Tese - 8377 - Carlos Alexandre Da Silva Rocha

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

CARLOS ALEXANDRE DA SILVA ROCHA

OBSCENO, PARDIA E GROTESCO


EM BUFLICAS DE HILDA HILST

VITRIA
2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO


CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

CARLOS ALEXANDRE DA SILVA ROCHA

OBSCENO, PARDIA E GROTESCO


EM BUFLICAS DE HILDA HILST

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Psgraduao em Letras do Centro de Cincias Humanas e


Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como
exigncia para obteno do grau de Mestre em Letras
rea de concentrao: Estudos Literrios.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Sodr.

VITRIA
2014

DadosInternacionais de Catalogao na publicao (CIP)


(Centro de Documentao do Programa de Ps-GraduaoemLetras,
da UniversidadeFederal do EspritoSanto, ES, Brasil)

R672

Rocha, Carlos Alexandre da Silva, 1988Obsceno, pardia e grotesco em Buflicas de Hilda Hilst/ Carlos Alexandre da Silva Rocha,
2014.
127 f.
Orientador: Paulo Roberto Sodr.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do EspritoSanto, Programa de PsGraduao em Letras.
1. Hilst, Hilda, 1930-2004 Crtica e interpretao. 2. Hilst, Hilda, 1930-2004 . Buflicas. 3.
Literatura brasileira Sc. XXI. 4. Stira na literatura. I. Sodr, Paulo Roberto. II.
UniversidadeFederal do EspritoSanto, Programa de Ps-Graduao em Letras. III. Ttulo.
CDU: 82

CARLOS ALEXANDRE DA SILVA ROCHA

OBSCENO, PARDIA E GROTESCO


EM BUFLICAS DE HILDA HILST
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras do Centro de
Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como exigncia para
obteno do grau de Mestre em Letras rea de concentrao: Estudos Literrios.
Aprovada em 24 de novembro de 2014.

COMISSO EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Doutor Paulo Roberto Sodr
Universidade Federal do Esprito Santo
Orientador

____________________________________________
Prof. Doutor Deneval Siqueira de Azevedo Filho
Universidade Federal do Esprito Santo
Membro Titular Interno

____________________________________________
Prof. Doutora Eliane Robert Moraes
Universidade de So Paulo
Membro Titular Externo

____________________________________________
Prof. Doutor Luis Eustaquio Soares
Universidade Federal do Esprito Santo
Membro Suplente Interno

____________________________________________
Prof. Doutor Wilson Coelho
Centro Cultural SESC Glria
Membro Suplente Externo

Aos meus pais


E a Hilda Hilst (in memoriam).

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Paulo Roberto Sodr.

Gabriela Oliveira pelo amor e ateno dedicada.

Eliane Robert Moraes pela rpida resposta aos meus pedidos de bibliografia.

Vanessa irmzinha.

Irene Coutinho da Silva e ao Ricardo Salvalaio pela amizade sincera.

Casa do Sol, especialmente ao Jurandy Valena e Olga Bilenky.

Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).


Ao Centro de Documentao Alexandre Eullio (CEDAE), do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

RESUMO

Em Buflicas, de 1992, ltimo livro que compe a tetralogia obscena de Hilda Hilst
constituda tambm por O caderno rosa de Lori Lamby, de 1990; Contos descrnio & textos
grotescos, de 1990; e Cartas de um sedutor, de 1991 , a autora, a partir do obsceno, desnuda
e desmascara os defeitos polticos e os comportamentos conservadores. Como nos alerta o
crtico e organizador da obra da autora, Alcir Pcora (2005), o conceito de obscenidade se
adqua ao livro e a toda a obra de Hilda Hilst, na medida em que se detecta o obsceno no
emprego de palavras que se referem aos rgos excretores utilizados sexualmente. Sendo
assim, esta pesquisa tem como corpus o ltimo livro da tetralogia, no qual h, alm do
obsceno, o realismo grotesco, estudado por Mikhail Bakhtin ([1965] 1993), em que se percebe
o uso dos opostos e das regies baixas do corpo para que dele possam surgir o riso e a crtica.
Nos sete poemas-fbulas que compem Buflicas, esto presentes as personagens tradicionais
dos contos de fadas, como: o rei, a rainha, a bruxa, a menina, o lobo, a av, o ano, a donzela
e a fada. Essas personagens, relacionadas ora com o bem, ora com o mal, comumente esto
ligadas ao alto corporal; entretanto, nos sete poemas aparecem com as emoes ligadas ao
sexo, sendo, desse modo, transpostas para o baixo corporal, para as regies reprodutoras e
excretoras do corpo humano. V-se, portanto, a unio de elementos dspares na feitura dos
poemas, que misturam gneros e registros altos com os baixos, como os contos de fadas e as
fbulas com o grotesco e o obsceno, que rebaixam essa literatura clssica ao rs do cho.
Nesse sentido, este trabalho visa analisar a obscenidade presente nos poemas-fbulas,
relacionando-os s noes de grotesco e de pardia, sob a mira das reflexes sobre o assunto
de, alm dos citados, Georges Bataille ([1957] 2013), Wolfgang Kaiser ([1957] 1986), Victor
Manuel de Aguiar e Silva ([1967] 2007), Vladmir Propp ([1976] 1992), Linda Hutcheon
([1984] 1985) e Sarane Alexandrian ([1989] 1994). O objetivo analisar os sete poemasfbulas de Buflicas, aproximando-os de seus respectivos personagens-modelo nos contos de
fada, de modo a investigar o efeito literrio dessa aproximao pardica, grotesca e obscena.
Palavras-chave: Poesia brasileira contempornea Hilda Hilst. Hilda Hilst Buflicas.
Buflicas Crtica e interpretao. Obsceno literrio Buflicas.

ABSTRACT

In Buflicas, 1992, the last book that composes the obscene tetralogy of Hilda Hilst - also
incorporated by O caderno rosa de Lori Lamby, 1990; Contos descrnio & textos grotescos,
1990; and Cartas de um sedutor, 1991 , from the obscene, the author, denudes and exposes
political defects and conservative behavior. As warned by the critic and organizer of Hilsts
work, Alcir Pecora (2005), the concept of obscenity is present in the book and whole work of
the author, as the obscene is perceived in the use of words that make reference to the
excretory organs sexually used. Thus, this research is focused on the last book of the
tetralogy, in which there is, besides the obscene, the grotesque realism, studied by Mikhail
Bakhtin ([1965] 1993), in which one perceives the use of opposites and of the lower regions
of the body from where laugh and criticism arise. In the seven fable-poems that compose
Buflicas are present traditional characters of fairy tales, as the king, the queen, the witch, the
girl, the wolf, the grandmother, the dwarf, the fairy and the maiden. These characters, related
either with the good, sometimes with the evil, are commonly linked to the higher region of the
body; however, in the seven poems they appear with sexual related emotions, being thereby,
incorporated into lower region of the body, to the reproductive and excretory regions. We see,
therefore, the union of disparate elements in the composition of poems that mix genres and
high registers with the low ones, as fairy tales and fables with the grotesque and obscene that
demean this classic literature to the ground floor. In this sense, this work aims to analyze the
obscenity in this fable-poems, relating them to the notions of the grotesque and parody,
focusing reflections on the subject, besides those already mentioned, Georges Bataille ([1957]
2013), Wolfgang Kaiser ([1957] 1986), Victor Manuel de Aguiar e Silva ([1967] 2007),
Vladimir Propp ([1976] 1992), Linda Hutcheon ([1984] 1985) and Sarane Alexandrian
([1989] 1994). It will analyze the seven fable-poems Buflicas, bringing them closer to their
respective character models in fairy tales, in order to investigate the effect of this parodic,
grotesque and obscene literary approach.
Keywords: Contemporary Brazilian Poetry - Hilda Hilst. Hilda Hilst - Buflicas. Buflicas Criticism and interpretation. Literary obscene - Buflicas.

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................... 11
1.

A PALAVRA INOCULTA DE HILDA HILST ........................................................... 34


1.1. A PALAVRA OBSCENA DE BUFLICAS.......................................................... 44
1.2.

2.

O RISO OBSCENO DE BUFLICAS ................................................................ 51

BUFLICAS E AS PROFANAES PARDICAS ................................................... 64


2.1.

A INTRATEXTUALIDADE EM BUFLICAS ..................................................... 74

2.2.

A INTERTEXTUALIDADE COM OS CONTOS DE FADAS .............................. 78

3.

INVASO DOS DOMNIOS: O GROTESCO HILSTIANO .................................... 89

3.1.

A POESIA PANTAGRULICA ............................................................................ 95

3.2.

OS ANFIGURIS HILSTIANOS .......................................................................... 105

CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 115


REFERNCIAS ................................................................................................................ 120

Tu gozas ou defecas
Diante do ato sem nome
O rubro obsceno dessa orgia?
Hilda Hilst

INTRODUO

Hilda Hilst (1930-2004) encerrou seu grupo de obras obscenas1 com o livro de
poemas Buflicas, editado pela Massao Ohno em 1992. Este livro, composto por sete poemas
com protagonistas representativos dos contos de fadas O reizinho gay, A rainha careca,
Drida, a maga perversa e fria, A Chapu, O ano triste, A cantora gritante e Fil, a
fadinha lsbica , vem com suas personagens invertidas em relao ao que elas representam
na tradio: o rei, contrariando a representao da masculinidade heterossexual, gay; a
rainha casta, mas por causa da falta de pentelhos; a maga pratica aes que podem ser
consideradas politicamente incorretas contra pessoas como idosos, crianas, negros e animais,
e comenta suas travessuras em um dirio; Chapu cafetina do Lobo homo-orientado, e este
secretamente sodomizado pela av Leocdia; o ano que era abusivamente dotado, pois tinha
uma terceira perna, por um pedido mal interpretado por Deus fica sem nem um pedao de
pau; a cantora, representando a donzela, tem uma voz afrodisaca; a fada, alm de ser lsbica,
noite vira fera e pratica sexo anal nos moradores da vila, mas no final raptada por
Troncudo e deixa o lugar no esquecimento.
Hilst, ao fim de sua carreira literria, dedicou-se ao obsceno, escrita de seu pornchique, como a autora nomeou sua tetralogia. A escritora embrenhou-se na feitura de tais
textos devido a sua constatao de que o pblico no lia a sua obra, produzida em vrios
gneros, como a poesia, o teatro e a narrativa. Anatol Rosenfeld, em texto que escreveu como
prefcio para a obra Fluxo-floema, repara nesta caracterstica singular da escritora:
raro encontrar no Brasil e no mundo de escritores, ainda mais neste tempo de
especializaes, que experimentam cultivar os trs gneros fundamentais de
literatura a poesia lrica, a dramaturgia e a prosa narrativa alcanando
resultados notveis nos trs campos. A este grupo pequeno pertence Hilda Hilst que,
de incio exclusivamente dedicada poesia e mais conhecida como poeta convm
evitar o termo poetisa carregado de associaes patriarcais invadiu mais
recentemente o terreno da dramaturgia e apresenta agora o primeiro volume de
fico narrativa. Ao lado de necessidades subjetivas, so sem dvida tambm
problemas de ordem objetiva que a levaram a estender a sua arte, de forma
significativa, a domnios literrios alm daqueles da poesia. preciso somente
mencionar o fato de que uma viso antinmica da realidade se exprime de modo
mais radical e aguado no dilogo da obra dramtica, no dia-logos, isto , no esprito
dividido de um gnero que surge depois de rompida a unidade espiritual da origem;
1

A tetralogia composta por O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos dEscrnio Textos grotescos
(1990), Cartas de um sedutor (1991) e Buflicas (1992).

11

unidade todavia que ainda assim subjaz diviso j que de outro modo o prprio
dilogo se tornaria impossvel. No ser difcil mostrar que tambm as pesquisas na
esfera da prosa ficcional, tal como praticadas nas obras deste volume, quase todas
distantes dos padres do conto, obedecem a imposies objetivas (ROSENFELD,
1970, grifo do autor).

Como podemos notar nas consideraes de Rosenfeld, Hilda Hilst praticava com
maestria os trs gneros fundamentais da literatura. Sobre a poesia, Nelly Novaes Coelho
(1999), em Da poesia, faz um interessante estudo da obra potica da autora, no qual reflete
que a lrica hilstiana expressa as interrogaes de natureza fsica e metafsica do homem
contemporneo. Como sabemos, toda grande poesia carrega as interrogaes radicais do
nosso pensamento, como as dvidas de natureza fsica (psquico-ertica) e as outras de
natureza metafsica que corresponderiam busca do alm das aparncias, entre o sagrado e
profano, uma poesia que se questiona sobre os mistrios da vida, da morte, de Deus. Como
Coelho nos lembra, na poesia e na fico da escritora campinense, essas interrogaes
radicais surgem, obviamente, de uma trplice voz: a do ser humano, a da mulher e a da poeta
(COELHO, 1999, p. 67), ficando ao cargo desta ltima a tarefa nomeadora que criar o real
(p. 67).
Este mesmo raciocnio ressalta Claudio Willer (1990), em Pacto com o hermtico,
publicado no Jornal do Brasil, sobre a poesia e a prosa de Hilda Hilst, vertentes distintas, mas
complementares, a que se acrescenta ainda sua produo teatral. Para Willer, a poesia
frequentemente mais concisa e contida, com um sentido de apuro formal, mais evidente no
lrico Jbilo, memria, noviciado da paixo. esplndida nas imagens poticas do tipo
visual, particularmente em Da Morte Odes Mnimas (WILLER, 1990). J a prosa hilstiana,
por exemplo, anrquica, transgressiva, delirante. Cada livro parece fragmento de um texto
infinito (o que indicado por um dos ttulos, Fluxo-floema). Textos de inveno e ruptura,
particularmente o escatolgico (nos dois sentidos da palavra) A obscena Senhora D
(WILLER, 1990).
Hilda Hilst, em entrevistas, relata que se engajou nesses variados gneros como forma
de ter uma comunicao mais efetiva com o pblico. No perodo da ditadura militar, fez teatro
como uma necessidade de comunicao direta com as pessoas devido urgncia do contato,
como a prpria autora afirma em entrevista a Regina Helena ([1969] 2013): Ns vivemos
num mundo em que as pessoas querem se comunicar de forma urgente e terrvel. Comigo
tambm aconteceu isso. S poesia j no me bastava. [...]. A gente diz as coisas, mas as
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edies alm de serem pequenas, vendem pouco. Ento procurei o teatro (DINIZ, 2013, p.
25). Essa mesma necessidade de comunicao fez com que Hilda Hilst se dedicasse escrita
de seu teatro e de sua prosa, levou-a ao risco de elaborar as suas obras obscenas, sobre as
quais vrios estudos foram produzidos.
Holocausto das fadas: a trilogia obscena e o carmelo buflico de Hilda Hilst, de
Deneval Siqueira de Azevedo Filho, dissertao defendida em 1996, um importante estudo
sobre o projeto polmico de Hilda Hilst, pois foi um dos primeiros a analis-lo. Azevedo
Filho chega concluso de que o projeto pornogrfico de Hilda Hilst havia fracassado na sua
inteno pornogrfica e comercial. O crtico argumenta que, ao escrever a famosa srie
obscena, Hilda Hilst pretendia que suas obras fossem mais vendidas, mas ocorre o contrrio;
um exemplo disso Cartas de um sedutor, que encalhou nas livrarias, sendo devolvida
escritora a quantidade de mil livros (AZEVEDO FILHO, 1996, p. 23-39). Para esse crtico, ao
sofisticar literariamente um gnero textual como a pornografia, a autora esvazia sua inteno
genolgica, que a excitao sexual dos receptores. A razo disso est no fato de que o
preciosismo vocabular e o excesso desmotivam, ento, a recepo, pois a matria-prima
menosprezada (AZEVEDO FILHO, 1996, p. 25).
Sobre a pornografia, Lynn Hunt, em Obscenidade e as origens da modernidade,
1500-1800, destaca a importncia do sculo XIX para sua definio:
Em termos lingusticos, os meados do sculo XIX foram cruciais. Em 1857, a
palavra pornografia apareceu pela primeira vez no Oxford English Dictionary, e a
maioria de suas variaes porngrafo e pornogrfico datam do mesmo
perodo. Esses verbetes surgiram na Frana um pouco antes. Segundo o Trsor de la
langue franaise, a palavra pornographe apareceu primeiro em 1769, no tratado de
Restif de la Brettone (sic) intitulado Le Pornographe, aludindo a textos sobre
prostituio, enquanto pornographique, pornographe e pornographie, no sentido de
escritos ou imagens obscenos, datam de 1830 e 1840 (HUNT, 1999, p. 13-14, grifos
do autor).

Apesar de as fontes tericas que tratam da pornografia e de sua correspondente


proibio serem encontradas desde 1500, somente no sculo XIX que se chegou a uma
concluso sobre o que seria pornografia. Entende-se o conceito, portanto, como o de uma
escritura prostituda. O escritor, a partir dessa definio, se renderia ao mercado e faria
literatura de baixa qualidade. Concepo, alis, adotada pela maioria dos crticos de Hilda
Hilst.

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Observa-se que, ao reelaborar o gnero pornografia, parodiando-o tambm, Hilda


Hilst desloca o verdadeiro objetivo desse texto, que o mercado de consumo. No mesmo
instante em que a obra agrada a certos leitores, provocando-lhes o riso, desagrada muito a
outros, frustrando-os em sua expectativa de um livro conforme o gnero (AZEVEDO FILHO,
1996, p. 27). A escritora, ento, segundo as premissas de Deneval de Azevedo Filho, fracassa
na comunicao com o pblico leitor de livros pornogrficos devido ao intelectualismo e
metalinguagem que permeiam toda a srie obscena hilstiana.
O pesquisador tambm discorda da leitura de que os livros pertenam a uma srie
temtica, pois, segundo ele, no h continuidade do segmento esttico e muito menos
temtico para se embasar a informao dada por variados crticos de que os quatro livros
fariam parte de uma tetralogia obscena (AZEVEDO FILHO, 1996, p. 103). Ao no
reconhecer o projeto obsceno, Azevedo Filho desconsidera Buflicas em sua pesquisa e
apenas menciona a obra, no segundo captulo de seu trabalho, como uma brincadeira (p.
13), no acrescentando observaes sobre o nico livro obsceno escrito em versos.
Ronnie Francisco Cardoso (2007, p. 14), por sua vez em trabalho que comentaremos
com mais detalhes posteriormente , considera Buflicas como o encerramento do projeto,
mas no as inclui em sua dissertao, devido ao fato de destoarem do formato prosa, j que
so versos em torno da matria baixa e esto marcados pelo gnero burlesco de maneira mais
acentuada que nos livros da trilogia em prosa. Alm disso, para o pesquisador, nessa obra
predomina um tom zombeteiro, e nela Hilst se utiliza de recursos cmicos para atenuar o
aspecto ertico que marca subversivamente as obras do projeto obsceno da autora.
No obstante o cuidado com que Cardoso elabora seu raciocnio, discordamos de suas
consideraes a respeito de Buflicas, uma vez que, apesar da escrita em versos, h uma
evidente narrativa nos sete poemas que compem o livro, que se desenvolve em forma de
fbula com os personagens dos contos de fadas. Portanto, o fato de o crtico, em seu estudo,
no ter considerado a obra como parte da tetralogia devido ao seu formato potico, isto , em
forma de poema, parece-nos injustificado.
Como podemos verificar nos argumentos desses dois crticos, h duas vises acerca da
concepo da tetralogia: uma que a aceita, mas no a estuda detalhadamente; e outra que a
desconsidera por pensar que as obras no tm uma unidade temtica. Defendemos,
diferentemente deste segundo ponto de vista, que existe uma ligao estrutural entre as obras
que comporiam a tetralogia, pois estas estariam unidas medida que, em todas, Hilst se utiliza
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da matria marcadamente obscena para a composio de crticas sociais e, sobretudo, ao


mercado editorial.
No ensaio Da medida estilhaada, de Eliane Robert Moraes (1999), a pesquisadora
nos deixa a par de caractersticas existentes em toda a escrita de Hilst, apesar de no
mencionar Buflicas em seu trabalho. Moraes parte seu estudo de uma parbola retirada de
Fluxo-floema, e encaminha sua leitura do erotismo na obra de Hilst, afirmando que, depois
que a autora adentrou no mundo da prosa, temas tratados em suas narrativas impregnam sua
poesia. Esse temrio seria dividido em trs assuntos principais: o desamparo humano, o ideal
do sublime e a bestialidade. Na anlise da lrica da autora empreendida por Moraes, nos
poemas que trabalham nas bordas do sentido, ela vai colocar a linguagem prova de um
confronto com o vazio no qual o eterno confunde-se irremediavelmente com o provisrio e a
essncia resvala por completo no acidental (MORAES, 1999, p. 118). Para Moraes, na
literatura de Hilda Hilst, equilibram-se o alto e o baixo; esta autora ora descreve a matria
divina como luminosa e construtora do mundo, ora como um porco ou um escarro (HILST,
2011, p. 20-37), conciliando, desse modo, a matria divina com o grotesco, o blasfematrio,
causando estranhamento no leitor, devido associao entre Deus e porco. Em alguns livros
seus, como A obscena senhora D, por exemplo, a destituio da figura divina como modelo
ideal do homem provoca no leitor cristo uma desalentada conscincia do desamparo
humano, na qual possvel reconhecer os princpios de um pensamento trgico, fundado na
interrogao de Deus diante de suas alteridades (MORAES, 1999, p. 119).
O bestialgico de Hilda Hilst, segundo Moraes, compe-se dos bichos mais prximos
da espcie humana (1999, p. 121), o que diferencia o seu dos outros tipos de bestialgicos
existentes na literatura, pois em Hilst o uso dos animais tem como proposta indagar sobre a
identidade entre o homem e o bicho na sua dimenso mais prosaica (MORAES, 1999, p.
121). O animal, como expe Moraes, seria um semelhante do homem.
Talvez por isso, uma das observaes da crtica literria recai sobre a importncia da
boca na obra de Hilst, pois, segundo Moraes, a boca na obra da autora serve tanto para cantar,
como para roncar. Em relao a tal dualidade o sublime humano do canto e o grotesco
animalesco do roncar presente no trabalho literrio de Hilda, podemos aliar o devorar
personagem de um dos contos de Stamatius em Cartas de um sedutor, que devora os bicos
dos seios de sua esposa; a boca, portanto, serve como entrada de alimentos e como sada

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(vmito), e serve para cantar e roncar, falar e cuspir, beijar e escarrar (MORAES, 1999, p.
124).
Em Hilda Hilst e a arquitetura de escombros, de Vera Queiroz (2004), trabalho
acerca da recepo dos textos hilstianos a partir de entrevistas, de artigos e da prpria obra da
autora, a pesquisadora atribui o desconhecimento de seus livros por parte do pblico a trs
fatores: a linguagem e o pensamento complicados; a Casa do Sol, refgio que a tirou dos
holofotes literrios e a deixou escondida; o prprio projeto literrio de escrita da autora que,
mesmo com a proposta de serem populares, abusava da profundidade de pensamento, do
escatolgico e do grotesco. Devido a essa densidade, o leitor brasileiro, conservador e
mediano em seus gostos literrios, brutalizado por uma cultura televisiva de baixssima
qualidade e bastante precria (QUEIROZ, 2004, p. 68), no consegue ler os textos
complexos em que a autora rompe os padres do bem escrever tornando-se, portanto,
transgressora. Alm disso, quando Hilst aparece em entrevistas e em matrias de jornais, ela
influencia a maneira como a sua obra ser recebida pela crtica, na medida em que retrata as
mazelas sofridas por seus narradores escritores que descrevem suas experincias com a
escrita, como Lori, Craso, Stamatius, Vittorio, entre outros.
Nas entrevistas de Hilda Hilst, como ressalta Vera Queiroz, percebe-se a indignao
da autora por no ser lida devidamente pelo pblico, isso se deve conscincia do valor de
sua obra, como podemos constatar na entrevista concedida ao Correio Popular, em 1994:
Nos meus livros erticos, que foram classificados como porns por alguns, os
personagens tm problemas existenciais. De repente, no meio de uma orgia, o
sujeito est se perguntando: o que eu estou fazendo? O sexo nestes livros o veculo
para puxar o vestido do divino, um meio para se enxergar a nfima luz
(MARTINELLI, 1994).

As entrevistas de Hilda Hilst, para Queiroz, de certo modo, tornaram sua figura mais
conhecida do que as obras. Isso porque a autora interagia com o futuro leitor, sarcasticamente,
cheia de ironia a falar de seus trabalhos obscenos. Outro ponto que Vera Queiroz ressalta, a
partir das entrevistas, a falta de interesse dos editores, o que levaria o pblico a desconhecer
ainda mais a literatura hilstiana, pois ela no era suficientemente divulgada. Disso resultariam,
alis, as pssimas condies financeiras em que a autora viveu.
Luciana Borges (2006), em Sobre a obscenidade inocente: O caderno rosa de Lori
Lamby, de Hilda Hilst, investiga a transgresso em O caderno rosa de Lori Lamby, e
16

desmonta vrios aspectos polmicos que a crtica anterior mantinha a respeito da obra, como o
de que a escritora incentivara a pedofilia, e que o livro era, por conseguinte, abjeto. Para a
estudiosa, no romance se encontra a inteno pornogrfica, conceito que Susan Sontag
sustenta em seu ensaio Imaginao pornogrfica (1987): a literatura desse gnero deve
suscitar o desejo em seus leitores. Borges defende que, ao contrrio do que ocorre na
pornografia, na tetralogia obscena hilstiana, a descrio minuciosa das cenas e das
performances sexuais, a aparente bandalheira esconde uma profunda reflexo do papel do
escritor e da literatura (BORGES, 2006, p. 27). Como Borges afirma, falar de sexo j , por
si mesmo, uma transgresso (p. 23); indo alm desse ato transgressor, no Caderno rosa, a
escrita passa por todas as barreiras, por temas espinhosos como a prostituio de uma menina
de oito anos. Devido a esse fato, leitores crticos da poca chamaram o romance de sujo,
mas se o tivessem lido at o final, como nos alerta Borges, esses leitores perceberiam que
haviam cado numa armadilha textual, pois Lori desvenda o mistrio: as situaes, as cenas,
as personagens seriam fruto da imaginao frtil de uma menina que queria ajudar o pai
escritor. Logo, a obscenidade, como ressalta a pesquisadora, reside em se apropriar dos
desvios humanos de comportamento para refletir sobre a escrita da literatura e do tipo de
literatura que se constri como vendvel e de qualidade (BORGES, 2006, p. 30).
Em Na falha da gramtica, a carne: a pornografia em Hilda Hilst, pesquisa de
mestrado desenvolvida por Ronnie Francisco Pereira Cardoso (2007), h trs temas que so
trabalhados: o fracasso pornogrfico, a profanao e a perverso. No primeiro momento,
Francisco investiga a ideia de fracasso pornogrfico, defendida por Deneval de Azevedo
Filho (1996), em seu Holocausto das fadas, e lhe contrrio, pois a concepo de Azevedo
Filho parece desconsiderar justamente a potencialidade que os recursos estticos utilizados
por Hilda Hilst teriam para renovar o gnero (CARDOSO, 2007, p. 35). Cardoso apresenta
concepo terica similar de Jean-Marie Goulemot (2000), em Esses livros que se lem com
uma s mo. Em uma nota de seu estudo, Goulemot diz que a evoluo esttica da
pornografia lhe d graa, virtuosismo em palavras, entretanto, perde em eficcia
pornogrfica (GOULEMOT, 2000, p. 51). Eficcia entendida no sentido de excitar
sexualmente o leitor; logo, seguindo os argumentos de Goulemot, podemos compreender a
tetralogia obscena de Hilda Hilst como uma evoluo esttica da pornografia, o que negaria a
concepo de fracasso pornogrfico defendida por Azevedo Filho, embora este crtico tenha
pensado essa noo em termos de eficcia de mercado editorial, e no de evoluo do gnero.
17

Para comprovar que no houve fracasso pornogrfico, Ronnie Cardoso recorreu a


depoimentos da prpria Hilda Hilst, artigos de jornais e ensaios acadmicos que tentaram
delimitar o projeto obsceno de Hilst a partir de contraposies binrias, e desconstruiu-os
criticamente. Um ponto utilizado para que ele criticasse a concepo de fracasso foi o
conceito de Potlach, constante em A parte maldita, de Georges Bataille. Para Ronnie
Francisco, o termo, que significa perder, vai impulsionar o movimento, j em curso desde
as primeiras obras em prosa da escritora, de rebaixamento da sua escrita em direo ao baixomaterial e corporal (CARDOSO, 2007, p. 27).
Apesar de considerarmos a dissertao de Deneval de Azevedo Filho como um divisor
de guas na crtica brasileira em relao ao conjunto de obras obscenas ou pornogrficas de
Hilda Hilst, cremos que as crticas de Ronnie Francisco so relevantes no que concerne
defesa do avano esttico que a pornografia pode revelar na tetralogia. Alm disso, como
esclarece Cardoso, a literatura pornogrfica de Hilst fracassa devido ao inexistente
investimento mercadolgico para obras inovadoras. Para Cardoso, as consideraes de
Azevedo Filho sobre o fracasso decorreram do preconceito com relao pornografia, uma
vez que este crtico a concebe como um subgnero que nunca poder desenvolver-se
esteticamente.
Portanto, a crtica especializada, no acostumada com as inovaes estticas que Hilda
Hilst realizou nas obras obscenas, no conseguiu perceb-las com os olhos despidos do
preconceito. Francisco, assim, engaja-se na amplificao do conceito de pornografia que, nos
outros crticos literrios, estava impregnado do contexto da indstria cultural e da lgica da
cultura de massa.
Na contramo desse contexto e dessa lgica, Hilda Hilst, inspirando a chave de leitura
e o pensamento de Ronnie Cardoso, afirma, em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em
1990, que sua inteno no era ganhar dinheiro, mas apenas ficar conhecida:
Eu no fiz isso para ser mais vendida. Escrevo h 40 anos e nunca ganhei nada com
o meu trabalho. Muito menos estou preocupada com a fama e a glria. Esse livro
uma banana pra acordar o leitor que est dormindo. Eu quis mesmo dar essa porrada
na cara. O editor brasileiro esse nojo. Eles tm horror quando um livro tem
profundidade. Quantas vezes s faltaram me cuspir na cara (ARAUJO, 1990).

A fim de alcanar tal objetivo, a escritora paulista inova e, para que isso ocorra,
profana textos consagrados da literatura, como: contos de fadas, textos de Gustave Flaubert,
18

Henry Miller, George Bataille, Machado de Assis, Jos de Alencar, James Joyce, Guimares
Rosa, dentre outros, e trabalha temas filosficos como a brevidade da vida, a morte, e o
porqu da existncia humana em meio s transas de seus personagens. justamente essa
profanao o outro tema abordado por Ronnie Francisco em sua dissertao. O conceito
extrado do filsofo Giorgio Agamben, para quem profanar dar novo uso, ou melhor,
restituir ao domnio dos homens aquilo que foi separado pela consagrao (2007, p. 65).
Profanar os dispositivos capitalistas seria por isso uma tarefa poltica, pois a autora arranca
da pornografia o uso que eles haviam capturado. Para tanto, no suficiente abolir, cancelar
ou transgredir os dispositivos de normatizao, h que torn-los inoperantes (CARDOSO,
2007, p. 42). Para tornar a pornografia sem efeito no regime capitalista, necessrio, segundo
Cardoso, resgatar o seu contedo esquecido, deixado de lado pelos dispositivos
econmicos. No caso das obras da autora escritas em prosa, no bastava fazer uma crtica
pornografia, era preciso fazer um movimento de retorno afirmativo a ela. Assim, nomear o
que escrevia de pornogrfico foi o primeiro gesto profanatrio da escritora (CARDOSO,
2007, p. 42).
Entretanto, esse ato poltico de Hilda Hilst no vai ser compreendido pelos crticos,
que, devido provocao da escritora, ficaram indignados; alguns que eram amigos ntimos
da autora romperam com ela, uma vez que Hilst profana com o seu projeto pornogrfico um
espao sagrado, o literrio (CARDOSO, 2007, p. 43). Como salienta o pesquisador, ao
mesmo tempo em que esse ato profanador fez com que ela ganhasse um alcance maior na
mdia, as provocaes tambm causaram uma certa indignao em muitos de seus
admiradores, afinal no se transgride um espao impunemente, no obstante, muitas perguntas
vieram do incmodo criado por Hilda Hilst (p. 43). A escritora, desse modo, sujou com a
utilizao do grotesco, da stira e da pornografia, a sua escrita, at ento considerada
elevada e sria.
O terceiro aspecto estudado por Ronnie Francisco o imaginrio perverso presente na
tetralogia de Hilda Hilst. Cardoso ressalta a referncia a diversos livros do cnone como uma
escrita baseada no incesto e, consequentemente, perversa, da qual exemplo Lori Lamby, que
teria uma relao com seu pai atravs do plgio (CARDOSO, 2007, p. 37-39). Por fim, no
ltimo desvio, associando a pornografia hilstiana ao conceito de rizoma de Deleuze, para
Francisco, a construo do contedo agenciada por uma enunciao rizomtica, na qual se
encadeiam intertextualidades. Entre outras referncias literrias e filosficas, entre
19

interrupes e interlocues, reais ou delirantes (CARDOSO, 2007, p. 94). Segundo o


crtico, a intertextualidade na obra de Hilda Hilst formaria um rizoma a partir do momento em
que se utiliza da intertextualidade e se mistura o discurso filosfico com o literrio, formando
um discurso heterogneo (p. 94).
Por isso Ronnie Francisco deu tamanha importncia aos poemas da priapeia em
relao ao projeto literrio de Hilda Hilst. Em seu estudo, Cardoso ressalta que o conceito de
pornografia no aplicado s priapeias, um tipo de poesia praticada pelos gregos e romanos,
que era definida tanto pelo ritmo (o metro priapeu) quanto pela sua matria (relacionada com
as caractersticas do deus Prapo). Inicialmente, para que a priapeia se consolidasse como
gnero de representao, foi necessria a estrita adequao do metro priapeu matria
pripica (CARDOSO, 2007, p. 12). Sendo assim, Cardoso prope uma semelhana apenas
terica entre as priapeias e o projeto pornogrfico de Hilda Hilst, uma vez que, para o crtico,
alm de essas obras terem servido de inspirao a Hilst, elas foram lembradas para ressaltar
dois pontos caros trilogia pornogrfica da escritora (p. 12), pois tinham como inteno
evidenciar o artefato plural e o estilo baixo corporal que no necessariamente determina a
baixa qualidade literria, como a prpria srie obscena da autora comprova.
Ana Chiara (2008), em Piercings na lngua: Hilda Hilst e Kiki Smith, estuda a obra
Fluxo-floema, de Hilda Hilst, valendo-se das reflexes de Deleuze e Guattari sobre o corpo
sem rgos, constantes em Mil plats, para apontar a possibilidade de leitura das obras de
Hilda Hilst e da artista plstica Kiki Smith, que fazem uma tentativa de produzir uma arte sem
rgos, na qual os sentidos estabilizados so transgredidos, violentados e dissolvidos;
supera-se a noo de organismo, segundo Artaud/Deleuze, desarticulando-se os limites
binrios: dentro/fora, interior/exterior (CHIARA, 2008, p. 179-180). A estudiosa refere a
desarticulao dos binarismos dentro-fora, exterior-interior como aspecto fundamental do
empreendimento de ambas as artistas rumo construo desse corpo que se destitui de seus
rgos, constituindo uma linguagem flexvel e virgem de onde, em galope, disparam e
mergulham de cabea no excesso e no impossvel (CHIARA, 2008, p. 180). Essa anlise
compreende a profanao agambeniana, como a abertura de uma forma especial de
negligncia, de desatamento dos liames, por meio da qual essas duas artistas profanam os
sentidos dogmticos, deslocam o carter totalitrio da venerao do sagrado para o campo da
experimentao da matria, contagiam, deslocam, subvertem, sujam os elementos sagrados
(CHIARA, 2008, p. 183). Ao profan-los, portanto, Hilst e Smith dariam novas acepes e
20

usos para a arte, o dogma e a escritura, enfrentando a matria em seus estados incomuns.
Chiara foge da polarizao viciante das anlises, da dualizao, de forma maniquesta, do
mercado e da arte. Apesar de o estudo no ter como corpus as Buflicas, consideramos que o
pensamento desenvolvido pela estudiosa pode ser expandido para todo o conjunto da obra da
escritora.
Eliane Robert Moraes (2008), em A prosa degenerada de Hilda Hilst, analisa o
romance Contos descrnio Textos grotescos. A pesquisadora afirma que a escritora utilizase de citaes da chamada alta cultura, como: Yeats, Kierkeaard, Pound, Lucrcio, Byron,
Catulo, Guimares Rosa e Euclides da Cunha, juntamente com ttulos de obras cannicas,
como: Ana Karerina, Morte em Veneza e Hamlet, associando-os ao ato sexual. Para Moraes,
Hilda Hilst se aproveita do esprito satrico que caracteriza as cantigas de escrnio da
tradio portuguesa (MORAES, 2008, p. 12), lanando mo da pardia de variados gneros e
formas discursivas como dilogos, poemas, textos dramticos, fluxos de conscincia,
receitas, comentrios, fbulas, piadas, fragmentos de toda ordem (p. 12) com o intuito de
criticar o lixo cultural produzido e consumido no nosso pas. nesse hibridismo de gneros
que se encontra, segundo Moraes, o poder de subverso dos livros pornogrficos, pois
colocam em xeque os cdigos do sistema literrio vigente em cada sociedade (p. 13). Isso
acontece devido dissoluo das fronteiras entre o baixo e o alto, da grande literatura e da
literatura menor, resultando na aproximao dessas obras da metafsica, emparelhamento de
que decorre seu carter transgressor.
No artigo O caderno manchado de Lori Lamby: tradio e ironia, Giselle Sampaio
Silva (2012) considera a pornografia, nessa obra de Hilda Hilst, como uma ironia do romance
pornogrfico. O romance, para Silva, est baseado numa base dupla: interno e externo. O
primeiro contedo propriamente esttico relacionado literatura pornogrfica, j o
segundo, o externo, estaria voltado para a crtica s circunstncias de um cenrio literrio
moldado por interesses mercadolgicos (SILVA, 2012, p. 29). Giselle Silva defende a
discusso sobre o mercado de livros em contraponto qualidade esttica; essa leitura concebe
a ironia como a estratgia de Hilda para criticar a lgica mercadolgica, emaranhado em que
se encontraria a literatura. Trata-se, no caso dO caderno rosa de Lori Lamby, de uma obra
que se assumiria concessiva ao mercado, mas em que se poderia notar uma voz de denncia
da perverso das circunstncias, de crtica ao consumismo, um grito contra a perversidade da
transformao da arte em mercadoria (SILVA, 2012, p. 34). A estudiosa descreve as
21

mscaras do autor, usando como exemplo o pai de Lori e sua postura frente desgraada,
circunstncia em que se encontra enquanto escritor, e propondo que suas atitudes
extremadas, violentas, exageradas e sua vociferao contra a lgica de mercado so incuas,
vazias, chegam a ser risveis, se rendem seduo do capital, e a caracterizao do
personagem tende caricatura e ao escrnio (SILVA, 2012, p. 35). Essa maneira de ver o pai
de Lori o que caracteriza tambm o modo de olhar da crtica literria, olhar esse que j
afronta o texto pornogrfico como menor, estritamente comercial. Por isso, talvez, a
dificuldade de grande parte dos crticos de chamar a tetralogia de pornogrfica. A utilizao
da pardia o outro ponto a que Silva d destaque para a construo dos textos; para a
pesquisadora, a pardia teria o papel de demonstrar a apropriao dos textos cannicos e da
herana cultural, devido utilizao de variados gneros textuais. Entretanto, apesar de
analisar a obra tambm numa esfera da pardia, Silva explora pouco a inovao do gnero
pornogrfico e o avano transgressor realizado pela obra de Hilda Hilst.
Na dissertao Ertica? No, virtica: Hilda Hilst e a literatura sob o signo do
capitalismo, Victor Camponez Vialeto (2013) prope uma nova viso e novos seguimentos de
leitura da tetralogia obscena de Hilda Hilst. A partir dos conceitos de Gilles Deleuze e Flix
Guattari, presentes nos cinco volumes de Mil plats e Kafka: por uma literatura menor,
Vialeto analisa O caderno rosa de Lori Lamby e cria o conceito de sada virtica, em que a
literatura pornogrfica de Hilda Hilst, para escapar da armadilha capitalista e das questes de
mercado, impermearia no discurso e proliferaria a crtica feito vrus, sendo que, uma vez
instalada, sua proliferao indefinida, no se sabendo onde acabar. Dialogando com o
conceito de estado de exceo, que se tornou a regra geral da humanidade, presente na
oitava tese de Walter Benjamin, em Sobre o conceito de histria, Victor Vialeto (2013, p.
62) apresenta o livro de Hilda Hilst como uma ereo, representando a potncia de uma obra
que condiz com o estado de exceo, estando, portanto, na hora do mundo.
Nesse painel abreviado dos estudos sobre a literatura pornogrfica de Hilda Hilst,
encaixa-se e interessa-nos o livro que, para alguns, completa o grupo de obras obscenas da
poeta,

Buflicas,

em

que

sete

poemas-fbulas

escracham

obscenamente

(ou

pornograficamente) personagens e situaes caros aos contos de fadas.


