma dama
138

Mistrios de Um Amor Proibido

de classe pelo modo de comer gargalhou Beathriz. Tolice... Tolice. Coisa de mulher mais velha, mas
como devo obedincia minha madre! Alm do que,
eu no reclamo. Pois adoro me sentir a nica, em
toda provncia de Sant Ana, que tem uma cintura
assim. Sempre que passo nas ruas, em meu coche,
ouo galanteios eloquentes e piadas de pessoas
invejosas: Olha l, que coisa linda. Nossa que
cintura. No sei para que, tamanho exagero. Isso
apenas para aparecer. J estou to acostumada
com essas coisas que nem ligo mais. Sei que no
passam de invejosas, gordas. Pessoas que nem
conseguem chegar a quarenta e nove centmetros. J
tiro de letra essas piadas.
Assim como Beathriz, suas primas, Isaura e
todas as outras raparigas estavam deslumbrantes.
Cada uma mais bem vestida que a outra. Ela estava
em um lindo vestido de chamalote e tafet, na cor
amarelo real e ouro prpuro. O corpinho estava muito
bem apregoado ao corpo e a saia-balo estava ainda
mais ampla que o normal.
Logo aps terem dado os derradeiros retoques,
as sete raparigas, incluindo Beathriz e Isaura,
colocaram-se diante da porta de sada. Uma escrava
que estava no quarto abriu as duas bandas da porta,
e uma aps outra saiu dos aposentos. Diante da
situao em que se encontravam, Beathriz e Isaura
haviam se tornado amigas inseparveis. As duas
desceram as escadarias de braos atados. Quando as
duas chegaram ao trio principal, Isaura a
apresentou ao seu cnjuge. Diante daquela situao
lvaro disse:
Prazer, sinhazinha Beathriz murmurou
lvaro, enquanto fazia uma leve mesura. timo
saber que minha esposa fez amigos aqui, pois assim
ficaremos ainda mais vontade. Teremos a honra de
receb-la em nossa fazenda em Campos quando
139

Cludio Pereira da Silva

quiser. Sinta-se vontade para nos visitar em nossa


casa.
Daquele minuto em diante as duas no se
separaram mais. lvaro valsou com Isaura, e
Beathriz valsou com Henrique. Ao trmino de cada
valsa, Beathriz parecia passar mal. Oh, cus! No
chegarei ao fim desta noite sem desmaiar, pois o
espartilho est mui apertado. Pensava ela a aps
cada rodopio. Aps o trmino da dana, ela foi
conduzida por lvaro a uma marquesa, onde se
assentou ao lado de Isaura. Beathriz estava sentada
sobre os babados de tafets e a grande roda que
boiava ao seu derredor mostrava apenas a ponta do
delicado sapatinho de pelica, no tom do vestido.
Sobre aquela marquesa cabiam apenas ela e Isaura,
pois era tanto pano que at elas sofriam com o
aperto de ambas. Mais adiante, logo na frente da
marquesa, onde estavam nossas personagens,
encontravam-se duas matronas, elas pareciam estar
fazendo mexericos. Naquele instante uma voz
estridente e mscula disse:
Senhores e senhoras, com grande alegria
que lhes peo um minuto de vossas atenes. Este
sarau no foi feito apenas para nos apresentar
sociedade de Sant Ana, mas tambm comemorar a
vinda de duas pessoas de grande importncia para a
nossa cidade, o grande poeta lvares de Azevedo e
Jos de Alencar. Uma grande ovao foi ouvida de
todas as partes da fazenda. A voz estridente havia
sido do visconde, anfitrio da noite.
lvares de Azevedo e Jos de Alencar deram um
passo para a frente, destacando-se diante da
multido que havia se formado em volta de ambos.
com grande alegria que estou aqui esta
noite. Fui convidado pelo dono da casa, meu grande
amigo, o visconde, e pela viscondessa Emmanuelle,
e resolvi aceitar a proposta de conhecer esta linda
140

Mistrios de Um Amor Proibido

cidade, alm de conhecer estas pessoas que se


fazem aqui presente, deixo-lhes um abrao cordial
disse Jos de Alencar.
Foi ovacionado em suas derradeiras palavras.
Em seguida foi a vez de lvares de Azevedo se
apresentar. Aps as apresentaes, o sarau retomou
sua rotina. No era por acaso que o sarau estava no
seu auge. Muitos convivas que no haviam chegado
para o convescote estavam chegando naquele
momento. Meia hora depois, no auge surreal do
baile, hora em que estavam espalhadas pelos sales
da casa-grande cerca de mil e duzentas pessoas e
mais seiscentos casais. Esse nmero de pessoas
estava dividido por todos os cmodos, sala de jogos,
sala de jantar, alpendre, casa de banhos, sala do
desmaio, biblioteca, entre outros aposentos.
Na escadaria era um desfile de moda, senhoras
e senhoritas subiam e desciam, mostrando suas
enormes crinolinas, no andar superior era permitida
apenas a subida de pessoas mais influentes e de
braso. Ah, antes que eu me esquea somente as
moas podiam subir e, claro, acompanhadas por suas
mucamas. A latrina masculina ficava no andar
inferior, onde estavam concentrados os convidados.
Escravos homens e mulheres estavam espalhados
por todo o salo, sobre as bandejas havia taas de
cristal com vinho, champanhe, usque, rum, suco
para os mais jovens, canaps com caviar e pats de
vrios tipos.
No salo que havia sido separado para as
danas, cerca de quinhentos casais rodopiavam e
rodopiavam tresloucadamente, mas no era o total
que o salo comportava, pois ali naquele salo
poderia haver mil e duzentas pessoas danando.
Enquanto alguns bailavam, outros aproveitavam para
colocar a fofoca em dia, principalmente as matronas
que se afastavam do burburinho, onde o cheiro de
141

Cludio Pereira da Silva

juventude exalava de todos os lados, sinhozinhosmoos, sinhazinhas-moas e havia os adolescentes


que estavam ainda desabrochando para a vida.
Cochichos
ao
p
do
ouvido,
conversas
demasiadamente aos cochichos, risadinhas de
senhoritas e seus faniquitos. Tudo parecia bem, at
que Henrique resolveu aproximar-se novamente de
Beathriz.
Beathriz estava ali, sentada em um canap,
Henrique ento se aproximou e, oferecendo-lhe a
mo, disse:
Senhorita, com licena. Conceder-me-ia a
honra desta contradana?
Ela ficou encabulada, mas aceitou, pois no
sabia se teria a oportunidade de rev-lo. Estendendolhe a delicada mo disse:
Com muito prazer, meu caro rapaz. Alm do
que, aquela talvez fosse a ltima vez que se vissem.
Henrique ento a conduziu ao trio do salo
nobre e esperou que terminasse de entoar as notas
derradeiras da cano. Assim que comeou a outra,
deslizaram pelo salo, como se no houvesse cho e
s os dois estivessem ali. Trocaram algumas palavras
e, ao trmino da contradana, Henrique a conduziu
at uma saleta, ali fizeram algumas confidncias,
mas a trrida cena de amor foi interrompida com a
entrada repentina da baronesa.
Estavam os dois ali assentados em uma
marquesa ao lado de uma janela. Estavam
descontrados e conversavam sobre coisas da vida e
sobre o sentimento que estavam sentindo at que
subitamente abriu-se uma porta e eis que surge das
profundezas da sala a baronesa Isabel.
A porta se abriu.
Beathriz, minha filha. O que faz por aqui?
Indagou a baronesa, enquanto caminhava pelo salo.
E ainda mais a ss com esse rapaz.
142

Mistrios de Um Amor Proibido

O ambiente estava com pouca iluminao. A


baronesa reconheceu Beathriz pela barra do vestido
que usava, iluminado pelos raios da lua e, enquanto
entrava, ouviu uma voz mscula e estridente. A
baronesa ento se aproximou do casal e, assim que
percebeu que se tratava de Henrique, foi logo
dizendo:
Minha filha, por favor, me acompanhe, pois
iremos embora. Estvamos todos te esperando no
alpendre, mas como voc demorava resolvi vir ver o
que havia acontecido. Oh Deus, e encontro-a em
uma sala com um rapaz.
Henrique sentiu-se encabulado e saiu da sala,
deixando as duas conversando.
- Com licena, senhora - disse Henrique,
enquanto caminhava para a porta.
Logo aps a sada do rapaz, a baronesa obrigou
Beathriz a se assentar em uma poltrona e, ali
mesmo, comeou a tecer seu sermo. A jovem
caminhou para o local onde a baronesa havia lhe
indicado e, erguendo o vestido, sentou-se. A postura
mantinha-se ereta com certa dificuldade, pois o
espartilho estava muito apertado, mesmo com
dificuldade manteve a elegncia. Desde seus doze
anos, usava aquilo, o pulmo estava extremamente
comprimido e sua respirao estava ofegante. O seio
arfava sobre o lindo decote que lhe deixava o colo
mostra, o decote era profundo, mas recatado, pois
era recoberto com renda francesa e tafet. A
sinhazinha parecia sumir entre os anis de pano que
se formou em seu redor, parecia flutuar e quase
sumia no meio de tanto tecido nobre. A baronesa
sentou-se ao lado da filha e, pegando-lhe a delicada
mo, disse:
O que aconteceu aqui em minha ausncia?
No minta para mim, ou vossa merc apanhar de
rebenque. E tenho dito.
143

Cludio Pereira da Silva

Nada, minha me... Nada...


Apenas
conversvamos temerosa, pois no sabia qual seria
a reao de sua me.
A baronesa era uma mulher muito impulsiva e
no aceitaria uma filha malfalada. Antes preferia ver
a filha em um convento a ficar malfalada na regio,
onde tinha um enorme prestgio, alm de sua histria
nada romntica. A baronesa em seu passado havia
tido uma decepo diante da vida que lhe havia
pregado uma pea e, ao final, havia lhe secado o
corao e lhe feito chorar muito. Porm, isso no
vem ao caso agora, pois o caro leitor descobrir no
decorrer da narrativa.
A baronesa se ergueu da marquesa onde estava
e, elevando a voz, disse:
Espero que esteja me dizendo a verdade...
Pois prefiro v-la morta a v-la malfalada. Se voc
arrastar o nome de nossa famlia na lama, mandarei
voc para um convento no Rio Grande, ou at
mesmo para a frica. Ou lano sua sorte ao vento e
ter que virar uma meretriz, pois no aceitarei uma
desfrutvel debaixo do meu teto disse a baronesa,
enquanto lhe desferia com o leque fechado na
cabea.
- Por Deus, minha me... Como pode a senhora
pensar isso de mim? Jamais faria aquilo que
mancharia minha honra. Posso ser arrogante e de
gnio forte, mas jamais me daria ao desfrute com um
homem. O rapaz... Henrique, acho que esse o seu
nome, foi de uma elegncia e de uma gentileza, no
me faltou com o respeito em nenhum minuto.
Conheo bem essa famlia, minha filha. Ns
viemos apenas por causa da diplomacia, pois a
famlia amiga do imperador, Dom Pedro II. E
devemos manter uma linha tnue ao Imprio. Boas
amizades, melhores negcios, mas no deve passar
disso.
144

Mistrios de Um Amor Proibido

Sim, minha me. Mas ns apenas


conversvamos! Murmurou Beathriz, colocando a
face entre as mos.
- Oh, minha filha. Pode no parecer, mas j fui
jovem como voc. E sei muito bem quando apenas
uma amizade, e o jeito que vocs se olham no
apenas de amizade. No quero mais te ver com esse
rapaz nem com nenhum outro, a ss, ou teremos
problemas. Agora vamos embora, pois no temos
mais nada a fazer aqui! V casa de banho e lave o
rosto, e siga para o alpendre, estaremos l te
esperando. No demore, por favor.
A baronesa ento caminhou, abriu a porta e
saiu, deixando-a sozinha. Beathriz ergueu-se,
arrumou as saias, secou o rosto, que estava lavado
de lgrimas, e seguiu para a casa de banho, onde
lavou o rosto e partiu para o alpendre. Chegando l,
desceu as escadas e, com a ajuda de um pajem,
subiu na carruagem, guardando na mente as cenas
da dana e do rosto de Henrique. Cerca de quinze
minutos depois, os coches e a carroa que levava os
integrantes e escravos da famlia Albuquerque
atravessaram a porteira. O bochicho no interior das
carruagens era enorme, as moas discutiam os
olhares de enamorados que receberam e dos trajes
que as rivais usavam, mas o assunto principal era
Beathriz e o filho do anfitrio. A baronesa tentou
impedir, mas no teve xito. Ela, em todo o percurso
de retorno a casa, manteve-se aptica e calada.

145

Cludio Pereira da Silva

Captulo XI
O toillete

Naquela tarde, Beathriz estava realmente


deslumbrante, trajava um lindo vestido de veludo
verde-musgo usado apenas para cavalgar. A moa
era campe quando o assunto hipismo, jamais
passara mais de dois dias sem cavalgar no seu
alazo, espoleta. Uma das suas maiores alegrias era
sair de manh para cavalgar e voltar somente de
tardezinha. E, naquele dia, no havia sido diferente,
aps o trmino do desjejum, a moa trocou de roupa,
pegou seu embornal e saiu aos galopes pelos
campos. Cavalgou o dia inteiro, nadou no riacho,
caminhou no roseiral, entre outras coisas, passou na
capela, fez uma orao e retornou para casa. Quando
chegou casa-grande, Beathriz foi cozinha e
mandou que preparassem seu banho, mas, antes de
subir para seus aposentos, ela passou na biblioteca
para dar um beijo na baronesa. Depois dos
cumprimentos dirigidos baronesa, Beathriz subiu
para seu quarto.
Venha c, minha querida b!
Assim tratava a escrava que estava em sua
famlia desde o tempo em que seus pais eram
apenas infantes.
Minha me preta! Disse Beathriz.
O que , iai? No seja afoita disse a
escrava, colocando as mos nas ancas deformadas
146

Mistrios de Um Amor Proibido

pelo tempo. O almoo no foi ainda servido! Oh!


Deu um estalo com os dedos!
Dispa-me! Preciso banhar-me antes do almoo
disse Beathriz, j soltando o belssimo cabelo, que
lhe caa sobre o ombro.
E
estendeu-se
negligentemente
na
conversadeira, entregando escrava os ps
pequeninos e bem calados. Ps de fada, ou de um
anjo, no se sabe, mas com certeza eram perfeitos.
Os ps eram to perfeitos que mais pareciam
pequenos botes de rosa.
A senhora, que j contava seus sessenta anos,
tomou-os, com amor, entre as suas mos negras e
calejadas da labuta, descalou-lhes carinhosamente
a botina, sacou-lhe fora as meias; depois, com um
desvelo religioso, como um devoto a despir a
imagem de Santa Anna, comeou a tirar as roupas
dela; desatou o cadaro das anguas e crinolinas,
desapertou-lhe o espartilho e, quando a deixou s
em camisa, a menina pulou em uma imensa tina de
gua lmpida e gracejou:
Ai! Que gua gostosa! Disse Beathriz,
erguendo o cabelo para no desmanchar os cachos.
Minutos depois, Beathriz j havia se banhado e
estava escolhendo os trajes que usaria naquela
tarde.
Diga-me, b, que vestido devo escolher: o rosa
de cambraia ou o branco de tarlatanas com fmbrias
escarlates? disse a moa, apontando para a cama,
onde se encontravam os vestidos.
Eu acho que a iai ficar melhor com o de
seda.
Est bem! Vestirei o que vossa merc
escolheu balbuciou a jovem, pegando o vestido
sobre a cama.
Beathriz encostou-se coluna que brandia o
acortinado de veludo que rodeava a cama e agarrou147

Cludio Pereira da Silva

se bem firme e disse:


Venha! Nhanh balbuciou a moa ajude-me
a colocar o espartilho.
- Mas a sinh que apertar ainda mais esse
espartilho?
- Sim. Agora faa mais e fale menos. Alm do
mais, no sei se o vestido que eu escolhi ter a
cintura como est ou mais fina.
A negra, com muito cuidado, apertou-lhe o
corselete, fita por fita, at a cintura chegar ao
extremo, logo depois ajudou a colocar as sete saias,
a crinolina e as anguas. Ela e a negra velha
demoraram cerca de trs horas para escolher a
roupa ideal.
O vestido de seda carmim parecia cair-lhe bem,
mas dava-lhe o aspecto de mais velha, o de
cambraia rosa real caa-lhe muitssimo bem, mas j o
havia usado na semana anterior. Pensou em usar o
verde-pistache, mas estava muito cedo e o decote
era muito amplo e deixava-lhe os ombros mostra,
coisa inadmissvel para o horrio; pensou no de
chamalote escarlate, mas muito escuro para o
horrio, talvez usasse o de musselina amarelo-ouro.
Aps horas e horas, decidiu-se pelo de seda branco
de laivos champanhe.
Aps escolher o vestido que usaria, a negra
pegou a trouxa de pano, que estava sobre uma
cadeira, no era uma trouxa normal, eram as oito
saias, a saia de um tecido mais espesso todo
drapeado, duas crinolinas, algumas anguas e o
merinaque. A saia ficou muito ampla e, aps todos
esses preparativos, a negra colocou os vinte e dois
metros de seda branca bem drapeado. A cada
centmetro que a saia caa por sobre o merinaque, ia
se abrindo e, ao seu final, a circunferncia chegou a
1,80 m de muito pano.
Quatro horas depois, a moa j estava pronta,
148

Mistrios de Um Amor Proibido

encaminhou-se para o corredor e depois para as


escadas. A baronesa e as moas j se encontravam
na sala. Um escravo puxou a cadeira para sua sinh
se assentar. Assim que se acomodou, uma escrava
serviu-lhe a sopa de ervilha.
Aps o trmino do almoo, as trs damas se
ergueram e partiram para outra sala, onde Beathriz
pegou um livro de Balzac e se assentou em um
canap junto a uma imensa janela que fazia meno
ao balco da fazenda; j Hadassa sentou-se ao seu
lado com um novelo de l e bordava o braso da
famlia. sua frente s havia um imenso mar verde,
onde muitos crioulos trabalhavam. O sol estava
muito forte, e a moa teve um sobressalto, mas logo
se restabelecera. Todos ouviram, ento, o tropel de
cavalos seguidos de uma carroa. Correram at o
balco, a tempo de ver um escravo e o padre que
passavam pelo corredor de quaresmeiras.
Eram seis horas da tarde quando a ceia foi
servida. L estava a lindssima Beathriz em seu
vestido de camura escarlate de ampla saia-balo.
Enquanto descia a escadaria principal, observava o
vai e vem das escravas, correndo para servir a mesa.
Temiam que a baronesa pegasse a mesa em
desalinho e, como estava quase na hora da baronesa
descer, corriam freneticamente de um lado para o
outro.
Beathriz parou no meio da escada, ao ouvir a
voz de sua me:
Beathriz, minha filha, espere-me.
Aps descer trs degraus, a baronesa estava ao
lado da filha.
Dormiu bem, minha me? Indagou Beathriz,
segurando a ampla saia.
Dormi, minha querida. Como foi o seu dia?
Retrucou Isabel.
As duas continuavam a descer.
149

Cludio Pereira da Silva

Mas antes quero saber de vossa viagem por


Portugal. Quero saber todos os detalhes, desde
quando embarcou at o seu regresso.
E, de braos entrelaados, as duas caminharam
at a sala de jantar, os escravos puxaram as cadeiras
para as senhoras se assentarem, o jantar foi servido
e regado a muita conversa. A baronesa contou tudo o
que lhe aconteceu em Portugal e, em seguida, ela fez
o mesmo.
Aps o trmino da ceia, as duas foram para a
sala de piano e l Beathriz tocou varias canes de
sua autoria e outras j consagradas por Beethoven,
Chopin, entre outros; alm de tocar, ela cantava
maravilhosamente bem. J a baronesa preferiu ficar
ao lado da filha bordando.
Enquanto ela dedilhava as derradeiras notas de
uma cano, um som muito proeminente foi ouvido,
era o barulho de uma diligncia que se aproximava
da casa-grande.
Muito curiosas para saber quem estava
chegando, me e filha correram para o alpendre. Foi
quando a baronesa gritou:
Joo, traga um castial, pois aqui est
escuro... Gritou Isabel.
O negro veio sem tardar.
A carruagem apeou soleira do alpendre, e o
cocheiro ento desceu e, com muita gentileza,
estendeu a mo. Uma mo enluvada com luvas de
pelica se apoiou e desceu.
As moradoras da casa no entenderam nada. O
que uma mulher faria quela hora da noite na rua?
Primeiro, temeram que a mulher fosse portadora de
notcias ruins, mas logo se acalmaram, quando
perceberam que a moa no estava vestida de preto.
A dama misteriosa subiu as escadas e foi
recebida por Isabel, que j a aguardava de braos
abertos, as duas se abraaram e logo a dama foi
150

Mistrios de Um Amor Proibido

convidada para entrar. A baronesa ento a conduziu


para uma sala e l as trs se assentaram, a baronesa
e a mulher em um sof, j Beathriz retornou ao piano
e continuou a tocar.
Mas o que veio fazer aqui a esta hora da
noite? Espero que no sejam notcias ruins?
Por Deus, minha amiga!
No achas que perigoso, para uma dama,
andar noite por a sozinha? Alm do mais, nesses
ltimos anos, apareceram muitos salteadores.
Ah, no! Pois no vim sozinha, estou
acompanhada de meu capataz!
Quer tomar algo? Indagou a baronesa.
No, obrigada! Eu s estou aqui para pedir
que voc e vossa filha vo ao convescote daqui a
dois meses, em minha casa, pois meu filho retornar
da faculdade de Coimbra e eu desejo fazer um
sarau... Explicou a senhora. Ah, antes que eu me
esquea, vim trazer-lhe o convite do imperador Dom
Pedro II.
A baronesa ficou espantada com o convite de
Dom Pedro II, mas aceitou.
Sim, vamos sim! Por que no iramos? Alm do
que, estou com saudade de vosso filho, o menino
Alfredo, e jamais perderia uma festa do imperador.
Ele to amigo de minha famlia, que at colocou
meu nome em sua filha, a princesa Isabel.
Beathriz continuava ao piano como se nada
acontecesse sua volta.
No , minha filha? Perguntou Isabel. Mas
Beathriz no respondeu, ento a baronesa perguntou
novamente: No ?
Ela no tirou os olhos do piano, mas respondeu:
Sim, mame...
Ento estamos acertadas, daqui a dois meses
iremos ao convescote em sua casa respondeu a
baronesa Isabel.
151

Cludio Pereira da Silva

E, abrindo o convite a baronesa Isabel, leu:


Rio de janeiro, vinte de janeiro 1854.
Excelentssima
senhora,
baronesa
Isabel
Albuquerque da Maia, eu, o imperador Dom Pedro II,
tenho a honra de convid-la para o sarau que ser
realizado em comemorao de mais um ano de vida
de vossa xar, minha filha, a princesa Isabel.
Ns da famlia real temos o prazer de convidar
vossa senhoria e sua famlia para festejar conosco no
palcio de Petrpolis.
Deus seja louvado!
Ass. Dom Pedro II
Aps alguns minutos de conversa, a senhora
levantou-se como se fosse embora.
Obrigada por me receberem, mas agora tenho
que ir, pois j avanada a hora e ainda tenho meio
dia de viagem.
A baronesa exclamou:
Ah no, a senhora no vai enfrentar essas
estradas a esta hora!
No... No. Eu no quero incomod-las!
No ser incmodo algum. Ficarei mais
chateada se no aceitar!
Isabel chamou uma escrava e lhe disse:
Arrume o quarto de hspedes.
Sim, sinh!
Meia hora depois, a escrava apareceu no alto da
escada, anunciando que o aposento j estava
preparado.
Obrigada, Balbina! Exclamou a baronesa.
Agradecida, sinh! Agradeceu a escrava
saindo da sala.
Beathriz levantou-se do piano e partiu para
junto de uma janela, l ficou como se estivesse
152

Mistrios de Um Amor Proibido

prevendo o futuro. Enquanto Isabel e Sissi


caminhavam na direo da escada, mas, antes de
subir o primeiro degrau, Isabel virou-se e disse:
Filha, no vai subir?
No! Murmurou Beathriz, sem se mover.
Os escravos fechavam as portas e janelas, e
apagavam as velas dos lustres e dos castiais. A
ltima a se retirar da sala foi Beathriz, que subiu
para seu quarto acompanhada por Hadassa.
Beathriz ergueu a saia na altura do tornozelo
para que pudesse enxergar os degraus e, de brao
dado escrava, subiu.
Hadassa... Voc diz ver o futuro. Diga-me, o
que v para mim?
A escrava ficou por um momento calada, como
se estivesse prevendo algo, mas logo soltou uma
gargalhada.
Ah, sinh. O que vejo um rapaz que lhe
roubar o corao e a alma disse a negra, olhando
para sua patroa, atravs do espelho. No se
preocupe, pois o que seu est por vir. E olha que
vem. Ele est mais perto que voc imagina!
Mas como saberei?
A escrava riu...
Espere e vers. Vossa merc, e somente voc,
saber quem !
Mas serei feliz?
Sem dvida. Mas passar por muita coisa
antes de chegar to esperada felicidade.
As duas subiram para o quarto de Beathriz.
Beathriz caminhou na direo da banqueta da
penteadeira e, sentando-se, comeou a desfazer o
penteado e retirar as joias. Um mrbido silncio
tomou conta do aposento. Pegando a escova que
descansava sobre a penteadeira, a escrava comeou
a pentear os cabelos de sua senhora; depois de
desfazer o penteado, a escrava voltou a tranar o
153

Cludio Pereira da Silva

cabelo de Beathriz. Tirou as joias. A jovem despiu-se


das dez saias, da crinolina e das anguas, que no
eram poucas, ento deu alguns passos no quarto e
se apoiou no dossel da cama, pediu para Hadassa
que a despisse do espartilho.
A negra saiu, deixando Beathriz sozinha.

154

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XII
As Viagens

Era uma sexta-feira de primavera como outra


qualquer, quando a comitiva da famlia Albuquerque
da Maia partiu para Petrpolis. Era uma comitiva de
trs carroas, duas com bagagens e escravos, e
outro coche com a baronesa, a menina Beathriz e
Hadassa.
Beathriz estava trajando um lindo vestido de
musselina verde de ampla roda. Seu cabelo estava
preso com duas tranas no alto da cabea e algumas
dzias de cachos que lhe caam sobre o colo, cachos
endurecidos com gua e acar. Sobre os ombros,
um lindo xale de veludo cotel. A saia tinha uma
circunferncia de um metro e oitenta, mas o corpinho
era do mais junto. Ela e a baronesa estavam no mais
lindo traje, mas no definirei o traje da baronesa para
no tomar tempo, porm era tambm um talhe do
mais fino. As saias-bales eram to amplas, tanta
musselina, seda, tafet e veludos, que as duas
ficaram apertadas e quase encobertas por elas.
O trabalho na fazenda havia comeado muito
cedo. Eram bas para c e escravos correndo para l,
a fazenda estava uma grande balbrdia. Beathriz e
Hadassa estavam no toucador, dando os ltimos
retoques no traje. Sua famlia ocupava uma posio
muito alta perante a sociedade e no poderiam se
apresentar em trajes simplrios.
155

Cludio Pereira da Silva

Enquanto Hadassa apertava-lhe o espartilho,


Beathriz dizia:
Aperta! Aperta mais, tenho que chegar a
Petrpolis bem esbelta disse Beathriz, apoiando-se
na cama. Pegue o meu vestido que est em cima
da cama... Por favor, Hadassa.
Sim, Sinh! Disse a escrava, apanhando
primeiramente a saia que, por sinal, era muito
pesada, alm de ser feita com musselina, tinha uma
sobressaia de seda com uma nvea transparncia.
Irei fazer vossa vontade iai, mas oc ir me
prometer que vai comer antes de sair concluiu a
escrava, colocando as anguas e as crinolinas e
depois o resto do traje.
Por que preciso alimentar-me? Pois, com
certeza, se comer mais alguma coisa, o espartilho ir
dilatar-se. E no isso que eu desejo!
A iai ir comer, sim! Ou falarei para a sinh
Isabel e a, com certeza, ela no deixar voc ir.
Alis, qual a me que deseja apresentar sua filha
alta sociedade de Petrpolis com o aspecto
mortificado.
Enquanto a menina Beathriz era assessorada
pela escrava, Isadora era auxiliada pela sinhazinha
Beathriz. Aps duas horas de confinamento no
toucador, as trs jovens partiram para a o salo
principal, onde j eram aguardadas pela baronesa.
Graas a Deus! Pensei que haviam desistido
da viagem! Exclamou a baronesa, assentada em
uma cadeira. Vamos... O cocheiro j nos aguarda no
alpendre.
Sim! Minha me, podemos partir concluiu
Beathriz, apanhando sua capa de veludo e
colocando-a em seu dorso; o chapu e a luva vieram
na sequncia.
A baronesa e as outras duas jovens fizeram o
mesmo e se encaminharam para o alpendre.
156

Mistrios de Um Amor Proibido

Chegando ao alpendre, o escravo que as


serviria de cocheiro sorriu um sorriso meio
desdentado e fez uma leve mesura com o chapu de
palha. Logo depois vieram outros escravos, com os
bas e as valises, que no eram poucas. Um dos
pajens disse:
Permita-me ajud-las a subir no coche disse
Jonas, estendendo a mo. L dentro ficaro mais
confortveis.
Ainda do lado de fora da carruagem, a
baronesa deu algumas recomendaes ao feitor e
criadagem, que ficariam na fazenda. Subiu na
carruagem para ajuntar-se s outras damas, que j
se encontravam em seu interior. Em outras carroas,
iriam os bas e as mucamas de confiana da famlia.
J no interior da carruagem, Isadora disse:
Ser que vossa merc, Beathriz, pode se
afastar um pouco mais para l pois est em cima da
minha saia? Murmurou Isadora, puxando a orla do
vestido.
Pois no, minha prima! Concluiu Beathriz,
afastando-se.
Logo depois a comitiva da Famlia Albuquerque
partiu, era uma carruagem com a famlia e mais
cinco carroas com bagagens e mucamas. Um dia e
meio depois haviam chegado cidade do Rio de
Janeiro, de onde deixaram o coche para seguir a
viagem em um trem. Aquele dia havia sido muito
maante. Por isso, quando chegaram ao camarote,
decidiram jantar ali mesmo. Alis, o camarote era um
primor, e no poderia ser diferente, pois a famlia
Albuquerque era muito prestigiada, e a baronesa
Isabel havia comprado o bilhete do camarote
presidencial.
O camarote era grande e luxuoso, a moblia era
em estilo barroco, tudo era ricamente detalhado. As
paredes eram cobertas com um papel folheado a
157

Cludio Pereira da Silva

ouro, os aparadores e mesas eram feitos em madeira


nobre, trazidos da Frana. As camas, os canaps e as
conversadeiras eram cobertos com um veludo
prpuro composto com fios de ouro, trazido da ndia,
sem contar os acortinados, tanto os que cobriam as
janelas como os que rodeavam as camas, que por
sinal eram de mogno em estilo neoclssico. A cabine
tinha trs quartos, mas todos eram interligados pela
casa de banho e pelo toucador. No salo principal do
camarote, havia um piano de cauda, onde Isadora e
Beathriz intercalavam-se para tocar. Passaram ali
metade da noite, a primeira a se retirar para seu
aposento foi a baronesa. Beathriz e Isadora ficaram
ali at duas horas da manh, logo depois as trs,
partiram para o toucador, pois iam trocar de roupa
para dormir.
Beathriz ajudou Isadora a tirar o espartilho e a
vestir sua roupa de dormir. Para alm das pesadas
cortinas drapeadas que cobriam as janelas do
camarote, a noite caiu, e a luz das estrelas e uma lua
cheia encoberta pela neblina da serra anunciavam
um verdadeiro espetculo da natureza. Dois dias
depois, o paquete havia ancorado na baa de
Guanabara, de l continuaram a viagem em uma
carruagem por cinco horas at Petrpolis.
Na noite da festa, o pao do imperador estava
realmente deslumbrante. Mas horas antes da festa
havia sido um deus nos acuda, desde cedo a
imperatriz e as princesas haviam passado por vrios
tratamentos de beleza usados na poca. A princesa
Isabel estava em um lindo vestido de saia-balo de
cambraia rosa real, estava bem-vestida e bem
penteada.
A noite estava esplndida, a lua estava cheia e
no havia uma nuvem no cu coberto de estrelas
que mais pareciam diamantes. A toda hora novas
carruagens paravam soleira do alpendre real, e
158

Mistrios de Um Amor Proibido

damas e cavalheiros apeavam dos coches cheios de


moas em seus vestidos de saia-balo. Nos sales da
casa real era um tal de rusgo-rusgo de seda,
musselina, cambraia, tafet, organdi, cetim, entre
outros tecidos finos, eram tantas crinolinas, anguas,
tantos saiotes, passando de um lado para o outro,
que o espao ficou debilitado.
O nico espao vago em todo o burgo imperial
era o salo de baile. J os homens estavam em suas
casacas, sobrecasacas, cartolas, entre outras
indumentrias masculinas. Era um burburinho
danado, os embaixadores tratavam de coisas de sua
ordem, as ancis faziam mexerico e se lembravam
da sua poca de mocidade e de seus amores
frustrados, j os mais novos aproveitavam da ocasio
para cortejar e serem cortejados. Os mais velhos
observaram a mocidade e os mais novos
aproveitavam da passageira mocidade para danar e
curtir a vida da melhor forma. Entre os convidados
ilustres da corte estava o baro de Mau e sua
famlia. Marcava oito horas da noite quando Beathriz
saiu de seus aposentos na direo dos sales.
Minutos depois de chegar ao salo, Beathriz j
estava reunida a um grupo de moas, mas seus
lindos olhos azuis no desgrudavam de um canto da
sala; nesse canto, havia um grupo de rapazes, mas
um em especial lhe chamava a ateno. Tanto
Beathriz como o certo mancebo estavam havia horas
trocando olhares.
Aps a ceia, o baile recomeou, a orquestra
comeou a tocar valsas mais animadas e o rapaz
dirigiu-se ao sof, onde estava Beathriz e as filhas de
alguns bares, condes, embaixadores e viscondes.
Aproximando-se da moa, disse:
Com licena, senhoritas? Disse Henrique,
fazendo uma pequena meno.
As moas abriram um enorme sorriso, pois
159

Cludio Pereira da Silva

Henrique era um dos rapazes mais cobiados de


Petrpolis. E uma com enorme entusiasmo disse:
Toda!...
Com licena, mas gostaria de lhes roubar um
pouco vossa amiga!
Naquele momento, Beathriz ficou ruborizada e o
rapaz lhe estendeu a mo e, em um movimento sutil
e delicado, ela recolheu a ampla saia-balo, ergueuse e caminhou para onde o rapaz a levava. O rapaz
ento a conduziu ao meio do salo e com muito
respeito cingiu-lhe sua finssima cintura com a mo
forte e mscula.
Beathriz no sabia se aquilo era verdade ou se
ela estava apenas sonhando, mas viu seu cho
desaparecer diante de seus olhos e sentiu-se como
uma pluma que dana conforme a brisa.
J Henrique sentiu inflamar o seu desejo, a cada
rodopio era uma nova sensao de xtase. De onde
havia sado to bela dama? Ser que uma
divindade, ou uma ninfa sada dos bosques?. No
sei. Mas uma deusa, isso ningum pode negar.
Deusa ou no deusa? Mas sei que uma mulher
que acaba de roubar o meu apreo, o meu corao e
a minha alma. Deusa da minha vida, senhora da
minha alma, por ti torna-me-ei escravo de vossa
vontade. Espero que um dia esteja eu em teu leito
como fiel escravo. Entre uma volta e outra na
dana, Beathriz e Henrique trocaram apenas
algumas palavras e, ao trmino da valsa, Henrique
conduziu Beathriz a um canto da sala e l os dois se
assentaram em um div, e Henrique em um sof.
Henrique um pouco ruborizado disse:
Senhorita, queira me perdoar, mas desde que
te vi no pude deixar de perceb-la, qual a sua
graa?
Beathriz,
envergonhada,
abanava-se
freneticamente com seu leque de madreprola.
160

Mistrios de Um Amor Proibido

Senhor, queira me perdoar tambm, mas


que minha me sempre me disse para no falar com
pessoas que no conheo murmurou Beathriz.
Posso at estar parecendo um pouco estpida,
porm, se minha madre vir est cena, com certeza
brigar comigo. Com licena! Beathriz ergueu-se e
recolheu a ampla saia para voltar ao salo principal,
mas foi impedida por Henrique, que lhe pegou no
brao.
Os olhos se uniram, e Henrique murmurou:
Senhorita, por favor, diga-me apenas o seu
nome.
Se eu disser meu nome, voc me larga?
Sim!
A mantilha do amor cobriu-lhes e um clima de
mistrio tomou conta de seus corpos, pouco a pouco
os lbios foram se aproximando e, quando se deram
por si, j estavam se beijando. No entanto, quando
Beathriz percebeu a situao, empurrou-o e com um
impulso desferiu-lhe uma bofetada, recolhendo a
saia, correu para junto de sua me.
Depois daquela fatdica cena, Henrique tentou
por mais algumas vezes se aproximar da menina,
mas tentativas sem xito por parte de Beathriz. O
resto da noite s o que trocaram foram olhares
amorosos, mas temerosos por ambas as partes.
Beathriz temia a represso da me, Henrique temia a
rejeio dela, os olhares trocados mostravam certo
interesse amoroso.
Pobre Beathriz, no sabia o que fazer diante
daquela cena, alguns sentimentos acabaram
aflorando dentro de ambos, mas principalmente
dentro de Beathriz, que jamais havia sentido aquelas
sensaes estranhas.
As horas passavam, e o sarau s ficava mais
animado, o imperador j havia cantado parabns
para sua filha, a princesa Isabel, que se havia
161

Cludio Pereira da Silva

tornado muito amiga de Beathriz. Durante os dias em


que a baronesa e Beathriz haviam ficado hospedadas
na casa imperial, Beathriz e a princesa Isabel
passearam aps o almoo, bordaram, pintaram,
fizeram compras juntas, entre outras coisas, assim a
amizade havia se solidificado.
Marcava trs horas da madrugada quando o
ltimo convidado partiu. Aps a partida dos
convidados, os hspedes do imperador e a famlia
real decidiram recolher-se, mas, antes de subirem
para os quartos, o imperador dom Pedro II mandou
que todos se reunissem na biblioteca. E assim todos
fizeram: a imperatriz e suas filhas, Beathriz e a
baronesa Isabel, e mais algumas pessoas. Chegando
l, as damas sentaram-se, e os homens ficaram em
seus encalos.
Disse o imperador:
Senhoras e senhores, damas e cavalheiros,
com muita alegria que lhes agradeo por fazerem
este sarau acontecer. Agradeo em meu nome e em
nome de minha famlia, meus fiis sditos, ou
melhor, meus amigos! Mas, alm de meus amigos,
gostaria de agradecer tambm escravaria, pois
sem eles nada disso poderia acontecer.
Todos aplaudiram.
Viva o imperador! Bradou um senhor.
Viva... Gritaram todos.
E, ao trmino, o imperador disse:
Agora creio que j hora de ns nos
recolhermos, pois este sarau ainda no acabou,
amanh faremos um convescote.
Depois do discurso do imperador, todos foram
para seus aposentos.
Aquela noite para Beathriz foi esplndida e,
enquanto tirava a roupa e preparava-se para deitar,
no conseguia tirar Henrique de sua angelical
cabea, caminhou pelo quarto e apoiou-se no umbral
162

Mistrios de Um Amor Proibido

da janela. Oh Deus, ser que esse rapaz o que


Hadassa havia falado, espero que sim, pois lindo.
Caminhou pelo aposento e se assentou em uma
conversadeira e, pegando um livro de Jane Austen,
Emma, que estava disponvel sobre a mesa ao lado
da conversadeira, folheou algumas pginas, mas
acabou adormecendo, todavia acordou horas mais
tarde com muito frio e, colocando o volume sobre a
mesa novamente, correu para seu leito e, fechando o
dossel, dormiu.
Marcava meio-dia no relgio da sala quando o
convescote comeou, no jardim imperial haviam
construdo uma cobertura para acomodar a orquestra
e grande parte dos convidados, aps o almoo,
muitos resolveram passear pelos jardins, outros
decidiram tirar a sesta, mas a maioria continuou
danando. As horas passaram e o convescote
acabou, muitos convidados decidiram retornar para
suas casas no mesmo dia, mas a famlia Albuquerque
da Maia decidiu partir no dia seguinte.
No dia seguinte, a palcio estava uma
amlgama, pois era o dia da viagem da famlia
Albuquerque. O trabalho na fazenda havia comeado
muito cedo. Eram bas para c, e escravos correndo
para l, estava uma verdadeira balbrdia. Beathriz e
sua prima estavam no toucador, dando os ltimos
retoques em seus trajes, pois sua famlia ocupava
uma posio muito alta perante a sociedade e no
poderiam se apresentar em trajes simplrios.
Enquanto
uma
escrava
apertava-lhe
o
espartilho, Beathriz dizia:
Aperta! Aperta mais, tenho que chegar a
Petrpolis esbelta e curvilnea disse Beathriz,
apoiando-se na cama. Pegue o meu vestido que
est em cima da cama... Por favor, Hadassa!
Sim, Sinh! Disse a escrava Hadassa,
apanhando primeiramente a saia, que por sinal era
163

Cludio Pereira da Silva

muito pensada, pois, alm de ser feita com


cambraia, tinha uma sobressaia de seda com uma
nvea transparncia, e depois pegou a blusinha que
fazia par da saia. Irei fazer vossa vontade Iai, mas
oc ir me prometer que vai comer antes de sair
concluiu a escrava, colocando as anguas e as
crinolinas e depois o resto do traje da moa.
Por que preciso alimentar-me? Com certeza,
se comer mais alguma coisa, o espartilho ir dilatarse e no isso que eu desejo!
A Iai ir comer, sim! Ou falarei para
sinhazinha Beathriz, e a com certeza ela no deixar
vossa merc ir. Alis, qual a me que deseja
apresentar sua filha a alta sociedade de Petrpolis,
com o aspecto mortificado.
Enquanto a menina Beathriz era assessorada
pela escrava, Isadora era auxiliada pela prpria
jovem e por outra mucama. Isadora ajudou Beathriz
a colocar as cinco anguas e as crinolinas, depois de
ajud-la a colocar as roupas de baixo, ajudou-a a
colocar o vestido. Depois, como retribuio, Isadora
fez o mesmo por sua prima. Aps duas horas de
confinamento no toucador, as trs jovens partiram
para o salo principal, onde j eram aguardadas pela
baronesa.
Graas a Deus! Pensei que haviam desistido
da viagem exclamou a baronesa assentada em uma
cadeira. Vamos! O cocheiro j nos aguarda no
alpendre.
Sim, minha me, podemos partir! Concluiu
Beathriz, apanhando sua capa de veludo e
colocando-lhe em seu dorso; o chapu e a luva de
pelica branca vieram na sequncia.
A baronesa e as outras duas jovens fizeram o
mesmo e se encaminharam para o alpendre.
Ao chegar ao alpendre, o escravo que as
serviria de cocheiro sorriu, um sorriso meio
164

Mistrios de Um Amor Proibido

desdentado, e lhes tirou o chapu de palha. Logo


depois, vieram outros escravos, com os bas e as
valises, que no eram poucas. Um dos pajens disse:
Permita-me ajud-las a subir no coche disse
Jonas, estendendo a mo. L dentro ficaro mais
confortveis.
Ainda do lado de fora da carruagem, a
baronesa deu algumas recomendaes para o feitor
e para a criadagem que ficaria na fazenda, mas logo
subiu na carruagem para ajuntar-se s outras damas,
que j se encontravam no interior dele. Em outras
carroas iriam os bas e as mucamas de confiana
da famlia.
J no interior da carruagem, Isadora disse:
Ser que vosmec, Isadora, pode se afastar
um pouco mais para l, pois est em cima da minha
saia? Murmurou Beathriz, puxando a orla do
vestido.
Pois no, minha prima! Concluiu Isadora
afastando-se.
Logo depois, a comitiva da famlia Albuquerque
partiu. Era uma carruagem com a famlia e mais
cinco carroas com bagagens e mucamas. Um dia e
meio depois haviam chegado cidade do Rio de
Janeiro, de onde deixaram o coche para seguir a
viagem em um trem. Aquele dia havia sido muito
maante, por isso, quando chegaram ao camarote,
decidiram jantar ali mesmo. Alis, o camarote era um
primor, e no poderia ser diferente, pois a famlia
Albuquerque era muito prestigiada, e a baronesa
Isabel havia comprado o bilhete do camarote
presidencial.
O camarote era grande e luxuoso, a moblia era
em estilo barroco, tudo era ricamente detalhado. As
paredes eram cobertas com um papel folheado a
ouro, os aparadores e mesas eram feitos em madeira
nobre, trazidos da Frana. As camas, os canaps e as
165

Cludio Pereira da Silva

conversadeiras eram cobertas com um veludo


prpuro composto com fios de ouro, trazido da ndia,
sem contar os acortinados, tanto os que cobriam as
janelas como os que rodeavam as camas, que por
sinal eram de mogno em estilo neoclssico. A cabine
tinha dois quartos, mas todos os quartos eram
interligados pela casa de banho e pelo toucador. No
salo principal do camarote, havia um piano de
cauda, onde Isadora e Beathriz intercalavam-se para
tocar. Passou ali a metade da noite, a primeira a se
retirar para seu aposento foi a baronesa. Beathriz e
Isadora ficaram ali at duas horas da manh, logo
depois as trs partiram para o toucador, pois iriam
trocar de roupa para dormir.
Beathriz ajudou Isadora a tirar o espartilho e a
vestir sua roupa de dormir. Para alm das pesadas
cortinas drapeadas que cobriam as janelas do
camarote, a noite caiu, e a luz das estrelas e uma lua
cheia encoberta pela neblina serra apresentavam um
verdadeiro espetculo da natureza. Cinco dias
depois, o trem havia parado na estao de Petrpolis,
de l continuaram a viagem em uma carruagem por
duas horas at Petrpolis.
A casa ficava a dois passos do palcio, por ser
bem prximo ao burgo do imperador, teria que ser
mesma altura, para merecer a posio que possua.
Muito bela e luxuosa por fora, no perdia para
nenhuma casa da corte. A frente apresentava um
imenso chafariz e um belssimo jardim, a marca
registrada do jardim eram as belssimas rosas
vermelhas, que davam ainda mais glamour ao local.
Alguns passos aps o jardim, havia uma imensa e
suntuosa escadaria de mrmore, que levava a um
lindo alpendre, todo enredado de cristal.
O alpendre era mobiliado com peas de mogno
e marfim, ao lado de uma janela um canap, uma
conversadeira e uma mesa de centro. Do lado direito
166

Mistrios de Um Amor Proibido

do alpendre, um aparador de mogno com mrmore


indiano. Aps o alpendre, um hall em estilo
neoclssico, que apresentava um lindo lustre de
duzentas velas, um aparador com um castial e uma
belssima cortina de seda branca com band de
veludo adamascado. O restante da casa era
mobiliada e decorada no estilo mais requintado que
j se viu em Petrpolis. Mesmo a casa sendo grande,
bela e luxuosa, a famlia Albuquerque resolveu
estalar-se na casa da mais nova componente da
famlia. A casa de gata havia sido escolhida no
pelo luxo que tambm no era um dos menores, mas
sim porque a casa da
baronesa estava uma
balbrdia, pois j haviam se iniciado os preparativos
para o sarau. Leopoldina, antes de sua morte, havia
deixado uma grande herana para a filha.
No dia seguinte, o sol nem havia nascido no
horizonte, e Beathriz j estava acordada. A bela
donzela havia acordado, naquela manh, com o
esprito desbravador, por dias havia estado triste
pelo ocorrido em outro sarau, mas j estava mais
conformada, sabia que a vida a recompensaria mais
adiante.
Beathriz estava ainda deitada em sua cama,
mas manteve o acortinado fechado. Mesmo com o
esprito alegre, no queria ser incomodada. Seu
esprito voava por lugares jamais imaginados,
parecia flutuar sobre seda e plumas de ganso. Uma
batida na porta fez com que seu raciocnio
paralisasse por alguns instantes.
Rapidamente a menina ergueu-se da cama e
correu para o div, onde pegou seu robe e, antes de
atender a porta, deu uma passada de olhos pela
janela, no alpendre da manso uma escrava varria-o
e outra varria o ptio. O dia ainda estava um pouco
nublado, mas o sol j dava o ar da graa. Logo
depois ela correu para a porta.
167

Cludio Pereira da Silva

Ao abrir a porta, deparou-se com Oflia, a


escrava invejosa que logo foi falando:
Bom dia, nhanh! Disse Oflia, j curada das
chibatadas, mais ainda arrogante. A sinh, vossa
me, mandou que eu viesse ajud-la a vestir-se, pois
todos esto l embaixo tua espera, tomando o caf
da manh. E s falta a iai!
Assim que terminou de falar, Beathriz autorizou
sua entrada. E partiu para a penteadeira, l se
assentou e foi logo arrumando as longas madeixas,
enquanto isso a escrava lhe preparava o traje, depois
de fazer o penteado levantou-se da poltrona e
caminhou em direo da cama, apoiando-se em seu
mastro. Suas primeiras palavras foram:
Amarre o meu espartilho. Aperte at minha
voz ficar ofegante, por favor!
E essas foram as nicas palavras que Beathriz
trocou com a escrava. Depois disso, um enorme
silncio pairou sobre aquele aposento. Oflia sentiuse inferior quela situao e fez com que seu dio
aumentasse ainda mais pela famlia. A escrava
estava esperando o menor deslize da famlia ou a
melhor oportunidade para dar o bote. Oflia era pior
que uma cascavel ou uma jararaca. Desde que
Beathriz havia nascido, a escrava nutria um dio
mortal pela moa, no se sabia o motivo, mas, nas
senzalas de Sant Anna, os negros comentavam que
Oflia era filha de
Joaquim com uma negra j
falecida. A baronesa Isabel nunca ficou sabendo
dessa historia, pois os negros da fazenda fizeram
pacto de silncio.
Ai, ai! Desse jeito vai me matar, sua negra
maldita! Disse ela j sufocando. Aperte isso com
mais cuidado, ou lhe mandarei para o tronco. E tu
sabes que odeio castigos contra escravos. Sabes
muito bem que sou abolicionista, assim como meu
av. Mas creio que vossa merc nem se recuperou e
168

Mistrios de Um Amor Proibido

j est com vontade de voltar para l!


Perdoe-me! Concluiu Oflia, com um ar de
deboche e com chocarrice. No fiz por mal, minha
iai.
Que ar debochado esse?!
Desculpe-me repetiu a escrava.
Meia hora depois, a moa j estava pronta e
desceu a deslumbrante escadaria da casa de sua
prima gata. No salo principal, uma negra espanava
e lustrava os mveis, pela casa. Era um anda-anda
de escravos limpando e trocando as velas dos lustres
e candelabros que iluminavam a casa noite. Na
sala de jantar, a anfitri e as outras convidadas j
estavam fazendo o seu desjejum.
Bom-dia! disse Beathriz, aproximando-se da
mesa.
Um escravo bem robusto afastou a cadeira para
a moa se sentar.
Por que demoraste, minha prima?! Exclamou
gata, acenado para que uma mucama servisse a
moa.
A mucama a serviu e se retirou da sala.
Sabes, minha me disse Beathriz com o
talher j nas mos , Oflia, a escrava que a senhora
mandou para me ajudar, afrontou-me novamente.
Creio que ela queira ir para o tronco outra vez!
Deus do cu! Exclamou a baronesa. Ser
que aquela rapariga no aprendeu com a outra lio,
ficou um dia no tronco e parece no ter aprendido
nada!
Ah, minha me, no aguento mais as indiretas
e os olhares de Oflia!
Liga no, isso inveja! Alm disso, quem
nasce na casa-grande nunca deve descer senzala.
Ao contrrio no posso dizer o mesmo!
A conversa e o desjejum iam de vento em popa
at que um pajem adentrou na sala. O negrinho era
169

Cludio Pereira da Silva

escravo da casa, mas estava com um bilhete nas


mos que logo fora entregue nas mos de gata.
Quando gata pegou o bilhete, assustou-se, pois
tinha o braso da famlia Pereira.
Meu Deus! Disse gata, assombrada. Um
bilhete como o braso da famlia Pereira! O que a
famlia Pereira pode querer comigo?
Abriu o bilhete e, rapidamente, passou os olhos
sobre a descrio.
O que diz, minha prima? perguntou Beathriz.
Aps terminar a leitura, gata dobrou o papel e
disse:
Ufa! Ah, ah, ah! Achei que era coisa pior.
apenas a baronesa Amlia Pereira nos convidando
para tomar ch, amanh tarde concluiu gata,
erguendo-se da cadeira. Espere a, moleque!
gata partiu para o interior da casa, mas logo
retornou com um envelope nas mos.
Tome, moleque! Entregue este bilhete nas
mos da baronesa.
E logo o pajem partiu.
E a, minha sobrinha, o que voc respondeu
murmurou Isabel.
Respondi que vamos!
Allah! O que ser de mim? Nem traje
apropriado tenho para apresentar-me, perante as
damas dessa terra! Exclamou Beathriz, erguendose da mesa.
Que conversa essa, menina? Cad as roupas
que comprara em Sant Anna? Disse a baronesa,
abanando-se exaustivamente, como sinal de
reprovao.
Eu sei, minha me! Mas as damas daqui esto
bem mais adiantadas na moda que o povo de Sant
Anna das Rosas.
No seja por isso, mando agora mesmo um
escravo chamar a modista.
170

Mistrios de Um Amor Proibido

No... Minha sobrinha, no faa isso! Isso


apenas capricho de vossa prima.
No, minha tia, ser um prazer! Assim
retribuirei a vossa cortesia de ter me recebido mui
bem em vossa casa.
gata ento mandou chamar um escravo que
logo partiu em busca da modista mais famosa da
regio. A modista era dona Carola, a mais bem
requisitada da regio de Petrpolis. Dona Carola era
a que fazia os trajes da famlia real. Assim como
Margarida, Carola era uma das melhores modistas de
todo o Imprio do Brasil. Apenas as duas conseguiam
seguir os moldes da moda de Paris. Carola era uma
velha matrona de olhos azuis, cabelos da cor do
trigo, pele alvssima e com um leve sotaque irlands.
Apesar de toda idade que tinha, conservava a
jovialidade na face. Amvel e extrovertida, o riso
sempre estava impresso em seu rosto.
Marcava pouco mais de dez horas da manh
no relgio da sala, quando o desjejum terminou. Aps
o trmino do caf da manh, gata conduziu
Beathriz aos seus aposentos. Assim que as duas
adentraram a alcova, gata foi logo abrindo o
armrio e o ba, dizendo:
Qual desses mais agrada a vs? Perguntou
ela, apontando para o guarda-roupa.
Beathriz parou deslumbrada perante o armrio
e, balbuciando quase sem voz, disse:
No, no... Sei. Pois todos so to belssimos!
Pode escolher qualquer um! Creio que aquele
ali combinar com os seus olhos! Disse gata,
pegando o vestido do armrio.
Posso mesmo escolher qualquer um?
Exclamou Beathriz, passando a mo em um vestido
de seda indiana.
Claro que sim, minha querida.
Ento escolho esse lils royal.
171

Cludio Pereira da Silva

Bom gosto, minha prima! Esse seu agora.


