Filocalia Tomo I Volume 3
Filocalia Tomo I Volume 3
Filocalia Tomo I Volume 3
CASSIANO O ROMANO
AO BISPO CASTOR SOBRE OS OITO PENSAMENTOS DE MALCIA
Cassiano o Romano
Nosso santo Padre Cassiano o Romano viveu no reinado de Teodsio, por
volta do ano 430. Dentre as obras que ele escreveu, expomos aqui o tratado
sobre os oito pensamentos e o tratado sobre o discernimento, que
transpiram socorro e graa. Photius os menciona nos seguintes termos:
O segundo tratado tem como ttulo: Sobre os oito pensamentos. Ele trata
da gula, da prostituio, da avareza, da clera, da tristeza, da acdia, da
vanglria e do orgulho. Mais do que quaisquer outros, estes textos vm em
auxlio daqueles que escolheram travar o combate da ascese; eu tambm li
um terceiro pequeno tratado, no qual ensinado o sentido do
discernimento, que ele a maior das virtudes, de onde nasce e o quanto ele
representa o mais alto dom do alto.
A Igreja celebra a memria de so Cassiano em 29 de fevereiro, honrando-o
com muitos louvores.
Cassiano no era romano de nascena. De nao cita, segundo Gennade
de Marselha, ele nasceu perto do ano 360. Vinte anos depois, ns o
encontramos na Palestina num mosteiro em Belm, de onde ele partiu para
o Egito, atrado pelo grande renome dos Padres do deserto. Com seu amigo
Germano, ele visitou os principais centros monsticos do Baixo Egito, em
especial Nitria e as Kellia, antes de se fixar por muitos anos no deserto de
Sceta. Cerca do ano 400, as controvrsias origenistas que perturbaram o
deserto obrigaram sua partida para Constantinopla, aonde ele foi
ordenado dicono por so Joo Crisstomo. Em 404, quando este foi expulso
de sua cadeira, Cassiano partiu para Roma para interceder em seu favor
perante o papa Inocncio.
Chegando a Marselha em 415, Cassiano fundou a a abadia de Saint-Victor e
um convento de freiras. Foi para estas comunidades e para todas as da
Provence que ele se disps a compor suas duas obras mais clebres,
as Instituies cenobticas e asConferncias espirituais, nos quais ele
DE
SO
CASSIANO
O
ROMANO
AO
SOBRE OS OITO PENSAMENTOS DE MALCIA[1]
BISPO
CASTOR
Da continncia do ventre
Trataremos primeiramente da continncia do ventre que se ope gula, da
medida dos jejuns, da qualidade e da quantidade dos alimentos. E no
falaremos por ns mesmos, mas conforme a tradio dos santos Padres.
Estes no nos legaram uma regra nica para o jejum, nem um modo nico
de tomar a refeio, nem uma medida uniforme, pois nem todos possuem o
mesmo vigor, nem a mesma idade, nem a mesma sade, nem a mesma
constituio fsica. Entretanto, o objetivo que foi transmitido a todos o
mesmo: fugir da saciedade e recusar absolutamente a repleo do ventre.
Eles consideravam que o jejum cotidiano era mais benfico e favorvel
pureza do que um jejum prolongado de trs ou quatro dias ou mesmo de
uma semana. De fato, o prolongamento excessivo do jejum , muitas vezes,
pior do que o excesso de alimento. Pois na seqncia de uma abstinncia
imoderada o corpo est enfraquecido e no mais assduo das liturgias
espirituais, enquanto que o corpo pesado pelo excesso de comida causa
alma a acdia e o relaxamento.
[5,2] Por outro lado, eles achavam que no convm a todos comer apenas
legumes verdes ou secos e que nem todos podem se alimentar s de po
seco. Um, diziam eles, come duas libras de po e ainda tem fome; outro fica
saciado com uma libra ou mesmo com apenas seis onas. Assim, a todos,
como foi dito, eles transmitiram uma nica regra de continncia: no ser
trado pela saciedade do ventre[2], nem arrastado pelo prazer da boca. Pois
no somente a qualidade dos alimentos, mas tambm a quantidade que
normalmente atia os tragos inflamados da prostituio.
[5,6] De fato, qualquer que seja o alimento com o qual o ventre foi
preenchido, ele engendra uma semente de prostituio. E no somente o
excesso de vinho que embriaga a razo, mas tambm a superabundncia
de gua e o excesso de qualquer comida a tornam pesada e sonolenta. A
runa dos Sodomitas no foi causada pela embriaguez do vinho e o excesso
de comidas variadas, mas, segundo o profeta, pela saciedade de po[3].