Em Buflicas, cujo ttulo j indica a mescla de elementos dspares, temos a juno da
palavra Bufo com Buclicas, formando-se um neologismo. Jan Bremmer, em Piadas,
comedigrafos e livros de piadas na cultura grega antiga (2000, p. 27-50), estuda o papel do
22

bufo na Antiguidade. Era chamado de gelotopoios produtores de risos, em traduo


literal , que, futuramente, daria origem aos bufes como conhecemos hoje. Esse personagem
cmico seria um imitador dos movimentos humanos, mas em forma grotesca, para com isso
conseguir a derriso desejada (BREMMER, 2000, p. 28). Com o passar do tempo, essa figura
da Antiguidade, que Bremmer chama de bufo, seria comparada tambm ao Klax, o adulador
tagarela que se infiltrava nos jantares e festas da alta sociedade a contar pilhrias com a
inteno de comer de graa (2000, p. 30). Dessa forma, esse tipo humano, que muito
importante para a caracterizao da comdia, foi comparado aos parasitos (algum que come
na mesa de outro) e aos bomolochos (aquele que arma ciladas em altares); o termo no seria
estranho devido ao fato de os gregos consumirem a carne dos sacrifcios (BREMMER, 2000,
p. 31). Para Bremmer, o costume de trocar alimento por piadas era provavelmente antigo,
porque o verbo correspondente bomolocheuo significa bancar o bufo ou entregar-se
obscenidade (p. 31). O estudioso observa que, com o passar do tempo, os bufes de
sucesso e notoriedade se transferiram dos altares dos devotos para as salas de jantar mais
extravagantes da elite ateniense (p. 31).
Na Idade Mdia o termo tem suas origens na bufonaria da cultura cmico-popular.
Segundo Mikhail Bakhtin, os bufes so figuras que atuam como
veculos permanentes e consagrados do princpio carnavalesco na vida cotidiana
(aquela que se desenrola fora do carnaval). Os bufes e bobos, como por exemplo o
bobo Triboulet, que atuava na corte de Francisco I (e que figura tambm no romance
de Rabelais), no eram atores que desempenhavam seu papel no palco [...]. Pelo
contrrio, eles continuavam sendo bufes e bobos em todas as circunstncias da
vida. Como tais, encarnavam uma forma especial da vida, ao mesmo tempo real e
ideal (BAKHTIN, 1993, p. 7).

A outra camada do neologismo buflicas se baseia em buclico. Esse termo tem o


significado gerado pela palavra grega Boukoliks, relativo aos pastores, vida pastoril
(MOISS, 2004, p. 58). Desse modo, trata-se de um gnero literrio ou modalidade que
abrange as obras que gravitam ao redor de temas campestres e pastoris, como a cloga. A
referncia central do bucolismo literrio a obra de Virglio (sc. I a.C.), Buclicas, que
adotou o padro campestre (MOISS, 2004, p. 230). Segundo Glria Braga Onelley (2007,
p. 1), em Tecrito e Virglio: um dilogo Buclico, Virglio teria escrito os dez poemas de
cunho pastoril entre 41 e 37 a.C. e, aps a sua morte, foram reunidos em um livro conhecido
por Buclicas (Boukolik), termo grego que significa cantos de boiadeiros. Essa poesia
23

buclica ficaria conhecida depois disso como a que compreendia a forma de composio em
que o protagonista era o bouklos, boiadeiro ou vaqueiro (ONELLEY, 2007, p. 1). A
estudiosa ressalta que a palavra buclica entendida de forma abrangente, incluindo qualquer
tipo de pastores, pois nos poemas figuravam como protagonistas os guardadores de gado
fossem eles boiadeiros, cabreiros, vaqueiros, pastores de ovelhas ou camponeses, devendo
mover-se num cenrio campestre (ONELLEY, 2007, p. 1).
O neologismo do ttulo do livro de Hilda Hilst, segundo Tatiana Franca Rodriguez,
uma provocao aos seus leitores, pois o narrador arruna, atravs da ironia, os costumes e
valores da sociedade em decadncia. Assim, quando junta no neologismo o par risvel (bufo)
e srio (buclicas), a poeta extrai no jogo de palavras as relaes morfolgicas e semnticas
que do origem ao ttulo do livro, denotando
o que se desdobrar nos poemas como sistema de pensamento crtico e remete-nos
epgrafe colocada na pgina de rosto de Buflicas, o provrbio latino Ridendo
castigat mores, que deixa entrever o dilogo da peculiar lgica dos bufes, atravs
da stira, com a racional doutrina de Lucrcio. Curiosamente, o lema latino,
relacionado ao ttulo da obra, leva a intuir o que se concretizar a partir da leitura
dos poemas e como se constatar no exerccio da sua anlise: a prudncia est sob o
jogo da zombaria (RODRIGUEZ, 2007, p. 16-17).

Sobre a epgrafe utilizada em Buflicas, Hilda Hilst parece ter deixado uma
explicao em sua crnica Ridendo castigat mores (2005, p. 130-135), publicada em 31 de
outubro de 1993, no jornal Correio Popular e reunida no livro Cascos & carcias & outras
crnicas. No texto, Hilst brada contra a conservadora sociedade campineira, devido
mudana de nome da Casa de Cultura que, por indicao da autora, se chamaria Casa do
Prazer. Por causa das reclamaes do povo, ou melhor, da alta sociedade campineira que
associava o prazer obscenidade, a casa passa a se chamar Casa de Cultura do Proena, e
Hilda desabafa toda a sua indignao a partir de um comentrio da fala de uma senhora
atoleimada, a qual afirma que seu marido no a deixaria frequentar um curso num lugar com
o nome de Casa do Prazer. Hilda retruca, em sua crnica, que o marido no a deixar dilatar
o significado de sua vida com livros e Arte, pois ele gosta mesmo de v-la arteira e
afagando-lhe a estrovenga a cada noite bocejante quando o tdio invade nossas alminhas
simplrias e magras (HILST, 2005, p. 130-131).
Alcir Pcora (2013), em As irms Bront do Brejo, ressalta que, nas crnicas, o
acento recai sobre o falso moralismo provinciano que sobrevive de aparncias e que Hilda
24

Hilst subverte a partir do emprego do palavro e do escatolgico, utilizando-os para o mesmo


fim: a provocao e o gosto perverso de repreender, pelo riso, a falsidade matuta e
conservadora, exposta de maneira caricata e ridcula (PCORA, 2013, p. 63).
Em Buflicas, assim como em suas crnicas, Hilda Hilst utiliza-se da obscenidade, da
pardia, do riso e do grotesco para ironizar a sociedade brasileira. Segundo Paulo Roberto
Sodr, ao utilizar a epgrafe latina Ridendo castigat mores, Hilda Hilst inverte o que a mxima
proferia tradicionalmente, pois se antes a frase dizia para castigar com o riso os costumes
ruins, do ponto de vista de uma elite cultural detentora da verdade, agora ela tem como
inteno castigar os provincianos, moralistas, reacionrios, conservadores (SODR, 2009,
p. 56).
Nesse sentido, o neologismo utilizado por Hilst procura abranger aspectos dspares da
tradio literria: o livro de Virglio, de extrao culta, e a bufonaria, de extrao cmicopopular. Deneval Siqueira de Azevedo Filho (2007, p. 140), comentando o neologismo do
ttulo, diz que, ao utilizar esses aspectos, o bufo e o gnero pastoril, Hilda rel e de forma
absolutamente criativa abusa do humor poltico dando um tom forte de ressignificncia, ora
ad absurdum, a alguns contos de fadas cannicos e a outros textos e fbulas mrbidas de
desvairada hipocrisia. Assim, segundo o autor, a escritora vai destruindo, sem nenhum
pudor, esses gneros literrios que h geraes so dedicados s crianas e a sua formao
escolar e tica.
Apesar de suas inovaes textuais em refinada produo literria, Hilda Hilst
provocou polmica na crtica quando publicou seus quatro livros obscenos. O interesse da
autora era atrair a ateno do pblico para sua obra com a classificao editorial de porn,
que lhe foi dada na poca. Contudo, quando ela lanou o primeiro livro da srie, assustou at
mesmo quem j gostava de seus escritos, como observamos em sua entrevista dada revista
Cult (1998):
Jorge Coli diz que considera meu trabalho uma coisa deslumbrante, ele me faz
elogios maravilhosos. Mas quando eu mandei para ele as Cartas de um sedutor
livro que eu gostei muito de escrever e possibilitou que me familiarizasse com uma
linguagem mais agressiva ele me disse: Hilda, depois de ler o livro, eu fiquei
doente oito dias (HILST, 2013, p. 178).

Fica evidente que, ao anunciar pela mdia seu projeto de escrever as obras que
compem a famosa tetralogia obscena, Hilda Hilst pretendia, como vimos, que suas obras
25

fossem lidas; entretanto, as crticas em jornais e revistas massacraram a escritora, dando a


entender que a santa tirara a saia e que se vendera para a pornografia. Em outra entrevista,
concedida ao Jornal do Brasil, Hilst desabafa sobre a perseguio miditica: A playboy deu
uma nota horrvel. A folha fez uma matria escandalosa. O crtico Lo Gilson Ribeiro, que
sempre acompanhou e falou do meu trabalho, ficou de mal comigo. Hilda, isso um lixo. Foi
um suicdio intelectual (ARAUJO, 1990).
A pornografia, que na poca era o discurso mais rentvel da indstria cultural, foi o
gnero escolhido por Hilda Hilst para ser reconhecida e para inovar-se no fazer literrio. No
entanto, grande parte da crtica enxergou seu projeto literrio como estritamente comercial e,
portanto, vendvel, como se Hilst estivesse prostituindo a sua escrita literria, o que se
observa nos ttulos das matrias da poca, nas quais supunham a venda da escritora para o
mercado editorial, sendo esse pensamento alimentado, s vezes, pela prpria performance da
escritora em entrevistas e falas sobre a sua tetralogia obscena. Contudo, ao contrrio do que
afirmavam esses crticos, o projeto vingou e apontado pela crtica mais recente como um
dos mais inovadores da autora.
No artigo Hilda se despede da seriedade, de Humberto Werneck, publicado no
Jornal do Brasil, ressalta-se o horror de leitores qualificados, como escritores, editores e
crticos literrios, ao lerem sua primeira obra obscena:
Se o objetivo era chocar, foi alcanado em cheio, a julgar pela reao das pessoas a
quem mostrou os originais. Um amigo, ela conta, o pintor Wesley Duke Lee, achou
O caderno rosa um lixo absoluto. Outro, o mdico Jos Aristodemo, ex-secretrio
da sade do estado de So Paulo, considerou que uma poetisa to boa nunca
deveria enveredar pelo porn. A escritora Lygia Fagundes Telles, com quem troca
confidncias e produo literria desde os anos 50, admite que ficou meio
assustada, aturdida. O editor Caio Graco Prado, da Brasiliense, gostou do que leu,
mas temendo um escndalo, no se aventurou a publicar. No tive coragem,
confessa. Mesmo o crtico Leo Gilson Ribeiro, h longos anos uma voz praticamente
solitria na defesa da obra de Hilda, no pareceu entusiasmado com a mudana de
rumos. Ser que o que eu estou escrevendo no suficientemente porn?, indaga
Hilda Hilst com um sorriso de menina travessa (WERNECK, 1990).

O pensamento de que a escritora havia se vendido propagado pela prpria Hilda


Hilst em suas entrevistas, ao dizer que a santa tirou a saia ou que s escreveria
bandalheiras para vender mais , embrenhou-se nos cadernos culturais, fazendo com que
sua obra ganhasse mais leitores do que estava acostumada. Afirmaes como essas, sobre os
trs primeiros livros da tetralogia da escritora, foram emitidas em vrios jornais de maneira
26

equivocada, pois seus autores no entenderam o discurso de Hilda Hilst impregnado de ironia.
Assim, encheram eles os meios de comunicao com matrias em que ressaltavam a sua
corrupo ao mercado, e se esqueceram de analisar a obra e observar que Hilda Hilst
inovou no gnero pornogrfico. Como observamos, Ronnie Francisco Cardoso (2007, p. 15),
em Na falha da gramtica, a carne, faz duras crticas aos estudiosos que se fecharam na
classificao da obra como fracasso pornogrfico, sem propriamente estud-la sem
preconceitos. Isso porque tanto a cincia como a crtica de arte brasileira no veem um saber,
muito menos um valor esttico na pornografia. Esse problema seria uma causa da
mundializao da mercadoria e do consumo que associamos ao gnero pornogrfico, pois
em nossa mente, a pornografia desempenharia apenas a funo de mercadoria, e no de arte
escrita (CARDOSO, 2007, p. 15).
Parece que esse mesmo pensamento preconceituoso contornou a crtica na recepo de
Buflicas. Sobre as vendas desse livro, Hilda Hilst ressalta o boicote literrio feito pelos
veculos de comunicao, silncio esse que seria devido incompreenso de seu teor
subversivo e stira, que destaca o aspecto poltico:
Fiz uma stira, um livro onde o aspecto poltico o principal e os crticos acharam
que era uma simples pornografia. Os jornais tambm boicotaram, numa autntica
censura. [...] Votei nele [no Collor]. Fiquei encantada com a sua pose de estadista de
Primeiro Mundo, a postura viril, os gestos portentosos e as palavras. Sabe, acredito
nas palavras. Acho que ele nos deu a impresso de que poderamos ser algum.
Estou muito triste com essas histrias loucas de cocana, avies, fantasmas e tudo
mais. Ao mesmo tempo, engraado, uma verdadeira pera bufa. Nada melhor
ento do que rir desta bandalheira toda lendo as Buflicas (ROSA, 1992).

Ao contrrio da vasta divulgao que as primeiras obras da tetralogia obtiveram, a


recepo de Buflicas se manteve no silncio, indicando que a prpria crtica literria
brasileira fingiu, por preconceito, que a obra no existia. Preconceito, alis, sustentado pela
maior parte dos acadmicos tupiniquins, como ressalta Hilda Hilst em suas entrevistas, que
se assustaram com suas obras obscenas e cortaram relaes com ela.
A esse propsito, e alguns anos antes, Luiz Costa Lima, em seu ensaio Bernardo
Guimares e o cnone, escrito em 1987 e reunido no livro Pensando nos trpicos (Dispersa
demanda II), faz duras crticas ao conservadorismo terico e crtico que havia se embrenhado
nas letras brasileiras. Defende, em seu trabalho, que as ps-graduaes estavam na altura
impregnadas de critrios do sculo XIX, advindos de Romero e Verssimo. Entretanto, ao
27

contrrio do que se pode imaginar, o culto de tais ideias tericas no so frutos, segundo o
crtico literrio brasileiro, da leitura dos textos desses estudiosos, mas apenas resultado da
tentativa de manuteno das estruturas conservadoras do pensamento brasileiro:
No nos iludamos. Para comeo de conversa, eles so mais respeitados do que de
fato lidos. O que, na verdade, est em pauta a estabilidade no s a inrcia das
estruturas brasileiras, a qual no se restringe a seus aspectos econmicos e polticos.
A questo mais se complica porque muitos dos intelectuais empenhados na denncia
dessa estabilidade perversa no so menos defensores da manuteno dos cnones
culturais herdados. Sem dvida, todos j devemos reconhecer que uma posio
poltico-econmica avanada no se irradia automaticamente para o campo
intelectual. A presuno contrria contudo se robustece por conta da ausncia, entre
ns constante, da especulao terico-analtica (LIMA, 1991, p. 241-242).

Como se percebe nas duas colocaes, parece que pouco mudou a crtica literria
brasileira, quando aparecem obras em que se trabalha a linguagem obscena, a stira, o
grotesco. Os crticos se submetem a uma cegueira, devido ao seu preconceito esttico. Urge,
portanto, a necessidade de estudos que se debrucem sobre a temtica diferenciada utilizada
por poetas como Gregrio de Matos, Bernardo Guimares, Luiz Gama e a prpria Hilda Hilst.
Esse preconceito impregnado na crtica brasileira fez (e faz) silenciarem vrias obras do
gnero que trabalham com as regies baixas do corpo, como o obsceno, o grotesco. Temas de
que a academia evita em geral tratar, talvez por puritanismo.
A despeito disso, alguns estudos tm sido produzidos de modo a tornarem visveis
essas produes, como percebemos na breve resenha dos trabalhos dedicados obra obscena
hilstiana. Alguns destes tratam pontualmente de Buflicas.
Em A potica do neologismo em Buflicas, ensaio publicado em 1995, Deneval
Siqueira de Azevedo Filho analisa as palavras que correspondem a anomalias por exemplo:
pintudo, de O reizinho gay a partir dos processos de formao de palavras, como os
sufixos no aumentativo que tm como inteno realar, nas Buflicas, as caractersticas das
personagens e de mostrar o seu potencial grotesco.
Wilberth Claython Salgueiro (2002), em Foras & formas: aspectos da poesia
brasileira contempornea (dos anos 70 aos 90), desenha o cenrio da poesia atual, e nomes
importantes aparecem, como: Paulo Henriques Britto, Augusto de Campos, Arnaldo Antunes,
Glauco Mattoso e, dentre eles, Hilda Hilst com a sua lrica. Salgueiro primeiramente insere
Hilst no captulo Erotismo & poesia: sexo, amor e adjacncias, no qual disserta sobre os
livros de poemas Do desejo e Buflicas. Segundo o crtico, a, o grotesco e a stira do lugar
28

especulao filosfico-existencial em torno do amor e seus derivados o desejo, um deles.


Hilst confirma, assim, a variegada vitalidade que tem se tornado marca de sua produo
literria (SALGUEIRO, 2002, p. 107). A segunda vez que o estudioso cita a obra da escritora
no captulo intitulado Uma certa enciclopdia potica Cismas em torno da poesia
brasileira ps-80, em que Salgueiro reflete sobre a cama como metfora potica na letra G,
no subcaptulo Das pulses erticas ces em liberdade Hilda Hilst. A escrita de Hilst
plurimorfa com faces sacrlegas e iconoclastas; Salgueiro conclui, ento, que se engana a
pessoa que pensa que o ertico de algum escritor ou poeta caiba em uma nica moldura; h,
portanto, vrias formas de se ver o ertico na poesia (2002, p. 237-238).
Em Temas e figuras em Buflicas, Luisa da Rocha Barros e Julia Borges ressaltam
que os versos do livro so contados na velocidade da fala; a oralidade, portanto, tem papel
fundamental nos poemas de Buflicas, nada mais natural, j que a fbula tem sua origem na
cultura oral, com sua narrativa curta, que sempre encerrada por uma moral implcita ou
explcita (BARROS; BORGES, 2006, p. 2). Para as autoras, Hilda Hilst, ao tratar dos temas
moralistas dos contos de fadas, no deixa a escrita vulgar, mas cmica. A fim de realar o
cmico em Buflicas, as pesquisadoras comparam o poema-fbula A cantora gritante com o
conto Branca de Neve e os sete anes, na verso de Walt Disney. A partir de comparaes
com fbulas e contos de fadas, Barros e Borges fazem distines e guiam suas propostas de
leitura.
Em Hilda Hilst e as Buflicas, Paulo Roberto Sodr (2009) faz suas consideraes
acerca do riso e das tcnicas medievais ao analisar o poema-fbula A rainha careca. Neste
ocorre o rebaixamento ideolgico, em que, em vez de ser careca na cabea, alto corporal
relacionado com a alma e com o bem, a rainha calva na vulva, no baixo corporal,
relacionado com a sexualidade. Sobre as figuras literrias em Buflicas, o crtico literrio
afirma que so posta[s] pelo avesso, desmascarada[s], rebaixada[s] pelas prticas sexuais no
convencionais ou inesperadas no que diz respeito ao emblema de que cada uma se reveste na
tradio (SODR, 2009, p. 47). Para comprovar o rebaixamento e a utilizao de
ferramentas discursivas, Sodr utiliza-se das teorias do riso e dos conceitos de Mikhail
Bakhtin.
Em A impossvel linguagem, Tatiana Franca Rodriguez (2007) faz sua leitura de Hilda
Hilst a partir da leitura de trs livros da autora: Buflicas, O Caderno rosa de Lori Lamby e A
obscena senhora D. Ao analisar essas trs obras, aparentemente diversas, a pesquisadora tenta
29

compreender de que maneira o erotismo e a pornografia se relacionam com questes ligadas


metalinguagem e crtica escrita.
Na perspectiva de estudar as obras conforme a metalinguagem, Tatiana Rodriguez
(2007) v Buflicas a partir das consideraes de Friedrich Nietzsche constadas em seu
Prlogo 3, da Genealogia da moral. Nesta obra, segundo a pesquisadora, o conceito sobre o
bem e o mal do pensador alemo pode ser relacionado com o pensamento sobre as partes
baixas do corpo presentes na obra de Hilda Hilst. Para Rodriguez, ao considerarmos o sexo
pertencente s partes baixas do corpo, ligamo-lo no anatomia do corpo, mas ao conceito
moral de que o sexo est aliado sujeira. A partir dessa afirmao, a pesquisadora considera
que, ao contrrio do que Nietzsche alerta acerca da cristalizao de conceitos sobre a moral,
Hilda Hilst os transgride. Por isso os ttulos dos poemas focariam na representao do
personagem principal como nas fbulas e contos de fadas (RODRIGUEZ, 2007, p. 21-22).
A utilizao dos personagens e situaes dos contos de fadas e das fbulas, segundo
Rodriguez, deve-se predisposio que estes gneros tm em ditar comportamentos; assim,
ao contrrio desses gneros que deixam o leitor estvel perante os textos, Buflicas faz o
inverso, desordena as conexes em narrao e experincia, ou melhor, entre a histria
contada e a imposio de uma viso de mundo (RODRIGUEZ, 2007, p. 25).
Em Buflicas: pega, mata e come, Deneval Siqueira de Azevedo Filho (2007, p.
140-147) analisa as Buflicas a partir dos processos cmicos dos anfiguris romnticos. Para o
crtico literrio, o cmico existente em Buflicas estaria mais para o riso de cmara estudado
por Bakhtin, pois seria uma espcie de carnaval em que o escritor retratava o indivduo pela
solido. Tendo em mente essa considerao, Azevedo Filho faz a sua anlise dos poemas
paralela aos do Romantismo brasileiro, como os de Bernardo Guimares, Jos Bonifcio,
lvares de Azevedo, praticantes da poesia bestialgica, que foram estudados por Vagner
Camilo e Antonio Cndido. Partindo desse paralelo com a poesia bestialgica, Azevedo Filho
chega concluso de que Hilda Hilst faz a subverso do discurso ao utilizar o anfiguris, pois,
como Antonio Candido observa, a ideia de anfiguris contrria pardia. Entretanto,
Azevedo Filho parece contradizer Antonio Candido, pois leva em considerao a subverso
do discurso juntamente com a pardia, j que os textos parodiados por Hilst tendem a
assumir uma funo de fetiche. E esta justamente a condio de vitalidade dos textos. Alm
disso, a opo pela visada anrquica dos anfiguris subentende uma concepo a-histrica da
literatura (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 145). A partir da pardia e do anfiguris, Hilda Hilst,
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segundo o pesquisador, reabilitaria formas menores em poesia e prosa e as revitalizaria com


as metforas sexuais.
Joelma Rodrigues da Silva (2009), em Os risos na espiral, estuda o riso em trs obras
de Hilda Hilst: O caderno rosa de Lori Lamby, Contos descrnio Textos grotescos e
Buflicas. Para alcanar o objetivo de investigar o riso nas trs, ela o divide em trs tipos. O
riso ingnuo, presente em O caderno rosa de Lori Lamby, que comparado Teresa filsofa.
Silva observa que a literatura libertina utiliza-se da provvel inocncia das protagonistas para
fazer um contato mais ntimo com o leitor. O segundo tipo de riso seria o rstico,
caracterstico dos romanos, e que Hilda Hilst parece ressuscitar em seu Contos descrnio
Textos grotescos. O ltimo, e o que mais nos interessa, o riso paroxstico de Rabelais, que
o utilizado em Buflicas. Deste ltimo tipo, Silva diz que Hilda Hilst destrona os contos de
fadas a partir do riso debochado (2009, p. 136). Para a pesquisadora, Buflicas seria como
uma praa, na qual desfilariam os personagens dos contos de fadas, com o intuito de destronlos e destituir a sua importncia no imaginrio popular. Seguindo o conceito de Afonso
Romano SantAnna sobre o efeito metalingustico da pardia, Joelma pretendeu depurar as
referncias aos contos de fadas para saber qual seria o verdadeiro objetivo do riso buflico.
Diante da contribuio dessas investigaes sobre a obra obscena de Hilda Hilst e, em
particular, sobre Buflicas, nosso trabalho2, dividido em trs captulos, tem como inteno
contribuir para que o silncio sobre a obra da autora e a inrcia crtica denunciados pelo
terico Lus Costa Lima e pela escritora Hilda Hilst sejam ainda mais reduzidos. A
dissertao se debruar sobre o obsceno presente nas Buflicas, perpassando conceitos afins
como: o riso, a pardia e o grotesco, e investigando de que modo estes termos se relacionam
entre si para compor a stira hilstiana.
Naturalmente, foi preciso acessar autores e teorias que lanassem luz sobre as
inquietaes advindas da obscenidade e do riso. Assim, fez-se necessrio evocar Jean
Baudrillard em Senhas (2001) e Estratgias fatais (1996); George Bataille, em O erotismo
(2013), e Corinne Maier, em Lo obsceno: la muerte en accin (2005). Antes de nos
debruarmos sobre a obscenidade, faremos uma rpida incurso sobre a pornografia e o
erotismo.

Este estudo continua e amplia a pesquisa iniciada a propsito do Trabalho de Concluso de Curso (TCC),
intitulado Orgia das fadas: um estudo da pardia nas Buflicas, de Hilda Hilst, que foi apresentado no dia 04 de
julho de 2011, no evento Seminrio de Apresentao de Trabalhos de Concluso de Curso, promovido pelo
Colegiado de Letras-Portugus e pelo Departamento de Lnguas e Letras (Ufes).

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No primeiro captulo, A palavra inoculta de Hilda Hilst, empenhar-nos-emos no


descortinar da obscenidade, relacionando-a ao riso a partir especialmente dos conceitos de
Vladmir Propp, em Comicidade e riso (1992), e de Henri Bergson, em O riso: ensaio sobre a
significao do cmico (1987). Apesar de considerarmos que o obsceno est presente em
todos os poemas da obra, analisaremos o obsceno e o riso literrios apenas em dois poemas de
Buflicas, O reizinho gay e A rainha careca, destacando o que eles colocam em evidncia
na cena literria, em geral, e na cena particular dos poemas-fbulas de Hilst.
No segundo captulo, Buflicas e as profanaes pardicas, investigaremos os
recursos utilizados por Hilda Hilst na obscenizao de suas fbulas. Partiremos do
pensamento de Giorgio Agamben sobre profanaes, e o relacionaremos com a pardia, pois
entendemos este termo, a partir da mistura de gneros, como uma fonte profanatria das obras
consideradas cannicas. Veremos, ademais, o que a escritora aproveitou dos gneros como
fbulas, contos de fadas, fabliaux, pornografia, parbola, dentre outros. Os conceitos de
obscenidade dialogaro com os de pardia de Linda Hutcheon, em Uma teoria da pardia
(1985), e Vitor Manuel de Aguiar e Silva, em Texto, intertextualidade e intertexto (2007),
alm de Propp, j mencionado. Analisaremos, a esse propsito, os poemas Drida, a maga
perversa e fria e A Chapu.
Por fim, no terceiro captulo, Invaso dos domnios: o grotesco hilstiano,
observaremos o obsceno, relacionando-o esttica grotesca, e analisaremos os poemasfbulas O ano triste e A cantora gritante. Como se sabe, a escrita de Hilda permeada de
imagens bestialgicas, como a pratica sexual com animais e figuras mgicas, o que torna
necessrio lanarmos nosso olhar sobre a representao do sexo nas Buflicas. Esse captulo
dialogar com o trabalho de Sarane Alexandrian, Histria da literatura ertica (1996), na sua
classificao sobre o obsceno, no que concerne aos usos de palavras associadas sujeira e
doena. Antes dessa explanao, veremos o que Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na
Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais (1993), e Wolfgang
Kayser, em O grotesco (1986), abordam sobre o corpo grotesco. No fim desse captulo,
faremos um breve comentrio sobre o anfiguri e sua provvel referncia em Buflicas e
analisaremos Fil, a fadinha lsbica.
A pesquisa em torno do projeto literrio obsceno de Hilda Hilst foi impulsionada pela
inquietao com certo silncio que se mantm em torno dos poemas de Buflicas. Como se
percebe, h uma grande quantidade de estudos em torno da trilogia de Hilda Hilst. Sobre
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Buflicas, contudo, pouco foi investigado ainda; quando se estuda o conjunto de livros
obscenos, na maioria das vezes, exclui-se a obra, devido ao seu carter burlesco, ao formato
em versos, ao preconceito com o riso, ao tamanho reduzido da obra com apenas sete poemas
curtos , ou at mesmo devido ao fato de os crticos considerarem o livro como uma
brincadeira da autora que no devemos levar a srio. Este trabalho, portanto, tem como
inteno investigar a obra que foi menos considerada ainda pela crtica; pretendemos, pois,
diminuir o silncio em que ficam as Buflicas. Para tanto, examinamos a noo de
obscenidade em relao ao riso, pardia e ao grotesco, confrontando a anlise com eventuais
aportes crticos da autora.
Para que alcanssemos mais plenamente tal objetivo, realizamos uma pesquisa
bibliogrfica no fundo Hilda Hilst do Centro de Documentao Alexandre Eullio (CEDAE),
abrigado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o intuito de investigar como
foi a recepo das obras que compem a tetralogia obscena da escritora. Visitamos tambm,
na altura, a Casa do Sol3 com a finalidade de escrutinar no acervo l conservado provveis
referncias de pensamento filosfico ou literrio da autora.
O resultado desse percurso de pesquisa o que passaremos a apresentar.

Hilda Hilst mudou-se, em 1966, para a Casa do Sol, em Campinas, que abrigou a autora at o seu falecimento
em 2004. Rodeada de rvores e de ces, Hilst escreveu a maior parte de sua obra no local. Segundo a autora, a
necessidade de morar em um local retirado se deve leitura da Carta a El Greco, do escritor grego Niko
Kazantzakis. O local foi frequentado por cientistas, pensadores, artistas e escritores, como Caio Fernando Abreu,
Lygia Fagundes Telles, Jos Luis Mora Fuentes, Olga Bilenky, Jos Antnio de Almeida Prado, J Soares e os
fsicos Csar Lattes e Mrio Schenberg. Atualmente a Casa do Sol a sede do Instituto Hilda Hilst, que recebe
visitas tcnicas ou voltadas para a criao artstica, de pesquisadores, crticos literrios, artistas e tradutores
nacionais e internacionais.

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1. A PALAVRA INOCULTA DE HILDA HILST

A impreciso com que a crtica brasileira se lanou na classificao da tetralogia


hilstiana se pornogrfica, ertica ou obscena , deveu-se, provavelmente, inexistncia de
uma discusso ou aprofundamento terico acerca desses conceitos. Boris Vian, em Utilidad
de una literatura ertica, insiste na incapacidade de se conceituar o que seria pornogrfico,
ertico ou, at mesmo, obsceno, pois, segundo ele, os trs termos designam a mesma coisa
(VIAN, 2009, p. 13). Ao contrrio do que defende Vian, no entanto, os crticos parecem
definir, mesmo que parcialmente e de modo confuso, os trs tipos de literatura que abordam o
sexo.
O autor ingls D. H. Lawrence, por exemplo, faz suas constataes sobre os termos
em Pornografia e obscenidade ([1929] 2010), no livro de ensaios O livro luminoso da vida:
escritos sobre literatura e arte. Lawrence insiste na proposio etimolgica da palavra
obscena e discorre sobre a subjetividade do termo, pois, segundo o britnico, o obsceno est
nos olhos de quem olha, nos costumes que mudam conforme o tempo. Para o escritor, a
pornografia e a obscenidade so dissociveis; pornografia seria aquilo que insulta o sexo,
rebaixando-o, fazendo sujeira com o sexo, o que seria imperdovel (LAWRENCE, 2010, p.
97).
No Brasil, antes da repercusso em torno das obras pornogrficas de Hilda Hilst, os
trabalhos iniciais a respeito da distino entre pornografia e erotismo foram desenvolvidos por
Eliane Robert Moraes e Lucia Castello Branco. Sobre o erotismo, atribui-se ao termo a ideia
de unio. Para Lucia Castello Branco, a palavra advm da latina religare, que originou
religio e atinge outras esferas, como a conexo (ou re-unio) com a origem da vida (e com o
fim, a morte), a conexo com o cosmo (ou com Deus, para os religiosos), que produziriam
sensaes fugazes, mas intensas, de completude e de totalidade (BRANCO, 2004, p. 9). Para
comprovar que o erotismo teria como fundamento a completude dos seres, Lucia Castello
Branco vai at o mito dos andrginos, que Plato utiliza para explicar o assunto no dilogo O
banquete. Segundo o mito, os andrginos eram seres redondos, completos em si mesmos, j
que possuam dois pares de pernas e dois de brao, duas bocas, quatro olhos, dois narizes e
quatro orelhas. Zeus, para enfraquec-los, dividiu esses seres, pois eles eram demasiadamente
poderosos. Depois dessa diviso, ambas as partes procuram se completar atravs do sexo, uma
vez que seria somente nesse momento que todos os membros se reuniriam e a perfeio
andrgina voltaria a florescer (p. 9-10).