Beathriz apanhou o vestido e partiu em direo
da penteadeira, pois desejava ver como o vestido lhe
cairia, mas, como o convite era para o dia seguinte, a
modista no teria tempo para coser um vestido novo.
gata ento resolveu dar-lhe um dos vestidos que
no havia usado ainda, mas, como Beathriz era mais
nova e de estatura mediana, o vestido teria que
passar por alguns ajustes, esta era a serventia de
dona Carola. Aps escolher o vestido, gata e
Beathriz encaminharam-se at o corredor e assim
sucessivamente para a escadaria, descendo-a, foram
ter com as outras damas que se encontravam no
jardim da manso.
Meia hora depois, Carola, a modista, havia
chegado, e todas j a esperavam no toucador de
gata, provavam os trajes que usariam no ch e no
sarau. Carola entrou no trocador acompanhada de
uma moa aparentando ter quinze anos e bemvestida. Ao entrar, Carola disse:
Boa-tarde! Disse a modista, com uma valise
nas mos. gata, minha amiga, por que me
chamaste aqui?
Chamei-a, pois preciso que faa uns ajustes
em um de meus vestidos, para que essa mocinha
aqui possa usar!
Que infanta linda! Disse Carola.
Obrigada! Agradeceram as irms, em
conjunto.
Carola pegou um banquinho e o vestido que
estava nas mos de gata.
Vem c, mocinha! Exclamou Carola. Suba
neste banco!
Apoiando-se na modista, Beathriz subiu.
Vejamos o que ser preciso mudar nesta
roupa! Carola pegou o metro e alguns alfinetes,
chamando a jovem que a acompanhava e disse.
172

Mistrios de Um Amor Proibido

Vem c, Elo! Preciso que anote as medidas.


Pois no, senhora disse a menina.
E assim comeou a medio e a modificao da
roupa.
Marque-a! Trinta de cintura Ento se
dirigindo a Beathriz, Carola disse: A roda da saia
tem por volta de um metro e noventa de largura.
Devo deixar ou reduzir a roda?
No, por favor! Deixe assim, pois est na
moda em Paris concluiu a menina.
Aps tirar todas as medidas, Beathriz e as
outras retiraram-se do aposento deixando a modista
e sua ajudante trabalhando. Carola sentou em um
canap junto a uma janela, j Elo acomodou-se ao
seu lado e logo comearam a coser o vestido. Uma
hora depois do almoo, as trs damas partiram
novamente para o jardim. J a baronesa Beathriz
decidiu ir cozinha ajudar as escravas a preparar o
cardpio daquela noite.
As jovens caminharam e caminharam por volta
de vinte minutos at que Beathriz decidiu deter-se
junto a uma rvore e ao leito de um ribeiro, pois se
sentiu cansada, ento arregaou um pano que trazia
nas mos havia horas debaixo de um ip-roxo. E sem
nenhum preconceito e sem pudor algum, assentouse margem do riacho. Seu peito em um ritmo
frentico pulsava no regao do vestido, seu seio
difano mostrava-se angelical e ao mesmo tempo
profano. Como poderia um anjo ter tamanha
sensualidade?!
O ar clido fazia com que a menina perdesse o
ar, e sua face ficava mais rubra que o manto do
imperador. Pssaros voejavam sobre ela como se
estivessem admirando o nascimento de Vnus. Ao
sentar-se, sua saia abriu-se em uma imensa roda.
Como o calor estava muito forte, a menina abriu sua
bolsinha e pegou um leque de madreprola.
173

Cludio Pereira da Silva

E com o leno que trazia a mo, a menina


umedecia-o na lmpida gua do riacho, que corria
mansamente, e passava em torno do rosto e do colo.
Seu pensamento voava, pois estava com um
exemplar de Romeu e Julieta. Ao seu lado, um
coelhinho branco saltava de um lado para o outro. Ao
longo do ptio, junto porta dos fundos, uma
escrava, j de cabelos alvejados pelo tempo e digna
de respeito, observava-a e dizia para si mesma:
esta moa ainda sofrer muito por causa de seu
corao.Aps os dois longos meses que passaram na
casa de gata, havia chegado a hora de voltar para
casa.
Pela janela da locomotiva Baronesa, a jovem
Beathriz Emmanuelle olhava e via a paisagem passar
rapidamente, j estando entediada, pois sempre era
a mesma coisa. Montes e mais montes de campinas,
cafezais, engenhos e campinas floridas. Aqui e acol
s vezes aparecia a fronte de uma linda fazenda;
seno era apenas aquilo. Milhas e milhas, levando-a
para longe de Petrpolis.
Agitou-se no banco.
O vestido de musselina em tom lils que havia
ganhado de gata e transformado por dona Carola
cara-lhe muito bem. Tomara conta de todo o banco,
cabendo apenas ao seu lado, seus mimos como sua
capa e sombrinha. Trazia nas mos um volume do
livro Razo e sentimento, da autora Jane Austen, uma
de suas autoras favorita. Para ela Jane era o cone de
feminilidade e de fora feminina. Parecia delirar a
cada pgina que percorria com os olhos, um
sentimento que deixava transbordar pelos olhos. O
que ela mais desejava era que aquela viagem
terminasse rapidamente. Horas se passaram, e o
trem comeou a diminuir a velocidade, prxima
parada, a estao de Sant Anna. Entusiasmada com
a leitura, Beathriz no havia percebido o avanar das
174

Mistrios de Um Amor Proibido

horas.
Beathriz... Bya... Senhora Emmanuelle dizia
Hadassa.
Bya estava to entretida com o livro que s
percebeu os cutuces da escrava quando ela a
beliscou.
Ai!... Ai... O que foi isso, Hadassa? Murmurou
Bya assustada.
Vamos, sinh, j chegamos estao de Sant
Anna.
Poxa, s isso? Quase arrancou o meu brao...
A senhora parecia estar sonhando, debruada
sobre esse livro a...
Ah, Hadassa. Tu no sabes o que sonhar com
o amor perfeito...
T, sinh. Depois a senhora me conta, mas
agora temos que sair!
Beathriz colocou a capa nas costas, recolheu
suas coisas e seguiu a escrava, que a conduziu ao
coche, onde estava a baronesa, aguardando-as. A
porta da carruagem foi aberta, e Beathriz entrou sem
esperar ajuda, assentando-se ao lado da baronesa
Isabel.
Nossa...! Que bela acrobacia, minha filha!
Espero que no faa mais isso. Comportou-se agora
como um macho murmurou a baronesa. Deves
honrar o estigma das mulheres de nossa famlia de
lindas e educadas.
Ah, minha me... Poupe-me desta hipocrisia,
estamos somente ns aqui! Quem h de reparar
nisso?... Dizia Beathriz, enquanto se acomodava.
No estamos em nenhum salo de baile da nobreza
para que eu me comporte como essas idiotas que s
sabem dizer sim... No... Sim... No, como fazem
essas idiotas que vivem para arrumar marido.
Olha como fala comigo, mocinha! Sou sua
me e minha obrigao mandar, e a sua
175

Cludio Pereira da Silva

obedecer...
Percorreram todo o caminho de volta sem trocar
uma palavra sequer. A baronesa estava indignada
pela forma com que havia sido tratada pela filha.
Porm Beathriz pensava que aquilo tudo ali no
passara de um grande mal-entendido; em outras
circunstncias, jamais levantaria a voz para sua me.
Os nervos estavam exaltados e os sentimentos flor
da pele.
Assim que chegou fazenda, o desejo maior de
Beathriz era tomar um banho, e assim o fez. Beathriz
se recolheu ao silncio de sua casa de banho e,
durante algumas horas, manteve-se submersa em
uma tina de gua quente. Bya saiu da tina, enxugouse e vestiu uma roupa no muito confortvel, um
vestido de saia-balo de cetim na cor amarelo-ouro,
trazia na cintura uma faixa de veludo rosa que lhe
cingia perfeitamente a cintura donairosa. Novamente
tranquila, pensou em cavalgar um pouco pelas
campinas, ou quem sabe caminharia at a casa do
preto velho, que ficava junto senzala, para tomarlhe alguns conselhos.
Desde
muito
nova,
Beathriz,
quando
preocupada ou temerosa, corria ela aos braos de
uma negra j velha, esposa desse tal preto velho.
Negra que havia visto cinco geraes da famlia
Albuquerque vir ao mundo. Era como se aquela
senhora lhe trouxesse paz e lhe desse bons
conselhos. A baronesa no gostava muito das idas de
Beathriz casa de tapera dos velhos, mas isso no a
impedia. Era s aparecer um problema, que l estava
Beathriz jogada aos ps da negra.
Desceu a escadaria principal na ponta dos ps,
temerosa por ser descoberta por sua me, que
certamente a impediria de sair. Passou pela ala norte
da fazenda e encontrou algumas negras que varriam
e espanejavam os mveis. Passou por um, dois e trs
176

Mistrios de Um Amor Proibido

sales. Dirigiu-se para os fundos, pois pelos fundos


chegaria ao ptio, onde estavam os edifcios
acessrios, como a senzala, o curral e a cocheira.
Diminuiu os passos, quando ouviu vozes que
vinham de um quartinho. Era o feitor e uma negra
que se entregavam a luxrias em plena luz do dia e
diante de todos. Com ps de algodo, passou sem
ser notada pelo maldito e, assim que se afastou do
quartinho, aumentou os passos; os mimosos
pezinhos ficaram ligeiros e percorriam como o vento
os tacos do cho. Ao final do corredor, Beathriz
avistou Hadassa, que estava em p sobre os umbrais
da porta e de costas para a cozinha, olhando o vai e
vem dos escravos no ptio. Esperou algum tempo at
o movimento diminuir consideravelmente no ptio.
Ento se aproximou da escrava e disse:
Venha comigo, Hadassa!
Sim, sinh, mas aonde a senhora vai, para que
eu possa avisar a sua me...
No, ests louca... De dizer minha me
aonde vou?! Disse Beathriz Emmanuelle indignada.
Siga-me e no faa pergunta! Pois recebeste tua
liberdade, mas no est livre completamente.
Hadassa a seguiu. Primeiro as duas passaram
pelo imenso ptio onde eram secadas as sacas de
caf; depois percorreram a parte inferior da senzala
at chegarem ao curral, onde Beathriz selou seu
cavalo comum o Sio e deu outro a negra, que fez
o mesmo. As duas saram do curral, passaram na
casa do negro velho, onde Beathriz tomou alguns
conselhos e partiram...
Com a viso turva, Beathriz Emmanuelle
percorreu todo o ptio para ver se via algum; ento
montou no cavalo e saiu aos galopes pela plancie,
desmontando minutos depois, diante do abismo
aonde gostava de ir. Lugar de onde podia-se ver toda
a fazenda; de l do alto a menina sentia-se mais
177

Cludio Pereira da Silva

prxima do pai, via a grandeza de tudo que havia


sido construdo durante sculos por sua famlia.
Uma chuva torrencial comeou a cair sobre toda
a fazenda, a jovem tentou se esconder sobre a copa
de uma rvore, mesmo j estando molhada. Ento
uma densa cortina de nvoa levantou-se sobre toda
a plancie, parecia ser uma coisa irreal e tenebrosa.
Atravs daquele nevoeiro, a pobre avistou uma
silhueta que se assemelhava de seu pai. A silhueta
foi se aproximando.
Ah, sinh, j estou com medo!... Disse
Hadassa, enquanto se escondia atrs do tronco.
Cala-te... Deve ser meu pai, querendo me
dizer algo.
Vou gritar, sinhaninha...
Se gritar... Arranco-lhe a pele, no tronco!
Ah, sinh. Eu estou com medo...
Medo de qu? Gente morta no faz mal!
A silhueta foi se aproximando e com ela uma
voz grave e fantasmagrica.
meu pai, no disse, Hadassa. ele...
A voz dizia:
Minha filha... No tenha medo de enfrentar
tudo o que h de vir porque eu estarei contigo! E,
dizendo essas palavras, a sombra sumiu. Como em
um passo de magia, tudo voltou a ficar como estava,
o cu se tornou lmpido novamente.
Beathriz montou novamente em seu cavalo e
voltou para casa aos trotes. Assim que chegou
fazenda, a jovem desmontou e subiu as escadas do
alpendre em uma ligeireza sem igual. Passou pelos
sales e subiu a escadaria principal, indo assim atrs
de sua me.
Me, me... Dizia ela, enquanto corria pelos
corredores.
A baronesa estava em um dos quartos, Beathriz
abriu as portas e entrou atnita.
178

Mistrios de Um Amor Proibido

O que foi, menina?


Eu vi...! Eu vi...
Viu quem ou o qu?
Meu pai!
Que seu pai o qu? Ele est morto h muitos
anos. Para de besteira, menina disse a baronesa
rindo. Isso que d ficar andando com esses
negros?! Voc voltou a ir casa de dona Sebastiana?
Sim. Por qu?
J no lhe disse que no a quero l?...
T bom, minha me! J que a senhora no
acredita, deixe-me ir para meu quarto.
Beathriz saiu do quarto, fechando a porta atrs
de si, deu alguns passos e entrou no seu quarto,
trancando-se
l.
Estava
ela
atarantada
e
sobressaltada. O que seu pai queria dizer-lhe com
aquelas palavras?
Durante toda a noite, Beathriz conservou-se
olhando para fora da janela. Era j final de
madrugada e havia horas que escravos deixavam
senzala para ir ao cafezal. Bya, porm, manteve-se
ali sentada beira da janela em um canap. Estava
pensativa.
Uma batida na porta a fez desorganizar seus
pensamentos, a porta abriu-se e Hadassa entrou.
Sinh...
Oi!
O que a senhora faz acordada a essa hora?
Que horas so?
Cinco horas.
Meu Deus! Passei a noite inteira acordada?!
Prepare meu banho. No dormirei mais, desejo
cavalgar um pouco.
A tina fora preparada e na cozinha a gua foi
aquecida. Beathriz entrou na tina, banhou-se.
Hadassa ajudara-a a tomar banho e a pentear-se.
Aps algum tempo dentro da tina, Bya saiu,
179

Cludio Pereira da Silva

enxugou-se, vestiu um vestido de tafet rosa, deitou


sobre o dorso um xale, na cabea um chapu e nas
mos uma luva de pelica. Ao trmino da preparao,
desceu pela escada de servio, foi cozinha, passou
pelo ptio, chegando assim estufa de rosas.
Caminhou entre os arbustos e deteve-se a um canto.
Ficou ali alguns minutos, saiu caminhou at a capela,
l fez suas preces e retornou fazenda, perto da
hora do desjejum.
Sentada do lado esquerdo da mesa, Beathriz
terminou de comer, recostou-se no espaldar da
cadeira e avaliou os que se encontravam na sala de
jantar. A baronesa Isabel sentava-se cabeceira.
Isabel era uma pessoa desagradvel e melanclica
com sua poro na existncia. Desde que se casara
com o falecido baro tornara-se amarga e
desgostosa da vida, seu humor era cido e um
sorriso em seus lbios era exceo.

180

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XIII
O passado vem tona

Durante todo aquele dia Beathriz manteve-se


trancada na biblioteca e sara de l apenas para
tomar caf e almoar, quando terminava as
refeies, regressava para seu aconchego. Era na
biblioteca que adorava se esconder sempre que
estava atordoada e precisando de um escape mental,
corria para l e trancava-se, ficando horas e horas
mergulhada em livros de poesia, romances nacionais,
estrangeiros e folhetins que saam semanalmente
nos jornais e revistas de moda.
Ela tambm mantinha um trabalho social na
fazenda, havia feito uma espcie de escolinha, para
que pudesse ensinar os negros a ler e escrever, o
que era proibido para a poca. Ainda mais aps as
revolues escravistas que aconteceram em alguns
pases e nas prprias fazendas vizinhas.
L estava Beathriz sentada em um canap. Nas
mos trazia um livro e a seus ps uma negrinha que
tinha por volta de quinze anos e estava aprendendo
a escrever. A menina parecia atnita com as palavras
que provinham da boca de sua senhora.
Oh, sinhazinha, que palavra bonita oc est
lendo! dizia a negra a Beathriz. Isso tudo est
escrito a nesse livro?
Est sim! Disse a mocinha, enquanto trocava
de pgina.
181

Cludio Pereira da Silva

E tambm as memrias gloriosas,


Daqueles reis que foram dilatando
A f, o imprio, e as terras viciosas...
Ao trmino da leitura, Beathriz disse:
Est vendo que coisa mais linda?! Indagou
ela a negra.
- mesmo, sinh. De que livro a sinh tirou
isso?
- Os Lusadas, de Lus de Cames. lindo, no
?
O ferrolho da porta moveu-se, trazendo uma
nova personagem ao mbito de nossa mocinha.
Tratava-se de um jovem chamado Francis, um guapo
moceto, afilhado do falecido baro, pai de Beathriz.
Francis era alto, esguio, de pele alva, olhos verdes,
cabelos aloirados. Trazia na face a beleza da
juventude, tinha por volta de vinte e quatro anos.
Havia chegado havia poucos dias da Frana, onde
fora estudar. Tinha o esprito dobre era arrogante e
prepotente. Conhecido por seus atos, atos que
cometia com os escravos.
Ainda quando era infante, foi reconhecido como
noivo de Beathriz, a quem havia sido lhe entregue a
mo como noiva. Porm, Bya nunca havia-lhe dado a
esperana de um futuro casamento. Beathriz
conhecia bem sua devassido.
- Bonjour, miss. Excuse me lady disse o rapaz,
enquanto entrava na biblioteca.
A escravinha no estava entendendo nada.
Ento perguntou a sua senhora:
- O que o nhonh est dizendo?
- Bom dia, senhorita... Com licena? isso que
esse rapaz est dizendo, minha cara disse Beathriz,
enquanto olhava para a escrava.
Assim como Francis, boa parte dos jovens da
alta sociedade sabia falar o francs e o ingls
fluentemente.
182

Mistrios de Um Amor Proibido

- bonito ouvir ele falar assim! Mas muito


estranho, pois eu no entendo.
- Por favor, manquer, pea para que essa
esclave saia, pois preciso falar com thou.
- Por favor, Rose, saia murmurou Beathriz.
A escrava levantou-se do cho onde estava e,
com muita educao, saiu, deixando os dois a ss.
Ocs me deem licena disse a escrava,
enquanto fechava a porta.
Toda... Respondeu mutuamente o casal.
A negra caminhava em direo porta;
entretanto, quando se virou para fechar a porta da
biblioteca, uma voz a impediu de terminar o ato,
dizendo:
Por favor, v cozinha e mande tua me
preparar um refresco de manga. Use as mangas que
ns duas recolhemos hoje de manh. E traga
tambm amanteigado.
Sim, senhora respondeu a negrinha,
enquanto fechava a porta. A negra saiu, deixando os
dois sozinhos.
Ora... Ora! O que vossa merc est fazendo
aqui? Tu no estavas na Frana?! Indagou Beathriz,
enquanto caminhava pela biblioteca.
Ora... Pelo jeito que me recebeu no deve ter
se esquecido de mim. Acredito que ainda sente falta
de nossos beijinhos s escondidas no orquidrio.
Ah... Que atrevimento esse, meu rapaz! No
sou mais aquela menina de outrora. Agora j sou
uma mulher crescida. E, diante do decoro, voc no
deve falar assim comigo. Se continuar com essas
palavras evasivas, irei queixar-me a minha madre.
No vs que no sou mais aquela menina que
andava arrastando os cueiros por a? Respeite-me...
Respeite-me, seu atrevido Beathriz ergueu a mo
para bofete-lo, mas no seguiu com o seu plano.
Nossa... Nossa! Murmurou Francis,
183

Cludio Pereira da Silva

sarcasticamente. Pelo modo que fui recebido, at


parece que estou falando com uma pura e virginal
dama.
Olha o que vais dizer! Posso no ter pai nem
irmo vares, mas sei muito bem me defender. E
pode ter certeza de que eu no hesitarei em usar o
que eu aprendi no convento para me defender de
poltres, como voc murmurou Beathriz,
ferozmente. Achei que voc, voltaria melhor da
faculdade de Paris e de Coimbra. Mas pelo jeito
voltou foi pior!
Oh... Oh. Desculpe-me, mas eu no sabia que
eu estava me dando com uma pura donzela.
Beathriz ergueu a mo e deu-lhe um tabefe e,
indignada, disse:
Seu poltro, desgraado. Voc no est falado
com uma meretriz, mulher-dama, com que voc est
acostumado a tratar nas tabernas em que tu viveste.
Eu sou senhorita de famlia e exijo respeito, ou irei
milcia denunciar-te por constrangido uma dama.
Maldito... Amaldioado... Saia daqui, ou irei chamar o
feitor e mandarei enxot-lo daqui!
Desculpe-me. Eu vim aqui apenas para te ver
disse Francis, vermelho e sem graa. E sou
recebido dessa forma.
Ah, meu amigo, viu como voc chegou,
falando comigo?!
Des... Desculpe-me, mas eu pensei que voc
fosse a mesma de outrora. Aquela de quando ns nos
beijvamos... L detrs do orquidrio e cpula de
vidro, onde ficam as rosas.
Isso passado e quem vive de passado
museu. No me lembre desse passado funesto que
vivi contigo. Agora eu estou apaixonada por outro.
Outro?... Como assim? Voc no disse que iria
me esperar?
Disse?
184

Mistrios de Um Amor Proibido

Francis ficou surpreso com aquela revelao. Ele


passou a mo no rosto e caiu atnito sobre a
marquesa.
Por que tanta surpresa? No estou
entendendo nada. Ha... Ha... Ha... Ha... Voc achou
mesmo que eu iria te esperar todos esses anos. Ah,
meu amigo!
Sou eu que no estou entendendo nada, pois
estou aqui a pedido da baronesa, minha tia disse
Francis.
Minha me? O que ela tem a ver com isso?
Indagou Beatriz.
Voc no sabe?
No sabe o qu?
Sua madre me trouxe aqui para que ns
pudssemos nos casar.
Casar? Beathriz teve uma vertigem e
desmaiou.
Francis, assustado, foi porta e, abrindo-a,
comeou a clamar:
Socorro... Socorroooooo!
Logo apareceram algumas negras e a baronesa
no fim do corredor.
O que foi? Indagou a baronesa.
V... Venham, pois Beathriz desmaiou.
A baronesa e as escravas correram para acudir
a moa que estava cada sobre um canap. Beathriz
estava de certo modo estendida, parecia estar
morta, mas no passava de um mero desmaio ou
faniquito de senhoritas. Tudo parecia bem, ento
uma escrava correu at a cozinha e apanhou um
vidro que continha lcool e ervas com cnfora, saio,
arnica e outros.
Beathriz no demorou muito para recobrar os
sentidos e, assim que o fez, foi logo reclamando com
sua me.
Por favor, queiram se retirar, pois preciso
185

Cludio Pereira da Silva

conversar com minha me sozinha balbuciou a


moa, enquanto erguia-se do canap.
Os escravos saram e Francis os acompanhou.
Com licena, minha tia. Com licena, minha
prima! Murmurou ele, enquanto fazia uma leve
mesura. E logo aps os comprimentos, Francis saiu,
fechando a porta na sequncia.
A baronesa caminhou pela biblioteca, enquanto
mantinha o olhar fixo na filha que estava assentada
sua frente e de braos cruzados sobre a ampla saiabalo.
Senhora minha me, eu preciso saber que
histria essa de trazer Francis de Paris para se
casar comigo?
Mas quem te disse isso? Indagou a baronesa.
O prprio Francis.
isso mesmo! Francis veio de Paris para se
casar com voc. Ou voc prefere ser enclausurada
em um convento?
Nem um, nem outro. Prefiro me casar com
aquele que eu escolher para ser meu marido.
Impossvel... Impossvel, mocinha. Voc no se
esquea de que voc nasceu no sculo XIX. E nessa
poca quem escolhe os maridos so os pais. Mas,
como voc no tem mais pai, sou eu sua tutora e
me legal, por isso sou eu quem escolhe o teu
marido, e assim ser. Eu escolho, e voc se casa!
Beathriz, ouvindo as palavras que saam da
boca de sua me, proferiu indignada:
No... No... E no... Definitivamente, no. Eu
me casarei com aquele que eu escolher para ser meu
marido. Sei que lhe devo obedincia, mas isso no
significa que sou tua escrava. Sou um ser humano e,
como tal, tenho o direto de escolher e de aceitar, ou
no, uma situao vociferou Beathriz, com a clera
estampada na face. Ah, mais uma coisa, antes que
eu me esquea. Se preciso for, irei morar no bordel
186

Mistrios de Um Amor Proibido

da cidade e virarei meretriz, mas no me submeterei


a essa imundcie que a alta sociedade diz ser o certo,
pois cada um sabe o que melhor para si. Posso ter
nascido mulher, mas no sou uma pea que se
vende assim. Creio em Deus Pai que haver de ter
um dia em que ns, mulheres, seremos tratadas
como os homens. A baronesa soltou uma
gargalhada. E Beathriz continuou seu raciocnio: Sei
que ainda ns, moas, no teremos de nos
preocuparmos com o que a sociedade vai achar,
quando quisermos mostrar o colo antes das trs
horas, ou quando no quisermos nos arrumar para
irmos aos saraus. Nem se j passamos da idade de
casar. Isso um disparate. E essa no a nica
vergonha que vivemos neste pas. Ainda temos de
viver com a escabrosa situao da escravido, sem
contar as outras.
Isso, minha filha, sonhe. E sonhe muito, pois
isso no passar de sonho esbravejou a baronesa,
j aparentemente irritada com a conversa da filha.
Em primeiro lugar, jamais ns, mulheres, seremos
tratadas como homens; segundo, o que seria de ns
sem os escravos? Quem limparia a casa, lavaria a
roupa, limparia os urinis, nos ajudaria a nos vestir e
servir-nos-ia de mucamas, para carregar nossas
sombrinhas e pertences? E, para terminar, a prxima
vez que voc disser que vai habitar no lupanar, eu
prender-lhe-ei ao tronco e lhe darei uma surra de
rebenque.
Vai, minha me, pode me bater, tu tens todo o
direito, mas no conte com a minha obedincia,
assim de mo beijada.
A baronesa caminhou at a porta e abriu-a.
Francis estava l fora, ao lado de um aparador,
esperando ser chamado. Assim que o rapaz viu a
porta ser aberta, arrumou a postura e disse em
francs:
187

Cludio Pereira da Silva

Eh bien pas vous [pois no senhora] disse


ele, enquanto entrava na sala.
Venha c, pois preciso fazer uma declarao a
minha delicada filha concluiu a baronesa, pegando
no brao do rapaz. Daqui a alguns dias ns
anunciaremos o noivado. Por isso pode comear a
preparar o enxoval e a roupa do sarau de noivado e
de casamento murmurou Isabel, enquanto saa da
biblioteca, deixando os dois sozinhos novamente.
Beathriz no conseguia digerir o que havia
acabado de ouvir. Como assim, eu terei de me casar
com esse idiota? Ah no, e os meus planos de
felicidade com Henrique? No... No e no.
Pensava ela enquanto fingia estar feliz. Sua real
vontade era pular no pescoo daquele que se
apresentava sua frente e esgan-lo at a morte.
Talvez assim se livrasse do encargo.
Oh, minha querida! Je t'aime; eu amo voc
disse Francis, enquanto caminhava pelo aposento.
Saia... Saia. Saia daqui agora, pois no
aguento mais ver a tua cara. Posso at me casar com
voc, mas voc ter apenas o meu respeito, contudo
no tocar em mim. Ah, e se tentar, vers do que
sou capaz, mando cortar aquilo de que voc mais
gosta, seu porco imundo. Espero que no tente, pois
no terei d. Zs...
My Goddess. Por favor, queira entender, eu te
amo e voc me ama.
Ah... Quem foi que te disse uma idiotice
dessas? Perguntou ela, espantada. Eu no te amo,
eu amo Henrique.
Como assim? Quem Henrique? Voc est
louca? Indagou o jovem ferozmente. Mas a sua
me disse que voc no tinha ningum!
Para ela eu no tenho ningum, mas eu amo o
Henrique. E pode ter certeza de que eu no me
casarei com voc.
188

Mistrios de Um Amor Proibido

Francis pode at parecer uma boa pessoa, mas


por dentro no passa de um torpe imundo, no tem
carter e capaz de fazer tudo para alcanar seus
objetivos, assim como Anna Carolina. A aparncia
boa, mas isso parece ser anulado diante de tanta
maldade. Mas isso os leitores acompanharo durante
os prximos captulos.
O casal ficou ali mais alguns minutos, at que
Beathriz irritou-se e resolveu cavalgar.
Com licena... Por favor, deixe-me em paz.
No aguento mais ver a tua cara, seu poltro. Agora
irei cavalgar, pois preciso espairecer! Disse
Beathriz, enquanto colocava o livro que lia sobre a
escrivaninha. Naquele momento, a escravinha voltou
com a bandeja.
Est aqui, sinhazinha disse a negra,
enquanto apoiava a bandeja na mesa.
Beathriz j estava na porta para sair, quando
disse com muita ignorncia: Desculpe, Milli, mas eu
no vou tomar, sirva a esse rapaz a. Ele far bom
proveito vociferou a moa, enquanto saa da
biblioteca.
Francis riu e disse debochando:
Nossa! A sua sinh muito brava. Pensei que
levaria um pescoo.
A minha sinh no brava!
No?... Ento o que foi isso? Disse Francis
rindo.
Oc deve ter feito algo a ela.
Francis riu, enquanto tomava o refresco.

189

Cludio Pereira da Silva

Captulo XIV
A Missa

Domingo, quinze de julho, faltavam poucas horas


para a sada da famlia Albuquerque rumo capela,
para a missa dominical. Hbito rotineiro para boa
parte da populao de Sant Anna das Rosas. Todo
domingo era a mesma coisa, carruagens e carruagens
abarrotadas saam de suas fazendas rumo ao centro
do vilarejo, ou seja, a capela, o centro das atenes
aos domingos. Era l que muitas amigas
aproveitavam para se ver. Damas, cavalheiros,
senhores, senhoras, ancies, crianas, adolescentes,
clrigos, carolas e freiras, todos ali reunidos em um
nico intuito, adorar Deus. Ser? Talvez? Bem se sabe
que na poca os melhores lugares da igreja eram
comprados por fazendeiros, coronis, bares, condes,
viscondes e comerciantes ricos. Tudo para ter o
melhor lugar diante do altar, acreditava-se que,
quanto mais prximo ao altar, mais perto do cu
seria.
Beathriz ainda estava deitada, estirada como um
cadver. Refletia sobre sua vida, pois no sabia mais o
que fazer para fugir dos planos diablicos de sua me.
Tinha certeza de que seu destino estava previamente
traado, seria obrigada a se casar com Francis, um
parvo, imbecil e almofadinha.
Uma batida na porta a fez deixar seu pasmo
mental, dizendo:
190

Mistrios de Um Amor Proibido

Entre... Quem ?
Sou eu, sinh. Vim ajud-la a se vestir, pois a
baronesa j est pronta, espera de vs!
Pode entrar, Hadassa concluiu Beathriz
A porta do toucador abriu-se, e a escrava entrou.
Vosso banho est pronto!
Beathriz ergueu-se da cama e, colocando o
roupo no dorso, foi ao toucador, onde trocou de
roupa e entrou na tina. Ali se manteve por alguns
minutos, saiu, secou-se, passando em seguida para o
biombo, onde trocou de roupa novamente, colocou o
traje de baixo e foi para a penteadeira onde arrumou
o cabelo. Aps arrumar os cabelos, Bya, com a ajuda
da escrava Hadassa, vestiu o vestido de saia-balo de
seda na cor lils. Aps longas duas horas, Beathriz
saiu correndo pelos corredores e, descendo as
escadas, foi ao encontro da me, que a esperava no
hall.
Graas ao bom Deus, minha filha! Achei que
no iria mais missa! Bradou a baronesa com
grande furor.
Tu ponderaste errado, minha me! Como
deixaria de ir missa? Jamais deixaria de ir encontrar
minhas amigas e ver o vigrio. No vieram mais nos
visitar.
Beathriz rodopiou na frente da sua me e,
faceiramente, disse:
Como estou, minha me?
Est linda! Mas agora vamos, pois a missa
comear em poucas horas e temos um longo pedao
de cho!...
As duas saram do hall, subiram no coche, que
logo partiu. Minutos depois chegaram capela, Bya e
sua me desceram do coche e colocaram seus vus
na cabea. A missa ainda no havia comeado, por
isso muita gente ainda se encontrava na porta.
Bom-dia, senhora baronesa... Disse uma
191

Cludio Pereira da Silva

senhora que estava esquerda. Como esto,


minhas caras?
Muito bem, obrigada! Respondeu a baronesa
secamente.
direita uma moa e um rapaz conversavam e,
virando-se para Beathriz Emmanuelle, disseram:
Como est, sinhazinha, Beathriz? Nunca mais a
vimos por essa redondeza.
Minha me no deixa!
Ora, por qu? Redarguiu a moa.
Do interior da capela, o vigrio disse:
Senhoras e senhores, queiram tomar seus
assentos, pois j se iniciar a missa.
Com essas palavras, todos tomaram seus
lugares. E, como era de costume na poca, quem
tinha mais dinheiro sentava mais prximo ao altar.
Assim, Beathriz e a baronesa sentaram bem prximo
ao altar. Bya j havia percebido a presena de
Henrique, que estava junto de sua famlia, uma fileira
atrs da sua. O vigrio iniciou as oraes e, em
seguida, o sermo em latim, tudo durou cerca de uma
hora. Ao final cumprimentaram-se, e cada um subiu
em seus devidos coches. Beathriz disse baronesa
que ia sacristia falar com o vigrio e saiu. Fora
apenas um pretexto para encontrar-se com Henrique,
que j estava sua espera.
Oh, meu amor! No via a hora de a missa
acabar, para que pudssemos nos encontrar disse
Henrique a jovem, enquanto cingia-lhe pela cintura.
Eu tambm, meu amado. Porm, no posso
demorar muito, pois minha me pode desconfiar.
Desconfiar do qu?
De que estamos juntos, ora...
O casal trocou mais algumas palavras e beijos
at que a baronesa entrou na sacristia acompanhada
do vigrio. Henrique saiu por uma porta lateral,
correndo.
192

Mistrios de Um Amor Proibido

O que voc faz aqui? Se o vigrio ainda estava


na nave da igreja?! Posso saber?
Justamente, eu estava atrs dele!
Ser?... Pois ouvi voz de homem!
Ora, minha me, se aquilo for homem!...
Se no era homem, quem era?
Era Evaristo, o coroinha...
Pois bem! Olha aqui o vigrio. Fale com ele e
vamos; estou aguardando-a na carruagem, no
demore!
Pois sim!...
A baronesa saiu, deixando os dois sozinhos.
Ufa, ufa... Meu Deus do cu!
Minha querida, Beathriz, no faa mais isso!
Pois, se sua me pegar isso, nunca mais dar um
vintm igreja, a o orfanato ir bancarrota.
Desculpe-me, vigrio, mas quero que v
amanh fazenda, pois preciso conversar disse Bya,
enquanto caminhava pela sacristia. Agora deixe-me
ir, antes que minha me volte e me leve arrastada
Bya pegou a mo do vigrio e disse: Sua bno,
vigrio. Beathriz ergueu a saia e caminhou pelo
ptio da capela, at o coche, onde era aguardada por
sua me.
Por Deus, minha filha. O que tanto voc fala
com o vigrio? J... J a noite cai e perigoso andar
por a noite a baronesa bateu nas costas do
cocheiro e disse: Vamos... Vamos o mais depressa
possvel, meu caro Joaquim.
Ah, minha me, no poderia sair sem falar com
minhas amigas. Isso falta de decoro. No acha?
O cocheiro bateu com o rebenque na anca do
animal, que saiu aos trotes. Meia hora depois o coche
apeou soleira da porta, as duas desceram. Durante
o resto da tarde Beathriz conteve-se na biblioteca,
pensava em Henrique, imaginava como seria sua vida
sem ele. O esprito se perturbou, a alma caiu em um
193

Cludio Pereira da Silva

abismo profundo, sentia-se sem foras para reagir. A


dor em sua alma perturbava-lhe e, assim como sua
av, a jovem tinha certas premonies; coisas da
famlia Albuquerque. O corao fechava-se diante de
brutal realidade, sabia, pois, que era uma dor
insistente, como se lhe golpeassem a alma com uma
adaga envenenada, roubando-lhe o flego, fazendo
com que deixasse de respirar por alguns segundos.
Amor uma ferida que di sem se ver e que abraa o
corao sem ser percebido, entra em suas entranhas
e a faz desejar a morte, como nica fonte de se livrar
de tal sofrimento. Era assim que Beathriz se sentia
naquele minuto, insanamente, como uma louca,
pensou em dar cabo de sua vida, mas ajuizou-se e
pensou no que havia aprendido nas missas, que se
matar levaria sua alma ao inferno.
Caminhou pelo aposento, abriu uma gaveta e,
debaixo de vrias toalhas pegou uma garrucha, uma
garrucha velha que era do baro. Parou diante da
imagem de seu pai e mirou a pistola em sua boca,
porm por um golpe do destino Hadassa entrou na
hora.
Sinh... Noooooooooooo!... Gritou a escrava,
enquanto corria ao encontro de Bya. Est louca?
Pensa que isso resolver seus problemas? Est
totalmente tresloucada... Sinh... Sinh... Sinh
baronesa bradou a negra.
A baronesa assustada entrou correndo no
aposento.
O que foi, Hadassa? Nooooooooooooo!
Bradou a baronesa.
Olha, sinh, o que a sinhazinha Beathriz iria
fazer!
Solte isso, minha filha. Agora!
Beathriz manteve-se calada.
por isso, minha me, que iria me matar! Pois
a senhora s sabe mandar. E no me pergunte o que
194

Mistrios de Um Amor Proibido

quero, ou deixo de querer. Beathriz faa isso, Bya faa


aquilo. Pareo um animal de estimao? Jamais parou
e me disse: filha, o quer para ti? Nunca! Nunca...
Vendo o desespero da filha, a baronesa caiu no
choro e disse:
Me desculpe, filha, no queria ser um general
disse Isabel, enquanto debulhava-se em lgrimas.
Chega, minha me, no precisa fazer essa
ceninha. Pois no me matarei, isso somente os fracos
fazem! E isso no faz parte de mim dizia Bya, de
forma irnica.
Beathriz largou a pistola sobre a escrivaninha e
saiu, indo para seu quarto. A baronesa a seguiu e l
tiveram uma longa conversa. Hadassa, a mucama,
seguiu para a cozinha, onde ajudou as outras
escravas nos preparativos para o jantar. A tarde
passou, e a noite chegou fria e chuvosa, consigo
trouxe um clima meio chato para a sala de jantar
onde me e filha encontravam-se naquele minuto. A
baronesa levava uma colher de sopa boca, quando
proferiu:
O que voc tem, minha filha? Murmurou a
baronesa, enquanto descansava a colher sobre o
prato.
Nada, senhora minha me!... Beathriz
respondeu secamente. Uma moa no pode mais
ficar contemplativa? Tenho o direito de ficar com os
meus botes, no acha?
Hadassa ao lado da mesa observava tudo. E
tirava suas concluses, ela, e somente ela, conhecia o
mais ntimo e profundo daquela jovem ali sua frente.
No vai sequer tocar nesse prato, minha
querida? Redarguiu a baronesa.
Beathriz estava ali havia horas e no tinha
tocado ainda no prato.
Deixe-me, minha me! Por Deus?
Vai ficar doente e terei que chamar o mdico.
195

Cludio Pereira da Silva

No precisa se preocupar, no. Deixe-me


morrer, pois far um favor a mim mesma aquela
nsia de morte havia vindo do mais profundo de seu
corao e sara por sua boca como uma adaga.
at um pegado dizer isso, minha filha! Voc
to jovem e bonita a baronesa sorriu satanicamente
e rapidamente disse: J tens at pretendente e, se
tudo der certo, se casar no ano que vem!
O semblante de Beathriz caiu mais ainda,
tomada por um mpeto, ergueu-se da cadeira e
braviamente disse:
V s, olha a? No tinha lhe dito que a senhora
s pensa em vs bradou ela, colocando o
guardanapo sobre a mesa. Com licena, minha
me?!
O escravo afastou a cadeira, e Bya levantou-se.
No dou licena no, mocinha, sente-se aqui!
Volte aqui agora! Senhorita Beathriz Emmanuelle
Albuquerque da Maia, essa no foi a educao que lhe
dei... Beathriz? Beathriz... gritava a baronesa,
enquanto Beathriz afastava-se da sala de jantar.
Quer que eu vou atrs dela, sinh? Murmurou
Hadassa.
No, deixe essa idiota ir. Pois ainda sou a me
dela, e ela aprender a me respeitar. Se pensa que ir
fazer o que quer de sua vida, est enganada, ainda
tenho as rdeas de sua vida. Isso que d ficar lendo
esses romances idiotas que saem nos jornais e esses
livros. Maldita hora que a mandei estudar em
Portugal! Com essas palavras, a baronesa ergueu-se
da mesa e foi para o seu gabinete. Pode retirar a
mesa, vocs esto proibidas de dar um po mofado a
essa ingrata. S comer quando aprender a me
respeitar. E esse idiota do senhor Henrique aprender
a nunca mais mexer com minha famlia disse ela,
enquanto saa da sala.
Hadassa ajudou a tirar a mesa. A conversa do
196

Mistrios de Um Amor Proibido

salo estendeu-se cozinha; a conversa das


sinhazinhas havia se tornado fofoca de cozinha.
Hadassa lavava a loua, e a escrava Chica estava no
fogo, fazendo suas famosas compotas.
Voc viu o que aconteceu hoje na biblioteca?
Disse Chica, enquanto raspava o tacho de cobre.
, se no! Murmurou Hadassa, consternada.
Fui eu mesma quem flagrou a sinhazinha com a
pistola nas mos.
A porta da cozinha abriu-se e eis que surgiu a
baronesa segurando suas saias.
Hadassa, v chamar o escravo Balbino, agora...
Sim, sinh... Disse Hadassa. A jovem dama de
companhia caminhou pelo cmodo e saiu pela porta
lateral da cozinha; deu alguns passos e bradou:
Balbino... Venha c, moleque, a sinh baronesa o
chama.
O escravo que conversava com o feitor
aproximou-se de Hadassa e disse:
O que voc quer, Hadassa?
No sou eu! A baronesa o espera na cozinha.
Hadassa foi frente, o jovem escravo a
acompanhou de perto. Os dois atravessaram o longo
ptio e entraram pela estreita porta da cozinha.
Uh... Uh!... Murmurou o negro, demonstrando
estar extasiado pelo cheiro que se espalhava pela
cozinha. S podia ser a senhora, nhanh Chica. A
senhora e essas deliciosas compotas... Qualquer dia
desses acaba nos matando empanzinados.
Deixa disso, escravo petulante. Sabes que isso
de seus senhores disse a baronesa
arrogantemente, enquanto batia com o salto da
botina no cho secamente, demonstrando estar
irritadssima.
Desculpa, Iai...! proferiu o escravo de cabea
baixa.
Cala a boca e me siga... Resmungou a
197

Cludio Pereira da Silva

baronesa enquanto caminhava para a porta. V ao


ptio e pegue aquelas madeiras e o martelo que est
na casa do jardineiro!
Sim, sinh, mas para qu?
V e no me faa perguntas! Pois ainda sou a
senhora desta casa.
Chica virou-se e disse:
Por Deus, sinh, o que fars?
Cala-te, negra!... No deves indagar-me, sou
dona desta casa e de vocs...
A negra abaixou a cabea e voltou a fazer seus
afazeres.
O olhar de Hadassa cruzou-se ao de Chica, ainda
antes de a dama de companhia de Bya atravessar a
porta. Assim fizeram os trs, a baronesa, Hadassa e o
negrinho; juntos atravessaram os pavilhes da
fazenda e subiram as escadas que davam para o
andar superior. Beathriz estava em seus aposentos
assentada em um vo da janela; uma batida na porta
a fez deixar seu recanto.
Pode entrar!
A baronesa e sua pequena comitiva adentraram
os trios do aposento.
Como est, minha filha?
Bem, minha me. Por qu?... Para qu Hadassa
e Balbino esto aqui? Murmurou Bya, chorosa.
Beathriz colocou o livro que segurava sobre a mesa de
centro. Por Deus, minha me, para qu essas
madeiras? Bradou ela, assustada. O que isso,
Hadassa?
No fao a mnima ideia, sinh!
V, Balbino e pregue essas madeiras em todas
as janelas... ordenou a baronesa.
Nooooooooo... Gritava Beathriz, tresloucada.
Agora serei prisioneira em minha prpria casa?!
Ser, ser sim! S sara daqui, quando
aprenderes a me respeitar e esquecer definitivamente
198

Mistrios de Um Amor Proibido

esse tal de Henrique. E casar-se com Francis!


Pode trancar-me e jogar a chave fora, pois
jamais me casarei com esse idiota. Ah, e a outra,
nunca esquecerei Henrique, t?!... respondeu Bya,
com um leve toque de sarcasmo nas palavras.

199

Cludio Pereira da Silva

Captulo XV
A uma lgua

A uma lgua dali, na fazenda dos Mendonas, a


famlia de Henrique encontrava-se na biblioteca.
Sua me esquerda, Clara e Antnia, suas irms,
direita. Henrique encontrava-se no meio. Sentia-se
privilegiado
entre
as
mulheres,
era
muito
paparicado, pois era o nico filho varo. Seu pai, o
embaixador Felisberto, fora mandado por delegao
do imperador a ustria. Iria participar de uma
conferncia com o imperador Franz Josef, esposo da
imperatriz Elizabeth, ou Sissi.
Henrique era o nico filho varo de uma famlia
de seis moas que no entraram nesta histria,
seno a histria ficaria extensa e chata; por isso,
resolvi falar-lhes apenas os nomes: Clara, Melissa,
Micaela, Clarissa, Antnia e Morgana. Entre essas,
somente duas apareceram na narrativa com mais
frequncia, as outras esporadicamente. Clara, jovem
bonita, corpo esbelto de personalidade forte, mas
muito meiga e afvel. Melissa, bonita como a irm e
de gnio forte, porm amvel e delicada.
O quarteto encontrava-se na linda e opulenta
sala de estar. A moblia era riqussima, aparadores,
canaps, escarradeira junto porta de sada,
cadeiras, piano de cauda, mesas, poltronas, entre
outros. A sala era bem arejada, seis janelas, duas
portas, uma que dava para o lado inferior da casa e
200

Mistrios de Um Amor Proibido

a outra que se abria para os outros cmodos da


casa. Debaixo de cada janela, um sof descansava
sobre
os
aparadores
e
estantes
castiais
descansavam, apregoados s paredes quadros de
figuras da famlia descansava. As cortinas de veludo
azul cobriam todas as janelas; ao centro do cmodo
uma mesa onde apoiavam as bandejas. No canto da
parede junto porta uma chapelaria e um objeto
onde descansavam os guarda-chuvas e sombrinhas.
A famlia parecia estar descontrada. Clara
ergueu-se do lugar onde repousava e caminhou pelo
cmodo, indo conter-se ao piano de cauda, onde
tocou algumas valsas. O clima era alegre e
espontneo; a tranquilidade que tomara conta do
lugar fora quebrada pela voz meiga e suave de
Clara. Clara no era apenas uma moa, mas um
corao de ouro, alm de ser jovem e sonhadora,
seu passatempo favorito era passar horas e horas
enclausurada na biblioteca,, lendo seus trridos
romances. Ento a jovem cantora quebrou o silncio
dizendo:
Meu amado irmo... Como foi que voc
conheceu sua amada e idolatrada Beathriz? Que,
diga-se de passagem, um romance proibido por
ambas as famlias.
Henrique engoliu a seco aquelas palavras, mas
amavelmente disse:
Ainda no entendi por que tanto dio entre
nossas famlias, porm digo-lhe nada impossvel a
quem se ama!
A me de Henrique fechou a cara e
arrogantemente disse:
J lhes disse que no quero esse assunto
nesta casa. No toque no nome dessa umazinha
aqui!
Irritado por ver sua me falar daquela forma de
Beathriz, Henrique indagou-lhe:
201

Cludio Pereira da Silva

mesmo, minha me, a senhora poderia nos


dizer por que tanto dio entre duas famlias? Diga,
diga a. O que aconteceu no passado para existir
tanto dio?
A senhora engoliu a seco aquelas palavras,
tentou disfarar, porm todos perceberam a
irritao da jovem senhora. At Melissa, que se
mantinha alheia conversa, entrou na dana.
Aparentemente sem jeito e irritada, a senhora
ergueu-se da poltrona e saiu bufando como um
bfalo selvagem para a cozinha. A escrava mais
velha da fazenda entrou, dizendo:
Ocs no tem jeito mesmo! Deixou a sinh
desconcertada.
O trio caiu na gargalhada.
J que voc est nesta fazenda h muito
tempo, voc deve saber o que aconteceu, no ?...
Murmurou Henrique, zombeteiro. Fala-nos a. Diganos, o que aconteceu?
Porm a negra tambm ficou desconcertada e
saiu batendo com os ps no cho.
Ih, Henrique. Creio que desta casa nada
sabers... Disse Melissa, rindo muito.
Deixe... Deixe essas senhoras para l e nos
conte sua histria de amor. Pois adoro ouvir
histrias de amor! Exclamou Clara, enquanto
dedilhava ao piano.
Bom! Tudo comeou durante um sarau que
aconteceu h muito tempo no burgo do imperador,
Dom Pedro II. Foi verdadeiramente um amor
primeira vista, todos ns estvamos no salo nobre,
quando Beathriz, acompanhada por algumas jovens
da famlia real, descia as escadas; ela olhou para
mim e eu para ela. Depois valsamos, conversamos e
nos enamoramos ao mesmo tempo. Ento, fiquei
muito tempo sem saber onde ela morava, at
passar por seu coche, diante de sua fazenda. Desde
202

Mistrios de Um Amor Proibido

ento ns nos encontramos esporadicamente diante


do riacho e s margens do Paraba.
Clara cessou os acordes do piano e ps-se a
aplaudir animadssima.
Alvssaras...! Congratulaes, meu mano;
pelo menos um desta famlia vive um conto de
fadas. E essa repulsa entre a famlia d ainda mais
um ar de Romeu e Julieta a essa histria dizia ela,
enquanto aplaudia. Clara levantou-se do piano e,
aproximando-se do irmo, acalentou-lhe o rosto
entre suas frgeis mos.
Por Deus, minha irm! Pare de sonhar, isso
que d ler muito romance. Isso no romance de
William Shakespeare, vida real?! Retrucou
Melissa.
Romanesca... Sempre romntica, minha
irm...! Redarguiu Henrique, sorrindo ao ver suas
irms discutindo.
Que pena que isso vida real, pois a vida dos
personagens de Shakespeare muito melhor!
Suspirava Clara. Credea Romeo Che La sua sposa
bella gi morta fosse, e viver pi non volse cha s
La vita in grembo a lei si tolse com lacqua Che Del
serpe luom appella. Clara ergueu o olhar para o
horizonte, alm da janela, e com a mo sobre o seio
difano continuou: Come conobbe Il fiero caso
quella, Al suo signor piagendo si rivolse e quando
sorva quel si dolse, chiamando Il iniquo Ed ogni
Stella. declamou Clara um trecho do livro Romeu
e Julieta. A jovem parecia estar em transe enquanto
declamava. Olhava para alm da janela, ou seja,
para o nada!
Ah... Ah! S poderia ser voc mesmo, Clara,
para me fazer rir diante de tanta desgraa
murmurou Henrique, enquanto passava a mo sobre
a fronte. Nosso pai j est dois meses fora de casa
e meu amor por Beathriz proibido, por ambas as
203

Cludio Pereira da Silva

famlias.
, Henrique, fazer o qu? Se nossa vida no
nenhum romance de William Shakespeare. Por isso,
temos que viver assim mesmo, pois o nico autor
desta opereta sem msica Deus. E ele sabe o que
faz, no ?
!... respondeu Henrique, aparentemente
desolado.
... Mesmo. vida cruel! Disse Clara, entre
suspiros.
A duas lguas dali, na fazenda dos
Albuquerques, Beathriz sofria, pois estava sendo
questionada pela baronesa. Beathriz encontrava-se
diante da foto do pai, em seu escritrio.
Pois o que minha me deseja?
Case-se, minha filha, com Francis. Ele parece
ser um bom homem e com certeza a far mui feliz
dizia a baronesa.
Senhora minha me, a senhora tem que
entender que eu no o amo.
Cale a boca!... Pois eu tambm no amava
seu pai no incio, mas aprendi a am-lo.
Ah, sei... por isso mesmo que ainda infeliz
e seca.
Com muita ira, a baronesa ergueu a mo, para
bater no rosto de Beathriz, mas conteve-se.
Me respeite, guria desaforada. Ainda sou sua
me!
No disse nenhuma aleivosia. Disse?
Replicou Beathriz, atrevidamente. Ou a senhora
acha que eu no sei que amava outro, antes de
casar com o meu pai! E que, devido a isso, foi muito
trada por ele!...