[5,7] A fraqueza do corpo no um obstculo pureza do corao, quando
damos ao corpo o que a fraqueza exige, no o que o prazer deseja.
preciso utilizar os alimentos na medida em que so teis para viver e no a
ponto de nos tornarmos presas dos assaltos da concupiscncia. A absoro
moderada e razovel de alimentos, para manter a sade do corpo, no
destri a pureza.
[5,8] Uma medida e uma regra exata da temperana nos foram transmitidas
pelos Padres: quando comemos, devemos parar enquanto ainda temos
apetite, sem esperar estarmos saciados. Quando o Apstolo diz que no
devemos nos preocupar com a carne no sentido de satisfazer a
concupiscncia[4], ele no probe prover as necessidades da vida, mas
condena a busca do prazer.
[5,10] Por outro lado, para uma perfeita pureza da alma, apenas a
abstinncia de alimento no suficiente, sem o socorro das demais
virtudes. Assim, a humildade, pela prtica da obedincia e pelo labor que
doma o corpo, nos traz grandes benefcios. Abster-se da avareza, no
apenas das riquezas, mas at do desejo de adquiri-las, conduz pureza da
alma. A abstinncia de clera, de tristeza, de vanglria e de orgulho, tudo
isto produz a pureza universal da alma. Mas para a pureza especfica da
alma que obtida pela castidade, a abstinncia e o jejum possuem uma
eficcia notvel. de fato impossvel a quem enche o ventre combater o
esprito da prostituio em seu pensamento. Eis porque nosso primeiro
combate deve ser o de dominar o ventre e reduzir o corpo escravido, no
apenas pelo jejum, mas pelas viglias, a prece, a leitura e a concentrao do
corao no temor da Geena e no desejo pelo Reino dos cus.
Da avareza
3. [7,1] Nosso terceiro combate contra o esprito da avareza. Ele
manifestamente estranho nossa natureza e, num monge, ele tem sua
origem na falta de f. De fato, os vcios que excitam as demais paixes, vale
dizer, a clera e a concupiscncia, parecem ter seus princpios no corpo,
eles so de certa forma inatos e comeam j no nascimento; por isso que
preciso muito tempo para venc-los.
[7,2] A doena da avareza, que ao contrrio provm do exterior, pode ser
evitada com mais facilidade, se dermos provas de preocupao, sobriedade
e vigilncia. Mas, se a negligenciarmos, ela se tornar mais perigosa do que
as outras paixes e mais difcil de ser rejeitada, pois ela a raiz de todos
os males, conforme o Apstolo[20].
[7,3] No vemos, com efeito, os movimentos naturais do corpo, no apenas
em crianas que ainda no possuem o discernimento do bem e do mal, mas
at nas menores que sequer desmamaram? Sem ter nelas o menor trao de
voluptuosidade, elas entretanto mostram em sua carne estes movimentos
naturais. Da mesma forma, podemos constatar nas crianas o aguilho da
clera quando as vemos irritadas contra algum que lhes fez mal. Digo isto,
no para acusar a natureza como causa do pecado, que Deus no permita!,
mas para mostrar que a clera e a concupiscncia, mesmo estreitamente
unidas ao homem pelo Criador para seu bem, podem, por negligncia,
transformar de certa maneira os movimentos naturais do corpo em atos
contra a natureza. Com efeito, o movimento do corpo foi dado por Deus
para a procriao e o prolongamento da raa, no para a prostituio. A
excitao da clera tambm pode ser salutar, para a dirigirmos contra os
vcios e no para que fiquemos furiosos com nosso irmos.
[7,4] No, claro, que a natureza seja m e que possamos responsabilizar o
Criador; da mesma forma, se dermos um pedao de ferro a algum para um
uso necessrio e til, ele pode tambm us-lo para cometer um crime.
[7,5] Dizemos tudo isso para mostrar que a paixo da avareza no extrai
seu princpio dos elementos naturais, mas apenas da vontade m e
corrompida.