Em A dupla chama, Octavio Paz ([1993] 1994) reflete acerca da exclusividade


humana do erotismo:
Antes de tudo, o erotismo exclusivamente humano; sexualidade socializada e
transfigurada pela imaginao e vontade dos homens. A primeira coisa que
diferencia o erotismo da sexualidade a infinita variedade de formas em que se
manifesta, em todas as pocas e em todas as terras. O erotismo inveno, variao
incessante; o sexo sempre o mesmo. O protagonista do ato ertico o sexo ou,
mais exatamente, os sexos. O plural obrigatrio porque, incluindo os chamados
prazeres solitrios, o desejo sexual inventa sempre um parceiro imaginrio... ou
muitos. Em todo encontro ertico h um personagem invisvel e sempre ativo: a
imaginao, o desejo. No ato ertico intervm sempre dois ou mais, nunca um. Aqui
aparece a primeira diferena entre a sexualidade animal e o erotismo humano: neste,
um ou mais participantes podem ser um ente imaginrio. S os homens e as
mulheres copulam com ncubos e scubos (PAZ, 1994, p. 16).

Para o crtico mexicano, o erotismo algo que no herdamos dos animais, mas o ato
sexual sim, pois ns o fazemos, imitando-os. Assim, o erotismo estaria imbricado e ligado
nossa socializao com os outros indivduos. Logo, para Paz, o erotismo s poderia ser dos
homens, pois teria um carter de compartilhamento e de diviso entre os pares; seria, portanto,
filosfico. J o sexo seria animal, dada a inequvoca inteno de reproduo, de manuteno
da espcie. Ideia, alis, mantida por Georges Bataille ([1957] 2013), que, ao dissertar sobre o
assunto, considera o erotismo como algo desenvolvido pelos humanos e para os humanos.
Para Bataille, o erotismo e a pornografia podem ser entendidos a partir do
desnudamento, um rito que comunica aos homens sua essencialidade, pois se ope ao estado
fechado (2013, p. 41). O corpo se comunicaria atravs de canais secretos que nos do o
sentimento da obscenidade. Esta significa a perturbao que desordena um estado dos
corpos conforme (sic) posse de si, (sic) posse da individualidade duradoura e afirmada (p.
41). A presena do desnudamento retoma especialmente a relao com o sagrado, tanto que,
na Antiguidade, o ato do sacrifcio era comparado ao sexo. Portanto, podemos considerar a
cama como um altar, em que os membros participam de um evento de imolao que revela o
sagrado, a continuidade de um ser revelada aos que fixam sua ateno, num rito solene,
sobre a morte de um ser descontnuo (BATAILLE, 2013, p. 45).
Alis, Wilberth Salgueiro (2002, p. 237), ao tratar da metfora da cama, ressalta que
nela deitam-se tanto a pornografia, como o erotismo, alm, claro, de todos os gneros que
retratam o sexo. Dessa forma, para o crtico literrio, a cama seria a forma como se representa
o ato sexual. A metfora da cama, portanto, um pequeno disfarce para a obscenidade.
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Em Erotismo e poesia: dos gregos aos surrealistas, prefcio de Jos Paulo Paes para
a sua antologia Poesia ertica, o tradutor traa suas consideraes acerca do erotismo a partir
da afirmao de que a literatura representa a vida:
Efeitos imediatos de excitao sexual tudo quanto, no seu comercialismo rasteiro,
pretende a literatura pornogrfica. J a literatura ertica, conquanto possa
eventualmente suscitar efeitos desse tipo, no tem neles a sua principal razo de ser.
O que ela busca, antes e acima de tudo, dar representao a uma das formas da
experincia humana: a ertica. Representar re-apresentar, tornar novamente
presentes presentificar vivncias que, por sua importncia, meream ser
permanentemente lembradas: na mitologia grega, Mnemosina, a memria, era a me
das nove Musas ou artes. Pois a arte faculta reviver, no plano do imaginrio, o
essencial do que se viveu ou se aspirou a viver no plano do real: outrossim, graas
persuasividade da forma artstica (e no apenas documental) em que afeioa as suas
vivncias memorveis, o poeta nos permite que as partilhemos com ele como se
fossem nossas. Ora, mais do que em qualquer outro domnio da experincia humana,
no da experincia ertica que se torna urgente impedir que, em sua velocidade
implacvel, o tempo apague de pronto e de todo os traos do j vivido (PAES, 2006
p. 15).

A definio de erotismo e pornografia presente em Paes a mais difundida no meio


acadmico. Para o autor, no grupo de obras erticas seriam alocadas as de tema e gnero
elevados e forma cannica, portanto, de valor artstico incontestvel. Essas obras dignificam o
homem, ao mostrar uma verdade reveladora atravs do amor e das boas aes; opor-se-iam,
portanto, existncia do ato sexual descrito de forma meramente mecnica. No grupo de
obras pornogrficas, a princpio, se encaixariam os textos de carter onanista com o intuito
simples de suscitar desejos sexuais; logo, no teriam valor artstico, apenas comercial.
Destarte, os crticos, ao conceituarem as trs formas de retratar a matria sexual, observam
que certos pontos se tocam: o erotismo como sagrado e sublime, a pornografia como
mercadoria e a obscenidade como um segredo, como falaremos a seguir.
Os crticos brasileiros recorrem mesma definio tradicional defendida por Paes ao
classificarem a tetralogia de Hilda Hilst. Mario Mendes, por exemplo, em matria publicada
na revista Elle, em 1999, pondera que o desejo de ganhar um pblico maior e engordar a
conta bancria no privilgio do mercado fonogrfico. Na literatura, a escritora Hilda Hilst
cansou-se de ser considerada hermtica, contabilizando elogios demais e exemplares de
menos no balano das vendas de suas obras (MENDES, 1999). Sendo assim, para Mendes,
na tentativa de popularizar sua obra e obter um retorno financeiro maior, Hilst se aventura na
escrita pornogrfica.
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Em sua etimologia, a palavra pornografia, segundo Sandra Maria Lapeiz e Eliane


Robert Moraes, seria proveniente do grego pornographos, que significa literalmente escritos
sobre prostitutas. Assim, em seu sentido original, a palavra refere-se descrio da vida, dos
costumes e dos hbitos das prostitutas e de seus clientes (LAPEIZ; MORAES, 1984, p. 07).
Lucia Castello Branco comenta sobre a origem da palavra que d nome a esse gnero:
[...] [a] etimologia da palavra pornografia j enfatiza esse aspecto comercial,
consumista, que se transformou em objetivo prioritrio de qualquer material
pornogrfico aps o fenmeno da industrializao. Do grego pornos (prostituta) +
grafo (escrever), o termo pornografia designa a escrita da prostituio [...].
primeira vista, essa definio com base na etimologia da palavra parece se aplicar
apenas pornografia tal como ela veiculada nos dias de hoje, como material de
consumo, visando exclusivamente comercializao e ao lucro. No entanto, se
entendermos a noo de comrcio em profundidade, veremos que essa definio
pode se aplicar pornografia em toda sua histria, e que exatamente com base
nesse aspecto, o comercial, que possvel estabelecer alguns traos distintivos entre
erotismo e pornografia (BRANCO, 2004, p. 22-23, grifos da autora).

Como se observa, Eliane Robert Moraes e Sandra Lampeiz, assim como Lucia Castello
Branco, concordam que a pornografia est ligada ao comrcio. o comrcio, portanto, que
ditaria as regras de moral e decncia em cada circunstncia histrica, pois quase sempre a
pornografia est associada com a subjetividade de quem detm o poder, encarregando-se
assim por definir, julgar e condenar o que indecente, imoral e desviante.
Para a crtica brasileira, assim, a pornografia est aliada ao comrcio, sim, e a fora
motriz que mantm certa indstria cultural. Desse modo, o gnero possui estratgias
discursivas para atrair a ateno do leitor masculinista em geral homens heterossexuais ,
como o tom confidencial realizado muitas vezes por mulheres jovens, o que enseja uma
narrativa que conta segredos da alcova para um intruso, o leitor. Esse fator transgressor o de
simular a invaso perversa da individualidade e da privacidade de uma personagem o que
constitui a maior matria-prima da pornografia. Sobre essas estratgias discursivas, Lucienne
Frappier-Mazur (1999) pondera que
[...] a pornografia introduz o elemento transgressivo no s no quadro ertico, mas
tambm na escolha das situaes narrativas. O efeito de cumplicidade mais pleno
quando o narrador do sexo feminino e trata de um personagem do sexo masculino
a narradora, frequentemente uma mulher madura ou uma cafetina, relata suas
proezas passadas ou descreve sua iniciao amorosa a seu amado ou ao pblico.
Essa circunstncia satisfaz o voyeurismo do leitor, alm de introduzir a me como
agente e como testemunha e cmplice do cenrio perverso, apelando possvel
sobrevivncia desse [amor] secreto e anal entre me e filho, aludido por
McDougall. Desnecessrio dizer que a expresso obscena sobre o feminino ao

37

mesmo tempo ratifica e satisfaz essa cumplicidade (FRAPPIER-MAZUR, 1999, p.


225-226, grifos do autor).

Nesse sentido, em O caderno rosa de Lori Lamby, Contos descrnio Textos


grotescos e Cartas de um sedutor, os seus respectivos narradores-personagens Lori, Crasso
e o duplo Stamatius e Karl fazem com que o leitor se enxergue como um voyeur do ato
criativo da escrita, ao levarem-no a ler suas divagaes literrias, filosficas, alm de atos
sexuais incomuns seus e alheios. Esse recurso narrativo de colocar um intruso no texto faz
com que o leitor se projete nele e participe como agente de subalternizao do escritor ao ler
um livro pornogrfico, uma vez que ele, o leitor, que compra esse livro e o transforma
eventualmente em best-seller. Consequentemente, o editor, ao perceber esse sucesso, exigir
dos escritores obras semelhantes. Essas relaes entre mercado editorial, escritor e leitor so
tematizados criticamente na tetralogia de Hilst, conferindo a esse conjunto de obras da autora
um carter metalingustico, uma vez que esses textos que utilizam a matria pornogrfica
criticam a prpria pornografia. Desse modo, a tetralogia de Hilst metanarrativa, na medida
em que se embrenha no forte vis ensastico e metalingustico, a escarafunchar
perversamente os intervalos e as contradies entre a inveno radical do autor e os interesses
outros, ou dos outros (PCORA, 2005).
Alcir Pcora (2005), em Call for papers, por sinal, reparte a literatura de Hilda Hilst
em duas: ertico e obsceno. No grupo ertico define a obra como o registro elevado de sua
poesia feita de forma imitativa da maneira antiga; estas obras estabelece[m] as balizas de um
desejo de aspirao metafsica, que emula modelos poticos de erotismo a lo divino, como os
cantares bblicos e a poesia mstica seiscentista da pennsula ibrica, nas quais o amante
tomado como anlogo de um desejo de transcendncia. Entretanto, Pcora se nega a ver uma
proposta ertica na trilogia (ou tetralogia) obscena, depois que se a l realmente, e no se
fique na platitude dos comentrios a respeito das loucuras ou da devassido de Hilda
(PCORA, 2005).
A obscenidade estudada, inicialmente, tambm a partir de sua etimologia, que, para
alguns, derivou da corruptela do latim scena, e assim a palavra obscena significaria fora de
cena. Apesar de alguns estudiosos considerarem forada essa relao, a palavra scena
referida, quase que por unanimidade pelos crticos e tericos, como a origem do termo:

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Alis, a palavra obsceno pode iluminar nossa pista, especialmente pela sua
ambigidade. Ao pesquis-la encontramos duas verses. Havelock Ellis, mdico
ingls do sculo passado e pioneiro da sexologia, sugere que a palavra uma
corruptela ou uma modificao do vocbulo scena e que seu significado literal seria
fora de cena, ou seja, aquilo que no se apresenta normalmente na cena da vida
cotidiana. Aquilo que se esconde. [...]. Do outro lado, o Aurelio nos informa:
obsceno 1. o que fere o pudor; impuro; desonesto; 2. diz-se de quem profere ou
escreve obscenidades, isto , aquilo que se mostra, em frente cena (ob = em
frente, sceno = cena). Assim, proferir uma obscenidade colocar em cena algo que
deveria estar nos bastidores (MORAES; LAPEIZ, 1984, p. 8).

A palavra obscena traz muitas dvidas. Corinne Maier (2005), por exemplo, em Lo
obsceno: la muerte en accin, reflete sobre a subjetividade de sua etimologia, pois ela no
est dada e varia conforme as concepes pessoais daquele que a estuda. Apesar de serem
turvos os conceitos sobre o obsceno, a autora defende que ele pode estar em uma cena
pornogrfica, como tambm na visualizao de um cadver em decomposio, ou, at mesmo,
na programao da televiso (MAIER, 2005, p. 10). O obsceno, portanto, estaria ligado tanto
ao erotismo, como pornografia, uma vez que coloca os corpos em exibio, variando as
lentes e o ngulo com que se observa o corpo nu. Entretanto, a violncia contra o corpo seria
muito mais obscena do que o ato sexual em si. Um mundo chagado por guerras, fome,
pobreza, com corpos estraalhados e mortos parece-nos deslocado. Pelas divergentes
opinies, o obsceno pode ser o sexo representado pela arte, ou as notcias de jornal que
preenchem nossos dias em frente aos aparelhos televisivos.
Em As estratgias fatais, de Jean Baudrillard (1996), o obsceno seria o fim da cena
devido a seu excesso de visibilidade:
A cena da ordem do visvel. Mas no h mais cena no obsceno, s h a dilatao
da visibilidade de todas as coisas at o xtase. O obsceno o fim de qualquer cena.
Alm disso, ele o mau augrio, como seu nome indica. Pois essa hipervisibilidade
das coisas tambm a iminncia de seu fim, o sinal do apocalipse. Todos os sinais a
carregam consigo, e no apenas os sinais infra-sensuais e desencarnados do sexo.
Ela , com o fim do segredo, nossa condio fatal. Se todos os enigmas forem
resolvidos, as estrelas se apagaro. Se todo o segredo for devolvido ao visvel e ao
mais do que visvel, evidncia obscena, se toda iluso for devolvida
transparncia, ento, o cu se tornar indiferente terra. Em nossa cultura tudo se
sexualiza antes de desaparecer. No mais uma prostituio sagrada, mas uma
espcie de lubricidade espectral, que invade todos os dolos, os sinais, as
instituies, o discurso a aluso, a inflexo obscena que invade todos os discursos,
deve ser considerada o sinal mais seguro de seu desaparecimento
(BAUDRILLARD, 1996, p. 49-50).

39

Na viso sobre o obsceno de Baudrillard, defende-se a falta de toda a cena a partir do


ato de exibir que emana da prpria obscenidade. Segundo essa viso, o obsceno abraaria a
modernidade e se apresentaria em um universo sem aparncias e profundidade, por isso ele
seria ultravisvel. Com o advento tecnolgico, o obsceno exibido na televiso, na internet,
alm de ser vendido. Logo, o obsceno, nessa concepo, abraaria a sociedade do consumo e
elaboraria as formas de pensar, tornando tudo uma mercadoria.
Em termos jurdicos, a prpria legislao brasileira em seu Cdigo penal, no captulo
Do ultraje pblico ao pudor, repudia criaes artsticas e atos que explorem o sexo,
ameaando queles que vendem, compram e exibem produes pornogrficas com a pena de
seis meses a dois anos de priso. Na redao desse Cdigo, dada pela Lei n 7.209, e redigida
no dia 11 de julho 1984, atribui-se o carter de obscenidade a vrias atividades nos seguintes
parmetros:
Ato obsceno
Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar pblico, ou aberto ou exposto ao pblico:
Pena - deteno, de trs meses a um ano, ou multa.
Escrito ou objeto obsceno
Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de
comrcio, de distribuio ou de exposio pblica, escrito, desenho, pintura,
estampa ou qualquer objeto obsceno:
Pena - deteno, de seis meses a dois anos, ou multa.
Pargrafo nico - Incorre na mesma pena quem:
I - vende, distribui ou expe venda ou ao pblico qualquer dos objetos referidos
neste artigo;
II - realiza, em lugar pblico ou acessvel ao pblico, representao teatral, ou
exibio cinematogrfica de carter obsceno, ou qualquer outro espetculo, que
tenha o mesmo carter;
III - realiza, em lugar pblico ou acessvel ao pblico, ou pelo rdio, audio ou
recitao de carter obsceno (CDIGO PENAL, 1984, grifos do autor).

O prprio Cdigo penal mantm vises distorcidas acerca do sexo trabalhado de


forma artstica. Everardo da Cunha Luna, em A arte e o obsceno, na anlise dos artigos do
Cdigo que tratam da proibio do obsceno, considera que produes literrias desse tipo tm
um valor negativo, aparentando, primeira vista, serem obras de arte. Bem examinados, arte
no so, porque a arte um valor positivo. Podem at ser considerados como abusos da arte,
mas arte no o so, pois que onde comea o abuso termina o uso, o bom uso da arte (LUNA,
1990, p. 62). Nas consideraes do bacharel em Direito e no conceito de proibio da
obscenidade constado no Cdigo penal brasileiro, a arte seria uma forma de melhorar os
homens e de aperfeioar os seus costumes, no podendo constar em obras artsticas os corpos
40

em atitudes sexuais. Desse modo, para Luna (1990), o obsceno mutvel, e sua definio se
d conforme o tempo e as convenes sociais, e sua proibio estaria afiliada s regras sociais
do bem viver. Considerao j antiquada, uma vez que Lynn Hunt (1999, p. 13) relata, por
exemplo, que o equilbrio entre obscenidade e decncia, privado e pblico j estava abalado
desde o sculo XIX.
Corine Maier (2005, p. 21-22), ao refletir sobre o carter proibitivo que emana do
obsceno, parece acrescentar alguns caminhos para se entenderem suas marcas, definindo que
o termo seria a parte negativa e mortfera do erotismo, uma vez que seria uma sombra de
morte, um mau augrio, no sendo prazeroso mostr-la. Portanto, para que a obscenidade
exista, necessria uma vontade artstica ou comercial de public-la.
Voltando a Senhas, Jean Baudrillard reflete sobre essas concepes, das quais achamos
que Hilda Hilst defensora:
H escaladas na obscenidade: apresentar o corpo nu pode ser j grosseiramente
obsceno, mas apresent-lo descarnado, esfolado, esqueltico, o ainda mais. Vemos
claramente que hoje em dia toda a problemtica crtica da mdia gira em torno do
limite de tolerncia a esse excesso de obscenidade. Se tudo deve ser dito, tudo vai
ser dito... Mas a verdade objetiva obscena. bem verdade que, quando nos contam
com todos os detalhes as atividades sexuais de Bill Clinton, a obscenidade de tal
forma derrisria, que nos perguntamos se no existe a uma dimenso irnica. Essa
reverso seria, talvez, o ltimo avatar da seduo, em um mundo em perdio, em
obscenidade total: apesar de tudo, no se chega necessariamente a crer nela. A
obscenidade, isto , a visibilidade total das coisas, , a essa altura, to insuportvel
que preciso aplicar-lhe uma estratgia de ironia para sobreviver. Do contrrio, uma
tal transparncia seria absolutamente assassina (BAUDRILLARD, 2001, p. 31-32).

Em um mundo onde a hipervisibilidade deixa tudo invisvel, Hilda Hilst, em seu


projeto obsceno, tenta tornar visveis as mincias do discurso, a fala contra o exagero da
Psicanlise, a crtica ao mercado e falta de palavras, pois vivemos no silncio de um mundo
pornogrfico em que a bunda e o pau so mais importantes do que a fala e as mazelas
sociais.
Hilda Hilst, em entrevista, resume o que seria obsceno em sua concepo: o obsceno
estaria apenas fora da cena do palco, podendo ser o sexo, a violncia, a fome, a guerra e as
mazelas polticas infligidas contra os povos: Sujo, obsceno, porco saber que o pas tem 40
milhes de analfabetos, 9 milhes de crianas desamparadas, 9 milhes de boias frias.
Quando se verdadeiramente lcido, a vida pode ser uma experincia obscena (SEFFRIN,
1990).
41

Nesse sentido, no podemos esquecer o cenrio poltico em que Buflicas foi escrito:
poca em que Fernando Collor de Mello assumiu a presidncia da repblica, em 1990, e em
que escndalos de corrupo assombraram o Brasil, como, por exemplo, o caso dos anes do
oramento. Como reao nacional ao cenrio poltico conturbado, surge o movimento dos
caras pintadas, que destituram Collor de seu mandato por impeachment com apenas dois
anos de governo.
Numa de suas entrevistas, Hilda Hilst mostra-se arrependida por ter sido enganada pela
pose de estadista mantida por Collor, evidente no discurso do poltico em propagandas
eleitorais (1992). Em entrevista concedida ao Dirio popular,em 1992, a autora assume que
as Buflicas seriam uma aluso quele perodo, podendo O reizinho gay representar o
prprio presidente:
No, to grotesco que no pode ser considerado pornogrfico. Eu fao uma
distino entre textos grotescos e textos pornogrficos. Buflicas muito engraado,
e a pornografia no engraada, ningum goza rindo. [...] [Buflicas] um livro
poltico, porque impossvel escapar ao momento poltico que vivemos: temos um
presidente que no presidente e considera-se escritor quem no escritor
(HEYNEMANN, 1992).

Mostrando, a partir das enunciaes, as contradies e o despreparo dos representantes


polticos e artsticos, Hilda Hilst investe, com a criao de seu projeto literrio, na
representao de nossa repblica pornocrata com o intuito de satirizar nossos problemas,
alm de pretender derrubar o silncio em torno de sua obra, acusando que o autor nacional s
levado a srio quando d todos os nomes s coisas que ficam da cintura para baixo
(MEDEIROS, 1991). Ao realizar seu projeto, Hilst elabora um conjunto de obras que atualiza
a produo literria satrica, como deduz Heitor Ferraz, em A cortina de fumaa da
obscenidade (2002). Para Ferraz, a obscenidade em Hilda Hilst surge como uma fora
irnica e crtica dentro do livro algo como uma estratgia da autora que escolhe debochar da
literatura pornogrfica ao pratic-la com requintes de linguagem que hoje so raros nesse
gnero (FERRAZ, 2002).
Sobre a relao entre poltica e pornografia, Paula Findlen defende, em Humanismo,
poltica e pornografia no renascimento italiano, que esse gnero, em seu incio, tinha como
intuito colocar em cena os valores morais e polticos:

42

[...] a pornografia moderna inicial divulgava a imagem de um mundo de cabea


para baixo, e seus componentes fortemente satricos eram indicadores de
hierarquias sociais mutveis e de vicissitudes da cultura intelectual e poltica na
complexa rede de Repblicas e Cortes que constituam a Itlia renascentista. Em vez
de situar a pornografia s margens do nascimento do mundo moderno,
considerando-a produto de uma subcultura, pretendo situ-la no centro dos
acontecimentos. Definir a pornografia renascentista , basicamente, definir as
intersees da sexualidade, da poltica e do saber. Nas pginas de livros como
Ragionamenti, de Aretino, a estrutura moral da sociedade renascentista exposta a
todos (FINDLEN, 1999, p. 55).

Vale lembrar ainda que a pornografia surgiu a partir de imagens que representavam a
vida das prostitutas. O gnero teria sido fundado por Luciano de Samsata, que viveu em
meados dos anos 125-190 d.C., e que, para alguns crticos, deu surgimento pornografia com
o clebre Dilogos das cortess (FINDLEN, 1999, p. 54). O que j deixa bem claro a
comparao que se faz desse tipo de escrita com o comrcio. Por isso, a pornografia sempre
foi deixada margem da arte.
Sobre a pornografia do Renascimento, Paula Findlen acrescenta que esse gnero tinha
como funo mostrar as contradies polticas a partir do sexo, rebaixando governantes,
prncipes e reis (1999, p. 52). Para a estudiosa, o Renascimento que foi responsvel pela
emancipao do gnero pornogrfico, pois toda cultura produz alguma forma de arte e
literatura sexualmente explcita, mas nem todas distinguem ertico e pornogrfico, e a
pornografia no definida da mesma forma em todos os casos (1999, p. 53-54).
A pornografia moderna, portanto, tinha o intuito de rebaixar e de destronar reis e rainhas
e sua proibio estava relacionada a isso:
Nos anos 1780, surge um novo motivo de priso: difamao, que se deve entender
como o que designa, em geral, libelos obscenos e pornogrficos contra a rainha e os
ministros (Les amours du vizir Vegernnes, Les petits soupers de lhtel de Bouillon
(Os amores do vizir Vergennes, Os pequenos jantares do hotel Bouillon). o
motivo evocado contra a senhora La Touche de Goteville, detida em 24 de maio;
depois, contra Pascal Boyer, redator do Mercure de France (Mercrio de Frana)
suspeito, em poucas palavras, de ser o autor de libelos, publicados no estrangeiro,
difamatrios para com as personalidades francesas. O Caso do Colar favorecer o
desenvolvimento do gnero. Em 1786, as prises de caixeiros viajantes, de
tipgrafos clandestinos, de livreiros vendedores de brochuras que so um atentado
honra da rainha e virilidade do rei, se multiplicam (GOULEMOT, 2000, p. 45).

Hilda Hilst, em seu projeto obsceno, degrada a escrita pornogrfica, alm de, no caso
de Buflicas, rebaixar os personagens caractersticos dos contos de fadas como uma forma de

43

anticanonizar o gnero textual pedaggico. Hilst, portanto, restaura a literatura difamatria


moderna em que a crtica poltica por meio da obscenidade e da pornografia estava presente.
As personagens dos contos de fadas degradadas de Hilda Hilst aparecem
desnudadas, nos termos de Georges Bataille (2013, p. 74). A nudez, para o filsofo francs,
seria um interdito, na medida em que expe os rgos sexuais. Desde as origens da
humanidade, o homem criou regras sociais que definem e restringem o sexo por medidas e
regras de comportamento para esconderem nossos rgos reprodutores: O Homem um
animal que permanece interdito diante da morte, e diante da unio sexual. Ele pode ficar mais
ou menos interdito, mas em ambos os casos sua reao difere da dos outros animais
(BATAILLE, 2013, p. 74). O homem, para Bataille, seria o nico animal que necessita
esconder seus rgos sexuais, em princpio, o homem e mulher procuram um lugar reservado
no momento da conjuno carnal (p. 74). Em Buflicas, os canais esto abertos a partir da
enunciao e dos holofotes focados nos interditos sexuais, que so a vagina e o pnis, e do
retrato das personagens em atitudes obscenas.
Levantadas as difceis questes sobre o obsceno e suas relaes inevitveis com o
erotismo e a pornografia, examinemos que conceito, que efeito de obscenidade e que
referncias tradio literria obscena e pornogrfica os poemas buflicos de Hilda Hilst
propiciam.
Embora os sete poemas-fbulas de Buflicas possam ser tomados de exemplo para o
exame desse assunto, trataremos neste captulo para efeito de conciso, apenas dos poemas O
reizinho gay e A rainha careca.

1.1. A PALAVRA OBSCENA DE BUFLICAS

Na obra de Hilda Hilst, segundo Alcir Pcora (2005), a obscenidade est ligada ao uso
das palavras bizarras para designar as regies fisiolgicas do corpo. Para comprovar essa
caracterstica, basta listarmos os nomes que a escritora d aos rgos sexuais em suas sete
buflicas4, assim como fez Alcir Pcora, ao arrolar as evidncias dos nomes dos rgos em
Cartas de um sedutor. Encontramos referncias ao rgo sexual masculino em Buflicas,
4

Denominao dada por Paulo Roberto Sodr em seu artigo Hilda Hilst e as Buflicas (2009).

44

como: peroba, bronha, mastruo, espada, cercado, ganso, gota aguda, estrovenga, nabo,
pau, porongo, basto, bemba, berimbau, fole, bagos, baixios, troo, cacete. Para o rgo
sexual feminino, a autora usa termos como: passarinha, meios, gruta, choca preta, xerecas,
cona. No que diz respeito ao nus, usado sexualmente e, por isso, considerado a terceira
regio, comum a ambos os sexos, tem-se: buraco negro, cuzao, buraco, rodela, bunda, oiti.
Ao usar esse tipo de vocabulrio literariamente, Hilda Hilst rompe, a princpio, com a
expectativa de uma excitao sexual que a obra poderia causar, a no ser que o hipottico
leitor seja um fetichista das letras, como nos previne ironicamente Pcora.
Sobre a utilizao de palavras proibidas em Buflicas, Tatiana Rodriguez ressalta que
o uso abrangente de palavres na pardia dos contos de fadas associa o questionamento
sobre os valores de moral que sustentam as relaes humanas na sociedade ocidental e os
valores estticos que, via de regra, so critrios influenciados por padres morais, como o
feio e o belo (2007, p. 12). Deneval Siqueira de Azevedo Filho (1995, p. 95-98) destaca a
importncia dos palavres nos poemas-fbulas de Hilda Hilst. Para Azevedo Filho, alis, h
uma utilizao do neologismo literrio que sempre captado como uma anomalia e utilizado
em virtude dessa anomalia (p. 65), entretanto, aumentando o seu poder persuasivo, ao
suscitar no leitor a ideia de anomalia genital. Segundo o crtico, a palavra pintudo, presente
no poema O reizinho gay, denota sentido novo que constituiria um neologismo literrio (p.
66), devido ao seu exagero aumentativo que faria com que o leitor relacionasse o pnis
exagerado com a excentricidade do reizinho hilstiano.
Em Buflicas h o uso dos trs rgos utilizados sexualmente, o nus, o pnis e a
vagina, os quais, carregados metaforicamente de importncia poltica e ideolgica, servem
como arena para o discurso poltico. Hilda Hilst, ao nomear com palavras excntricas os
interditos sexuais (nus, pnis e vagina), se utiliza das palavras consideradas obscenas para
disseminar sua crtica sociedade conservadora brasileira. Hilst, portanto, persegue a
obscenidade como mscara para a crtica social, por meio de uma clara e intensa perverso
dos personagens. Os rgos sexuais denominados com palavras que j denotam o elevado
grau grotesco da obra, que comentaremos adiante entram em uma arena de combate poltica
onde o riso a nica arma para se troar da tirania obscena de nosso mundo. Ao criar cenas
onde o absurdo prepondera, com o intuito de desnudar as contradies polticas do homem, os
poemas-fbulas mostram os defeitos sexuais e satirizam os comportamentos sociais
reacionrios e degradantes.
45

Ao analisar Histria do olho, de Georges Bataille, Roland Barthes (2003, p. 123)


descreve processos de mudana de sentido a partir das cadeias metafricas, pois cada termo
significante de outro vizinho, processo de mudana ao qual o ensasta chama de metonmia:
Mas tudo muda quando se comea a perturbar a correspondncia das duas cadeias,
quando, ao invs de emparelhar os objetos e os atos conforme as leis tradicionais de
parentesco (quebrar um ovo, Jurar um olho), desarticula-se a associao, retirando
cada um de seus termos de linhas diferentes, em suma, dando-se o direito de quebrar
um olho e Jurar um ovo; em relao s duas metforas paralelas (do olho e do
chorar, o sintagma torna-se cruzado, pois a ligao que ele prope vai procurar, de
uma cadeia a outra, termos no complementares, mas distantes: reencontramos a lei
da imagem surrealista, formulada por Reverdy e retomada por Breton (quanto mais
distantes as relaes entre duas realidades, mais forte ser a imagem). [...]. Mas, se
chamarmos de metonmia essa translao de sentido operada de uma cadeia a outra,
em nveis diferentes da metfora (olho sugado como um seio, beber meu olho entre
seus lbios), sem dvida reconheceremos que o erotismo de Bataille
essencialmente metonmico (BARTHES, 2003, p. 125-126).

Entendemos que o uso de palavras que designam os rgos sexuais como metforas
so pertinentes para se analisarem os poemas-fbulas. A metfora, no sentido defendido por
Roland Barthes, seria muito importante para se compreenderem as relaes de sentido, uma
vez que, a partir da metfora do falo, existente no poema-fbula O reizinho gay, podemos
explorar os desvios semnticos que retratam outros sentidos no seu contexto:

Mudo, pintudo
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nao.
Mas reinava...
APENAS....
Pela linda peroba
Que se lhe advinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimnia.
[...] (HILST, 2002, p. 11-12).

46

No incio do poema, tem-se o reizinho mudo e o povo do reino questionando a sua


capacidade de liderana devido a sua falta de palavras. O cetro, smbolo do poder soberano,
vira o enorme pnis monstruoso, a calar a multido diante do absurdo dos seus desmandos. O
pnis do reizinho, em descomunal tamanho, passa a governar o povo em seu lugar, fazendo-se
desnecessrio o uso de palavras, j que s a visualizao do membro do soberano acalma a
turba (HILST, 2002, p. 11-12).
A metfora da palavra falo (desse rgio falo) do poema, por sua liberdade
metonmica, representa mudanas constantes dos sentidos e acepes da metfora-falo: ora o
falo poder o cetro a calar a todos que questionam sobre o silncio do rei; ora objeto de
adorao, falo-Deus, como os amuletos em forma de pnis com asas da Roma antiga. Todas
as acepes de sentido da metfora-falo so idnticas e diversas. A metonmia, ao transformlos, torna os sentidos mais nebulosos e negativos, pois o falo, o pinto, passa tambm a
representar o silncio, a tirania, a morte. Assim, a partir de derivaes metonmicas, o falo
representa variados interditos de carter negativo 5.
O interdito em O reizinho gay associaria a metfora do falo ao assassinato, pois
quando o rei corrompe o reino com a pornografia (o falo), o soberano mata todos os sditos.
Entretanto, se olharmos pelo vis do reino, teremos o interdito do suicdio, uma vez que os
moradores do reino escolheram o silncio e por isso esse reino perdido / na memria dos
tempos / s restaram cinzas / levadas pelo vento (HILST, 2002, p. 14). Uma verdadeira stira
pornografia e ao silncio do povo diante das atrocidades cometidas por seus governantes,
encaradas, em Buflicas, como uma obscenidade.
Sobre o silncio que impera na multido do poema, Joelma Silva entende que o
silncio do rei ecoa na boca da multido horrorizada pelo que viu. A bronha, que tambm o
cetro, representa o poder recebido de cima, sinal de fora e autoridade, pelo qual nenhum
sdito, nem mesmo os doutos, ter coragem de enfrentar (SILVA, 2009, p. 169). Ao
contrrio do que entende a pesquisadora, no vemos o povo do reino como uma vtima, uma
vez que eles que se prostituram ao pedir a exibio do falo e ao calar-se: E foi assim que o
5

O falo tambm encarado de forma negativa no poema A cantora gritante (HILST, 2002, p. 29-30),
representado igualmente de forma opressora, pois a cantora estuprada pelo jumento Fodo com o intuito de
calar-lhe a voz. Alm disso, os interditos sexuais aparecem nos demais poemas-fbulas: em Drida, a maga
perversa e fria, a bruxa com a sua espada sodomiza todos que encontra em seu caminho; em A Chapu, a
av explorada pela neta um travesti e pratica sexo anal com o Lobo homo-orientado; o ano tem um pnis
enorme; a fada noite vira fera e sodomiza os moradores da Vila do Troo. Como se percebe, os interditos
sexuais aparecem em todos os poemas e so utilizados para provocar outro interdito: o riso, que estudaremos
neste captulo.

47

reino / Embasbacado, mudo / Aquietou-se sonhando / Com seu rei pintudo. O povo
desapareceria devido ao fato de no falar e calar-se perante o rgio falo do rei. Logo, o que
est em questo no poema-fbula no o ato de o reizinho mostrar a bronha, e sim o fato
de o povo do reino ficar mudo diante do pinto soberano. O reizinho, ao se pronunciar pela
primeira vez, mostra a violncia de um sdico, que, despreocupado com o bem comum, exige
para si um cu cabeludo e sacrifica todo o reino. Hilda Hilst, ao retratar o rei como um
sdico6, o faz de forma negativa e reafirma a importncia de o povo dominar e ter a palavra
para mudar sua condio de explorado perante seus governantes.
Roland Barthes (2005), em Sade, Fourrier, Loyola, coloca-nos por dentro das malhas
da literatura libertina e ressalta a importncia da palavra no texto sadiano:
Na cidade sadiana, talvez seja a palavra o nico privilgio de casta que no se possa
reduzir. Possui-lhe o libertino toda gama, do silncio em que se exerce o erotismo
profundo, telrico, do segredo, at as convulses da palavra que acompanham o
xtase e todos os usos (ordem de operaes, blasfmias, arengas, dissertaes); ele
pode at, suprema propriedade, deleg-las (s historiadoras). porque a palavra se
confunde inteiramente com a marca confessa do libertino, que (no vocabulrio de
Sade) a imaginao: dir-se-ia quase que imaginao a palavra para a linguagem. O
agente no fundamentalmente aquele que tem o poder ou o prazer, aquele que
detm a direo da cena e da frase (sabemos que toda cena sadiana a frase de uma
outra lngua), ou ainda: a direo do sentido (BARTHES, 2005, p. 23-24, grifos do
autor).