204

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XVI
A sombra

A noite estava fria e chuvosa, Beathriz, estava


assentada em uma cadeira junto escrivaninha; ao
seu lado, Hadassa, sentada em um canap, ajudavaa com a lista de convidados. L fora a chuva caa, e o
mundo parecia dissolver-se; seria um dilvio, ser
que naquele momento Deus quisesse desfazer o
pacto que fizera com No de jamais destruir a terra
novamente com gua, exclusivamente por que fora
anunciado o noivado de uma semideusa? No creio
que Deus faria isso!
Enquanto as duas preocupavam-se com a lista,
a criadagem corria para fechar portas e janelas, que
por sinal eram muitas. O vento entrava pelas janelas
e fazia com que as velas se apagassem, as cortinas
esvoaavam e faziam com que a prataria que ficava
exposta na sala casse dos aparadores. Os escravos
corriam de um lado para o outro, fechando portas e
janelas. Foi quando um barulho chamou-lhes a
ateno. As duas correram para junto da janela, com
a finalidade de ver quem era, mas sem sucesso a
nica coisa que conseguiram ver foi uma sombra.
Quem seria a sombra? No se sabe?!
Mame... Mame! Bradou Beathriz, muito
assustada.
A baronesa logo veio acudir a filha.
O que foi, Beathriz?
205

Cludio Pereira da Silva

Olhe ali na janela! H uma sombra...


Balbuciou Beathriz.
Qual?... Pare com isso. Que pessoa em s
conscincia ficaria l fora nessa chuva?!
No sei, mas que h uma pessoa l fora, isso
h!
A baronesa dirigia-se a janela, mas nada
avistou, ento disse:
Pare com isso agora e vai para seu quarto!
Com muito medo e receio, as duas subiram as
escadas e cada uma foi para sua alcova; entretanto,
no meio da noite uma trovoada bem forte fez com
que Hadassa corresse para o quarto de sua senhora.
Beathriz, Beathriz...! Murmurou Hadassa, ao
p da cama, com muito medo.
Beathriz j estava adormecida, porm acordou
com os sacolejos da mucama.
O que , Hadassa? Perguntou Beathriz, ainda
entorpecida pelo sono.
que eu estou com medo; queria saber se
voc me deixa dormir aqui?
Voc jura que vai me deixar dormir?
Sim, eu juro!
Ento, deite-se!
Dizendo isso, Beathriz afastou-se, dando lugar
mucama.
Voc viu a sombra l fora? Murmurou
Hadassa.
Sim. Mas, por favor, deixe-me dormir!
A noite passou, e o sol j comeava a apontar
no horizonte, quando Beathriz acordou assustada.
Durante a noite, tivera um sonho estranho; nesse
sonho, estava ela em um campo florido, junto com
um rapaz muito belo. Os dois danavam uma valsa
loucamente, at que do meio de uma das moitas saa
um homem aparentemente parecido com Francis,
mas seu rosto era totalmente desfigurado, parecia a
206

Mistrios de Um Amor Proibido

morte. E ele a arrancava dos braos de Henrique. O


sonho a deixou perturbada.
Meu Deus... Que sonho foi esse? Com certeza
um aviso, esse casamento no dar certo disse
Beathriz, enquanto caminhava pelo aposento.
Logo aps o caf da manh, Beathriz, Chica e
Hadassa partiram para o vilarejo de Sant Anna das
Rosas; ali passaram o dia todo em butiques,
armazns e casas de moda.
Creio que j compramos tudo, os lenis, as
fronhas, as toalhas de banho e, o principal de tudo, a
camisola da noite nupcial murmurou Beathriz,
enquanto acomodava-se na carruagem. Mas creio
que no irei us-la to cedo!
Credo, sinh... Parece que oc est agourando
o prprio casamento concluiu Chica. No fale
assim no, sinh, pois pode dar azar.
Digo isso, pois ontem noite tive um sonho
que prefiro nem explicar balbuciou Beathriz,
afundando-se no estofado da carruagem. Agora
deixemos isso, pois precisamos passar na casa de
minha melhor amiga, a filha do baro de Bourbon, a
senhorita Liriel de Bourbon.
Meia hora depois a comitiva da famlia
Albuquerque chegou fazenda do baro. E l estava
Liriel, sentada em um banco do jardim, envolta em
um brilho celestial, uma aura angelical, fada, ninfa,
deusa ou anjo, classifique-a como quiserem. Pele
branca, cabelos escuros e olhos azuis. O colo arfava
e sobre ele caam rolos e rolos de caracis, que lhe
davam ainda mais a aparncia angelical. Seu porte e
sua delicadeza eram ressaltados pelo esplndido
traje. A jovem usava um vestido de cambraia azulbeb com ampla roda, que contrastava muito com a
majestosa tarde de primavera. Seria ela um
fragmento da atmosfera que se desprendera da mais
alta camada celestial, ou apenas uma mulher
207

Cludio Pereira da Silva

faceira? Aquele olhar afetuoso com certeza


enlouqueceria a cabea do mais sbrio dos homens.
A seu lado esquerdo, uma negrinha que lhe
segurava a sombrinha; sua direita, em cima de
uma coluna em estilo helnico, uma cesta de rosas
vermelhas; em sua mo, um boto de rosas,
margaridas, flores silvestres, alm das azleas; fazia
ela um arranjo para a sala; sua frente, uma
mesinha que era usada como aparador. O carro onde
Beathriz estava deu duas voltas na alameda de
quaresmeiras e parou diante da jovem.
Ser que ainda tenho uma amiga nesta casa?
Bradou Beathriz, descendo do coche.
Beathriz?... Achei que havia se esquecido de
mim murmurou Liriel, erguendo-se do banco e indo
ao encontro da amiga. Aps os comprimentos
formais, Liriel convidou Beathriz e sua comitiva para
entrar na casa-grande.
Pensei que vossa merc havia se esquecido de
mim. falou Liriel, oferecendo o brao a Beathriz.
Jamais! Como poderia eu esquecer tal amiga.
Mas o que a trouxe aqui, ento?
Nem te conto?!
Se no para contar-me, o que fazes aqui?
Brincadeirinha! At parece que no me
conhece mais.
Esqueci que voc gosta de caoar com a cara
dos outros!
Tenho eu duas mensagens para voc. Qual das
duas voc vai querer saber primeiro, a boa ou a m?
A m?
A m que irei me casar!
E a boa?
que odeio meu futuro noivo!
Por qu? Indagou Liriel, subindo a escada
seguida de Beathriz.
Pois amo outro!...
208

Mistrios de Um Amor Proibido

Liriel conduziu Beathriz e Hadassa ao salo


nobre, os outros negros foram levados para a
cozinha.
Sentem-se! Exclamou Liriel.
Com licena!
Diga-me o que est ocorrendo? Perguntou
Liriel, acomodando-se na conversadeira.
Nada... Vim apenas convid-la para o meu
enterro?
Aceita uma xcara de caf, refresco ou ch?
No! Obrigado... No irei demorar, pois a hora
j est avanada. As estradas noite so perigosas!
Que nada, a tarde ainda nem comeou
concluiu a anfitri, arrumando os vincos da saia.
Quando ser o noivado?
Dezessete de maio, assim minha me espera!
Deus meu! Falando assim, at parece que
voc vai morrer.
Liriel era filha nica do Baro da Boa Esperana,
rf de me, a menina havia sido criada pelo pai com
o auxlio de uma escrava. Aos quinze anos foi
mandada para um mosteiro em Santa Catarina, l
aprendeu tudo que uma sinhazinha deveria saber:
bordar, pintar, coser, cozinhar, sem contar nas outras
aulas, como a de francs, literatura, geografia,
histria, piano e canto. Adorava viajar, no passava
um ano sem ir Europa, seu pas preferido era
Portugal, mas no podia viajar pela Europa sem
passar na Frana pas da moda. L se divertia a par,
sem contar as horas que passava fazendo compras,
comprava trajes, tecidos, perfumes e tudo mais que
Paris, a cidade luz, poderia lhe oferecer. As
temporadas em que passava na Europa eram sempre
bem animadas, no tinha um dia em que Liriel no
era convidada para tomar ch com as damas da alta
sociedade, sem contar as inmeras vezes que era
convidada para saraus da nobreza europeia,
209

Cludio Pereira da Silva

principalmente em Portugal, pelo sobrenome, Pereira


da Silva.
Bela, mas s vezes um tanto quanto frvola. No
vio da mocidade, muitos mancebos haviam-lhe
pedido a mo, mas nenhum foi bem-quisto pela
moa. Queria muito mais que uma aventura ou um
casamento comercial. Procurava o verdadeiro amor.
Liriel era conhecida em Sant Anna pela belssima
voz e, com certeza, de dez saraus que aconteciam no
vilarejo, nove eram agraciados com sua voz
admirvel. Adorava ler, seu autor favorito era
Gonalves Dias.
O dia estava belssimo, mas trabalhoso,
enquanto a baronesa preocupava-se com o que seria
servido alta sociedade fluminense, as escravas
varriam o ptio, encerando os tacos de madeira
nobre que recobriam todo o alpendre, encerando o
cho de mrmore italiano do salo nobre, lustrando
os mveis, polindo a prataria, herana de famlia que
veio desde os primeiros Albuquerque da Maia, peas
belssimas que reluziam aos olhos. Mesmo com muito
trabalho, a criadagem trabalhava feliz, alis, no era
todo dia que uma pessoa bem-quista por eles iria
noivar. Tinham motivos suficientes para estar feliz,
Beathriz era uma doura, que jamais maltratara
sequer um negro. Sempre que ia senzala, era bem
recebida, tornara-se o xod da escravaria.
A sinhazinha havia nascido na casa-grande, mas
adorava a cultura africana, amava ver os negros
danando a umbigada e o lundu, at tentara danar
algumas vezes a umbigada, mas no levava jeito
para tal dana, quando no errava o passo, era
advertida pela me e pela dama de companhia.
Enquanto no salo principal tocavam as partituras de
msica clssica, valsa e lricas trazidas da corte e da
Europa, no ptio e na senzala tocavam lundu. Nem
mesmo as sinhazinhas conseguiam explicar tanta
210

Mistrios de Um Amor Proibido

alegria, para um povo to sofredor. Enquanto alguns


estavam
extremamente
alegres,
outros
extremamente melanclicos, somente a noiva sabia
o que estava sentindo, o sorriso estava sempre
estampado em seu rosto, mas seu corao estava
amargurado e sfrego.
O dia para ela havia comeado ainda com os
primeiros raios do sol, marcava sete horas da manh
quando dona Margarida chegou fazenda para fazer
o ltimo reparo no vestido que a prometida usaria
naquela noite. Duas horas depois estava l tambm
Liriel, organizando as partituras. Beathriz estava
muito amargurada, ser que esse noivado daria
certo? Temia ela que alguma coisa desse errado
naquela noite, a todo instante vinha sua mente as
cenas do sonho. O que aquele sonho queria lhe
dizer? Ainda no havia encontrado significado para
ele. Do mesmo jeito que no havia encontrado o
significado do seu sonho, ainda no sabia quem era
seu noivo.
Alm do noivado, outra coisa intrigava a cabea
da noiva, era o grande mistrio que ainda cercava a
tal sombra que ela e sua irm haviam visto dias
atrs, quem seria a tal sombra? O que ela queria?
Seria humana? Ou era coisa do alm. A noite estava
em um tom perfeito e cravejado com estrelas, no
horizonte o Cruzeiro do Sul se destacava das demais,
pela beleza e pela grandiosidade. Mais soberba que a
noite, somente a fazenda que naquela noite at o sol
pareceu ter mudado de horrio apenas para
vislumbrar a perfeio nos detalhes, a lua pareceu
apagar-se diante de tanta luminosidade.
Tudo estava to lindo, mais parecia uma
constelao perdida no espao, com certeza at os
deuses do Olmpo estavam batalhando para ver
quem ficaria com a melhor viso do paraso; Zeus,
Afrodite e Apolo estavam impressionados com
211

Cludio Pereira da Silva

tamanha beleza. Noite triunfante, noite desejada at


pelas pessoas mais humildes. Aquela noite estava
oculta debaixo de um fino vu de mistrio jamais
visto antes em solo fluminense. Jamais aquela casa
seria a mesma; at os bailes que j tinham
acontecido naquele salo se envergonhariam diante
de tanta beleza e magnitude.
O jardim estava todo enfeitado, e o chafariz
ligado, desde a porteira at o alpendre haviam
colocado tochas para sinalizar o caminho; as
cocheiras estavam abarrotadas de tantos coches, e a
senzala estava cheia de cocheiros, a cozinha estava
em um movimento frentico. A uma lgua dali podiase ouvir o burburinho da alta sociedade santanense,
a
todo
momento
chegavam
novos
coches
abarrotados de gente. Condes, condessas, bares,
baronesas, viscondes, viscondessas, ente de toda
parte, gente das mais altas patentes, at o imperado
e sua famlia estavam na lista de convidados.
Um verdadeiro desfile de moda, os cavalheiros
com suas belssimas casacas e cartolas, as damas
com seus belssimos vestidos de cambraia, cetim,
seda e tarlatanas, sem contar os detalhes: leques,
joias, xales e tiaras, etc. Um verdadeiro esplendor de
tanto luxo. No alpendre tambm muito bem trajada,
a baronesa Isabel, junto com Hadassa, recebia os
convidados. Isabel estava trajando um vestido
prpura de cambraia com uma ampla roda cravejada
com brilhante; em sua cabea; trazia uma linda tiara
de baronesa junto a um pequeno volume com
algumas tranas de onde ressaltavam dzias de
cachos; em sua mo, um leque de madreprola; no
pescoo, um lindo colar de famlia. Ao seu lado,
estava Isadora, que trajava um vestido de cetim azulceleste bem amplo, banhado com um fino vu de
pedras preciosas; em sua cabea, um lindo arranjo
com pequenas margaridas de onde saam vrios
212

Mistrios de Um Amor Proibido

cachos. Ainda no alpendre, um escravo, que naquela


noite estava bem vestido e calado, anunciava os
convidados.
O Baro de Boa Esperana e sua famlia!
Exclamava o negro.
Logo depois, os convidados subiam ao alpendre.
Boa-noite, baro e baronesa! Dizia a anfitri,
fazendo meno famlia do baro. Sejam bemvindos! E sintam-se em casa.
Obrigado! Concluram o baro e a baronesa,
adentrando na fazenda.
A Baronesa de Catuaba novamente
exclamou o escravo.
Boa-noite, minha amiga mencionou Isabel,
inclinando-se. Cad o resto de vossa famlia?
Primeiramente, boa-noite! Eles tiveram que ir
Europa.
Enquanto a baronesa recebia os convidados,
Beathriz terminava de preparar-se. O aposento da
menina estava um verdadeiro campo de guerra,
vrias escravas estavam l para ajudar a moa a se
vestir. A cada hora que passava mais em quizila,
Beathriz Albuquerque olhou-se no espelho da
penteadeira, enquanto Joaquina apertava-lhe o
espartilho.
Vai! Joaquina. Preciso ter a cintura o mais fino
possvel.
Oc, tenha calma, iai concluiu Joaquina,
apertando as fitas do espartilho. A festa s
comear assim que seu pretendente chegar.
Agora pegue a fita mtrica, por favor.
Para qu, sinh?
Pegue e no discuta comigo!
Joaquina caminhou at uma caixa de costura e
pegou uma fita mtrica, voltou para junto de Beathriz
e, com uma passada de mo por volta da
circunferncia, mediu a cintura da moa.
213

Cludio Pereira da Silva

A quanto est minha cintura?


Cinquenta, iai!
Ento aperte mais, pois tenho que ficar com
quarenta centmetros.
Chega, nhanh, desse jeito vai quebrar no
meio.
Aperte e cale a boca! Pois estou com pressa.
Eu j disse para a iai ter pacincia!
Calma nada! Creio que o salo j esteja
repleto de pessoas e no de bom-tom deix-las
esperando murmurou Beathriz, colocando os ps
dentro dos setes saiotes que estavam em cima das
crinolinas e das anguas que se encontravam
estendidas no cho, erguendo-as junto da cintura.
Pronto! Agora amarre-as.
A escrava logo terminou de amarrar os cadaros
das saias de baixo.
Agora, por favor, v chamar dona Margarida
para ajudar-me a colocar o vestido.
Alguns minutos depois estava l a dona
Margarida, que assim que entrou no quarto foi fogo
tagarelando:
Que linda est a minha menina! Murmurou a
modista, apanhando o vestido que ainda estava no
manequim.
Vs achais que eu estou bela? Achas isso, pois
no sabes o que est passando-se no meu corao!
Creio que algo muito ruim acontecer ainda hoje.
Cruz-credo, Beathriz! At parece que est
agourando o vosso noivado!
Com a ajuda de mais duas escravas, dona
Margarida colocou o vestido na menina.
Pronto! Creio que j podes descer disse dona
Margarida, ajeitando os babados do vestido.
Est tudo pronto?
Sim! Nhanh.
Como est meu cabelo? perguntou ela,
214

Mistrios de Um Amor Proibido

apalpando os cachos. E o vestido?


Est esplndido! Disse a modista,
aproximando-se da porta. Vamos?
Beathriz aproximou-se do espelho.
Creio que est bom! Vamos!
Beathriz falou essas palavras e se encaminhou
para a porta como uma ovelha vai para o
abatedouro, deu o brao para dona Margarida e
caminhou pelo corredor at a escadaria. Joaquina
desceu pela escada dos escravos que dava na
cozinha.
Assim que chegou ao topo da escadaria, um
mancebo gritou:
Olhem-na!
Todos ali desataram a bater palmas! Beathriz
enrubesceu-se, mas mesmo assim desceu as
escadas. O seu andar imponente chamou a ateno
de todos.
Beathriz caminhou por todos os sales,
cumprimentando os convidados, e depois foi
cozinha ter com a baronesa, que estava cuidando
dos aperitivos e do jantar que seria servido.
Como estou, mame? Perguntou ela,
rodopiando perto do fogo lenha.
Est linda! Mas saia da, ou, quando sair da
cozinha, sair igualzinha gata borralheira concluiu
a baronesa, espantando a menina com um leque.
Por favor! Volte para o salo, de onde no deveria ter
sado.
Est bem! Mas no demores aqui, ou, quando
meu noivo chegar, achar que a sogra uma
escrava!
Chocho. Saia daqui, iai! Disse Joaquina,
levando a menina at a porta da cozinha. Oc deve
bri no salo e no aqui.
J que todas me expulsaram, irei.
Beathriz voltou para a sala e se manteve em um
215

Cludio Pereira da Silva

crculo de amigas.
Com licena, quero me sentar comunicou
Beathriz.
sua frente, estavam trs de suas amigas:
Liriel, Anita e Antonia.
Por um acaso vocs sabem quem o meu
noivo?
Eu no! Respondeu Liriel.
E vocs?
Ns tambm no! Respondeu Ana, porta-voz
de Antonia.
A valsa havia comeado, Ana e Antonia foram
tiradas para danar por dois cavalheiros, j Liriel foi
cantar. Beathriz manteve-se ali na conversadeira,
junto a uma senhora j de idade, por muito tempo,
at que um mancebo mui guapo aproximou-se e
disse:
Com licena, minha senhorita disse o
mancebo, estendendo a mo para Bya.
Toda! O que vs desejais? indagou Beathriz,
estendendo a mo.
Concede-me esta contradana, senhorita?
Balbuciou Francis, beijando a mo da moa.
Sim! disse Beathriz, erguendo-se da
conversadeira. D-me licena, senhora?
Toda! Concluiu a velha senhora.
Francis conduziu Beathriz ao meio do salo,
onde j se encontravam outros casais.
Ele era um moo loiro, de olhos azuis, alto e
forte, que tinha por volta de vinte e oito anos. Sua
renda era de cerca de setecentos mil contos de ris.
rfo de pai e filho nico, sua me era uma senhora
bem conceituada nas rodas femininas.
O que uma senhorita to bela estava fazendo
ali no canto, amuada? Perguntou Francis,
conduzindo-a em seu primeiro rodopio. No sabes
que o lugar de uma deusa no meio do salo?
216

Mistrios de Um Amor Proibido

Perdoe-me, senhor! Mas peo que no fales


assim, ou ficarei encabulada.
Perdoe-me a senhorita! Mas no posso deixar
de elogi-la, ou seria uma indelicadeza minha!
Se o senhor no parar, serei obrigada a lhe
deixar valsando sozinho. E tenho dito!
E a quadrilha continuou um passo aps o outro.
Senhoras e senhores! Disse Liriel,
interrompendo a quadrilha. com imenso prazer
que dedico esta msica minha melhor amiga,
Beathriz!
Ouviu-se uma intensa aclamao, um grande
crculo se abriu e, magistralmente, Beathriz fora
conduzida ao centro. De nota em nota, a menina se
tornou a deusa do salo, senhora absoluta daquela
noite. Deusa em corpo de fada e alma difana.
Olhares curiosos volviam-se para o centro das
atenes, na inteno de vislumbrar a ninfa que se
fazia em forma de mulher, e no podia ser diferente
com to belo traje e tamanha velocidade nos passos
que os ps nem sempre tocavam o cho. Os
movimentos eram to ligeiros, que seus lindos
pezinhos no podiam ser vistos nem ouvidos atravs
da orla do vestido.
A danarina timidamente escondeu o rosto no
ombro do rapaz:
Ah! Meu Deus... Que vergonha! Concluiu a
moa, tentando se evadir dos olhares curiosos. Por
favor, tire-me daqui!
Logo agora que as coisas esto melhorando!
Ou vossa merc me tira daqui, ou sairei s!
O rapaz conduziu-a a uma saleta distante do
burburinho e l Beathriz sentiu-se mais leve. Naquele
momento uma enorme clera tomou conta de seu
corao, amor, dio, felicidade e tristeza, nem ela
sabia distinguir o que estava sentindo. Uma dor
profunda tomou conta do seu ser. Dor que no doa,
217

Cludio Pereira da Silva

amor que no se sentia, dio que no se odiava.


Como distinguir tal sentimento. Deus ou o diabo, o
santo ou o profano, o que estava fazendo ela se
sentir daquele jeito?
Naquele momento, Isadora entrou e disse:
Vosso noivo est a! E mame est te
chamando.
Nesse momento a dor aprofundou-se ainda
mais, uma pontada bem forte fez a moa ter um
desassossego. Ela sabia que, quando ultrapassasse o
umbral da porta, seu destino estaria marcado para
sempre. Sua vontade naquele momento era sair
correndo e desaparecer no mundo. Sairia ela
cavalgando, ou aquilo no passava de um sonho,
quer dizer, pesadelo, mas uma questo ainda lhe
atormentava: o que aconteceria naquela noite, ou os
sonhos que estava tendo havia um ms no
passavam de fruto de sua imaginao? No sabia
explicar tal sensao.
Deu alguns passos e abriu a janela, o vento frio
tomou conta da saleta, Beathriz teve um sobressalto
e caiu sobre um canap. Seu parceiro no sabia o
que fazer, ento, correu a cozinha e chamou a me
preta da menina, que logo veio. A velha fez o
possvel e o impossvel, mas a menina s se
restabeleceu quando colocaram em sua via nasal um
bocado de lcool com arnica e cnfora.
Muito assustada a menina ao despertar abraou
a velha e disse:
Meu Deus! Espantada.
O que foi, menina?
Nada! Deus queira que nada!
Andemos! Vamos logo ver quem o meu
noivo!
Logo depois que disse essas palavras, Beathriz
ergueu-se do canap e caminhou pela sala, parou
diante de um espelho que ficava sobre o aparador,
218

Mistrios de Um Amor Proibido

arrumou os vincos da saia, arrematou o penteado


que na queda desalinhou-se e se dirigiu porta.
Vamos!
A noite ainda tinha uma surpresa reservada
para todos. Quando acreditavam que tudo j havia
sido resolvido, pois Beathriz j havia conhecido seu
noivo, uma surpresa ainda maior aconteceu,
faltavam dez minutos para as oito da noite, quando
uma mulata mui bela e bem trajada adentrou o
salo, com um andar soberano que nada indicava
sua origem. Nesse momento muitos olhares
voltaram-se
para
ela,
olhares
de
curiosos
perguntavam-se quem seria tal pessoa. Alguns
olhavam por admirao, outros olhavam apenas por
desdm. Como podia tal negra estar vestida daquela
maneira. Um enorme silncio tomou conta do salo,
a orquestra cessou o arranjo, o burburinho parou, a
alta sociedade fluminense sentiu-se ofendida, como
poderia uma negra estar dividindo o mesmo espao
dos brancos.
De porte esbelto e cintura finssima, a bela
moa tinha por volta de vinte anos, era crioula clara,
cabelos
negros
e
cacheados
perfeitamente
penteados para a ocasio, olhos verdes trazidos por
parte da me. A crioula estava muito bem trajada,
trajava um vestido rosa royal muito bem talhado,
com certeza pelo corte no era um traje feito no
Brasil, o corte parecia ser europeu; no pescoo um
lindo colar de ouro cravejado com diamantes e
esmeraldas que adornava ainda mais a sua beleza, o
que deixava ainda mais as mulheres com inveja.
Tudo nela era perfeito, via-se que a sua perfeio
vinha de dentro, da alma, verdadeiramente uma
deusa do bano. De nada perdia para qualquer uma
das que ali se achassem superior a ela. Seria alguma
armao dos negros? Creio que no! Onde eles
achariam to belas roupas. Ela vagou com o olhar
219

Cludio Pereira da Silva

altivo por todo o salo como se estivesse procurando


algo. A baronesa Isabel, como no fazia distino de
cor, raa ou credo, foi ter com a moa. Os demais ali
presentes recriminaram a atitude da baronesa, pois o
que eles queriam realmente que Isabel a
expulsasse dali, como se a pobre negra fosse um
animal; mas, ao contrrio do que eles queriam, a
baronesa a conduziu ao seu gabinete e l descobriu
quem era realmente a bela mulata.
gata era filha de sua irm Leopoldina que
ainda no vimos. Aps apaixonar-se por um negro
forro e rico, e ser muito descriminada pelos pais e
pela alta sociedade, Leopoldina decidiu partir para
Portugal e anos depois retornaram, mas no para
Campos e sim para Petrpolis, e l reconstruiu sua
vida e sua famlia: tivera trs filhos, porm a nica
que vingara fora gata. Anos depois de retornar ao
Brasil, o pai de gata foi morto em um duelo forjado.
Leopoldina, no aguentando a dor de ter perdido o
marido adoeceu e dois meses depois morrera
deixando a menina aos cuidados de um velho amigo.
Quando a menina completou dezoito anos, decidiu ir
atrs de sua famlia, mas descobrira que a nica
famlia que ainda lhe restava era por parte de Isabel,
pois seus avs j haviam falecido. Aps dias e dias
de uma fastidiosa busca, o dia do encontro com a
famlia chegou.
Depois de muita conversa no escritrio da
fazenda, a baronesa conduziu a bela mulata para o
salo, ento apresentou-a para todos que ali
estavam. Muitos ficaram chocados, mas os da famlia
a receberam bem. Beathriz, Mariana e Isadora foram
as primeiras a congratular a negra. A comitiva que
lhe acompanhava foi conduzida para a cozinha,
apenas ela e sua dama de companhia ficaram na
sala. Seus pertences e sua bagagem foram levados
para o quarto de hspedes. Mesmo com muitas
220

Mistrios de Um Amor Proibido

pessoas ignorando a presena da mulata no recinto,


alguns abolicionistas a receberam com festa.
At um jovem de famlia rica e abolicionista
tirou-a para danar, coisa que provocou ainda mais a
ira dos escravocratas. Aps o trmino da quadrilha,
gata foi conduzida pelo rapaz at uma roda social
de filhinhos de papai, muitas moas desdenharam da
moa e saram.
Liga no! Isso no passa de despeito, pois
vossa merc muito bela!
Obrigado, senhor, pela gentileza. Mui grata!
Agradeceu gata, abanando-se com um leque de
madreprola. O povo desta cidade muito
medocre e hipcrita. Vs precisais conhecer o povo
de Petrpolis e o pao do imperador. Enquanto esse
povo me trata assim, eu continuo sendo amiga da
princesa Isabel.
Adoraria conhecer a nossa princesa Isabel!
Exclamou um dos rapazes ali presente.
No fique na vontade, v conhecer Petrpolis
e a eu lhe apresentarei a princesa murmurou
gata. Creio que vs ireis gostar de Petrpolis.
Allah! Deus queira que nada lhe ocorra, minha
querida, pois olhe s os olhares dessas senhoras.
Com certeza, se vossa merc no fosse rica, estaria
morta neste momento.
Nunca liguei para esses olhares, no ser
agora que ligarei!
Nesse momento, Beathriz interrompeu a
conversa e disse:
Por favor, minha prima, venha aqui! Beathriz
tocou no brao da moa.
Pois no!
Desejo lhe apresentar meu noivo!
Com licena, mancebos!
Toda! Respondeu um deles.
Beathriz conduziu gata a uma sala, onde j se
221

Cludio Pereira da Silva

encontrava Francis. Aquela noite estava muito


animada, os cavalheiros em uma saleta fumando um
bom charuto de havana, j as damas em outra sala
fazendo mexericos e alfinetando os trajes alheios.
Os convidados estavam extremamente alegres,
mas no ntimo de Beathriz algo dizia que a noite
ainda no havia acabado. O que a noite estava
reservando para a pobre Beathriz, alegria, tristeza,
dor, ou alivio no se sabia, mas algo iria acontecer
at o findar daquele crepsculo! Queira Deus que
nada de ruim acontea com nossa donzela! Marcava
pouco mais de oito horas da noite quando o jantar foi
servido, os convidados estavam se esbaldando em
tantas especiarias deleitosas da gastronomia
portuguesa, mas o prato preferido era o bacalhau
com batatas.
Estavam todos reunidos em torno da mesa, o
jantar j havia sido servido havia vrias horas. A
fragrncia das especiarias deixava qualquer um com
gua na boca, aps servirem o prato principal e as
demais comidas salgadas, veio a sobremesa, era
tanta guloseima que no sabiam nem por onde
comear, pastis de Belm, pastis de santa clara,
manjar, pudins, quindins, compotas de figo, entre
outros. At os escravos se esbaldavam com o resto.
Aps os comes e bebes, todos voltaram para o
salo principal, onde a orquestra tocava. Algumas
pessoas haviam se assentado para fazer a digesto;
outras se encontravam caminhando pelo jardim, mas
a maioria das sinhs e sinhazinhas haviam partido
para um dos aposentos que havia sido reservado
para elas alargarem o espartilho, vulgo sala do
desmaio. J os rapazes e os senhores mais de idade
jaziam nas salas de jogos, fumando e bebendo.
Beathriz havia partido para sua alcova, na inteno
de usar a casa de banho, queria refrescar-se. Aps
lavar as mos e o rosto, a menina retornou ao salo.
222

Mistrios de Um Amor Proibido

Marcava pouco mais de onze horas da noite no


relgio do salo principal, quando a baronesa Isabel
pediu a ateno de todos e solicitou que todos a
seguissem, pois tinha algo para terminar aquela
noite de festa. Os convidados a seguiram, alguns
ficaram no balco, outros no alpendre, mas a massa
mais jovem de convidados desceu ao ptio. Beathriz
seguiu sua me de brao dado ao seu noivo, j
Isadora seguiu para o ptio junto de algumas amigas
de sua idade. gata, empolgada, comeou a pedir
discurso da baronesa que nada pronunciou: disse
apenas que s falaria aps a surpresa.
Alguns
minutos
antes
da
apresentao
comear, Incio, que estava de braos atado a sua
noiva, retirou-se para o interior da casa, pois queria ir
casa de banho. A apresentao que a baronesa
havia preparado para terminar o noivado havia
comeado. Eram pipocos para c e exploso para l,
a queima de fogos durou por volta de meia hora, em
meio a esse tempo Francis no havia sido mais visto
pela menina Beathriz.
Aps a queima de fogos, todos voltaram para o
interior da casa. gata estava valsando com um
moo bem rico, Isadora jazia correndo pela sala com
suas amigas. O sarau estava no seu ritmo normal at
que Isis sentiu falta de seu irmo e foi ter com
Beathriz.
Beathriz, vs sabeis onde est meu irmo?
Perguntou Isis, em tom irnico, escondendo-se atrs
de um leque.
No o vejo desde a queima de fogos concluiu
Beathriz, acomodada em uma conversadeira junto de
uma amiga.
gata, como nova componente da famlia e
como havia sido bem recebida na casa da baronesa,
decidiu convidar a famlia para passar uns dias em
sua casa em Petrpolis e ir festa no burgo do
223

Cludio Pereira da Silva

imperador.

224

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XVII
A visita inesperada

E abrindo os bas, guarda-roupas, gavetas,


valises, caixas, etc., Beathriz ps-se a tirar todas as
roupas de baixo, como saias de baixo, espartilhos,
crinolinas, anguas, calolas; em seguida, deu incio
na tirada dos vestidos de saia-balo, os de usar em
casa e os de festa, os corpinhos, casacos, capas,
chapus, botinas, vestidos de montaria, s no
mexeu nas joias e perfumes que estavam sobre a
penteadeira. Ela fez as contas de cabea e ali
estendidos sobre o cho nas conversadeiras, nos
divs, nas namoradeiras, nas cadeiras, nos canaps
e nos bancos, estavam espalhadas mais de
quinhentas mil peas, s de vestidos eram duzentas
e cinquenta mil, entre os de ficar em casa, os de
montaria e os de gala; de roupas de baixo, eram
cerca de sessenta mil, de acessrios cinquenta mil,
mas ao todo havia por volta de vinte milhes em
quilmetros de tecidos dos mais variados e dos mais
finos e nobres que existia em todo mundo.
Comeou ento a separar os que iria dar.
Todos os que eu separar para dar, vossas
mercs podero pegar para vocs, certo! Disse
Beathriz, separando os vestidos.
Sim, sinh! Responderam todas as negras.
Depois de duas horas e meia j havia separado
todos os que ela daria. De roupas sem uso, ela deu
225

Cludio Pereira da Silva

cinco mil. Quando terminaram a faxina, as escravas


recolheram as roupas e retiraram-se para a senzala e
distribu-las, j a sinh-moa ficou em seu quarto,
preparou-se para tomar o desjejum e s nove horas
desceu.
Naquela manh, aps o desjejum, Beathriz
decidiu caminhar um pouco pelo jardim, meia hora
depois foi surpreendida por uma visita inesperada;
enquanto passava por perto da senzala, uma voz
mscula
interrompeu
sua
caminhada.
Muito
assustada, ela se virou e levou um susto, quando
percebeu a presena dele.
Hen... Henrique! O que fazes aqui?
Perguntou Beathriz, ruborizada e tartamudeando.
Como sabe meu nome? Se naquela noite no
deixou nem me apresentar! Indagou Henrique.
Ah, isso no importa, mas o que fazes aqui?
Ah, isso sim importa!
Desejava v-la! E vim tomar posse do que
meu.
O qu?
Seu corao! Ou acha que eu no percebi.
Percebeu o qu?
O jeito que me olhava naquela noite!
Beathriz deu as costas, para sair dali, mas
Henrique com muita impertinncia agarrou-a e
beijou-a. Naquele momento, sua mucama saiu do
meio do mato correndo e gritando:
Sinh... Sinh... Vossa me a chama, vosso
noivo est a!
Beathriz e Henrique estavam to envolvidos que
nem perceberam a presena da escrava. Vendo a
cena, a escrava parou e no disse nada. Logo atrs
da escrava, veio o noivo de Beathriz que, vendo os
dois aos beijos, bradou:
Beathrizzzzz... Gritou Francis, apeando do
cavalo e indo em direo dos dois.
226

Mistrios de Um Amor Proibido

Beathriz, sem entender nada, afastou-se


rapidamente de Henrique.
O que est acontecendo aqui? Algum pode
me dizer?!
Henrique, assustado, disse:
Quem sois vs?
Eu que pergunto quem voc?
Beathriz percebeu que dali no sairia coisa boa,
ento rapidamente interferiu, dizendo:
No nada do que voc est pensando,
Francis!
Quem esse rapaz, Beathriz? Indagou
Henrique.
o meu noivo!
Como assim?
isso que voc escutou, meu noivo!
Por que voc no me disse que estava noiva?
Mas voc no me deu nem a oportunidade.
Francis ficou s ouvindo a conversa.
E agora o que farei, pois ainda a amo? Esta
noite iria a tua casa, falar com tua madre.
Esquea-me!
Mas como assim?
Do mesmo modo que me amou! Beathriz
caiu no choro porque tambm o amava do fundo de
sua alma.
Francis ento interferiu na conversa.
Acabou a cena pattica de amor, ou terei que
vomitar? No gosto de cenas como essa e odeio
ainda mais levar guampa.
Beathriz se afastou e Francis tomou seu lugar,
depois de algumas palavras trocadas e muitos gritos,
socos e pontaps, Henrique e Francis foram
separados por alguns escravos.
Ocs nem parecem ser senhores de bem,
parecem dois toa disse um negro.
Saia daqui agora, Henrique! Bradou Beathriz,
227

Cludio Pereira da Silva

assustada.
No sairei, pois ainda a amo!
Saia sim.
Os dois ainda trocaram algumas ameaas e,
batendo com uma toalha no rosto de Henrique,
Francis disse:
Desafio-o para um duelo! Amanh, nas
primeiras horas do dia.
Duelo aceito!
No, por favor, Henrique, no aceite!
Perdoe-me, moa, que nem sei o nome, mas
farei isso por am-la. E, se eu morrer, morrerei feliz,
por combater por sua causa. Mas, antes que eu me
v, diga-me seu nome.
Beathriz, chorando e ruborizada, disse:
Meu nome Beathriz!
Henrique subiu em seu cavalo e, antes de partir,
entregou um pequeno bilhete nas mos de Beathriz.
Naquele momento, Beathriz fora arrastada pelo
brao para dentro de casa, e l Francis descreveu
tudo o que havia visto para a baronesa, sua futura
sogra.
, foi assim mesmo que aconteceu terminou
Francis de explanar para a baronesa , mas eu ainda
no terminei, eu o desafiei para um duelo.
Mas duelo crime disse a baronesa.
A senhora queria que eu fizesse o qu? O que
est em jogo, a honra de vossa filha.
Depois de contar tudo e com muita raiva,
Francis partiu para sua fazenda, deixando a baronesa
e Beathriz sozinhas.
Minha filha, como voc pde fazer isso? Esse
rapaz que voc estava aos beijos o mesmo do
bilhete?
No, minha me! Disse Beathriz chorando.
J lhe disse que aquele bilhete eu no sei de quem !
E quem esse atrevido que invadiu nossa
228

Mistrios de Um Amor Proibido

fazenda?!
Ele o moo rico com quem dancei aquela
noite, na casa do imperador disse ela. Ele veio de
Petrpolis atrs de mim e esta noite viria falar com
voc, mas no teve tempo.
No acreditando na filha, a baronesa com clera
nos olhos pegou o rebenque e, deitando Beathriz em
seu colo, ergueu sua saia e deu-lhe uma sova.
Isso para voc nunca mais me fazer passar
vergonha diante de vosso noivo, ouviu mocinha?
Chorando e toda marcada, Beathriz correu para
seu quarto, mas, antes de terminar os degraus da
escada, disse:
Eu posso at ser obrigada a me casar com
Francis, mas amarei apenas um, Henrique!
Mas, ainda antes da menina atravessar os
umbrais da porta, a baronesa disse:
Sabe quem esse rapaz?
Beathriz virou-se, surpresa com a indagao de
sua me!
No... E por que eu deveria saber? apenas o
rapaz que escolhi para ser meu marido e pai de
meus filhos!
Se eu fosse voc, no diria isso, pois ele filho
de um poderoso baro que nos acusa de ter roubado
parte de suas terras e de ter lhe roubado dois
escravos!
Ah, que bom! Admiro-o ainda mais!
No ouse desobedecer-me, menina. Alm do
mais, voc est noiva e amanh receberemos os
parentes de seu noivo.
O que a baronesa no sabia era que antes de
Henrique partir havia lhe entregado um bilhete em
que combinavam a hora e o local de um encontro.
Beathriz deu as costas e saiu, e o resto daquele dia
no saiu mais de seu quarto, nem para jantar.

229

Cludio Pereira da Silva

Captulo XVIII
O regresso

No dia seguinte, Beathriz acordou ainda antes


do nascer do sol, pois queria preparar-se para o
passeio de logo mais tarde. Na ponta dos ps
desceu as escadas e foi cozinha, onde sua mucama
com outras escravas comeavam a preparar o
desjejum da famlia.
Hadassa, por favor, acompanhe-me!
Murmurou Beathriz.
Sim, sinhazinha Hadassa deixou o que
estava fazendo e acompanhou-a.
As duas seguiram para o quarto e, chegando l,
comeou a preparao. Primeiro Beathriz escovou os
dentes e lavou o rosto, depois se assentou no banco
da penteadeira e entregou suas longas madeixas
negras para a escrava pentear, mas, como a escrava
no a havia visto no dia anterior, perguntou:
Minha sinh, se a senhora me permite,
gostaria de saber o que aconteceu ontem, pois s
ouvi boatos na senzala e eu gostaria de saber a
verdade. Sei que sou apenas uma escrava, mas a
senhora sabe a estima que ns da senzala temos por
ti!
Nenhum problema, Hadassa. Porque foi
atravs de voc que descobri quem era o homem
que roubaria meu corao e posso lhe afirmar que j
foi roubado.
230

Mistrios de Um Amor Proibido

o senhor Francis? Perguntou a negra.


No! Redarguiu Beathriz. J que voc me
perguntou o que aconteceu ontem, agora lhe direi.
A escrava parou de pentear o cabelo de sua
senhora e, pelo espelho, fitou-a.
Ontem o paspalho do meu noivo me pegou
aos beijos com Henrique, o homem que a nh havia
previsto, e posso lhe afirmar que foi o melhor beijo
que j recebi.
Hadassa continuava fitando Beathriz pelo
espelho.
Num creio, minha sinh, que estou ouvindo
isso da sinhazinha! A sinh baronesa e eu no a
criamos para fazer isso, beijou outro homem que no
o seu noivo?
Sim, beijei e foi magnfico, pensei que estava
at sonhando. Mas acordei de meu delrio de amor,
com o paspalho do Francis me chamando!
Mas, sinh, no devia ter feito isso, pois est
noiva.
Qual... Estou me casando com Francis apenas
por convenincia, mas quem eu amo de verdade
Henrique!
Como assim? Acabou de conhecer o rapaz e j
est apaixonada?
Mas no foi a senhora mesma quem previu
isso?
Sim, mas a senhorita no deve infringir uma
lei da sociedade!
Perdoe-me, mas isso quem mandar o meu
corao! Murmurou Beathriz com muita raiva.
Pela primeira vez voc escutar o que eu direi!
Danem-se os ditames da sociedade hipcrita e
medocre em que vivemos. Ainda haver de ter uma
sociedade em que as mulheres sero como os
homens.
A escrava riu.
231

Cludio Pereira da Silva

Perdoe-me a senhorita, mas acaba de dizer


uma asneira, jamais uma mulher ser como um
homem. Alm do mais, muito melhor ser mulher do
que ser homem. Olha como as sinhazinhas so
graciosas, isso uma ddiva, e homem no tem e
jamais ter.
Oua o que digo, ainda teremos uma
sociedade de igualdade.
Jamais, nem daqui a duzentos anos.
Hadassa arregalou os olhos e encarou aquilo
como um pressgio. E, parando de pentear os lindos
cabelos de sua senhora, disse:
Deus do cu! Disse Hadassa, olhando para a
imensido do horizonte que se apresentava atravs
da janela que estava aberta. Queira Deus que esse
dia jamais chegue, pois, quando esse dia chegar, o
respeito, a moral, a honra e os bons costumes da
sociedade estaro em runas bravejou a negra,
assustada. Pobre dos que viverem nessa poca,
poca maldita da promiscuidade e da libertinagem,
tempo em que os filhos no obedecero mais a seus
pais, e as moas perdero suas honras ainda antes
dos quatorze, quinze anos.
Creio-em-Deus-Pai, Hadassa. Pare de falar
assim, est me assustando!
Hadassa balanou a cabea como se estivesse
voltando a si.
O que foi, sinh, por que a senhorita est
assustada?!
Nada, no!
Beathriz percebeu que Hadassa estava tendo
mais uma de suas vises, mas as palavras que
Hadassa dissera trouxeram um momento de
agradecimento a Deus, por ter nascido naquela
poca, mesmo que seu pensamento fosse muito
frente de seu tempo.
Esta sociedade em que vivemos um dia ser
232

Mistrios de Um Amor Proibido

lembrada apenas em livros, ser lembrada por


muitos adoradores de nossa poca. Enquanto a sinh
sonha com outra sociedade, daqui a cento e
cinquenta e um anos, ter uma pessoa que queria
viver em nossa sociedade, e essa sociedade ser
lembrada como a sociedade que o vento levou!
Aps aquelas palavras profticas, a escrava
ajudou Beathriz a vestir o vestido de saia-balo com
quatorze metros de musselina cereja no mesmo tom
da botina; aquele vestido estava valorizando ainda
mais a sua cintura finssima e delgada, uma das mais
finas do interior de Sant Anna, e a saia-balo era a
mais volumosa tambm, pois ela adorava as saiasbales e, em sua maioria, tinham por volta de dois
metros e meio em sua circunferncia.
Quando terminou de vestir a volumosa saiabalo, Beathriz desceu para a sala de jantar, onde foi
servido o desjejum, logo aps o caf da manh, e foi
cavalgar, passou o dia todo cavalgando e retornou
para casa para se preparar, para ir ao seu encontro.
O que a iai est fazendo aqui fora, neste frio,
a esta hora do dia? Disse a velha senhora,
cobrindo-a com a manta.
Nh Joaquina, responda-me algo.
Se a pobre velha aqui pode!
A senhora est nesta casa desde meus
antepassados, no ? Disse Beathriz cobrindo-se.
Sim! Minha fia.
Como era meu pai?
A pobre senhora, nesse momento, ficou sem
uma palavra, sua voz embargou e estremeceu.
Por que tanto assombro? Disse Beathriz,
estremecendo com a brisa que passara em suas
costas Vejo claramente em seu rosto o assombro.
Por um acaso meu pai era um mostro?
Prefiro no falar nisso, minha sinh! Disse a
escrava, assentando-se ao lado de Beathriz. Perdoe
233

Cludio Pereira da Silva

esta pobre velha, minha senhora. Apenas lhe afirmo


que o senhor seu pai fora um bom homem. Que Deus
o tenha!
Se ele fora um bom homem, por que ningum
me quer falar sobre ele?
Joaquina sentou-se do lado de Beathriz e, com
as mos gastas pela labuta, acariciou as longas
madeixas dela. A sinh, por sua vez, deitou-se no
colo da velha escrava, e uma lgrima escorreu em
sua face, mas logo fora amparada pelas mos da
negra. As horas haviam se passado e Beathriz foi
para seu quarto, preparar-se, pois assim que sua
irm, me e primas levantassem, elas iriam ao
vilarejo de Campos fazer mais compras.
A vitria onde estava Joaquina, Beathriz e a
baronesa Isabel, ia frente e logo atrs vinha a de
suas primas. As duas carruagens estavam descendo
a Rua Dom Pedro I, uma das ruas mais importantes
de Sant Anna, onde ficavam as casas de moda e os
aranzis. Assim que o coche parou junto casa de
moda da senhora Margarida, Beathriz descera e fora
logo fazer a prova do vestido que havia
encomendado.
D. Margarida era portuguesa e teria por volta
de trinta anos; pele alva, cabelos louros, olhos cor de
mel. Mesmo sendo mais humilde que suas clientes,
ela era tambm abastada. Tinha o porte esbelto, a
cintura delicada, seu rosto traspassava a maior
alegria.
E a, Beathriz, o que achou do vestido? disse
Margarida, dando os ltimos retoques na saia.
Est primoroso! Mas creio que precise de mais
um aperto na parte de cima murmurou Beathriz,
rodopiando na frente do espelho.
O vestido que dona Margarida havia feito para
Beathriz era no tom de um lils real com muitos
pontos de brilho, a saia era bem ampla e feita de
234

Mistrios de Um Amor Proibido

seda com excesso de fitas, babado e fils.


Onde vs quereis que eu aperte? Perguntou
dona Margarida, com uma fita mtrica nas mos e
com alfinetes.
Aqui , na blusa! Pois a saia est tima
bradou Beathriz, tirando a parte de cima do vestido.
Enquanto isso, Isabel experimentava luvas, na
frente da loja Alice e Mariana aguardavam no coche.
No dia seguinte, estavam todas reunidas no
alpendre, ao redor de uma mesa, tomando o ch da
tarde. As cinco senhoras, vestidas com muito apuro e
elegncia, estavam discutindo os ltimos detalhes da
viagem.
Mame, quando partiremos? Murmurou
Beathriz,
abanando-se
com
um
leque
de
madreprola.
Daqui a trs meses! Respondeu a baronesa
Isabel, dando um gole no ch.
Precisaremos de quantas carruagens?
Perguntou Isaura, ajeitando os vincos da saia.
Eu acho que de um coche e uma carroa. O
coche para ns, e a carroa para as mucamas e para
os bas disse a baronesa, olhando para a janela.
Sem contar os cavalos e os capatazes. Creio que um
coche e uma carroa esto de bom tamanho, pois
Mariana e Alice iro antes de ns.
Mame, posso lhe fazer uma pergunta?
Disse Beathriz, dando um hausto no ch.
Sim, minha filha murmurou a baronesa
Isabel, arrumando a saia.
A senhora poderia me dizer o que tem dentro
daquela caixa que est em seu guarda-roupa?
A baronesa engasgou e arregalou os olhos, seu
semblante caiu por terra.
Vs andais mexendo nas minhas coisas?
Perguntou a baronesa, ajeitando seu penteado com
muita aflio.
235

Cludio Pereira da Silva

Jamais eu faria isso, mame.


Ento, como voc sabe dessa caixa?!
Estava eu procurando-a, quando entrei em sua
alcova. E l estava Oflia mexendo em suas roupas,
ento percebi que em suas mos havia uma caixinha
mimosa. E foi assim que vi a caixa!
Voc est mentindo!
Jamais mentiria para a senhora, minha me.
Ao lado da baronesa estava a escrava Joaquina.
Nh Joaquina! Pea a Oflia para vir aqui
agora!
A escrava foi cozinha chamar Oflia. As outras
damas foram para sua alcova, preparar-se para o
jantar.
Pois no, sinh? Disse Oflia, ainda debaixo
do umbral da porta.
Vem c, sua escrava insolente! Disse Isabel,
com a clera estampada em seu rosto. O que voc
estava fazendo em meu quarto?
Estava trocando os lenis murmurou Oflia.
A senhora no viu?
Eu no estou falando nisso! Bradou Isabel,
levantando-se da cadeira. J no disse que no
quero ningum mexendo em minhas coisas? Por que
estava mexendo em meu guarda-roupa sem minha
ordem? E principalmente na caixa que est l?!
Mas, iai, eu no estava mexendo em suas
coisas!
Estava sim! Minha filha viu Isabel se
aproximou da escrava. Eu lhe ordeno que no
mexas mais em minhas coisas!
Perdoe-me, sinh! Mas creio que vossa filha
est mentindo.
Como assim! Estais loucas! Sua estouvada.
Est dizendo que a sua senhora mente? Disse
Isabel, erguendo a mo para bater no rosto da
escrava.
236

Mistrios de Um Amor Proibido

Nesse momento, apareceu Beathriz no umbral


da porta.
No, no! No faa isso, minha me
murmurou Beathriz, segurando a mo da baronesa.
Deixe-me! Essa escrava miservel precisa
sentir a mo de sua senhora bradou Isabel em alta
voz, rubra de dio. Essa negra safada, acaba de
dizer que voc est mentindo.
O qu?
Foi isso mesmo, que voc acabou de escutar
disse a baronesa. O que faremos com ela?
Mande-a para o tronco! Bradou Beathriz,
bem alto.
A baronesa Isabel no era muito adepta a esses
tipos de castigos, mas para aquela escrava era
necessrio, pois era muito atrevida e insolente e j
estava provocando suas senhoras havia dias.
Seu Chico! Gritou a baronesa ao feitor da
fazenda, que logo veio.
Pois no, sinh? Disse seu Chico, ainda no
ptio.
Leve esta escrava agora para o tronco falou
a baronesa, agarrando-a pelo brao.
Piedade de mim, sinh murmurou a escrava.
No fao mais isso!
Seu Chico pegou-a pelo brao e a arrastou-a
at um tronco que tinha no meio do ptio, prendeulhe os braos e rasgou-lhe a blusa de chita.
Ao seu redor outros escravos olhavam atnitos,
alguns aprovavam a deciso de sua senhora, outros
reprovavam, mas nenhum dizia nada.
Isabel jamais aprovou esse tipo de castigo, at
mesmo quando morava com seus pais. Tratavam os
escravos de sua fazenda como gente, nunca
humilharam um negro sequer, mas Oflia estava
merecendo, havia dias que ela vinha provocando
suas sinhazinhas, sem contar as coisas que haviam
237

Cludio Pereira da Silva

sumido da fazenda. E Beathriz sabia do dio que a


escrava nutria contra sua famlia.
Quantas chibatadas, minha senhora?
Perguntou o feitor.
Trinta! Respondeu Beathriz, que estava logo
ao lado do tronco.
Ao lado da baronesa, estava Mariana, Alice e
Beathriz, que estava de braos dado com a escrava
Joaquina.
No faa isso, minha me, eu lhe imploro
disse ela meigamente, com os olhos cheios de
lgrimas.
Perdoe-me, minha filha, mas tenho que fazer
isso, ela est merecendo esse corretivo disse a
baronesa, afagando-lhe a face. Pode comear, seu
Chico!
As chicotadas comearam. Beathriz amparou-se
no ombro da negra velha.
Um, dois, trs! Contava seu Chico.
Por favor! Mame, mande seu Chico parar
murmurou Beathriz, debulhando-se em lgrimas.
No posso! Respondeu a baronesa.
Continue, seu Chico!
Piedade de mim, sinh! Disse Oflia, j sem
foras. Pelo amor de Deus!
Vinte e oito, vinte e nove, trinta contou o
feitor. Pronto, sinh, ou continuo?
Eu acho que est bom, creio que essa crioula
j aprendeu disse a baronesa Isabel. Por favor!
Ernesto, pode tirar essa escrava nojenta do tronco e
a leve para a senzala.
Oflia, com o lombo ensanguentado, foi retirada
do tronco e levada para a senzala, l as outras
escravas cuidaram de seus ferimentos, colocaram
folhas de saio. Beathriz estava assombrada com
tamanha crueldade, em seus dezenove anos, nunca
havia visto aquele tronco ser usado. Oflia fora a
238

Mistrios de Um Amor Proibido

primeira que usar ele.