[7,7] Com efeito, esta doena, quando encontra a alma morna e com pouca
f no incio da renncia, lhe sugere motivos justos e aparentemente
razoveis para que a pessoa guarde um pouco daquilo que ela possui. A
avareza apresenta ao esprito do monge uma velhice longa e as
enfermidades do corpo, alegando que o que dado pelo mosteiro no
suficiente, no digo aos enfermos, mas at aos que gozam de boa sade,
que ningum ali se preocupa muito com os doentes, que eles chegam a ser
abandonados, e que se no tiverem um pouco de ouro guardado, morrero
de misria. Finalmente, ela sugere ao monge que ele no conseguir
permanecer por muito tempo ainda no mosteiro, pela carga das
observncias e o rigor do superior. Quando ela logrou desorientar o esprito
com estes pensamentos para que ele guarde ao menos alguns centavos, ela
ainda persuade o monge a aprender, sem que o abade saiba, algum
trabalho com o qual ele possa aumentar suas economias. Assim ela desvia o
infeliz para esperanas incertas, sugerindo-lhe os ganhos com seu trabalho,
o repouso e a despreocupao que ele tirar disso. Entregue por completo
idia de ganhar, ele no v nada contra; nem a loucura furiosa que o
tomar se lhe acontecer uma perda, nem as trevas da tristeza caso ele se
veja privado dos ganhos com os quais contava. Para ele, o ouro tomou o
lugar de Deus, assim como, para outros, o ventre[21]. Assim, o bemaventurado Apstolo, sabendo disto, chamou a esta doena no somente de
raiz de todos os males[22], mas de idolatria[23]. Vemos com isto a que
ponto de malcia esta doena arrasta o homem, at atir-lo na idolatria.
[7,8] Depois que o avaro desviou seu intelecto do amor de Deus, ele
comea a adorar as imagens dos homens gravadas no ouro. Cego por esses
pensamentose progredindo no mal, ele j no consegue se manter
obediente mas se irrita, se indigna e resmunga por qualquer trabalho,opese a ele e, no tendo mais nenhum respeito por ningum, arrastado ao
precipcio como um cavalo bravo. Descontente com a alimentao
costumeira, ele protesta que no poder mais suportar isto, que Deus no
est apenas ali, que sua salvao no est ligada apenas quele lugar e que
ele vai se perder se no deixar o mosteiro.
[7,9] Tendo dinheiro reservado para apoiar sua opinio corrompida, ele
como que levado por suas asas e comea a ruminar sua despedida do
mosteiro. A partir da ele responde com insolncia e azedume a todas as
ordens que lhe so dadas e, comportando-se como um hspede ou um
estrangeiro, negligencia e despreza tudo o que, no mosteiro, precisa ser
retificado, e condena tudo o que feito. Depois ele comea a encontrar
razes para se irritar ou se entristecer, a fim de no dar a impresso de
deixar o mosteiro levianamente e sem razo. E ele pode fazer com que, por
meio de enganaes, cochichos e vos propsitos, algum outro o
acompanhe em sua sada, para que ele consiga ao menos um cmplice em
sua queda.
[7,10] Assim inflamado pelo fogo de suas prprias riquezas, o avaro j no
poder estar em paz no mosteiro e viver sob uma regra. Ento o demnio,
Da clera
4. [8,1] Nosso quarto combate contra o esprito da clera e preciso que,
com a ajuda de Deus, extirpemos das profundezas de nossa alma este
veneno mortal. Pois, enquanto ele se mantiver em nosso corao e cegar os
olhos do corao com perturbaes tenebrosas, no seremos capazes de
adquirir o discernimento das coisas convenientes, nem encontrar a
compreenso da cincia espiritual, nem possuir a perfeio do bom
conselho, nem participar da vida verdadeira, e nosso intelecto no ser
capaz de contemplar a verdadeira luz divina. De fato, foi dito: Meu olho foi
perturbado pela clera[42]. No ser possvel participarmos da sabedoria
divina, ainda que sejamos reputados sbios segundo a opinio de todos,
pois est escrito: A clera repousa no seio dos insensatos[43]. Nem
poderemos adquirir os salutares conselhos do discernimento, mesmo que os
homens nos julguem prudentes pois tambm est escrito: A clera do
homem no cumpre com a justia de Deus[44]. E tampouco poderemos
adquirir a moderao e a gravidade to estimadas dos homens, pois est
escrito: O homem colrico indecente[45].
[8,5] Portanto, aquele que pretende alcanar a perfeio e que deseja levar
adiante o combate conforme as regras, deve ser alheio a toda clera e todo
furor e escutar a recomendao do vaso de eleio: Que toda clera, disse
ele, fria, grito e blasfmia sejam afastados de vocs, bem como toda
malcia[46]. Quando ele diz toda, ele no deixa nenhum pretexto de
clera que pudesse ser necessria ou razovel. Assim, quem quiser corrigir
o irmo que pecou ou lhe infligir um castigo, deve tentar por todos os meios
permanecer imperturbvel, para que no lhe acontea que, pretendendo
curar o outro, no contraia ele prprio a doena, e que dele no se diga,
conforme o Evangelho: Mdico, cure a si mesmo[47]. E ainda: Porque
voc critica a palha no olho do seu irmo e no percebe a trave no seu
prprio olho?[48]
[8,6] De fato, qualquer que seja a causa, o movimento da clera, em sua
ebulio, cega os olhos da alma e impede de contemplar o sol da justia.