Segundo Barthes, para os libertinos, a palavra seria a nica coisa que demonstraria a
diviso de classes. Apenas aqueles detentores do dinheiro teriam o direito de se pronunciar na
narrativa. Barthes (2005, p. 24) diz que Sade teria se antecipado e invertido Freud, pois faz o
esperma substituir a palavra. No poema-fbula O reizinho gay, o soberano escolhe o
silncio-smen e converte toda a populao do reino. Entretanto, ao contrrio do que ocorre
nos romances sadianos analisados por Barthes, no poema, a escolha do reizinho pintudo e
do povo calado perante a tirania e a vontade do soberano descrita de forma negativa.
No poema existem dois focos de cenas obscenas: a do soberano a exibir o falo
gigantesco para os seus sditos; e a corrupo do povo querendo ver e adorar o mastruo do
6

Sobre o sdico, Hilda Hilst, em entrevista concedida a Hussein Rimi, em 1991, e reunida em livro por Cristiano
Diniz, relata a impossibilidade de excitar-se sexualmente levando em considerao as fantasias descritas por
Marqus de Sade. Para a autora, as fantasias erticas de Sade so inaceitveis. Porque impossvel se excitar
com tanto sangue, tanta pancadaria. Voc chega no meio da histria e pensa: Essa mulher est um hematoma
s. Tem situaes em que voc pode dar um tapa num homem e ele em voc, falando meia dzia de palavres.
Isso pode ser excitante. Mas essa coisa de hematoma definitivo no me causa nenhuma alegria sexual. Eu fico
chocada (DINIZ, 2013, p. 142). Hilst, como deixa claro em suas entrevistas, estranha as fantasias sadianas e
provvel que tenha retratado negativamente seu reizinho como uma forma de crtica poltica para a poca.

48

rei, sendo, portanto, um povo prostitudo. Hilda Hilst se utiliza de ferramentas discursivas
obscenas e burlescas para passar a mensagem de que os homens (maridos / Sabiches e
bispos [p. 12]), ajoelhando-se perante a pornografia (exibio da bronha / Sem cerimnia
[p. 12]), como os doutos do reino buflico, no tero um final feliz, pois, igualmente ao reino
de Buflicas, deles s restaro cinzas / levadas pelo vento (p. 14); encontrariam, como fim,
o interdito da morte, uma outra obscenidade.
Na coda de O reizinho gay, Hilst nos deixa a pista de que A palavra necessria/
diante do absurdo (HILST, 2002, p. 14). Essa moral parece iluminar toda a obra de Hilda
Hilst e nos indica, aparentemente, que esse reino bufo seria o Brasil, pois, como a prpria
escritora denunciava em entrevistas, ela vivia em um pas bandalho, onde a populao no
valorava a palavra e, por conseguinte, o saber que ela veicula. Como o povo do reino no d
importncia palavra assim como o povo brasileiro , para o leitor resta a certeza de que a
palavra mais importante do que a virilidade que significa tirania patriarcal, masculinista; o
poema reafirma a importncia do discurso libertrio, representado pela palavra em confronto
com um mundo pornogrfico. Mundo esse figurado no poema-fbula pelo silncio, entendido
como a corrupo do povo perante o gosto e o poder arbitrrio do seu governante, que
compe a verdadeira obscenidade, disfarada pelo monstruoso pnis-cajado do reizinho, que o
poema-fbula tenta desmascarar.
Com relao metfora existente em A rainha careca a passarinha , percebe-se
a metfora da cara:
De cabeleira farta
De rgidas ombreiras
de elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
noite alisava
O monte lisinho
Coa lupa procurava
Um tnue fiozinho
Que h tempos avistara.
[...].
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Senhora! O biscate exclamou.
pra agora!
E arrancou do prprio peito
Os plos
E com saliva de sculos
Colou-os

49

Concomitante penetrando-lhe os meios.


UI! UI! UI! Gemeu Ula
De felicidade.
Cabeluda ou no
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, mui contentinha
A Rainha Ula j no chora
(HILST, 2002, p. 15-18).

No poema-fbula da rainha Ula, Hilda Hilst explora a metfora da nossa cara animal,
sexual: a bunda e os rgos genitais (PAZ, 1979, p. 10). Em Conjunes e disjunes,
Octavio Paz trata sobre a metfora, que seria para o crtico mexicano a aluso quilo de que
no podemos falar, mas de que todos falam por meio de uma linguagem cifrada e alegrica
(p. 10). Para o estudioso, as obras obscenas nos ensinam a encarar a realidade que est abaixo
da cintura e que nossa roupa encobre; fazem-nos perceber o nosso rosto sexual, metfora que
to antiga como a dos olhos espelhos da alma e mais certa (p. 10). Segundo o crtico
mexicano, h uma luta entre os dois rostos, a cara e o cu, entre o princpio da realidade
(repressivo) e o princpio do prazer (explosivo). Essa dualidade entre os sentidos do rosto do
alto e do baixo corporal descobre uma semelhana; imediatamente depois, a recobre, ou
porque o primeiro termo absorve o segundo ou vice-versa (PAZ, 1979, p. 11).
Hilda Hilst, em A rainha careca, utiliza a metfora do rosto como uma luta entre a
represso e a liberdade, a cabea e o rosto do alto corporal em oposio ao rosto obsceno
(vagina e o nus). Observamos um potencial libertrio pela derivao semntica a partir da
metonmia, quando se trocam os sentidos entre os correspondentes da coma da cabea e da
vulva. Em um primeiro momento, passarinha muda para vulva, depois para virgindade,
liberdade, felicidade: Cabeluda ou no / Rainha ou prostituta / Hei de ficar contigo / A vida
toda! / Evidente que aos poucos / Despregou-se o tufo todo. / Mas isso o que importa? / Feliz,
mui contentinha / A Rainha Ula j no chora (HILST, 2002, p. 17-18).
Ula recorre, no meio do poema, ao primeiro passante para que este, com sua gota
aguda um leve disfarce para pnis penetrasse-lhe os meios e curasse o seu problema.
Como vemos, o interdito exposto no poema seria o do sexo, a partir do jogo entre gota
aguda (provvel aluso forma da glande do pnis) e pnis, expondo ao leitor o ato e os
rgos sexuais das personagens. Por ser uma rainha, esperava-se que Ula fosse virgem e
50

apenas uma procriadora. Nessa buflica, a rainha casta, mas devido falta de pelos
pbicos, e no por sua condio ulica: De cabeleira farta / De rgidas ombreiras / de
elegante beca / Ula era casta / Porque de passarinha / Era careca (HILST, 2002, p. 15).
O interdito no poema, que seria a exibio dos rgos sexuais das personagens, esconde
outra interdio: a dos desejos que necessitam da concretude independentemente da condio
social, explcita, no poema-fbula, pela rgida ombreira e pela elegante beca da rainha.

1.2.

O RISO OBSCENO DE BUFLICAS

Nas Buflicas, o uso do obsceno de forma exagerada e caricatural que nos leva ao riso,
pois as personagens tradicionais dos contos de fadas so desnudadas e seus defeitos (ou aquilo
que , em geral, considerado socialmente como falhas humanas) so expostos como forma de
causar o riso. por isso que a ideia de pornografia ou de erotismo deixada de lado pela
maioria dos crticos que estudaram essa obra hilstiana.
Georges Bataille, em seu famoso prefcio de Madame Edward, faz algumas
consideraes pertinentes com relao ao riso e literatura ertica:
O mais penoso comeou quando apenas os interditos concernentes s circunstncias
da desapario do ser receberam um aspecto grave, tendo aqueles concernentes s
circunstncias da apario toda a atividade gentica deixado de ser tomado a
srio. No est em questo protestar contra a tendncia do grande nmero: ela
expresso do destino, que quis que o homem risse de seus rgos reprodutores. Mas
esse riso, que acusa a oposio do prazer e da dor (a dor e a morte so dignas de
respeito, ao passo que o prazer derrisrio, condenado ao desprezo), indica tambm
seu parentesco fundamental. O riso no mais respeitoso, mas signo de horror. O
riso a atitude de compromisso que o homem adota em presena de um aspecto que
repugna, quando esse aspecto no parece grave. Dessa forma, o erotismo
considerado gravemente, tragicamente, representa uma inverso (BATAILLE, 2013,
p. 293).

Georges Bataille considera que o riso referente a nossos rgos sexuais surge do
pudor, e recomenda que voltemos ao tempo da animalidade, da livre devorao e da
indiferena s imundices (2013, p. 293). Para o filsofo, o riso que condena o sexo
desonra, uma vez que ele nos engaja no princpio de uma interdio, que no nos deixa
51

compreender o que est em jogo, isto , no nos deixa levar a srio ou seja, tragicamente
a verdade do erotismo (BATAILLE, 2013, p. 293). O riso, na viso de Bataille, um
interdito para que no se compreenda a verdade que o erotismo tem a revelar.
Desde a Antiguidade, percebemos muitas vises negativas em relao ao riso. Sobre a
do sculo XX, no qual a obra de Hilda Hilst estaria inserida, Georges Minois, em sua Histria
do riso e do escrnio, comenta que o riso nos anos de 1900 foi usado como ferramenta
subversiva contra o poder (MINOIS, 2003, p. 594). Nesse sculo, devido aos regimes
totalitrios que inundaram o mundo, o riso foi uma arma importante de combate s
atrocidades, durante e aps duas guerras mundiais. Se, por um lado, Georges Minois aponta
essa avalanche de gargalhadas e a vitalidade do riso no sculo XX, por outro, anuncia para o
fim do sculo XX e incio do XXI a morte do riso, pois este virou um produto a ser
comercializado, receitado, etiquetado (MINOIS, 2003, p. 593-594). Entretanto, ao contrrio
do que estipula Minois no decorrer de sua explanao histrica sobre a derriso na
contemporaneidade, Hilda Hilst utiliza as ferramentas discursivas do riso conhecidas desde a
Antiguidade, como a pardia, as inverses ideolgicas, a obscenidade, o grotesco e a
caricatura de tipos humanos, para castigar, satiricamente, com o riso os maus costumes,
debochando da sociedade brasileira.
Os latinos s encontraram o seu verdadeiro riso na stira, pois ela tomou propores
nacionais. Minois ressalta que os alvos so, ao mesmo tempo, morais, sociais e polticos, e
seu esprito, essencialmente conservador (MINOIS, 2003, p. 87), j que os satricos latinos
tambm o eram. A troa, em Roma, era a preferida do pblico mdio, pois a distncia da
crtica possibilitava o riso solto da multido. Dessa forma, a stira era realizada apegada s
tradies. Lucilius, considerado o fundador do gnero, denunciava os defeitos da aristocracia
e os vcios que ele via invadirem Roma, o que levava a turba ao riso solto. Todavia, essa
derriso popular tinha como funo manter o poder das classes dominantes, pois a verdadeira
vtima era aquela que estava rindo. Ao longo da histria, como observa Minois, a pardia foi
um recurso eficaz na stira para castigar com o riso os maus costumes.
Ccero, por sua vez, em seu Oratore, elabora teorias sobre o riso, afirmando que
algo natural do homem como pensava Aristteles , e que para provoc-lo necessrio
apontar sempre alguma feira moral, alguma deformidade fsica. Sim, o meio mais poderoso,
se no o nico, de provocar o riso ressaltar uma dessas feiras, de modo que no seja feio
(CCERO, apud MINOIS, 2003, p. 106). Ao destacar o que faz rir, Ccero enumera as
52

ferramentas retricas que causam a derriso, como trocadilho, paronomsia, jogos de palavras
com nomes prprios, antfrases, alegoria, dentre outros. Tais ferramentas retricas, sobretudo
o trocadilho, os jogos de palavras com nomes prprios e alegorias, so utilizados por Hilda
Hilst para elaborar sua stira poltica aos costumes conservadores da elite brasileira. A
autora resgata o riso romano ao mencionar na epgrafe a mxima de Lucrcio: Ridendo
castigat mores; ao contrrio do que se estipulava sobre o riso romano, que teria como intuito
manter a ordem pr-estabelecida, Hilda Hilst com o seu riso degrada a sociedade moralista do
pas. Em Buflicas, Hilst vai na contramo da ideia exposta pela mxima proferida por
Lucrcio. Se antes o riso romano objetivava manter as coisas como estavam, sendo, portanto,
conservador, o riso de Hilst transgressor, na medida em que extrapola os limites da lngua e
dos bons comportamentos para compor sua stira.
O riso medieval, no mbito leigo e profano, surge parodstico nas festas dos loucos e
no carnaval, eventos e feriados proibidos dentro da igreja, mas tolerados em seu entorno. Por
isso o riso tem seu pice na Idade Mdia central e baixa, ocorrendo seu declnio em 1350,
com o aumento populacional, as guerras e a Peste Negra, que dizimou grande parte da
populao europeia (MINOIS, 2003, p. 241-242). A viso dos religiosos, tendo em vista os
acontecimentos histricos, anunciava agora o riso como responsvel pelo apocalipse.
Observa-se que o riso, ao longo dos sculos, foi considerado ao baixa, inferior, o que nos
permite constatar a permanncia do pensamento aristotlico sobre a abordagem fsica do riso,
relacionado s partes baixas do corpo, que se manteve ao longo da histria.
Desde os gregos, como percebemos pelo cenrio do riso exposto por Georges Minois,
pensa-se que o riso e o risvel resultam em torpeza que no causa nem dor nem destruio,
seria apenas um erro leviano com nenhuma consequncia (ALBERTI, 2011, p. 47). Nos
estudos tericos sobre o riso, como podemos observar em a Histria do riso e do escrnio, de
Minois, e no livro O riso e o risvel: na histria do pensamento (2011), de Verona Alberti, o
que deve importar ao escritor satrico a noo de que a crtica cmica deve corrigir os
costumes de forma agradvel, e sem causar prejuzos.
Sobre os gneros literrios, Aristteles faz uma comparao entre os gneros nobres,
como a tragdia e a epopeia, ou melhor, a chamada alta literatura e a baixa literatura a partir
da localizao do corpo. Verena Alberti traduz e resume exemplarmente este pensamento do
filsofo:

53

[...] o diafragma separa o alto e o baixo do animal, isolando assim o corao e o


pulmo do abdmen, protegendo-os da exalao e do excesso de calor desprendidos
dos alimentos. Ele funciona como uma espcie de barragem entre a parte nobre
(cabea, pulmes, corao) e parte menos nobre (abdmen, fgado, bao, vescula
etc.) em todos os animais em que possvel separar o alto e o baixo. Pelo fato de o
humor quente e excrementcio exalado pelas partes adventcias ao diafragma
provocar uma perturbao manifesta no raciocnio e na sensibilidade, continua
Aristteles, alguns autores chamam diafragma de centro frnico (isto , o
pensamento), como se aquelas partes participassem do pensamento. Convm
esclarecer que os radicais gregos phrne phrnos remetem tanto ao diafragma
como em frenite quanto ao pensamento como em frenologia. Nota-se que a
oposio mediana do diafragma confere-lhe um estatuto particularmente importante,
pois ele encerra as especificidades do alto (do pensamento, da sensibilidade) e do
baixo (uma vez que atrai os humores exalados pela atividade digestiva) (ALBERTI,
2011, p. 50, grifos do autor).

O diafragma, na concepo de Aristteles, diviso corporal que ditaria as vertentes


da arte, conforme os estmulos que causassem na mudana dos humores. Por isso, faz-se
necessrio destacar alguns pontos sobre a ferramenta discursiva medieval do rebaixamento,
usada em todos os poemas-fbulas de Buflicas.
Na histria da stira, de que Hilda Hilst se vale, h autores consagrados que
escreveram sobre o baixo material e corporal, isto , temas e imagens relacionados
fisiologia e, sobretudo, sexualidade. Sobre essa temtica, Mikhail Bakhtin acrescenta que o
baixo e o alto do corpo humano tm caractersticas topogrficas: o segundo representa o cu
e, dessa forma, as partes altas do corpo, como a cabea e os olhos, smbolos da
intelectualidade e da alma. J o baixo corporal so as partes ligadas terra, sensualidade, ou
seja, o ventre e as regies excretoras e reprodutoras, respectivamente o nus, a vagina e o
pnis (BAKHTIN, 1993, p. 18). referncia e representao desses elementos, designados
pelas trs regies excretoras do corpo, ligados linguagem, o autor russo deu o nome de
realismo grotesco. E transferncia daquilo que elevado, espiritual e abstrato para o baixo
corporal, de tom jocoso, satrico e blasfematrio, d-se o nome de rebaixamento ideolgico
(p. 17-18).
Em O reizinho gay, vemos a personagem que representa a figura masculina real,
constatando-se um intertexto com o conto O rei sapo ou Henrique de Ferro, de Jacob e
Wilhelm Grimm (2004, p. 118-126). No ttulo do poema-fbula destaca-se o radical rei
juntamente com o sufixo diminutivo zinho (rei+zinho), escolhido propositalmente para
contrapor sua atividade social nobre e patriarcal a uma atuao diminuda, pois o reizinho
gay reinaria menos que o reizinho pintudo, ou seja, seu pnis, uma pequena parte do corpo,
ganha uma importncia maior do que a personagem: O reizinho gay / Reinava soberano /
54

Sobre toda nao. / Mas reinava... / APENAS... / Pela linda peroba / Que se lhe adivinhava /
Entre as coxas grossas (HILST, 2002, p. 11).
O rei e o cedro, smbolos da masculinidade e do poder, so, portanto, rebaixados no
poema de Hilst. O rei, como sugerido pelo uso do diminutivo, ou de baixa estatura ou tem
o zinho como referncia ironicamente afetada ao fato de ser homo-orientado ou, em termos
satricos, viadinho. Assim, o pnis ganha importncia maior do que a do prprio homem,
diluindo sua capacidade de ordem, de expresso do pensamento, originada no intelecto
(ALBERTI, 2011, p. 50). Como sabemos, o rei, nos contos de fada, seria um disfarce para a
figura do pai da criana que leria o conto. Para entendermos a personagem do rei nos contos
de fadas e seu evidente rebaixamento no poema buflico, temos que levar em conta o que ele
representa na tradio.
Bruno Bettelheim (1998), em A psicanlise dos contos de fadas, analisa a figura do rei
em O rei sapo ou Henrique de Ferro, como aquele que faria a princesa tomar as decises
certas e cumprir com a sua palavra:
O pai, como em tantas estrias do ciclo de noivo-animal, a pessoa que une a filha
ao futuro marido, em O rei sapo, s por sua insistncia ocorre a unio feliz. A
orientao paterna, que leva formao do superego deve-se manter as promessas,
ainda que elas no tenham sido sbias desenvolve uma conscincia responsvel.
Esta necessria para uma unio pessoal e sexual feliz, a qual sem uma conscincia
madura no teria seriedade e permanncia (BETTELHEIM, 1998, p. 328-329).

No conto infantil, o rei, pai da princesa, aquele que faz com que a sua filha
mantenha a palavra para que a promessa seja cumprida , como podemos notar no
fragmento do conto, em que o rei obriga sua filha a cumprir o prometido com o ser
repugnante representado pelo sapo: se fez uma promessa, ento tem de cumpri-la. V e
deixe-o entrar (GRIMM, 2004, p. 124).
No conto de fada valorada a palavra, ou promessa; no poema, esse ato de enunciarse vem rebaixado pelo silncio imposto pela imagem do reizinho pintudo; o que importaria
o falo, o silncio que subjugava todo o reino. O povo covarde se ajoelha diante do gigante
pau do soberano a ador-lo: E eram s agudos / Dissidentes mudos / Que se ajoelhavam /
Diante do mistrio / Desse rgio falo / Que de to gigante / Parecia etreo (HILST, 2002, p.
12).
Teofrasto (2010), em Caracteres, disserta sobre os tipos humanos que permeiam as
comdias e enumera os principais deles: o guloso, o covarde, o soberbo, o ruim, o vaidoso,
55

dentre outros. Sobre o covarde, ressalta que age a partir do medo: no mar, amedronta-se com
os cabos do navio, inventa histrias de que tem medo devido a um sonho que teve e pede para
ir para terra; no exrcito, finge que esqueceu a espada na barraca e fica l escondido evitando
o confronto; ao ver um amigo ferido, vai ajud-lo por medo de enfrentar a batalha e,
consequentemente, inventa histrias mirabolantes de resgate (TEOFRASTO, 2010, p. 123125). Em Hilda Hilst, o covarde representado por todo o povo que se deixa corromper e
seduzir pelo pnis soberano do reizinho gay e no denuncia suas barbaridades. Devido a essa
covardia, todo o reino sucumbir, restando dele apenas cinzas. O poema-fbula do reizinho
salienta, como vimos, a importncia da palavra tanto do povo como do soberano, em
contraposto ao falo, obscenidade representada pelo gigantesco pnis do diminuto ou
afetado soberano , uma vez que o silncio de ambos faz com que o fim trgico acontea: o
reino desaparea, e morram todos os sditos. O poema O reizinho gay tenta ponderar
satiricamente que o silncio do povo diante dos absurdos cometidos por seus governantes
como expor as partes sexuais, metfora do poder falocntrico, para calar a multido o que
causa o interdito da morte, j que o governante no encontra oposio a seus caprichos e pode
se transformar em um dspota.
Em A rainha careca, vemos a personagem que representa a matriarca soberana. A
protagonista Ula tem vergonha de ser careca nos meios, ou seja, desprovida de pelos
pubianos. Paulo Roberto Sodr (2009), sobre o nome da rainha do poema-fbula, nos deixa
algumas pistas acerca da composio do nome da personagem:
O nome da rainha, Ula, requer um exame detido; para tanto, lano mo do
procedimento retrico da interpretatio nominis, a partir do qual se percebe o jogo da
poeta (nunca poetisa, como ela afirmava) com o inusitado nome: -ula, sufixo latino
formador de diminutivos; assim, Ula significaria pequena, mida. No Algarve, em
Portugal, ula substantivo feminino cujo sentido grande agitao, correria,
confuso (HOUAISS, 2001, p. 2799). Alm dessas acepes ligadas ao sufixo e ao
substantivo ula, h ainda outras ligadas a ulo, termo cabvel no jogo de Hilst:
elemento compositivo grego que significa gengiva, cicatriz e crespo, anelado;
ademais, ulo substantivo masculino que significa queixume de pesar, dor,
desgosto; lamento, gemido (HOUAISS, 2001, p. 2800), ligado, portanto, ao verbo
ulular (SODR, 2009, p. 52).

O jogo de sentidos no nome da rainha Ula pode ser relacionado com a proposta de se
fazer rir, pois at a prpria personagem seria pequena, mida, estatura ou qualidade
pouco adequada figura magna de uma rainha.
56

Ao explorar os defeitos sexuais das personagens, Hilda Hilst pretende desmascarlas, ou desnud-las. O carter explorado por Hilda, no poema, o do vaidoso na figura de Ula.
Segundo Teofrasto (2010, p. 109-113), a vaidade seria uma forma de ser famoso, para tanto, o
vaidoso, com seus atos, demonstra riqueza e desprendimento de seus bens pessoais, tudo em
um esforo descomedido para que aqueles que o cercam o vejam como um vitorioso. Esse
tipo o que d muito valor aparncia e, por isso, corta o cabelo muitas vezes e gosta de
exibir sua riqueza e seus objetos.
A vaidade de Ula evidenciada pelo seu intertexto com Branca de Neve de
Wilhelm e Jacob Grimm (2004, p. 84-99), em que a rainha do conto se olha no espelho
mgico com o intuito de saber se ainda a mais bela do reino. Sobre o narcisismo dessa
rainha no conto, Bruno Bettelheim explica:
Quando a rainha consulta o espelho quanto a seu valor i.e., a beleza repete o
tema antigo de Narciso, que s amava a si mesmo, de tal forma que foi tragado pelo
auto-amor. Os pais narcisistas so os que se sentem mais ameaados pelo
crescimento da criana, pois isto significa estar envelhecendo. Enquanto a criana
totalmente dependente como se ela fosse uma parte dos pais; no ameaa o
narcisismo paterno. Mas quando comea a amadurecer e atingir certa independncia,
ento vivenciada como uma ameaa, como sucede em Branca de Neve. [...]. O
narcisismo faz parte da configurao infantil. A criana deve aprender gradualmente
a transcender esta forma perigosa de auto-envolvimento. A estria de Branca de
Neve adverte sobre as consequncias funestas do narcisismo tanto para os pais como
para a criana. O narcisismo de Branca de Neve quase a destri quando ela cede
duas vezes s sedues da rainha que prope torn-la mais bonita, e a rainha
destruda pelo prprio narcisismo (BETTELHEIM, 1998, p. 242, grifo do autor).

No poema-fbula hilstiano, a vaidade, ao contrrio do que ocorre com a rainha de


Branca de Neve, no se expressa como mal, mas como um ideal a ser atingido sem prejuzo
de algum. A rainha Ula procura a perfeio, entretanto no para sua aparncia social,
uma vez que, sendo uma mulher de cabeleira farta / De rgidas ombreiras / de elegante beca
(HILST, 2002, p. 15), ela sexualmente atraente (BETTELHEIM, 1998, p. 251). Assim como
a rainha de Branca de Neve, que a mais bela do reino e s perde seu posto para Branca de
Neve, Ula tambm bela, mas, ao contrrio do que se d no conto, no est em competio
com algum. Todavia, encontramos o problema do poema da rainha: est infeliz, pois careca
nos meios e sonha com pentelhos para a sua passarinha, a vulva, portanto,
imperfeita, apesar de bela (ALMEIDA, 1981, p. 270).

57

Dessa forma, podemos perceber que o narcisismo representado no conto de fada vem
reduzido no poema da rainha careca para o baixo corporal; em vez de desejar cabelos no
alto corporal, anseia por pentelhos para o seu monte de Vnus:
noite alisava
O monte lisinho
Coa lupa procurava
Um tnue fiozinho
Que h tempos avistara.
cus! Exclamava.
Por que me fizeram
To farta de cabelos
To careca nos meios?
E chorava
(HILST, 2002, p. 15).

O problema de Ula s resolvido pelos venenos do biscate peludo. Bruno


Bettelheim, ao discutir sobre o veneno no conto da Branca de Neve, ressalta que os desejos
so venenosos, devido ao carter sexual implicado no ato de arrumar-se, pois a pessoa que se
arruma quer estar atraente para a(s) outra(s) (BETTELHEIM, 1998, p. 251). Como sabemos,
os envenenamentos do conto de Grimm ocorrem por meio do pente e da ma; os dois,
portanto, esto relacionados com o alto corporal, embora a boca implique o apetite e, no
exagero, a glutonaria, que abarcaria o baixo corporal. O pente estaria relacionado com o
desejo inconsciente de Branca de Neve de ser sexualmente atraente (BETTELHEIM, 1998,
p. 251), no entanto, ao contrrio da negatividade do narcisismo dos contos de fadas, encarado
como um desejo venenoso, no poema, o desejo de ficar sedutora aparece rebaixado quando a
rainha Ula analisa e procura com a ajuda de uma lupa um tnue fiozinho em seu monte
lisinho. Sobre a ma, Bruno Bettelheim (1998, p. 252), em sua anlise, repara no potencial
sexual da fruta que tinha aspectos tanto assexuais como erticos. Quando come a parte
vermelha (ertica) da ma, termina sua inocncia. Desse modo, Branca de Neve,
metaforicamente, estaria envolvida nas fortes emoes do sexo. O veneno em Buflicas
aparece igualmente rebaixado, j que sai do plano das ideias, do metafrico, e se concretiza
em Uma gota aguda, que pode ser entendida como referncia exagerada glande do pnis
do biscate peludo.
Vladmir Propp, em Comicidade e riso, analisa os tipos de exagero, pois, segundo o
terico russo, o exagero cmico apenas quando desnuda um defeito. Se este no existe, o
exagero j no se enquadra no domnio da comicidade (1992, p. 88). Para Propp, possvel
58

demonstrar o exagero, a partir da anlise das trs formas bsicas: a caricatura, a hiprbole7 e o
grotesco8 (p. 88). Ao tratar da caricatura, o terico salienta que
Toma-se um pormenor, um detalhe; esse detalhe exagerado de modo a atrair para
si uma ateno exclusiva, enquanto todas as demais caractersticas de quem ou
daquilo que submetido caricaturizao a partir desse momento so canceladas e
deixam de existir. A caricatura de fenmenos de ordem fsica (um nariz grande, uma
barriga avantajada, a calvcie) no se diferencia em nada da caricatura de fenmenos
de ordem espiritual, da caricatura dos caracteres. A representao cmica,
caricatural, de um carter est em tomar uma particularidade qualquer da pessoa e
em represent-la como nica, ou seja, em exager-la (PROPP, 1992, p. 88-89).

Nas Buflicas, o tipo de exagero utilizado a caricatura, uma vez que apenas uma
mincia exagerada: as situaes sexuais causadas pelo falso moralismo preponderante em
nossa sociedade brasileira. Hilda Hilst, ao utilizar a caricatura para causar o riso em suas
crnicas, por exemplo, ela tambm faz uso desse recurso , demonstra que tanto a vida fsica
quanto a vida moral e intelectual do homem podem tornar-se objeto de riso (PROPP, 1992,
p. 29).
Henri Bergson (1987, p. 20), em O riso, destaca o poder da caricatura em imitar as
deformidades fsicas e sociais; para o pensador, incontestvel que certas deformidades tm
sobre as demais o triste privilgio de poder, em certos casos, provocar o riso. Partindo desse
pressuposto, o autor divide as deformidades em dois grupos: as que so risveis, por
ridicularizar os comportamentos humanos, e as que se afastam da derriso ao causar pena no
receptor. Assim, com o exagero, o escritor pode deformar e causar o riso no leitor, como
pretendeu Hilda Hilst com suas caricaturas.
As personagens dos contos de fadas, como se percebe, aparecem rebaixadas e
exageradas caricaturalmente em Buflicas com o intuito de que delas se extraia o riso crtico.
Hilda Hilst, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1992, ano de publicao desses poemas,
comenta sobre a subverso dos contos de fadas em seu livro: um livro poltico. Ele usa os
personagens dos contos de fadas tradicionais, mas subvertendo o imaginrio desses contos.

Para Vladmir Propp (1992, p. 90), a hiprbole uma variedade da caricatura. Na caricatura ocorre o exagero
de um pormenor; na hiprbole, do todo. A hiprbole ridcula somente quando ressalta as caractersticas
negativas e no as positivas. Isso evidente, sobretudo no epos popular.
8

Segundo o estruturalista russo, o grotesco o grau mais elevado do exagero. No grotesco o exagero atinge tais
dimenses que aquilo que aumentado j se transforma em monstruoso. Ele extrapola completamente os limites
da realidade e penetra no domnio do fantstico. Por isso o grotesco delimita-se j com o terrvel (PROPP,
1992, p. 91).

59

[...]. No classifico como literatura infantil, porque certamente no aceitariam essa definio
(HEYNEMANN, 1992).
A poeta se utiliza da caricatura para salientar, como vimos, a falsa moralidade que nos
cerca, ficando evidentes as deformidades polticas da sociedade brasileira e seu falso
moralismo, uma vez que o rei mostra sua masculinidade na sacada do castelo, mas sonha com
um cu cabeludo; a rainha casta, mas por vergonha de sua passarinha careca. Com o riso
gerado pelos caracteres cmicos, Hilda castiga a sociedade conservadora satirizada nesses
tipos humanos que pululam no cenrio bufo e exagerado de seus poemas.
Ademais disso, nos dois poemas-fbulas, Hilda Hilst lana mo do exagero caricatural
na formatao caracterolgica do rei e da rainha, para fazer uma crtica presena excedente
da Psicanlise. Bruno Bettelheim, analisando essas duas figuras soberanas, nos deixa dicas
preciosas sobre a viso psicanaltica sobre elas:
Mesmo quando o heri recebe um nome, como nas estrias de Joo, ou em Joo e
Maria, o uso de nomes bem comuns os torna genricos, valendo para qualquer
menino ou menina. [...]. Isto frisado ainda mais pelo fato de que nas estrias de
fadas mais ningum tem nome; os pais das figuras principais permanecem
annimos. So referidos como pai, me, madrasta, embora possam ser
descritos como um pobre pescador, ou um pobre lenhador. Se so um rei e
uma rainha, so disfarces leves para pai e me, assim como o so prncipe e
princesa para menino e menina (BETTELHEIM, 1998, p. 51).

Gilles Deleuze (2006, p. 345-352), em Cinco proposies sobre a psicanlise, tenta


resumir seu pensamento acerca da Psicanlise e reflete a respeito da importncia da emisso
enunciativa do desejo numa sociedade domada por esta rea de conhecimento, pois, segundo
o filsofo, para a psicanlise, pode-se dizer que h sempre desejos demais. Para ns, ao
contrrio, no h nunca desejos o bastante (DELEUZE, 2006, p. 345). A partir dessa
afirmao, Deleuze convida a que se produzam desejos como forma de escapar da tirania da
Psicanlise. Essa produo desejante, segundo o filsofo, pode ocorrer no campo social ou a
apario de enunciados e enunciaes de um gnero novo (DELEUZE, 2006, p. 345).
A maior crtica de Gilles Deleuze Psicanlise, porm, a reduo dos problemas
psicolgicos ao complexo de dipo. Utilizando-se do trabalho de Freud, Reviso da teoria
dos sonhos, mais precisamente o caso do sonho do lobo, Deleuze fundamenta sua crtica,
pois quando o Homem dos lobos sonha com seis ou sete lobos, o que por definio uma
matilha, a saber, um certo tipo de grupo, Freud s pensa em reduzir essa multiplicidade, em
reconduzir tudo a um s lobo, que ser forosamente o pai (DELEUZE, 2006, p. 346). Para
60

Deleuze, redues como essa seriam uma forma de esmagar toda a fora de enunciao
libidinal coletiva que se anunciou no sonho dos lobos.
Hilda Hilst9 tambm percebeu essa importncia excessiva atribuda Psicanlise no
meio editorial. Em entrevista sobre O caderno rosa de Lori Lamby, concedida ao Jornal do
Brasil em 1990, a escritora desabafa sobre as exigncias impostas pelas editoras para se
escrever literatura infantil. Segundo Hilst, o livro uma stira literatura infantil, pois o
mercado editorial exige que voc estude dez anos de Psicologia para escrever um livro
seguindo as normas de uma editora. Ora, o Mora Fuentes escreveu um conto infantil
maravilhoso, a Ilha vazia, e no encontra editor porque entra em conflitos fundamentais
(ARAUJO, 1990).
Hilda Hilst, assim, segue o conceito de engordar dipo, existente em Um dipo
grande demais, de Gilles Deleuze e Flix Guattari:
Em suma, no dipo que produz a neurose, a neurose, quer dizer, o desejo j
submetido e buscando comunicar a sua prpria submisso, que produz dipo.
dipo valor de mercado da neurose. Inversamente, ampliar e engordar dipo,
exager-lo, fazer dele um uso perverso ou paranoico, j sair da submisso, reerguer
a cabea e ver por sobre o ombro do pai o que est em questo todo o tempo nessa
histria: toda uma micropoltica do desejo, impasses e sadas, submisses e
reificaes. Abrir o impasse, desbloque-lo. Desterritorializar dipo no mundo, em
lugar de reterritorializar sobre dipo e na famlia. Mas, para isso, era preciso ampliar
dipo ao absurdo, at o cmico, escrever a Carta ao pai. O erro da psicanlise de
se deixar prender nela e de nos prender a ela, porque ela mesma vive do valor de
mercado da neurose, do qual ela tira toda mais-valia: A revolta contra o pai uma
comdia, no uma tragdia (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 23-24, grifos do
autor).

Em Buflicas, as situaes edipianas aparecem exageradas de forma caricatural e


rebaixadas como uma maneira de engordar dipo. Nos dois poemas-fbulas estudados neste
captulo, podemos destacar a representao psicanaltica do rei e da rainha, que seriam
representaes simblicas de pai e me, ligados ao princpio da realidade em detrimento do
prazer. Ao engordar dipo, Hilst inverte as representaes: se do rei ou pai se esperam a
heterossexualidade e a possibilidade de aconselhamento para que a protagonista enfrente seus
9

Sobre essa provvel aluso de pensamento na obra da autora, Jurandy Valena, em Hilda Hilst: notas, dobras e
desdobras (2013, p. 36), salienta que a escritora era leitora de O anti-dipo: capitalismo e esquizofrenia, de
Deleuze e Guattari. As citaes dos textos Cinco proposies sobre a psicanlise, de Gilles Deleuze, e Um
dipo grande demais, escrito em parceria com o psicanalista Flix Guattari, realizadas neste trabalho, devem-se
ao fato de a escritora ter sido leitora atenta das obras desses pensadores franceses. Foram escolhidos esses dois
trabalhos em razo de terem as ideias principais defendidas por Deleuze e Guattari em uma linguagem mais
simplificada que contribuiria para uma melhor compreenso dos termos e conceitos.