Ai, ai, ai! Gemia Oflia, com as costas
lavadas de sangue. Eu hei de me vingar dessa
famlia! Escute o que eu digo, nh Joaquina.
O dio havia invadido o corao de Oflia,
naquele momento seu corao havia sido invadido
por uma clera mortal. Faria o possvel e o impossvel
para destruir a famlia de Beathriz.
Oc no far nada contra a famlia da sinh
Beathriz, ou serei obrigada a lhe entregar ao feitor
disse a negra velha, limpando os ferimentos de
Oflia. Est me ouvindo, sua negra abusada.
A, nh Joaquina, oc vai ver! Murmurou
Oflia, gemendo de dor. Quem viver ver!
Uma lgua dali, em uma fazenda tambm
muito suntuosa e magnfica, encontrava-se no
alpendre uma bela dama, em sua mo trazia um
bastidor onde bordava um ramalhete de rosas.
Essa senhorita era muito soberba, ela tinha por
volta de vinte anos, a pele alva, cabelos loiros, olhos
turquesa, sua cintura tinha pouco mais de quarenta
centmetros. Sua beleza e o seu porte senhoril eram
ressaltados ainda mais pela beleza de seus trajes.
Naquela tarde a donzela trajava um vestido de seda
rosa royal, com a roda bem ampla, sua fronte estava
coroada com o diadema de duas tranas, no alto da
cabea um pequeno calibre de onde ressaltavam
milhares de cachos, endurecidos base de gua
aucarada. Isis era muito arrogante e prepotente,
adorava desfazer das pessoas mais humildes.
D licena, sinhazinha? Perguntou uma
escrava.
Toda! Diga o que quer, preta asquerosa
murmurou Isis.
Eu vim aqui apenas para lhe dar o recado que
recebi agora h pouco no riacho onde lavava roupa.
Uma escrava da fazenda dos Albuquerque me disse
239

Cludio Pereira da Silva

que a vossa informante no poder v-la por alguns


dias, pois foi aoitada e est de cama descreveu
Balbina.
Por que ser? Balbuciou Isis, levantando-se
da cadeira. Ser que a maldita da baronesa Isabel
descobriu a traio da miservel. Meu Deus! O que
ser de mim sem as informaes que aquela
negrinha me trazia?!
No sei qual foi o motivo que levou Oflia ao
tronco, mas na senzala comenta-se que ela estava
mexendo nas coisas de sinh Beathriz.
Menos mal! Mas mesmo assim, espero que
seja somente isso! , somente isso concluiu Isis,
assentando-se novamente.
sim!
Ento! Saia daqui, sua escrava nojenta. S me
aparea aqui quando for chamada.
Oc, sinh, deseja mais algo?
No, agora me deixe em paz!
Isis era a filha mais nova da famlia Almeida, a
jovem era muito bela exteriormente, mas muito cruel
interiormente. Tratava os escravos como animlia. Os
negros para ela eram com se fossem apenas peas,
que ela comprava e se desfazia logo em seguida.
Quantas vezes no mandaram um pobre
africano para o tronco apenas para se satisfazer,
ouvindo seus gritos e gemidos de dor, enquanto um
escravo era aoitado no ptio, ela ria-se a par,
assentada em um sof da sala.
Mas Deus fora justo com a famlia Almeida,
enquanto ela se divertia com a desgraa alheia, seu
irmo mais velho tornara-se abolicionista. Incio era
um belo mancebo, tinha por volta de vinte e seis
anos, era garboso, tinha olhos verdes, cabelos
negros e pele alva. Ele era desejado por varias
senhoritas da sociedade, mas a que lhe interessava
mesmo era Beathriz, seria capaz de fazer tudo para
240

Mistrios de Um Amor Proibido

conquistar o amor de tal donzela. Naquela tarde, ele


estava trajando uma casaca de camura preta. A
casa-grande, como era conhecida pelos escravos,
tinha por volta de 969 cmodos, sem contar as cem
casa de banho e os 105 toucadores. A parte frontal
do edifcio apresentava um jardim no estilo francs,
mas com um leve toque brasileiro. Com a presena
de cinco palmeiras-reais, trazidas de Portugal. J na
parte de trs havia um lindo mar verde, de
aproximadamente
89950.0000
alqueires
em
plantao de caf. Tambm havia um ptio com
trezentos e dezenove mil metros, para a secagem do
caf, uma senzala para mais de mil escravos, um
orquidrio, um roseiral, uma cocheira, uma baia, um
curral, casa de uma famlia colona, entre outros
edifcios acessrios.
Isis, mame, papai. Onde esto vocs?
Perguntou Incio, entrando na sala.
Estou aqui! Respondeu Isis, que estava
sentada em um canap bordando. O que foi,
Incio?
Leia o que est escrito aqui, neste jornal
concluiu Incio, sentando-se ao lado da irm.
A moa passou os olhos ligeiramente pelo papel
e disse:
Retire-se daqui agora com essa asneira!
Murmurou a moa, levantando-se do canap. J
vieste aqui me amofinar com essa conversa de
abolio! J no te disse que odeio essa conversa
bradou Isis, caminhando at uma janela. Jamais
isso ir acontecer! O que faremos ns sem esses
animais ftidos? Quem lavar nossas roupas, ou
colher nosso caf ou lavar nossas latrinas?
Cale a boca, sua sinhazinha mimada! Bradou
Incio, em alta voz e erguendo-se do canap. Saiba
que esses animais, como voc os chama, so gente
como ns.
241

Cludio Pereira da Silva

Jamais! Essas coisas nem alma tm. Com


podem ser gente?!
Incio levantou a mo, para bater no rosto de
Isis.
Bata! Bata, se for homem desafiou Isis.
J disse para no me desafiar.
V, bata em mim! Como um senhor bate em
seu escravo.
Bem que tu mereces, mas no irei sujar minha
mo! Agora me d licena, pois tenho mais o que
fazer.
Aps Incio sair, Isis foi para seu quarto.
O sol j estava alto, quando Beathriz e as
demais senhoritas resolveram passear pelas vrzeas.
Logo que o coche ultrapassou a porteira, ao
longe Beathriz avistou um cavalo que vinha trotando
rapidamente; logo imaginou que seria algum
mensageiro, mas, quando o cavalheiro se aproximou,
percebeu que se tratava de Incio, que parou diante
do coche e disse:
Boa-tarde, senhorita.
Boa! Respondeu Beathriz, inclinando-se para
fora do coche.
Aonde iro to belas damas com este sol?
perguntou Incio. Com os olhos colados em Beathriz.
Naquele momento Incio sentiu como se seu
corao fosse sair pela boca. O cho sumiu de seus
ps, sentia-se flutuando, no sabia distinguir o que
estava sentindo, seria ela uma deusa, uma fada, uma
ninfa ou, quem sabe, nada disso, apenas uma bela
mulher, mulher esta que lhe perturbava e que lhe
fazia perder o sono.
Ns iremos caminhar pelo vargedo!
Respondeu ela, arrumando a sombrinha que lhe
protegia do sol. Com licena, precisamos continuar.
Toda! Disse Incio, com o corao aos latejos
por ter visto sua amada.
242

Mistrios de Um Amor Proibido

Beathriz percebeu a forma que Incio a olhava.


Ento se lembrou da carta que havia recebido no dia
anterior, sua suspeita se realou ainda mais quando
Incio beijou-lhe a mo, ela percebeu que seu anel
tinha o braso que o lacre da carta trazia. Ser que
ela havia descoberto quem era seu admirador
secreto? Ou seria apenas uma miragem, produzida
pelo forte calor que fazia naquela tarde. O dia estava
realmente lindo, os pssaros passavam por sobre a
carruagem, o gado mugia no pasto.
Marcava quatro horas da tarde no relgio que
ficava preso ao cs da saia de Mariana, quando o
coche parou diante de um belssimo riacho. A
primeira a descer foi Beathriz que, sucessivamente,
foi seguida pelas outras.
Abrindo a sombrinha, Beathriz caminhou por
entre as rvores e depois caminhou margem do
lago. Mariana e Alice preferiram ficar sentadas na
relva que cobria toda a extenso do lago, j
Leopoldina preferiu sentar-se debaixo de uma
mangueira para ler um livro.
Voc viu como Beathriz ficou depois que viu
Incio? Murmurou Mariana.
Ser! Ser que ela est apaixonada?
Concluiu Alice, ajeitando as pregas da saia.
Creio que no! Respondeu Mariana.
Conheo um olhar apaixonado e garanto que o dela
foi apenas de surpresa!
Chega! Ela est vindo a! Balbuciou Alice,
pegando a cesta em que trouxeram as refeies.
Vamos lanchar agora? Perguntou Beathriz.
Estamos esperando apenas vocs! Bradou
Mariana.
Mariana!... Gritou Beathriz. Venha lanchar!
O sol j havia partido quando as jovens
resolveram voltar para casa. O caminho de volta foi
muito maante. Quando chegou fazenda, a moa
243

Cludio Pereira da Silva

partiu diretamente para a sua alcova e l se


trancara, a nica pessoa que entrou em seu quarto
foi a escrava Joaquina, que havia ido apenas para
ajud-la a se trocar. Naquela noite a jovem no
conseguiu nem pregar os olhos, a noite para ela foi
verdadeiramente uma viglia, seus pensamentos
estavam perturbados, seria Incio o seu admirador
secreto, ou no? Levantou-se e deu alguns passos
at chegar penteadeira, onde estava sua caixa de
joias, abriu-a e pegou o bilhete que estava em seu
interior, deu mais alguns passos e se assentou no
div aos ps da cama. Com um olhar interrogativo,
investigou o papel e cessou o olhar sobre o lacre da
carta, ficou por tanto tempo ali parada que nem
percebeu que as horas haviam passado e o dia j
vinha raiando.
Aquela manh seria a ltima de Mariana e Alice
na fazenda, pois no mesmo dia partiriam elas para
Sant Anna. Marcava dez horas da manh no relgio
da sala quando as visitantes partiram.

244

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XIX
A chuva que abenoa

O sol ainda boiava no horizonte, quando os


moradores da fazenda comearam a acordar. Tudo
parecia acordar mansamente, as janelas eram
abertas, as portas da sacada tambm. Ficavam
fechadas apenas as janelas do dormitrio. As
mucamas espanejavam os mveis, lustravam a
prataria, lavavam os urinis, escarradeiras, trocavam
as roupas de cama dos quartos de hspedes,
colocavam ervas aromticas nas gavetas e dentro
dos guarda-roupas, retiravam as velas j queimadas
dos candelabros e dos lustres e enceravam os tacos.
Julieta era a escrava encarregada de arrumar os
toucadores e os quartos da senhora da casa. Isso
quando a casa no recebia hspede, pois a a rotina
da casa era modificada.
L no campo as gaivotas voavam, as aves
deixavam seus ninhos para ir atrs de comida, as
vacas ruminavam e mugiam, em suas tetas bezerros
mamavam, esperavam o momento em que seriam
separados para a ordenha. As cabras corriam soltas
pela campina, e os cavalos trotavam alegremente.
Atrs da fazenda, o riacho corria, e o moinho fazia
um cantarolar a cada nova remea de gua. Chu...
Chu... Esse era o som que o moinho produzia, era
uma msica ruidosa que ia terminar em uma
pequena corredeira, onde as negras lavam as roupas
245

Cludio Pereira da Silva

de seus senhores em dia ensolarado, e ali mesmo


sobre os pedregulhos secavam debaixo do sol. Os
negrinhos corriam e pulavam, faziam uma amlgama
naquelas guas, nus ou vestindo apenas suas calas
de chita vagabunda e com os ps descalos.
Sim, meu caro leitor, marcava quinze para as
cinco da manh, quando o feitor foi senzala e fez
com que a negrada acordasse, para trabalhar, pois a
labuta na fazenda dos Albuquerques comeava ainda
antes de o galo cantar. Cocoroc... Cocoroc...
Cantava o galo sobre a cerca do galinheiro. L na
cozinha cantava o bule enquanto a gua fervia para
fazer o caf. Hum... Olha o bolo de fub de nh
Xica, gritava o feitor do ptio. E l vinha outro beirar
a janela a dizer: nh Xica, faiz isso com nis,
no! E a velha respondia acompanhada de uma
vassoura: V, co mardito. Isso aqui para as iais.
Oua! O que oc, ainda faz aqui? Tu e o feitor. No
era para estar levando os negros para o cafezar,
dizia a negra, enquanto bamboleava as largas
cadeiras.
Enquanto
isso,
na
senzala, os
negros
apanhavam para levantar; as crianas choravam,
pois eram arrancadas das tetas das mes. Aquele
seria mais um dia de trabalho duro para aqueles
negros que eram os primeiros a se levantar e os
ltimos a se deitar. As mucamas trabalhavam a todo
o vapor, pois precisavam terminar o desjejum antes
que suas senhoras acordassem. Corre daqui, tira bolo
do forno, pe a massa de po para assar, coa o caf,
espana a mesa de caf da manh e coloca a toalha
de mesa de renda francesa. Tudo isso era feito
enquanto a baronesa Isabel e Beathriz dormiam. L
por volta de oito horas da manh, quando os
escravos j haviam ido para a lavoura e as escravas
de casa j haviam feito boa parte dos afazeres, Xica,
a b de Beathriz, subia pela escada de servio e ia ao
246

Mistrios de Um Amor Proibido

quarto de sua protegida. Entrava, abria as cortinas e


o dossel da cama, depois preparava o banho matinal
da moa e s ento acordava a menina com um beijo
na face.
Bom-dia, minha fia branca murmurava a
negra ao p do ouvido.
Beathriz abria os olhos e, sorridente, respondia:
Ol... Minha me preta, bom-dia! Ser que
hoje o dia est para uma boa cavalgada? Dizia
Beathriz, enquanto passava a delicada mozinha nas
longas madeixas, colocava o robe que ficava beira
da cama e, com as pantufas nos ps, ia janela e
respirava bem fundo, como se quisesse tomar todo o
ar da terra. A brisa soprava no rosto da moa,
fazendo o calor sumir, a cada nova rajada de vento o
quarto era arejado e todo o mormao da noite sumia.
Assim que acordava, Beathriz no era muito de
conversa, mas com o passar das horas ela comeava
a se soltar e a tagarelar e, quando acordava
espirituosa demais, dava at palhinhas de sua
msica favorita. Aps o banho, Beathriz se vestia e
descia para a cozinha, pois adorava ficar junto com a
negrada e preparar bolo e outros quitutes junto de
sua me preta, coisa que no poderia fazer na
presena de sua me. A baronesa que sempre dizia:
lugar de sinazinha no salo e de escrava no
poro passando roupa ou na cozinha. A nica coisa
que a baronesa permitia Beathriz fazer na cozinha
era preparar os arranjos de flores que enfeitavam a
casa. A baronesa era uma mulher de certo modo boa,
mas no to boa quando se tratava de escravas e de
assuntos financeiros. Tinha o gnio forte demais,
gnio esse muito parecido com o da filha.
Beathriz entrou na cozinha e foi logo pegando o
seu avental, o nico que poderamos ver pendurado
em uma parede, pois as negras no usavam aquele
acessrio. Achavam que aquilo era coisa para sinh
247

Cludio Pereira da Silva

no sujar o vestido de seda. A menina j entrava na


cozinha fazendo festa.
Bom-dia, minhas lindas! Dizia Beathriz,
sorrindo e gargalhando. Nossa, que cheiro esse?
Ah, j sei. No pode ser! Ser? Ser mesmo?
, sinh, isso mesmo que a sinhazinha est
pensando; ns fizemos um dos seus quitutes
favoritos. Sabe qual ?
Mas o que a sinhazinha est fazendo aqui?
No sabe que a nh baronesa no gosta que
sinhazinhas se misturem com a criadagem? Disse
Dalva, enquanto desenformava o bolo de laranja.
Mas mame no precisa saber! Precisa?
Hum... Hum... Acho que sei!
Qual?
Bolo de fub, pessegada?
Ih, t longe...
Xica resolveu dar ento uma pista.
Esse doce no daqui! Ah, uma receita de
famlia murmurou a negra, enquanto observava a
alegria estampada na face daquela que ela trocara
os cueiros.
Ah... J sei, pastel de santa clara.
Isso... Isso, sinh, isso mesmo disse
Sebastiana, enquanto tirava a fornada. Que pena
que a sinh j descobriu!
Pastel de santa clara. Hum... Aquela delcia
que a minha bisav trouxe de Portugal e minha av
ensinou a Xica.
Isso... Isso, essa mesma!
Beathriz pegou um pastelzinho e colocou na
boca.
Calma, sinh, est quente!
Beathriz ajudou as negras a desenformar os
bolos e os pes. E, quando terminou a ajuda, teve
que sair correndo da cozinha.
Deus do cu! Corre, sinh, pois a baronesa
248

Mistrios de Um Amor Proibido

vem a bradou a mucama particular, da baronesa.


Corre, sinhazinha, pois sinh Isabel j est acordada
e prestes a descer as escadas e, se no encontrar a
sinh l no salo, ir se zangar. E oc sabe o que ela
far...
Est bem... Est bem, J sei brincava
Beathriz, enquanto tirava o avental: menina, lugar
de sinhazinha no salo e no no borralho... dizia a
sinh-moa, enquanto imitava sua me. A jovem
tirou o avental e correu para o salo, onde fingiu
estar bordando.
Bom-dia, minha me. Dormiu, bem?
Balbuciou Beathriz, enquanto bordava.
O que a senhorita estava fazendo?
Nada, minha me!
No minta para mim, pois a conheo muito
bem e voc esta ofegante demais. Seu rosto est
rseo, parecia estar correndo, ou coisa assim!
Beathriz tentou disfarar e, erguendo-se da
cadeira onde estava, disse:
apenas o meu espartilho que est apertado
demais, acho que no irei at o fim da tarde sem
perder os sentidos. Por isso, assim que eu terminar o
almoo, irei para a sala de desmaio tirar a sesta.
Por falar nisso, cad as mucamas que ainda
no serviram o desjejum? Ento a baronesa ergueu
a voz e, enquanto tocava o sininho, articulou:
Xica... Xica... A baronesa j estava impaciente,
quando a negra apareceu em uma das portas do
salo.
Pois, no sinh?! Balbuciou a negra.
Cad o desjejum? Eu estou com fome e, daqui
a pouco, terei que sair.
O desjejum de minhas senhoras ser servido
na mesa do jardim de inverno, pois hoje o dia est
belssimo e est muito abafado.
A negra saiu, deixando as duas sozinhas.
249

Cludio Pereira da Silva

Vamos, filha, tomar o caf, pois daqui a pouco


terei que ir cidade. Hoje teremos a reunio do
conselho dos fazendeiros da regio de Sant Anna.
Beathriz, de braos atados me, partiu para o
jardim de inverno, onde a mesa j estava posta.
Beathriz trajava uma linda saia-balo rosa-prola real
e um corpinho branco de mangas bufantes a la
princesa. J a baronesa usava uma coisa mais
discreta, vestimenta para a sua idade. Ambos os
penteados eram na moda francesa da poca.
A baronesa se assentou cabeceira, Beathriz
direta da mesa, l as duas dialogaram e caoaram
das carolas da missa de domingo. Brioches, po
francs, bolo de laranja, compotas, pastis de santa
clara, entre outras guloseimas, estavam espalhados
sobre a mesa. O caf da manh estava estupendo,
coisas de todas as qualidades e de todos os tipos.
Aps o caf da manh, a baronesa foi ao seu
quarto, trocou-se e partiu para a cidade, deixando
Beathriz aos cuidados de sua b. Assim que o coche
da baronesa atravessou a porteira, Beathriz correra
para seu quarto tambm, pois iria cavalgar.
No entanto, poucas horas antes de deixar o
quarto, a menina foi surpreendida por uma visita
inesperada. Sim, era ele, Francis, seu futuro noivo. A
jovem ficou desolada e pensou at em sair pelas
portas do fundo, mas foi advertida por sua b.
No, minha fia, oc no far isso! Dizia a
negra. Vsmec no pode fazer isso, pois seu
noivo e voc deve-lhe respeito. Alm do mais, foi o
homem que sua me escolheu para ser seu marido.
Disse tudo! Bradou Beathriz, indignada. Se
foi ela quem escolheu, ela que se case com ele
ento!
Por Deus, sinh! No faa isso, pois, se cair no
ouvido de sinh me, sou eu quem vai para o tronco.
Ouvindo as splicas da negra, Beathriz
250

Mistrios de Um Amor Proibido

concordou em receb-lo.
Est bem. Desa e diga a ele que o receberei,
mas na biblioteca, e que no demore muito, pois
preciso sair.
A negra saiu deixando a jovem, que logo
desceu. Francis estava l na biblioteca espera de
sua amada. Estava com um gibo negro e uma cala
cor de creme, nas mos trazia um charuto cubano.
Minutos depois, Beathriz apareceu debaixo dos
umbrais da porta, vestida para cavalgar. Francis
ergueu-se da cadeira, assim como ditavam as boas
maneiras. A jovem fez uma leve mesura e,
inclinando-se sobre um sof disse:
O que voc veio fazer aqui, a esta hora do dia?
H... Indagou Beathriz, com certo tom de
arrogncia no timbre de voz. Espero que seja algo
muito importante, pois estou atrasada por demais.
V... V desembuchando logo de uma vez, pois no
tenho tempo para conversa estapafrdia. V, meu
rapaz, diz logo a que veio. Perdeu a lngua, foi?
Francis parecia estar extasiado.
No, minha rosa! Foi a tua formosura que
inebriou os meus sentidos. Ainda mais ver-te assim
com essa cara de arrogncia, que lhe cai muito bem!
H... H... H... At parece! Se voc veio aqui,
s para me dizer isso, pode voltar para o inferno,
co! Concluiu a jovem ferozmente. Agora, com
licena, pois o meu cavalo est minha espera, e eu
no gosto de deix-lo esperando. Com licena... Por
favor!
Oh, meu anjo, no me deixe aqui!
V para o diabo que o carregue! No aguento
mais olhar para essa sua cara feia! Por favor, no me
siga, pois no levarei minha mucama, e uma donzela
no deve ficar a ss com um homem...
Oh, meu anjo de candura...
Vosmec no aprende mesmo, meu caro. Eu...
251

Cludio Pereira da Silva

J disse que no quero que me chame de anjo! E


tenho dito.
Eu c falo como me d na telha! Respondeu
Francis. Acho bom a senhorita comear a me
respeitar. Pois voc querendo, ou no, eu fui o
escolhido para despos-la. E assim ser.
Como ? Isso uma ameaa? Ah, meu filho,
uma coisa que eu no tenho medo de homem.
Principalmente se o homem for igual a voc! Dizia
Beathriz, com muita audcia. Est para nascer o
homem que um dia mandar em mim. H, h, h...
Agora me d licena, antes que o sol fique mais
quente.
Parece que William Shakespeare escreveu a
Megera Domada, inspirada em vossa merc, meu
amor!
Com licena! J ouvi mer... demais por hoje.
Passar bem!
Beathriz saiu, batendo os ps no taco do cho e
s gargalhadas, deixando ali Francis sozinho, olhando
para as paredes.
A jovem atravessou algumas salas, corredores e
parou no hall de entrada, perto do alpendre, onde
colocou o chapu panam e um vu no rosto, para
que no tomasse sol direto no lindo rosto plido.
Depois passou pelo alpendre, desceu dois lances de
escada, deu mais alguns passos pelo ptio, colocou
as luvas de montaria e, com a ajuda de um negro,
montou no cavalo Espoleta. Saiu aos trotes logo na
sequncia. Francis ficou da biblioteca, olhando os
passos de sua amada, atravs de uma janela.
Cabelos ao vento, o vestido de montaria parecia
danar com a brisa, assim como a longa madeixa.
Em questo de segundos, a menina havia sumido
pela campina e de longe era possvel ver apenas o
topo do chapu.
Naquele amanhecer, Beathriz estava se
252

Mistrios de Um Amor Proibido

sentindo livre como um passarinho quando aprende a


voar. Ela adorava sentir aquela sensao de
liberdade, mesmo que fosse uma percepo
momentnea. Os fios de cabelo que estavam soltos,
fora da redinha que segurava o penteado, ela
imaginava que fossem as suas asas, e se imaginava
uma gaivota solta nas plancies. A jovem no era
uma escrava, mas se sentia como uma, pois no
tinha o direito de amar quem quisesse. E seria
obrigada a se casar com um homem idiota, ao olhar
dela. Pulou uma roseira e depois outra, depois outra
at que parou diante do lago, desceu do cavalo,
lavou o rosto e em seguida voltou a cavalgar.
Cavalgou o dia inteiro, pois queria fugir do
assdio do idiota do seu noivo. A cada roseira que
pulava, era mais uma esperana de cair do cavalo e
quebrar o pescoo. Pois talvez assim ela ficasse livre
de
suas
obrigaes.
No
acreditava
em
reencarnao, mas sempre dizia: se isso de
reencarnao existe, na prxima vida eu quero ser
homem. claro se isso for o desgnio de Deus, Nosso
Senhor. No que ela no gostasse de ser mulher, ela
at gostava, mas sentia-se presa. Ela adorava ser
mulher, pois as roupas e os acessrios eram mais
bonitos que os dos homens, mas ela no gostava de
obedecer a ordens de uma sociedade hipcrita e
patriarcal. Ela no era igual a outras mooilas de sua
idade que s esto interessadas em flertes,
mexericos e futilidades, coisas caracterstica de sua
idade. Ela odeia ficar em casa, esperando o prncipe
encantado. Mas dentro de si s uma coisa muito
feminina prevalecia, era a vontade de comprar
roupas e de andar na moda. Mas apenas isso, e s
isso, interessava-lhe no mundo feminino. No era
afeita a ataques e chiliques, coisa que toda moa
tinha, quando via bichos asquerosos e nojentos,
como rato, barata, tarntulas, entre outros animais
253

Cludio Pereira da Silva

abominveis.
A jovem Beathriz queria fugir de sua realidade,
ento cavalgou at chegar ao campo mais alto da
fazenda, onde ela ia desde sua infncia e sempre
que tinha algum problema. Era o ponto mais alto da
fazenda, l havia vrios tipos de flores e de rvores,
a terra era vermelha e era dela que Beathriz parecia
tirar foras; saa de l revigorada e com as baterias
recarregadas. Entre todos os arbustos e rvores
desse lugar, apenas um conseguia-lhe trazer as
foras, era um ip-branco, rvore rara.
Assim que a jovem chegou l, apeou do cavalo
e caminhou pelo campo, que estava florido. Ento
parou debaixo do arbusto e ficou a cismar os dedos
no tronco. Pela circunferncia que a rvore possua,
era possvel dizer que aquele arbusto estava ali havia
pelo menos cento e cinquenta anos, no mnimo.
Passava primavera, vero, outono e inverno, e a
rvore estava da mesma forma, frondosa, parecia
no se abalar. Os mais velhos da fazenda diziam que
aquela rvore tinha uma espcie de magia, que
havia sido deixada pela antiga mucama da sinh
Leocdia, bisav de Beathriz. A jovem jamais creu
nisso, mas respeitava a sabedoria dos pretos velhos.
Todos queriam descobrir qual era o segredo daquela
rvore, mas no era apenas esse mistrio que
rondava as terras dos Albuquerque. O arbusto vivia
frondoso, mas apenas quando Beathriz estava na
fazenda ou na cidade de Sant Anna, fora isso as
folhas secavam e caam. Ento a magia no estava
apenas na rvore, mas tambm na sinhazinha.
Beathriz caminhou ao redor da rvore e
ajoelhou-se aos seus caules, parecia conversar com a
rvore e, em suas palavras, dizia:
me natureza, tenha piedade de mim, digame o que tenho que fazer para ser feliz e se isso
possvel assim dizia ela. E ali ficava por horas e
254

Mistrios de Um Amor Proibido

horas, at pegava no cochilo e s acordava na hora


de voltar para casa.
Psiu, psiu, psiu... Esse som se repetiu por
trs ou quatro vezes, ento a pobre Beathriz ergueuse do cho e procurou por todos os lados, deu umas
duas ou trs voltas em torno de seu eixo.
Ser que so as almas que esto sobre a
rvore? Ou ser que o tup? Ou talvez seja a alma
da negra, a falecida mucama de minha bisav. A
negra que os escravos dizem.
Beathriz de certo modo ficou amedrontada, mas
manteve a compostura e no saiu correndo. Ento
novamente pde-se ouvir a voz, que dizia:
Hei, voc a! Hei, voc a...
Onde voc est? E o que voc quer?
E novamente a voz disse:
Aqui ... Aqui!
Aqui onde?... Indagou a moa, enquanto
fazia o sinal da cruz. Creio em Deus Pai!
Misericrdia! Ser que estou ficando louca?
E a voz novamente voltou a falar:
Olha. Eu aqui, !
Sai, capeta... Disse a jovem, j muito
melindrosa. Por Deus, homem, mulher ou alma
penada, ser que voc poderia se identificar? Ou
apenas diga o que voc quer.
O ser misterioso ento caiu na gargalhada.
Ouvindo aquela risada, Beathriz puxou na memria e
percebeu que j havia ouvido aquela risada. Mas
mesmo assim sentiu medo.
Por que zombas da minha cara? Sou alguma
palhaa? J que no quer dizer quem , ento que v
para o diabo que o carregue!... A jovem j ia saindo
daquele local para ir embora, quando sentiu um
solavanco no brao que a fez regressar. E, voltando
os olhos para trs, tomou um susto. E disse:
Voc? Mas o que fazes por aqui? Meu Deus
255

Cludio Pereira da Silva

vossa merc mesmo?


No, vossa me!... Respondeu a voz
mscula. Mas claro que sou eu. Quem voc achou
que era?
Sei l. Pensei que fosse o idiota do meu
noivo... Aquele idiota de cartola! Se ele tivesse
nascido na Idade Mdia, com certeza seria o bobo da
corte do rei Arthur!
Acredito que o caro leitor ficara assustado e
curioso para saber quem a voz misteriosa, mas
agora o mistrio acabou. Era nada mais nada menos
que Henrique, o seu amado.
Depois dos
cumprimentos formais, o casal trocou alguns beijos e
comearam a conversar.
Ah, meu amor, no faa mais isso, pois voc
quase me matou. No faa mais isso, por favor
murmurou Beathriz, nos braos de seu amado, que
lhe beijava a testa.
Desculpa, meu amor! Eu vi como voc ficou,
mas foi engraado! Balbuciou o rapaz que lhe
beijava a testa.
Est desculpado, mas no faa mais isso.
Enquanto os dois selavam o encontro com um
beijo, uma chuva torrencial comeou a cair. Henrique
tentou proteger sua amada debaixo de sua casaca,
mas no teve jeito, ento os dois se refugiaram. A
chuva pareceu ter sido a forma que Deus encontrou
para abenoar o amor de ambos e selar ainda mais o
amor.
Meu Deus, por que essa chuva resolveu cair
logo agora? Murmurava ela.
meu amor, voc no est vendo que Deus
est nos abenoando! Balbuciou Henrique.
Eu no estou reclamando por causa da chuva,
mas porque minha me j deve ter chegado, ficar
preocupada e, com certeza, mandar os capatazes e
o feitor atrs de mim. Ns no podemos ser pegos
256

Mistrios de Um Amor Proibido

aqui sozinhos, ou ficarei malfalada!


Relaxa, meu amor. A gruta grande e, se eles
vierem aqui, eu me esconderei l para o fundo.
Os dois ficaram ali abraados por cerca de meia
hora, at o momento em que a chuva estiou. O sol j
se punha quando Beathriz regressou para casa. O
horizonte j estava todo pintado de vermelho,
quando Beathriz voltou para casa. A baronesa j
havia colocado boa parte da fazenda abaixo, atrs da
jovem. Seus nervos j no aguentavam mais a
angstia de esperar. Beathriz saltou do cavalo junto
ao alpendre e logo entrou em casa. A moa foi
recebida por sua me, que lhe indagava
insistentemente:
Onde a senhorita andava? Com quem? O que
fazia? E aonde foi? Diga... Diga... Ou prefere apanhar
de rebenque?! Indagava a baronesa. U, o gato
comeu sua lngua? Por que est to alegre? Que cara
de paisagem essa?
Beathriz parecia aluada, havia perdido os
sentidos. Andava pelo hall da casa-grande como se
estivesse flutuando.
Nossa senhora do espartilho apertado! Olha s
a barra de tua saia, est toda molhada e suja de
barro. Por onde voc andava? Hei... Hei... Beathriz
Pereira de Albuquerque da Maia!...
Oi!... Pois no, senhora minha me a jovem
virou para trs assustada, como se estivesse
voltando a si.
Estava dormindo acordada? Parece que viu
periquito verde!
No!
Esto, por que est assim?
Ah... Porque eu acabei de saber que a gua
Paloma acabou de dar luz um potrinho concluiu a
jovem, ao p da escada. Agora a senhora me d
licena, pois preciso me lavar antes do jantar. Com
257

Cludio Pereira da Silva

licena!
A baronesa continuou inculcada, mas deixou
que a menina subisse para se banhar. Beathriz
ergueu a barra da saia que estava suja e subiu. Duas
horas e meia depois, estava pronta, desceu para o
jantar, em seguida foi para a biblioteca, onde se
trancou.

258

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XX
O dia seguinte!

Aps o encontro do dia precedente, Beathriz e


Henrique voltaram a se encontrar s escondidas.
Desta vez a moa no havia ido s, temia ser pega.
Afinal, se fosse pega sozinha com Henrique, ficaria
malfalada e isso era a coisa que ela mais temia. No
s por ela, mas pelo nome da famlia, que ficaria
exposto chacota. Os dias foram passando e, dia
sim, dia no, a famlia Albuquerque recebia a visita
do noivo de Beathriz, de Francis. A cada visita era
uma nova recomendao da baronesa: o cerco
estava fechando.
A pobre ento teve que se dobrar diante da
vontade da me e, mesmo repudiando o noivo, teve
que aceitar a corte do rapaz. E se resignou aos
desejos da me, reclinando-se ao noivado. Mas
deixou bem claro:
Posso at me casar, mas jamais me sujeitarei
aos desejos daquele infame, eu o repudio desde
agora para sempre. Eu amaldioo o dia em que
aquele biltre nasceu e o ventre em que foi gerado.
Safardana, velhusco babo, idiota, estafermo,
excomungado, canalha e filho de uma chocadeira.
Vs, minha me, sabeis muito bem o que est a
fazer. Por isso j lhe deixo ciente de que, o dia em
que ele tentar tocar um dedo em mim, eu lhe
arranco os bagos e lano aos ces.
259

Cludio Pereira da Silva

E a baronesa Isabel sempre arrogante e


prepotente respondia:
Faa isso e a mandarei para um convento na
frica. E ainda lhe darei uma sova de rebenque, para
que saias das terras brasileiras em carne viva. para
que isso sirva de lio a outras moas rebeldes como
voc, minha filha!
Durante toda aquela tarde, Beathriz passou
esquematizando fugas espalhafatosas e pensou at
em enviar uma mensagem ao seu amado. Pedindo
para que viesse busc-la, mas logo desistiu, pois
sabia que a baronesa mandaria a guarda nacional
atrs de ambos e pediria ao imperador Dom Pedro II
a cabea de Henrique em uma bandeja de prata.
Aps a hora do almoo, a jovem trocou de
roupa e saiu para cavalgar. Mas, como de costume,
ela no foi sozinha, ao seu lado, montada em um
jumento, uma negra a acompanhou. A escrava
carregava um embornal e uma cesta de junco cheia
de frutos e com coisas que talvez sua sinhazinha
pudesse precisar, como sombrinha, trajes de banho,
entre outras coisas do tipo. Bya, ou Beathriz,
cavalgou cerca de meia hora, at que chegou a uma
grande clareira, coberta de rosas e de margaridas. L
apeou e caminhou um pouco entre as rosas. Ento a
escrava estendeu uma manta no cho, e a jovem se
assentou, colocou o vu sobre o chapu, pegou um
livro no embornal e comeou a folhear. Passou um
bom tempo ali at que regressou para casa. A jovem
estava muito feliz, pois passearia com seu amado no
dia seguinte. A tarde passou e a noite chegou. Aps o
jantar, todos se recolheram, deixando Bya sozinha no
salo nobre. A sinhazinha ficou ali por mais algumas
horas, at que decidiu se recolher tambm. No dia
seguinte, logo no alvorecer da aurora, a jovem se
vestiu e com a ajuda de sua me preta saiu com
Henrique.
260

Mistrios de Um Amor Proibido

Marcava treze horas no relgio de bolso de


Henrique, quando o convescote acabou e o coche os
conduziu para casa, estava no meio da alameda de
quaresmeira, que ia para casa de Beathriz.
Beathriz estava sentada ao lado de Hadassa,
sua dama de companhia, no banco, sua frente ia
Henrique apoiado em sua bengala de cedro com
madreprola. O coche era um pouco grande, mas a
saia-balo de Beathriz tomava todo o espao e fazia
o coche ficar pequeno perante tanto pano. Como o
coche estava com o espao reduzido, Beathriz e
Henrique tiveram que ficar bem prximos, suas
pernas sempre se tocavam. O desejo de Beathriz era
o de partir para cima de seu amado e se entregar s
volpias da carne, mas, como ali havia uma escrava,
nada poderiam fazer. Alm do mais, ela era uma
moa de famlia e no poderiam entregar-se assim s
vontades da carne. E, como sempre foi doutrinada,
deveria chegar ao altar pura e casta como viera ao
mundo.
Espero chegar rpido em casa, pois no
aguento mais. Ainda por cima, estou muito cansada
e com muito sono! Murmurou Beathriz, com um
olhar de cobia e desejo.
Se quiser, pode apoiar em mim, sinh!
Afirmou Xica, passando a mo nas saias de sua
senhorita.
Henrique percebeu o desejo no olhar da moa,
ento, como desculpa disse, com uma voz suave
mais viril:
Vs pareceis um tanto cansadas, minha
querida Beathriz, por que no faz o que vossa b diz.
Esta noite nunca mais sair de minha memria, nem
que essa seja a ltima vez que ns nos encontremos!
Ah... Ai. Parece at que est agourando nossa
felicidade, meu amor! Exclamou Beathriz, com uma
voz rspida. Creio-em-Deus-Padre. Creio que
261

Cludio Pereira da Silva

sejamos muito felizes!


Aps aquelas palavras, Beathriz calou-se. Para
ouvir e para contemplar aquele a quem ela amava
acima de tudo e de todos. Henrique, por sua vez,
percebeu a desiluso que havia causado em sua
amada e, com uma voz suave e compreensiva,
exclamou:
Creio que a insultei, meu amor! Peo-lhe
desculpas, mas essa no foi a minha inteno, queria
apenas adverti-la sobre vossa madre, a baronesa,
que logo voltar e a nunca mais poderemos sair
assim.
Beathriz, que havia ficado cabisbaixa, passou a
mo na saia e, retomando o semblante de felicidade
que havia perdido h pouco, disse:
Sabes tu que por mil discrdias possa fazer
em meu corao, por mil vezes o perdoaria, pois no
sei viver sem ti.
A escrava ficou encabulada diante de uma cena
trrida de amor e, sentindo-se mal, inventou uma
desculpa e correu para junto do cocheiro.
Com licena, sinh. Irei me sentar ao lado de
Bastio, pois a sinh tem muito para conversar com
o nhonh Henrique. Aproveitem, pois amanh a sinh
baronesa chega disse Xica, rindo e movendo-se
para junto de Bastio. Ah, Deus. Espero que minha
sinh nunca descubra isso, ou estarei no tronco!
Por Deus, Xica, no pense nisso.
Mas como, sinhazinha, no pensar, se naquela
fazenda s h gente mexeriqueira que no gosta de
mim, pois sirvo somente sinh!
Pois bem, se algum contar, desmentir e a
essa pessoa quem vai para o tronco por inventar
uma infmia de sua senhora. Ser a palavra de uma
branca contra uma negra, ou negro!
Beathriz arrumou a saia no lugar aps a sada
da negra e deu o lugar ao seu lado a Henrique. Nesse
262

Mistrios de Um Amor Proibido

momento, Henrique tentou roubar um beijo dela,


mas foi impedido por um bofeto.
Ai... O que isso?
O que isso, digo eu! Pensa que est tratando
com uma barreg? No, eu sou uma Albuquerque e
mereo respeito! No sou nenhuma de suas amigas
l do bordel de dona Josefa. Sou moa de famlia e
mereo respeito como tal. Se isso voltar a se repetir,
no responderei por meus atos. No pense que, s
porque eu o amo, pode tomar devidas liberdades a
meu respeito Beathriz ento, para evitar uma nova
aproximao, fez com que o vu de seu chapu
descesse por sobre sua face.
Desculpe-me, no queria ofend-la!
Mas ofendeu, e que isso no se repita!
Henrique virou-se para Beathriz e, com o
corao aberto, disse:
Eu te amo. Por mil cus, peo-lhe perdo.
Beathriz corou, e ele sorriu de orelha a orelha. E
Beathriz, arrumando as pregas da saia para
dissimular o mau jeito que aquelas palavras lhe
causaram, ento decidiu falar de outras coisas que
no fossem aquelas. A conversa se seguiu naquele
tom at a carruagem apear soleira da porta da
imensa casa-grande.
Beathriz se despediu do rapaz com um beijo na
testa.
Tchau, meu amor! Disse Beathriz, acenando
com a mo esquerda e com a outra ergueu a saia
para entrar em casa. Henrique fez uma mesura e
partiu alegremente.
A lguas dali, em uma fazenda muito bonita,
mas mais simplria que a fazenda de Beathriz, uma
sinhazinha muito bonita terminava de se vestir em
seus aposentos.
Era Anna Carolina, uma jovem de vinte anos,
cuja beleza era apenas menor que da menina
263

Cludio Pereira da Silva

Beathriz. Anna Carolina era filha de um rico


comerciante da corte, de pele alva, olhos azuis,
cabelo loirssimo. Ela era uma moa muito arrogante,
presunosa, preguiosa, mal-humorada, vaidosa e
prepotente, apaixonada por Henrique desde sua
infncia, mas sem xito na arte da conquista.
Desde nova era arrogante e capciosa, malamada, adorava ver o sofrimento do prximo, ainda
mais se esse prximo fosse um negro, adorava fazer
os escravos da fazenda sofrem nos castigos e no
pelourinho. Em sua infncia adorava ver seu pai e o
feitor chicotear a negrada no pelourinho da fazenda,
seu passatempo favorito era judiar dos filhos dos
escravos.
Sua me nunca aceitou seu jeito ruim, mas
tinha que ficar quieta perante seu marido; porm,
com a morte de seu pai em uma rebelio de
escravos, Anna Carolina ficou ainda pior. S
respeitava uma negra que havia lhe salvo do
massacre.
Naquela tarde, Anna Carolina estava vestindo
um lindo vestido de saia-balo, de camura verdemusgo, sua fronte estava iluminada por dois cachos
e no alto da cabea uma linda trana e duas dzias
de cachos que saam da trana.
Anna Carolina levantou-se do banco que estava
sentada frente do espelho e, caminhando pelo
aposento, pronunciou:
Preciso ver meu amado Henrique! Anna
Carolina se encostou ao dossel da cama, para a
escrava apertar-lhe o espartilho.
A escrava ento comeou a apertar fita por fita
e, sem querer, deixou escapar:
Se a sinh me permitir, preciso dizer-te algo
que est sendo comentado na senzala.
Diga, sua escrava insolente, ou descerei o
chicote em teu lombo, negra! Anna Carolina estava
264

Mistrios de Um Amor Proibido

segurando bem forte no dossel. Ai, ai... Ah, antes


que voc se esquea, aperte isso com cuidado, ou
vers do que sou capaz!
A negra, muito humilde, comeou a dizer:
L na senzala, est correndo o boato de que o
nhonh Henrique havia sado hoje com Beathriz.
Naquele momento a clera e a inveja tomaram
conta da alma de Anna Carolina, que, ao receber a
notcia, virou-se e, com o rosto rubro de dio, disse:
Aquela maldita abolicionista est tentando
tomar meu homem, mas no conseguir, pois eu sou
mais eu! Desenxabida! Primeiro tomou-me Gabriel,
que estava enamorado por mim, agora Henrique.
Nem que eu tenha que vender minha alma ao diabo,
ela no conseguir tirar Henrique de mim!
A negra fez o sinal da cruz.
Cruz-credo, sinh! No fale isso, pois ele pode
aceitar.
Mas eu estou dizendo isso para ele aceitar
mesmo!
A escrava se benzeu novamente.
Agora acabe de apertar isso logo e pare de
mexericos, sua negra insolente. Quem te deu ordem
de retrucar vossa sinh?
Ningum, sinh, perdoe-me!
Nesse instante, uma escrava muito nova e
faceira entrou no toucador, trazendo uma bandeja
com algumas guloseimas. A escrava aparentava ter
por volta de quinze anos de idade, era magra, mas
bem-apessoada, seu tom de pele era de um moreno,
cor de canela queimada, seu cabelo era muito
crespo, seus olhos de um negro como as asas da
grana.
Aqui, sinh, a vossa ceia!
Leve de volta essa bandeja para a cozinha,
pois no tenho apetite. V... V! Articulou Anna
Carolina, apanhando o amontoado de saias que
265

Cludio Pereira da Silva

estavam em seus ps. Saia daqui, sua negra


maldita. Saia... Saia!
No Jaci, venha aqui! Pois nhanh ir comer
sim, nem que seja uma migalha de po. Pois uma
sinhazinha se conhece pelo modo de comer!
No como, no como, no como... V daqui
agora! Ou mandarei as duas para o pelourinho.
Vai comer, sim, pois hoje a sinh Isabel vai
receber algumas amigas e seus filhos. Por isso ela
me incumbiu de deix-la bem alimentada, para no
faz-la passar vergonha, pois uma sinh deve comer
como uma ave de pequeno porte.
Cale-se! Pois tenho coisa mais importante
para pensar exclamou Anna Carolina, erguendo as
saias que estavam sobre seus ps. Bem que eu
digo: Quem nasce na casa-grande jamais deve
descer a senzala e assim vice-versa! J aquela
maldita vive enfiada na senzala com a negrada
nojenta.
Oia, sinh, no diga assim de minha gente,
pois somos gente como oc! Afirmou a negra de
cara fechada.
Anna Carolina caiu na gargalhada como se
caoasse da cara da negra.
Agora deu?! Uma negra querendo ensinar sua
senhora! Aaaaaah... Ha...
Anna Carolina terminou de se vestir e foi para o
alpendre, l ficou por vrias horas. Ergueu-se da
cadeira, caminhou pelo alpendre, desceu para o ptio
e caminhou mais pelo jardim; quando retornou para
casa, pediu para uma de suas escravas servir-lhe um
refresco. A escrava saiu e, quando voltou, estava
com o refresco na mo, mas a pobre tropeou na
cauda da saia-balo de Anna Carolina, que estava
espalhada pelo cho.
Anna Carolina quando viu aquilo ficou
irritadssima e, erguendo-se da conversadeira,
266

Mistrios de Um Amor Proibido

exclamou:
Ah, no... Sua escrava maldita, vossa merc
estragou minha saia de musselina, mas agora tu
pagars Anna Carolina sacudiu a saia-balo e,
esticando o pescoo para a janela e aos berros,
disse: Chico, Chico... Seu Chico, venha aqui e leve
essa escrava para o tronco e lhe d cinquenta
chibatadas. V... V...
A escrava entrou em pnico e, jogando-se aos
ps de sua senhora, suplicou:
Perdoe, sinh, perdoe, sinh... Por Deus,
minha senhora, eu no tive culpa disse Moleca,
quase chorando. Eu tropecei em vossa saia.
Mentira. que voc morre de inveja de
minhas saias-bales. S por que tu nasceste escrava
e no sinh. Pois uma coisa eu te digo: Quem nasce
na casa-grande nunca desce senzala, sua maldita
preta!
Moleca foi arrastada pelos cabelos at o tronco
que ficava no ptio inferior sede da fazenda, e
Anna Carolina foi atrs, chutando-a e praguejando. A
negra foi amarrada ao pelourinho e suas vestes
rasgadas.
Pode comear, sinh? Indagou o feitor.
Sim, pode bater nessa maldita!
Sua escrava de companhia tentou intervir, mas
sem muito sucesso.
A sesso de tortura e de sofrimento comeou e
durou por volta de cinco minutos at o trmino das
cinquenta chibatadas. Depois a negra foi tirada do
tronco e levada pelos outros negros para a senzala,
onde cuidaram de seus ferimentos, com algumas
ervas, como saio e outras.
Anna Carolina assistiu a toda a tortura sorrindo
e dizendo: Isso, sua maldita, para voc aprender a
nunca mais sujar a saia de sua senhora. Pode bater
mais at ela morrer! Depois da cena de tortura,
267

Cludio Pereira da Silva

Anna Carolina foi para seus aposentos e l se


trancou, fazendo pouco caso da escrava que chorava
na senzala.
Anna Carolina era uma peste. Diziam que ela
havia vendido a alma a Lcifer, aps a morte de sua
me. E, desde que vendeu sua alma ao demnio,
muitos escravos haviam sido sacrificados em prol de
sua alma e de sua fortuna. Dizem as ms-lnguas que
Anna Carolina mandou que matassem um recmnascido e uma virgem, em prol de um amor no
correspondido.

268

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XXI
O crepsculo

Aquela noite estava enluarada, o cu estava


lmpido, no havia uma nuvem sequer no cu; em
compensao, de estrelas, estava cheio, mais
parecia uma joia cheia de brilhantes. Um vento
quente soprava ao longe, mas ao mesmo tempo uma
brisa fresca e suave aliviava a sensao de calor. O
vento soprava por entre as janelas da fazenda, os
cantos dos negros no ptio da senzala ecoavam
pelos pavilhes da casa-grande. Eram os nicos
rudos que quebravam o trrido silncio da fazenda,
pois aqueles poderiam ser os ltimos dias de
Beathriz naquela que fora sua morada desde sua
infncia e onde descobriu o que o amor.
No adiantava, Bya no acreditava em nada
daquilo. A verdade era que estava enamorada de um
rapaz que jamais poderia ser seu marido, por causa
da intolerncia e da hipocrisia da sociedade. Pobre
menina, to jovem e j sofria com a paixo
impossvel, paixo que s conhecia dos livros de
romances. Pois para ela o casamento seria como de
Sissi, a imperatriz da ustria, que havia presenciado
em sua viagem pela ustria anos atrs.
Marcava pouco mais de nove horas da noite,
quando Beathriz recolheu-se em seus aposentos. Ao
adentrar em sua alcova, a primeira coisa que ela fez
foi abrir as cortinas de veludo adamascado e,
269

Cludio Pereira da Silva

olhando pela janela, viu os escravos cantando e


danando no ptio da fazenda. Por um minuto sentiu
inveja daqueles pobres negros que, mesmo sofrendo
horrores nas mos dos brancos, estavam felizes, e
ela, que era branca, sentia-se aprisionada no
quartinho dos fujes e presa a grilhes das
convenes sociais. Beathriz no pode isso, Bya no
pode aquilo, isso sim voc pode fazer! era s isso
que sua santa me sabia repetir, mas pouco se
importava com o que ela estava sentindo.
E ficou ali por alguns minutos, at sua mucama
terminar de preparar seu banho. Aps um longo
perodo dentro de uma tina com gua perfumada e
alguns sais de banho, Beathriz saiu, secou-se e,
colocando a camisola, tentou dormir. Por volta das
dez horas, viu que no conseguiria dormir, ento
decidiu tomar alguns conselhos com a sua me
preta. Vestiu o espartilho, um corpinho de linho
branco e um vestido de saia-balo rosa-beb, com
uma crinolina e dez anguas por baixo, e pegou seu
xale.
Decidiu dar uma volta pelo ptio, onde a
negrada cantava. Na ponta dos ps e com muita
delicadeza, abriu a porta e saiu de seu quarto, pois
no queria ser pega pela me. Na ponta do p e
erguendo a saia para no fazer barulho, caminhou
at o fim do corredor onde daria acesso escada de
servio, pois a porta da frente estava trancada e,
como ela fazia um pouco de barulho e era de uma
madeira pesada demais para uma moa delicada
como ela, decidiu ir pelos fundos.
Caminhou pelo imenso ptio ermo, mas
segundos depois havia chegado senzala e juntouse roda dos negros, que danavam lundu e
umbigada. Sua b, quando a viu ali, foi logo
perguntar:
O que oc est fazendo aqui a esta hora da
270

Mistrios de Um Amor Proibido

noite, minha sinh?


Vim tomar alguns conselhos de vossa merc,
minha me preta, pois tu s a nica que me entende!
Murmurou Beathriz, pegando a mo da negra.
A negra ento a levou para um quanto da
senzala e a fez sentar em uma cadeira envelhecida
pelo tempo.
Eu sei que esse no um local adequado para
uma sinh se sentar, mas tudo que temos!
Afirmou a negra, sentando-se em um troco velho.
Que isso, b?! Voc sabe que eu no ligo
para essas coisas, gosto de luxo, mas no ligo
quando se trata disso disse Beathriz, arrumando as
pregas da saia para dar espao para sua b se
assentar aos seus ps.
A negra ento pegou em suas mos e disse,
olhando em seus olhos:
Oia, minha fia, oc sabe qual a sua misso
na terra!
Beathriz ento olhou para a escrava sem
entender nada e murmurou:
Qual a minha misso?
Consulte o seu corao que ele lhe dir!
Respondeu a negra velha. Oc, e somente oc,
sabe para qu vieste ao mundo! Vossa me quer lhe
separar daquele a quem tu tens amor, mas ela no
conseguir, pois o que nosso sinh Jesus Cristo uniu,
o homem no separa.
A negra ento percebeu uma lgrima que
escorria no canto dos olhos da menina e, com sua
saia de chita, secou com a maior delicadeza que j
se viu em uma negra. Bya ento se deitou sobre o
ombro da velha, que era para si mais que uma
mucama, era sua me preta.
A moa caiu no choro e, tentando esconder o
choro, enfiou a face entre os panos de sua saia, mas
o ranger de dentes chamou a ateno do feitor, que
271

Cludio Pereira da Silva

estava ali por perto, entre os fenos, com uma negra.


Marcava dez para as onze da noite, quando o
feitor interrompeu a festa da negrada, dizendo:
Chega... Chega! Agora hora de dormir, sua
negrada imunda! Disse o feitor, passando os olhos
pela senzala, foi quando, em um canto, encolhida,
ele viu Beathriz: O que a sinh est fazendo no
meio desses animais?
Naquele momento, os atabaques pararam, e a
negrada parou de danar, mas Beathriz no se
conteve e, levantando de onde estava sentada, disse
em alta voz:
Aqui no estou vendo nenhum animal a no
ser o que chegou agora!
Olha como vossa senhoria fala comigo, pois
sou o feitor desta fazenda!
Disse bem, apenas feitor e no o dono! Olha
como fala comigo digo eu! Pois sou uma das
herdeiras desta fazenda vociferou Beathriz,
passando as mos nas pregas da saia-balo.
Mas ainda quem manda vossa madre e, com
certeza, ela no sabe que voc est aqui com esses
animais sem alma!
Animal a senhora sua me!
O feitor ento bateu nas grades da porta que
fechava a senzala e rudemente disse:
Venha, sinh, preciso trancar as portas, pois
amanh bem cedo eles precisaram trabalhar.
Xica ento se aproximou da menina e,
cochichando em seu ouvido, disse:
V, fia, e no discuta mais com ele, v!
Amanh a gente conversa mais! Afirmou a negra,
passando a mo em sua cabea como faz uma me
ao abenoar um filho. V...!
Beathriz ento ergueu a saia para no sujar em
uma possa de lama e, virando-se para o feitor, disse:
S irei porque minha me preta mandou,
272

Mistrios de Um Amor Proibido

ouviu, seu maldito?!


Poucos minutos depois, Bya j havia retornado
para seu quarto, despiu-se e vestiu a camisola, em
seguida se deitou em sua cama e, fechando o dossel
da cama, adormeceu. No dia seguinte, Beathriz
passou o dia cavalgando e passeando pelas terras de
sua fazenda, pois dois dias aps a lua cheia ela e a
comitiva da famlia Pereira de Albuquerque da Maia
partiriam para seu novo endereo, uma fazenda
prximo corte.
Trs dias aps o que acabei de narrar, a
comitiva da famlia Albuquerque foi para a estao
de trem, mas, da fazenda at a estao, a comitiva
de dois coches e de quinze carroas com os
pertences das duas e alguns objetos pessoais
levaram meio-dia.
A estao era enorme e bem luxuosa, a
bagagem foi free on board, mas a baronesa e
Beathriz ficaram na estao, sentadas em um banco
esperando para embarcar.
A baronesa no havia percebido, mas Henrique
estava na estao para dar o ltimo adeus a sua
amada. O abrao e o beijo que Henrique queria dar
em Bya, mas no foi possvel, pois a baronesa no
saiu de seu p um minuto sequer. E l do extremo da
estao foi a ltima viso que Henrique teve de
Beathriz, que j estava embarcada na maria-fumaa,
perdendo-se no final da estrada de ferro e de poeira.
Cinco para as dez da manh foi a hora que as
duas embarcaram, elas foram conduzidas por um
rapaz para uma cabine exclusiva, j as escravas que
lhes serviam de mucamas foram levadas para um
vago onde ficavam somente as bagagens da
baronesa e da menina Beathriz. Exceto Xica, que
ficou junto de suas senhoras. A cabine era composta
por um quarto e uma antessala, onde elas passavam
a maior parte do tempo bordando, conversando e
273

Cludio Pereira da Silva

lendo. As paredes do vago eram recobertas com um


papel de parede em estilo clssico e bordado com
fios de ouro; as janelas eram cobertas com veludo
adamascado na cor escarlate-prpura; os assentos
das cadeiras e divs e at as almofadas eram do
mesmo tom das cortinas, que eram bem distribudos
pelo amplo vago. Tanto luxo para passar apenas
alguns dias.
Alguns dias depois j haviam chegado estao
da corte. Naquela manh, assim que foram avisadas
que chegariam a poucas horas na estao, Beathriz
levantou-se da cama e tomou um belo banho e
vestiu o vestido mais bonito e mais amplo de sua
coleo, pois no queria se sentir inferior s
senhoritas da corte. Quando desceram na estao,
Bya, primeira vista, assustou-se, pois era muita
gente junta, mas logo se acalmou. O clima do local
era sbrio e amigvel ao mesmo tempo. Enquanto os
escravos
descarregavam
as
bagagens
das
locomotivas e levavam para as carruagens de seus
senhores, as damas iam para seus coches e seguiam
para casa.
Duas horas depois, haviam chegado nova
fazenda da famlia Albuquerque. E, assim que
adentrou a fazenda, Beathriz teve uma surpresa: em
um canto da sala principal, uma figura lhe chamou a
ateno: era Anna Carolina sentada em uma
poltrona, com um livro nas mos. Assim que viu Anna
Carolina, Beathriz parou debaixo do umbral da porta
e ficou s fitando-lhe, atnita, sem reao.
Anna Carolina riu e vociferou:
Credo! Parece que viu o diabo?! Disse Anna
Carolina erguendo-se da cadeira e caminhando de
braos abertos. Esses so modos de receber uma
velha amiga?!
Beathriz aproximou-se da moa e saudou-a
como sempre fazia: um beijo no rosto e uma mesura.
274

Mistrios de Um Amor Proibido

Anna retribuiu da mesma forma.


Vossa merc por aqui? Disse Bya com um
leve sorriso no rosto.
Anna Carolina ento abriu os braos como se
fosse abra-la.
Por que tanta surpresa? Vossa me no lhe
disse que havia me convocado para passar uns dias
aqui, com vocs?!
No!
A baronesa ento entrou na sala. Beathriz virouse e disse:
Mas, minha me! Vossa merc no havia me
dito que Anna Carolina passaria uns dias conosco.
Isabel aproximou-se das moas, primeiro
abraou Anna Carolina e depois disse:
Ento resolveu aceitar o meu convite?!
Como pode ver, estou aqui! Como eu poderia
recusar o convite de uma amiga de mame, que
Deus a tenha!
Agradeo por ter aceitado meu convite, e
fique vontade, pois a casa sua!
A baronesa voltou-se para Beathriz e disse:
Por isso no lhe disse nada, queria ver sua
cara de alegria, ao ver sua amiga!
Anna Carolina deu um sorriso amarelo e irnico.
Amiga, ela que me aguarde, pois estou aqui
para atrapalhar sua vida! Pensou Anna Carolina,
enquanto sorria para Beathriz. Meia hora depois j
estavam todas acomodadas, mas uma mucama de
Bya chamou a ateno da baronesa Isabel.
No sei por que me fizeste trazer essa escrava
intil e imprestvel?! Disse a baronesa, referindo-se
a uma escrava que passava mal de tanto trabalhar.
Alm de passar mal no trem a viagem toda, no quer
trabalhar agora, pois diz estar enfadada. No se
fazem mais escravos como antes!
Anna Carolina ergueu a voz e disse:
275

Cludio Pereira da Silva

mesmo, concordo com a senhora! por isso


que digo que escravo s trabalha debaixo de chicote.
Beathriz ficou rubra de dio e, erguendo-se da
cadeira onde estava, vociferou bravamente:
Como vossas mercs podem dizer um
disparate desse?! Disse Bya, ferozmente. Os
escravos so pessoas como a gente, assim como a
gente se cansa eles tambm.
A baronesa e Anna caram na risada sarcstica.
E, para terminar, Anna Carolina disse:
Qual?! Esses pretos no so pessoas, nem
alma eles tm. Em minha opinio, preto no gente,
so apenas alguns animais que nasceram para nos
servir.
Minha me, eu exijo que a senhorita Anna
Carolina pea desculpas minha escrava!
Jamais! Vociferou a baronesa, balanando a
cabea. Pois ela est mais do que certa, preto s
serve para isso mesmo!
Beathriz... Disse Anna Carolina com um
sorriso sarcstico no rosto. Gosto muito de vossa
merc, mas eu c falo como quiser, pois no sou
obrigada a conviver no mesmo ambiente que uma
negra imunda. E tenho dito!
Por favor, minha cara! Pondere suas palavras,
pois temos uma abolicionista no recinto. Fale contra
os negros somente nos bastidores de tua alcova!
Sou abolicionista, sim...! Um dia vossas
mercs se arrependero do que dizem ou fazem
contra essas pessoas de corpo e alma como ns.
Est bem, minha amiga, mas, por favor,
conserve esses negros sujos longe de mim!
V... V. Saia daqui, sua negra imunda!
Minha me, como a senhora pode dizer um
disparate desses, pois, se no fosse essa negra, eu
talvez no estivesse aqui! Ou j se esqueceu de que
foi ela quem me deu o peito at os meus dois anos!
276

Mistrios de Um Amor Proibido

Afirmou Beathriz, indignada com a desfeita da me.


Reconsidere, minha me. Xica nunca havia andado
de trem e por tantos dias.
Xica olhou para a baronesa como um cachorro
faminto olha para seu dono. Um olhar que misturava
amor e dio, fome com a vontade de comer. Mas, ao
mesmo tempo em que olhava para Beathriz, via sua
filha, que lhe haviam arrancado ao nascer. Porm
aquele sentimento horrvel lhe saa da cabea
rapidamente, porquanto era s olhar Beathriz e ver
que tudo valeu a pena. Aquela no era sua filha da
carne, mas era sua filha da alma. E tudo vale a pena
quando a alma no pequena!
Perdoe-me, Xica! Exclamou a baronesa. Foi
minha total ignorncia, eu me esqueci da vossa
generosidade ao salvar minha filha. Mesmo aps
meu marido ter vendido a vossa!
Oc no disse nada de mais, sinh, apenas
transferiu o que est na alma de muita gente. No s
a senhora, mas muita gente pensa assim!
Olha s, minha me, como a senhora deixou,
nh Xica!
Xica saiu, e Beathriz foi atrs.
Com licena! Mas no posso deixar a pessoa
que me deu a vida dessa maneira. Se no fosse essa
negra, eu no estaria aqui! E, mesmo aps meu pai
vender sua filha, Xica me deu seu leite, a seiva da
vida.
Beathriz seguiu a negra at a cozinha. E l ela e
a escrava ficaram por volta de meia hora
conversando, at que Beathriz resolveu retornar
sala. Chegando sala, a baronesa justificou-se com a
escrava e com a filha. Minutos depois retomaram a
excurso pela fazenda.
Beathriz e Xica subiram alguns degraus de uma
escada que dava num salo da ala sul, retrucando as
palavras avulsas que se espalhavam pelo corredor.
277

Cludio Pereira da Silva

No entanto, quando as duas adentraram em uma


enorme biblioteca, ambas ficaram surpreendidas
com tamanha coletnea de livros ali, principalmente
Bya, que adorava ler. Acol era um mundo em que a
moa adorava viver e com certeza passaria grande
parte de seus dias. Os olhares da moa se perderam
perante duas paredes de livros. Estavam diante de
uma belssima coletnea de mais ou menos cinco mil
exemplares; entre eles, O auto da barca do inferno e
A farsa de Ins Pereira, de Gil Vicente; Os lusadas,
de Cames; A Divina Comdia, de Dante Alighieri; A
moreninha, de Manoel de Macedo; alguns livros de
poesia e poemas de Castro Alves; entre outros
milhares de exemplares em vrios idiomas.
Minha me, esta fazenda ainda melhor que a
outra, tudo magnfico. Ainda mais esta biblioteca!
Esses livros, a maioria rara. Se a biblioteca este
esplendor, imagine os aposentos e os toucadores?!
A baronesa ficou muito alegre com a expresso
da filha, pois acreditava que em alguns dias ela
esqueceria por completo Henrique e se casaria com
Francis, e puramente disse:
Ainda no acabou, senhorita Anna Carolina e
minha filha querida. Isso aqui s o comeo, podem
apostar que vocs levaro quatro dias para conhecer
toda a fazenda! Mas agora irei mostrar-lhes seus
aposentos e toucadores.
Antes das senhoras subirem, duas dzias de
escravos subiam e desciam pela escada de servio,
levando as bagagens e as moblias. Beathriz e a
escrava de braos vinculados, e Anna Carolina de
braos atado ao da baronesa. As trs ergueram as
saias.
Deslumbrada com tudo aquilo que se
apresentava sua frente, Beathriz continuou
seguindo a baronesa escadaria acima, de braos
atados a sua me preta. Sua fazenda de Petrpolis
278

Mistrios de Um Amor Proibido

era linda, mas nem de longe parecia com aquela. Os


corrimos da escadaria principal eram de mrmore
branco italiano, as janelas eram enormes, e os
cmodos eram de uma amplitude sem tamanho. Os
olhos de Anna Carolina, Beathriz e Xica se perdiam
pelos pavilhes da fazenda. Os aposentos das
sinhazinhas eram muito maiores e mais mobiliados
que as duas imaginaram, principalmente Anna
Carolina, que era apenas filha de um pequeno
comerciante. J Bya havia visto coisa ainda melhor
na Europa. Ento a baronesa tocou uma sineta, e um
pajem apareceu, Jos, e ordenou em seu tom
elevado e majestoso:
Mande o nh Joo corte buscar Joana, a
melhor modista de todo o pas, tragam tambm
alguns sapateiros, chapeleiros e donos de boutique.
Mas, antes de retornar, passe em uma confeitaria e
me traga alguns quitutes.
Sim, sinh! Concluiu a escrava, saindo de
cabea baixa, aps uma leve mesura.
Por um lado, Beathriz estava alegre, mas, por
outro, sentia-se s, pois Henrique no estava ali.
Aps relembrar algumas coisas que havia vivido
com Henrique, Beathriz recobrou o juzo e alegrou-se,
pois iria refazer parte de seu guarda-roupa.
Ah, que bom! Nem bem cheguei corte e j
estou refazendo meu guarda-roupa de festa!
Exclamou Beathriz, entusiasmada. J tenho muitas
roupas de festa, todavia essas que viro me cairo
como luvas, aposto. Adorei esse presente de minha
me, mas gostaria mais se eu estivesse ao lado de
Henrique, meu amado!...
Isso um disparate, minha querida! No lhe
dou uma semana para esquecer Henrique. Quando
der incio temporada de saraus, voc o esquecer,
pois conhecer donairosos mocetes que estaro
sua altura, minha querida!
279

Cludio Pereira da Silva

isso mesmo, Beathriz, voc tem que


esquecer o senhor Henrique, pois ele no est tua
altura disse Anna Carolina, olhando para Bya com
um olhar fulminante.
isso mesmo, minha filha, escute o que a
senhorita Anna Carolina diz concluiu a baronesa,
segurando a mo da filha. Ah, antes que eu me
esquea, essa modista que vem a acabou de chegar
do pas da moda: Paris, a cidade luz! Trouxe vrios
modelos novos, e voc ser sua primeira cliente.
Quando estive aqui, soube que ela havia acabado de
chegar de Paris, ento mandei que guardasse alguns
modelos exclusivos para mim e para voc.
Ah, eu tambm quero?! Murmurou Anna
Carolina.
Isso voc ter que conversar com ela!
Meia hora depois, Beathriz pde concluir, de
fato, que Joana era uma boa modista, por toda a
corte e pelo Imprio, no havia modista como Joana,
que sempre seguia risca a moda da Frana, pas da
moda. Mas Joana no trabalhava sozinha e, na visita
fazenda da mais nova moradora ilustre das
redondezas da corte, Joana havia levado algumas
costureiras e vrios cortes de tecidos mais finos que
todo o Imprio jamais viu, um mais lindo que o outro,
era seda, cambraia, tafet, musselinas, organdi e
vrias rendas francesas. J o sapateiro, o chapeleiro
e o boticrio tiveram uma passagem relmpago.
Durante cinco horas, Bya viu-se sobre um banquinho
e em frente a um espelho, como a escultura de uma
deusa grega, para que lhe fossem tomadas suas
medidas e depois experimentados os melhores
cortes e as melhores cores para seu tom de pele e de
olhos. Sem contar as horas que passou folheando
uma revista de moda de Paris, escolhendo os
modelos que seriam feitos. Tira crinolina, pe
crinolina; tira angua, pe angua; aperta espartilho;
280

Mistrios de Um Amor Proibido

veste isso e aquilo; essas ordens duraram cinco


horas. Por fim, enfadada, Beathriz atirou-se sobre
uma conversadeira, posteriormente partida da
modista e de suas ajudantes, com apenas suas
medidas e com a lista de trinta vestidos de saiabalo, escolhidos dos mais diversos tecidos.
A baronesa Isabel ento se aproximou da filha e,
com muita delicadeza, tocou-lhe nas longas
madeixas. Em seguida, mandou nh Xica chamar
uma moa da redondeza que soubesse fazer
penteados, pois aquele penteado que a moa usava
no se usava mais em Paris nem tampouco na corte.
Mande chamar a sinhazinha da fazenda Boa
Esperana. Precisamos mudar esse penteado de
minha filha. V... V!
Mas que sinh, minha senhora?!
A sinhazinha Amlia, filha do Baro de Boa
Esperana concluiu Isabel. Pea a uma das
escravas desta fazenda, para acompanh-la at l!
A escrava fez uma leve mesura e, abrindo a
porta, saiu, deixando Beathriz, Anna Carolina e a
baronesa Isabel, sozinhas, fartando-se de iguarias e
bobeiras. Aps fartarem-se em doces, as trs
resolveram tirar a sesta habitual. E, para a pobre
Beathriz, restou apenas gemer, sabendo que aps a
sesta teria mais algumas horas interminveis
frente do espelho, mas agora arrumando sua
belssima madeixa negra como a asa da carana.
Por um lado, sentia-se bem, mas por outro se
sentia cobarde e intil, pois nem mesmo conseguia
lutar por seu amor. Ela ali gozando da boa vida,
enquanto Henrique poderia estar atrs de vossa
merc. Enquanto as outras dormiam, Beathriz
ergueu-se da cama e caminhou pelo amplo aposento,
parando diante de uma janela aberta por onde o
crepsculo comeava a penetrar e a lua comeava a
iluminar com sua luz. Bya debruou-se sobre o
281

Cludio Pereira da Silva

umbral da janela, e seu pensamento voou longe:


Onde ser que est meu amado agora?! Oh, Deus,
no permita que eu morra, sem ver novamente meu
amado! A moa no conseguia tirar os olhos da lua
e, em seu rosto, uma lgrima insistia em escorrer;
por fora, mostrava-se sempre forte e imponente, mas
por dentro era apenas uma menina apaixonada!
Pobre Beathriz, estava deslumbrada com o
tamanho dos cuidados que sua me estava
debruando sobre ela, cuidados e mais cuidados.
A casa de dona Dagmar estava repleta de
homens naquela noite, parecia at que as fazendas
haviam abortado seus donos e feitores. A mistura de
perfume barato de meretriz e de charuto cubano
tomou conta de todo ambiente. As meretrizes jamais
haviam visto a casa cheia daquela forma, algumas
brigas no recinto j haviam acontecido, mas logo
foram apartadas pelos negros que lhes serviam de
segurana. Ali realmente era o lugar da lascvia e da
lucubrao, onde o pior sentimento do homem era
inflamado. Ali o desejo carnal dava vazo aos seus
torpes instintos e fazia com que homens virassem
animais atrs de suas caas.
No balco, uma figura se distinguia de toda a
cena: era Henrique, que se misturava aos amigos.
Mantivera-se ali sentado junto ao balco desde que
chegara, pensava numa maneira de ver sua amada e
idolatrada
Beathriz, que havia dias estava
aprisionada em sua masmorra, no castelo, onde a
baronesa a trancara. Meretrizes tentavam a
aproximao, mas tentativas sem muito xito.
Que isso, meu amigo? Vai rejeitar as carcias
dessa meretriz? Dizia um de seus amigos.
Sim... No tenho cabea para pensar nisso
agora! Estou aqui a pensar o que farei para salvar
minha amada das garras de sua me malvola.
Ah... Nosso caro amigo est apaixonado! Isso
282

Mistrios de Um Amor Proibido

s pode ser uma piada, no acredito que vai se


amarrar to novo assim. Deixe disso! Pense em
casamento amanh. Vamos nos divertir.
Vocs no sabem o que gostar de algum.
Ento no falem daquilo que ainda no sentiram.
Chegar a hora de vocs! Henrique deu um trago
em seu copo de vinho e disse: Isso... Faam vocs
as pilhrias com a minha cara, porm um dia eu farei
piada de vocs.
Se for para ficar aqui a choramingar, deixe-nos
e v recolher suas lgrimas l na barra da saia do
padre. V! V! Deixe-nos retrucou Murilo.
Sim, bem isso que farei! Porque vocs so
muito idiotas e no sabem o que verdadeiramente
amar. Fiquem com essas meretrizes a...
Henrique levantou-se do lugar onde estava e
saiu desconsolvel pelas ruas de Sant Anna. A noite
estava fria e chuvosa, passou ele pela casa paroquial
e seguiu a cavalo para sua fazenda, passando antes
pela fazenda da famlia Albuquerque. Um vento frio
percorria-lhe toda a espinha, fazendo-o estremecer
sobre a montaria. A chuva torrencial no parava, e o
vento no cessava. Henrique se escondeu em uma
velha casa de tapera, ele estava com muito frio e, se
no trocasse de roupa, pegaria uma pneumonia.

Captulo XXII
A Preparao

Os dias se seguiram aps a chegada da famlia


283

Cludio Pereira da Silva

Albuquerque na corte. Beathriz passou por vrios


tratamentos de beleza e modificaes em seu
guarda-roupa. O que antes era apenas uma roceira
matuta agora era uma deusa dos sales da corte.
Nas ltimas duas semanas, a baronesa havia
mandado comprar vrios apetrechos para modificar o
guarda-roupa da moa. Foram encomendados, alm
dos quinhentos vestidos de saia-balo e roupas de
baixo, como saiotes, crinolinas, anguas, pantalonas,
meias, botinas, leques, luvas de pelica, capas,
perfumes franceses, colares e braceletes, chapus,
adornos para os cabelos, ruge, p de arroz, entre
outros. Sua pele recebeu vrios cremes e, uma vez
por semana, banhava-se em leite de cabra
holandesa, tratamentos que deixavam sua pele
macia e suave ao toque masculino. Seu penteado do
dia a dia fora substitudo por um mais sofisticado.
Mas, mesmo recebendo um tratamento de princesa e
muitos regalos, Bya estava cansada de tudo aquilo.
Durante aquelas duas semanas no passou um
dia sequer sem receber um profissional, como
modistas, boticrios, sapateiros, chapeleiros e
amigas para lhe arrumar os cabelos, professores de
como se comportar em um sarau da corte, entre
outros.
Chega! No aguento mais! Exclamou a moa
de repente. Tanto paparico j est me cansando. Eu
adoro paparico, mas h limite para tudo. A coisa que
mais me anima fazer compras.
Calma, Bya! Isso apenas para deix-la mais
apresentvel alta sociedade fluminense. Alm do
que, voc nunca reclamou de comprar roupas novas.
No sei por que est assim. Nem parece a menina
que adorava coisas da corte, e agora que est aqui
parece estar melanclica! O que se passa nessa
cabecinha pueril?
mesmo, minha cara amiga Beathriz, no
284

Mistrios de Um Amor Proibido

deixe esse amor impossvel abat-la.


Beathriz sabia que sua madre lhe daria o
mesmo conselho em relao ao seu problema
emocional, pois a baronesa de jeito algum lhe daria a
bno para se casar com Henrique e, como sinal de
rejeio, Beathriz franziu a testa e bateu
furiosamente na saia-balo:
mesmo, minha filha, sua amiga Anna
Carolina est mais do que certa, vosmec nova e
ainda conhecer vrios mancebos. No sei por que
tanto furor e por que anda to mal-humorada nesses
ltimos dias. Isso meninice!
Por Deus! Deixem-me em paz. No aguento
mais tanta intromisso em minha vida disse rubra
de dio, misturado com uma clera mortal. Por que
Deus no me fez homem, talvez eu fosse mais feliz!
Chega, Beathriz! No aguento mais essa tua
chatice. Nem parece aquela menina que dias atrs
vivia dizendo que gostaria de fazer compras e de
viver em uma sociedade onde tudo fosse mais
agitado. Quando estava em Petrpolis, vivia dizendo
que o povo era um bando de moscas-mortas, pois s
tinha sarau de vez em quando, isso quando o
imperador fazia! Concluiu a baronesa, olhando para
a filha. Agora, v encher os pacovs daquela que
me obrigou a trazer. V... V... Saia da minha
presena agora, porquanto no aguento mais a tua
conversa abolicionista.
Com aquelas palavras, Beathriz ergueu-se da
conversadeira onde estava e, arrumando as pregas
da ampla saia-balo, deu alguns passos e vociferou:
Vou mesmo! Uma vez que, l na senzala,
sinto-me mais amada e menos recriminada pelo meu
jeito. L eles gostam de mim pelo que eu sou e no
pelo que eu represento perante esta sociedade
hipcrita e medocre em que ns vivemos.
Rispidamente a baronesa e Anna Carolina
285

Cludio Pereira da Silva

disseram:
Vai, pode ir chorar no colo daquela negra
velha, talvez ela lhe entenda disse a baronesa. Se
aqui na casa-grande no ests feliz, rasque tua roupa
e v morar l na senzala com os outros negros, para
voc ver o que sofrimento!
mesmo, Beathriz. Tu no deverias reclamar
de tua sorte, pois, creio eu, que muita negrinha l da
senzala daria tudo para estar aqui, no teu lugar
disse Anna Carolina que, pela primeira vez, disse
palavras sbias, e no tolices como vivia falando.
Beathriz ergueu a saia e, dando alguns passos
pelo amplo salo, aproximou-se da porta e, abrindoa, saiu gargalhando. Minutos depois, Anna fez o
mesmo, retirando-se da sala, deixando a baronesa
sozinha. Enquanto caminhava pelo amplo corredor,
Bya divertia-se a par com sua conquista sobre sua
madre. Risonha e faceira, continuou Beathriz
caminhado pelo corredor at a ala leste da fazenda,
entusiasmada pela verossimilhana de ir amofinar o
juzo de sua me negra um bocadinho, e no
percebeu que Joo, o pajem, e o feitor da fazenda
acabavam de receber uma visita para sua me: um
cavalheiro baixo e rechonchudo, um tanto malhumorado na feio, que estava sendo conduzido em
direo antessala da biblioteca, onde j estava a
baronesa o esperando.
Aps alguns minutos caminhando, Beathriz
chegou cozinha e l estava sua me preta,
preparando o almoo e suas famosas compotas, e a
principal de todas, a pessegada, que tanto Bya
amava.
Huummmmmmm... Ai, meu Deus! Que cheiro
esse? Espero que seja o que estou pensando, pois
hoje quero me acabar nessa pessegada. Perdoe-me,
porquanto no percebi que fui mal-educada.
Primeiramente, boa-tarde! Como est minha me
286

Mistrios de Um Amor Proibido

preta? disse Beathriz, enquanto entrava na cozinha.


A negra virou-se e alegremente disse:
Oi, o que oc fazis aqui, pois aqui num luga
di sinhazinha, vosso luga l no salo.
Ento, sorridente, Beathriz respondeu:
At vosmec est me expulsando daqui? J
no basta minha me branca.
A negra sorriu e, limpando um banco de
madeira, murmurou:
No! Num mi intenda mal, puique sinhs
devem ficar apenas na sala e nunca vir cozinha!
Deixe disso, porquanto tu sabes que sempre
adorei a negrada e de ficar na barra de tua saia. A
cozinha e a senzala so melhores do que a casagrande e os sales desta sociedade hipcrita.
Ah! Sinh, no diga issu, pois oc no sabe o
que viver de fato na senzala a negra pegou na
delicada mo de sua senhora e a fez sentar: Sentese aqui!
Beathriz ergueu a saia e se assentou, tomando
quase todo o banco e boa parte do cho, com sua
ampla saia-balo. A negra, por sua vez, sentou-se ao
seu lado e comearam a conversar. Enquanto isso, as
outras negras que ali estavam continuaram seu
trabalho.
Excelentssimo leitor, no lhes contarei o
contedo da conversa da sinhazinha e da escrava,
pois deixarei isso ao encargo de vossa imaginao.
Mas agora retornarei sala, onde esto a baronesa e
o visitante.
A baronesa Isabel reclinou-se sobre a mesa do
escritrio em que estava escrevendo. Arrumando as
pregas da saia-balo, que tomava boa parte do cho,
encarou o mancebo que estava sua frente imvel.
A baronesa colocou o bico de pena sobre o tinteiro e,
erguendo-se da poltrona, estendeu a mo ao
mancebo. O rapaz, por sua vez, cingiu-lhe
287

Cludio Pereira da Silva

delicadamente a mo e beijou-lhe o dorso.


Boa-tarde! Sente-se, por favor! Vossa merc
conseguiu o que eu lhe pedi? Indagou a baronesa,
voltando para seu lugar.
Mui bien! Buenos dias.
Todavia o varo prosseguiu em p e, com a
ajuda de uma escrava, tirou sua capa e colocou seu
chapu e sua bengala na chapelaria de madeira
nobre talhada que ficava junto entrada.
O rapaz sentou-se, como a baronesa havia lhe
oferecido.
Ele tem uma fazenda a duas lguas daqui,
como a baronesa havia imaginado. Ele vai
frequentemente taberna e casa de convenincias
no vilarejo. um verdadeiro leo da moda. Herdeiro
de uma enorme fortuna pelo que pesquisei, tem por
volta de quinze fazendas por todo o territrio
nacional e mais duas casas em Lisboa e em Cintra,
Portugal. visto frequentemente na companhia de
dois jovens, o senhor Victor de Almeida, o Conde de
Bom-Sucesso, e o jovem Francis de Alencar. Um j
casado e o outro est noivo, ele o nico que ainda
est solteiro. Os trs sempre so vistos no prostbulo,
mas este jovem em questo no muito de gastar
com cortes e com jogos, quase um celibatrio.
Dizem as ms-lnguas que ele ainda espera uma
mulher perfeita, que mais se parea com uma deusa
grega.
Em meio s palavras daquele forasteiro, a
baronesa manteve-se calada e observava cada
palavra, parecia meio pasma e soberba com as
palavras que saam daquela boca com um leve
sotaque castelhano. Ento cessaram as palavras que
saam da boca do forasteiro, ele continuou sentado e
com as mos apoiadas em sua bengala de
madreprola. Ainda extasiada com as palavras do
mancebo, ela levou alguns minutos at voltar para a
288

Mistrios de Um Amor Proibido

rbita terrestre e perguntou:


Vossa merc por um acaso sabe onde ele
estar esta noite e nas prximas noites? Pois me
parece que esse um bom partido para minha
menina!
Sei, sim, baronesa. Ele estar esta noite l na
taberna da Quinta da Boa Vista.
Siga-o Isabel mantinha a voz baixa e suave;
entretanto, era evidente que estava um tanto quanto
animada com as boas novas que acabara de escutar
da boca daquele homem disforme. Siga-o aonde ele
for, porquanto tu s pago para isso. No lhe dou boa
vida aqui em Campos apenas por que sou boa! Faa
o possvel e o impossvel, suborne seus escravos e
at sua me, se precisar, todavia no deixe que ele
se case com outra. E tenho dito! Ou tu vers do que
sou capaz, olha que tenho boa influncia na corte,
com o imperador. Direi ao imperador que voc um
prfido da coroa portuguesa, a tu vers o que ele
far com vossa senhoria.
Ah, no, senhora! No faa isso comigo,
porquanto sou um grande amante da coroa
portuguesa. Imploro-lhe clemncia, senhora. Farei eu
tudo para conseguir o que vossa senhoria deseja.
Assim espero! Pois, se no fizer, sou capaz de
mandar mat-lo.
Piedade, senhora! O homem fez o sinal da
cruz. Com licena, Buenos dias.
V, e s volte aqui quando souber de tudo que
desejo saber.
O homem fez uma leve mesura e, em passos
lentos e suaves, dirigiu-se at a porta, assim saindo
em seguida. A baronesa continuou ali, virou-se para
a janela e, em voz alta disse:
Esse imprestvel! J me levou uma grande
quantia em patacas e ainda no me trouxe nada de
consistente. Apenas coisas que j sabia, mas isso
289

Cludio Pereira da Silva

no ficar assim, pois, se at o final do ms, no me


trouxer notcias, mandarei dar cabo dele.
Nesse momento, uma escrava entrou e disse:
Sinh, deseja algo?!
No! Saia daqui, negrinha, agora.
A negra fechou a porta e saiu correndo pelo
corredor.

290

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XXIII
A grande amazona

Uma batida na porta que se abria para a casa


de banho e para o toucador acordou a delicada
Beathriz. Era Hadassa, sua mucama pessoal, que
adentrava a acomodao e advertiu que ela poderia
tomar o desjejum quando quisesse.
Beathriz abriu o dossel da cama e, colocando o
lindo p em uma pantufa, caminhou para a casa de
banho. Como era habitual em manhs como aquela,
Beathriz chegava janela ainda com sua camisola de
seda com babados e se espreguiava. Em seguida,
caminhava at a penteadeira e olhava-se, ainda
antes de lavar o rosto na bacia de loua inglesa.
Beathriz caminhou ainda um pouco pelos
cmodos, que lhe foram dados para acomodar seus
pertences. Marcava seis horas da manh, quando a
b bateu na porta. Bya lavou o rosto na bacia de
loua e vestiu o roupo, aps muita conversa e troca
de confidncias, Beathriz ainda estava indecisa no
que usaria aquela manh.
Mas, para uma senhorita em sua posio social,
no poderia se mostrar desarrumada nenhum
minuto, a qualquer momento precisaria estar
impecvel em seus trajes, pois no sabia a hora em
que uma visita chegaria. Por isso precisava estar
sempre bem alinhada. Por horas ficou indecisa no
que vestiria, o dia estava lindo e ela precisava vestir
291

Cludio Pereira da Silva

um vestido alegre, mas no poderia ter decote, pois


decote s depois das trs horas. Era a hora do
desjejum, havia muito sol e, como sua pele era muito
delicada e alva demais, precisava tomar cuidados, ou
ficaria cheia de sardas.
Levara at as oito experimentando uns e outros,
insatisfeita, sempre se via em vestidos da moda,
mesmo que fosse s para ficar em casa. Corpinhos
de linho e seda por sobre o espartilho de barbatana,
a crinolina e as sete saias de baixo muito franzidas
com renda para dar mais volume e babados nas
pontas apenas para mostrar a sua posio social.
Espalhada pelo cho de mrmore italiano, nas
cadeiras, conversadeiras, divs, canaps e sobre a
cama, uma variedade de vestidos de saia-balo de
cores claras, escuras e de fitas. Ali facilmente havia
mais de trs mil quilmetros de tecidos nobres.
O de organdi azul-beb com a faixa larga de
cetim de cor branca ia-lhe bem, porm j havia sido
usado na semana passada. O de bombazina rosa de
mangas bufadas e gola de renda francesa fazia
ressaltar maravilhosamente a brancura de sua pele.
O de musselina amarela, listrado, com grandes
incrustaes de renda e de fil junto bainha era
lindo, mas para ela j se fazia fora de moda. O de
tafet azul com babadinhos debulhados de fitas de
veludo azul-anil e com muita renda francesa
assentava-lhe muitos bem e era o seu favorito por
acentuar seus olhos e suas formas, principalmente, a
cintura, que era a menor da regio de Sant Anna.
Possua milhes, ainda, de vestidos de casa e de
gala, Beathriz tinha tantos vestidos que precisou de
cinco aposentos e de vinte e cinco bas, sem contar
os dez guarda-roupas.
Tirou o robe e a camisola, e entrou na tina com
gua morna. Assim que Beathriz entrou na tina,
fechou os olhos e, quando abriu, levou um susto, pois
292

Mistrios de Um Amor Proibido

Juliana ainda estava ali, parada sua frente,


esperando com uma grande toalha nas mos. A
toalha tinha o braso da famlia.
Juliana, o que voc faz ainda a, menina?
Beathriz resmungou mansamente, como era de
costume.
A mucama ficou rubra e baixou a cabea. Sem
saber o que dizer, a negra ficou sem jeito, pois no
era de costume os senhores falarem com a
criadagem, falavam apenas para mandar.
A sinhazinha vai mi descurpar, mais que eu
no sei o que fazer, pois nunca fui uma mucama
pessoar. Entre ondi ieu s trabaihei na lavoura,
nhanh.
Beathriz sentiu pena, mas ao mesmo tempo ela
quis rir, porm se manteve sria, pois sua me
sempre lhe ensinou a nunca rir da desgraa alheia.
Alm do que, ela havia simpatizado com a moa
desde que chegou.
Nesse episdio, minha querida Juliana, irei lhe
tratar como amiga, mas voc deve manter entre ns,
na frente dos outros, voc me tratar como senhora,
mas s na frente dos outros, pois voc sabe como a
sociedade. Beathriz sorriu docemente, mas de
forma encorajadora. Como estou ainda te
conhecendo, eu a ajudarei e vossa merc me
ajudar. Sairemos dessa juntas Beathriz estendeu a
mo mucama e disse: Amigas?!
Sim, sinh! Mas eu sempre saberei o meu
lugar exclamou Juliana, ainda de cabea baixa.
Se voc for mesmo minha amiga, quem sabe
no lhe darei alforria.
Que isso, nhanh? minha obrigao ser
sua confidente. Ou a senhora esqueceu que sou
preta?
A cor no quer dizer nada murmurou ela.
Agora deixemos de lorota. Eu gostaria de tomar
293

Cludio Pereira da Silva

chocolate quente enquanto me lavo. Depois quero


que me separe dois vestidos um para o desjejum e
outro para a cavalgada. Alis, voc vir comigo, mas
no como uma mucama e sim como minha amiga.
Assim que meu esposo me der dinheiro, comprarei
roupas novas para voc e para minha b.
Sim, sinh Tornou Juliana, que saiu
apressada do quarto. Seus passos eram ligeiros e
imperceptveis aos ouvidos humanos. Mas, antes de
partir para o trocador, ela ainda disse: Oc quer
que vestido sinh, para cavalgar?
O mais lindo que voc achar.
Mas so tantos! Juliana sorriu faceiramente.
Bya nem bem fechou os olhos e ali estava a
mucama novamente com a bandeja e dois vestidos.
Ela entregou a xcara de chocolate para Beathriz e
estendeu o vestido sobre o canap.
Por favor, minha amiga, pegue o banco da
penteadeira, pois quero colocar a xcara.
Ieu seguro, sinh.
No... No! Voc no criado-mudo, para ficar
segurando esta xcara.
Sem retrucar, a escrava pegou o banco. Depois
de se lavar, Beathriz saiu da banheira e, enrolada em
uma toalha, partiu para o toucador. L j era
aguardada por mais duas escravas, uma segurava
suas roupas de baixo, e outra, uma escova. Primeiro
Bya se assentou na penteadeira, e a escrava lhe fez
o penteado da poca; logo depois se levantou e
partiu para junto do dossel da cama, enquanto uma
escrava apertava-lhe o espartilho; outra j preparava
a crinolina, a angua e as sete saias que vinham por
baixo da saia de cambraia. A b de Beathriz apertou
o espartilho para quarenta e cinco, mas seria preciso
apertar-lhe mais. Empurrando a porta, Bya encostouse nas colunas da cama e a mucama apertou mais.
Beathriz havia finalmente escolhido um vestido com
294

Mistrios de Um Amor Proibido

um decote e, como era de costume que nenhuma


mulher deveria usar decote antes das trs, a
mucama Josefa deu-lhe um xale de casimira no
mesmo tom do vestido.
Depois que apertou o espartilho, Beathriz deu
alguns passos pelo toucador e se colocou dentro das
saias que estavam estendidas no cho. O conjunto
era um traje feito pela modista Margarida da corte,
conjunto que acabara de chegar da corte e o corte
era especial, pois Beathriz era a mulher com menor
cintura. Beathriz adorou ver que o vestido havia lhe
cado muito bem e o decote no era depravado. A
saia era escarlate e bem rodada, j o corpinho era
branco e bem marcado.
Bya estava encaminhando-se para o corredor,
mas lembrou que deveria deixar o vestido de
montaria separado, pois cavalgaria depois do caf.
Enquanto descia as escadas, Beathriz assistiu a
um alvoroo no salo de baixo. Enquanto ela
passava, as escravas olhavam admiradas com
tamanha perfeio, logo atrs vinha Juliana. Juliana
conduziu Beathriz estufa de cristal, onde seria
servido o desjejum.
Beathriz tomou o caf da manh sozinha,
apenas na companhia de sua mais nova amiga e feliz
por demais. Quando terminou, mandou chamar Xica.
Depois que terminou de tomar o caf da manh,
Beathriz foi para seu quarto para trocar de roupa.
Depois de cavalgar, desejo conhecer o resto
da casa, e ningum melhor que a senhora, que
conhece essa casa como a palma da mo!
A jovem cavalgou por entre os arbustos, a
pastagem era linda. Beathriz trajava um lindo vestido
preto de montaria. No meio do seu passeio matinal, a
jovem encontrou um de seus amigos, era o filho do
dono da fazenda Santa Rita.
Bonjour, Miss... My Goddess! A que devo a
295

Cludio Pereira da Silva

honra de encontrar to bela jovem logo pela manh.


Assim meu corao no aguentar! Disse Francisco,
enquanto fazia uma leve mesura ainda sobre seu
cavalo. Estou lisonjeado de v-la to cedo
senhorita. Je t'aime!...
Excusez-moi monsieur. Permita-me passar,
pois tenho muito que fazer disse Bya, afoita.
Assim fico encabulado, meu senhor, peo que pare
com esses galanteios...
Mas por qu? Indagou o jovem. Sois to
linda, por que no deveria cortej-la. J sois
compromissada? Ou ir para um convento?...
A carne de Beathriz estremeceu-se sobre seu
eixo, e a jovem respondeu:
Sou, sim, no sabes?
Tenho a ligeira impresso de que vs pareceis
fugir de algo.
No!... Com licena, meu caro...
Ela estava muito feliz, pois Henrique estava a
meio dia de distncia.
Dirio de Beathriz da Maia
Fazenda, 18/05/1859
Querido dirio! Hoje o meu dia foi muito corrido.
Assim que acordei, tive que tomar banho e depois
me vestir; tive tambm que tomar o desjejum,
sozinha, pois minha me havia levantado cedo para
cuidar dos afazeres da fazenda e depois partiu para a
cidade. No sei o que acontece comigo, pois muitas
mulheres em meu lugar estariam alegres e soberbas
de ter encontrado um marido rico, que pudesse lhes
dar o que quisessem, mas eu me sinto aprisionada.
Minha me no uma malvada, nem tampouco
uma mesquinha, boa. Passo os dias aqui solitria,
ou melhor, no posso dizer que s, pois aqui tenho
Juliana e Joaquina, mas mesmo assim me sinto s,
296

Mistrios de Um Amor Proibido

pois no posso ver mais Henrique, pois ele no mora


aqui, para me acalentar quando estou triste. Os
meus dias so esnobes e sem graa. No tenho nada
para fazer, passo os dias bordando, dando ordens e
me penteando, isso quando no estou dormindo. Mas
no posso ser to ingrata, pois toda vez aps o caf
e o almoo eu saio para cavalgar pela vrzea.
Entretanto, ainda sinto falta dos banhos que eu e
minha melhor amiga tomvamos aps o almoo no
riacho que cortava a fazenda.
Quantas vezes no adormecemos debaixo de
uma mangueira, ou debaixo dos ips e das
quaresmeiras. Como era bom passar o dia
caminhando pelo jardim e me esconder no
orquidrio. Perdoe-me, Deus, se estou sendo injusta
com Vossa Santidade, mas o que sinto. Sinto muita
falta de meu amado Henrique, nunca mais o vi. Na
semana passada eu e Juliana fomos ao vilarejo de
Campos, procurei saber dele, mas s fiquei sabendo
que ele havia partido atrs de uma moa.
A minha vida no passa de mero sonho, que
nunca sonhei para mim, queira Deus que esse
suplcio cesse logo. Pois nunca fui essa mulher seca e
amarga que estou, estou restrita apenas s coisas
fteis de mulher, coisas que so besteiras para mim.
No que eu no goste de fazer compras e de me
pentear, mas isso bom quando estamos ao lado de
quem amamos. Espero que Deus me ensine a amar,
nem que seja como amigo o pobre homem a quem
eu me casei. Sei que ele no tem culpa de ser
preterido, mas isso o que eu sinto.
Mas, antes de terminar as minhas confisses,
no posso me esquecer da viagem que fiz no ms
passado pela Europa. Um pas mais lindo que o outro,
eu passei pela Frana, Espanha, Inglaterra, Sucia,
Noruega, Litunia, ustria, Grcia, Sua, Itlia,
Dinamarca, Alemanha e, para terminar o roteiro
297

Cludio Pereira da Silva

histrico, passei em Portugal para rever as madres


do convento e alguns parentes. Agora irei cavalgar,
depois escrevo mais em ti, meu confidente.
Beathriz da Maia
Beathriz fechou o dirio e o colocou em uma
gaveta da escrivaninha, depois descansou a pena
sobre o tinteiro. Fechou a gaveta com uma chave que
carregava junto ao busto. Deu o ltimo retoque no
traje e no penteado em frente ao espelho e desceu
para a sala. Ali estava Beathriz vestida com uns de
seus lindssimos trajes, de ampla roda, a saia era de
veludo rosa real e o lindo corpinho era de cetim
branco.
Descia ela a belssima escadaria de mrmore
italiano, que levava a ala sul da casa-grande e,
quando chegou ao salo nobre, seguiu para o
alpendre, onde um escravo a aguardava com sua
montaria. Enquanto descia as escadas, Bya tentava
recuperar o flego, pois o espartilho estava lhe
deixando sem ar.
Quando finalmente chegou ao terreiro, olhou ao
seu derredor e viu que o dia estava lindssimo,
pegando as rdeas das mos do escravo e com a
ajuda ele subiu no cavalo Trovoada.
Naquele momento, Beathriz desejava sair aos
galopes sem se preocupar com o retorno. Ento
partiu a galopes atravs do vargedo, como faz uma
amazona em uma batalha.

298

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XXIV
Armaes diablicas

A noite estava tpida e chuvosa, uma densa


cortina de neblina cobria toda Sant Anna, e uma fina
garoa caa. Marcava pouco mais de dez horas da
noite, o jantar j havia passado, e a sinhazinha
Beathriz j havia se recolhido em seus aposentos, a
nica que ainda encontrava-se em p era a baronesa
Isabel, pois ainda estava com visita. Mas no era
qualquer visita, era a rival e inimiga de Beathriz,
Anna Carolina, que veladamente mantinha um dio
mortal pela bela Bya.
A visita at quela hora da noite no era apenas
uma visita casual, mas havia um plano diablico, por
trs de tamanha amizade. No que a baronesa, me
de nossa mocinha, fosse m, mas no aceitava o
romance dela com Henrique, por causa de coisas que
haviam lhe marcado o passado. A baronesa guardava
grande mgoa de seu passado e por isso queria
descontar na filha suas dores e seus dissabores da
vida.
As duas estavam na biblioteca em uma reunio
a portas fechadas. A baronesa havia recomendado s
mucamas que elas sequer passassem por perto da
porta, apenas uma havia ficado incumbida de levar o
ch e apenas isso. Pois qualquer escrava que fosse
pega perto ou atrs da porta iria para o tronco e
levaria cinquenta chibatadas. A baronesa estava
299

Cludio Pereira da Silva

atrs de sua escrivaninha, j Anna encontrava-se


assentada em uma poltrona par da escrivaninha. A
negra entrou e, aps servir o ch, saiu, deixando as
duas a ss novamente.
isso a, minha cara. isso mesmo que ns
iremos fazer! Concluiu a baronesa.
Sim, baronesa! Amanh mesmo levarei a
senhora l, na casa daquela senhora que mora perto
do riacho grande balbuciou Anna.
No dia seguinte, nas primeiras horas da manh,
a baronesa se vestiu e partiu para o lugar
combinado. Era no meio da mata, um lugar nebuloso
e feio, ao final de uma estrada, uma pequena casa
de sap. A casa era feia e asquerosa, tudo era muito
sujo. Anna Carolina j a aguardava na porta com uma
velha negra. Era feia, trazia no pescoo algumas
correntes e, na mo, um galho de arruda. A negra
velha tinha uma aparncia asquerosa, tinha o cabelo
branco e duro, as costas eram arqueadas como uma
corcova, as pernas eram grossas e ligeiramente
arqueadas, os dentes eram podres.
Aps os cumprimentos formais, a baronesa
entrou e comeou uma longa conversao, ao seu
final, a velha lhe entregou um frasco com uma
poo. Todas se despediram e a baronesa regressou
para casa. A negra era temida na regio, no havia
uma fazenda onde ela havia trabalhado que seus
patres no houvessem falecido. Era conhecida como
a senhora da morte, a bruxa da mata, muitos diziam
que ela havia feito pacto com o demnio.
Confisses de uma sinhazinha
Enquanto algumas escravas preparavam o
almoo, Beathriz e sua me preta conversavam e
trocavam algumas confidncias. Bya, com seu lindo
vestido de saia-balo, no meio daquelas escravas
maltrapilhas e sujas da labuta. S ela mesmo, para
300

Mistrios de Um Amor Proibido

ignorar diferenas sociais entre ela e as escravas.