61

problemas, em Hilst o reizinho mudo e s se anuncia para exigir que se realize seu desejo:
Mas um dia... / Acabou-se da turba a fantasia. / O reizinho gritou / Na rampa e na sacada /Ao
meio-dia: / Ando cansado / De exibir meu mastruo / Para quem nem russo. / E quero sem
demora / Um buraco negro / Para raspar meu ganso. / Quero um cu cabeludo! (HILST, 2002,
p. 14). Da figura da rainha, ou melhor, da sua representao na Psicanlise, a me, espera-se
que seja casta e reprodutora, dedicando-se ao cuidado da casa e ao cuidado dos filhos. Ula
virgem, mas devido falta de pelos pbicos, tanto que quando encontrou algum que no
ligava para a sua calvcie, seu problema desapareceu:
Convocado ao palcio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
No tema, cavalheiro,
Disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Senhora! O biscate exclamou.
pra agora!
E arrancou do prprio peito
Os pelos
E com saliva de sculos
Colou-os
Concomitante penetrando-lhe os meios
(HILST, 2002, p. 17).

Em uma leitura apressada, pode-se pensar na obra como moralista e carregada de


preconceitos, devido ao aspecto cmico-satrico dos poemas-fbulas. Ri-se da inverso das
personagens e das contradies em que so postas. Ao colocar personagens tradicionais com
roupagem parodiada rainha no casta e rei gay , Hilst corre o risco de sugerir que uma
mulher desejante e um gay pintudo deveriam ser evitados, uma vez que isso significa
rebaixamento grotesco, podendo-se, dessa forma, realar os valores morais conservadores.
Entretanto, ao contrrio do que se poderia entender, compreendemos a obra como um
potencial crtico contra a Psicanlise e os complexos edipianos, tendo em vista que apresenta
as representaes psicanalticas das personagens invertidas: se na tradio se aconselha a no
sucumbir ao desejo, em Buflicas, aconselha-se a transgredir os valores conservadores da
sociedade brasileira ao se afirmar, a partir das situaes cmicas, o desejo. Vemos a obra
como uma zona em que os desejos se sobressaem; nela, o importante seria rebaixar a
Psicanlise e sugerir uma moral para os leitores de que h poucos desejos no mundo e de que
seria necessrio fazer da mquina edipiana um alvo para a crtica.
62

Na produo dos contos de fadas, sabemos que h o intuito do autor de passar um


ensinamento moral, a partir do simblico, para que a criana no se deixe levar pelo princpio
do prazer, pois se ela se deixar encantar pelos prazeres fugazes terminar mal como os
porquinhos preguiosos ou as princesas que necessitaro de auxlio para serem salvas,
mostrando o quo dependentes so do patriarcado. Dessa forma, o conto tem uma funo
pedaggica de passar para a criana, subconscientemente, que o princpio do prazer, o id
descontrolado pode lev-la para situaes malficas. J o princpio da realidade a ajudaria a
escapar de situaes de perda e de apertos com o uso da inteligncia e da perspiccia
(BETTELHEIM, 1998, p. 53-56). Hilda Hilst parece brincar com essas expectativas, ao
engordar dipo, deixando-o trgido e reinventando o real, pois quando rebaixa as
personagens a partir das consideraes psicanalticas, a autora escancara, caricaturiza e
hiperboliza o discurso que est mais subjacente nos contos infantis e nos diz que temos que
assumir o desejo perante o mundo.
O riso buflico hilstiano se parece com o de Demcrito que Hipcrates (2013, p. 53)
descreve em Sobre o riso e a loucura , pois gargalha da falta de razo dos homens e da sua
vacuidade: sempre procuram riquezas, mas mantm-se mesquinhos; sempre desejam o sexo,
mas logo se enojam e ficam sozinhos; sempre esto tristes com seus sofrimentos infindveis.
Por essa razo, gargalha-se da desgraa dos homens; um riso desenfreado e quase louco das
figuras que nunca so plenas, pois censuram seus desejos e suas vontades. Assim se ri Hilst de
seus contemporneos.

63

2. BUFLICAS E AS PROFANAES PARDICAS

O mundo clssico concebia o termo pardia, como indica Giorgio Agamben ([2005]
2007), em Profanaes, remetendo-o para as tcnicas musicais. Indicava, portanto, a ciso
entre canto e palavra. De acordo com Agamben, Aristteles reconhece Hegemone de Thasos
como o primeiro a injetar a semelhana da pardia na rapsdia, ao modelar um tipo de
recitao que provocava risadas escandalosas dos atenienses. Quando, na recitao dos
poemas homricos, tal nexo acaba desfeito e os rapsodos comeam a introduzir melodias que
so percebidas como discordantes, diz-se que eles cantam para tem oden, contra o canto (ou
ao lado do canto) (AGAMBEN, 2007, p. 38-39). Como podemos notar a partir das
informaes do filsofo italiano, o conceito de pardia mantm-se entre o canto, a msica e a
palavra. Dessa forma, o termo pardia carrega em seu campo semntico uma subverso de
sentido do texto de origem:
Independente disso, segundo essa antiga acepo do termo, a pardia designa
ruptura do nexo natural entre a msica e a linguagem, a dissoluo do canto pela
palavra. Ou ento, pelo contrrio, da palavra pelo canto. , de fato, o afrouxamento
pardico dos vnculos tradicionais entre a msica e logos que torna possvel, com
Grgias, o nascimento da prosa de arte. O rompimento liberta um par, um espao
ao lado, em que se instala a prosa. Mas isso significa que a prosa literria traz em si
o sinal da separao do canto. O canto obscuro que, segundo Ccero, se ouve no
discurso em prosa (esta utem etiam in dicendoquidamcantusobscurior) , nesse
sentido, um lamento pela msica perdida, pelo desaparecimento do lugar natural do
canto (AGAMBEN, 2007, p. 39).

Nesse jogo de canto e contracanto, encontra-se o mistrio, aludido por Giorgio


Agamben como a liturgia da missa (2007, p. 40). Essas pardias sacras retratadas pelo terico
podem ser colocadas em dilogo com o conceito de realismo grotesco estudado por Mikhail
Bakhtin, quando este comenta sobre as blasfmias que decorrem da pardia s missas, s
oraes e a outros textos sacros no perodo medieval. Imagens e aes do realismo grotesco
costumam aparecer em textos em que o humor e a stira, geralmente expressos por meio da
pardia, so os recursos-chave. Apesar de a literatura cmico-popular ter sido perseguida ao
longo da histria, segundo Bakhtin (1993, p. 13), nas celas dos mosteiros medievais, em que
viviam os clrigos, praticavam-se pardias carregadas de obscenidades. Assim, a pardia,
juntamente com o realismo grotesco, rebaixava as formas nobres da literatura e da religio e,
ao mesmo tempo, materializava novos gneros. Essa mistura de gneros, que evidencia

sentimentos diversos, como o sagrado e, portanto, o elevado, juntamente com o grosseiro, o


baixo, expe um jogo profanatrio a partir da pardia, ressaltando a polaridade, como nos
lembra Giorgio Agamben:
Mas tenses polares reaparecem tambm no plano ertico. Desde sempre, causa
espanto a presena de uma pulso obscena e burlesca, ao lado da mais refinada
espiritualidade, frequentemente convivendo na mesma pessoa (caso exemplar
Arnault, cuja sirvente obscena nunca deixou de apresentar dificuldades para os
estudiosos). O poeta, obsessivamente ocupado em afastar o objeto de amor, vive em
simbiose com um parodista, que inverte pontualmente sua inteno (2007, p. 44).

Esse jogo com as tenses polares, entre o srio e o burlesco, revela a profanao, na
qual o uso do sagrado se faz presente. Alis, Agamben acrescenta que as esferas do sagrado
e do jogo esto estreitamente vinculadas (p. 66), uma vez que, para existir profanao,
necessrio que haja o jogo entre o objeto consagrado e o no consagrado para que, com esse
processo, ocorra a devoluo ao uso e propriedade dos Homens (TREBCIO, apud
AGAMBEN, 2007, p. 65). Sendo assim, a profanao consiste no deslocamento de um objeto
situado no lugar sagrado que devolvido ao uso dos homens, mas dessacralizado. A
profanao, assim, implica uma neutralizao daquilo que profana. Depois de ter sido
profanado o que estava indisponvel e separado perde a sua aura e acaba restitudo ao uso
(AGAMBEN, 2007, p. 68).
A propsito da profanao na obra de Hilda Hilst, em Tu, minha anta, HH (1998),
Alcir Pcora e Joo Adolfo Hansen relatam os processos profanatrios utilizados pela
escritora, em Estar sendo, ter sido, e, pelo que parece, tais processos so norteadores da maior
parte de sua obra. Para os crticos, a profanao seria um recurso de crtica por meio do qual
Hilst ironiza o capitalismo, porque no h profanao possvel num mundo em que o nico
sagrado o troca-troca mercantil (HANSEN; PCORA, 1998, p. 141), sendo, portanto, o
mercado a nica coisa sagrada que existe.
Como se percebe, parte da fortuna crtica de Hilda Hilst revela uma caracterstica
peculiar da profanao em sua obra, que elaborada a partir da anarquia dos gneros, como
pensa Alcir Pcora (2005). Para o crtico brasileiro, essa anarquia devida, em primeiro lugar,
aos [...] exerccios de estilo, isto , eles fazem o que lhes prprio com base no emprego de
matrizes cannicas dos diferentes gneros da tradio [...]. Em segundo lugar, fcil perceber
que essa imitao antiga jamais se pratica com purismo arqueolgico (PCORA, 2005). A
imitao antiga nos parece de carter altamente profanatrio, na medida em que d nova
65

viso e efeito aos gneros antigos, atualizando-os. Assim, gneros srios e clssicos como
fbulas e contos de fadas brincam juntamente com gneros burlescos e baixos. Como
analisa Pcora, ao escolher uma fbula, por exemplo, a autora dilui, no jogo da composio
literria, suas marcas genolgicas e nelas insere elementos do conto de fadas ou de outros
gneros, como epigramas, fabliaux10, poemas de escrnio, poemas obscenos, pornografia11
etc. Esse hibridismo faz-se presente tanto nos poemas, quanto nas narrativas da autora; uma
marca registrada, como nos permite deduzir Alcir Pcora.
Nos sete poemas que compem o livro de Hilda Hilst, portanto, ocorre o hibridismo de
gneros, resultado da pardia profanatria, estratgia discursiva fundamental para a
compreenso dos poemas de Buflicas.
Conforme esclarece Moiss, a fbula foi cultivada elevadamente na Antiguidade
clssica pelo escritor grego Esopo (sculo VI a.C.), e por Fedro (sculo I). Segundo o autor, a
fbula uma
Narrativa curta, no raro identificada com o aplogo12 e a parbola13, em razo da
moral, implcita ou explcita, que deve encerrar, e de sua estrutura dramtica. No

10

Considera-se esse gnero como um poema narrativo, geralmente composto em dsticos octossilbicos,
cultivado na Frana entre os sculos XII e XIII [...]. De cunho realista, os fabliaux caracterizam-se pelo cmico
grosseiro, oscilante entre a simples piada equvoca e a stira direta, arrasante e, no raro, pornogrfica. Girando
em torno da classe mdia, eram seus temas diletos o adultrio, a lascvia do clero, o rebaixamento social da
mulher, a cupidez dos comerciantes, a sujeira e a bisonhice do plebeu. Quando direcionados mulher, tinham
uma reao contra o endeusamento por parte dos trovadores provenais. Apesar do intuito de entretenimento,
tinham tambm objetivos moralizantes. Podiam conter caractersticas obscenas, satricas, realistas, burlescas e
anticorteses (MOISS, 2004, p. 183-184).
11

Tudo entra no jogo da profanao pardica de Hilda Hilst, pois a autora faz referncia aos romances
pornogrficos do sculo XVIII com a utilizao de frontispcios em Buflicas. Sobre essas ilustraes, Goulemot
(2000, p. 141) destaca que eram desenhos com carter complementar muito comum na literatura pornogrfica
daquele sculo, tendo como intuito estreitar a relao entre leitor e livro: Nesta tomada de contato, que engaja
ou no a leitura, ou pelo menos a compra, o frontispcio desempenha um papel prprio. Poder-se-ia pretender,
num caso-limite, que, neste, o texto suprfluo, a no ser que ele seja concebido como chamariz, esclarecido
pela imagem e completado pela pgina do ttulo. O essencial , pois, a fora sugestiva da imagem. Em
Buflicas, o fetiche da imagem do mascate transando com a rainha que efetivariam o contato direto com o
leitor, j que na primeira edio do livro essa ilustrao fazia parte da capa, realizando o convite leitura (e
compra do exemplar).
12

Narrativa curta, no raro identificada com a fbula e a parbola, graas moral, explicita ou implcita, que
deve encerrar e a estrutura dramtica sobre que se fundamenta. Contudo, h quem as distinga pelas personagens:
o aplogo seria protagonizado por objetos inanimados (plantas, pedras, rios, relgios, moedas, esttuas, etc.), ao
passo que a fbula conteria de preferncia animais irracionais, e a parbola, seres humanos (MOISS, 2004, p.
34).
13

Distingue-se da fbula e do aplogo pelo fato de ser protagonizada por seres humanos. Escrita em prosa,
comunica uma lio tica por vias indiretas e simblicas, [...] identifica-se com a Bblia, onde se encontra em

66

geral, protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as


caractersticas prprias, deixa transparecer uma aluso, via de regra satrica ou
pedaggica, aos seres humanos. Escrita em versos at o sculo XVIII, em seguida
adotou a prosa como veculo de expresso (MOISS, 2004, p. 184).

No que diz respeito aos contos de fadas, Nelly Novaes Coelho (1991, p. 12) explica que
estes vm sendo denominados erroneamente como contos maravilhosos. Apesar de os dois
pertencerem s narrativas maravilhosas, este ltimo gnero, tradicionalmente moralista e
pedaggico, prope uma mensagem diferente. As narrativas denominadas contos
maravilhosos como Aladim e a lmpada mgica e o Gato de botas , que no so
acompanhados de fadas, teriam seu desenvolvimento no cotidiano mgico (animais falantes,
tempo e espao reconhecveis ou familiares, objetos mgicos, gnios, duendes etc.) e tm
como eixo gerador uma problemtica social (ou ligada vida prtica, concreta). Teriam,
desse modo, um heri (ou anti-heri) que conquistaria bens, a partir da astcia, esperteza ou
inteligncia, e sairia de seu estado inicial de pobreza. Logo, nesses contos, geralmente, a
misria ou a necessidade de sobrevivncia fsica ponto de partida para as aventuras da
busca (COELHO, 1991, p. 14, grifos do autor).
J as narrativas denominadas contos de fadas como O sapatinho de vidro, Rapunzel e
A Bela e a fera podem vir

Com ou sem a presena de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos
desenvolvem-se dentro da magia ferica (reis, rainhas, prncipes, princesas, fadas,
gnios, bruxas, gigantes, anes, objetos mgicos, metamorfoses, tempo e espao fora
da realidade conhecida etc.) e tem como gerador uma problemtica existencial. Ou
melhor, tm como ncleo problemtico a realizao essencial do heri ou da
herona, realizao que, via de regra, est visceralmente ligada unio homemmulher (COELHO, 1991, p. 13, grifos do autor).

No caso das Buflicas, as personagens dos contos de fadas de que Hilda Hilst se
apropriou aparecem nos poemas-fbulas com anomalias genitais ou simplesmente com vcios
ou com o que se pensa comumente ser vcio que no so caractersticos dessas
personagens. Um exemplo o rei de O reizinho gay, que faz seu reino sucumbir de susto ao
exigir um cu cabeludo (HILST, 2002, p. 25), personagem que nos remete ao pai da princesa
em O rei sapo. Como vimos, neste conto de fadas, o pai tem o papel fundamental de
aconselhar a filha a manter a palavra. No texto de Hilst, ao contrrio, a personagem marcada
abundncia: o filho prdigo, a ovelha perdida, o semeador, o bom samaritano, a ceia de Natal, Lzaro e o rico,
etc. (MOISS, 2004, p. 337).

67

pela acentuada sexualidade, derivada, por um lado, do obsceno e do realismo grotesco, em


que se enfatiza pelo exagero o baixo corporal; e, por outro, do pornogrfico.
Vladmir Propp, em Comicidade e riso, acrescenta discusso que a arte de parodiar
Consiste na imitao das caractersticas exteriores de um fenmeno qualquer da vida
(das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos artsticos etc.), de modo a ocultar o
sentido interior daquilo que submetido parodizao. [...]. possvel, a rigor,
parodiar tudo: os movimentos e as aes de uma pessoa, seus gestos, o andar, a
mmica, a fala, os hbitos de suas profisses e o jargo profissional; possvel
parodiar no s uma pessoa, mas tambm o que criado por ela no mundo material
(PROPP, 1992, p. 84-85).

Como podemos observar, Propp define que h a liberdade de se parodiarem os


procedimentos artsticos de uma pessoa, mas ocultando o sentido original daquilo que
submetido pardia.
J Flvio Ren Kothe (1981), em Intertextualidade e literatura comparada, entende a
pardia como uma luta de classes no mbito da arte, uma vez que a tenso entre escolas,
perodos, estilos e tendncias (KOTHE, 1981, p. 134) faria a arte evoluir e ter o seu
progresso artstico. A luta de classes estaria relacionada com a escaramua dos agrupamentos
literrios, como uma forma de rebaixar estilos, textos e escolas literrias. O texto parodstico
teria, portanto, o objetivo de negar algo anterior a ele (1981, p.134-135). Kothe assume que a
intertextualidade seria um sinnimo de pardia que procuraria liquidar com o texto parodiado.
Affonso Romano de SantAnna, em Pardia, parfrase & cia., acrescenta que a
pardia por estar ao lado do novo e do diferente sempre inauguradora de um novo
paradigma. De avano em avano, ela constri a evoluo de um discurso (1985, p. 27). Ou
seja, Affonso Romano declara que a pardia tem como funo degradar a ideologia
dominante, pois, ao parodiar um texto cannico e aceito como uma verdade, o autor rompe
com os paradigmas existentes em sua poca, estabelecendo novos parmetros (p. 28).
Linda Hutcheon prope uma definio diferente em Uma teoria da pardia:
ensinamentos das formas de arte do sculo XX ([1985] 1989), pois, para ela, a definio de
intertexto estaria na interao do leitor com o texto; dessa forma, sua definio parte do
princpio interativo entre o texto e o leitor. Logo, para Hutcheon, o leitor que legitimaria as
relaes de um texto com outro, na medida em que determinada obra faz com que o leitor se
recorde de outros textos, relacionando essa obra a outras (1989, p. 111). Por isso, a

68

intertextualidade no pode ser tomada como pardia, j que seria apenas uma aluso ou
atualizao de outro texto.
Linda Hutcheon acrescenta novos elementos viso tradicional da pardia,
normalmente entendida como degradao do discurso, uma vez que ela seria ridicularizadora.
Afastando-se dessa concepo de pardia como um recurso estilstico que deforma o discurso
com o qual dialoga, a pesquisadora considera errnea a ideia de contra-ideologia aliada
pardia. Para Hutcheon, a pardia positiva em relao inverso irnica, pois reativa o
passado, dando-lhe um contexto novo e, muitas vezes, irnico, faz exigncias semelhantes ao
leitor mas trata-se mais de exigncias aos seus conhecimentos e sua memria do que sua
abertura ao jogo (HUTCHEON, 1989, p. 16). Dessa forma, a pardia uma forma de
imitao caracterizada por uma inverso irnica, nem sempre s custas do texto parodiado
(p. 17). Com esta afirmao, contrariamente a Kothe e a SantAnna, Hutcheon defende que a
pardia no degrada o texto ao qual faz referncia, nem o rebaixa ideologicamente, mas est,
em relao a esse texto, em uma posio irnica. Hutcheon indica que o homem tem a
necessidade de afirmar o seu lugar na confusa tradio cultural que o cerca, utilizando-se,
para tanto, da inverso irnica. Isso o leva a buscar a incorporao do velho discurso, textos
antigos e tradicionais, repaginando-os num processo de desconstruo e de reconstruo por
meio dos recursos estilsticos encontrados na ironia e na inverso:
H de ter-se j tornado claro que aquilo que aqui designo por pardia no apenas
aquela imitao ridicularizadora mencionada nas definies dos dicionrios
populares. O desafio a esta limitao do seu sentido original, tal como sugerido
(como veremos), pela etimologia e histria do termo, uma das lies da arte
moderna a que h que atender em qualquer tentativa de elaborar uma teoria da
pardia que se lhe adque. O Ulisses, de Joyce, fornece o exemplo mais patente da
diferena, quer em alcance, quer em inteno, daquilo que designarei por pardia do
sculo XX. H extensos paralelismos com o modelo homrico, ao nvel das
personagens e do enredo, mas trata-se de paralelismos com uma diferena irnica:
Molly/ Penlope, esperando no seu quarto insular pelo marido, manteve-se tudo
menos casta na sua ausncia. Tal como acontece com os ecos irnicos de Dante e de
muitos outros na poesia de Eliot, no se trata apenas de uma inverso estrutural;
trata-se tambm de uma mudana naquilo a que se costumava chamar o alvo da
pardia. Embora seja evidente que a Odisseia o texto formalmente parodiado ou
que serve de fundo, ele no escarnecido ou ridicularizado; quando muito, dever
ser visto, tal como na epopeia cmica, como um ideal ou, pelo menos, uma norma
, da qual o moderno se afasta (HUTCHEON, 1989, p. 16-17).

A inverso irnica, para Hutcheon, seria a nica forma de explicar por que algumas
pardias no provocam o riso em seus leitores. Para ela, alm da inverso irnica
69

caracterstica desse gnero, o riso poderia ser trabalhado com os outros gneros, pois a
pardia est [...] relacionada com o burlesco, a farsa, o pastiche, o plagiarismo, a citao e a
aluso, mas mantm-se distinto (sic) deles (HUTCHEON, 1989, p. 61). Ao longo de seu
trabalho, Hutcheon diferencia a pardia de todas as outras concepes. Sobre a stira e a
pardia, a autora afirma que
Os fundamentos sobre os quais outros tericos baseiam a separao dos dois gneros
so, por vezes, discutveis. Winfried Freund (1981, 20) afirma que a stira visa a
restaurao de valores positivos, ao passo que a pardia s pode ocorrer
negativamente. Dado que se centra essencialmente na literatura alem do sculo
XIX, dito que stira faltam importantes dimenses metafsicas e morais que a
stira pode demonstrar. Mas eu argumentaria que a diferena entre as duas formas
no reside tanto na sua perspectiva sobre o comportamento humano, como ela julga,
mas naquilo que transformado em alvo. Por outras palavras, a pardia no
extramural no seu objetivo; a stira (HUTCHEON, 1989, p. 62).

Tal confuso na distino do gnero atribuda por Linda Hutcheon ao fato de a stira
e a pardia serem utilizadas conjuntamente. Esse seria o caso de Buflicas, pois Hilda Hilst,
para compor seus sete poemas-fbulas, utiliza ambos os gneros. Portanto, a pardia no se
caracterizaria apenas pelo seu potencial subversivo e ridicularizador. Alm disso, a pardia
pode ser transgressora ou manter os padres conservadores da sociedade (HUTCHEON,
1989, p. 32).
Affonso Romano SantAnna, sendo contrrio ao que Hutcheon estipula, parte da viso
tradicionalista da pardia, como vimos, e diferencia parfrase, estilizao e pardia. Acerca
da intertextualidade, SantAnna a conceitua como sinnimo de pardia, como o faz Kothe.
Aquele pesquisador divide a pardia em dois grupos: a intertextualidade, pardia com textos
alheios, e a intratextualidade (ou autotextualidade), que seria a referncia aos textos do
prprio autor (SANTANNA, 1985, p. 8).
Vitor Manuel de Aguiar e Silva, no captulo Texto, intertextualidade e intertexto
(2007, p. 624-633) de seu clssico Teoria da literatura, diferencia intertextualidade homoautoral de autotextualidade, pois o primeiro termo indica que textos podem ter referncias
intertextuais
com outros textos do mesmo autor, numa espcie de auto-imitao marcada tanto
pela circularidade narcisista como pela alteridade (ao auto-imitar-se, ao auto-citarse, o autor espelha-se a si mesmo e , no entanto, j outro). Andr Bretton, por
exemplo, ao escrever Lamourfou, incorpora e transforma nesse texto narrativo
fragmentos de outro texto seu, Tournesol (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 630-631).

70

A intertextualidade como um todo e, em especial, a homo-autoral marcante em


Buflicas, pois nos poemas-fbulas h referncia direta s obras anteriores da escritora que
compem a trilogia obscena, personagens que foram enunciados em Cartas de um sedutor
(2002, p. 90-91) como um projeto futuro de escrita, como Fil, a fadinha lsbica, ou os que
foram reaproveitados, como a av Leocdia em A Chapu.
Voltando a Aguiar e Silva, vemos que o terico diferencia autotextualidade de
intertextualidade homo-autoral, contrariando a tipologia estabelecida por Affonso Romano de
SantAnna, j que, segundo Vitor Manuel, a intertextualidade homo-autoral o intertexto com
textos do prprio autor no deve ser confundida com outro fenmeno que Jean Ricardou
designa por intertextualidade interna: e que Lucien Dllenbach prefere denominar
autotextualidade: um texto cita-se, repete-se, glosa-se e espelha-se a si prprio, numa espcie
de mise em abyme (AGUIAR E SILVA, 2007, p. 631).
Lucien Dllenbach (1979, p. 52) teoriza que o autotexto uma intertextualidade
interna, compreendida como a relao dum texto consigo mesmo. Desse modo, segundo
Dllenbach, h dois tipos de intertextualidade, uma geral e outra restrita. A primeira quando
h a referncia entre obras diferentes; a segunda ocorre quando um texto faz relao consigo
mesmo, tornando-se um aparelho de auto-interpretao (1979, p. 54). Esse texto que se
auto-cita o autor define como autotexto. Por isso, a conceituao de SantAnna, sob o vis de
Dllenbach, discordante, uma vez que a autotextualidade seria autrquica da enunciao de
um enunciado a outro dentro do prprio texto, o que divergiria da intratextualidade, que
consiste em referncias dentro de uma obra a outra obra do mesmo autor.
Ainda a respeito da intertextualidade, Laurent Jenny, em A estratgia da forma,
conceitua o recurso como parte do funcionamento literrio; no entanto, o autor diz que a
intertextualidade no pode ser separada de sua potica histrica, j que certos textos parecem
romper periodicamente na histria literria com o monolitismo do sentido e da escrita,
habitados como esto pela pregnncia cultural dos textos anteriores (1979, p. 7). Seguindo o
pensamento de McLuhan, Laurent Jenny utiliza-se do conceito da evoluo dos mdia para
comentar o avano da intertextualidade, pois
Antes do advento da eletricidade, a imprensa no conhecia rival, no que toca quer
expanso quer intensidade, no seu poder de recuperar o passado e de servir de
memria coletiva. No s faz reviver a Antiguidade, outrora reduzida ao pequeno
caudal dos manuscritos, como inebria os letrados de aforismos sentenciosos. A
mecnica rpida da imprensa pe ao alcance de todos as iluminuras dos livros de
horas (MCLUHAN, apud JENNY,1979, p. 9).

71

Logo, a intertextualidade est ligada, para McLuhan, ao avano tecnolgico da


imprensa, que coloca disposio de todos as obras a que anteriormente alguns tinham pouco
acesso. Estas leituras de todos formam um pblico novo e do origem a um florescimento
de gneros novos (MCLUHAN, apud JENNY, 1979, p. 9). Ou seja, a intertextualidade est
ligada democratizao do acesso aos livros que foram escritos ao longo da histria. A partir
dessas constataes, Jenny observa que
Os perodos de crises intertextuais seriam portanto todos os que se seguem
introduo de novos mdias. Desse modo, poder-se-ia talvez explicar o facto de o
renascimento e o incio do sc. XX serem dois momentos chaves na
intertextualidade literria. Ainda assim, seria necessrio analisar minuciosamente a
influncia de cada medium e, por exemplo, distinguir vrias fases no seio do sc.
XX (JENNY, 1979, p. 9).

Contudo, Jenny discorda de alguns pontos das assertivas de McLuhan, uma vez que
este pesquisador esvazia a intertextualidade de qualquer significao ideolgica (JENNY,
1979, p. 9). Para Jenny, preciso que haja o conhecimento de quais so os meios de que as
pessoas de uma determinada poca se utilizavam, e qual o tempo em que essas obras foram
publicadas, para se ter uma ideia de suas influncias, ou seja, de sua intertextualidade e de
seus efeitos. Jenny completa que tambm se deve perguntar quem detm os recursos de
linguagem de poder. Assim, faz-se necessrio questionar, em cada poca, com quem est o
poder de manipulao dos aparelhos de mdia e como eles so utilizados (JENNY, 1979, p.
10).
O autor deixa claro ainda, e diferentemente do que pensa SantAnna, que no existe
pardia sem intertextualidade, mas a intertextualidade no se reduz pardia (JENNY,
1979, p. 11), uma vez que as obras literrias nunca so simples memria [...]. O olhar
intertextual ento um olhar crtico: isso que o define (JENNY, 1979, p. 10). Para se
transmitir a ideologia contida em outro texto, necessrio apenas uma aluso para introduzir
no texto centralizador um sentido, uma representao, uma histria, um conjunto ideolgico,
sem ser preciso fal-los. O texto de origem l est, virtualmente presente, portador de todo
sentido sem que seja necessrio enunci-lo (JENNY, 1979, p. 22).
A intertextualidade, como nos deixa presumir o autor, reporta-nos para fora daquela
obra que est sendo lida, tendo o leitor que recorrer s suas lembranas de outros textos para
saber qual poder ser o verdadeiro sentido ideolgico que a obra literria indica ou sugere.
Aps elucidar a intertextualidade, Jenny afirma que o seu fundamento terico parte da
72

concepo de que ocorre a intertextualidade como a irrupo transcendente dum texto


noutro. O discurso crtico contemporneo, com linguagens e ideologias subjacentes bastante
diversas, parece estar de acordo em ver, nestas relaes de texto para texto, relaes de
transformao (JENNY, 1979, p. 30).
No intertexto de Buflicas, constitudo principalmente de fbulas e de contos de fadas,
vemos que esse recurso, amplificado por Hilda Hilst pelo uso da caricatura e do grotesco,
empregado para se rir da moral estreita que esses gneros tradicionais veiculam. Usam-se, por
meio dos personagens emblemticos do conto de fadas e das fbulas, os gneros como fonte
intertextual, com a inteno de ironizar ou satirizar os valores que a sociedade vigente
cristaliza justamente por meio daqueles gneros.
A propsito, Laurent Jenny acrescenta que h intertextualidade entre determinada
obra e determinado arquitexto14 do gnero (1979, p. 18). Nota-se, em Buflicas, o intertexto
com o arquitexto das fbulas a partir do uso do epimdio, a moral no fim dos poemas. Adriane
Duarte comenta que,
Mais tarde, quando a fbula torna-se um gnero autnomo, o que s comea a
acontecer no fim do sculo IV a.C., ser comum encontrar o registro explcito da
moral a ser extrada da histria quer antecedendo a narrativa (promtio) quer, como
ocorre com maior frequncia, ao seu final (epimdio), assumindo muitas vezes uma
construo quase que formular as introdues a fbula mostra que ou assim,
tambm so to frequentes que por vezes nem so transcritas, j que o leitor pode
presumi-las (assim ser comum encontrarmos morais iniciadas apenas por que)
(DUARTE, 2013, p. 13-14).

Em Buflicas, Hilst lana mo do intertexto com o arquitexto fbula, ou com a sua


forma, pois seus poemas so escritos em versos livres, assim como algumas verses de
fbulas, apresentam rimas internas, assonncias e aliteraes que ditam o ritmo dos versos e,
principalmente, a moral da histria (BARROS; BORGES, 2006), alm de terminarem com
uma coda, ou o epimdio. Ao adicionar vrios arquitextos, ou formas genolgicas, em um
nico texto, Hilda Hilst prope um gnero novo, em que se misturam variadas formas
literrias.

14

Lillian De Paula Filgueiras, em seu artigo A traduo da tradio como critrio de inventividade, estuda os
conceitos de Grard Genette, e explica arquitextualidade como a categoria mais abstrata e implcita tipos de
discursos, modos de enunciao, gneros literrios de onde emerge cada texto singular. A literatura, sendo
concebida como um sistema formalmente definido em categorias como romance, tragdia, etc., encontra na
arquitextualidade o estudo de literatura nos termos dessas categorias formais (2005, p. 220). Lamentavelmente,
no tivemos acesso direto a essa obra de Genette.

73

Embasando-nos nas questes acerca da pardia, da profanao, da intertextualidade e


intratextualidade, ou intertextualidade homo-autoral, debatidas at o momento, partimos agora
para a anlise dos poemas-fbulas Drida, a maga perversa e fria e A Chapu. Antes,
porm, comentaremos sobre a intratextualidade nestes e em outros poemas.

2.1. A INTRATEXTUALIDADE EM BUFLICAS

A bruxa representada, nos poemas bufes de Hilst, como nas histrias infantis: um
ser perverso que no mede a consequncia dos seus atos. Entretanto, essa personagem que
severamente punida nos contos tradicionais, no poema-fbula Drida, a maga perversa e fria,
no sofre castigo, ficando para o leitor a moral de que se encontrar uma, que a sodomize.
Essa bruxa (ou maga) j foi referenciada em uma obra anterior da mesma autora, Contos
descrnio Textos grotescos, na qual Craso conversa com o seu demnio pessoal e este, que
tinha escrito um poema infantil, resolve l-lo:
A bruxa perversa
voltou do mato s pressas.
Numa valise
guardava o nariz da anti-tese.
Na outra, a boca da anttese.
No guarda-roupa
guardou as tetas da tese.
Logo depois ficou louca
com epiclese contnua de pombas.
Morreu de parangolese desconjuntada
coisa mais complicada que a metalepse.
A aldeia assombrada
s encontrou vestgios de valise:
fundo, as alas
e um cheiro nauseabundo de palavras (HILST, 2002, p. 111).

Na retomada em um novo texto de outras obras do prprio autor, isto , na


intertextualidade homo-autoral, percebe-se inicialmente a evidncia narcisista. Ao se
espelhar em escritos prprios, o autor inova-os, e cria-se um outro texto (AGUIAR E SILVA,
2007, p. 630-631). Assim se processa a intertextualidade homo-autoral em Hilst. Da bruxa
perversa dos Contos descrnio Textos grotescos surge Drida, a maga perversa e fria de
74

Buflicas. No poema infantil da bruxa perversa, observamos o jogo de palavras com termos
da criao literria, como anttese, anti-tese, tese, epiclese e metalepse. Dessa bruxa que
discute a lngua, surge Drida, que satiriza o escritor Paulo Coelho, sobre o qual comentaremos
a seguir. As caractersticas semelhantes entre os dois poemas se realizam na ordem da
discusso metalingustica, em bruxa perversa a discusso estaria em torno do fim da
criao, da morte da palavra: A aldeia assombrada / s encontrou vestgios de valise: / fundo,
as alas / e um cheiro nauseabundo de palavras (HILST, 2002, p. 111). Em Buflicas, a
proximidade com duas obras do escritor Paulo Coelho que evidencia a personificao da
bruxa-maga na figura do escritor, o que se manifesta pelo nome da personagem Drida, que
lembra Brida, e do caminho de Santiago de Compostela, que citado em espanhol: Me voy a
Santiago (HILST, 2002, p. 19-20). Para inventar um texto novo, a autora reutiliza a
personagem anterior, com a adio de novas caractersticas. Os dois textos hilstianos, no
entanto, mantm traos em comum, pois refletem sobre o fazer literrio de forma irnica.
Outra referncia usada por Hilst para compor seu poema-fbula provm de sua crnica
Berta Isab, reunida em Cascos & carcias & outras crnicas (2007); vemos a
intertextualidade homo-autoral no trecho em que as duas personagens da crnica conversam
sobre analidades: Tu que coava os bagos dos menininho e tirava os ranho dos buraco do
nariz e enfiava na boca da Dita, coitadinha, aquela neguinha fedida que era tua prima
(HILST, 2007, p. 383). Referncia, ao que tudo indica, Neguinha de Drida, a maga
perversa e fria, de Buflicas:
Incendiei o buraco da Neguinha.
Uma crioula estpida
Que limpava ramelas
De porcas criancinhas.
(HILST, 2002, p. 20).

No livro Cascos & carcias, ainda, percebemos citaes de trechos de seus poemas,
contos e de romances, juntamente com a utilizao de palavras obscenas. Hilda Hilst, ao
utilizar tal processo, parece profanar toda a sua obra, conferindo-lhe uma nova significao
com o intuito de retir-la do altar cannico, uma vez que antes era considerada de grande
valor esttico pelos crticos. o que acontece com a personagem Leocdia, de A Chapu,
que representa a av da menina, citada anteriormente em Cartas de um sedutor, como
podemos observar no trecho:
75

Chamo-me Leocdia. Resolvi beber e berimbar antes de desaparecer na terra, ou no


fogo ou na imundcie ou no nada. Contratei uma secretria-acompanhante e disselhe o seguinte: s jovem e apetitosa. Quando os homens quiserem ter relaes
contigo diga-lhes que faam um esforo e deitem-se comigo. Pagarei muitssimo
bem a cada um deles e ters rgias comisses a cada xito. Ficou perplexa.[...].
Continuou: hei de portar-me indignamente para satisfaz-la, desde que meu salrio
seja compatvel com tamanha velhacaria. Disse-lhe a quantia. Ficou radiante.
Chama-se Joyce (!). mignon e deliciosa, peitinhos de adolescente, tem 30 mas
do-se-lhe 20 (eu no tenho medo da mesclise), a boca de cantinhos levantados, os
olhos claros entre o amarelo e o castanho, os cabelos quase ruivos, elegante no andar
e na postura (HILST, 2013, p. 100-101).