Beathriz descansou o copo que tinha nas mos
sobre a mesa e disse:
A baronesa, minha me, pensa que me
engana, mas eu sei de seu plano, Xica! Beathriz
disse, em branda voz. Acha que eu no sei que ela
e Anna Carolina planejaram tudo para me separar de
Henrique! Ento pegou seu leque e o abriu,
abanando-se em seguida. Mas de uma coisa
vosmecs podem ter certeza, no conseguiro, pois
posso parecer uma tola, mas sou muito mais sbia
que todos pensam. E, se precisar fugir, fugirei, e
tenho dito!
Xica encarou a menina e, com muita sabedoria,
disse:
A sinhazinha sabe que pode contar comigo,
mas uma coisa eu lhe peo, no faa nada daquilo
que possa se arrepender depois. Eu e vossa me
criamos a vs para obedecer s ordens de seus pais
e da sociedade, mesmo no concordando com muita
coisa. Mas, desta vez, tenho que concordar com
vossa madre, pois os pais sempre sabem o que
melhor para os filhos.
Beathriz, com o rosto rubro, de uma clera que
lhe entrava pelos poros e lhe invadia o corao,
bradou:
Vossa merc ir me perdoar, mas no nasci
para viver debaixo de mandos e desmandos de uma
sociedade hipcrita.
Mas a sinh deve respeito a vossa me!
Assim como filha no lhe faltarei com respeito,
mas no aceitarei tudo de mo beijada, como
querem que eu aceite. Antes eu tivesse nascido
varo, talvez no tivesse que viver debaixo das
ordens de outros.
Ah, sinh, pensa que homem no tem que dar
explicaes aos pais e sociedade. Fique sabendo
301

Cludio Pereira da Silva

que no ms passado o filho de um rico comerciante


daqui de Sant Anna teve que se casar fora, pois
estava enamorado de uma escrava de sua fazenda.
Ento foi obrigado a se casar com uma sinhazinha da
corte concluiu a negra, erguendo-se da cadeira.
Pois bem! Agora deixemos essa conversa de lado,
pois oc precisa ainda se preparar para o sarau desta
noite.
Bya continuou ainda sentada.
Vossa merc no sabe, mas o corao de uma
mulher como um oceano, cheio de segredos
Beathriz deu uma breve pausa no que dizia e,
concluindo, disse: Irei, mas ainda no me sinto
preparada, pois as moas daqui parecem estar mais
a par da moda de Paris.
Ah, sinh! No creio nisso, pois a sinhazinha
se traja to bem e no passa uma semana sem
comprar as revistas de mod, que chega de p... P...
Como mesmo o nome da cidade da moda?
Paris!
Isso mesmo! Compra direto as revistas para se
atualizar na moda e no costume parisiense.
Beathriz abriu um sorriso e, gargalhando, disse:
Olha s a minha me preta falando difcil.
Onde aprendeu essa palavra difcil?
A negra, encabulada, disse:
Ah, sinh. Eu ouvi vossa me falando! A
negra descascava uma batata. Hoje de manh, fui
vila de Campos e posso afirmar que no vi
nenhuma moa com seu porte e com sua elegncia
nos trajes.
Isso bondade sua! Afirmou Beathriz.
E sei que esta noite estar ainda mais linda
para o sarau na casa do Baro de Mau! Mal posso
esperar para ver sua bela estreia perante a
sociedade da corte.
Aps aquelas palavras, Beathriz ergueu-se da
302

Mistrios de Um Amor Proibido

cadeira e seguiu junto com a escrava para seus


aposentos.
As horas foram passando, e os preparativos
comearam. Durante uma hora, Beathriz deteve-se
em uma tina com leite de cabra holandesa e mel
silvestre da ndia. Aps esse tempo, tomou um banho
com gua morna, sais de banho e algumas dzias de
ptalas de rosas inglesas. Perfumou os cabelos com
uma loo francesa. Ergueu-se da tina, secou-se e
partiu para sua penteadeira, que se encontrava no
toucador ao lado.
Beathriz ergueu a cauda de seu chambre de
camura e se assentou em uma banqueta estofada
com veludo adamascado no mesmo matiz das
cortinas. Afastando uma grande mecha de seu lindo
cabelo que lhe caa sobre os olhos, olhou-se no
espelho que estava sua frente. Depois aprumou a
longa melena em um penteado da moda. Bya vestiu
um lindo vestido de seda, veludo, cetim, tafet e
muito babado no colo, era uma mistura de
tonalidades e de tecidos, a ampla saia-balo era em
duas tonalidades: rosa e turquesa royal, j o corpinho
era de cetim turquesa, e o colo estava adornado com
muitos babados brancos. Nuanas que lhe caam
muito bem, principalmente pela sua tonalidade de
pele, que era muito alva, era realmente uma beleza
nrdica e europeia. Com certeza, se fosse para a
Europa, jamais saberiam que aquela moa era uma
brasileira, mas com sangue portugus.
Era mesmo um traje fascinante, no entanto, ao
mesmo tempo, airoso e sbrio. A amplido da saiabalo e a delicadeza do corpinho que lhe recobria a
finssima
cintura,
apertada
pelo
espartilho,
mostravam-lhe ainda mais o contorno de seu lindo
corpo, ainda no vio da primavera. Estava usando o
espartilho to apertado, que mal conseguia respirar,
o ar custava em entrar em seu pulmo e seu colo
303

Cludio Pereira da Silva

arfava como dois montes de Afrodite. Trazia um


arranjo de minirrosas na cabea, com rosinhas que
lhe caam por sobre as dezenas de cachos, cachos
que lhe emolduravam o rosto fino e delicado de
traos perfeitos, com certeza aqueles traos s
seriam vistos em princesas do Velho Mundo, era
tanto encanto para uma pessoa s. Formosura que
irradiava pelos porros e pela aura.
Naquele momento, Beathriz fitou a negra que
lhe apertava o espartilho e disse:
Oh, b. Gostaria de saber um fato? O fato
que eu estou sendo uma dissimulada! No estou
ludibriando apenas as outras pessoas, entretanto
estou mentindo para mim mesma. Isso aqui no
passa de uma guarde pilheria! Mas o que mais me
machuca saber que minha me est usando
artifcios srdidos para me separar de Henrique e me
casar com outro.
, fia, oc est mais que equivocada, pois a
sinh sabe o que faz! Talvez isso seja a meio, coisa
para vassunc. No se sinta assim, pois tu s a
sinhazinha mais linda que j vi e, a cada dia, fica
melhor. Naquele momento a escrava secou-lhe uma
lgrima que comeava a escorrer em seu delicado
rosto e afetuosamente fitou-a.
Entretanto quando me olho no espelho no me
reconheo, vejo apenas uma escrava frgil assim
como voc, que no tem desejo prprio, que obedece
apenas s ordens no s de minha me, mas agora
de Anna Carolina, brao direito de minha me
Isso no passa de impresso sua! disparate
seu, minha querida filha branca. Mas claro que isso
voc, isso s estava em tua essncia. S precisava
de um empurrozinho e, esse empurro, sua madre
deu. Alm do mais, foi para isso que eu e sua me
lhe doutrinamos, para ser uma grande dama da alta
sociedade.
304

Mistrios de Um Amor Proibido

Benevolncia
tua

disse
Beathriz,
relanceando os olhos novamente no espelho. No
achas que esta saia no est to ampla como dita a
moda? Estou achando-a um tanto quanto desarmada
Beathriz passou a mo nas saias e rodopiou para
ver se a saia ficava mais ampla, como ditava a moda
na poca.
Tambm acho, minha senhorinha a negra
deu alguns passos e, abrindo um ba, disse: Talvez,
se colocarmos mais uma angua, resolveria o
problema! Acredito que a modista tenha errado na
quantidade de babado de sua angua e no tamanho
de sua crinolina.
A negra ajudou Beathriz a tirar a saia de cima e,
aps colocar mais uma angua, vestiu novamente a
saia que usaria no sarau. Bya rodopiou novamente,
mas desta vez apenas para colocar cada babado em
seu lugar.
Beathriz deu alguns passos e se colocou na
frente do espelho, ento disse:
Acredito que agora estou conforme a moda de
Paris. No acha?!
Ah... Ah. Agora est mais deslumbrante que
h pouco sorriu a negra, passando a mo sobre a
ampla saia.
No creio que estou deslumbrante, estou
apenas da forma que minha madre deseja!
Depois que terminou de se vestir, Beathriz
pegou o resto de seus pertences e partiu para o
corredor, caminho que a levaria escadaria principal.
Enquanto caminhava pelo corredor, Beathriz trocava
algumas palavras com sua me preta, at o
momento em que passavam pela porta do quarto da
baronesa.
As
duas
ento
se
calaram,
e
delicadamente Bya bateu na porta, mas, como no
houve resposta do outro lado, voltou a caminhar at
atingir a escada.
305

Cludio Pereira da Silva

E, l do alto da escada, parecia uma ninfa sada


diretamente de um bosque da Europa para a terra
tupiniquim. Talvez, caro leitor, voc possa estar
pensando que isso apenas delrio de um escritor
deslumbrado, mas de boca cheia eu lhes digo:
Beathriz realmente uma divindade celeste, uma
deusa, uma fada, um anjo, ou talvez apenas um ser
celestial, cativa em um corpo humano; no entanto,
eu creio que isso so apenas coisas efmeras,
porquanto seu esprito mais nobre e mais gentil
que ns possamos imaginar.
Submersa em um eflvio clico, comeou
Beathriz a descer a ampla escadaria de mrmore
italiano. E, com sua delicada mo, Beathriz apoiou-se
no corrimo. Corrimo que era talhado em madeira
nobre e, ao seu fim, um balastre que ia do cho ao
teto em mrmore italiano, em um estilo grecoromano. Pilastras no estilo da entrada de um templo
do Olmpo.
Com uma mo, apoiava-se no corrimo e, com a
outra, segurava a vasta saia. A cada degrau descido,
a bela donzela erguia um pouco mais de sua saiabalo, pois lhe dificultava a viso do prximo degrau
e, a cada vez que erguia a saia, deixava ainda mais
seu tornozelo mostra, coisa que era inadmissvel
vista de um varo.
Aps descer a escada, Bya acompanhada de
sua dama de companhia deram alguns passos e
entraram no salo principal, onde Beathriz j era
aguardada por sua me, por Anna Carolina e por um
senhor. Visivelmente j senil pela idade, contava por
volta de seus sessenta anos. Beathriz abriu o leque,
apenas para rir do velho senhor que estava ao lado
de sua me. Senhor de estatura baixa, rechonchudo,
pele alvssima, nariz grosso e a barba estava por
fazer, o bigode era peculiar, e nitidamente estava em
um traje um tanto quanto empoeirado e pudo pelo
306

Mistrios de Um Amor Proibido

tempo.
Achei que vossa merc no sairia mais
daquele quarto?! Por que demoraste tanto? Eu
sempre lhe disse que uma sinhazinha de verdade
deve demorar mais de uma hora para se arranjar,
mas hoje voc exagerou demais. Isabel, a
baronesa, queixou-se ao ver a porta do salo se abrir
e ver a entrada triunfal da filha.
Perdoe-me, minha me por ter lhe feito
esperar, mas a senhora sabe que sou muito indecisa
na hora de escolher uma roupa de festa murmurou
Beathriz, sem jeito e trmula, pois no sabia o que
lhe esperava em poucas horas. Vergonhosamente,
Beathriz soltou o pedao da saia que ainda segurava
e terminou de adentrar no recinto.
Ah, mais que falta de decoro meu! Bradou a
baronesa, sorridente. Meu caro visconde Leopoldo,
queira me dar a honra de lhe apresentar uma das
minhas joias mais raras: a sinhazinha Albuquerque,
minha filha mais nova e mais bela. Acredito eu que
voc nunca viu e nunca haver de ver uma criatura
mais linda e mais educada que essa!
Beathriz
estendeu
a
mo,
com
muita
delicadeza, o visconde Leopoldo a amparou e, com
uma sutil mesura, beijou-lhe o dorso da mo.
Beathriz ento respondeu:
O prazer todo meu! Balbuciou Beathriz,
fazendo uma perspicaz mesura.
Vossa merc tem toda razo, minha amiga
baronesa Isabel. De todas as viagens que eu fiz, olha
que no foram poucas, ainda no havia visto um ser
to lindo e to esplendoroso como esse que estou
presenciando agora! At parece um fenmeno
celestial! Mencionou Leopoldo boquiaberto, quase
sem palavras.
Beathriz estava sendo educada at demais.
Entretanto, em seu ntimo, o que se passava no era
307

Cludio Pereira da Silva

toda aquela gentileza, uma vez que a senhorita


estava com uma abissal repugnncia. Todavia, era
por causa da feiura daquele homem que se
apresentava a sua frente. Certamente sua me o
havia convidado, porquanto sabia que, com sua
feiura, chamaria a ateno de todo o salo! E com
esse estratagema a baronesa conseguiria atrair
todos os olhares para sua filha. E os olhares que mais
lhe interessavam eram os dos rapazes casadoiros e
ricos... No que Beathriz estivesse venda, porm a
baronesa queria separ-la de qualquer forma de
Henrique.
Aps as apresentaes com breves galanteios,
os trs, mais a escrava, seguiram para o alpendre,
onde duas diligncias j os aguardavam. Beathriz,
sua me e o velho seguiram em um coche, j a
escrava veio logo atrs em uma carroa com mais
duas mucamas.
Marcava pouco mais de dez horas da manh,
quando a comitiva atravessou as porteiras da
fazenda. Meia hora depois j haviam chegado a uma
quadra da fazenda; todavia, com certeza, s
conseguiriam chegar aos saraus meia hora depois,
uma vez que a renque de coches e de carruagens
dava voltas no estrado de terra vermelha. Em todos
os minutos chegavam mais e mais carruagens. Cinco
minutos era o tempo que a comitiva j estava
esperando na fila, ento, ao lado da carruagem da
senhora baronesa Isabel, havia parado um coche um
tanto quanto suntuoso. Abriu-se uma das cortinas do
coche e, de l de dentro, o rosto de Anna apareceu
lindamente, envolto em um chapu de veludo azulturquesa.
Ol, senhora baronesa disse Carolina
debruando-se sobre o peitoril do coche.
Boa-noite, senhorita Anna Carolina!
Responderam todos ao mesmo tempo.
308

Mistrios de Um Amor Proibido

A senhorita talvez saiba por que h uma fila


deste tamanho?! Indagou a baronesa. Pois j
estamos aqui h algum tempo!
Ah, baronesa, sei, sim! por causa da
chegada do imperador Dom Pedro II e de sua
comitiva, que conta com a presena do Baro de
Mau, de sua esposa e sobrinha, a baronesa.
Por mil demnios! No aguento mais esperar
nesta carruagem. A crinolina e as anguas esto me
machucando, e as botas esto me matando
esbravejou Beathriz.
Cale-se, menina! Olha os modos diante do
visconde.
Sem graa e se desculpando, Beathriz sorriu
desconfiada. Se, por um lado, a crinolina e as
anguas estavam lhe machucando, por outro, a
vontade de entrar no sarau e de conhecer mais
pessoas da alta sociedade, em especial as damas,
pois queria ver seus vesturios, a anestesiavam.
Desde nova, sempre aprendi, com minha me,
que uma donzela, ou uma senhora j casada, jamais
deve falar em pblico de suas peas de baixo
objurgou Anna, com uma certa nuana sarcstica nas
palavras.
Beathriz sentiu-se ofendida e, como no tinha
papas na lngua, disse em alto e bom tom:
Por favor, meu caro senhor, tampe os ouvidos.
O velho ento o fez e Bya continuou: Senhorita
Anna Carolina, cuide de sua vida, pois no preciso de
seus sermes, porquanto sou muito bem instruda
por minha me. Eu sei muito bem o que posso ou
no dizer... E at agora no disse nada de chulo, que
ferisse minha reputao como donzela e casta que
sou!
A baronesa interferiu e disse:
Meninas! Olha a compostura, j estamos
porta da fazenda!
309

Cludio Pereira da Silva

Beathriz pediu desculpas e retornou ao seu


lugar. Anna Carolina fez o mesmo e fechou o
acortinado.
Desculpe, minha filha! Explicou-se a
baronesa.

Perdoe-me!

Desculpou-se
Beathriz,
envergonhada pelo ocorrido havia pouco.
Aps passarem pela imensa alameda de
quaresmeiras e de palmeiras-reais do jardim francs,
a carruagem parou diante da entrada principal.
Primeiro desceu o velho, que serviu de apoio
baronesa e a Beathriz, que desceram em seguida.
O velho senhor ofereceu-lhes o brao, para que
pudessem ser introduzidas no trio do palcio. A
baronesa no pestanejou e aceitou o brao do
cavalheiro, j Bya decidiu subir sozinha. Beathriz
entrou cumprimentando todo mundo, assim como
manda a boa educao. Alguns poderiam ach-la de
certo modo atrevida, mas fora assim que fora
ensinada e assim deveria se comportar. Desde nova
sempre fora ensinada a ser educada, acima de
qualquer conveno social. Primeiro saudava os mais
velhos e depois procurava um grupo da sua idade,
para que ali pudesse se estalar e conversar. Mas
jamais ficava em rodas que houvesse apenas
rapazes, sempre procurava grupos de moas na sua
faixa etria.
Aquela era uma festa como as outras que, aps
o almoo, sempre as moas eram levadas a seus
respectivos dormitrios para que pudessem tirar a
sesta, pois aps a sesta sempre vinha a segunda
parte do sarau, parte que era a mais alegre, pois
tinha orquestra, quadrilha e valsa. Era exatamente
nesse momento que os velhos se lembravam de sua
mocidade e os mais novos aproveitavam o vio da
juventude para danar e extravasar suas alegrias.
Era no momento da valsa que os enamorados
310

Mistrios de Um Amor Proibido

aproveitavam para paquerar e, entre olhares e


murmrios ao p do ouvido, saam sempre
casamentos de interesses. Moas e suas mucamas
ficavam nos cantos mexericando, as negras serviam
de pombos-correio a levarem correio-elegante para
rapages que respondiam no olhar. Minutos depois
estavam os trs no jardim: a negra, a mocinha e o
rapaz.
As escravas de olhos vivos para que no
ultrapassassem o bom costume e para que sua sinh
no ficasse malfalada, pois ela sabia que, se algo
sasse do controle, a prejudicada seria ela, uma vez
que seria levada ao tronco, por ter sido incumbido a
ela que zelasse por sua senhora.
E foi entre um rodopio e outro que os
pombinhos se reencontraram. Beathriz avistou
Henrique, no meio da multido. Ela bailava com um
rico jovem, ele com uma elegante senhora. Naquele
momento, uma clera misturada com dio tomou
conta de Beathriz, que temia: Ser que aquela
moa, com quem Henrique dana, sua noiva?
Deus! Demorei tanto para reencontr-lo e agora ele
est noivo. Oh, no... Oh no... Pensava ela,
enquanto rodopiava no brao do rapaz. Assim como
ela, Henrique tambm pensava, seu maior desejo era
soltar aquela moa que carregava nos braos e
correr para os braos de sua amada. Pensou em
desafiar o patife para um duelo, mas lembrou-se que
duelo havia sido proibido h anos.
Era entre um rodopio e outro que os olhares se
encontravam. Beathriz queria deixar os braos
daquele que a segurava com tamanha veemncia, o
extinto animal pulava em seu colo, sua vontade era
deixar a quem lhe aprisionava entre os braos e
pular sobre aquele que ela tanto almejou encontrar
novamente.
Talvez seja eu o escolhido para sofrer de amor,
311

Cludio Pereira da Silva

e morrer em teus braos, anjo, h quanto tempo


andei errante por estas terras, atrs de um olhar teu,
deusa da minha vida. Ser que tu vens de Nosso
Senhor, ou vieste do prncipe das trevas, atormentarme nas noites em que sonho que ests minha
cabeceira, beijando meus lbios. Quando a vejo
atravessar as ruas de Sant Anna sobre sua linda
vitria, almejo eu ser o sapatinho que lhe cobre os
ps mimosos, ou talvez apenas o cetim que lhe cobre
o dorso.
"Deusa, fada, ninfa, anjo, ou ser que apenas
uma mulher como qualquer outra? No sei ainda
definir o posto em que tu deves ficar, mas sempre
ser a primeira em meu corao. No sei se ando
louco, ou se apenas um delrio meu, mas a vejo
sempre em meu leito. Vosso porte senhoril, seu
andar quase um voejar, ou apenas os passos de
Afrodite em Atenas, no sei, mas meus delrios
ultrapassam o senso do real e do sobrenatural. Talvez
ns tenhamos uma ligao alm desta vida. Por ti
sou capaz de atravessar o Atlntico a nado, ou
escalar o mais alto monte da terra, ou caminhar por
toda a muralha da China. Trago o sol e a lua apenas
para que eles vejam sua beleza, minha Vnus.
Pensava o rapaz a cada olhada que desferia contra
sua amada.
Beathriz sentiu-se atordoada, pois todos os
olhares se voltaram para ela, olhares curiosos, pois j
haviam percebido o clima e os olhares que trocavam.
A cada rodopio se declinava sobre os parceiros de
contradana, para trocarem olhares. Aps o trmino
da contradana, Bya pediu para que o rapaz a
levasse para uma sala mais discreta, pois no se
sentia muito bem. Logo aps a sada do casal,
Henrique os seguiu, temendo perder sua amada de
vista. Henrique entrou na saleta e, naquele
momento, o olhar de Beathriz se perdeu no
312

Mistrios de Um Amor Proibido

ambiente. Um clima de romance pairou por sobre o


casal, Beathriz achou que iria desmaiar, mas no final
no passou de impresso. J Henrique sentiu-se
atordoado, alm do que no era sempre que ele
tinha a oportunidade de ficar a ss com ela, sua
deusa. Henrique se aproximou da marquesa em que
Bya se encontrava sentada e, com apenas uma
palavra, o rapaz fez o clima de insegurana cair por
terra.
Posso?
Sim, por que no? Respondeu Beathriz, rubra
de vergonha.
Queira perdoar meu atrevimento, mas no
resisti quando a vi nos braos daquele biltre que a
enlaava entre os braos com tamanha veemncia.
Beathriz continuou de cabea baixa, como se
temesse algo.
No foi nada, senhor disse ela.
Como no? Por favor, no me trate assim.
Somos mais que bons amigos. Eu nasci para voc, e
voc nasceu para mim.
Mas o clima de romance no durou muito,
alguns segundo aps os dois comearem a
conversar, a dama de companhia da baronesa Isabel
adentrou a saleta, dizendo:
Sinhazinha, vossa me a chama, pois no se
sente muito bem e quer ir embora falou a escrava,
assustada.
Sim, Joana, diga a minha me que j vou. Diga
a ela para que me espere no alpendre, pois irei
buscar as minhas coisas.
Sim, sinh com essas palavras, a negra
deixou os dois a ss novamente.
Beathriz continuou de cabea baixa e temerosa.
Como vs, senhor Henrique, preciso partir
agora.
No se v, pois preciso de voc aqui! Demorei
313

Cludio Pereira da Silva

tanto para reencontr-la e, agora que consegui, voc


vai partir. No... No... Por favor, no me deixe s.
Morrerei de enfado se fores agora.
Os dois trocaram mais algumas palavras,
Beathriz recolheu seus pertences e se encaminhou
ao alpendre, onde j era aguardada pela baronesa.
Isabel j estava acomodada no coche.
Vamos, Beathriz, suba logo nesta carruagem,
pois no aguento mais, a minha cabea esta prestes
a estourar. Vamos. Vamos...
Beathriz colocou a manta nas costas e, com a
ajuda de um lacaio, subiu na carruagem, que logo
partiu, deixando Henrique espreita, que a qualquer
custo tentou ver sua amada; temia que aquela fosse
a ltima vez que a visse. Alguns segundos depois, a
nica coisa que conseguamos ver era a parte
superior do coche. No dia seguinte, Henrique
mandou um bilhete para Beathriz, marcando um
passeio escondido.
Henrique se advertiu, pois deveria ter muita
pacincia para conquistar o corao da sua futura
sogra. Mas, quando chegou fazenda, Henrique da
Maia esqueceu suas verdadeiras intenes e partiu
para o ataque. Subiu as escadas que dava no
alpendre frontal. Assim que ele subiu o ltimo
degrau, j lhe faltava o ar, quando foi recebido por
uma mucama, que o aconselhou esperar na cocheira,
pois a baronesa estava em casa, enquanto Beathriz
terminava de se arrumar para o passeio campestre.
Qual seria o traje que sua amada estaria? Ele a
imaginava. E como estaria o seu belo cabelo? Estaria
ela com um chapu magnfico, ou estaria solto como
da ltima vez que a encontrou? Cavalgaria ela de
novo com aquela sela especial? Deixar-lhe-ia roubar
um beijo, ou seria ela implacvel nas bofetadas? A
cabea de Henrique era muito frtil e imaginava
vrias situaes entre ele e sua amada, que surgiria
314

Mistrios de Um Amor Proibido

ao redor do dia. Levantou os olhos e sorriu, embora


os cabelos negros de Bya estivessem debaixo de um
lindo chapu de montaria que qualquer dama
aprovaria. Sua roupa de montaria marcava-lhe o
corpo ainda mais que da ltima vez.
Mas, no decote, ela exibia uma linda joia de
famlia que sua me havia dado horas atrs. Era uma
rosa de rubi com uma esmeralda no centro, uma joia
to linda quanto seus olhos negros, que, nesse
momento, estavam nele. Isso fez Henrique quase
enlouquecer e disse:
Bom-dia, minha querida noiva!
Beathriz estava muito mais controlada. Seu
aceno foi discretssimo seguido de um sussurro:
Bom dia, Senhor Henrique!
Henrique disfarou a aflio que sentia com um
comportamento discreto. Teria que ser cauteloso nas
palavras. Conservou-se por alguns minutos ao lado
da baronesa Isabel, que transmitiu as consignaes
do baro para o marqus. Enfim, chegou a hora de
partir para o passeio.
l foram eles. Um escravo de Henrique j
estava montado em um burro, que levava uma cesta
de refeio do dia. Ao lado de Beathriz, uma dama de
companhia e uma mucama tambm j os aguardava
em um timbur. Bya e Henrique subiram em outra
carruagem. Para subir no coche, Beathriz se apoiou
no brao forte de Henrique, com uma mo ela se
apoiou e com a outra ergueu o lindo vestido rosa que
usava. Aps os dois terem subido na carruagem, a
comitiva partiu em direo da estrada. Na estrada,
os coches tiveram que ficar separados, pois os
cavalos que os levantavam faziam muita poeira,
principalmente os do coche onde estavam Beathriz e
Henrique.
Minha senhora, por favor, passe nossa
frente, pois a poeira intensa e pode te fazer muito
315

Cludio Pereira da Silva

mal Henrique bradou ao ouvir a senhora que


acompanhava Bya tossir e se abanar com o leque
que trazia nas mos, temendo que Beathriz
chamasse a dama para ficar ao seu lado.
Vs estais to bela hoje, Bya ele a enalteceu.
E parece audaz tambm.
Obrigada, senhor Henrique, pelo elogio ela
disse isso com o olhar na estrada.
Apesar de seu tom spero, o bom humor dele
permaneceu.
Eu preferia v-la molhada e com o cabelo
desgrenhado, como a tinha visto naquela manh de
primavera.
Depois de um longo tempo, Beathriz virou o
rosto e olhou para o mancebo. Tinha um leve sorriso
em sua face.
Fale, se voc tambm no gostou de se sentir
livre? Ele perguntou para ela.
Sua expresso mudou na hora. O que era
alegria se tornou em dio.
Gostei, por qu? Ela respondeu com uma voz
seca de dio, como se houvesse se lembrado do
passado, e logo voltou a olhar para a estrada.
Na nossa fazenda, voc poder se vestir como
bem quiser quando for cavalgar. Alis, insisto nisso,
minha querida. Assim, terei uma boa desculpa para
persegui-la, minha amazona querida.
Beathriz gracejou e voltou a olh-lo.
Por qu? Jamais voc me alcanaria, seu tolo.
Henrique sentiu que a moa no estava falando
do seu corpo e sim do seu amor.
Voc parece estar certa disso, minha querida.
Estou muito certa disso, sim. Pois j competi
com vrios rapazes e sempre ganhei, desta vez ser
do mesmo jeito.
Que presuno! Veremos, minha querida
316

Mistrios de Um Amor Proibido

Beathriz ele a provocou.


Ah, fala o guerreiro. Ouvi dizer de seus feitos
em tavernas. Em seus conflitos com meretrizes. As
histrias sobre o grande Henrique, lder de grandes
orgias nas noites fluminenses!
Vs no ouvistes isto de minha boca.
Com certeza no, mas ouvi da boca de seu
pai. O marqus Alcntara da Maia sempre me falou
das suas aventuras amorosas.
A minha aventura amorosa no deve ser de
seu interesse, Beathriz, mas s interessa a mim,
minha querida.
Beathriz sentiu que havia violado uma lei da
sociedade.
Desculpe-me, senhor Henrique, no foi minha
inteno ser impertinente.
Est desculpada, mas no quero que toque
mais nesse assunto, minha querida. Muitos homens
fazem isso em sua mocidade. Com certeza at vosso
irmo faz isso. E, no futuro, ser seu filho que far
isso.
Beathriz envergonhou-se e indagou ao rapaz:
E quanto a vs? Essa marca que voc tem no
pescoo foi resultado de alguma briga de taverna?
No, mas de uma briga com meu primo,
quando ramos ainda infantes.
Foi por causa de um brinquedo. Cada um
teimava que o brinquedo era seu. Na briga, ele atirou
o brinquedo em meu pescoo e fez com que ficasse
essa marca.
Beathriz caiu na gargalhada, mas logo ficou
sria e sem graa.
Desculpe-me, senhor Henrique. No foi minha
inteno zombar de sua histria trgica.
Henrique tambm caiu na gargalhada e
concordou:
De fato, no foi muito engraada, mas acho
317

Cludio Pereira da Silva

que vou apreciar muito a nossa conversa esta noite.


Embora ela estivesse com muita raiva, ela
pediu:
Diga-me uma coisa: existem muitas cortess
em So Paulo?
Essa donzela era muito impertinente. Afront-lo
com o olhar, esperando a resposta.
Eu no conheci todas, mas me disseram que
h muitas espalhadas por toda So Paulo. A maioria
filha de senhores que perderam tudo e, para no
morrerem de fome, colocam as filhas para se
prostituir.
E o que voc acha dessa postura dos pais?
Se isso ocorresse com vs, com certeza eu
lutaria at a morte, para te salvar desse destino
trgico e funesto.
Dessa vez seu pudor foi ainda mais intenso e a
fez olhar para a estrada novamente.
O que foi, minha querida Beathriz? Prometo
que no ficarei mais chocado com qualquer coisa que
vossos lbios pronunciarem.
Estou muito preocupada com o destino de
minha irm, Isadora.
Isadora?
Sim.
Ela est com alguma enfermidade mortal?
No, mas deseja ter um marido para constituir
uma nova famlia.
Henrique no compreendeu o que Beathriz
estava querendo falando com aquilo. Estaria Bya
insinuando que ele seria um bom marido para sua
irm? Prudentemente ele disse:
Percebo bem a dor de sua mana, mas voc j
conquistou meu corao, Beathriz. E jamais aceitaria
outra em seu lugar.
Ela arregalou os olhos, sem entender nada.
A minha confisso o assustou? No acredita
318

Mistrios de Um Amor Proibido

que eu possa me apaixonar loucamente por voc?


Henrique perguntou.
Jamais um homem se apaixona loucamente
por uma mulher, mas a minha verdadeira surpresa
voc achar que eu estou lhe empurrando minha
querida irm.
Henrique franziu as sobrancelhas. O comentrio
no era nem um pouco satisfatrio.
Como no posso adivinhar o que est
pensando, Beathriz, talvez voc me explique qual o
seu raciocnio.
muito simples, meu pai est querendo casar
minha irm com o doutor lvaro.
Jamais! Desculpe-me, Beathriz, mas seu pai
deve estar louco Henrique a interrompeu.
Vejo que pensa como eu, senhor Henrique.
Ele balanou a cabea em sinal de protesto.
Alm do lindo sorriso, a calma em seu tom de voz
havia desaparecido, ele refletiu feliz. A vivacidade
voltou para seu olhar e, com ela, uma pergunta que
no queria calar:
O que faremos para salvar sua irm?
Ns, ele se perguntou:
Sobre o sofrimento, de sua mana?
Sim. Se Isadora no for cortejada por um
rapaz da nobreza, Incio ser o escolhido de meu
pai, mas no posso permitir que minha irm tenha
esse futuro tenebroso. Estou disposta a me casar
com ele, se for preciso, para salvar a pele de minha
irm.
Jamais voc far isso, pois j s minha! Eu a
probo at de pensar em tal absurdo. Ela o encarou.
No se esquea de que ainda ns no somos
casados, somos apenas noivos. E, at a gente se
casar, eu poderei fazer o que bem quiser.
Henrique a puxou pelo brao, para que eles
ficassem mais prximos.
319

Cludio Pereira da Silva

Eu a probo de fazer isso. Se for preciso, darei


um jeito de casar e de possu-la ainda esta noite, a
jamais o doutor lvaro a de te querer. Entendeu bem
o que sou capaz de fazer por te amar?
Ela continuou a encar-lo.
A batalha no se ganha fora, meu querido.
Quando preciso, sim.
No esta. Farei tudo o que precisar para salvar
a pele de minha irm, das mos daquele velho
asqueroso. Agora solte o meu brao, pois est me
machucando.
Henrique no a atendeu, e Beathriz enfiou a
mo em uma bolsinha que trazia. Com certeza
estava procurando o punhal que sempre carregava,
Henrique temeu e, antes que ela o ferisse, ele soltou
e disse:
Encontrarei um mancebo rico para se casar
com sua irm. Isso dever acabar com o problema de
sua irm.
Ela tirou a mo de dentro da bolsa, mas no
tinha nada em sua mo.
Talvez resolva o problema, mas voc deve agir
rapidamente antes que seja tarde demais. E insisto
que fale com os meus pais sobre isso.
Beathriz lhe dava ordens. Insistia. De todas as
mulheres que j haviam passado na vida de
Henrique, Bya era a mais audaciosa. Ento decidiu
ensinar-lhe algo sobre colaborao, ou melhor, sobre
trapacear.
E o que ganharei, se te obedecer, Beathriz?
Ela o olhou espantado.
Aceitei o seu pedido de casamento. Essa a
nica coisa que vs podeis esperar de mim.
Que soberba!
Nosso casamento no vale, pois isso foi
acertado por nossos pais e, no por ns. Por isso
exijo outra coisa de sua parte.
320

Mistrios de Um Amor Proibido

No me diga! Muito bem, ento, resolva o


problema da minha irm, e a eu esquecerei essa
tolice. E no me casarei!
Cuidado, Beathriz, eu estou lhe avisando.
Isso o mximo que posso lhe oferecer.
Desejo mais, ou irei deix-la se casar com
aquele asno Henrique declarou.
Beathriz sentiu o medo percorrer sua espinha
dorsal, ento tentou disfar-lo arrumando o
lindssimo chapu que ostentava sobre a cabea.
Tire esse chapu da cabea, pois desejo ver
melhor o seu penteado.
Essa a condio para receber sua ajuda?
Apenas uma das condies.
E quais so as outras?
Tire o chapu e eu te direi quais so as
outras...
Ela lhe obedeceu depressa e bradou, quando
Henrique segurou o chapu e lhe arrancou com
muita fria:
O que voc fez, seu desgraado?!
Ora, voc detestava aquilo tanto quanto eu.
Alis, seu cabelo lindssimo para ficar coberto com
aquela coisa. Quando a gente se casar, voc ficar
proibida de cobrir o cabelo. Agora, a minha maior
condio.
No vou devolver seu punhal. No at eu ter
outro Henrique riu.
Talvez voc encontre um l na corte de que
goste, e a a mim o dar de presente.
essa e a sua maior condio? Devo escolher
um punhal que seja seu?
Vs sabeis que no isso que desejo de voc,
Beathriz.
Desconfiada, ela pediu em voz baixa:
Fale de uma vez por todas.
Exijo-lhe que me beije esta tarde, no lugar e
321

Cludio Pereira da Silva

na hora de minha escolha.


Deve ser demorado e da maneira que eu quiser.
E, quando terminar, voc no poder me esbofetear,
nem me dar joelhadas, nem mesmo me apunhalar
pelas costas ou gritar. Entendeu, mocinha?
Voc ajudar minha irm se eu fizer tudo o
que voc me pedir?
Dou-lhe minha palavra de honra.
Beathriz respirou fundo e suspirou.
Nesse caso, farei tudo o que desejar.
Isso no o suficiente para mim. Quero que
faa de bom grado e no como uma escrava com
medo de ser aoitada.
Beathriz suspirou novamente.
Henrique, no acha que est querendo
demais?
mesmo, Beathriz?
Ela o olhou, mas logo voltou com o olhar para a
estrada.
Eu lhe fiz uma pergunta e desejo uma
resposta, agora.
Logo aps um longo momento de silncio ela
disse:
Sim, senhor. Farei tudo o que quiser de bom
grado, prometo.
Aquela donzela o estava levando loucura. Em
um momento ela lhe acendia o desejo e, no seguinte,
era uma virgem pura e recatada. Henrique a
desejava como jamais havia desejado outra mulher
antes, porm ela o forava a esperar. Pois assim
seria. Estava decidido a no toc-la em nenhum fio
de cabelo antes do casamento.

322

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XXV
As festas vindouras

Os
dias
foram
passando
lentamente,
arrastavam-se como uma tartaruga velha. Beathriz j
no sabia mais o que fazer: em uma tarde, passava a
ler seus livros romanescos da literatura francesa,
inglesa, hngara, italiana, ou os livros em latim; na
outra, saa para cavalgar e passava a tarde toda
passeando pelos bosques, banhando-se nos riachos;
na outra, ia para convescote, ou assistir a concertos,
peras, peas, entre outros, alm dos saraus.
Ela j no aguentava mais aquela vida buclica
que estava levando. J no aguentava mais aquelas
pessoas que a cercavam, a jovem queria novidade de
vida, suas primas e amigas s sabiam falar de
vestidos, ornamentos, que cabelo e sobre quem seria
o melhor e o mais bonito rapaz para casar! Tdio, oh
tdio... Que vidinha mais medocre, sem sal e sem
acar, essa que eu estou vivendo! Graas a Deus
Pai, est chegando a data em que comemoraremos o
nascimento de nosso senhor e salvador Jesus Cristo.
Mame j mandou at Chica trazer o prespio do
quartinho que vive fechado. Oba! Eu montarei o
prespio junto com minha madre e a escravinha
minha amiga, a baronesa minha me mandar os
capatazes comprar novas roupas para os escravos,
sem contar os quitutes e as delcias que comemos
durante essa poca do ano.
323

Cludio Pereira da Silva

Aquela noite estava esplndida. E a alegria


parecia no ter fim, at mesmo a senzala, que
normalmente exalava o odor de raiva, dio e de dor,
naquela noite trasbordava de alegria. A negrada
tocava lundu, e todos haviam ganhado roupas novas.
A baronesa, me de nossa personagem, havia
preparado um grande sarau, sarau aquele para o
qual boa parte da alta sociedade havia sido
convidada. Pessoas at da famlia real portuguesa
haviam sido convidadas. Um tero da escravaria
havia sido dispensado do trabalho naquela noite,
mas alguns escravos, que foram escolhidos a dedo,
trabalharam servindo os convidados, mas serviam de
uma forma diferente, todos estavam bem-vestidos.
Na casa-grande tocavam-se Chopin e outros
compositores clssicos e da era vitoriana; os brancos
danavam e cantavam valsas e minuetos; a sala era
ampla, e a moblia havia sido retirada para outra
sala, para dar lugar s danas. Guapos mocetes
conduziam suas belas damas por entre os sales, a
valsa fazia com que os casais percorressem toda a
extenso do salo, mas, na senzala, os negros
tocavam coisas que vinham da me frica, como
lundu, umbigada e capoeira.
Marcava pouco mais de oito horas da noite,
quando a menina Beathriz se apresentou na sala, l
estava esplendorosa e deslumbrante em seu lindo
vestido de musselina verde e branca. Mas algo em
seu rosto denunciava a angstia e a falta de vontade
de estar ali. O sorriso era largo, mas o semblante era
duro e obstinado. Mesmo assim, ela desceu degrau
por degrau e mostrou a sua altivez, marchou entre as
pessoas, cumprimentando-as e saudando-as com
leves mesuras, marchou entre os convidados como
um pavo faz para atrair a fmea, andou levemente
afetada.
Siete misericordia bella! Disse um jovem
324

Mistrios de Um Amor Proibido

rapaz em italiano. Mas em seguida disse: Je t'aime.


Obrigado, meu senhor. Mas no fale assim
comigo, pois ficarei encabulada respondeu a
menina Beathriz, de cabea baixa.
No, no! Je t'aime, My Goddess redarguiu o
jovem.
Excusez-moi monsieur? Disse Beathriz j
saindo da presena do rapaz.
Pour les manquez pas, Tu es la misricorde
beau!
Beathriz baixou a cabea e, saindo, disse:
Excuse me monsieur! E, com essas palavras,
Beathriz deu as costas ao rapaz e saiu.
Aps a ceia, a jovem que estava ao piano deu
lugar para a dona da casa, Beathriz, que ali mostrou
os seus dotes como cantora, tocava divinamente e a
sua voz era superior do rouxinol-rei.
As horas passaram e, quando o relgio deu suas
doze badaladas, no tinha um convidado sequer na
casa dos Albuquerque, todos j haviam partido. Aps
a sada do ltimo convidado, os escravos comearam
a limpeza; j a baronesa e Beathriz foram para a
biblioteca, ali trocaram algumas palavras e partiram
para seus aposentos.
A noite de Natal passou e no dia seguinte ainda
nos primeiros raios do sol Beathriz levantou-se da
cama, vestiu-se e saiu, pois queria espairecer sobre a
sua situao que era aparentemente crtica. Quando
chegou ao roseiral, Beathriz desceu do Sio e
comeou a caminhar por entre os ramalhetes; aps
andar um pouco, a jovem se assentou em um banco
que tinha no fim de um ramalhete e, desdenhosa,
ligou-se em outras coisas e no percebeu a
aproximao de um rapaz.
Bonjour, Miss!
Beathriz, assustada, deu um pulo para trs e viu
o rapaz que estava sua dianteira. J eram passados
325

Cludio Pereira da Silva

alguns dias, desde que aconteceu o sarau de Natal


na casa dos Albuquerque e mais um baile de gala
agitou a pequena cidade de Sant Anna, mas desta
fez a festa foi na casa da famlia Alencar e Mello que,
assim como a famlia Albuquerque, era uma famlia
de muitas posses e com muita influncia na cidade e
na corte.
A fazenda da famlia Alencar e Mello ficava a
cinco milhas de distncia da casa da nossa mocinha
Beathriz. Marcava pouco mais de seis horas da tarde,
quando a carruagem que conduzia a famlia
Albuquerque ao sarau atravessou as porteiras da
fazenda. No coche vinham a baronesa, Beathriz e
uma negrinha, a mucama de sinhazinha Beathriz.
Olha, mocinha, queira se comportar l, pois,
alm de seu futuro noivo, outras pessoas da alta
sociedade fluminense estaro l, ouviu, mocinha?
Sim, minha me! Mas no pense a senhora
que eu vou ficar ao lado daquele paspalho do meu
futuro noivo! Redarguiu a jovem.
Olha, olha... Mocinha, pensa bem o que vai
fazer, para que no venha a se arrepender depois.
Certo?! Pois, alm de levar uma surra de rebenque,
ficar trancada em seus aposentos at o dia de seu
casamento!
T... T... Murmurou Beathriz, enquanto
abanava-se com seu leque de madreprola. Agora
chega... No aguento mais ouvir os seus sermes.
Nem o padre Joaquim, tem os sermes to longos
como o da senhora, que, quando comea, no para
mais! Olha que a missa de domingo longa.
Chega, pois estamos chegando ao alpendre da
famlia Alencar e Mello.
Assim que a carruagem parou prximo
escadaria, um pajem abriu a portinhola e,
estendendo a mo, ajudou a baronesa, que olhou
com um olhar de reprovao para a filha que a
326

Mistrios de Um Amor Proibido

seguira na sequncia.
Me e filha entraram no salo nobre, com
bastante superioridade e altivez; muitos casais se
encontravam na pista de dana, agora podemos ver
de um plano superior os casais rodopiando, as damas
com suas enormes saias e seus decotes, uns
delicados e recatados, outros mais ousados. Bem,
ousadia era uma palavra que Bya, ou Beathriz,
conhecia muito bem.
Assim que Bya colocou as plantas dos ps no
enorme e luxuoso salo, avistou o parvo do seu
noivo; com apenas um olhar, cumprimentou-o e
rapidamente seguiu para junto de suas amigas.
Francis, percebendo a indiferena da noiva, seguiu-a,
levou-a para uma sala vazia e disse:
Com quem a senhorita acha que est
flertando? No sou nenhum garoto que vossa merc
apenas olha e sai andando. Sou seu noivo e, como
tal, exijo respeito.
, meas. Pensei que vossa senhoria j havia
percebido que estou noiva de voc apenas por estar
sendo obrigada por minha madre! Pois no sinto e
jamais sentirei nem mesmo remorso de voc, sinto
apenas d, porquanto nunca conheceu o amor de
verdade. Ou voc acha que eu j no percebi que
est se casando comigo, apenas porque sua famlia
est quase falida? Hein?! Acha mesmo que eu sou
uma idiota e pattica como voc, meu caro rapaz...
Nesse momento Bya estava virada de costas para
ele.
Pode ter certeza de que, se vossa senhoria
no for minha, no ser de mais ningum. E tenho
dito! Francis a pegou pelo brao e, colocando-lhe
frente a frente, disse: Se continuar com essa
loucura de querer se casar com o seu amado...
Henrique, coisas terrveis acontecero a voc e a
esse almofadinha de uma figa.
327

Cludio Pereira da Silva

Isso uma ameaa? Indagou Bya.


sim, por qu?
Porquanto morrerei feliz ao lado do homem
que amo... No tenho medo, faa o que achar
melhor. Pois prefiro morrer por amor a morrer de
tdio ao seu lado, seu energmeno! Talvez a lei da
sociedade em que vivemos diga que uma moa
jamais deva se casar sem a bno dos pais, mas na
minha concepo isso coisa do passado. Coisa da
poca da minha tatarav, isso j no se usa mais.
Mas moramos em um pas machista, de desigualdade
social e ns, moas, sofremos preconceito. Leis
injustas que dizem: moas faam isso, no faa
aquilo, mas v por aqui e no por ali, vistam-se
assim, comportem-se desta forma, no conversem
com rapazes a ss, borde, pinte, cozinhe, seja uma
boa dona de casa. O pior e mais injusto de todos:
sejam sujeitas s vontades libidinosas de seus
maridos. Pois foi para isso que ns, mulheres,
nascemos Beathriz ento parou de falar e ficou
olhando para a face daquele que se apresentava
sua frente.
Cala-te, mulher. No vs que est
totalmente indo contra as leis de nossos ancestrais.
Isso foi ensinado aos nossos tataravs, que passaram
para nossos bisavs, que ensinaram a nossos avs,
que ensinaram para nossos pais. E assim deve ser
mantida a tradio.
Ah, t! Espera sentado, pois, se continuar em
p cansar Bya caiu na gargalhada, aps
pronunciar essas palavras. Jamais levarei essa
tradio adiante, meus filhos sero livres dessa
idiotice que pessoas velhas inventaram para manter
os mais jovens aos seus ps como escravos.
Vai pensando que meus filhos sero tratados
assim bradou Francis, irritado.
Que filhos? Indagou Beathriz.
328

Mistrios de Um Amor Proibido

Os nossos!
E quem disse que vossa merc ser o pai dos
meus filhos? Quem te disse uma idiotice dessas?
Voc no ser pai dos meus filhos nem nessa vida,
nem na prxima encarnao. Ah... Ah... Ah... Ah...
Ah...
Isso o que veremos?! Falou Francis,
enquanto debochava: Sua tolinha, voc muito
ingnua. Jamais sua me aceitar seu casamento
com Henrique falando isso, Francis saiu da salinha,
sorrindo pelos cotovelos.
Beathriz, desolada, jogou-se sobre um canap
e, de cabea baixa, permaneceu at o momento em
que um rapaz a convidou para valsar. O jovem era o
filho de um dos homens mais ricos de Sant Anna,
tratava-se de Miguel, um rapaz com pouco mais de
vinte e trs anos de idade, rico, que j estava de olho
em Beathriz havia muito tempo.
Senhorita! com muito respeito e com muita
honra que solicito a graa de poder valsar contigo
disse o rapaz, enquanto estendia a mo em direo a
Bya. Conceder-me-ia a honra desta contradana?!
Beathriz, estendendo a mo, disse:
Com certeza, meu caro rapaz!
O jovem ento lhe cingiu o brao e os dois
caminharam em direo ao salo principal, Beathriz
secou os olhos e, como um pavo-imperial que faz a
dana do acasalamento, o jovem a conduziu
divinamente entre os sales, os dois pararam no
centro do tablado, onde se iniciaria a valsa.
O burburinho cessou, primeiro se iniciaram os
acordes do piano e assim, sucessivamente, o
violoncelo, o violino, e instrumento atrs de
instrumento. A orquestra iniciou o seu show e, na
pista de dana, casal por casal tomou seu lugar e,
em poucos minutos, a nave do salo nobre estava
repleta de damas e cavalheiros, mostrando seus
329

Cludio Pereira da Silva

melhores trajes. Em um panorama, podemos ver


como a noite estava linda e luxuosa, um verdadeiro
desfile de luxo e de glamour. Com certeza, aquele
salo era o mais concorrido por metro quadrado
naquela noite. Os melhores e mais nobres tecidos e
joias estavam distribudos por toda casa-grande,
seda, musselina, cambraia, tafet, renda francesa,
entre outros tecidos que estavam espalhados por
todo o salo. O salo nobre estava lindssimo,
Beathriz deslizava divinamente, entre o crculo que
havia se formado em sua volta. O salo nobre estava
repleto de pessoas da mais alta patente da nobreza.
Durante dois meses, o casal sofreu muito,
Henrique padeceu vrias emboscadas, j Beathriz
fora trancada em seus aposentos, vivia agora base
de po e gua, sofria muito e havia muito j no saa
mais de seu quarto. Desde que fora pega aos beijos
com Henrique, Beathriz fora trancada, saa apenas
para jantar, ir biblioteca e cavalgar, mas
acompanhada de sua mucama.
Os dias que antecederam o casamento foram,
para a menina Beathriz, dias de tormento. Dia aps
dia, a pobre moa passou fazendo planos de fuga,
pois estava predestinada a se casar com um homem
que odiava. Faltando duas semanas apenas para o
seu casamento, Beathriz tentou fugir, mas apenas
planejou, pois sua me descobriu. E, na semana
seguinte, a malvola baronesa e sua fiel
companheira Anna Carolina tramaram algo.
Aquela seria uma visita comum, mas Beathriz
teve uma surpresa ao surpreender Henrique ao lado
de uma moa na cama. Tudo naquela alcova levava
Beathriz a compreender que ali havia se passado
uma cena de amor. Henrique ali deitado,
desacordado, e a jovem deitada com a cabea por
sobre seu msculo peito nu e musculoso. Beathriz
ficou horrorizada, viu seu castelo de amor desfazer330

Mistrios de Um Amor Proibido

se ali, diante de seus olhos.


No!... No... Gritava a jovem, assustada,
saiu correndo escada abaixo.
Henrique ainda atordoado pelo excesso de
vinho que havia tomado na noite anterior, acordou
com os gritos da jovem. Ainda nu, com apenas o
lenol enrolado em seu dorso, saiu pelos corredores,
correndo atrs de Beathriz.
Beathriz?... Bya, meu amor. Vem aqui!
A jovem no cessou os passos, Henrique a
acompanhou os passos e, pegando-lhe nos braos,
disse:
O que foi?
Voc ainda tem a pachorra de perguntar o que
foi! No foi nada, apenas essa cena que acabo de
contemplar. Como pde? Um dia me jura amor eterno
e no outro se deita com uma rameira Beathriz
chorava muito.
Isso foi um grande mal-entendido!
Que mal-entendido, nada! Isso se chama
cachorrada. Agora solte meu brao, ou gritarei por
minha me.
Sua me?
!
Agora est explicado...
Explicado. O qu?
Foi a sua me que inventou isso para nos
separar.
Ah, ah, ah... Agora a culpada minha me. Por
Deus, meu amigo! Assuma sua cachorrada.
Beathriz arrancou a mo de Henrique de seu
brao e saiu correndo.
Beathriz... Beathriz gritou Henrique, seminu.
A jovem subiu no coche, que logo partiu.

331

Cludio Pereira da Silva

Captulo XXVI
A primavera

Aquele seria mais um dia comum de primavera,


se no fosse o sarau que aconteceria mais noite.
Habitualmente, como de costume, Beathriz acordou
bem cedo, porque teria muito trabalho naquele
alvorecer com os preparativos para receber seus
convidados.
Como de costume, iria cavalgar antes de
comear os trabalhos. Alm do que, no poderia
apenas se preocupar com a fazenda, entretanto
deveria se preparar tambm, pois ocupava um alto
padro diante da sociedade e no poderia aparecer
em pblico, em trajes comuns. Bya havia acordado
animada por demais, pois seria a primeira vez que
ela prepararia um sarau como senhora, dona de
casa. Assim que acordou, a primeira coisa que
Beathriz fez foi passar a mo ao lado da cama, onde
Francis dormia; no entanto, tivera uma grande
surpresa, ao perceber que o moo j no se
encontrava mais ao seu lado. Havia duas noites que
o casal passava boa parte da noite fazendo amor.
Naquele dia seria comemorado seu dcimo
stimo aniversrio, e ela estava resolvida a organizar
um sarau, que ficaria marcado na histria do Brasil
como o maior e mais lindo aniversrio do pas. E
ficou ainda mais animada, aps saber que suas
inimigas estariam na festa. Assim que Beathriz
332

Mistrios de Um Amor Proibido

acordou, foi tomar banho em sua tina de madeira


nobre, posteriormente ao banho, a moa arranjou os
cabelos e, aps colocar as roupas de baixo, o
espartilho, as anguas, as crinolinas e o merinaque,
a moa desceu para tomar o seu desjejum, que j
estava posto no salo nobre, um dos 43 sales.
Aps ter tomado o desjejum, Beathriz passou na
cozinha, pois queria ter certeza a quanto andavam os
preparativos, deixou algumas ordens para a escrava
que lhe servia de mucama. E, aps retornar a seu
quarto, para colocar as roupas de montaria. Beathriz
pegou seu rebenque e saiu para cavalgar. Passou
cerca de uma hora e meia cavalgando pelos campos
e, depois de ter se banhado no lago, voltou para a
fazenda. Assim que retornou do passeio, Bya trocou
novamente de roupa e, junto com sua mucama
particular, foi ao vilarejo de Sant Anna buscar as
encomendas.
Marcava pouco mais de onze horas da manh
no relgio da sala, quando Beathriz e uma escrava
foram ao vilarejo buscar as encomendas de roupas e
utenslios domsticos que haviam encomendado um
ms atrs. Levou a negrinha apenas para fazer-lhe
companhia, pois uma senhora em sua posio social
no poderia andar sozinha. Juliana era uma moa
que tinha provavelmente quinze anos, mas era muito
apessoada de beleza. Aps atravessar as fronteiras
de sua fazenda, Beathriz comeara a ver fazendas
belssimas e gigantescas como a sua. Estavam na
primavera, os jardins estavam floridos e as alamedas
de quaresmeiras estavam lindas. Assim como os
ips-roxos, amarelos, rosas e, os mais raros na
poca, os brancos, Bya estava deslumbrada com
tamanha beleza. A brisa suave que soprava trazia
com ela uma atmosfera de ressurreio da vida na
natureza e, assim como a fnix renasce das cinzas,
assim acontecia com Bya, naquele exato momento,
333

Cludio Pereira da Silva

renasceria para uma nova vida.