No livro, a personagem Tiu, um escritor frustrado com os desmandos editoriais,


escreve a histria de Leocdia no conto intitulado besteira, mote dado por sua companheira
de mendicncia Eullia. Dessa intertextualidade homo-autoral resulta a velha Leocdia
reinventada; em vez de personagem de um conto realista, passiva na relao sexual
heterossexual, isto , com parceiros humanos, como se d em Cartas de um sedutor, torna-se,
em Buflicas, ou melhor, no poema-fbula A Chapu, personagem ativa, pois aparenta ter
um nabo, um pnis, em prtica de bestialidade. A av Leocdia um ser mascarado, indcio
carnavalizante das transferncias, das metamorfoses, das violaes das fronteiras naturais
(BAKHTIN, 1993, p. 35). Comprova-se a violao das fronteiras naturais quando a av passa
de mulher para av taluda, ou seja, aparece-lhe um pnis, como podemos perceber na
prpria fala do Lobo: E sinto que tens um nabo / Perfeito pro meu buraco (HILST, 2002, p.
24). Hilst, na nova verso da velha, coloca-a sexualmente ativa, como no conto besteira
de Tiu, mas de forma invertida: se no primeiro texto ela procurava homens para berimbar,
em A Chapu, ela tem um talo para sodomizar Lobo. Tem-se assim uma figura
mascarada por meio da qual Hilst dirige sua crtica, pois essas personagens que dissimulam
sua sexualidade manteriam a sociedade preconceituosa e retrgrada.
A protagonista do ltimo poema-fbula do livro, Fil, a fadinha lsbica, tambm
citada em Cartas de um sedutor, no dilogo entre Eullia e Stamatius:

t bem. vou escrever Fil, a fadinha lsbica.


no. escreve do menino que virou cachorro.
mas s virou cachorro, s isso?
uai. e no coisa pra burro?
. coisa pra editor sim, mas tem que ser um cachorro sacana, fodedor.
ah, isso no era no, era um cachorro simpres, quietoso.
ento no d, tem que ser assim (e lambo os beios lentamente e reviro a lngua),
um cachorro sacana (HILST, 2013, p. 91).

76

No livro, a personagem Tiu escuta um relato de sua amante Eullia sobre um menino
que vira cachorro e sobre uma fadinha viva que ela conhecera em Rio Fino, personagem que
se vestia toda de fil e gostava de mulher. Tiu ento resolve escrever a histria Fil, a
fadinha lsbica, j que a histria do menino que se transformara em cachorro no interessaria
aos editores, pois esse cachorro no era fodedor e sim quietoso (HILST, 2013, p. 90-91).
Alm de Fil, outra personagem igualmente reutilizada pela autora Troncudo. Esta
personagem aparece em Cartas de um sedutor, pois vemos a personagem com focinho de
tira a vigiar Cuzinho:
No colocaram bolas de polo na xota da Cuzinho. Sabes qual foi o castigo? Lamber
o roxinho das duas equipes. Imagina-te, foi uma longa partida, cus e cavalos suados.
Haja lngua. Cuzinho foi colocada num cubculo de guardados e policiada por um
amiguelho do Tom, um tipo enorme, parrudo, focinho de tira, at a partida
terminar (HILST, 2013, p. 72).

Em Cartas de um sedutor, obra anterior a Buflicas em que aparece Fil, surge


tambm Troncudo evidncia da intertextualidade homo-autoral hilstiana. Naquele livro, h
uma personagem de nome Cuzinho que havia sido castigada e que seria vigiada por um tipo
enorme, parrudo, focinho de tira, para que fosse devidamente punida. O castigo aplicado foi
lamber o roxinho suado de ambas as equipes de plo, castigo esse que mais parece prmio,
pois ao final ela sai sorrindo embriagada por pregas (HILST, 2013, p. 72-73). Em Fil, a
fadinha lsbica, Troncudo forma com a fadinha o par romntico, ou seja, temos a volta da
personagem com focinho de tira juntamente com a fadinha em Buflicas.
Como caracterstico em Buflicas, constata-se que Hilda Hilst manteve igualmente
a autorreferncia: um texto com acrscimos e com outras personagens, alguns reaproveitados,
como Fil, outros inventados, como os moradores da Vila do Troo. Desse modo, Hilst
profana textos da literatura cannica ao colocar de forma obscena, personagens e escritores
consagrados: o abuso obsceno da escrita inverte a escritura do sexo enquanto as perverses
do sexo transgridem a sexualidade da letra (HANSEN; PCORA, 1998, p. 143). Assim,
Hilst vai seguindo seu percurso criativo misturando referncias s obras universais e s suas
prprias. A profanao realizada por Hilda Hilst em suas prprias obras um recurso eficaz
na medida em que se denunciam os falsos moralismos da sociedade conservadora brasileira.
Ao retomar de modo invertido as personagens anteriormente utilizadas, como Leocdia, que
em Cartas de um sedutor era heterossexual, mas que agora se esconde atrs do fogo para
77

praticar bestialmente sexo anal com Lobo, desmonta o srdido obsceno cotidiano em que as
escolhas sexuais no so respeitadas pelo saber mediano de nossas elites preocupadas com
aparncias e falsos moralismos. Assim denuncia Hilst em todas as buflicas.

2.2. A INTERTEXTUALIDADE COM OS CONTOS DE FADAS

Voltemos bruxa. Ser amedrontador dos contos de fadas, representao conhecida da


negatividade feminina, alm de ter sido retomada dos prprios escritos de Hilst, a bruxa
atualizada em Buflicas.
No pensamento cristo, as feiticeiras e magas drudicas so relacionadas ao diabo;
ademais, esses seres ligados magia so representados por figuras femininas, pois
tradicionalmente considera-se que as mulheres tm mais ligao com as foras obscuras e os
espritos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 41915); logo, a bruxa o oposto da
idealizao da mulher. Nas histrias infantis, essa personagem personifica o mal e
vulgarmente se diz que fada e bruxa so formas simblicas da eterna dualidade da mulher ou
da condio feminina (COELHO, 1991, p. 32). No conto Joo e Maria, por exemplo, a
bruxa engaiola Joo e, a fim de com-lo, ceva-o para que ele engorde. Essa bruxa canibalesca
ao final tem a punio de ser trancada dentro de um forno e de morrer queimada (GRIMM,
2002, p. 50-62). Ao contrrio do que se d nos contos de fadas, no poema-fbula Drida, a
maga perversa e fria, a bruxa-maga no punida:
Pairava sobre as casas
Defecando ratas
Andava pelas vias
Espalhando baratas
Assim era Drida
A maga perversa e fria.
Rabiscava a cada dia o seu dirio.
Eis o que na primeira pgina se lia:
Enforquei com a minha trana
15

Embora os poemas-fbulas de Hilda Hilst sejam contemporneos e, a princpio, demandem uma leitura que
leve em conta a decodificao de metforas e no propriamente de smbolos no sentido de metforas de
significado cristalizado na tradio cultural , pareceu-nos producente considerar o teor simblico de vrias
imagens desses poemas, porque a escritora lida, ainda que parodicamente, com o imaginrio das fbulas e contos
de fada, cujo teor semntico inescapavelmente simblico.

78

O velho Jeremias.
E enforcado e de mastruo duro
Fiz com que a velha Incia
Sentasse o cuzao ralo
No dele dito cujo.
Sabem por qu?
Comeram-me a coruja.
(HILST, 2002, p. 19).

Nesse poema, h o escrnio com a produo do escritor de autoajuda Paulo Coelho.


Segundo Deneval de Siqueira Azevedo Filho, a primeira aluso o prprio nome da
maga Drida (no era Brida?), referncia explcita ao livro de Paulo Coelho, que
mantm um dirio em que, dia aps dia, registra todas as maldades, poltica e
socialmente incorretas, por ele cometidas contra negros, velhos, crianas e
homossexuais. O final, pleno de referncias ao mistificador e pour cause bemsucedido mago/maga, apoteoticamente revelador (2007, p. 141).

A primeira referncia intertextual ao escritor feita na troca da letra B pela D no


nome da maga, para camuflar o verdadeiro ttulo do livro a que se alude, ou seja, Brida, um
romance de Paulo Coelho. Num processo metonmico, Hilda Hilst troca autor por obra, mas
antes disso, cria-se um novo nome para a bruxa, agora ela se chama Drida. A segunda aluso
a Paulo Coelho se faz por meio de referncia a outro ttulo seu: O dirio de um mago.
Publicado em 1988, trata de um relato da experincia do escritor ao percorrer o caminho
mstico de Santiago de Compostela, na Espanha. O motivo da peregrinao seria reaver a sua
espada. Para que isso ocorra, ele ter que confrontar o seu demnio pessoal, representado por
um co de uma velha senhora, alm de tomar bolas de crianas e discutir com idosos na sua
andana (COELHO, 2010).
Comparando os livros de Paulo Coelho com Drida, a maga perversa e fria,
percebem-se partes que se comunicam de forma intertextual. Nota-se que todo o conjunto
ideolgico manifesto no livro O dirio de um mago est presente no texto, sem que haja
necessidade de enunci-lo de forma direta (JENNY, 1979, p. 22). A primeira evidncia da
intertextualidade o verso Rabiscava a cada dia o seu dirio. A segunda alude ao motivo
que permeia todo o livro de Coelho: estou procurando uma espada (COELHO, 2010, p. 09),
que satirizado no verso: Com a minha espada de palha e bosta seca (HILST, 2002, p. 20).
Mas aqui espada se figura em nveis semnticos para o rgo genital masculino, j que a
maga pratica vrias maldades, como incendiar rodelas e comer ou sodomizar cachorro
79

ou rei (Comi o cachorro do rei). A ltima referncia ao mago Paulo Coelho (insgnia que
ele prprio se atribui) a meno ao caminho de Santiago, expresso no verso em espanhol
Me voy a Santiago (HILST, 2002, p. 20).
Ao pensar na possibilidade de comparao entre textos, como nos alerta Joelma
Rodrigues da Silva, tem-se que pensar no que objeto de riso, no caso dos textos de Coelho e
Hilst: A autora paulista, portanto, no poupa o best-seller e seus ensinamentos de vida, e
zomba perversamente da condio mgica do homem e do lugar, ao deixar rastros de traques
pelo caminho sagrado (2009, p. 183). Ao usar o processo intertextual, Hilda Hilst tem como
objetivo satirizar a ideologia mstica propalada pelo livro do escritor-mago e,
presumivelmente, o sucesso editorial de seus romances, para ela inconcebvel. Tendo como
base essa intertextualidade, no comeo do poema leem-se os seguintes versos:
Pairava sobre as casas
Defecando ratas
Andava pelas vias
Espalhando baratas.
(HILST, 2002, p. 19).

Vale notar que os animais utilizados para caracterizar esse mundo por meio das
excrescncias so os que povoam o imaginrio popular como pragas: o rato e a barata. So
difusores de doenas e do medo desde tempos remotos da humanidade, ligados at mesmo a
uma representao diablica. Trata-se de uma evidncia da degradao, mas, ao contrrio do
que Mikhail Bakhtin aborda sobre a degradao, que resulta grotesca, como algo positivo,
regenerador (1992, p. 19), Hilst toma o rumo inverso ao do terico russo, pois ela rebaixa o
livro de Paulo Coelho para destru-lo, apag-lo ideologicamente.
Em um processo de inverso, a bruxa Drida se caracteriza como herona, com marcas
da Rapunzel do conto de fadas, j que, neste conto, a bruxa, para ter acesso moa, tinha que
subir por suas tranas (GRIMM, 2004, p. 109-117). Contudo, no poema, agora quem tem a
trana a bruxa, que a utiliza para matar: Enforquei com a minha trana / O velho Jeremias.
A palavra mastruo, usada no poema, tem o sentido obsceno de pnis, alm de ser
uma erva cuja semente desperta a virilidade (ALMEIDA, 1981, p. 172). Entretanto, para
Deneval Siqueira de Azevedo Filho, esse termo corresponde a um neologismo literrio, pois
captado por uma anomalia, que seria o pnis enorme maior que a personagem, como no caso
do reizinho gay (1995, p. 65). No verso do poema, a autora Hilda Hilst
80

repete mastruo, com a mesma significao, para depois, atravs de uma referncia
semntica evitar a repetio, usando uma anfora que se remete ao neologismo com
a mesma fora de significante: E enforcado e de mastruo duro / Fiz com que a
velha Incia / Sentasse o cuzao ralo / no dele dito cujo. Usa com o mesmo sentido
a palavra cercado (Cagou no meu cercado) e espada (Com a minha espada de palha
e bosta seca) (AZEVEDO FILHO, 1995, p. 70-71, grifo do autor).

No decorrer do poema, Drida continua praticando suas maldades politicamente


incorretas, pois ela incendeia o nus da Neguinha que prefere limpar ramelas de porcas
criancinhas, ao invs de praticar o sexo anal. Para castig-la, por no se deixar sodomizar,
Drida queima o buraco de Neguinha, tudo isso por culpa de sua ortodoxia, como nos deixa
observar Tatiana Faria Rodriguez: o ltimo verso, Maldita ortodoxia, a declarao final
de Drida, mas poderia tambm ser um comentrio do narrador intruso, amaldioando a
ortodoxia dos critrios de valor que se dividem rigidamente entre aquilo que identificado
como bom ou mau (2007, p. 36).
Outra caracterstica forte de Drida exposta por meio de vrios trocadilhos nos
versos:
Comi o cachorro do rei.
Era um tipinho gay
Que ladrava fino
Mas enrabava o pato do vizinho.
Depenei o pato.
Sabem por qu?
Cagou no meu cercado.
(HILST, 2002, p. 20).

Segundo Vladmir Propp, existem palavras com mais de um significado, de maneira


que o jogo cmico se faz quando o interlocutor compreende a palavra em seu sentido amplo
e geral e substitui este sentido pelo restrito (1992, p. 121). Assim, no verso Comi o cachorro
do rei, observa-se o uso do trocadilho, uma vez que a palavra cachorro pode tanto
significar o animal mamfero como um indivduo indigno ou mau-carter (HOUAISS,
2009). Desse modo, o verso tem ao menos trs significados: o de que Drida se alimentou
literalmente com a carne do cachorro; o de que ela manteve relaes sexuais (ALMEIDA,
1981, p. 79) com o cachorro, sodomizando-o zoofilicamente, e o de que ela transou com o
prprio rei, que indigno de ter aquela coroa em sua cabea, portanto, um rei cachorro.
Trata-se, provavelmente, de uma referncia ao primeiro poema de Buflicas, O reizinho gay
81

(HILST, 2002, p. 11-14), no qual o rei no merece ter a realeza por no assegurar a
prosperidade de seus sditos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 775), visto que
estava interessado, apenas, no seu prazer pessoal, como vimos.
A referncia intratextual ao reizinho reforada no verso seguinte, pois o rei era um
tipinho gay / Que ladrava fino. Tipinho relaciona-se ou estatura baixa, fsica, ou moral
ou a ambas as caractersticas (baixo e mau-carter) do rei, pois o sufixo no diminutivo o
indica; j ladrava pode significar Dizer (injrias) violentamente (HOUAISS, 2009), o que
corroboraria a baixeza do rei, seu mau carter, prprio de um cachorro; em sentido
figurado, pode o verbo ladrar se referir fala fina do rei, devido sua orientao
homossexual, declarada no poema do reizinho gay. Tal aluso agora retomada com a certeza
de que o rei estava raspando o seu ganso em um buraco negro (HILST, 2002, p. 14), pois
enrabava o pato do vizinho. Dessa forma, pode-se entender que o rei praticaria pederastia
ativa (ALMEIDA, 1981, p. 109) no pato, literalmente, praticando zoofilia, ou, em sentido
figurado, no pato, indivduo parvo, tolo (HOUAISS, 2009), o vizinho que se deixou levar
pelo poder do rei.
No verso seguinte, Drida reaparece com as suas maldades: Depenei o pato. / Sabem
por qu? / Cagou no meu cercado. O verbo depenar tambm mantm o trocadilho, uma vez
que tem dois significados: o primeiro o de arrancar, tirar as penas; o segundo significado,
no sentido figurativo, corresponde a tomar (especialmente de forma fraudulenta) a maior
parte dos haveres, sinnimo de roubar (HOUAISS, 2009). O pato do vizinho, por ser tolo,
roubado por ter cagado no cercado. H no verso a ambiguidade dada aos dois sentidos da
palavra cagado, pois o vizinho pode ter defecado ou ter sentido medo (HOUAISS,
2009). No poema parece prevalecer o primeiro significado, uma vez que as palavras espada
e cercado (AZEVEDO FILHO, 1995, p. 71) significam a mesma coisa: o pnis.
Na estrofe ou coda em que se expe a moral do poema-fbula, vemos a possvel
punio da maga Drida: Se encontrares uma maga (antes / que ela o faa), enraba-a.
Segundo Paulo Roberto Sodr, a ideia de castigo ambgua para, pelo menos, duas figuras
dos poemas de Buflicas: uma Ula, a rainha careca, e a outra Drida:
Esta, esfolando velhos, crioulas, gays e patos, segue adiante com a inteno de
encher de traques / O caminho dos magos. / Com minha espada de palha e bosta
seca / Me voy a Santiago. A rainha e a maga salvam-se de certo castigo moralista
das buflicas e, ao que tudo indica, castigam elas a convenincia social (Ula) e os
msticos caminhantes de Santiago de Compostela (Drida), embora a moral da
estria de Drida (indisfarvel pilhria com Brida de Paulo Coelho) seja se

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encontrares uma maga (antes / que ela o faa), enraba-a. Resta saber, contudo, se
isso de fato um castigo para uma maga fixada em analidades (2009, p. 53).

A intertextualidade parece ser um recurso eficaz para troar da literatura considerada


oportunista, que pretende ajudar as pessoas na sua leitura e, antes, faturar muito com a venda
de livros, metaforizada sarcasticamente pela buflica da bruxa. Em Drida, a maga perversa e
fria, Hilda Hilst satiriza os ensinamentos sobre a vida e a mstica no best-seller do mago
Coelho.
A intertextualidade com contos de fadas tambm se faz presente no poema A
Chapu, no qual a protagonista representa aparentemente uma criana. De todas as
personagens das sete buflicas, Chapu a nica que desempenharia o papel, a princpio, de
uma criana, dado o seu intertexto com Chapeuzinho vermelho, tanto de Charles Perrault
(2004, p. 336-338), como de Wilhelm e Jacob Grimm (2004, p. 28-36), j que as personagens
dos dois contos so as mesmas. Alm de Chapu, nesse poema-fbula, temos a av e o lobo
que compem o trio dos contos infantis.
Entretanto, diferentemente de como se d nos contos de fadas, em que a Chapeuzinho
Vermelho j luta com problemas pubertais, para os quais ainda no est preparada
emocionalmente (BETTELHEIM, 1998, p. 208), no poema, a personagem protagonista j
venceu essa fase de sua vida:
Leocdia era sbia.
Sua neta Chapu
De vermelho s tinha a gruta
E um certo mel na lngua suja.
Sai bruaca
Da tua toca imunda! (dizia-lhe a neta)
A vem Lobo!
Prepara-lhe confeitos
Carnes, esqueletos
Pois bem sabes
Que a bichona peluda
o nosso ganha-po
(HILST, 2002, p. 23).

Utilizando-se das personagens principais das duas verses dos contos de fadas, a
menina desprotegida, o lobo e a av, Hilda Hilst reescreve Chapeuzinho vermelho, dando
uma nova roupagem para a histria. Tanto em Wilhelm e Jacob Grimm quanto em Perrault, a

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personagem principal usa uma vestimenta que lhe d nome e a caracteriza, ficando conhecida
pelas pessoas pela capa, ou capote de cor vermelha,
[...] cor que significa as emoes violentas, incluindo as sexuais. O capuz de veludo
que a av d para Chapeuzinho pode ento ser encarado como o smbolo de uma
transferncia prematura da atrao sexual, que, alm disso, acentuada pelo fato de
a av estar velha e doente, demais at para abrir a porta. O nome Chapeuzinho
Vermelho indica a importncia capital dessa caracterstica da herona na estria.
Ele sugere que no s o chapeuzinho vermelho pequeno, mas tambm a menina.
Ela demasiada pequena, no para usar um chapu, mas para lidar com o que ele
simboliza e com o que o uso dele atrai (BETTELHEIM, 1998, p. 209).

Em A Chapu, o vermelho continua representando a emoo violenta do sexo,


porm, ao contrrio do que ocorre no conto de fada, no poema ela aparece ao avesso, pois o
apelido da personagem vem grafado sem o diminutivo no ttulo do poema (Chapu z
inho), o que denuncia sua perda de ingenuidade. Trata-se, portanto, de uma criana
precocemente envolvida com situaes adultas voltadas para a sexualidade16.
Acerca desse assunto, em uma entrevista, Hilda Hilst reflete sobre a infncia
excessivamente erotizada das crianas do sculo XX, efeito dos meios de comunicao como
a TV e da desateno dos pais:

O que eu sei que a criana est erotizada demais. Voc v meninas de dois anos
fazendo a dana da garrafa. Ser que as mes querem que elas virem prostitutas
loucas? Eu no entendo isso. E no sei o que fazer. A minha soluo, a vida inteira,
foi, sempre, escrever (HILST, 2013, p. 200).

Aparentemente, essa inocncia perdida o tema dessa buflica. A Chapu denuncia


que essa criana erotizada demais j no a mesma dos tempos em que foram escritos os
contos de fadas. Essa personagem, ao invs de ter o indcio das emoes sexuais (a cor
vermelha) na cabea, regio do alto corporal, que simboliza a intelectualidade humana, temno na regio do baixo corporal, na gruta (De vermelho s tinha a gruta), rgo genital da
mulher (ALMEIDA, 1981, p. 143). No poema, esse rebaixamento coincide com a ideia de

16

No caso da Chapu hilstiana, a infantilidade presumida, porque, de fato, nada se diz a respeito da idade da
personagem, seno a proximidade com Chapeuzinho vermelho. A ausncia do diminutivo talvez seja a pista
para defender a adolescncia ou juventude da personagem, alm da choca preta, sinnimo talvez de certa
maturidade, o que parodia a figura do conto de fada.

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carnavalizao proposta por Bakhtin, apesar de o autor russo ter como alvo de estudo a
cultura medieval (1993, p. 17).
Alm disso, em A Chapu, no h afeto na relao av-neta, presente nas verses
dos contos dos irmos Grimm Era uma vez uma menininha encantadora. Todos que batiam
os olhos nela a adoravam. E, entre todos, quem mais a amava era a sua av, que estava
sempre lhe dando presentes (GRIMM, 2004, p. 30) e de Perrault Era uma vez uma
alde, a menina mais bonita que poderia haver. Sua me era louca por ela e a av, mais ainda
(PERRAULT, 2004, p. 336). As palavras doces, que simbolizariam o carinho, so sugeridas
na verso hilstiana pela palavra mel, mas voltada para a lngua suja, criando inicialmente
um paradoxo: E um certo mel na lngua suja. Contudo, a palavra mel pode significar
tambm facilidade em falar palavres, dada a origem da palavra melflua, um adjetivo
oriundo do latim mellfluus, a, um, significando de onde corre o mel. No entanto, o
adjetivo parece ter um sentido pejorativo, pois um certo mel na lngua suja de Chapu
revela doura hipcrita afetada; melieiro, meloso (HOUAISS, 2009), ao se dirigir a sua av
Leocdia.
Outra caracterstica forte dessa personagem exposta por meio do trocadilho com a
palavra choca. Segundo Vladmir Propp, como vimos, existem palavras com mais de um
significado, de maneira que o riso despertado quando em nossa conscincia o significado
mais geral da palavra passa a ser substitudo pelo significado exterior, literal (1992, p. 121).
No primeiro significado dado palavra, a av Leocdia diz neta que ela no faz sexo com a
choca preta. Choca aqui tem o sentido de rgo sexual, ou seja, o monte de Vnus repleto
de pelos pretos. Entretanto, a Chapu retruca, invertendo a colocao das duas palavras na
frase, passando agora ao sentido contrrio do que a av havia dito: a vagina est preta de
choca, que tem o sentido de algo que se deteriorou; podre (HOUAISS, 2009). Ou seja, o
rgo sexual de Chapu est estragado, ou preto de podre, de tanto us-lo. A Chapu
hilstiana, ento, no seria virgem devido ao segundo significado dado palavra: No fazendo
nada / Com essa choca preta. / Preta de choca, nona (HILST, 2002, p. 24).
interessante observar que tanto no conto de Charles Perrault como no poema de
Hilda Hilst, a personagem Chapeuzinho Vermelho vem carregada de uma certa malcia, o que
talvez torne a intertextualidade do poema com o conto escrito por Perrault mais forte do que
com o escrito pelos irmos Grimm. Dessa malcia trata Bruno Bettelheim:

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quando a menina se despe e entra na cama com o lobo e este lhe diz que os braos
fortes so para abra-la melhor, no sobra nada para a imaginao. Como Capinha
no responde a esta seduo bvia e direta tentando escapar ou lutar, ou ela
estpida ou deseja ser seduzida. [...] Com esses detalhes Capinha Vermelha se
transforma de uma menina atraente e ingnua, que induzida a negligenciar as
advertncias da Me e a divertir-se com o que acredita conscientemente ser um
caminho inocente, em uma mulher decada (1998, p. 205).

A malcia observada na Chapu pela perda da virgindade e pelo aliciamento do lobo


homo-orientado que vende seu corpo em troca de dinheiro. Chapu ganha ares de empresria
do sexo, ou seja, ela a cafetina de Lobo, outra inverso pardica em que a seduzida vira
aliciadora, para fazer com que o lobo vire um garoto de programa, um mich.
A primeira referncia ao lobo mau no poema-fbula ocorre quando a empresria
Chapu anuncia a chegada do funcionrio: A vem Lobo! / Prepara-lhe confeitos / Carnes,
esqueletos / Pois bem sabes / Que a bichona peluda / o nosso ganha-po. Vale ressaltar
que, na histria de Charles Perrault, o lobo o tempo todo um sedutor masculino
(BETTELHEIM, 1998, p. 211), mas, no poema hilstiano, ele , sobretudo, o seduzido e o
explorado tanto financeira como sexualmente. A orientao sexual de Lobo evidenciada
pelo vocbulo bichona. Segundo Horcio de Almeida, em seu Dicionrio de termos
erticos e afins, a palavra bicha designa o pederasta passivo (1980, p. 44). Essa palavra,
com a adio do sufixo aumentativo -ona, exagera, portanto, a passividade sexual da
persoangem. Alm disso, rebaixa a heterossexualidade violenta que o lobo representa nos
contos, uma vez que as duas verses de Chapeuzinho Vermelho so histrias de estupro, de
violncia masculina.
Ainda nos versos referentes a Lobo, este perde a peculiaridade de ser mau, como na
tradio, j que, alm de ser bichona, se exprime ridiculamente no registro buclico,
cantando suave e idealistamente a natureza, por meio do idlio (MOISS, 2004, p. 58). Hilda
Hilst, ao atualizar a figura do lobo mau, coloca em sua fala referncias ao soneto rcade de
Manuel Maria de Barbosa Du Bocage, Olha, Marlia, as flautas dos pastores (1995, p. 36), o
que deixa a relao intertextual satrica mais refinada. No poema do poeta portugus, h o eu
lrico que louva os encantos da natureza, como o canto de um pssaro: Naquele arbusto o
rouxinol suspira. Esse trecho do soneto aproxima-se do verso hilstiano em que Lobo diz:
Voejam andorinhas. Outro verso aludido de Bocage o canto paisagem: Que alegre
campo! Que manh to clara, que referenciado no verso em que Lobo canta um dia de sol
agradvel: A manh est clara e to bonita!. Logo, a referncia aos versos de Bocage
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estabelece uma relao estreita entre a idealizao da natureza na voz de uma personagem
invertida, Lobo, e o neologismo do ttulo do livro. O poema ento passa a ironizar o
bucolismo na figura de Lobo. Alm disso, este apresenta um vocabulrio muito culto, com
palavras pouco usadas na comunicao informal entre as pessoas (Que discusses estreis /
Que azfama de lnguas!). Dessa forma, o Lobo, que admira paisagens e que ama o contato
com a natureza, no se parece com o lobo mau, viril e ardiloso, como se d no texto de
Perrault e dos irmos Grimm. Ademais, essa personagem submissa financeiramente a
Chapu, e sexualmente av, o que insinua o triunfo feminino sobre a masculinidade
violenta.
Nota-se, no poema-fbula, a metamorfose da figura da av. Na verso de Perrault e
dos irmos Grimm, ela perde sua aparncia benigna e humana para o lobo, quando ele,
imitando-a, ilude e devora Chapeuzinho Vermelho. No poema de Hilst, d-se o contrrio, pois
a av Leocdia toma do lobo a forma bestializada: E por que tens, velha, / Os dentes
agrandados?. Aspecto, alis, ressaltado pelo Lobo, que declara que a aparncia da av
lembra a dele (Pareces de mim um arremedo!). A vovozinha, por sua vez, pode ser
identificada como um dos produtos mascarados presentes no poema, j que apresenta o rgo
sexual masculino, o nabo. Leocdia, a av de Chapu, seria um ser mascarado na medida
em que encobre e engana sua neta, sendo produto da expresso das transferncias, das
metamorfoses, das violaes das fronteiras naturais (BAKHTIN, 1993, p. 35).
Nos trs versos que encerram a fala de Lobo, constata-se tambm o
desmascaramento, pois os defeitos que esto escondidos devem ser revelados para que, com
isso, surja o riso (PROPP, 1992, p. 175). Dessa forma, Lobo e av Leocdia tm seus atos
sexuais desmascarados por Chapu, como deixam perceber os versos:
Num timo percebo tudo!
Enganaram-me! V Leocdia
E Lobo
Fornicam desde sempre
Atrs do meu fogo!
(HILST, 2002, p. 24).

Na moral do poema, Hilst nos remete ao conceito psicanaltico de Sigmund Freud, o


id, de forma satrica. Segundo o psicanalista,

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o ego procura aplicar a influncia do mundo externo ao id e s tendncias deste, e


esfora-se por substituir o princpio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo
princpio da realidade. Para o ego, a percepo desempenha o papel que no id cabe
no instinto. O ego representa o que pode ser chamado de razo e senso comum, em
contraste com o id, que contm as paixes (2006 p. 38-39).

Nota-se, portanto, que a av Leocdia, ao esconder seu princpio do prazer, seu


pnis, revela-se um produto mascarado, Um id oculto mascara o seu produto, como
afirma a moral do poema. O Lobo, ao seu turno, um produto mascarado, na medida em que
esconde seu relacionamento com Leocdia, av da Chapu. Tal moral alude aos contos de
fadas, pois estes trabalham com o princpio da realidade, que comandado pelo ego. Os
contos de fadas, como observamos, ensinam s crianas que melhor e mais seguro seguir o
princpio da realidade, pois, quando Chapeuzinho seguiu o id, colocou sua vida e a de sua av
em perigo (BETTELHEIM, 1998, p. 53-55). Hilda Hilst, ao atualizar as personagens de
Chapeuzinho Vermelho, parece troar dessa afirmativa e da prpria Psicanlise que tenta
ajustar as personalidades ao princpio da realidade. A moral, portanto, indica que muitas
vezes o prazer inibido, ou o nosso id escondido, pode trazer srias consequncias negativas
para o homem, e o convida a assumir o princpio do prazer em detrimento do que recomenda
a Psicanlise, que nos impulsiona a seguir o princpio da realidade.
A intertextualidade com o conto da Chapeuzinho vermelho mostra-se como um
recurso pertinente para satirizar os costumes de nossa sociedade, na qual crianas,
representadas por Chapu, so sexualizadas alm da conta, e pessoas homo-orientadas,
metaforizadas pelo Lobo, so exploradas e excludas. Hilda Hilst parece escarnecer de
nossos costumes, questionando os valores expressos nos contos de fada, o que se evidencia no
uso degradado de personagens como a Chapeuzinho, uma criana inocente descobrindo os
prazeres da carne, como na verso de Perrault, ou, como nos irmos Grimm, uma criancinha
que cometeu um deslize e foi salva pelo caador, figura viril que, em contraste com a
masculinidade selvagem do lobo, representa a paternidade responsvel (BETTELHEIM,
1998, p. 208). Em A Chapu, como procuramos demonstrar, pervertem-se ideologicamente
as personagens e o que elas simbolizam: a velhinha Leocdia no mima Chapu, nem h uma
dvida sequer de que esta seja um ser malicioso, contrariando o conceito comum de
infantilidade.

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3. INVASO DOS DOMNIOS: O GROTESCO HILSTIANO

Os trs estudos bsicos sobre a esttica do grotesco so os de Victor Hugo, Do


grotesco e do sublime ([1827] 1988), de Wolfgang Kayser, Do grotesco ([1957] 1986), e de
Mikhail Bakhtin, A cultura popular na idade mdia e no Renascimento ([1965] 1993).
O termo grotesco, segundo Wolfgang Kayser (1986, p. 18-26), surgiu com o intuito
de explicar as imagens encontradas nas escavaes realizadas em Roma, em 1480. No local,
que atualmente o parque Oppius, encontraram-se as runas de Domus Aurea, palcio do
imperador romano Nero (58-64 a.C.). Os pesquisadores, observando as gravuras nas paredes,
depararam-se com um outro tipo de desenho, diferente do clssico que imaginavam encontrar.
Com o passar do tempo, os principais artistas do Renascimento desceram s grutas para
descobrir os afrescos pintados por Fabullus. Por isso, a palavra que originou o termo provm
do italiano La grottesca e grottesco, como derivaes de grotta (gruta); foram palavras
cunhadas para designar determinada espcie de ornamentao (1986, p. 18). O termo, como
acresenta Kayser, tambm pode surgir como crotesque, provavelmente por prevalecer o
sentimento de que a palavra se filiava a uma raiz documentada no francs antigo, como crot, e
a partir da qual se formara, j no sculo XV, o adjetivo crot, crost (p. 26).
As figuras encontradas nesses afrescos causaram espanto a vrios pintores e
pesquisadores de obras de arte, como no caso de Vasari, que fundamentou suas crticas ao
grotesco a partir das concepes do arquiteto romano Vitrvio. Para ambos, essas pinturas
consistiam em retratos de monstros em vez de elementos do mundo real. Assim, a crtica de
Vitrvio baseava-se no critrio artstico da verdade natural, execrando as combinaes do
novo estilo de ornamentao. Entretanto, suas duras crticas no impediram a difuso da
esttica grotesca.
O monstruoso, o fantstico e o absurdo que dariam toda a significao que
percebemos hoje nas obras do Renascimento:
J no sculo XVI, os outros pases aceitam, com o novo estilo ornamental, a
denominao correspondente. Como substantivo, isto , como designao fixa de
algo objetivo, penetra em toda parte e mantm-se vivo. Paralelamente, aparece
tambm o adjetivo, que antes substantivava o nome. A mistura do animalesco e do
humano, o monstruoso como a caracterstica mais importante do grotesco, j
transparece no primeiro documento em lngua alem. Quando Fischart, na
introduo sua Geschichtklitterung Esboo da Histria (1575) fala de vasos,

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receptculos e caixas de moldes extravagantes, excntricos, gruta-grotesco e


fantsticos... como hoje em dia se encontram nas farmcias, elucida sua referncia
com uma enumerao, de pgina inteira, de monstruosidades (em Dante, Giotto,
Ovdio, nos usos carnavalescos, nas representaes do diabo, nas tentaes de Santo
Anto e outros sonhos de pintores), e d livre curso a seu desgosto com tais
deformaes ridculas, afetadas, e muitas vezes assustadoras. O monstruoso,
constitudo justamente da mistura dos domnios, assim como, concomitantemente, e
o desordenado e o desproporcional surgem como caractersticas do grotesco num
documento antigo da lngua francesa (KAYSER, 1986, p. 24),

e, poderamos acrescentar a propsito do que aqui nos interessa nas de Hilda Hilst, como
procuraremos demonstrar.
Na Renascena, os pintores italianos inspirados na esttica descoberta nas escavaes,
elaboraram uma arte pensada a partir de elementos mais fantsticos (veja-se a transio dos
corpos humanos para formas de animais e plantas), assim como na quebra brincalhona da
simetria e na mais acentuada distoro das propores (KAYSER, 1986, p. 16). Assim, os
corpos hbridos e gigantescos comeam a ganhar popularidade nas artes e se espalham para
outras linguagens, como: desenho, gravura, decorao, dana e arquitetura. A esttica
grotesca a partir desse momento no tem mais apenas uma caracterstica alegre e discreta, mas
tida como a revelao da verdade.
O primeiro trabalho conhecido sobre o tema, aps o Renascimento, foi desenvolvido
por Victor Hugo, no Romantismo. Em 1827, o escritor estuda o grotesco por meio do prefcio
de Cromwell, intitulado Do grotesco e do sublime, publicado depois em forma de livro
independente. No prefcio, o autor enfatiza a importncia do fenmeno no drama e faz duras
crticas s idealizaes artsticas, com o intuito de abrir espao para o extravagante, o feio, o
desproporcional. Para o literato francs, o contraste entre o sublime e o grotesco o que d
literatura a sua conjugao, pois, segundo ele, com o advento da moral crist, o grotesco
representar o papel da besta humana dos vcios e crimes. O grotesco, portanto, na viso
romntica, ser luxurioso, rastejante, guloso, avaro, prfido, enredador, hipcrita (1988, p.
33). Para Hugo, a partir da anlise do grotesco, poderamos enxergar com maior clareza o
belo, pois a poesia nova representar a alma tal como ela , purificada pela moral crist,
sendo a poesia sublime e livre da mescla de impurezas mundanas.
Sobre o pensamento de Vitor Hugo, Kayser reflete que se existe algo de grotesco nos
exemplos dados por Hugo, encontra-se apenas na contraposio, ou seja, na forma especial do
contraste (1986, p. 61). Para o terico alemo, o grotesco e o sublime estariam unidos por
um todo dramtico ou belo, contraste que tecnicamente no deveria existir. Essa
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incompatibilidade que, para Kayser, demonstra algo de diablico, nos faz perceber a
proximidade e o distanciamento entre o cmico e o grotesco. O cmico, segundo Kayser,
anula de maneira incua a grandeza e a dignidade, de preferncia quando so afetadas e
esto fora de lugar. Prov esta anulao, colocando-nos no solo firme da realidade. O
grotesco, por seu turno, destri fundamentalmente as ordenaes e tira o cho de sob os ps
(KAYSER, 1986, p. 61).
Entretanto, pelo que Kayser aborda em seu trabalho, o conceito de grotesco
desenvolvido por Georg Wilhelm Friedrich Hegel que dar nfase ao carter de deformao
da realidade presente no termo, dissociando-o da relao obrigatria com o cmico, que
estava mantida na viso dos crticos anteriores:
A arte da simblica fantstica j pode valer como arte, na medida em que se
percebe nela a separao entre o sensvel-individual e o geral-espiritual, e o intento
de uni-los numa simblica. Mas esta simblica ocorre de maneira totalmente
arbitrria, inadequada e fantstica. Pois bem, Hegel qualifica tais figuras como
grotescos. Apresenta, antes de tudo, trs caractersticas: grotesco mistura
injustificada dos diversos domnios (a arte indiana fica na mistura grotesca do
natural e do humano, de maneira que nenhum dos dois lados recebe o que lhe cabe
por direito, e ambos se deformam reciprocamente, I, p. 456; cf. tambm II, 4: o
desordenado e o grotesco na mistura de elementos antagnicos). Grotesca ainda a
desmedida (Masslosigkeit), a deformao (Verzerrung): As figuras individuais
na arte indiana so deformadas barbaramente no colossal e no grotesco, para que
possam assim alcanar universalidade enquanto figuras sensveis (I, p. 452). Mas
grotesca tambm, finalmente, a antinatural multiplicao de um mesmo trao
caracterstico mltiplas cabeas, multido de braos, etc. [...] (KAYSER, 1986, p.
92).

A arte grotesca seria a mistura de domnios, ou uma deformao da realidade. A


concepo hegeliana desse tipo de ornamntica predominou at o sculo XX. Em 1965,
Mikhail Bakhtin aprofunda a discusso sobre o grotesco, ao estudar o carter carnavalesco na
obra de Franois Rabelais, evidenciado por rebaixamento e aes do corpo em que se
estabelece um jogo entre o alto e o baixo corporal. Atitudes que o terico russo chamou de
realismo grotesco, como observamos preliminarmente.
O realismo grotesco se manifestaria, sobretudo, sob as concepes estticas
fundamentadas no princpio material e corpreo, que nos lembra muito os conceitos definidos
em A potica por Aristteles. O filsofo grego ope dois tipos de ao literria que se
classificariam conforme a imitao que elas fariam das aes do homem. Dessa forma, as
obras de mais alto nimo imitam aes nobres e das mais nobres personagens
(ARISTTELES, 1979, p. 243), como a tragdia e a epopeia. J as de nimo baixo
91

voltaram-se para as aes ignbeis, compondo [...] vituprios (ARISTTELES, 1979, p.


243), como a comdia e a pardia. Diferentemente dos cnones considerados altos, que
tendem a representar o mundo como algo perfeitamente acabado e pronto, a realidade do
corpo humano, animal ou coletivo apresentada, em sua forma grotesca, sempre no seu
carter de incompletude. Para os apreciadores das obras cannicas difcil compreender a
proposta do realismo grotesco, uma vez que o corpo, nessa esttica anti-idealista, parece-lhes
monstruoso, horrvel e disforme (BAKHTIN, 1993, p. 26), representaes que seriam
inadmissveis na esttica do belo forjada no Renascimento, que esperava, como arte, que se
retratassem os modelos ideais ao mesmo tempo greco-latinos clssicos e cristos (BAKHTIN,
1993, p. 26). Para Mikhail Bakhtin, o grotesco integrado cultura popular faz o mundo
aproximar-se do homem, corporificando-o, reintegra-o por meio do corpo vida corporal
(1993, p. 34).
O primeiro trao marcante na esttica do realismo grotesco, portanto, o
rebaixamento, ou seja, a transposio ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na
sua indissolvel unidade, de tudo que elevado, espiritual, ideal e abstrato (BAKHTIN,
1993, p. 17). Rebaixar significa aproximar algo da terra, faz-lo entrar em sintonia com seu
processo de absoro e de nascimento. Nesse contexto, degradar significa entrar em
comunho com a vida da parte inferior do corpo, omitida ou rejeitada pelo pensamento
idealista e espiritual do Estado e da Igreja e, por conseguinte, dos produtores culturais como
literatos e pintores, dependentes do mecenato dessas instituies. Sendo assim, rebaixar
significa que as partes superiores do corpo entram em comunho com as partes inferiores, a
dos rgos genitais e a do ventre. Com o coito, a concepo, a gravidez, o parto, a absoro
de alimentos e a satisfao das necessidades naturais. A partir desses fatores, a degradao
cava o tmulo corporal para dar espao a um novo nascimento. Logo, a degradao
ambivalente, no tem s o sentido negativo, mas tem o sentido regenerador, pois, ao mesmo
tempo em que mata, d a vida. Desse ngulo, o baixo corporal implica sempre recomeo
(BAKHTIN, 1993, p. 19), estando, assim, sempre em movimento, nascendo e morrendo para
dar lugar ao novo (p. 277).
Depois do pnis e do ventre, as regies mais importantes na manifestao do realismo
grotesco so a boca, que devora o mundo, e o nus, que o expele metamorfoseado. Todos os
orifcios so caracterizados pelo fato de que so o lugar onde se ultrapassam as fronteiras
entre os dois corpos e entre o corpo e o mundo, onde se efetuam as trocas e as orientaes
92

recprocas (BAKHTIN, 1993, p. 277). Por essa razo, os principais acontecimentos que
ocorrem no corpo grotesco so chamados de drama corporal, como beber, comer, copular,
isto , as necessidades naturais. Estas se realizam nos limites do corpo e do mundo ou nas do
corpo antigo e o novo; em todos esses acontecimentos do drama corporal, o comeo e o fim
da vida so indissoluvelmente imbricados (BAKHTIN, 1993, p. 277). Como a teoria de
Mikhail Bakhtin se embasou na narrativa medieval de Franois Rabelais, Pantagruel e
Gargntua, a imagem grotesca artstica desse perodo estava centrada nas sadas do corpo que
seriam de carter regenerador, pois era o que ligava o homem terra, que representava tanto a
morte, como o nascimento.
Para Mikhail Bakhtin (1993, p.19), o grotesco ressaltado, na medida em que se
observa a proximidade das personagens com a terra. Rebaixar equivaleria ideia de entrar
em comunho com a terra concebida como um princpio de absoro e, ao mesmo tempo, de
nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente (p. 19), ou seja,
h na degradao um carter ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que concede a morte,
d-lhe tambm um novo recomeo. O redirecionamento em direo ao baixo corporal,
relacionado terra, tumba e ao ventre, o trao caracterstico das formas de comicidade
popular e consiste em transferir tudo o que elevado e ideal para o plano material do corpo e
da terra (BAKHTIN, 1993, p. 19). A concretude dessa simbologia se manifesta
particularmente nas excrees fisiolgicas metfora de uma conjuno entre o corpo e o
cosmo e a referncia aos excrementos tem um papel importante: concebidos pelo traseiro (a
face carnavalesca do corpo), estas partes baixas so matria cmica por excelncia, mas
mantm uma unidade simblica com o renascimento. Ligados intimamente fecundidade,
esto a meio caminho entre o corpo humano e o terrestre, mantm dois polos: o negativo, que
seria a morte (os excrementos, assim como os mortos, so devolvidos terra) e o polo
positivo, o renascimento (o adubo e a fertilidade).
Ainda sobre esse aspecto regenerador, Mikhail Bakhtin (1993, p. 23) define que h
uma proximidade entre a tumba e o nascimento, uma vez que a terra decompe, mas tambm
d novo uso matria para que com ela surjam novas vidas, como vimos. Rebaixar, portanto,
um gesto de extrema fora regeneradora, que reenvia toda forma terra e s partes baixas do
corpo, lugar das aes que do vida e morte e onde as trocas com o mundo so abundantes.
Estas trocas se realizam, por exemplo, a partir da fecundao e do parto, com a terra, sendo
este o local onde se depositam os excrementos.
93

A teoria apresentada por Bakhtin, muito brevemente aqui exposta, nos ajuda a
compreender as manifestaes culturais e, em especial, as literrias num amplo espectro.
Diversas obras, modernas, como o teatro de Gil Vicente e a poesia pantagrulica de Bernardo
Guimares, e contemporneas, como a trilogia obscena de Hilda Hilst, foram redimensionadas
a partir da ateno crtica dada importncia do baixo corporal e do realismo grotesco.
Em O corpo escatolgico em Hilda Hilst, de Edson Costa Duarte, ressaltam-se as
caractersticas de renovao a partir do trnsito do corpo, presente nas situaes escatolgicas
que a obra hilstiana nos impe. Para o crtico e amigo pessoal da escritora, h duas possveis
representaes do corpo, uma [...] primitiva/arcaica e outra contempornea/ps-moderna
(2010, p. 319). De acordo com Duarte, ao utilizar o escatolgico em suas obras, Hilda Hilst
questionaria os porqus da existncia do homem, e revitalizaria o corpo tal como ele
constitudo: desde a vscera, os buracos (o corpo denido, no Bhagavad-Gita, como uma
chaga de nove aberturas), at as sensaes e os sentimentos (p. 325). Dessa forma, pelo
escatolgico e pelas excrescncias, alm da enunciao dos rgos sexuais de forma
exagerada, Hilda Hilst brinca com o baixo, representado, nas Buflicas, por exemplo, pelo
cmico, contrastando-o com o elevado os contos de fadas e fbulas que tentam passar um
conhecimento moral s crianas , ou pela enunciao de palavras obscenas.
Sobre a obscenidade relacionada com a matria baixa, Sarane Alexandrian ressalta,
em Histria da literatura ertica, que ambas so classificadas como o rebaixamento da
carne e o uso de palavras associadas doena, sujeira e s imundices (1994, p. 8). Nas
Buflicas, Hilda Hilst utiliza exemplarmente as palavras obscenas, portanto, relativas ao
baixo corporal, como os rgos sexuais de ambos os gneros, alm de empregar palavras
relativas s necessidades fisiolgicas, por exemplo, cagar e defecar. Esses elementos realistas
e corporais, em geral, implicam uma linguagem grotesca.
A propsito das histrias da carochinha e das fbulas, Anatol Rosenfeld, em A viso
grotesca (1973, p. 60), comenta que os contos de fadas surgem estranhamente, mas no nos
causam estupor, pois no observamos esses gneros como grotescos, uma vez que tais contos
so coerentes e no entram em conflito com a realidade emprica. Desse modo, para o crtico,
o reino de drages e fadas no colide com o nosso mundo. Sobre a arte grotesca, Rosenfeld
demonstra seu entrechoque ideolgico:
Na arte grotesca, porm, h o entrechoque entre as duas esferas. O fantstico,
monstruoso, macabro, excntrico, obsceno invadem nossa realidade cotidiana, as

94

suas leis de repente so suspensas, a ordem habitual das coisas se desfaz. da, ante
a alienao surpreendente do nosso mundo, que decorre a reao de horror, espanto,
nojo e, por vezes, de riso arrepiado. Mesmo nos graus atenuados do grotesco, de tipo
mais ldico ou satrico, no podemos deixar de sentir um ligeiro estremecimento,
ante o espetculo descomunal de um mundo, cujas categorias bsicas perdem a sua
validade (ROSENFELD, 1973, p. 61, grifo do autor).

Ao contrrio do que especifica Rosenfeld sobre os contos de fadas, Hilda Hilst veste
as personagens desses contos de forma grotesca, fazendo-as colidir com o nosso mundo, a
partir da invaso dos domnios, o uso de falos monstruosos e metamorfoses. Nas Buflicas os
orifcios, como: o nus, a boca e as regies reprodutoras, so descritos de forma negativa
como um modo de degradao das personagens tpicas dos contos de fadas, uma ferramenta
para satirizar a ideologia de nosso tempo, como procuramos demonstrar. Por isso, observa-se
que, em Buflicas, Hilda Hilst parece brincar com as estratgias discursivas medievais
estudadas por Bakhtin, ao degradar, por exemplo, gneros consagrados pelo imaginrio
infantil, como os contos de fadas e as fbulas. O efeito a mescla de gneros e discursos,
como o da obscenizao de fbulas. A autora, ao representar personagens dos contos de fadas
de forma grotesca, ao que parece, pretende ridicularizar a partir do riso a ideologia propalada
por esse tipo de literatura, j que nas Buflicas h os rgos monstruosos a ganharem maior
importncia do que o homem e a diluir sua capacidade intelectiva de argumentar.
Consideradas as complexas questes sobre o grotesco e sua expresso literria
vinculada representao por meio do monstruoso e invaso dos domnios animais, vegetais
e humanos , examinemos sua presena em O ano triste, A cantora gritante e Fil, a
fadinha lsbica.

3.1.

A POESIA PANTAGRULICA

Buflicas est para a tradio literria brasileira como os poemas de Gregrio de


Matos, de Bernardo Guimares e os melhores do gnero satrico praticados no Brasil. Em
relao a este ltimo, h em sua potica vrios pontos de convergncia com a de Hilda Hilst.
95

Em Guimares, vemos a utilizao de tcnicas discursivas empregadas tambm em Hilst,


como podemos notar:
[...] Bernardo Guimares brinca nitidamente com o tom missionrio, proftico,
teatralmente cnico ou melanclico caracterstico aos vates romnticos. Brinca,
inclusive, com os seus prprios textos. E, em dilogo com o triste abandono da lira
em Hino tarde que parece escrever, por exemplo, o seu Dilvio de papel
(SSSEKIND, 2003, p. 154).

Acerca da poesia pantagrulica, Antonio Candido nos deixa pistas importantes sobre a
definio do termo, que, segundo ele, estaria relacionado aos estudantes de Direito de So
Paulo na segunda metade do sculo XIX. Esses estudantes realizavam jantares regados a
vinho e charutos, nos quais comiam e escreviam versos disparatados e nonsense, por isso o
nome da poesia praticada naquele momento relembra o personagem lendrio de Rabelais
(CANDIDO, 2004, p. 199). Dessa poesia pouco chegou ao leitor atual. Entretanto, acredita-se
que o maior representante do gnero seja Bernardo Guimares com o seu Elixir do paj,
livro publicado pelo autor ainda em vida, que faz uma stira literatura indianista escrita na
poca. Duda Machado, em Bernardo Guimares: a exceo pelo riso, considera o poema
Elixir do paj como uma pardia estilstica de Gonalves Dias, pois imitaria as redondilhas
menores do canto IV de I Juca Pirama e do Canto guerreiro. Devido a esse fato, Machado
pensa que a utilizao da pardia nesses poemas estaria relacionada crtica falsificao
feita pelo indianismo romntico, que forava uma identidade brasileira. Logo, o poema Elixir
do paj tinha como inteno satirizar os recursos estilsticos e imagticos empregados pelos
indianistas (MACHADO, 2010, p. 31). Portanto, a poesia pantagrulica, como se observa nas
consideraes de Machado, teria como foco o desmascaramento das falsidades estticas do
Romantismo brasileiro, em que se exaltava um modelo indgena que no existia e era apenas
um espelho dos europeus. Evidentemente, a poesia pantagrulica critica as formas atravs da
pardia e a partir do contedo inerente ao poema de Gonalves Dias, com o intuito de apaglo ideologicamente.
Hilda Hilst, segundo Deneval Siqueira de Azevedo filho, se utiliza da mescla das
formas marginais contraluz das formas canonizadas (2007, p. 145) empregadas pelos
praticantes da poesia pantagrulica, para que com isso realize a sua crtica sociedade
brasileira. Hilda parodia os contos de fadas, como vimos, e faz um movimento similar ao
desses poetas: se nos romnticos criticavam-se os indianistas em poemas como o Elixir do
96

paj, em Hilst criticam-se alguns contos de fadas cannicos e [...] outros textos e fbulas
mrbidas, moralistas e de desvairada hipocrisia (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 140). Alm
disso, outra aproximao da poesia pantagrulica com os poemas de Buflicas so as
brincadeiras com os escritores contemporneos, como no caso do poema Drida, a maga
perversa e fria, por meio do qual Hilda, como Bernardo Guimares faz com os poetas
romnticos, brinca com a audcia do autor Paulo Coelho em se considerar escritor de
literatura, gozando da sua perambulao mstica e de seus livros Brida e Dirio de um mago.
Em O ano triste, Hilda Hilst faz um intertexto com os sete anes de Branca de
Neve, dos irmos Grimm (2004, p. 84-99), com a inteno de satirizar o conto de fadas. Os
anes de Branca de Neve, dos irmos Grimm, relacionam-se simbolicamente terra e ao
trabalho mineralgico. Esto ligados s fadas, mas, contrariamente a estes seres areos, os
anes so associados s grutas e montanhas, onde escondem suas oficinas de ferreiros.
Portanto, entende-se que a figura do ano est conectada ao mundo subterrneo ao qual
permanecem ligados, simbolizam as foras obscuras que existem em ns e em geral tm
apenas aparncias monstruosas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 49). Esses seres
ligados ao trabalho de extrao das riquezas da terra que acolhem generosamente a
protagonista, Branca de Neve, que sofre com os abusos e com a inveja da rainha-madrasta
(GRIMM, 2004, p. 37-49). Os anes so seres telricos que vivem em subterrneos, seu
carter assexuado no conto, no colocando em risco a figura inocente de Branca. So feios e
toscos, mas sublimes no comportamento inesperadamente corts.
Como ocorre na poesia pantagrulica, que nega o discurso indianista, em Buflicas,
nega-se a inocncia propalada pelos contos de fadas. Assim, a personagem Cido, o ano
triste, apresenta acentuada sexualidade, derivada, por um lado, do obsceno e do grotesco, em
que se enfatiza o baixo corporal, e, por outro, do presumvel pornogrfico. Tanto que seu
problema, grotesco por excelncia, era o avantajado e monstruoso membro17:

17

Em O reizinho gay (2002, p. 11-14), como observamos, o rgio falo do reizinho era to grotescamente
enorme que os cidados do reino se embasbacaram ao v-lo. Por isso dada muita importncia quelas partes
que ultrapassam os prprios limites do corpo, expressas pelo exagero. Tais partes podem levar uma vida
independente, isto , serem mais importantes que as personagens (BAKHTIN, 1993, p. 277), como o caso do
exagero em O reizinho gay, em que seu pnis passa a governar o povo, fazendo-se desnecessrio o uso de
palavras, j que s a visualizao do membro do reizinho acalma a turba (HILST, 2002, p. 11-12). Assim, o
pnis ganha importncia maior do que a do prprio homem, diluindo sua capacidade de ordem, de expresso do
pensamento, originada no intelecto. Como vimos, o fato criticado no poema no o monstruoso falo, mas sim o
silncio que impera na populao a adorar o enorme pnis do rei. Nota-se o grotesco expresso na forma
monstruosa em outros poemas-fbulas do livro. Em Drida, a maga perversa e fria e em A Chapu, por
exemplo, percebem-se duas personagens grotescas do sexo feminino: Leocdia, que tem um nabo para o

97

De pau em riste
O ano Cido
Vivia triste.
Alm do chato de ser ano
Nunca podia
Meter o ganso na tia
Nem na rodela do negro.
que havia um problema:
O porongo era longo
Feito um basto.
E quando ativado
Virava... a terceira perna do ano.
Um dia... sentou-se o ano triste
Numa pedra preta e fria.
Fez ento uma reza
Que assim dizia:
Se me livrasses, Senhor,
Dessa estrovenga
Prometo grana em penca
Pras vossas igrejas.
(HILST, 2002, p. 25-26).

No poema-fbula, a imagem dessa personagem semelhante da sua simbologia. Os


anes, indivduos de baixa estatura, so conhecidos pela sua grande capacidade de oratria e
de pensamento, como, por exemplo, Licinius Calvus e Alpio de Alexandria (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 50). Na literatura pornogrfica, por sua vez, a figura do ano
aparece, no Renascimento, como a relao da falibilidade dos homens e a cultura das cortes:
O pequeno mas instrudo corteso que Liberi escolheu para representar o pecado original
humanista revelador, ao corporificar os vcios sociais e os excessos textuais que
caracterizaram as prticas das elites renascentistas (FINDLEN, 1999, p. 50).
Como no conto de Branca de Neve, o ano, no poema hilstiano, carrega consigo
toda a imagtica da fala, do conselho, para resolver os problemas, mas, ao contrrio do que
ocorria no conto de fada, o ano Cido utiliza-se de sua oratria para beneficiar a si mesmo.
Pede a Deus para lhe diminuir o membro, com o intuito de poder meter o ganso [pnis] na
tia e na rodela [nus] do negro (HILST, 2002, p. 25). Assim, ele perde suas caractersticas
tradicionais, rebaixando-se, j que egosta e bissexual. Em vez de aconselhar as mocinhas
para fugir dos atos malvolos da madrasta, no poema, o ano s pensa em resolver seu
problema e se satisfazer sexualmente com a ajuda divina: em vez de sabedoria, portanto,
mesquinharia. Utilizando-se da sua maior qualidade, que a oratria, o ano tenta comunicar-

buraco do Lobo; e Drida, que sodomiza a todos com a sua espada de palha e bosta seca, invases, como
notamos, entre os domnios masculino e feminino.

98

se com Deus: Se me livrasses, Senhor, / Dessa estrovenga / Prometo grana em penca / Pras
vossas igrejas. / Foi atendido. / No mesmo instante / Evaporou-se-lhe / O mastruo gigante. /
Nenhum tico de pau / Nem bimba nem berimbau / Pra cont o ocorrido (HILST, 2002, p. 2526). Fecha-se o cenrio cmico do poema-fbula para mostrar, na forma de coda moralista,
que devemos resolver nossos problemas, ao invs de confiarmos em propensas solues
divinas. Fica, ento, a stira para o leitor, como moral: Ao pedir, especifique tamanho /
grossura quantia (HILST, 2002, p. 28).
Vale notar que uma das qualidades da figura do ano, a sua tima oratria, vem
rebaixada, no poema-fbula, uma vez que a comunicao com Deus acaba em engano e
prejuzo, pois a divindade realiza o pedido ao p da letra e no deixa nem um pequeno pedao
do pnis. Ao desaparecer o incmodo da personagem, surge outro. Resta a Cido, que antes
carregava consigo a fantasia grotesca masculina de ser pintudo, a alternativa de procurar as
suas partes pudentas pela manh fria. Com a linguagem flagrada no fantasioso, na imagstica
monstruosa de uma terceira perna, rebaixa-se a personagem do conto da Branca de Neve.
Como os sete anes, Cido mantm uma ligao com a terra. Segundo Joelma Silva
(2009, p. 191), ao enunciar no poema o sentar-se do ano na pedra preta e fria, Hilst ressalta o
trabalho de extrao de riqueza dos sete anes do seio da terra. Entretanto, no poema-fbula
O ano triste ocorre o oposto do conto de fadas; se neste os anes trabalhavam sem
descanso, no poema hilstiano, a pedra, smbolo da riqueza, retratada como a origem da
inrcia, pois fria, fora o fato de que Cido perde seu membro avantajado no mesmo lugar.
Como se sabe, no conto de fadas dos sete anes, estes vivem para o trabalho e
excluem, dessa forma, qualquer tipo de relacionamento sexual ou conjugal em suas vidas:

O anes homens pequenos tm conotaes em vrios contos de fadas. Como as


prprias fadas, eles podem ser bons ou malvados; em Branca de Neve so do tipo
que ajuda os outros. A primeira coisa que sabemos sobre eles que voltaram para
casa depois de trabalharem nas montanhas como mineiros. Como todos os anes,
mesmo os desagradveis, so trabalhadores e espertos em seus negcios. O trabalho
a essncia de suas vidas; no tm descanso ou recreao. Embora os anes fiquem
imediatamente impressionados pela beleza de Branca de Neve e comovidos com a
sua desgraa, deixam logo claro que o preo de viver com eles comprometer-se
num trabalho consciencioso. Os sete anes sugerem os sete dias da semana dias
cheios de trabalho. Se quiser crescer bem, Branca de Neve deve transformar seu
mundo em um mundo de trabalho; este aspecto de sua estada com os anes
facilmente compreensvel (BETTELHEIM, 1998, p. 248).

99

Como se percebe, tradicionalmente, os anes representam o trabalho em detrimento da


vida sexual (BETTELHEIM, 1998, p. 247-249). Com o ano Cido, Hilda Hilst subverte a
representao psicanaltica dos anes de Branca de Neve, devido ao fato de a personagem
desejar diminuir seu membro para poder fazer sexo com a tia e com o negro, estando voltada
para o princpio do prazer em detrimento do trabalho, como todas as personagens de
Buflicas.
Tambm como a maioria das personagens de Buflicas, Cido tem um triste fim,
acaba com nenhum tico de pau / Nem bimba nem berimbau / pra cont o ocorrido. Hilda
Hilst, ao que parece, brinca sadicamente, por meio de Cido, com o tipo religioso e crente, e
com a oniscincia de Deus, que, acredita-se, tudo sabe, pois, segundo Cido, qualquer dica
[para Deus] / compreenso segura (HILST, 2002, p. 26).
Outro exerccio de poesia pantagrulica hilstiano se encontra no poema-fbula A
cantora gritante, em que se apresenta um tipo recorrente nas histrias infantis, a donzela.
Presena garantida nos contos de fadas, a donzela, segundo Bruno Bettelheim (1998, p. 142143), seria a forma que a menina encontraria, nas narrativas, para enfrentar sua situao
edpica; largaria, para isso, o princpio do prazer e seria comandada pelo ego. Em todas as
verses, a herona resgatada pelo prncipe e a histria encerra-se com um feliz para
sempre. Entretanto, nessa buflica, a donzela acaba mal e violentada pelo jumento Fodo:
Cantava to bem
Subiam-lhe oitavas
Tantas to claras
Na garganta alva
Que toda vizinhana
Passou a invej-la.
(As mulheres, eu digo,
porque os maridos
s pampas excitados
de lhe ouvir os trinados,
a cada noite
em suas gordas consortes
enfiavam os bagos).
Curvadas, claudicantes
De xerecas inchadas
Maldizendo a sorte
Resolveram calar
A cantora gritante
(HILST, 2002, p. 29-30).

100

Atualizando parodicamente o conto da Rapunzel, em que o prncipe encantado


seduzido pelo canto da protagonista, no poema buflico o canto tem efeito afrodisaco sobre
os homens. Por isso, trata-se, mais uma vez, do rebaixamento de figuras do imaginrio
infantil. A cantora, no poema-fbula, desempenharia tambm o papel de sereia que, com o seu
canto, excita os marujos, fazendo com que eles se atirem nas guas ardentes de paixo e
acabem por morrer afogados. Sobre estes seres mitolgicos, Mrio Gama Kury, em
Dicionrio de mitologia grega e romana, salienta caractersticas peculiares:
Demnios marinhos em parte mulheres e em parte pssaros, filhas do deus do rio
Aqueloo com a musa Melpomene, ou com a musa Terpscore, ou com Esterop
(filha de Porton e de Eurite), ou ainda filhas do deus marinho Forcis [...]. Numa
fonte tardia elas teriam nascido do sangue derramado por Aqueloo quando foi ferido
por Heracls [...]. Seu nmero varia conforme as fontes; em uma fonte elas seriam
duas Aglaofeme e Telxipia ; em outra fonte seriam trs Aglaope, Pisinoe e
Telxipia, ou Leucsia, Lgia e Partnope ; e numa terceira fonte aparecem quatro
Sereias Molpe, Raidne, Tels e Telxiope. As Sereias, que alm de cantar tambm
tocavam a lira e a flauta, viviam numa ilha do Mediterrneo (talvez em frente
pennsula de Sorrento), e atraam com seu canto mavioso os nautas que passavam
pelas proximidades; elas provocavam a destruio das naus contra os rochedos, e em
seguida devoravam os nufragos. Os Argonautas [...] escaparam ao desastre graas
ao canto melodioso de Orfeu [...], mais belo que o das Sereias; o nico a ceder ao
fascnio foi Butes [...], que se lanou ao mar em direo a elas, mas foi salvo por
Afrodite [...]. Ulisses [...], de passagem pela regio onde elas moravam, seguindo
instrues da feiticeira Circe [...] deu ordens a todos os seus companheiros para
obstrurem os ouvidos com cera de abelhas e para o amarrarem no mastro da nau,
proibindo-os de o soltarem, ainda que ele suplicasse. Ouvindo-as, o heri sentiu-se
atrado irresistivelmente pelo seu canto, mas as amarras o imobilizaram e todos se
salvaram. Desesperadas com seu fracasso, as Sereias lanaram-se ao mar e
morreram. Em fontes tardias as Sereias eram divindades que cantavam para as almas
dos mortos eleitos pelos deuses para morarem na ilha dos Bem-Aventurados [...]
(1990, p. 354-355).

O canto desses seres mitolgicos que representam tanto a seduo, como o apelo
ertico, tambm representa a morte, uma vez que os marinheiros seduzidos pela voz da sereia
se atiram e morrem nas guas. No poema hilstiano, o canto excita os homens, e suas esposas
reclamam da sorte claudicante de tanto que eles, os maridos, enfiam os bagos nelas. Em
vingana, as esposas gordas e queixosas, confabulam uma forma de calar o problema.
Como ocorre com todas as personagens das buflicas, aquilo que deveria ser uma qualidade
vira defeito, e, vingativas, as mulheres estupram o puro canto da cantora com o auxlio do
jumento Fodo: Curvadas, claudicantes / De xerecas inchadas / Maldizendo a sorte /
Resolveram calar / A cantora gritante.

101

A indicao da virgindade da Garganta Alva, no poema, fica evidente a partir do uso


de palavras que se aliam pureza sexual: Subiam oitavas / Tantas to claras / Na garganta
alva (HILST, 2002, p. 29, grifo nosso). Palavras como clara e alva denotam sua
sublimidade, pureza tanto oral como sexual. Estado que se dilui ao se eternizar o nabo, o
pnis (ALMEIDA, 1981, p. 204) do jumento na fonte do canto afrodisaco da cantora.
Utilizando-se da bestialidade animal com que, segundo Moraes (1999, p. 121), a escritora
faria comparaes entre o bicho e o homem, com o intuito de indagar a identidade entre o
homem e o bicho na sua dimenso mais prosaica, opondo, afinidade bestial, a vida besta que
aproxima um do outro , Hilda Hilst cria a cena grotesca do estupro protagonizada pelo
Jumento Fodo:
Certa noite... de muita escurido
De lua negra e chuvas
Amarraram o jumento Fodo a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram tambm
A Garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodo
Eternizou o nabo
Na garganta-teso... aquela
Que cantava to bem
Oitavas tantas to claras
Na garganta alva
(HILST, 2002, p. 30).

No incio da descrio do cenrio do estupro da voz, tem-se uma esfera desenhada


pelo mistrio e pelo fim negro da cantora gritante: Certa noite... de muita escurido / De
lua negra e chuvas / Amarraram o jumento Fodo a um toco negro (HILST, 2002, p. 30,
grifos nossos). Como sabemos, a noite carrega consigo vrios referenciais de perigo e de
surpresas que ressaltam a esfera dramtica do poema. Ao que parece, at o ato de chover nos
passa a ideia de destruio do canto a partir do esperma representado simbolicamente pelas
gotas de chuva: Certa noite... de muita escurido / De lua negra e chuvas / Amarraram o
jumento Fodo a um toco negro. / E pelos gorgomilos / Arrastaram tambm / A Garganta
Alva / Pros baixios do bicho.
O canto nos remete para a regio do alto corporal, que est ligado inteligncia, voz
de mando, de ordem, fora toda a simbologia greco-romana ligada ao canto de Orfeu e das
sereias. Sobre o canto, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009, p. 176) consideram que sua
102

simbologia implica a palavra que une a potncia criadora sua criao no momento em que
esta ltima reconhece sua dependncia de criatura, exprimindo-a na alegria, na adorao ou na
implorao. o sopro da criatura a responder ao sopro criador. O canto, em A cantora
gritante, aparece rebaixado na medida em que, ao invs de elevar os homens, ao conduzi-los
aos bons sentimentos, f-los ficar excitados sexualmente e procurar afoitamente suas
mulheres: toda vizinhana / Passou a invej-la. / (As mulheres, eu digo, / porque os maridos /
s pampas excitados / de lhe ouvir os trinados, / a cada noite / em suas gordas consortes /
enfiavam os bagos) (HILST, 2002, p. 29). Estes atos observados no poema remetem-nos ao
conceito de devorao descrito por Mikhail Bakhtin (1993, p. 284), cena grotesca em que a
garganta atua juntamente com a boca. Para o estudioso, a boca escancarada est ligada ao
baixo corporal, pois seria a porta de entrada para o baixo, ao inferno corporal. A boca se
configura como a imagem da absoro e da deglutio, imagem ambivalente muito antiga da
morte e da destruio, est ligada grande boca escancarada (BAKHTIN, 1993, p. 284).
Igualmente ao que ocorre em outras buflicas, o que poderia ser considerado uma qualidade
positiva encarado como defeito e a cantora punida eternamente com o pnis do jumento
atravessado na garganta: O jumento Fodo / Eternizou o nabo / Na garganta-teso... aquela /
Que cantava to bem / Oitavas to claras / Na garganta alva (HILST, 2002, p. 30). Como se
observa, a cena grotesca desenhada com as mulheres mancas e gordas segurando a cantora
pelos gorgomilos, que seria a entrada do esfago e laringe; goela, garganta (HOUAISS,
2009), ou seja, a protagonista punida em seu instrumento, a voz. A imagem do falo como
elemento opressor recuperada em A cantora gritante, aludindo ao falo do reizinho gay,
que causa violentamente a morte dos moradores da vila; o nabo do jumento Fodo, com a
intercesso coletiva das mulheres do poema, estupra a voz da cantora, impondo a mudana de
sua fruio esttica e o fim do encantamento afrodisaco.
Os poemas-fbulas A cantora gritante e Drida, a maga perversa e fria nos parecem
metalingusticos, na medida em que Hilda Hilst se utiliza das personagens dos contos de fadas
para refletir sobre o ato criativo e fazer sua crtica ao mercado editorial: o absurdo do sucesso
de obras como as de Paulo Coelho e as obras pornogrficas escritas na poca da publicao de
seu projeto obsceno.
Em A cantora gritante, a autora retoma a discusso metalingustica de Drida, a
maga perversa e fria. Nesse novo poema, a donzela representaria o poeta dedicado ao ato
criativo, sendo calado pelo mercado pornogrfico, o jumento. Alcir Pcora, comentando sobre
103

essa crtica existente na obra de Hilst, ressalta que a noo de obsceno se aplica,
primeiramente, perplexidade dolorosa diante da identificao vulgar entre criao e
usufruto mercadolgico, ou, de outro modo, diante da percepo inconsequente da inveno.
Mas tambm se aplica ao contrrio disso, isto , a uma experincia radical de destruio e
catstrofe que os textos parecem pressupor na criao genuna (PCORA, 2005).
Seguindo o rastro de Pcora, o pnis de Fodo representaria a pornografia que est a
calar a arte, simbolizada pelo canto alvo, belo, da cantora. Como o prprio verbo nos indica,
cantava, conjugado no pretrito imperfeito do indicativo, mostra que a ao de cantar oitavas
to claras foi interrompida, ou seja, seu canto se transformou em algo que no mais puro.
A pureza do canto estaria, metaforicamente, ligada ao ertico praticado por Hilst em seus
livros anteriores de poesia, como, por exemplo, em Exerccios, editado por Alcir Pcora, de
que constam: Roteiro do silncio, de 1959; Trovas de muito amor para um amado senhor, de
1960; Ode fragmentria, de 1961; Sete cantos do poeta para o anjo, de 1962; e mais os trs
livros Trajetria potica do ser; Exerccios para uma ideia; Pequenos funerais cantantes ao
poeta Carlos Maria de Arajo, estes reunidos em livro, originalmente, em 1967.
Alis, o organizador das obras da autora faz uma boa anlise sobre o canto:

Para designar esta segunda estratgia [a matria divina misturada com coisas
temporais], pois, e menos para o sentido de preparao para uma obra posterior,
penso ser o prprio ttulo Exerccios. que, na poesia rfica, a efetuao de uma
religiosidade feita de concretude e evocao divina, de matria calcinada por
alucinaes, nada se postula tanto quanto a prpria experincia artstica como ato
fundador da experincia e do conhecimento. Nesses termos, enquanto desce aos
infernos, pensando servir ao amor, Orfeu no serve mais que sua arte, admirada
pelos deuses, para cuja crueldade no valem mos. A elevao do amado
sobretudo a ocasio para a dor que instaura o canto (PCORA, 2002, p. 9).