E, quando retornavam para a casa, com o
coche abarrotado de caixas, Juliana olhou para trs e,
em seguida para sua senhora, e disse:
Sinh, h um homem a cavalo nos seguindo.
Beathriz lembrou-se do dia de seu casamento
na capela, na fazenda de seu pai. Ento sentiu um
arrepio que lhe percorreu toda espinha dorsal, a
sinh-moa no olhou para trs, temendo ser um
affaire do passado. E em seguida instruiu seu
cocheiro a apressar os passos do cavalo. O cocheiro
instigou os passos do cavalo.
E, olhando novamente para trs, a mucama
disse:
Senhora?! O rapaz apressou os passos de sua
montaria tambm.
Vamos... Vamos... Bravejou Beathriz, aos
berros com seu escravo. Vai saber se esse homem
no um salteador?!
Ah, sinh, creio que no, pois ele est bem
trajado, e sua montaria parece ser um cavalo rabe.
Sem contar o braso que est impresso em sua sela.
Como este rapaz que nos segue?
Ah, minha senhora. A senhora vai me perdoar,
mas ele um deus grego! Seus cabelos so dourados
como o trigo, de longe seus olhos parecem ser azuis,
sua pele alva, mas h certo toque amorenado.
Creio eu no tenha o visto aqui em Campos ainda!
muito estranho, pois no conheo ningum
com essa sua descrio murmurou Beathriz,
enquanto lia o livro que trazia junto de si.
Ah, sinhazinha. J estou ficando com medo!
Beathriz parou, por alguns segundos se
manteve em silncio e, tocando no dorso do cocheiro
com sua sombrinha, disse:
Pare, Joo! Pare o coche, pois quero ver quais
so as intenes desse moo.
334

Mistrios de Um Amor Proibido

O cocheiro puxou as rdeas do cavalo, que logo


parou a marcha. O coche parou, e a manobra foi
realizada com sucesso, Beathriz ento olhou para
trs e viu um rapaz jovem e bonito de traos
perfeitos e de estatura mediana apear do cavalo e
entrar em um botequim. Era realmente bonito e
estava realmente elegante, era um leo da moda.
Seu porte era senhoril e seus traos eram de um
nobre.
E a, senhora, viu o rapaz? Indagou a negra
temerosa.
Meu Deus! Francis que me perdoe, mas esse
mancebo realmente um deus murmurou Beathriz,
aos suspiros.
A senhora que me perdoe, mas tenho que
admitir, ele lindo! Mas conheo bem o meu lugar
disse a negra, aos suspiros. Sinh... Oc acha que
ele se enamorou por alguma de nis? Concluiu a
negra, no meio de gargalhadas e suspiros
apaixonados.
Logo em seguida ficou rubra de vergonha, pois
havia se esquecido de que no falava com uma
amiga de senzala, mas com uma sinh. Percebeu que
no deveria falar daquela forma, pois no estava
conversando com uma escrava, entretanto com uma
dama da sociedade. Confundiu afeio com ousadia.
Perdoe-me, sinh!
Mas o que fizeste?
O meu jeito de falar com a senhora, como se
fosse outra escrava.
No foi nada! Mas, como amiga, lhe digo, pode
falar comigo como quiser, mas apenas entre ns
duas e nunca na frente dos outros. Est bem?!
Sim, minha senhora.
Beathriz passou a mo na cabea da negra e
disse brincando:
Creio eu que ele esteja interessado em vossa
335

Cludio Pereira da Silva

merc murmurou Beathriz zombando com a cara da


negra, que ficou sem graa.
Tentou esconder o rosto entre as mos e, sem
graa, disse:
Por Deus, sinh! No passo de uma escrava,
no devo amar, pois no sou dona de minha sina!
Hoje sou sua mucama, no entanto amanh posso ser
de outra.
Naquele momento, Beathriz sentiu-se trada
pelo prprio corao, pois odiava demais Francis,
mas uma lgrima de bel-prazer aflorou-lhe os
sentidos da paixo. Mas, ao mesmo tempo, um
pouco de remorso por ter trado Francis, ainda que
por pensamento. Uma dor aguda tomou conta de seu
ser, pois como uma senhora casada no poderia nem
pensar em outro rapaz que no fosse seu esposo.
Temerosa que algum passasse e percebesse seu
olhar apaixonado, baixou a cabea e tentou lembrarse de seu esposo, que tambm era lindo.
O que aconteceu, minha senhora? Indagou a
negra. Por um acaso, a senhora conhece esse
rapaz?
No... No!... Disse Bya, temendo que a
negra descobrisse seus reais sentimentos. Eu, c,
jamais vi esse rapaz antes. Mas uma coisa eu lhe
digo: ele est interessado em voc! Digo e repito
bradou Beathriz com um sorriso amarelo, como se
escondendo algo.
Oxal, minha senhora!... Queira Deus que isso
nunca caia nos ouvidos de Andr. Pois ele um
negro muito ciumento e me mataria.
A negra negava com veemncia, por vrias
vezes falou que namorava com um negro de outra
fazenda e que esse forro a mataria com apenas um
olhar mais comprido para outro homem branco ou
negro, rico ou pobre. Beathriz ficou exultante em ver
que ela havia acreditado na hiptese de aquele
336

Mistrios de Um Amor Proibido

mancebo ter-se enamorado dela. E tirou a tenso de


seus ombros, que j se condoam de tanta dor e
medo de serem descobertos seus sentimentos.
Nas lguas que ainda faltavam para chegar
fazenda Beathriz passou a pensar que talvez aquele
fosse um admirado secreto que a seguia havia anos
sem ser percebido. E, sabendo dos boatos que
corriam pelo vilarejo de que Francis estava mantendo
um relacionamento com uma Branca, sua rival,
passou a perseguir-lhe para ver se havia uma chance
com Beathriz. Aquela deusa, que dez entre dez
homens a desejavam em campos, aquela que
acompanhava a negra era to linda que parecia uma
rosa imperial dos jardins do palcio da imperatriz da
ustria; a belssima Elisabeth da ustria, ou Sissi, ou
talvez to bela quanto Romy Schneider, uma bela
atriz do cinema austro-hngaro.
Caro leitor, para quem no conhece a histria
de uma mulher que marcou histria, contar-lhes-ei
agora, pois essa mulher marcou a vida de muita
gente na Europa, posterior rainha Vitria. Assim
como Sissi, Helena era uma mulher forte e
determinada. Sissi, ou Elisabeth da ustria, nasceu
no dia 24 de dezembro de 1837, na cidade de
Munique. Essa linda moa pertencia dinastia
Wittelsbach. Era duquesa, princesa da Baviera antes
de se tornar imperatriz consorte da ustria e rainha
consorte da Hungria, graas ao seu casamento com o
imperador Franz Josef. Seu pai, Maximiliam, era
duque da Baviera, e sua me, Ludovika, princesa real
da
Baviera.
Desde
cedo,
foi
chamada
carinhosamente de Sissi por familiares e amigos.
No vero de 1853, Sissi, aos quinze anos, ao
acompanhar a famlia numa viagem a Bad Ischl,
conheceu o imperador da ustria, seu primo. Em
pouco tempo apaixonaram-se e, na primavera de
1854, casaram-se em Viena. Aps seu casamento,
337

Cludio Pereira da Silva

teve trs filhos. Mas a pobre teve um fim trgico, em


uma tarde, enquanto caminhava em Genebra, foi
vilmente esfaqueada e morreu na data de 1898.
Agora retornarei narrativa da nossa histria,
pois isso foi apenas uma pausa para que vocs no
se enfadem.
Marcava pouco mais de quatro horas da tarde,
quando o coche de Beathriz parou soleira do
alpendre. Primeiro desceu a negra que, com a ajuda
do cavalario, ajudou sua senhora a descer e a pegar
as caixas e sacolas, sacolas que havia trazido do
vilarejo. Subia Beathriz as escadas e logo atrs veio
sua comitiva de seis escravos, com as caixas e os
embrulhos.
Assim que adentrou o trio da fazenda, Beathriz
foi retirando a capa de veludo negro e o chapu que
lhe cingia a cabea. Depois, com os olhos atentos,
percorreu todos os cmodos da casa, inclusive a
cozinha. Tudo ia conforme suas ordens, ento a
menina retornou para a biblioteca, onde uma negra
encerava os tacos do cho e lustrava a prataria e a
cristaleira, sem contar as centenas de velas que
trocava do lustre e dos castiais. Beathriz, ento,
entrou e percebeu que a escrava ali presente se
tratava de sua me preta. Ento se assentou em uma
marquesa, que se apresentava a sua frente, e disse:
Por Deus, minha me preta, venha c. Pois
uma coisa me perturba muito murmurou Beathriz
entre dentes.
A negra ento largou o espanador e o esfrego
que carregava e, humildemente, assentou-se aos ps
de sua sinhazinha, como gostava de trat-la.
O que oc qu dessa veia aqui, fia?
Beathriz passou a mo nas brancas madeixas
da velha e, aps lhe contar o ocorrido, disse:
O que a senhora acha? Indagou Beathriz,
sorridente.
338

Mistrios de Um Amor Proibido

A sinh est me dizendo que um rapaz a


cavalo, estava seguindo o coche onde oc e sua
mucama estavam? bradou a negra assustada.
Sim, minha me preta! Afirmou Beathriz.
isso mesmo.
A negra, por um minuto, ficou calada, ento
disse:
O nhonh j sabe disso?
Claro que no, pois, se souber, manda caar o
atrevido disse a sinhazinha, enquanto se abanava
com seu leque. Espero que vsmec no o diga, ou
ficarei muito chateada com voc, minha me preta.
E, terminando essas palavras, Beathriz ergueu-se e
caminhou pela cozinha, olhando a quanto iam os
preparativos do sarau. A negra a seguiu e, aps um
longo perodo de silncio, disse:
Oxal, fia, oc sabe que pode contar com ieu,
pois sempre fui e sempre serei sua me preta
exclamou a negra, sorrindo e passando a mo no
rosto da moa.
Creio eu que no devo me preocupar, pois
deve ser apenas um apreciador que me serve, ou de
minha mucama. Talvez seja apenas isso, no acha?
Pode ser, sinh, mas no creio que deva sair
sozinha por a, nem mesmo para cavalgar de manh,
oc deves sempre levar um negro e sua mucama de
estimao. Jamais uma senhora de famlia deve
andar s; alm do que, esse rapaz est rondando a
fazenda e no sabemos do que se trata. Amanh
mesmo, mandarei meu fio Joo assuntar por a, para
ver quem esse mancebo insolente.
Est bem, minha me. Mas no se esquea,
isso no pode cair nos ouvidos de Francis, pois ele
capaz de cometer um desatino resmungou
Beathriz, enquanto abria uma panela de compota.
Aps essa breve conversa, Beathriz subiu para
seu quarto, pois precisava se preparar para aquela
339

Cludio Pereira da Silva

noite. Marcava pouco mais de seis horas da tarde,


quando Beathriz colocou a ltima pea de seu
vesturio. Aps quase quatro horas de preparativos,
a senhora Albuquerque estava pondo a ltima pea
do vesturio: era o sapato, que era forrado com o
mesmo pano do vestido.
Beathriz estava trajando um lindo vestido de
musselina verde, composto de um corpinho, um
espartilho com barbatana de baleia, um merinaque,
duas anguas, uma crinolina e oito saias de tule
francs. No cabelo trazia apenas um arranjo de seda
com pequenas rosas brancas, no pescoo um colar
de prolas, um par de brincos, no rosto apenas p de
arroz e um ruge na face. Sua face estava lnguida e
seu corpo esguio.
Enquanto a senhora da casa se preparava em
seu toucador, Francis se preparava em seu vestbulo,
vestbulo que era separado do toucador de sua
senhora apenas por uma porta de jacarand nobre.
Francis estava trajando uma blusa branca de linho,
um colete de tecido nobre, uma casaca, a gravata
era borboleta e na cabea uma cartola; no bolso,
trazia seu relgio de bolso, uma caixa de rap e uma
caixa de charuto.
Naquele momento uma batida na porta fez com
que Beathriz se levantasse da marquesa, onde
estava assentada, enquanto sua mucama lhe calava
as botinas e as luvas. Do outro lado da porta, estava
uma escrava muito jovem que, sem demora, disse:
Sinh, o nhonh mandou dizer que os
primeiros convidados acabaram de atravessar a
porteira e estaro aqui a alguns minutos. E que oc
deve descer agora!
Beathriz ergueu-se e rodopiou pelo amplo
quarto.
Diga que j vou... a moa disse sorrindo.
Como estou me preta? Indagou-lhe Preciso estar
340

Mistrios de Um Amor Proibido

mais linda que minha rival. Concluiu ela.


Marcava pouco mais de sete horas da noite
quando Beathriz deixou o toucador. Aps atravessar
o imenso corredor e de descer a escadaria de
jacarand, a moa parou no alpendre, onde os
primeiros convidados j lhe aguardavam junto a
Francis. Como uma ilustre anfitri, Beathriz
cumprimentou os convidados, que subiam as
escadas do alpendre. Haviam apeado dois coches
soleira do alpendre, acompanhados de sete homens,
quatro jovens e trs senhores de meia-idade,
montados a cavalo. J o coche abarrotado de seda e
de saias, pois em cada coche estavam cinco moas.
Os coches eram bem paramentados, as rodas bem
lustradas e o couro que recobria o carro era bem
brilhoso e, atrs de cada um, havia um braso;
aparentemente, o coche era de uma famlia muito
abastada da regio, pois o braso era folheado a
ouro e tinha as iniciais do sobrenome Pereira da
Silva.
Os quatro mancebos desceram de seus cavalos
e, com muita delicadeza e elegncia, cingiram as
damas pela cintura e as ajudaram a apear; cada
rapaz conduziu duas senhoritas, escada acima. As
moas estavam bem trajadas, cinco vestiam
musselinas e as outras cinco seda pura. Os
convidados eram simpticos e se comportavam com
muita educao, a comitiva ainda contava com seis
mucamas que serviam de damas de companhia a
suas respectivas senhoras; a comitiva era da fazenda
Santana, que ficava a dez lguas dali. Tratava-se do
Baro de Bragana, o senhor Miguel de Arcanjo, seu
pai, o Visconde de Bragana, o senhor Leopoldo
Trajano, um velho amigo da famlia Pereira, um rico
comerciante da corte o senhor Jacinto. J os quatro
jovens eram dois filhos do baro e dois sobrinhos,
eram os jovens Afonso de Andrade e Silva, Lucas de
341

Cludio Pereira da Silva

Andrade e Silva, que eram irmos e sobrinhos do


Baro de Bragana; j os outros dois eram Matheus e
Gabriel, filhos do baro.
Ainda no coche junto s moas, havia uma
senhora, a dona Leocdia, esposa e me daqueles
jovens. E no coche estavam as mooilas, Maria
Eduarda, Lvia, Clarice, Magdalena, Perptua,
Mariana, Sarah, Manuela e a mais meiga de todas e
mais nova tambm, Rosrio. As moas eram muito
faceiras e se trajavam elegantemente. Ao subir as
escadas, Beathriz pde perceber que aquelas jovens
no haviam sido criadas ali, pois sua educao e o
seu jeito afetado de bailarina no andar no eram
provenientes dali, mas sim da corte. As moas foram
conduzidas alpendre acima, logo atrs vieram o
baro, seu pai, e a baronesa de braos dados.
Caro leitor, agora descrever-lhes-ei um pouco do
traje de cada dama, para que possam imaginar.
Mariana estava usando um lindo vestido de
musselina rosa, luvas e chapu, na cabea trazia um
penteado da poca. Magdalena usava um vestido de
cambraia e musselina na cor marfim real, luvas e na
cabea o penteado no mesmo estilo da outra.
Perptua trajava um vestido de seda e tafet
amarelo. Mariana trajava uma indumentria de
veludo azul. Sarah usava um vestido de tafet e
renda francesa na cor turquesa. Manuela usava um
vestido de seda e renda na cor mogno. J a menina
Rosrio usava um vestido bem no estilo menina, de
trs camadas na cor azul-celeste, na fronte trazia
uma trana e alguns cachos assim como as outras. J
os homens trajavam-se mais sobriamente com uma
casaca preta ou cinza e uma cartola na cabea. Ao
ver Rosrio, Beathriz sentiu certa paz celeste e se viu
no rosto daquela criatura que mais parecia um anjo.
Aps a breve apresentao e as mesuras que haviam
sido feitas famlia Pereira da Silva, foi introduzida
342

Mistrios de Um Amor Proibido

no salo nobre e ficaram junto orquestra,


aguardando o resto dos convidados. Logo que
entraram no salo, as moas procuraram as
marquesas, os canaps, os divs, as conversadeiras,
as namoradeiras e as poltronas para se assentarem;
j os rapazes partiram para as salas de jogos. Aps a
chegada da famlia Pereira, os coches no paravam
de apear soleira do alpendre e a cada coche era
mais um grupo de moas e rapazes que saltavam
deles.
Duas horas aps o incio do sarau, a ltima
comitiva chegou. A sede estava j abarrotada de
gente, e o burburinho era grande, j comeava
parecer uma colmeia. O cheiro de perfume francs
misturava-se com a fumaa de charuto cubano e
com o buqu de vinho do porto, trazido de Portugal;
sem contar o aroma que vinha das mesas de quitutes
mil. Marcava pouco mais de oito horas da noite,
quando a quadrilha comeou, logo aps foi a vez da
valsa tomar seu lugar, par a par rodopiava pelo
salo; alguns sabiam danar mais, outros menos;
todos danavam, menos os ancies, que se
mantinham nos cantos, sentados nas marquesas
relembrando sua juventude, juventude que outrora
lhes estava flor da pele.
Havia um imenso rudo do rusgo-rusgo das saias
que se batiam uma contra a outra, e l no meio da
multido os anfitries danavam e riam a par. As
salas
de
jogos,
reduto
predominantemente
masculino, j no se viam um palmo a sua frente,
pois a fumaa dos charutos j haviam criado certa
neblina. Os homens que ainda se concentravam no
salo nobre pareciam deslumbrados com a beleza de
Beathriz. A jovem entrou com o olhar altivo e com
passos imponentes. Por dentro, contorcia-se de dor e
de dio por ter sido deixada por aquele que ela mais
amava. Henrique havia deixado, sem nem deixar
343

Cludio Pereira da Silva

uma carta endereada a ela. Aquilo a rasgava toda


por dentro, entregara o corao e o que recebera em
troca de nada, nada mesmo apenas a rejeio de
quem acreditava. Ser amada! Ele definitivamente
no era um gentleman, comportara-se como um
canalha.

344

Mistrios de Um Amor Proibido

Captulo XXVII
Casada e infeliz

A noite havia passado e os escravos ainda


trabalhavam para colocar a casa em ordem, aps o
longo sarau da noite anterior que se prolongara at
as cinco da manh. Os restos mortais. Sim, restos
mortais por causa do cansao que ainda sentia aps
os longos rodopios da valsa. Beathriz encontrava-se
estirada sobre uma marquesa, a seu lado Hadassa,
no muito cansada. As duas aguardavam no
alpendre o trmino da limpeza no salo nobre. No
terreiro logo abaixo do alpendre, cinco ou seis
escravinhos brincavam com os resqucios do caf
que caa dos alforjes.
Sinhaninha, aceita um refresco? Perguntou
uma negra que vinha da cozinha.
Aceito, sim! Sussurrou Beathriz. J
arrumaram o salo nobre, Chica?!
No, sinh. Falta-nos ainda encerar o cho,
mas antes que sinh Isabel acorde, tudo estar
limpo! Disse a escrava, enquanto saa.
Beathriz, com o copo nas mos, virou-se para
Hadassa e disse:
Creio que estou ficando velha, Hadassa, no
aguento mais duas ou trs voltas no salo. Olha que
no dancei muito ontem noite! Abanava-se ela
com seu leque de madreprola. Hummmm... Que
fragrncia agradvel!... Adoro esse cheiro de
345

Cludio Pereira da Silva

madressilva, por isso que gosto de levantar cedo.


Beathriz no ficou feliz quando Hadassa caiu na
risada.
O que foi? Por que est rindo de mim? , j
percebi que estou velha, no entanto no precisa rir.
Se no parar, mandou-a para o tronco!
Desculpe-me, sinh. Mas porque a senhora
fica engraada, falando assim... Estou vendo como a
sinh est velha... Murmurou a mucama. A
sinhaninha ainda est na flor da idade, at um
pecado a sinh dizer isso!
Isso, vai rindo...! Quando for com voc, vers
o que bom!
Beathriz encarou a jovem de cima a baixo,
observava a linda mulata que se apresentava sua
frente. Hadassa tinha as formas voluptuosas, com
certeza era por causa de sua origem. Era uma linda
mistura da raa branca com a negra, o pai era um
colono francs, e a me uma linda mulata vinda da
frica. Antes de vir servi-la como mucama, a negra
havia passado por um longo perodo na corte, na
escola de mucamas e no se vestia como escrava.
Sua pele era de certo modo mais clara que o normal.
Com licena, sinh. J pode entrar, a sala est
limpa! Disse Chica, interrompendo a conversa.
Beathriz virou-se para porta e disse:
Mame j acordou?
No!
Ento, quando mame acordar, mande me
chamar!
Est bem... Pode deixar, sinh! Concluiu
Chica, saindo.
Beathriz sabia que em Hadassa poderia confiar
como melhor amiga. Desde que a negrinha lhe fora
dada, dedicava-lhe religiosidade sem tamanho, era
Deus no cu e Beathriz na terra. Durante anos
juntas, no eram apenas senhora e escrava, mas
346

Mistrios de Um Amor Proibido

irms. Era assim que Beathriz a tratava. Beathriz


erguia-se da marquesa, quando uma virao a fez
suspirar de prazer, o dia ainda no era alto, porm o
calor era escalafobtico. A jovem no gostava muito
do calor do pas, visto que estava afeita ao frio de
Portugal.
Nossa, Hadassa, esse calor me faz mal... No
sou muito afeita a esse caloro. Deixa-nos mole, sem
vontade de fazer nada.
mesmo, sinh...! Ainda mais com esse
vestido pesado, que nos toma o flego, no ?
... Contudo, logo esse calor passa. Olha l no
horizonte as nuvens pesadas. Parece que teremos
chuva logo mais.
Entremos ento, antes que caa a torrente
proferiu a negra. Hei... Vocs a! Negrinhos, vo
para a senzala, vem chuva a! Bradou a negra,
enquanto entrava na casa, logo atrs de sua
senhora.
Sim, j vamos! Respondeu um dos
negrinhos.
Sinh... Sinh... Sinh... Gritava um negro
que aparecera correndo pelo ptio.
Beathriz virou-se subitamente e, regressando ao
alpendre, disse parada perto da escada.
O que foi, moleque?
A vem!... A vem!...
Quem vem a?
Um homem a cavalo.
Beathriz e Hadassa ficaram assustadssimas.
E agora, sinh, o que faremos? Acho que
devemos fugir...
No dar tempo, creio que j atravessaram a
porteira.
Mas ento? Disse Hadassa.
Ento, o qu? Bradou Beathriz. Ficaremos e
veremos o que dar.
347

Cludio Pereira da Silva

Beathriz se ergueu. O tropel do cavalo podia ser


ouvido da casa-grande, a aproximao era feita
rapidamente. Com bastante presteza, Hadassa pegou
os negrinhos e os colocou junto de si no alpendre.
Beathriz aderiu ideia da mucama, de se esconder
no hall de entrada. Nesse momento, do interior da
casa apareceu dona Chica com uma antiga garrucha
da famlia em punho.
Para qu isso? Perguntou Beathriz,
braviamente.
Oi, para proteger a casa... E, se for um
malfeitor, sinhazinha? Redarguiu Chica.
Mas logo o cavalheiro aproximou-se, e Beathriz
percebeu que se tratava de Francis.
Ah... voc, Francis? Pensei que fosse gente.
Oi, minha amada. Pensou que fosse quem? O
paspalho do Henrique?
Francis saltou do cavalo e subiu os degraus
segurando um papel. O jovem foi recebido por
Beathriz.
Cara Beathriz, os motivos que me trouxeram
aqui no so bons, pelo menos para voc... Disse
ele sorrindo.
O que foi?
Seu caro Henrique acabou de embarcar para
Portugal, acompanhado de uma senhora.
No... No... Isso no pode ser verdade!
Pois ! E toma aqui o bilhete que deixou para
entregar-lhe

sussurrou
Francis,
enquanto
entregava-lhe a carta.
Rapidamente Beathriz rasgou o lacre e colocouse a ler o bilhete que dizia: Cara minha, por
motivo maior que devo deix-la. Os motivos no
podem ser revelados, entretanto um dia, quem sabe?
Assinado: do sempre seu, Henrique. Ao terminar a
carta, Beathriz caiu sobre a marquesa e a guardou
dentro de seu colo
348

Mistrios de Um Amor Proibido

, minha cara Beathriz, pelo que voc pode


ver, seu sonho de vero acabou, ters que se casar
comigo! Dizia Francis com um sorriso debochado
nos lbios.
No... No... Jamais aceitarei isso, prefiro me
internar em um colgio de freiras l na frica. Pode
crer que sou capaz de fazer isso vociferava
Beathriz, friamente.
Jamais uma palavra muito longa, vossa me
a obrigar a casar-se comigo.
Pois case-se com ela voc?!
Respeite sua me, menina...
Os dias se passaram e o to esperado dia
chegou!
Os dias passaram to depressa que Beathriz
imaginou se no estava apenas sonhando. Ento o
dia to esperado por todos chegou! E de sua alcova
ela ouviu os primeiros acordes do piano, logo as
vozes dos mancebos do coro. Dessa vez, elas tinham
uma nota de tristeza que combinava com seu estado
de esprito.
Foi at a janela e olhou para o imenso cafezal e
o belssimo jardim que ela tanto amava. Iria deix-los
nesse dia a fim de viver na fazenda de Francis.
Embora ela ficasse a poucas horas dali, era como se
estivesse em algum ponto remoto da terra. Da em
diante passaria a cuidar da felicidade e do bem-estar
de seu marido e no do seu. Em vez de cavalgar
pelos campos com roupas mais simples, teria de se
tornar me e cuidar de seus filhos e de Francis como
ele achasse melhor. E, quando chegasse o momento
em que ele fosse procurar outra mulher, esperava-se
que ela ignorasse a traio como se no existisse.
Porm, tinha algo que esse casamento no
poderia provocar nela, a disposio para se deixar
machucar. No momento em que descobrisse uma
ligao amorosa de Francis, no mais se entregaria a
349

Cludio Pereira da Silva

ele de boa vontade. Prontamente ele poderia for-la


a aceit-lo, mas seria a nica maneira de possu-la.
Beathriz?...
Por sobre o ombro, ela olhou para Hadassa e
sorriu ao v-la to linda, em um vestido amplo de
saia-balo de cambraia amarela, comprado na Rua
do Ouvidor.
Vossa merc est suntuosa, Hadassa, voc
quem deveria ser a noiva.
A irm gracejou, mas a admoestou.
Serei eu se voc no se aprontar depressa.
Vamos l, eu a ajudarei, a menos que prefira uma
mucama.
No, desejo voc, por favor, desculpe-me.
Hadassa soltou uma exclamao quando
Beathriz correu para abra-la com carinho.
Vs estais chorando, minha amiga?
Estou. Vou sentir muita falta sua nesta casa,
minha senhora.
Que parvoce! Voc vai se mudar para a
fazenda do senhor Francis e no para o palcio de
dona Maria Louca em Portugal.
Vamos nos ver, com frequncia. Alm do mais,
essa unio vai ser muito boa para vossa merc.
V me fazer companhia, venha morar em
minha fazenda.
Hadassa afastou-se e balanou as fartas
madeixas.
Desculpe-me, mas no posso aceitar. Vs
precisais ficar a ss com o vosso marido, e eu no
posso atrapalhar a vossa lua de mel. E voc no
precisa mais de mim, pois j tem o senhor Francis.
Beathriz sentiu vontade de montar em um
cavalo e fugir, mas se controlou e permitiu que uma
escrava a penteasse. Como no dia do seu esponsal,
os cabelos estavam presos ajeitados custa de gua
aucarada em caracis no alto da cabea e
350

Mistrios de Um Amor Proibido

enfeitados com uma rosa sobre uma fina mantilha.


Ento, chegou a hora de se vestir. O vestido de
seda branca magnfico deixava-lhe expostos os seios
fartos da bela donzela. Seios ainda intocados pela
mo masculina. Apenas uma mantilha disfarava o
rosado escuro dos mamilos. O espartilho apertado
dificultava a respirao. Em volta do pescoo, ela
colocou o colar dado pelo pai de Francis. A joia lhe
dava a sensao de ser o lao do patbulo. Calou os
sapatos e colocou luvas longas sobre as quais
Hadassa ps vrios anis e, ento, afastou-se para
admirar o efeito do esforo da escrava. E aplaudiu-a.
Com certeza o senhor Francis vai adorar a
vossa produo.
Talvez fosse melhor eu trocar de vestido.
Se voc se atrever a mudar qualquer coisa, eu
o chamarei para lidar com a vossa insolncia.
Abatida, Beathriz olhou em volta.
O que est procurando, minha irm?
Hadassa quis saber.
O meu objeto de defesa.
Beathriz, vs no podeis estar falando srio!
Ora se no?!
Quando encontrou o punhal, levantou a saia, a
angua, e a crinolina, e o prendeu junto canela. Se
a vida no casamento no fosse harmoniosa, pelo
menos ela estaria protegida.
Hadassa atirou-se no canap.
Terei pena do senhor Francis esta noite.
Mas dele, por qu? Se a virgem aqui sou eu!
Seria melhor lembrar o senhor Francis desse
detalhe.
Acredito que ele j est ciente desta situao,
no achas!
Suplique que ele seja um gentleman.
Jamais suplicarei algo a um homem tocou a
canela e sentiu o punhal. Com certeza ele ser um
351

Cludio Pereira da Silva

gentleman ou coisa parecida.


Apesar de abismada, Hadassa sorriu.
Ento est pronta, minha querida irm?
Beathriz duvidava que jamais estivesse, mas
assentiu com um gesto com a cabea. Francis no
havia visto Beathriz aps a desavena no gabinete
da baronesa. Enquanto esperava que ela descesse
para o casamento na capela da fazenda, ostentava
dvidas quanto sua chegada. Na imaginao, a via
em trajes simplrios, fugindo da fazenda e, depois de
montar em cavalo rabe, galopando at o lago onde
se afogaria. Isso para se livrar do casamento.
Beathriz o deixaria bem com os pais dela, a
me e os parentes de ambos reunidos para
testemunhar o casamento fracassado. O pensamento
assombroso ainda o atormentava quando ele ouviu
uma movimentao s costas. Virou-se e viu Beathriz
descer a escadaria, deslumbrante, parecia um sonho.
Aquilo no era uma dama, e sim uma deusa grega,
descida direto do Olmpo, ou seria uma ninfa, recmsada do bosque, ou at mesmo uma princesa sada
de um conto de fada. Nesse momento, o corao
ajoelhou-se e a alma bradou como um rouxinol.
Francis nunca tinha visto tanta beleza em uma dama
como aquela noite. Ela no havia sido tocada pelo sol
nem tampouco pela lua, pois era o prprio astro rei. E
estava ali. Por isso, mais do que por seu esplendor,
ele seria eternamente grato.
Enquanto Beathriz descia a escada, Francis
tentou capturar-lhe o olhar, porm ela o mantinha
abaixado. Escondia seu estado de esprito debaixo de
uma belssima mantilha. Continuou a faz-lo depois
de parar ao lado do mancebo. Francis no conseguia
afastar-lhe o olhar, queria toc-la para ter certeza de
que era real e no um sonho. Em vo, rezava para
que ela olhasse para ele. Durante a cerimnia inteira,
Beathriz manteve a ateno longe dali. Mesmo
352

Mistrios de Um Amor Proibido

quando finalmente foram declarados marido e


mulher, ela no olhou para ele.
Francis viu Beathriz abraar os pais e as irms.
Todos lhe desejavam felicidades ao lado do esposo.
Um esposo cujo olhar ela se negava a encontrar.
Juntos e frente de todos, dirigiram-se ao imenso
salo, onde o festim seria servido e os festejos
teriam incio. A festa s terminaria ao amanhecer.
Como no era homem de se arriscar, curvou-se e
perguntou ao p do ouvido:
Vs estais com o punhal?
Beathriz parou, forando todos atrs a fazer o
mesmo. Embora tentasse esconder o sorriso, no
conseguiu. Comeou a andar e murmurou:
Talvez? Quem sabe?... Beathriz no se
lembrava de ver a me com expresso to feliz.

353

Cludio Pereira da Silva

Captulo XXviii
A face boa da tirania

Na tarde seguinte ao dia do casamento, a


comitiva de Beathriz partiu da fazenda ainda pela
manhzinha. A evoluo da viagem era muito lenta.
As vias por ali eram uma porcaria e, apesar de o
coche ser aconchegante, no havia sido feito para
aquele tipo de estrada esburacada. Meio dia de
viagem depois, a comitiva chegou fazenda de
Francis. A frondosa frente da casa-grande era de
certo modo a viso do paraso, o alpendre era de um
material nobre trazido da Itlia, alm da alameda de
palmeiras-reais, que davam um ar mais aristocrtico
fazenda. Para que possamos ingressar na casagrande, precisamos subir por uma escadaria de
granito com trs lances de escadas com seis a sete
degraus.
Francis deu ordens aos escravos para que
levassem os bas, caixas e valises de sua agora
esposa Beathriz. E de mos atadas subiram os trs
lances de escadas, sendo recebidos por Abigail uma
velha escrava, uma matrona j na idade de seus
sessenta anos, gorda, de estatura mediana, mas que
ainda guardava em suas feies a juventude de
outrora. A velha estava na famlia de Francis desde a
gerao de seus pais e era a conselheira da famlia.
Ancas largas, o cabelo branco coberto por um
turbante que inspirava respeito e dava-lhe um ar de
354

Mistrios de Um Amor Proibido

maga e feiticeira, trajava um vestido de chita


vagabunda, trazia no pescoo um rosrio. Mesmo
sabendo que no seria feliz ao lado daquele rapaz,
Beathriz estremeceu e, diante da negra, percebeu
que havia cometido o maior erro de sua vida. No
tendo como voltar atrs, comeou a decodificar o seu
papel, o de mulher apaixonada, ou ser que no
deveria fazer esse papel, pois a senhora parecia ser
uma boa pessoa.
Bom-dia, nhonh! Cortejou a velha, fazendo
um ligeiro salamaleque. O sorriso desdentado da
senhora parecia ser sincero. Que vento o traz aqui?
Faz tempo que o nhonh no aparece por aqui. E
ainda trouxeste uma prima, amiga, sei l...?
Eis aqui a tua nova senhora murmurou
Francis, sorrindo, um sorriso amarelo.
Senhora? Como assim?... Vociferou a negra
assombrada.
Pois, sim, essa ser a nova senhora desta
casa, a senhorita Beathriz Albuquerque. No est
lembrada? A que eu havia dito a ltima vez que vim
aqui... Aquela, sabe?
Ah, lembrei agora! Respondeu a senhora.
Nossa que rapariga linda, meu senhor! O senhor
havia dito que ela era linda, mas nem tanto!
Obrigada!... Disse Beathriz, retribuindo a
gentileza. A senhora me parece uma tima escrava;
creio que nos daremos bem.
Assim espero, minha senhora disse Abigail,
enquanto fazia uma mesura diante da moa. Queira
acompanhar-me, minha senhora. Por obsquio!
Abigail conduziu Beathriz pelo hall de entrada,
em seguida ao salo principal e assim ambiente por
ambiente da casa-grande at o momento que a
conduziu pela escadaria principal at o andar
superior onde ficavam os aposentos. Francis as
acompanhou de longe. A senhora, enquanto
355

Cludio Pereira da Silva

caminhava, dava as devidas instrues nova e


soberana dona da casa.
Esta casa no habitada por uma mulher
desde que a baronesa faleceu; creio que agora essa
casa ter um ar mais harmonioso e sutil, toques que
s uma mulher sabe dar. No , sinhozinho?
... ! Tem toda razo, como sempre!
Beathriz ficou impressionada com o tamanho da
eloquncia com que a negra lhe dava as informaes
sobre seus antigos senhores. Tudo ali parecia
perfeito. Claramente no era com Francis que
Beathriz queria se casar, mas com tamanha presso
por parte de sua me, ela no viu outro subterfgio
de se safar do maldito casamento. Casou-se, todavia,
infeliz.
Ali fica o salo de jogos, e ali a biblioteca,
minha senhora Beathriz dizia a negra, enquanto
apontava para os cmodos. Deram mais alguns
passos e entraram em um cmodo. Esse aqui ser
o seu toucador, minha senhora! Concluiu a velha.
O cmodo era devidamente mobiliado, assim
como os outros cmodos da casa, sobre a janela uma
banheira de mrmore, esquerda um lavabo, uma
jarra de porcelana chinesa e um espelho, alm de
uma bancada, onde se expunham os fracos de
perfume e artigos femininos; direita, um div,
prximo a ela, um biombo. Beathriz ficou assustada
com tamanha beleza, por um momento imaginou ter
feito a coisa certa, mas logo caiu na real e percebeu
que seu casamento havia sido arranjado, ou seja, um
casamento de negcios.
Quero ir biblioteca, pois esse sim ser o meu
lugar predileto, alm do estbulo, claro...
A mucama a levou ento biblioteca. Abrindo a
porta, os quatro adentraram no lindo cmodo.
Beathriz rodopiou pelo cmodo e claramente disse:
Nossa, Francis! Quantos livros tm aqui?
356

Mistrios de Um Amor Proibido

Francis sorriu.
Est vendo, minha querida, isso tudo agora
seu.
O passeio pela casa prosseguiu. Beathriz
continuou caminhando pelos cmodos e muitos
compartimentos depois, o pequeno grupo deteve-se
em um ambiente.
Ah, senhor Francis... Esqueci de dizer-te, mas
a escrava que o senhor encomendou chegou!...
Que escrava?
Aquela?!... Que servia de mucama a sua
prima; ah, que tambm chegou... houve um longo
silncio
Ah, t! E onde esto ambas? Perguntou
Francis.
Acredito que ambas estejam na cozinha, pois,
desde que chegou fazenda, a senhorita Giuliane
no sai de l! Afirmou a velha escrava. A no ser
que seja para cavalgar.
Olha, minha querida, alm de ter uma
biblioteca s para voc, j arrumou uma
companheira para cavalgar, Beathriz. Oba...! Duas
mulheres e ambas amazonas... No nh Abigail?...
Dona Abigail, pea para a cozinheira que abrevie o
ch da tarde.
Sim, senhor! Com essas palavras, a escrava
deixou o aposento, deixando o casal sozinho.
Venha, minha querida... Vamos para a
biblioteca? Venha! Dizia Francis, enquanto
caminhava at a porta.
Abrindo-a, ambos saram. E, de braos dados,
os dois desceram a escadaria principal. Francis
conduziu a esposa biblioteca, onde aguardaram a
chegada de Giuliane e do ch. A biblioteca era um
cmodo amplo, de moblia elegante e aconchegante,
as paredes com pinturas em estilo neoclssico e
figuras mitolgicas, como o cupido deus do amor;
357

Cludio Pereira da Silva

as janelas abriam para a ala europeia da fazenda,


para as bandas do cafezal e por onde corre o rio
Paraba. frente da janela, uma escrivaninha e um
par de cadeiras; ao centro do cmodo, um sof;
direita da porta, um canap; esquerda da segunda
janela, uma conversadeira e, prximo a uma
prateleira de livros, uma conversadeira; todas
estofadas com o mesmo tecido das cortinas que
cobriam os quatro pares de janelas, uma espcie de
veludo verde-musgo adamascado. Nas paredes e
sobre a escrivaninha, sobre as mesas e aparadores,
alguns candelabros descansavam, ao lado de jarros
azuis e vasos de flores.
Francis conduziu a esposa a um dos sofs e,
fechando a porta, disse:
Creio que j esteja gostando da ideia de ser
minha esposa. Ou ser que estou errado?
Murmurou Francis, ao ouvido da moa, que estava
entre vrios anis de tecido.
No vai se acostumando no, pois estou
apenas fazendo o papel de boa moa. Assim como
minha me, ensinou-me a mentir. Devo ganhar a
confiana dos soldados do exrcito inimigo, para que
possas. Assim sobreviver! No achas, esse um dos
ensinamentos que ns, moas, aprendemos desde
infantas.
Bya tamborilou sobre o sof, Francis ergueu-se
e caminhou at uma janela de onde apontou para
Beathriz.
Vs aquele mundaru de terra e caf ali?!
E, olhando por sobre o encosto do assento,
disse:
Pois, sim! Vejo.
Ento, tudo isso agora seu tambm...
T, t!... T, mas onde ficam as baias onde
ficaro meus cavalos?
Um tanto mais adiante, na ala sul...!
358

Mistrios de Um Amor Proibido

Beathriz ergueu-se e caminhou pelo aposento,


retendo-se diante de uma das janelas.
Onde?
Francis aproximou-se dela e, apontando, disse:
L!...
L, onde? Redarguiu ela.
Ali ... Depois do ptio, onde se seca o caf.
Est vendo, ali onde tem um monte de negro
trabalhando.
Sim!
Mais adiante a baia.
Uma batida na porta deteve o ar de discrdia
que havia tomado conta do ambiente. Rapidamente
Beathriz voltou para seu lugar. Abigail entrou e
anunciou a entrada de Giuliane. A jovem, com um
sorriso que contagiou o ambiente, entrou, caminhava
delicadamente, parecia ter tido uma educao
primorosa e esmerada. O quadril balanava
afetadamente. De cabelos loiros, pele alva e olhos
azuis, a jovem parecia ter sado de um conto de
fadas. Bonita, mui guapa, pensava Beathriz. A
escrava colocou a bandeja sobre a mesa de centro.
Boa-tarde, Francis...
Boa!
Tu casaste e nem me convidaste? Que feio!
Giuliane fez uma mesura.
A jovem tinha um forte sotaque do Sul.
Caminhou at Beathriz e, abraando-a, disse:
Vejo que meu primo tem bom gosto?!
Murmurou Giuliane afetadamente.
Obrigada...! Redarguiu Beathriz.
As duas sentaram uma junto da outra e
comearam a papear; as coisas fluam de tal forma
que pareciam duas amigas de infncia. O ch foi
servido e, vendo a intimidade que as duas j haviam
constitudo, Francis saiu para ver a lavoura. Havia
ficado muito tempo longe da fazenda e precisava ver
359

Cludio Pereira da Silva

o que estava acontecendo. Aps a sada de Francis,


Giuliane levou a nova senhora da casa para conhecer
o resto da casa e a escravaria. A conversa durou
algumas horas, ento Beathriz e Giuliane foram para
seus aposentos preparar-se para o jantar, que logo
seria servido.
Beathriz no estava feliz com o casamento,
porm estava feliz, pois havia encontrado uma
amiga; j que teria que morar ali, pelo menos tinha
algum para conversar. Isso suavizava muito a sua
aflio; outro fato que a deixou feliz foi o fato de a
fazenda de Maria Eduarda ser a duas lguas dali e de
Liriel morar a uma lgua. A nica coisa que a deixou
entristecida foi saber que Anna Carolina, sua inimiga,
era muito amiga da famlia do seu odioso marido.
Sabia que a encontraria muito em festas, saraus e
bailes em Sant Anna e na corte, onde Francis
mantinha uma casa.
Durante toda a tarde Beathriz manteve-se em
seu quarto. Marcava quinze para as seis, quando
Hadassa informou aos moradores da casa que o
jantar seria servido. Bya no estava com fome, mas
desceu para a sala, pois a prpria Giuliane havia ido
busc-la no quarto. As duas desciam as escadas de
braos dados, quando Francis apareceu no hall de
entrada, deixou o chapu e a casaca na chapelaria e,
ao p da escada, aguardou as duas damas que
terminavam de descer. E com um sculo
cumprimentou Beathriz e a prima, e alegremente
disse:
Vejo que as duas mulheres da minha vida j se
tornaram amigas enquanto beijava as mos da
jovem Albuquerque. J estou com cime!...
Francis virou-se para Hadassa, que havia aparecido
no corredor: O jantar j foi servido?
Sim, senhor. O jantar j est mesa!...
Que cara essa, minha querida? Terminou
360

Mistrios de Um Amor Proibido

ele, virando-se novamente para Bya.


Beathriz deu um sorriso amarelo, sem graa.
Giuliane fez uma leve mesura ao ver o primo.
Durante todo o jantar, Bya manteve-se calada,
o silncio que pairava por todo o cmodo foi
quebrado pela voz forte e arrogante de Francis.
Minha querida mulher... Tenho algo a dizer!
Disse Francis, enquanto colocava a colher sobre o
sousplat. Hoje tarde fui cidade vender as sacas
de caf e fui informado que deveria ir corte.
?
Terei que partir amanh noite...! Concluiu
ele. Como terei que passar alguns meses l, voc
ter que ir comigo. Entretanto, no precisa ser agora,
eu vou primeiro e voc vai depois. Daqui a dois dias,
quem sabe?!
O silncio voltou a reinar novamente sobre o
lugar. Giuliane, esquerda, nada disse, olhava
apenas para a cara do casal. Beathriz no amava
Francis, contudo teria que viver com ele, assim havia
dito sua me antes do casamento. Pelo menos havia
feito uma amiga para toda hora, principalmente para
cavalgar, o que achou que teria que deixar. O jantar
acabou, e o trio foi para uma sala, prximo
biblioteca. Francis foi frente, abrindo as portas; o
corredor estava ligeiramente sombrio, iluminado
apenas por alguns pontos de luz, os candelabros.
Francis abriu a porta, Giuliane entrou, em
seguida foi a vez de Bya. O jovem caminhou pelo
cmodo e deteve-se junto escrivaninha, sentou-se,
abriu uma gaveta e pegou alguns papis, que levaria
no dia seguinte. Giuliane se assentou em um canap
e indicou uma cadeira para Bya. Antes de sentar-se,
Bya percorreu com os olhos a estante de livros e,
pegando um volume, voltou para junto da amiga.
Sentou-se e abriu. Giuliane j havia comeado a
coser seu bordado.
361

Cludio Pereira da Silva

Vou ler um pouco deste romance para voc.


Isto , se voc quiser murmurou Bya, enquanto
abria o livro.

Claro
que sim... Sou extremamente
apaixonada por livros, sobretudo os de Jane
Austen!... J leu Orgulho e preconceito? Giuliane
pegou um novelo de linha da cesta.
Com certeza! respondeu Bya, ento
comeou a ler. Capitulo I. Emma Woodhouse,
bonita, inteligente e rica... Assim continuou ela
lendo, leram uma, duas, trs, na quarta pgina parou
e encarou Giuliane, pois um assunto a perturbava. J
estava conversando com aquela bela jovem que se
apresentava sua frente havia dois dias e ainda no
sabia nada dela. Era linda, porm carregava sobre si
o manto de mistrio, um ponto de interrogao.
Todas as vezes que puxava conversa, para saber de
sua vida, a jovem ficava arredia, assustada e logo
mudava de assunto. Talvez aquela fosse uma boa
hora para saber, aparentemente era uma jovem
normal bonita, sorridente, rica, mas muito fechada.
Marcava pouco mais de oito horas no grande
relgio do hall, quando Francis resolveu se deitar.
Ergueu-se da cadeira e caminhou pelo aposento,
detendo-se diante da porta e com a mo esquerda
abriu-lhe. Ia saindo, quando se virou para o sof,
onde estavam as duas jovens e disse:
Minha querida esposa, voc no vem se deitar
agora? sua mo direita estava cheia de papis.
Vou me deitar, pois amanh terei que sair cedo...
Beathriz Emmanuelle virou-se para o marido e
entre murmrios contraps-se.
No, querido! No subirei agora, ficarei aqui
mais um pouco com sua prima... J, j eu subo!
Sorrindo, Giuliane virou-se para o primo:
Pode deixar, primo, conheo muito bem esta
casa disse Giuliane enquanto bordava. Assim que
362

Mistrios de Um Amor Proibido

terminarmos aqui, deixarei Bya em sua alcova!


Ento, boa-noite, Giuliane! Redarguiu
Francis. Espero-a em nossa cama!
Aps dizer essas palavras, Francis saiu,
fechando a porta atrs de si. O jovem percorreu todo
o corredor nas escuras e foi para sua alcova. Na sala,
as jovens continuaram suas conversas.
Bya... Largou ela o bastidor. Posso lhe fazer
uma pergunta?
Pode, mas com uma condio: que voc me
permita fazer outra! Fechava o livro.
Est bem! Mas eu comeo.
Tudo bem!
... , que uma pergunta muito difcil!
Encabulada, pegou a mo de Bya e colocou entre as
suas. Eu te conheo h pouco tempo, mas j pude
perceber que no ama meu primo... Estou
mentindo?!
Bya abaixou a cabea e, rubra de vergonha,
disse:
Sei que posso confiar em vossa merc, por
isso no mentirei. verdade, no gosto do seu
primo. Porm ele sabe, no seria nenhuma mentira
para ele. Odeio a mentira! Ele sabe que amo outro
respondeu de cabea baixa.
A janela estava aberta e um vento frio espalhou
um monte de papis que estava sobre a
escrivaninha. As duas ergueram-se e comearam a
recolh-los, enfim, voltaram para os seus lugares.
Bya ia fazer a pergunta, quando Giuliane desatou-se
a falar:
J sei o que voc vai perguntar, por isso
contar-lhe-ei tudo guardou o bastidor dentro da
cesta e o colocou sobre a mesa de centro, ento
disse: Minha histria muito parecida com a sua,
porm com um diferencial. Seu amado ainda vive!
Cerca de trs anos atrs, um desastre aconteceu
363

Cludio Pereira da Silva

com a minha vida, resolvi me apaixonar pelo capataz


da fazenda. Ao saber, meu pai mandou-o vender caf
na corte e, enquanto estava a caminho, foi morto.
Meu pai diz que no, mas eu sei que tudo havia sido
armado por ele. Era uma emboscada. O pobre
morreu. Com medo de eu ter me perdido, mandoume para um convento em Santa Catarina. L passei
os piores dias da minha vida at a semana passada,
quando recebi uma carta de meu pai me mandando
para c. Creio que ele j tenha um pretendente para
mim.
Beathriz ficou visivelmente consternada, pois a
histria de Giuliane era ainda pior que a sua. Graa a
Deus, Henrique ainda continuava vivo, ainda havia
uma esperana. Quem sabe, aquela viagem no
fosse um plano de Deus para ajunt-la novamente
com seu amado. Com a delicada mo, amparou uma
gota que escorria pelo lado esquerdo da jovem
Giuliane.
Por Deus, Giuliane. No fique assim... Eu no
queria faz-la chorar secava ela o rosto da jovem.
Que isso, minha amiga?!... No precisa se
preocupar, pois parece que temos aqui a mesma
histria, de formas diferentes. Talvez uma ajude a
outra, no ?
... Duas vidas e uma histria.
O escritrio foi iluminado pela luz de um raio
que caiu no ptio, uma chuva torrencial comeou a
cair por toda a fazenda. As mucamas, inclusive
Hadassa, corriam por toda a casa para fechar as
portas e janelas. Duas negras entraram no escritrio
correndo, porm Bya e Giuliane j haviam fechado as
janelas.
As senhoras ainda esto aqui? Murmurou
uma negra pensei que j houvessem ido dormir.
Com licena?
Toda! responderam as duas.
364

Mistrios de Um Amor Proibido

Creio que j esteja mesmo na hora de nos


recolhermos! Meneou Bya, enquanto arrumava as
pregas da saia. Vamos dormir, pois amanh o dia
ser mui agitado nesta casa.
Giuliane arrumou a cesta de bordado e a
colocou sobre o sof de canto e, de braos atados,
percorreram toda a extenso do corredor, no fim dele
e junto escadaria-principal, Hadassa aguardava sua
senhora. As trs subiram e juntas caminharam por
todo o corredor do andar superior. Hadassa ia
frente com um candelabro. Primeiro deixaram
Giuliane em seus aposentos, depois Hadassa e
Beathriz seguiram para a sala ntima; l, trocaram
algumas palavras, ento partiram para o toucador
onde Bya, com a ajuda de sua mucama, trocou de
roupa, tirou toda aquela roupa pesada e colocou
apenas uma camisola de seda. Hadassa conduziu sua
senhora at a porta, abriu-a, e Beathriz entrou
fechando-a atrs de si. L fora, a chuva caa
torrencialmente, o mundo parecia querer desabar
sobre toda a fazenda.
Beathriz entrou no quarto soturno, velas
espalhadas por toda a alcova davam ao ambiente um
clima romanesco. Francis j estava deitado, mas
ainda no dormia; Bya percorreu todo o quarto com
os olhos assustada, sabia que teria alguma obrigao
matrimonial, mas no sabia o que era. Temia fazer
alguma coisa errada, no amava Francis, entretanto,
como esposa, teria que lhe obedecer. Francis moveuse na cama e, olhando para Bya, que ainda estava
junto porta, disse:
Entre, meu amor!... Arrumou alguns
travesseiros Feche a porta e venha se deitar. Sei
que esse momento difcil para voc, mas pode
deixar, pois eu fao tudo. Deixe apenas o instinto
conduzi-la a mim. A voz era morna e agradvel.
Beathriz sentiu certa segurana. Sei que no me
365

Cludio Pereira da Silva

ama, porm farei apenas o que voc quiser. Creio


que sua me no lhe disse o que um casal faz aps
as bodas, todavia eu lhe ensinarei.
Beathriz tirou o robe e o colocou sobre um
canap, tomou um copo de gua da jarra de cristal e
caminhou para junto da cama. Ao se aproximar da
cama, percebeu que Francis estava nu, sentiu um frio
na barriga, ficou ruborizada; no entanto, estava na
toca dos lees. Era casada agora e no poderia fugir,
pensou em Henrique, imaginou seu amado ali
deitado nu, coberto apenas por um fino lenol. O que
diria a ele quando voltasse a v-lo, porm, o errado
havia sido ele de t-la deixado. Aos poucos, o rubor
passou. Francis, j nu, ergueu-se da cama e deu a
volta, indo ter com ela. Sua silhueta era perfeita,
junto de Beathriz, Francis passou a mo por todo o
corpo de Bya. Ela estremeceu, ele ento segurou na
ala de sua camisola e, com muita delicadeza a
despiu, deixando-a apenas com aquilo que a
natureza havia-lhe dado.
O seio era bojudo, porm firme, sua cintura era
pequena, linda e delicada; cada parte de seu corpo
era proporcional. A pele era macia e rosada, o longo
cabelo caa-lhe sobre os seios donairosos. Francis
podia ser o que fosse diante dos olhos daquela
mocinha romanesca, mas uma coisa ela tinha que
concordar: ele sabia tratar uma mulher. O corao
batia rapidamente, e o colo arfava violentamente.
Francis comeou a beij-la do alto da cabea, passou
pelo pescoo e foi descendo. Beathriz no conseguia
mais se segurar sobre seus ps, o jovem percebeu
que ela entregava-se aos poucos fora da natureza;
ento, pegou-a nos braos e, delicadamente, deitoua sobre a cama, assim como um ramalhete de rosas
colocado sobre um piano. Aos poucos, os rubores da
virgindade e da pureza deixavam-lhe a tez, a
vermelhido da pele desapareceu, e uma fora ainda
366

Mistrios de Um Amor Proibido

maior tomou conta dela.