No mito grego, o canto sublime de Orfeu acalmava o mar, libertava marinheiros, por
ser mais belo e harmonioso do que o canto das sereias, silenciando estas. Seu canto tambm
convenceu Hades e Persfone a deixarem Orfeu levar Eurdice para o mundo dos vivos, mas
com a condio de que ele no olhasse para trs, misso em que ele fracassou. Ao voltar s
para o mundo dos vivos, Orfeu manteve-se fiel memria de Eurdice. Uma das vrias
verses do mito retrata que as mulheres de Trcia ficaram despeitadas com a fidelidade de
Orfeu, e o rancor delas aumentou tanto que mataram Orfeu e seus seguidores esfaqueados
(KURY, 1990, p. 292-293).

104

Hilst, em A cantora gritante, teria recriado o mito de Orfeu, mas conferindo-lhe uma
roupagem inovada e um carter metalingustico. Se, no mito de Orfeu, as mulheres de Trcia
tentam silenciar o personagem, matando-o, na buflica elas se utilizam do estupro para calar o
Orfeu hilstiano. Ao que parece, nesta buflica, Hilda Hilst alia o rebaixamento do canto rfico
que, ao invs de acalmar monstros, ondas e sereias, causa excitao com a pornografia ou
a prostituio do ato criativo, representadas pelo falo do jumento. Com esse poema-fbula,
ento, Hilst, na figura do grupo de mulheres, satiriza o leitor e o mercado que privilegiam
obras pornogrficas que no possuem valor esttico. Por fim, a autora deixa a moral para
aqueles que se dedicam arte: se o teu canto bonito, / cuida que no seja um grito
(HILST, 2002, p. 30). Para os escritores, em especial, fica a lio de que cuidem que o seu ato
criativo no seja cooptado e deturpado pelo mercado editorial, pois a obra perderia em
profundidade esttica, o que no poema estaria relacionado com a interrupo do desejo sexual
causada pela crueldade das mulheres contra a cantora , uma crtica, alis, presente em
todas as obras do projeto obsceno de Hilda Hilst.

3.2.

OS ANFIGURIS HILSTIANOS

Em Buflicas, como vimos comentando, Hilda Hilst brinca com o fazer literrio,
gozando da inocncia presente nos contos infantis e da utilizao da Psicanlise de forma
exagerada como uma profissionalizao do escritor para o mercado brasileiro de livros
direcionados para as crianas, assunto que ela muito comentou em suas entrevistas. Nada
escapa de sua stira; no perdoa nem suas prprias obras, como j analisamos. Nos poemasfbulas h o dilogo pardico com outros livros da prpria autora, como Cartas de um sedutor
e Contos descrnio Textos grotescos, pois ressurgem neles personagens como Leocdia, a
maga Drida, Fil e Troncudo. Para punir com o riso os conservadores, Hilda Hilst apela,
alm do obsceno, da pardia, do grotesco e da poesia pantagrulica, ao anfiguri com o intuito
de fazer o contradiscurso dos contos de fadas, em que se cristaliza a lio moral tradicional
ocidental, crist, branca, hetero-orientada.
Sobre o anfiguri, Antonio Candido afirma que
105

A poesia do absurdo teve no Brasil um momento de particular interesse durante o


Romantismo, sobretudo entre os estudantes de direito de So Paulo, que a
denominaram poesia pantagrulica. Sendo um jogo de grande fora burlesca, foi
tambm s vezes tributria de outros registros, mas sob todos os seus aspectos pode
ser vista como manifestao de negatividade, que um trao romntico importante.
De fato, ela um modo de contrariar tanto a ordem quanto as finalidades do
discurso, estabelecendo um antidiscurso marcado pela falta de significado normal e
a criao de significados prprios, aberrantes ao seu modo. portanto manifestao
de anfiguri que Pricles Eugnio da Silva Ramos define assim: Composio em
prosa ou verso, de sentido absurdo ou disparatado, esclarecendo que foi praticado
em Portugal e no Brasil, sobretudo no perodo Barroco, com finalidade cmica [...].
Mas o anfiguri no pardia, e sim subverso do discurso, como forma mais ou
menos drstica de negao do sentido. E preciso fazer uma avaliao diferencial
do que ele significou nos diversos momentos, pois o seu papel e o seu intuito variam
conforme o contexto histrico (CANDIDO, 2004, p. 195-198).

Ao brincar parodicamente, ao que parece, com essa relao entre o srio, representado
pelo termo buclico, e o cmico, representado pela palavra bufo, Hilda Hilst destrona e
descanoniza os contos de fadas. No novo texto, que deriva desse processo de profanao, as
personagens no representam mais o que costumavam simbolizar; a narrativa em verso,
portanto, se apresenta como um antidiscurso. Como nos alerta Antonio Candido, o anfiguri
uma subverso do discurso, o que se encaixaria nas Buflicas, pois esta obra uma negao
de todo sentido e ideologia presentes nos contos de fadas, o que denegaria, por sinal, a ideia
de pardia. Entretanto, compreendemos a pardia em Buflicas como uma ferramenta
discursiva importante, na medida em que relacionamos a intertextualidade dos personagens
com o tipo de antidiscurso utilizado pela autora. Neste caso, o anfiguri se justaporia pardia.
A partir da anlise de um poema pantagrulico de Bernardo de Guimares, efetuada
por Antonio Candido, Vagner Camilo, em Risos entre pares: poesia e humor romnticos
(1993), descreve os dois nveis de significao que compem o anfiguri:
O primeiro deles feito de ressonncia das piadas de estudantes com suas
matrias (lgica, histria, gramtica), das quais parecem proceder certos termos
especializados, que aparecem disseminados no soneto (sofisma, silogismo,
anacronismo, solecismo..., termos esses que dada a nfase na ideia de imperfeio
sinttica, discursiva e lgica, parecem apontar, metalinguisticamente, para a
definio do prprio gnero) e que, em conjunto tecem uma rede de agresses
razo. J o segundo nvel mostra-se vinculado a certo gosto pelo macabro e pela
notao sdica revelados pelo romantismo paulistano [...] (CAMILO, 1997, p. 195).

No anfiguri buflico, Hilda Hilst parece utilizar mais claramente apenas um dos nveis
de significao, o sdico. Em um primeiro momento, podemos pensar que a crtica
Psicanlise poderia ser o primeiro nvel que a autora utilizou. Contudo, at onde
106

compreendemos o anfiguri, para que ele ocorra necessrio que a terminologia tcnica de
uma matria cientfica seja utilizada comicamente pelo autor, isto , haveria a necessidade do
uso de certo psicanals, o discurso macarrnico de uma linguagem marcadamente
psicanaltica. Apesar de todas as personagens caractersticas dos contos de fadas serem
ressignificadas psicologicamente por Hilst com o intuito de agredir a razo psicanaltica, no
h em Buflicas, salvo leitura mais atenta, o primeiro nvel de significao com toda a sua
esfera nonsense e absurda, uma vez que se l uma narrativa inteligvel em todos os poemas.
Hilda Hilst, nesse sentido, lana mo do segundo nvel significao proposto por Camilo, no
qual, assim como define Antonio Candido (2004, p. 209), a irrupo da violncia faria com
que se desmascarasse o ser, disfarando-se o carter sdico pelo tom de brincadeira. Hilst, a
partir de suas descries e punies cmicas, usa do grotesco, do obsceno e do sdico para
castigar ou para encenar o castigo de suas personagens, mostrando que esconder e
distanciar-se do prazer no o melhor caminho para a felicidade. A partir desse ponto de
vista, expe as personagens de forma sdica e, muitas vezes, macabra.
Para Deneval Siqueira de Azevedo Filho, os poemas de Buflicas jogam com a
diagnose sexual freudiana das personagens, resultando em uma obra com lcida irreverncia,
crtica e humor (2007, p. 141). Assim, para o crtico, os poemas poderiam ser relacionados
aos anfiguris romnticos na medida em que
[...] [remanejam] os cnones do imaginrio infantil (obras) e de um texto
dramatrgico (A Cantora Careca, de Eugene Ionesco) tambm cannico, ela procura
situar precisamente os pontos estratgicos, as margens excludas da histria oficial
da literatura, em nome de uma normalidade ditada, como autodefesa, pela
ideologia dominante: os textos parodiados e em desconstruo humorstica so
legitimados por uma histria textual que acredita poder dispensar a profundidade
escrita. Hilda, ao contrrio, moda dos anfiguris romnticos, to presentes e pouco
difundidos no nosso Romantismo (A Origem do Mnstruo, Elixir do Paj e Orgia
dos Duendes, de Bernardo Guimares, so os mais conhecidos), faz com que o
humor manifeste-se s gargalhadas, de forma que apreci-lo e dar vazo a ele mais
fcil do que defini-lo (AZEVEDO FILHO, 2007, p. 141-142, grifos do autor).

Desse trecho podemos depreender o anfiguri em relao ao discurso e s convenes


do conto de fada, e no necessariamente Psicanlise, cuja terminologia no
suficientemente exposta em forma de discurso absurdo, como ocorre com o daquele tipo de
conto. Ao anticanonizar os contos de fadas, Hilst altera as marcas convencionais do rei, da
rainha, da bruxa, da menina desprotegida, do ano, da cantora e da fada, alm do propsito
moralista burgus. Essas personagens so descritas nos poemas-fbulas de forma sdica,
107

sendo punidas nos seus mais nfimos desejos. De todas as personagens apenas Drida e Ula
no so punidas por seguirem o princpio do prazer. Nos contos de fadas exalta-se o princpio
da realidade, que comandado pelo ego, em detrimento do id, o princpio do prazer, pois,
quando os protagonistas dos contos de fadas seguem esse princpio, so punidos at que
aprendam a agir pelos princpios do ego (BETTELHEIM, 1998, p. 53-55). Nas Buflicas, as
personagens so invertidas, aquelas que seguiam o princpio da realidade so retratadas como
rendidas ao prazer sexual, o que as desmascara.
Pensando no tpico do anfigurismo buflico e as provveis relaes com outros
conceitos, partimos para a anlise de Fil, a fadinha lsbica. Segundo Nelly Novaes Coelho,
as fadas so de origem celta e esto relacionadas ao amor, ou sendo elas prprias as amadas,
ou sendo mediadoras entre os amantes. Aps o mundo ocidental se cristianizar, esses seres
perderam seu carter sobrenatural, ficando o sentido de mediadora entre os amantes (1991, p.
32-34). Como nos deixam observar Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre a fada, mestra na
magia, ela simboliza
Os poderes paranormais do esprito ou as capacidades mgicas da imaginao. Ela
opera as mais extraordinrias transformaes e, num instante, satisfaz ou decepciona
os mais ambiciosos desejos. Talvez por isso ela represente a capacidade que o
homem possui para construir, na imaginao, os projetos que no pde realizar
(2009, p. 415).

Em torno dessa personagem, que s vezes decepciona, s vezes agrada, que gira a
ltima buflica a ser discutida. Tradicionalmente, as fadas so as ajudantes da protagonista
que sofre com os abusos da madrasta, como em Cinderela de Perrault (2004, p. 37-49) ou
dos Irmos Grimm (2012, p. 116-127). Ambos os textos, de alguma forma, so referenciados
no poema-fbula Fil, a fadinha lsbica que explanaremos:
Ela era gorda e mida
Tinha pezinhos redondos.
A cona era peluda
Igual a mo de um mono.
Alegrinha e vivaz
Feito andorinha
s tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas.
Chamavam-lhe: Fil, a lsbica fadinha.
Em tudo que tocava
Deixava sua marca registrada:
Uma estrelinha cor de maravilha

108

Fcsia, bord
Ningum sabia o nome daquela c.
Metia o dedo
Em todas as xerecas: loiras, pretas
Dizia-se at...
Que escarafunchava, bonecas.
Bulia, beliscava
Como quem sabia
O que um dedo faz
Desde que nascia.
Mas noite... quando dormia...
Peidava, rugia... e...
Nascia-lhe um basto grosso
De incio igual a um caroo
Depois...
Ia estufando, crescendo
E virava um troo
Lils
Fcsia
Bord
Ningum sabia a c do troo
Da Fadinha Fil
(HILST, 2002, p. 31-35).

No poema-fbula, a imagem dessa personagem semelhante das fadas clssicas,


como as do conto Cinderela, mas com algumas diferenas: em primeiro lugar temos a
troca da vara de condo (comumente objeto de poder de transformao das fadas) pela
mo: aluso preferncia sexual de Fil, uma lsbica (SILVA, 2009, p. 200). Assim, a fada
perde suas caractersticas, rebaixando-se, do ponto de vista tradicional, j que lsbica. Em
vez de realizar os tradicionais desejos das moas para que se casem, no poema, a fada s
pensa em se satisfazer sexualmente: em vez de generosidade, portanto, egosmo.
Como Cinderela, borralheira que se veste de princesa, o que no coincide com sua
ordem social, aparentando assim o que ela no , a fadinha Fil tambm se traveste: uma
mulher que se veste de homem, o que no coincide com seu gnero. No caso do conto de
Charles Perrault, a protagonista, com a ajuda de sua Fada Madrinha, se veste elegantemente e
vai ao baile como se fosse uma princesa e chega a ser confundida com uma (2004, p. 38-49).
Na verso de Hilda Hilst, a fadinha Fil se veste feito rapaz para enganar as mulheres da vila:
Alegrinha e vivaz / Feito andorinha / s tardes vestia-se / Como um rapaz / Para enganar
mocinhas. A fada nessa buflica se traveste para ser o objeto de desejo e para botar o dedo
em vrias xerecas, bulindo-as e beliscando-as como s quem sabe o que um dedo faz.
Nota-se que a fadinha Fil comparada a um pssaro migratrio, a andorinha,
indicando sua volubilidade e don-juanice, e prenunciando, desde o comeo do poema, a sua
109

futura partida da vila. Com isso, Hilst traa um paralelo entre a andorinha e os pssaros que
so os benfeitores da protagonista do conto de Perrault. Tais pssaros substituem a fada e,
magicamente, vestem Cinderela com ouro e prata para encontrar-se com o prncipe no baile
(GRIMM, 2012, p. 119-121), realizando o mesmo papel da Fada Madrinha em Cinderela de
Perrault. No poema, a fada lsbica comparada andorinha, mas s avessas, j que
tradicionalmente o pssaro tem o objetivo de ajudar a Cinderela a casar-se e a juntar-se a seu
prncipe, enquanto na buflica ela ajuda a si mesma, atuando como prncipe safado,
enganando as moas para ter o seu prazer: Metia o dedo / Em todas as xerecas: loiras,
pretas.
Um dos traos de Fil que chama a ateno: alm de ser uma fada homo-orientada
Que escarafunchava, bonecas. / Bulia, beliscava / Como quem sabia / O que um dedo faz /
Desde que nascia, quando anoitecia ela se metamorfoseia, princpio carnavalizante, como
vimos, das violaes das fronteiras naturais (BAKHTIN, 1993, p. 35). Ao dormir, Fil se
transforma em fera: Peidava, rugia... e... / Nascia-lhe um basto grosso / De incio igual a um
caroo / Depois... / Ia estufando, crescendo / E virava um troo / Lils / Fcsia / Bord /
Ningum sabia a c do troo / Da Fadinha Fil. Observa-se nesses versos a transformao da
fadinha em um tipo de animal, pois ela rugia isto , emitia urros como um leo, ou
outros felinos (HOUAISS, 2009) , e [] noite virava fera. Essa transformao faz
referncia intertextual ao conto de fadas A Bela e a fera, de Jeanne-Marie Leprince de
Beaumont (2004, p. 63-83), como veremos.
Segundo Bruno Bettelheim, a aparncia animalesca da fera, no conto de fada, tem
carter sexual:

Nenhum de ns se lembra em que momento da vida o sexo pareceu inicialmente


algo animal, algo a temer, evitar, e de que nos ocultarmos; um tabu que ocorre
geralmente muito cedo. Podemos lembrar que at recentemente muitos pais de
classe mdia diziam aos filhos que quando casassem ento entenderiam o que
sexo. No de surpreender, sob esta luz, que na Bela e a Fera, esta ltima diga
Bela: Uma fada malvada me condenou a viver sob essa forma at que uma
virgem bela consentisse em casar-se comigo . S o casamento torna o sexo
permissvel, transformando-o de algo animalesco em um lao santificado pelo
sacramento (1998, p. 323).

Assim como no conto de fadas, a viso animalesca do sexo mantida no poema,


porm, com a diferena de que no poema-fbula as pessoas da cidade se deliciam com essa
transformao, diferentemente do que se d nos contos de fadas, j que nessas narrativas o
110

sexo tem que ser evitado e s poder ser conhecido ou experimentado depois do casamento.
Outra caracterstica dada fada, no conto A Bela e a Fera, que ela m, pois transformou
o sexo em algo animalesco, proibido. Na buflica, Fil o prprio objeto sexual e ela se
transforma em animal feroz e vido por oitis.
A fadinha Fil sodomizava a todos, Todo mundo tomava / Um basto no oiti. Como
explica Horcio de Almeida, oiti uma palavra usada no Nordeste brasileiro, que significa
nus (1981, p. 190). A fadinha Fil, com o seu troo, virou a alegria da vila, ao praticar sexo
anal com Mocinhas, marmanjes / Ressecadas velhinhas, deixando todos extasiados com o
prazer, pois Todo mundo gemia e chorava / De pura alegria. Alm de sodomizar, Fil dava
prazer nos meios das mulheres, pois arrepiava os pelos destas. Nessa metamorfose
carnavalizante da fadinha Fil, o rgo que lhe apareceu no meio das pernas d nome
cidade: Vila do Troo. Por essa razo, a Fil vira monumento de contemplao famosa no
exterior e em todo o pas: Famosa nas Oropa / Oiapoc ao Chu.
Como nos finais de contos de fadas, a fadinha Fil encontra seu prncipe encantado:
um tipo troncudo que tem a boca com as mesmas caractersticas que o troo da Fil, ou
seja, h a mesma indefinio de qual seja a cor: Um cara troncudo / Com focinho de tira /
De beio bord, fcsia ou maravilha / (ningum sabia o nome daquela c) (HILST, 2002, p.
33). H a transposio do pnis para a boca, regies onde se efetuam as orientaes do corpo
grotesco, como observa Mikhail Bakhtin. Nota-se que ocorre no poema aquilo que o autor
russo chama de drama corporal, que est presente no copular e no comer (BAKHTIN, 1993,
p. 277).
No entanto, diferentemente do que teoriza Bakhtin ao estudar a obra de Rabelais, com
relao ao aspecto renovador, libertrio e contestador do carnaval, na buflica parece haver
um retrocesso ideolgico, pois a fadinha Fil, que antes era livre para ter e dar o seu prazer
sexual a qualquer uma das pessoas da Vila do Troo, perde a sua condio inovadora,
tornando-se conservadora, pois abdica da poligamia, virando no apenas mongama, mas
hetero-orientada.
Segundo Tatiana Franca Rodriguez, a Fil e o Troncudo so a constatao da vitria
do prazer, pois
O prazer edmico que todas as outras personagens de Buflicas procuram chega,
enfim, na combinao entre o troo de Fil e o beio do Troncudo, ambos os sexos
de cor indeterminada (bord, fcsia ou maravilha, ningum sabia o nome), como
que metaforizando o caos sobrepondo-se ordem, lei. Vale lembrar: o cara

111

troncudo, que a imagem-cone da afirmao absoluta da masculinidade, tambm


abre mo do padro que representa (2007, p. 46).

Assim, no desfecho do poema, Troncudo sequestra a fadinha e os dois vo morar


juntos numa ilha, lugar aparentemente isolado, j que nem barco, nem ponte leva os dois
para o local; a personagem com cara de tira vai a nado, sendo comparado, no poema, a um
rinoceronte. Ao contrrio talvez do que conclui Tatiana Franca Rodriguez, a personagem
Troncudo aparentemente no abre mo de sua masculinidade, j que a gua, em que ele nada
e leva Fil, pode representar a morte regeneradora, no necessariamente no sentido bakhtiano,
pois est ligada ideia de batismo:
Mergulhar nas guas, para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma
morte simblica retornar s origens, carregar-se de novo num imenso reservatrio
de energia e nele beber uma fora nova: fase passageira de regresso e
desintegrao, condicionando uma fase progressiva de reintegrao e
regenerescncia (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 15).

A fadinha Fil, ao mergulhar nas guas com Troncudo, ao que parece, ressurge como
um novo ser. Alm de a gua apresentar um simbolismo regenerador, esse smbolo que brota
da terra tambm feminino (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 19-20). Assim,
Troncudo e Fil, mergulhando nas guas, experimentam juntos os prazeres, ela o de ser
mulher, ele o de penetrar Fil. A primeira evidncia da relao sexual da fadinha com o
homem, portanto, est no verso: Pela primeira vez. Ou seja, aconteceu algo novo com Fil,
uma vez que, ao sodomizar os moradores da Vila do Troo, era ativa e viril na relao
sexual. Agora Troncudo, ao nadar juntamente com Fil, metaforiza o sexo heterossexual, at
chegar ao orgasmo representado pela repetio da palavra veloz e pelo prazer que Fil
sentia ao estremecer com o gozo de ser penetrada:
Pela primeira vez
Na sua vidinha
Fil estrebuchava
Revirando os inho
Enquanto veloz veloz
O troncudo nadava
(HILST, 2002, p. 33).

112

Como no poema-fbula O reizinho gay (HILST, 2002, p.11-14) no qual a turba


no tem um final feliz, sumindo do mapa, devido ao desejo dspota de seu soberano, que
pedia para si um cu cabeludo, restando ao povo da vila um triste desfecho , em Fil, a
fadinha lsbica, a vila Ficou triste, vazia / Sorumbtica, ttrica, por perder sua fonte de
prazer, seu ponto turstico internacional (Famosa nas Oropa) e nacional (Oiapoc ao Chu),
pois Fil, juntamente com seu troo, foi embora. E o pior que:
[...] nunca mais se viu
Algum-Fantasia
Que deixava uma estrela
Em tudo que tocava
E um rombo na bunda
De quem se apaixonava
(HILST, 2002, p. 35).

Antev-se que a vila nunca mais voltar a ser a mesma. A fada abandonou os
moradores e no deixar a marca de sua estrela, evidncia mgica do prazer realizado por Fil
(SILVA, 2009, p. 199), pois enfiava o dedo nas xerecas das mocinhas. No deixar o rombo
da sodomizao em quem se apaixonava por ela, uma referncia aos moradores (s velhinhas,
aos marmanjes e s mocinhas) que tomavam um basto no oiti.
H duas codas no poema: uma que se dirige aos moradores, e outra, fadinha Fil.
Aos moradores da Vila do Troo recomendado: No acredite em fadinhas. / Muito menos
com cacete. / Ou somem feito andorinhas / Ou te deixam cacoetes. A partida de Fil trata-se
de um processo de perda muito parecido com o da verso dos irmos Grimm do conto de fada
A Cinderela, analisada por Bruno Bettelheim:
Em nvel bem diferente, o pombal e a pereira substituem os objetos mgicos que
sustentaram Borralheira at ento. O primeiro o lugar onde vivem os pssaros
auxiliadores que separaram as lentilhas para a herona substitutos do pssaro
branco na rvore, que lhe deu lindas roupas, inclusive o chinelinho fatdico. E a
pereira lembra-nos outra rvore que cresceu sobre o tmulo da me. Borralheira
deve abandonar sua crena e sua dependncia dos objetos mgicos se quiser viver
bem no mundo da realidade (1998, p. 304).

Dessa forma, observa-se que os moradores da Vila do Troo ainda dependiam de seu
objeto mgico, o algum-Fantasia, que no conto dos Grimm representado como um
pssaro branco, mas que, na buflica de Fil, ganha personalidade na figura da fadinha-fera.
Como se pressupe no incio do poema, feito andorinha, a fadinha, objeto mgico no
113

poema, emigra para a ilha deserta com Troncudo. A moral dirigida aos moradores avisa que
no se pode acreditar em fantasia, ou em seres mgicos, pois h a chance de eles
decepcionarem suas expectativas. A moral ento pune, por meio das palavras, a crena em
seres mgicos ou em alternativas comportamentais, sexuais.
Para a Fil, o final diferente, pois dada a ela a possibilidade de continuar a ter o
prazer, pois Quando menos se espera, tudo reverbera. Assim dada fadinha a condio de
mudana e no de morte do desejo como se d aos moradores. A fada s muda sua fonte de
prazer, uma vez que agora ela passiva na relao sexual. Percebe-se uma magia, semelhante
estrela que Fil deixava em tudo que tocava, na relao sexual entre Fil e Troncudo
presente no verbo reverbera, visto que os dois juntos emitem luz, brilho (HOUAISS,
2009). Hilst, nesse poema fbula, recorre, ao que tudo indica surpreendentemente, e no
ltimo poema , ao processo moralizante conservador dos contos de fadas tradicionais: a
necessidade do princpio da realidade.
O anfiguri presente em Fil, a fadinha lsbica se manifesta a partir do discurso
absurdo de que se traveste a releitura do conto de fada e da presena sdica, pois Fil renuncia
a seu posto de patrimnio pblico e cultural e vai embora da Vila do Troo, relegando todos
os moradores ao esquecimento. Desse modo, Fil, como o reizinho gay, escolhe o individual
em detrimento do coletivo, entregando os moradores ao ostracismo, o que demonstraria o lado
sdico do poema-fbula analisado.

114

CONSIDERAES FINAIS

Conforme procuramos demonstrar nos captulos deste trabalho, as Buflicas, de Hilda


Hilst, se ajustam aos conceitos de obsceno, de pardia e de grotesco. A argumentao
considerou a literatura terica sobre o assunto, com seus desdobramentos e gradaes, mas
sem o propsito de sermos exaustivos. Pretendemos escapar da discusso sobre o fracasso
pornogrfico ou no da tetralogia, apesar de considerarmos a obra em questo um resgate da
pornografia renascentista em que se realizam crticas polticas ao sistema vigente, naquele
caso monarquia, no caso de Hilda Hilst, sociedade brasileira conservadora e ao
comportamento totalitrio de governantes em nosso sculo. Por causa desses temas, Buflicas
se configura como
o registro baixo mais delicadamente engraado j produzido nos livros de Hilda
Hilst, a moral das fbulas reinventadas termina sempre na formulao de uma outra:
a de que a liberdade de algum a certeza da vingana odiosa dos outros. Nas
descries agnicas do mundo feitas pelos seus textos, a obscenidade bsica est a,
nesse desajuste de raiz entre os desejos mais sinceros, criativos e generosos, de um
lado, e as prticas adotadas voluntariamente pelo comum dos homens, de outro. Os
homens simplesmente no combinam consigo mesmo, nem em termos pessoais, nem
coletivos (PCORA, 2008, p. 10).

Ao satirizar os costumes vigentes em nossa sociedade, na qual os homens no entram


em comum acordo, Hilst usa e abusa dos recursos pardicos, obscenos, grotescos, mas,
sobretudo, humoristicamente poticos para criar um texto cheio de referncias tradio
literria, em especial os contos infantis de Perrault e dos irmos Grimm, dentre outros.
Pretendeu-se neste trabalho dar uma panormica sobre a obra obscena hilstiana para
destacar desta os poemas buflicos. Com o intuito de realizar uma anlise ampla do corpus,
dividiu-se o estudo em trs captulos que abordam o obsceno e seus interditos, a pardia
profanatria e o grotesco presentes na obra.
No primeiro captulo, A palavra inoculta de Hilda Hilst, procuramos discutir as
divergncias acerca dos conceitos de pornografia, erotismo e obscenidade, e realizamos uma
anlise dos dois interditos presentes na obra: a exposio dos rgos genitais (pnis, vagina e
nus) e o riso em dois poemas-fbulas: O reizinho gay e A rainha careca. Destacamos, em
um primeiro momento, o papel do interdito, salientando a importncia da metfora, estudada
por Roland Barthes e Octavio Paz, na mudana dos sentidos dos rgos sexuais; os interditos
115

serviriam como mscara para a verdadeira obscenidade. No caso de O reizinho gay, a


obscenidade a tirania dos governantes diante do povo e a inrcia deste ao se deixar
corromper e no se pronunciar contrariamente situao: a enormidade de um cetro. J no
poema A rainha careca tem-se a metfora da vagina calva, smbolo opressor, uma vez que,
por causa desse detalhe, a falta de pelos pubianos, Ula era infeliz.
Como observamos, nas Buflicas, as metforas mascaram variadas obscenidades,
como, alm dos governantes totalitrios, em O reizinho gay, a supresso de desejos devido
aos conceitos de beleza, em A rainha careca; o absurdo de autores como Paulo Coelho
fazerem sucesso editorial, em Drida, a maga perversa e fria; a infncia pervertida e o
mascaramento sexual, em A Chapu; a confiana no divino para a soluo de problemas,
em O ano triste; a crena do povo em objetos mgicos, em Fil, a fadinha lsbica.
Em um segundo momento, discutimos o riso hilstiano, verificando que as cenas
obscenas retratadas em Buflicas focalizam os rgos sexuais e fazem surgir o riso, outro
interdito estudado por Georges Bataille. O filsofo francs destaca que o riso seria uma reao
exposio dos rgos sexuais; assim, ao se retratar o sexo de forma cmica, sujar-se-ia sua
imagem, configurando-o de maneira repugnante. Portanto, a exposio dos rgos sexuais e,
consequentemente, da sexualidade domnio da derriso (BATAILLE, 2013, p. 270). Para
Georges Bataille, no mbito da comdia, as cenas mais engraadas so aquelas que retratam a
vida das prostitutas. Como vimos, Hilda Hilst inverte essa suposio. Se tradicionalmente riase daqueles que fugiam da moral e dos valores ditados pela elite, considerada conservadora,
em Buflicas h o movimento contrrio, pois Hilst escracha a literatura considerada alta e
ironiza todo o contedo pedaggico e psicolgico que os contos de fadas tendem a ensinar
para as crianas. Para tanto a autora utiliza-se dos caracteres cmicos e da caricatura das
representaes psicanalticas das personagens dos contos de fadas, rebaixando-as. Hilst
hiperboliza o discurso da Psicanlise, engordando dipo, mostrando o quo ridculo e
cmico so as representaes dos complexos edipianos difundidos na sociedade brasileira. A
partir dos rebaixamentos das representaes psicanalticas presentes na obra, Hilst d s
pessoas condies [...] de produo de seus enunciados individuais para descobrir os
verdadeiros agenciamentos coletivos que os produzem (DELEUZE, 2006, p. 347).
Em Buflicas e as profanaes pardicas, segundo captulo, observamos que Hilda
Hilst profana os textos cannicos infantis, como os contos de fadas e fbulas. Essa
caracterstica evidencia a profanao estudada por Giorgio Agamben (2007, p. 68). Para o
116

filsofo, a profanao seria o movimento da esfera sagrada para o profano, devolvendo o


objeto ao uso comum dos homens. Ao utilizar a pardia como ferramenta profanatria, a
escritora mistura, em Buflicas, variados gneros, como fbulas, contos de fadas, fabliaux,
pornografia, parbola, dentre outros, de modo a dessacralizar as lies morais
convencionalizadas pelo senso comum. Para demonstrar essas caractersticas, analisamos dois
poemas-fbulas: A Chapu e Drida, a maga perversa e fria. Similarmente ao que ocorre
em O caderno rosa de Lori Lamby, em Buflicas, Hilda Hilst utiliza-se de uma personagem
infantil despida de inocncia, a sua Chapu. Ronnie Francisco Cardoso, ao tratar sobre a
profanao em O caderno rosa, defende que quando a autora utiliza um narrador infantil para
escrever literatura fcil, que seria a pornografia, profana dois espaos ao mesmo tempo: o
espao infantil, tido pelo pblico como o lugar da inocncia, e o lugar da pornografia, pois
floreia a escrita pornogrfica a partir do uso do plgio, com citaes de escritores consagrados
da literatura (CARDOSO, 2007, p. 42). Em Buflicas observamos processo semelhante, pois,
ao parodiar fbulas e contos de fadas, utilizando as personagens dos gneros infantis em
atitudes obscenas, Hilda Hilst profana os ensinamentos que esses textos queriam passar. Em
Drida, a maga perversa e fria, alm da profanao dos contos de fadas, percebemos tambm
a stira literatura best-seller de Paulo Coelho e a discusso sobre o valor da literatura
oportunista e mistificadora.
Por fim, no terceiro captulo, Invaso dos domnios: o grotesco hilstiano, discutimos
a esttica grotesca em Buflicas. Nesse captulo, analisamos os poemas-fbulas O ano
triste e A cantora gritante, destacando o carter monstruoso do falo da personagem Cido,
que foge dos domnios humanos, e a devorao presente na buflica da Cantora. Neste poema,
o canto da protagonista tem a propriedade de excitar os homens, por isso a personagem
punida pelas mulheres destes, ao ter sua garganta estuprada pelo jumento Fodo. Hilst recria o
mito de Orfeu, como vimos, e seu texto teria, por isso, um carter metalingustico. H,
portanto, trs poemas-fbulas que questionam valores literrios em Buflicas: O reizinho
gay, que salienta a importncia da palavra diante da obscenidade da violncia e do
totalitarismo; Drida, a maga perversa e fria, que questiona autores e leitores de best-sellers;
e A cantora gritante, que questiona o estupro mercadolgico do ato criativo do artista pelo
mercado e seus receptores.
No fim desse captulo, fizemos um breve comentrio sobre o anfiguri e sua provvel
referncia na obra histiana, aumentando as evidncias crticas de que Hilda Hilst satirizou a
117

Psicanlise em suas Buflicas. Terminamos esse captulo com a anlise de Fil, a fadinha
lsbica, em que observamos o tema da inverso de papeis por meio da fada que vira fera.
Hilst recorre em Buflicas, ao que nos parece, aos dois nveis de significao explicitados por
Vagner Camilo ao estudar o anfiguri na poesia pantagrulica do Romantismo brasileiro, que
seriam a stira da matria cientfica e o carter sdico desses poemas. O primeiro deles
corresponde s piadas que os estudantes fazem das matrias romnticas; Hilda Hilst,
dialogando com a stira pantagrulica, troa do discurso moralista e convencional dos contos
de fadas, utilizando-se do rebaixamento ideolgico das representaes psicanalticas desses
contos. No segundo nvel do anfiguri, v-se o gosto pelo sdico e o macabro; no anfiguri
buflico, as personagens, em sua maioria, so punidas sdica ou macabramente: os habitantes
do reino que adoram o falo descomunal do rei e se silenciam diante dele so dizimados e
reduzidos a cinzas; as pessoas que atravessavam o caminho de Drida so enrabadas; a
menina trada na esperteza que pensava ter; o ano crente perde todo o membro devido ao
pedido mal interpretado por Deus; a cantora afinada tem o canto estuprado, e os moradores da
vila so abandonados pela fada e relegados ao tdio e ao esquecimento.
Hilda Hilst, como se observou nos captulos, teria encerrado o seu projeto obsceno
com a obra estudada neste trabalho. Por essa razo, a autora retoma crticas e temas evidentes
em seus livros anteriores, como a crtica ao mercado editorial e aos escritores e leitores de
livros comerciais ou a meno ao cnone de modo dessacralizado ao ser referido de forma
sexual. Essas caractersticas fazem da tetralogia obscena de Hilst um caso singular na
Literatura Brasileira.
Atrelando o obsceno pardia e ao grotesco, a autora criou personagens cmicas, e
deu vida a um dos projetos mais instigantes e vivos de sua carreira. Apesar de sua importncia
na literatura brasileira, devemos admitir que Buflicas ainda pouco estudado, talvez devido
ao pouco apreo em que se tem ainda a stira ou a poesia humorstica, pantagrulica,
anfigrica. Este trabalho teve o objetivo de, por meio de um estudo crtico, explanar a
complexidade dos poemas, tanto em seu aspecto textual, como contextual. Em todas as
anlises h a evidncia da stira a nossos costumes, verificando-se o emprego, nos poemasfbulas, de vrios recursos discursivos, como o trocadilho, o smbolo, o paradoxo, a
caricatura, a inverso, a hiprbole, alm das metforas obscenas referentes ao baixo corporal.
Pretendemos, portanto, com tal trabalho e tal propsito, demonstrar ainda mais a profundidade

118

crtica da literatura de Hilda Hilst no cenrio contemporneo da Literatura Brasileira, e


diminuir o silncio injusto em torno de sua obra.

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