Francis continuava beijando-a, a aurola do
monte de Vnus havia endurecido. Assim como
aquilo que agora se estreitava diante da pele da
moa, Beathriz jamais vira aquilo, nem mesmo
sentira aquela sensao, no sabia descrever aquilo.
Finalmente ela se entregou lascvia, sentia de certa
forma segurana, sendo estreitada diante daqueles
braos viris que a comprimiam junto ao seu peito.
Seu longo cabelo agora se misturava aos corpos;
enquanto a beijava, Francis dizia-lhe coisas de amor,
imaginou estar nos braos de Henrique. Aps alguns
segundos de carcias, os corpos finalmente se
fundiram em um s; agora j no eram mais dois
corpos, mas apenas um... No ato da conjuno
carnal, Bya gemia e sussurrava, agora j no era
mais uma menina, havia-se tornando uma mulher.
Em meio dor, o prazer surgiu, jamais sentira nada
igual. Aquele homem em cima dela parecia querer
devor-la, no comeo sentiu medo, pois no sabia
como aquele rgo entraria nela, mas depois se
entregou lascvia e deixou ser levada at o pice
da relao, quando o macho rosnou como um animal;
parecia um co rosnando diante do prazer eminente.
Aps terem coabitado, Francis levantou-se,
apagou as velas, voltou para a cama e, em poucas
horas, Francis j estava dormindo. Porm, a senhorita
Albuquerque no conseguiu dormir, para ela aquela
noite foi uma viglia. Virava-se para um lado e para
outro, desceu cozinha, fez um ch, tomou leite,
mas nada adiantou. Deitava-se e logo se levantava
novamente, assim foi a sua noite. A noite havia
passado e, com os primeiros raios do sol, Beathriz
Emmanuelle levantou-se e foi para a sala ntima,
onde aguardou a chegada de Hadassa. Era
aproximadamente sete e meia, quando uma batida
na porta da sala ntima despertou Bya do sono da
367

Cludio Pereira da Silva

indolncia; no estava dormindo, todavia parecia


sonhar debruada sobre um livro. Hadassa entrou,
colocou a gua morna na tina, ento chamou sua
sinh, que estava deitada em um div.
Sinh... Sinh?! Murmurava Hadassa,
enquanto cutucava o brao dela.
De um lampejo, Bya pareceu adormecida,
mesmo estando acordada.
O que foi? Disse ela saltando do div!
Hadassa abria as janelas.
Venha, sinhazinha, tomar seu banho matinal...
Beathriz Emmanuelle ergueu-se do div e,
colocando a roupa de banho, saltou na tina. A gua
estava morna, Bya gemeu ao sentir a gua tocar sua
pele, ficou extasiada. Permaneceu dentro da tina
cerca de uma hora, saiu, secou-se e vestiu a roupa
de baixo, caminhou pelo aposento, foi janela e
observou a movimentao no ptio. L embaixo, as
escravas varriam o entorno do largo e um pouco
mais adiante, junto ao orquidrio, algumas escravas
carregavam trouxas, possivelmente iriam lavar as
roupas. Com as trouxas brancas na cabea, nos
lbios uma cano antiga, msica alm-mar, trazida
da frica, as negras caminhavam. O cheiro de po
assado j havia se espalhado pelos cmodos da
casa-grande, o bolo de laranja ainda assava no forno
a lenha. O leite j havia sido tirado e a gua do caf
fervia. Abigail entoava uma cano, enquanto fazia
seus afazeres, no pasto os cavalos trotavam, as
vacas mugiam mais ao longe, a revoada de queroqueros que cantavam e denunciavam a chega de
mais um dia.
A fazenda parecia acordada de um sono
indolente; o vento e o sol l fora mostravam que
aquele seria mais um dia de primavera. Ainda
abismada com a noite anterior, Beathriz aprontavase para o desjejum no toucador; ao lado Francis
368

Mistrios de Um Amor Proibido

arrumava-se, pois aquele seria o dia de sua viagem.


Com a ajuda de uma escrava, Francis arrumou suas
malas e as mandou para o coche, pois partiria logo
aps o desjejum. Bya colocou o espartilho, a
crinolina, a angua, o merinaque, as oito saias, o
meio, a botina, arrumou o cabelo, colocou um xale
nos ombros e partiu para o corredor. A dois passos de
si, Francis tambm deixou seu toucador na mesma
hora, apenas Giuliane parecia ainda no ter
acordado. Beathriz olhou para a cara do marido e
relembrou a noite anterior, sentiu vergonha, mas
logo tudo passou, quando Francis dirigiu-se a ela,
dizendo:
Bom-dia, minha cara... Como passou a noite?
Francis tomou sobre si as delicadas mos de Bya e
beijou-as. Pelo visto, bem! Pois est at corada.
Acordou com as galinhas?! Achei que viria a minha
partida?!...
Bya fez uma leve mesura e, junto ao marido,
desceu a frondosa escadaria principal. A mesa do
desjejum estava posta, bolos, compotas, pes,
geleias, frutas, caf, leite e o principal produto da
fazenda: a pessegada; tudo estava servido em pratos
e xcaras de porcelana austro-hngara. Francis
sentou-se cabeceira, Beathriz sua direita. De
primeiro ficaram calados, um olhando para o outro,
mas depois Francis disse:
Viajarei daqui a pouco, mas voc ir amanh.
Ou quando tiver se acomodado a esta casa bebeu
um pouco de caf. Ontem noite mandei seis
negros para ajudar os outros que j esto l para
limpar a casa.
Bya colocou a xcara sobre o pires e exps:
Tudo bem, senhor meu marido!... Levou
novamente a xcara boca. Farei o que for melhor,
para o senhor...
Tudo bem, minha querida Francis percebeu
369

Cludio Pereira da Silva

que ela no trazia mais no tom de voz o dio e o


rancor que trazia desde o dia do casamento. Talvez a
noite passada tenha lhe feito bem. Pensou ele. No
precisa se preocupar com roupas para usar l, pois
compraremos tudo novo, na Rua do Ouvidor. Levarei
voc nas melhores modistas da corte.
A hora do desjejum passou e um tanto quanto
animada, Beathriz acompanhou o marido at o
alpendre de onde viu sua carruagem partir. Voltou
para dentro e subiu novamente para seu quarto.
Ainda amava Henrique, mas agora sentia algo por
Francis, passou a noite pensando e chegou a uma
concluso, deveria aprender a conviver com aquele
que agora era seu marido, j que foi deixada por seu
verdadeiro amor.
Chegando ao seu quarto, abriu a janela e ficou
ali, observando a partida de seu marido, que aos
poucos foi sumindo no horizonte. Voltou para dentro
e foi para a sala ntima, caminhou pelo cmodo e
pegou um livro que estava sobre a mesa de centro.
Deu alguns passos e, erguendo a orla da saia,
assentou-se na marquesa, abriu o livro e comeou a
folhe-lo, foi quando ouviu uma batida na porta,
bamboleou na marquesa e respondeu:
Entre...
A porta se abriu, era Giuliane ainda com a roupa
de dormir.
Bom-dia, Bya fazia ela uma leve mesura.
Vi, quando vosmec passou no corredor e, como
todas as escravas esto l embaixo, vim ver se voc
pode me ajudar a me vestir?
Sim... Por que no?
Giuliane saiu, e Bya foi logo atrs da jovem.
Aps alguns minutos, Giuliane j estava vestida e as
duas seguiram novamente para a sala de jantar;
Giuliane tomou caf, trocaram de roupa e saram
para cavalgar. Giuliane levou Beathriz para conhecer
370

Mistrios de Um Amor Proibido

todo o resto da fazenda, passaram cerca de duas


horas e meia cavalgando, ento as duas amazonas
voltaram para casa, tomaram banho e foram para o
vilarejo de Sant Anna das Rosas. Beathriz deveria
levar o dzimo igreja antes de viajar, pois no sabia
quanto tempo ficaria na corte, alm de que precisava
fazer a compra do ms para os escravos.

371

Cludio Pereira da Silva

Captulo Xxix
A Corte

Vinte trs de junho, um dia tpico de inverno. O


dia havia acordado como outro qualquer, com uma
pequena diferena: era o dia em que Beathriz,
Hadassa e Giuliane partiriam para a corte. Haviam
acordado bem cedo naquele dia, e os preparativos
iam de vento em popa. Aps o desjejum, Beathriz e
Giuliane saram novamente para cavalgar.
Marcava pouco mais de dez horas da manh,
quando a comitiva deixou a fazenda. A viagem durou
cerca de trs horas at chegarem cidade de
Campos dos Goytacazes de onde partiram; na
locomotiva Baronesa, a viagem de trem foi um tanto
quanto boa. As trs damas se divertiram a par; todo
o percurso durou algumas horas. Horas depois elas j
haviam chegado estao de ferro D. Pedro II e de
carruagem seguiram para a manso de Francis.
A manso era maravilhosa, talvez uma das mais
bonitas da corte, depois do Palcio do imperador,
claro... A casa situava-se em um aprazvel lugar a
duas quadras do Palcio imperial. A fronte da
residncia era no estilo neoclssico, entrvamos por
um porto de ferro e subamos por uma escadaria
com cinco ou seis lances de escadas, que davam
tanto para a ala sul como norte. L no alto, um
alpendre com dois sofs e uma jardineira ao lado
esquerdo, ao direito um pequeno arbusto de rosas
372

Mistrios de Um Amor Proibido

vermelhas. A porta era de madeira nobre, havia


talhados sobre ela brases e imagens da cultura
francesa, no alto do umbral uma insgnia que datava
do ano de 1800, ano em que o av de Francis
mandou construir a casa. Podamos ver cerca de
duzentas janelas durante toda a extenso da fronte.
O cocheiro que conduzia a carruagem desceu e abriu
a portinhola, Beathriz ergueu-se do assento e,
erguendo a orla do vestido, desceu do coche e subiu
pelo lado ocidental da escada. Giuliane subiu pelo
outro e ambas encontraram-se ao final dela. Beathriz
mostrou certo deslumbramento diante da casa. L no
alto da escada uma mucama as recebeu, mandou
que levassem os pertences das senhoras para seus
respectivos quartos.
Jeremias, leve as bagagens para os
dormitrios ordenou a negra. A senhora a dona
Beathriz? Murmurou a negra, olhando para
Beathriz. Aguardou a resposta e ento disse ao
negro: Leve a bagagem desta senhora para o
quarto do senhor Francis, pois essa a nossa
senhora! Vamos entrar? Redarguiu a negra,
olhando novamente para Beathriz. Fique vontade,
pois essa sua casa, minha senhora.
Beathriz manteve o olhar fixo no Pao, dali de
onde elas estavam, era possvel ver o Pao do
imperador. Era uma boa localizao. As trs
entraram, e a negra conduziu-as a uma sala.
Onde est Francis? Perguntou Giuliane.
O senhor Francis teve que ir ao senado. Foi
convocado pelo Imprio respondeu a negra. As
sinhs vo me dar licena, mas tenho que dar
algumas ordens na cozinha?! E com essas palavras,
a negra deixou a sala. Minutos depois, regressou com
duas negras e uma badeja. Trouxe refresco para as
sinhs!...
A negra que acompanhava a mucama que
373

Cludio Pereira da Silva

havia recebido Beathriz descansou a bandeja sobre a


mesa de centro e serviu uma a uma. A mucama ficou
apenas de longe, observando a movimentao.
Depois deixaram a sala novamente.
Eu j havia vindo aqui antes disse Giuliane,
enquanto bamboleava o quadril na marquesa.
Gosto muito desta casa, porque perto do Pao do
imperador. Praticamente fui criada aqui!
Enquanto dava um gole no refresco, Beathriz
virou-se para ela e disse:
Minha famlia tambm tem uma casa aqui, l
para os lados da Rua do Ouvidor murmurou Bya.
Qualquer dia a levarei para conhecer! tambm uma
casa lindssima, mas no grandiosa como esta...
Est timo disse Giuliane.
Hadassa foi alcova de Beathriz, arranjou os
pertences de sua senhora no guarda-roupa, preparou
o banho e arrumou o atual toucador de sua senhora
e amiga. De braos dados, as duas percorreram
todos os cmodos da casa, assessoradas pela negra
Zefa, at que chegaram biblioteca, com certeza
aquele seria o ambiente mais ocupado, tanto pela
senhora da casa, Bya, como por Giuliane. A
biblioteca era um ambiente acolhedor, as paredes
recobertas por um papel de parede azul
adamascado; de mrmore italiano era recoberto o
cho, colunas e o umbral da porta, seis vidraas
abissais faziam do recinto um lugar iluminado de dia
pelo sol e noite a lua mostrava sua sedutora
presena por entre as cortinas; entre cada janela
havia uma luminria de seis a sete velas, alm dos
castiais que ficavam sobre mesas e a escrivaninha,
sofs e cadeiras estavam espalhados entre os mais
de vinte mil exemplares de vrias nacionalidades.
Beathriz sentiu-se em casa, assim que viu
aquele monte de livros. Deus escreve certo por
linhas tortas, ao menos terei com o que me distrair
374

Mistrios de Um Amor Proibido

neste lugar. J que aqui no poderei cavalgar, ao


menos livros! Pensava ela.
Veja... Beathriz! Olhe esse quadro, o retrato
da sua falecida sogra! Que Deus a tenha em um bom
lugar! Murmurou Giuliane com um grande pesar
nas palavras.
Bya fez o sinal da cruz e de cabea baixa disse:
Aparentemente era uma grande mulher...
Podemos ver em sua face sussurrou Bya. Mas em
seus olhos vemos que sofreu muito, pois no tem o
brilho nos olhos a chama que arde dentro de cada
um, isso ela no tem... A chama que alimenta os
sonhos e o amor pela vida lhe falta.
Param diante do retrato e entre murmrios e
sussurros Giuliane disse:
Reza a lenda que meu tio, o conde Leopoldo,
trocou-a por uma atriz francesa; tendo assim que
cuidar dos filhos na casa de minha av Leocdia. L
era pisada e maltratada por ter sido repudiada pelo
marido terminou Giuliane
Entendi! Respondeu Bya.
Assim continuou o passeio pela casa, passaram
pelos ambientes inferiores e superiores da casa. Em
seguida Beathriz foi deixada em seus aposentos e
Giuliane tambm. Marcava pouco mais de onze horas
da manh, e o almoo seria servido s doze horas.
Bya e Hadassa estavam no toucador, quando uma
batida na porta chamou-lhes a ateno.
Quem ? Perguntou Bya.
Sou eu sinh, Marcela...
Pode entrar!... Disse Hadassa.
A negra Marcela entrou. Trazia nas mos um
bilhete, pelo formato do papel e pelo estilo de papel,
era coisa de gente riqussima. Papel aveludado
bordado com fios de ouro; trazia em sua insgnia o
braso da famlia Alencar. Beathriz abriu-o
rapidamente e nas linhas estava a seguinte escrita
375

Cludio Pereira da Silva

com uma letra aparentemente masculina e corrida,


mas com uma coerncia e uma grafia impecvel:
Famlia Prado
Queridssima e grandiosa senhora Albuquerque.
com grande jbilo, que convidamo-la para
junto conosco festejar a apresentao de nossa filha
caula Manuela alta sociedade fluminense.
Esperamos contar com ilustre presena, traga a
menina Giuliane tambm!
Vossas mercs sero muito bem-vindas...
Sejam bem-vidas a essa comarca do Rio de
Janeiro.
Rio de Janeiro, Primeiro de Setembro do ano de
nosso senhor Jesus Cristo 1854.
Ass. Baro Joo Joaquim de Almeida e Prado
Assim que terminou de ler o manuscrito,
Beathriz dobrou-o e o colocou junto escrivaninha
particular. Ergueu-se da poltrona e caminhou pelo
aposento.
Est vendo s, Hadassa? Nem bem chegamos
e j temos algo para fazer murmurou ela,
sorridente para a escrava. Temos que ir Rua do
Ouvidor e nas outras ruas de moda daqui da corte.
Tenho que ser a mulher mais linda e elegante deste
lugar... V e mande avisar o cocheiro, mande-o
atrelar o coche, pois sairemos aps o almoo para
fazer compras...
Hadassa obedeceu a sua senhora e com
presteza enlaou o lao de fita do vestido de Beathriz
e saiu correndo. Essa escravinha louca mesmo,
pensou Bya... Beathriz caminhou pelo aposento e,
posteriormente a uma longa olhadela no espelho,
deixou o aposento, rumo ao quarto da grande amiga.
376

Mistrios de Um Amor Proibido

Parou sobre o umbral e batendo disse:


Giuliane...? Disse Bya do outro lado da porta.
Pode entrar... Respondeu a moa.
Beathriz entrou e, fechando a porta atrs de si,
disse:
Tenho uma boa notcia para lhe dar!
Qual?
Acabo de receber uma missiva da famlia
Prado. Eles esto nos convidando para um sarau.
Giuliane deu um grito, grito que demonstrou
bem sua satisfao.
mesmo? verdade?...
por que no seria?!
Isso timo, pois h anos estou de olho no
filho mais moo do baro Joo. Aquele rapaz loiro,
sabe?
Sei... O tal de Victorio?
Isso...!
Mandarei uma carta amanh mesmo para meu
pai; ele precisa me mandar dinheiro, pois preciso
fazer compras.
Ah, mas isso no o problema sorriu
Beathriz. Aps o almoo, sairemos para fazer
compras.
O semblante de Giuliane mudou, parecia ter
visto um ser mstico, estava tresloucada. Giuliane
parecia uma moa sofrida, seu semblante mostrava
felicidade e doura. Diferentemente do seu corao,
trazia consigo uma amargura e temia virar uma
mulher solteirona. H muitos anos havia sido
preterida por um pretendente; o rapaz havia fugido
com uma negra da fazenda de seu pai. Desde ento
deixara de viver e de sonhar. H dois meses voltara a
sonhar com um casamento, mas seu romance
parecia ser impossvel, pois o rapaz j estava
comprometido com outra. A dor tomara seu corao,
via boa parte de seus amigos se casarem e serem
377

Cludio Pereira da Silva

felizes, temia ficar velha e solteira, sem ningum. A


baronesa sua me vivia dizendo: Filha, voc ainda
jovem e bonita ainda encontraria uma pessoa
especial, que a compreenda. Dentro de si sabia que
isso era possvel, mas temia mesmo assim. O ser
humano deve entender que h males que vm para
o bem. Deus e somente Deus sabe aquilo que bom
para ns. O dia em que o homem entender isso
passar a ser feliz, mas enquanto continuar
querendo ensinar a Deus como se deve fazer,
continuar sofrendo. Sbio aquele que entende e
que faz das coisas ruins coisas boas.
A dois quarteires dali, na casa de um ilustre
visconde, uma situao muito excepcional acontecia;
uma escrava branca saa aos tapas com sua senhora.
A negra gritava de um lado, e a sinh protestava do
outro. O caso era que a negra no aguentava mais
apanhar da senhora sem merecer. A viscondessa era
uma velha matrona de quase cinquenta anos, que se
achava no direito de maltratar todos, velhos,
crianas, brancos e negros. Temia apenas o marido,
pois sua histria havia comeado em um bordel.
Diziam as ms lnguas que ela havia sido tirada de
um bordel, l de Pernambuco. O visconde escondia
esse fato, mas parecia ser verdade. Aps o almoo,
Beathriz e Giuliane saram pela corte atrs de lojas
famosas de vestido e de objetos de utilidade
feminina.
A escrava estava limpando os urinis, quando a
velha entrou no quarto e aos gritos dizia:
Sua escrava nojenta, voc me roubou. Eu bem
vi hoje de manh, quando voc levou um vestido
meu.
A negra aguentava tudo, menos ser chamada
de ladra, coisa que abominava. Damiana era uma
escrava, porm branca e educada para ser dama de
companhia. Aps algumas tapas e xingamentos, a
378

Mistrios de Um Amor Proibido

negra saiu correndo pela porta da frente, a velha saiu


atrs, dizendo:
Volte aqui, sua maldita... Traga o que meu...
V... Vo... Vo... Voc me roubou e deves pagar. E
ento gritou para um guarda que passava: Pegue
essa maldita... Pegue-a.
O guarda a segurou, a velha se aproximou e deu
mais dois tapas no rosto da escrava. Nesse momento
o coche de Beathriz passava justamente por ali e,
vendo a cena, indignou-se, mandou que o cocheiro
parasse. Assim saltou do coche e correu em direo
da negra que, amuada no cho, nada fazia, pois no
passava de uma escrava. Uma multido via a cena,
mas nada fazia, alguns temiam a velha doida, outros
apenas por serem escravocratas e acharem que
escravos serviam para aquilo mesmo.
Beathriz interps-se entre as duas. A velha j
estava com o rebenque erguido.
O qu est fazendo? Est louca!... Perguntou
Bya Por que est batendo nessa moa?
A velha ergueu a cabea e ironicamente disse:
No vs que isso no uma moa? apenas
uma escrava!
Escrava ou no, ela ainda uma moa e
gente como a gente disse Beathriz, alterando a voz.
Todos olhavam para Bya e a achavam doida,
pois estava enfrentando a mulher de um dos homens
mais importante da corte. Um grande burburinho se
ergueu entre os curiosos. Quem essa moa? de
onde ela vem?, Talvez ela no saiba com quem
est falando!. Isso era o que se passava na cabea
das mulheres, pois para os homens as perguntas
eram outras: Nossa... De onde saiu to bela
moa?! O que tem de linda, tem de arrogante. ,
nossa provncia estava precisando desse tipo de
moa!
Minha senhora, voc sabe com quem est
379

Cludio Pereira da Silva

falando? Disse a velha grosseiramente.


Sei sim!
Com quem?
Com uma velha idiota e ultrapassada...
Respondeu Bya, enquanto estendia a mo escrava.
Virou-se para o pracinha, que estava ao seu lado e
disse: Ajude-a a se erguer, seu estafermo, ou
tambm est com medo dessa velha?
Assustado, o guarda virou-se para Beathriz e
disse:
Talvez a senhora no saiba, pois no a
conhecemos, mas essa senhora a esposa do
visconde Juarez, um dos homens mais influentes da
corte.
Beathriz gargalhou e, voltando-se para o
guarda, disse:
Meu senhor... O esposo dessa senhora pode
ser importante, mas depois do meu Bya estendeu a
mo e com a ajuda de Giuliane.
A velha disse:
Ah... Ah! Quem teu marido? Deve ser um
fazendeiro de bosta murmurou a velha, surpresa
com a atitude de Beathriz.
No, minha senhora! Meu marido o baro
Francis de Alcntara, amigo e brao direito do
imperador Dom Pedro II.
Assustada, a velha largou o rebenque e disse:
Desculpe-me, minha senhora... No queria
ofend-la. Meu marido era grande amigo do falecido
pai de Francis.
Vendo a cena, Damiana ajoelhou-se aos ps de
Beathriz e, chorando muito, disse:
Oh, sinh... Tenha piedade e compre-me desta
vbora, pois assim que oc virou as costas, ela
voltar a me bater e me bater ainda mais... Tenha
piedade dessa velha escrava. Por favor!
O corao de Beathriz tornou-se contrito diante
380

Mistrios de Um Amor Proibido

de tal acontecimento e, virando-se para a velha,


disse:
Quanto queres por essa escrava?
Nada... Pois no a venderei. Pode deixar, no
baterei nela mais! Bradou a velha enquanto
colocava as mos nas ancas.
A escrava olhou para Giuliane e murmurou:
mentira, sinh... mentira, essa vbora
mais mentirosa que tudo, at quando se confessa na
igreja mente! Os olhos da escrava estavam
marejados.
E, compadecendo-se da negra, Beathriz pegoua pelo brao e mandou que o cocheiro a colocasse na
carruagem. E assim o pajem fez. A velha protestou,
mas no se ouviu mais nenhuma palavra da boca de
Bya, porm ainda antes de subir no coche Bya disse:
Pea para o seu marido passar amanh l em
casa para que meu marido possa acertar com ele
dizia ela, enquanto subia no coche. Passar bem,
minha senhora...
O coche logo partiu. Marcava pouco mais de
quatro horas da tarde, quando o passeio pela cidade
terminou. O coche estava abarrotado de coisas,
caixas e mais caixas. Primeiro a escrava desceu e
depois as outras duas senhoras trocavam algumas
palavras, pareciam j terem se tornado grandes
amigas. O clima de animao entre elas era grande.
Os escravos levaram as caixas para os quartos.
Beathriz desceu do coche e, acompanhada de sua
amiga Giuliane e de Damiana, subiu os dois lances
da escadaria principal. L no alto foram recebidas
por Hadassa, que ajudou as duas senhoras a
despirem-se do manto que traziam no dorso. Atnita
e sem entender nada, Hadassa olhou para Damiana
e, sorrindo, disse:
Sinh Bya, quem essa escrava? A senhora
no havia me dito que compraria uma nova escrava?
381

Cludio Pereira da Silva

Redarguiu ela.
Beathriz olhou para Hadassa e, sorrindo, disse:
No precisas ter cime, minha cara, pois essa
escrava branca ser dama de companhia de Giuliane
Meneou-a, enquanto mantinha o olhar fixo nos de
Hadassa. Ah, talvez hoje ou amanh um visconde
velha a, pois falar com Francis! Por favor, queira me
chamar, pois tenho que explicar-lhe algo...
Sim senhora murmurou Hadassa. Mas eu
no estou com cime, perguntei apenas por que a
senhora sempre me diz o que vai fazer...
As quatro entraram para o hall da casa e
sorrindo Beathriz disse:
Sei?!... Sei bem o que pensava. Mas deixe isso
para l, leve-a para a cozinha e mostre-lhe qual ser
seu quarto sucumbiu ela sobre um sof. Ah,
traga-me um copo de refresco, pois estou cansada e
com muito calor. Prepare-me um banho antes do
jantar...
Pois sim, sinh. Mas em que quarto
acomodarei esta escrava?
Qual?... O que fica prximo ao quarto de
Giuliane, o quarto dos fundos. Aquele onde ficam as
mucamas pessoais, junto ao toucador!
Ah, sim!
As duas escravas saram, deixando as duas
senhoras a ss. Beathriz sentou-se sobre o
almofado do sof, j Giuliane sentou-se em uma
conversadeira. E, arrumando as pregas das grandes
saias, Bya e Giuliane entreolharam-se e uma disse
para a outra ao mesmo tempo:
Vossa merc viu como aquela senhora estava
com raiva da menina? Retrucou Giuliane,
arrumando a ampla roda da saia. Creio que no fui
uma das melhores amigas neste caso, pois no sa
da carruagem. Temia ser surrada pela velha matrona.
Por Deus... Se aquela velha viesse para cima de ns
382

Mistrios de Um Amor Proibido

estaramos mortas. Voc viu o tamanho de sua


anca?...
, se no?! Pensei que ela iria me bater...
disse Bya, sorrindo, Para falar a verdade, eu temi
tambm, achei que levaria uma sova. Foi por isso
que usei o nome de Francis! Retrucou s
gargalhadas Creio que ela nem use crinolina... Pois
to gorda que, se colocasse uma crinolina, sairia
rodando pelo Pao imperial.
As duas caram na gargalhada. Alguns segundos
depois Hadassa e a Damiana retornaram ao amplo
salo, traziam nas mos bandejas de prata e ouro
branco. Sobre a bandeja de Hadassa havia uma
grande poro de biscoitos, sequilhos entre outros; j
na bandeja de Damiana, refrescos e o famoso ch
das cinco horas, hbito trazido por Beathriz de sua
ltima viagem pela Inglaterra. Era uma infuso de
vrias ervas, como hibisco, erva de Santa Maria,
louro, canela, cravo-da-ndia, camomila algumas
flores trazidas da Europa e ervas da ndia... Hadassa
apoiou a bandeja sobre a mesa de centro. Primeiro
serviu o ch s senhoras, em seguida foi a vez dos
biscoitos trazidos tambm da Europa, Portugal,
Frana, Sua, ustria, Hungria e Inglaterra.
Beathriz estava oculta atrs de volumosos anis
de musselina e de seda, j Giuliane estava camuflada
atrs de uma volumosa saia chamalote, cetim e
renda francesa. Era tanto pano que cabia apenas
uma por assento. Hadassa parecia estar ainda mais
animada que a prpria Beathriz, quando o assunto
era o convescote e o baile. Era escrava, porm forra,
por esse fato acreditava que casaria com um
sinhozinho dono de terra. Era assim que Beathriz a
ensinava; ensinava que, mesmo tendo sangue negro,
no era inferior a ningum, e a alvssima pele a faria
passar facilmente por uma europeia. E com esse
sonho ela vivia, por isso se arrumava bem e andava
383

Cludio Pereira da Silva

sempre perfumada ao lado de sua senhora. Porm,


diferentemente de Hadassa, Damiana no teria
muita sorte, pois Giuliane era boa, todavia no era
abolicionista e achava que lugar de escravo era na
senzala.
Damiana era mulata, no entanto um pouco mais
clara que as matronas africanas; ela era
afrodescendente. Tinha o cabelo duramente crespo,
os olhos eram castanhos esverdeados. Havia puxado
o visconde, seu pai, era por isso que a viscondessa
odiava tanto a menina. Ela havia sido um deslize do
visconde com uma negra, fato que Beathriz s viria a
saber no dia seguinte, quando o visconde viesse
receber a paga pela negra. Na cozinha, as negras j
preparavam o jantar, que no demoraria muito para
sair.
Bya e Giuliane estavam em seus respectivos
aposentos, cada uma com sua mucama; a porta de
comunicao entre os toucadores estava aberta. As
jovens trocavam algumas palavras e mostravam tudo
aquilo quanto haviam comprado na rua do Ouvidor e
nas outras. Uma batida na porta de Beathriz fez com
que as portas fossem fechadas, pois se tratava de
Francis, que havia acabado de chegar do banco
cafeeiro. Beathriz j havia sado da tina, estava
enrolada em seu robe, sentada em frente
penteadeira.
Sinh, o sinhozinho Francis disse Hadassa,
aps abrir a porta. Quer ver minha senhora!
Bya virou-se para trs e disse:
Deixe-o entrar!
Hadassa abriu a porta e deixou que Francis
entrasse. Aps ter anunciado a entrada de seu
senhor, Hadassa voltou aos seus afazeres; continuou
arrumando o cabelo de sua senhora. Francis deu
alguns passos pelo aposento e, parando atrs de
Hadassa em frente ao espelho, olhou para a face
384

Mistrios de Um Amor Proibido

rsea da esposa. O rosto de Bya tinha a tonalidade


de magnlia; entretanto, com uma acentuao sobre
a ma e os finos lbios, que eram na cor carmim. E,
sorrindo, disse:
Que conversa essa que minha esposa fica
brigando em praa pblica diante de milhares de
pessoas e com a mulher do visconde, amigo de
papai?
Bya escorou-se na tina e, sorrindo, disse:
Aquela velha muito chata, todavia no quero
ver mulher minha discutindo ante o passeio pblico.
Ou se esqueceu que sou grande amigo do
imperador?
Beathriz ergueu-se do banquinho e caminhou
pelo aposento, parando diante do tlamo, segurou-se
na coluna do leito. Hadassa seguiu sua senhora e
com muito cuidado apertou-lhe fita por fita do
espartilho; sua cintura j era fina, contudo teve que
cingir ainda mais, pois o corpinho do vestido media
quarenta centmetros. O corpo de Bya envergava-se
para trs aps cada solavanco que Hadassa dava
enquanto puxava as fitas de cetim. At o momento
em que Beathriz no aguentou mais, mandou que
sua mucama parasse de apertar, j estava sem ar.
Chega... No aguento mais!... Se apertar mais,
como jantarei? Murmurou Bya ofegante.
De longe Francis olhava toda a cena e sorria.
Deus, ainda bem que nasci homem. Obrigado,
Senhor!... Por ter me feito varo, pois no precisarei
passar por essa tortura. Pensava Francis, enquanto
olhava para a esposa.
Ao ver o rosto sorridente do marido, perguntou
indignada:
Por que est rindo da minha cara... Meu caro?
Disse ela, enquanto o encarava. Agora que j
falou, saa... Pois preciso aprontar-me! E com essa
cara no conseguirei.
385

Cludio Pereira da Silva

Francis saiu, deixando-as a ss. E com muita


dificuldade, Hadassa pegou os treze metros de
musselina que estavam estendidos sobre a
conversadeira e, com muita dificuldade, colocou-os
sobre as seis saias bem franzidas, a crinolina, o
merinaque e as anguas que j estavam ataviadas
minscula cintura de Bya. A saia era lindssima e
amplssima tambm; no entanto, o corselete estava
to apertado que a pobre mal podia respirar. Os seios
arfavam e mostravam o seu enorme poder feminino,
graas gentica nunca necessitara usar renda no
interior do espartilho para aumentar a protuberncia
do colo, que j era difano por natureza. Beathriz
vinha de uma casta de mulheres de corpos perfeitos.
Por mais idade que uma mulher tenha, a beleza era
aparente, e poucas eram as rugas que trazia no
rosto. No entanto Bya tinha um acrscimo perante as
jovens da famlia e das senhoritas da regio de Sant
Anna, pois trazia a menor cintura da regio.
Os sinos da igreja matriz soavam ao longe e
indicavam que j passava das seis horas. Beathriz
terminou de se vestir e juntamente com Giuliane
saram do toucador, e de braos atados as duas
caminharam pelo imenso corredor da ala sul do
casaro, que era imenso, por isso levaram cerca de
nove minutos para chegar escadaria. Desceram e
l embaixo seguiram para a sala de jantar. O aroma
proveniente dos pratos que estavam sobre o
aparador espalhava-se por toda a casa. Francis,
porm, estava no escritrio, sentado junto
secretaria que estava aberta. O rapaz viu quando as
duas jovens passaram para a sala de jantar e, sem
muitas delongas, partiu para junto delas. Um escravo
estava junto porta da sala de jantar e com uma
leve mesura cumprimentou as duas senhoras que
chegavam.
Boa-noite, senhoras!
386

Mistrios de Um Amor Proibido

Bya passou os olhos por todo o ambiente e


percebeu que Francis no estava l e, voltando-se
para o negro, disse:
Mui bien... Onde est vosso senhor?
Redarguiu ela, enquanto olhava para o negro.
O negro olhou para ela e, sorridente, disse:
Creio que o sinhozinho est no escritrio, mas
irei cham-lo.
Uma voz mscula ento surgiu do meio da
escurido e disse:
No precisa, Jos! J estou aqui... Francis
entrou no salo, puxou a cadeira para Giuliane que
estava sua esquerda, em seguida para sua esposa,
que se assentou sua direita. Uma negra ento
surgiu do interior da casa e serviu-lhe a sopa de
ervilha, depois saiu.
j fiquei sabendo os motivos que a levaram
a enfrentar a velha chata disse Francis, enquanto
tomava uma colherada de sopa. , por isso que Io a
amo questa Donna... Siete misericordia bella!
Murmurou ele em uma miscelnea de portugus,
italiano e francs Ela no somente linda por fora,
mas linda por dentro tambm. Se fosse outra
signorina, no estaria nem a para a pobre negra...
No manquer, Giuliane?
, sim! Sussurrou Giuliane entre dentes.
Signorina Beathriz sem sombra de dvida a minha
melhor amiga.
Beathriz desferiu sobre Giuliane um olhar
profundo e terno. Viu nas palavras da amiga a
sinceridade e com uma leve mesura agradeceu-lhe.
Giuliane sorriu, enquanto levava o talher boca. Os
anis de saia que estavam sobre o encosto da
cadeira estavam incomodando Beathriz, que tentou
arrum-los. O aroma da comida misturava-se ao
perfume francs de Bya, perfume que ela havia
comprado tarde.
387

Cludio Pereira da Silva

Nossa, que perfume esse, meu amor?


Perguntou Francis, enquanto sorvia um gole de vinho
voc ou minha prima? Esse perfume bom
demais... francs, no ?
meu sim, Francis, mas foi presente de sua
armadssima prima. Ela verdadeiramente uma
graa... No ? Redarguiu Bya enquanto olhava
para a nova amiga.
Francis tocou o sininho e, do interior da cozinha,
surgiu Damiana. Trazia nas mos uma bandeja, sobre
a bandeja uma caixa. A negra aproximou-se da mesa
e, parando atrs de Francis, estendeu-lhe a bandeja.
O sinhozinho apanhou a caixa e, fazendo segredo,
colocou na frente de Bya; com um sorriso no rosto,
disse:
Abra, meu amor!... Disse ele. O estojo era
luminoso, talhado em madeira nobre, trazia o braso
da famlia bordado a ouro na tampa. Olha...
O.L.H.A... Giuliane, que coisa mais linda! No lindo?
O colar, os brincos e a tiara de baronesa so lindos. A
caixa tambm linda, de madeira e traz o braso
das duas famlias, ela ainda forrada de veludo azul
quebrando qualquer protocolo da realeza, Bya
levantou-se e, abraando o marido, exps: No
precisava, todavia muito obrigada! Estas joias vieram
em boa hora, pois temos um sarau para ir ao trmino
do ms.
Francis sabia que Bya no o amava, porm
mesmo assim queria agrad-la e quem sabe ganhar
seu corao. Coisa que todo homem sabe e desde os
primrdios as mulheres gostam de ganhar: joias.
Entusiasmada com a joia, Beathriz deu a volta na
mesa e, parando diante de Giuliane, inclinou-se
perante a amiga e, abrindo a caixa, mostrou-lhe as
joias. Era uma gargantilha, um par de brincos, duas
pulseiras e uma tiara de rubi, esmeralda e prolas
negras. Todas as joias eram do mesmo material que
388

Mistrios de Um Amor Proibido

a tiara. O rosto de Beathriz tornou-se radiante diante


de tantos ornatos, ela j havia ganhado joias, no
entanto no eram como aquelas, pois se tratava de
insgnia de famlia; a nica joia que havia ganhado
sem ser legado de famlia tinha sido aos quinze anos
e quando foi apresentada alta sociedade.
Obrigada, meu amor... Beathriz no o
amava, mas como boa esposa deveria pelo menos
mentir diante de pessoas da famlia e de estranhos.
Muito obrigada!... Esse presente me caiu como uma
luva. Usarei no baile...
No tem de qu, minha amada!... Voc linda
e deve ser tratada como uma rainha! Murmurou
ele, sorrindo ao ver a jovialidade da senhora. Amor,
sentimento sumo, clice que me move a cada manh
e que me faz acreditar que viver vale apenas, se
descrever-lhe aqui tudo que sinto por ti, faltaria papel
e adjetivos para descrever o que sinto...
Bya ficou enrubescida diante dos galanteios do
cnjuge. Imbecil, refletiu Bya. Como pode? Sabe
que amo outro e fica fazendo esse tipo de papel.
Tenha mais compostura Homem?! Murmurou
consigo mesma. Beathriz gostaria muito de dizer o
que estava pensando, entretanto deveria respeitar o
marido, por isso manteve a modstia.
Obrigada, senhor meu marido!... Mas peo
que pare com a meiguice, perante sua prima, pois
fico ruborizada sorridente, respondeu ela.
Giuliane olhou para o casal e disse:
Que isso, Beathriz... Fique vontade, pois o
pao de vossas mercs; a bisbilhoteira aqui sou
eu!...
No fale assim, Giuliane! Sussurrou Bya,
entre dentes Pois agora vossa merc faz parte de
minha vida. Alm de ser prima de meu marido, vs
sois minha melhor amiga...
mesmo!... Concluiu Francis. Agora eu vi...
389

Cludio Pereira da Silva

Mais uma para te proteger, Giuliane. No bastava eu,


agora minha dona tambm.
Giuliane abriu um sorriso e agradeceu a
amizade de Bya. A sobremesa foi servida e, aps o
trmino do jantar, como de costume, o trio partiu
para a biblioteca. Bya sentou-se em um canap e
Giulia sentou-se ao seu lado, Bya trazia nas mos um
livro que ainda estava escrito em latim. J Giuliane
preferiu bordar. E, chamando sua nova mucama,
pediu-lhe que lhe trouxesse o bastidor; a negra saiu,
foi aos aposentos de sua senhora onde ele estava. Ao
retornar, veio com ela Hadassa, que trazia nas mos
uma bandeja. E, apoiando a bandeja sobre a mesa de
centro, Hadassa os serviu, saindo em seguida.
Beathriz ergueu-se do div e caminhou pelo
aposento, parou diante do marido e, enquanto dava
um gole em seu ch noturno, disse:
Senhor meu marido!... o sono parecia j ter
tomado conta dela, em sua voz, a sonolncia,
contudo, em seu rosto, a satisfao de ter libertado
mais uma. Com uma das mos segurava a grossa
camada de seu vestido e, com a outra, a xcara de
porcelana inglesa. Voc chegou e eu ainda no tive
tempo de lhe dizer. Amanh o visconde vir aqui!
Vir buscar o dinheiro da escrava...
Francis ergueu a cabea e, vendo o semblante
abatido da esposa, disse:
Sim, minha querida... Ele pegou nas mos da
moa. Mas creio que agora voc queira se deitar, j
demonstra cansao.
Bya abaixou a cabea e, colocando a xcara
sobre a bandeja, continuou caminhando pelo imenso
vestbulo. Atravessou boa parte da biblioteca e foi
parar na varanda, olhava o horizonte, j no tinha
mais foco, o olhar parecia estar perdido, desfocado.
Ento, olhou para baixo e viu dois escravos sentados
no
passeio
pblico.
Pareciam
visivelmente
390

Mistrios de Um Amor Proibido

embriagados, discutiam por causa de uma garrafa de


aguardente. A noite estava silenciosa, o cu estava
sobre um anil profundo, estrelas davam ao cu a
aparncia de uma joia; ao longe, um vento quente.
Sobre o manto da noite, o sol dava sua ltima
apario, l no horizonte uma veia ainda vermelha se
mostrava; por outro lado, a lua aparecia com toda
sua graa e seu esplendor. Era noite de lua cheia e a
dignssima dama da noite estava l, com toda sua
realeza e sua magnificncia; seu fulgor era intenso,
parecia uma esmeralda perdida.
Beathriz ficou entretida com o banz dos
negros. A noite estava tranquila, apenas de hora em
hora passava um coche ou algum cavaleiro aos
trotes. Bya debruou-se sobre o balastre, ficou com
os olhos fitos nos escravos e no percebeu que uma
carruagem se aproximava. Crescente era o rudo das
rodas e dos trotes dos cavalos. Cerca de cinco
minutos depois o coche passou em sua frente, a
noite estava densa, mas, ainda assim, Bya pde
perceber que do interior da diligncia uma pessoa se
esforava com a cabea para fora. De relance, a
pobre no pde perceber quem era, mas depois veio
sua cabea a imagem de Henrique. Ser?...
Pensava ela. Ser ele?... No creio.
Seu desejo era sair dali e ir correndo atrs do
coche, pois aspirava ver quem era o indivduo,
todavia conteve-se. Regressou para o interior da
biblioteca, l Giuliane e Francis conversavam e riam,
pois estavam observando algumas gravuras de um
livro antigo. Assim que Beathriz regressou para a
biblioteca, Giuliane percebeu a mudana brusca no
rosto da amiga e ento disse:
O que tens, minha amiga?... Disse Giulia,
enquanto olhava para a amiga. Queres minha
ajuda? Precisa conversar? Ou queres que lhe chame
um mdico?!
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Cludio Pereira da Silva

Beathriz tornara-se lvida como o papiro, mais


clara que o p de arroz que passava no rosto, seu
rosto estava claro e sua boca estava mais vermelha
que o carmim que as meretrizes passam na boca.
Constrangida com o ocorrido, Bya abaixou a cabea e
disse:
No... No est acontecendo nada! Foi apenas
o vento frio que me fez ficar assim...
Mas no est frio?! Murmurou Francis.
Percebendo que Bya estava mentindo, Giuliane
levantou-se a seu favor e disse:
J sei o que est acontecendo!...
Sabe? Indagou Francis.
, ela sabe! Disse Bya sem saber o que a
amiga iria dizer.
o espartilho que est muito apertado, no ?
Murmurou Giuliane, enquanto fitava Beathriz.
, isso mesmo! Ela est certa, hoje de tarde
assim que tomei banho mandei Hadassa apertar
mais o espartilho. E agora estou passando mal, mas
isso vai passar, s eu desapertar as fitas e tudo
estar bem Respondeu Bya, enquanto apoiava-se
no encosto da cadeira. Beathriz tocou uma sineta e
do interior da cozinha Hadassa apareceu. Hadassa,
venha comigo, pois preciso me preparar para
dormir... Com licena! Ela se ergueu da poltrona e,
aps fazer uma leve mesura, saiu, acompanhada por
Hadassa e por mais duas escravas.
Com a ideia do coche e com a imagem do
possvel Henrique, Beathriz atravessou todo o saguo
at chegar ao seu toucador, calada. Talvez ela
estivesse louca, aquele no era Henrique, era
qualquer rapaz menos ele. Pois at onde ela sabia,
ele havia se casado e morava em So Paulo. A pobre
estava perturbada, transtornada.
Senhora... Senhora... Senhora murmurava
uma das escravas.
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Mistrios de Um Amor Proibido

Hadassa aproximou-se de Bya e deu-lhe um


cutuco. Como se estivesse dormindo, Beathriz
sacolejou a cabea.
O que foi? Disse ela, ainda alienada.
Levante o brao, para que possamos retirar o
vestido.
Bya levantou e, com muita dificuldade, as trs
escravas levantaram os doze quilos de musselina;
em seguida, desabotoaram as saias de baixo, a
crinolina, as anguas e o merinaque, tudo pesava
aproximadamente vinte quilos. Beathriz deu um
suspiro de alvio, a pobre respirou aliviada quando
lhe tiraram o espartilho. S com as roupas de baixo,
Beathriz caminhou pelo quarto e, pedindo que as
outras duas escravas sassem, afastou as cortinas da
janela e sentou-se junto ao umbral da janela. E aos
prantos desabou sobre o colo da amiga.
Sei que em voc posso confiar cessou a fala
e continuou pausadamente. Sabe quem eu vi hoje?!
No, minha senhora?... Retrucou Hadassa.
Pode falar!
Creio que agora estou em um pesadelo, pois
coisas que eu havia enterrado ressurgiram chorava
compulsivamente.
Mas o que minha senhora est dizendo?!
Sussurrou Hadassa, enquanto secava o rosto da sua
senhora.
No sei como vou contar-lhe isso!
Conte, minha senhora... Vossa merc sabe
que, alm de ser sua mucama particular, sou sua
amiga!
Eu sei, mas isso to ruim...
Mas, se voc no contar, eu no saberei como
te ajudar.
T bom! Mas voc me promete que no
contar a ningum?!
Prometo!... Murmurou Hadassa, enquanto
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Cludio Pereira da Silva

desfazia o penteado de Beathriz.


Sabe?... Sabe aquela minha histria antiga de
amor?
Sei, com o senhor Henrique?!
! Ento, parece que ele est aqui na corte.
O semblante de Hadassa desmoronou e,
atordoada, disse:
E agora, o que voc far, minha senhora?...
No sei!... Por isso estou assim atordoada,
tenho que retornar para Sant Anna o mais rpido
possvel.
Hadassa continuou desfazendo o penteado.
Beathriz j estava controlada e, assim que Hadassa
terminou de desfazer seu penteado, a moa ergueuse da namoradeira e deu alguns passos no aposento.
Hadassa arrumou a cama, Bya retirou o roupo de
veludo que usava, as chinelas e deitou-se. A mucama
fechou as cortinas do dossel e saiu. Aquela noite foi
para Bya uma noite de viglia, passou boa parte da
noite em claro.
A noite passou e, no dia seguinte, Beathriz
ergueu-se da cama ainda mais perturbada; vestiu-se
e, aps o caf da manh, saiu para caminhar pelo
jardim. Caminhavam ela Giuliane e Hadassa,
displicentemente, pelo lindo jardim, quando uma
senhora com pouco mais de vinte e cinco anos parou
junto ao pesado porto. No era uma simples
senhora, pois parecia ter muito dinheiro. Trajava-se
bem e estava em uma linda carruagem; desceram
ela e uma mucama. E, chamando Beathriz, disse:
Oi?!
Beathriz no entendeu nada, no entanto Bya
cumprimentou-a, como mandava a boa conduta.
Bom-dia, minha senhora, o que deseja?
Murmurou Bya.
A jovem arrumou as pregas da saia e disse:
Creio que a senhora esteja preocupada. Pois
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Mistrios de Um Amor Proibido

no me conhece, porque no sou daqui, todavia vim


para um sarau. E me disseram que a senhora uma
das mais influentes da corte, por isso resolvi fazer-lhe
uma visita.
Beathriz e Giuliane ficaram surpresas com a
declarao da moa. O pesado porto foi aberto, e o
coche entrou. Beathriz conduziu a distinta senhora
para o interior da casa. O clima de suspense pairava
por toda a casa. Quem seria aquela moa? O que ela
faria ali? Essas eram as perguntas que surgiam na
cabea de Beathriz e na dos escravos. Passaram a
tarde inteira conversando at o entardecer, quando a
moa partiu. Mesmo nessa hora, as perguntas
vinham cabea de Bya, que ainda estava
atordoada. A jovem no lhe havia decifrado o
enigma. E parecia uma pirmide. Decifra-me, ou
devoro-te... Pelo menos ela havia feito uma amiga.
O ms passou e no dia do sarau Beathriz
acordou bem cedo e se preparou o dia inteiro... Na
hora marcada, a comitiva de Beathriz saiu de seu
palacete em direo manso do baro, que quela
hora j estava em polvorosa, cheia de gente da mais
alta sociedade. Crinolinas e merinaques enormes, as
senhoras estavam bem-vestidas, com seus lindos
vestidos, e a casa estava deslumbrante. O
burburinho era enorme, quando Bya e Giuliane
chegaram, a festa j estava no seu auge. Francis no
estava no coche, no entanto vinha a cavalo ao lado
do carro. As duas saltaram do coche e foram
conduzidas por Francis para o trio da casa. Pobre
Bya, mal sabia o que a aguardava. Marcava pouco
mais de oito horas da noite no grande relgio da
sala, quando um escravo promulgou a chegada do
ltimo convidado: o Visconde de guas Lindas e sua
esposa. Beathriz estava valsando, quando viu entrar
pela porta a senhora que a havia visitado dias antes.
Meu Deus!... Disse Beathriz ao ver quem a
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Cludio Pereira da Silva

conduzia pelo brao. No pode ser? Meu Senhor,


tenha piedade de mim!

Fim da primeira parte.


Os fatos relatados aqui vo de 1848 a 1854.

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Mistrios de Um Amor Proibido

Glossrio

Crinolina: um tipo de armao feita a princpio


de crina de cavalo, alm de alguns arcos de metal.
Angua: saia usada sob o vestido ou saia, em
geral mais curta que a saia ou o vestido; saia de
baixo.
Merinaque: armao metlica de arcos, ou
varas flexveis que do s saias a forma de balo.
Saia-balo: saia enfunada e retesada com
arcos ou varas flexveis, em forma de grande roda.

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