Quem coloca sobre os olhos folhas de ouro ou de chumbo fica igualmente
parte erguer as mos puras, sem clera nem [maus] pensamentos[55]; esta
uma lio para ns. Resta-nos, assim, seja no mais orar mas ento
pecaramos contra o mandamento do Apstolo seja nos apressarmos em
seguir este mandamento e cessar imediatamente com a clera e o rancor.
[8,14] Acontece muitas vezes desdenharmos dos irmos sofredores ou
perturbados, dizendo que sua tristeza no foi causada por ns. por isso
que o mdico de almas, querendo extirpar do corao at as razes os
pretextos da alma, nos ordena deixar a oferenda e irmos nos reconciliar, no
somente se fomos ns os ofendidos por um irmo, seja que tenhamos ns o
ofendido, com ou sem razo. Primeiro devemos remediar a situao com
desculpas, para em seguida fazermos nossa oferenda.
[8,15] Mas no precisamos nos deter por mais tempo nos preceitos
evanglicos, uma vez que a prpria lei antiga, que parece ser menos
rigorosa, nos ensina isto quando diz: No odeie seu irmo em seu
corao[56], e tambm: Os caminhos daquele que guarda rancor levam
morte[57]. A lei probe no apenas o ato, mas o pensamento. por isso
que aqueles que seguem as leis divinas lutam com todas as suas foras
contra o esprito de clera e contra esta doena que existe dentro de ns.
[8,16] Que aqueles que se encolerizam contra seus irmos no busquem a
solido e o isolamento, pensando que assim ningum mais os levar
clera, e que a virtude da pacincia poder ser mais facilmente adquirida na
solido. por orgulho, e por no querermos acusar a ns mesmos, nem
reconhecer em nosso descuido a causa da perturbao, que desejamos nos
separar dos irmos. Mas enquanto imputarmos aos outros as causas de
nossa fraqueza, ser impossvel conseguir a pacincia.
[8,17] O essencial de nosso progresso e de nossa paz no pode provir da
pacincia do prximo para conosco, mas de nossa longanimidade para com
o prximo.
[8,18] Se buscarmos o deserto e a solido para fugirmos ao combate pela
pacincia, todos os vcios que carregamos conosco sem hav-los corrigido
permanecero escondidos, mas no suprimidos. E, com efeito, para quem
no se libertou das paixes, a solido e o retiro podem no apenas
conserv-las, mas aument-las, a tal ponto que ele se acaba por no saber
de qual paixo est sendo vtima. A solido, ao contrrio, lhe sugere a iluso
da virtude e o persuade de que ele adquiriu a pacincia e a humildade, uma
vez que no existe ningum ali para provoc-lo e test-lo. Mas basta que
surja uma circunstncia que o sacuda e o excite, e na mesma hora as
paixes que se encontram nele e que estavam at ento ocultas, como
cavalos sem freio que, saindo da cocheira aps um perodo de repouso e
inatividade, arrastam o condutor com mais mpeto e ferocidade. De fato, as
paixes so mais excitadas em ns quando no somos testados no meio dos
homens. E perdemos esta sombra de pacincia e longanimidade que
fingimos possuir enquanto no nos misturamos aos irmos, pelo desleixo
causado pela falta de exerccio e pela solido.
Da tristeza
5. [9,1] Nosso quinto combate contra o esprito da tristeza que rouba a luz
da contemplao espiritual da alma e a impede de cumprir as boas obras.
Com efeito, quando este esprito mau se apodera da alma ele a obscurece
inteiramente, no a deixa mais fazer suas oraes com fervor nem se
dedicar frutiferamente s santas leituras. Ele no permite ao homem ser
doce e conciliador com seus irmos; ele lhe inspira raiva a todas as obras
que se deve praticar e prpria vida que se abraou. A tristeza perturba
todos os desejos saudveis da alma e dissolve seu vigor e sua constncia,
tornando-a como que mole e paralisada, at prend-la finalmente ao
pensamento do desespero.
[9,2] por isso que, se quisermos sustentar o combate espiritual e vencer
com a ajuda de Deus os espritos de malcia, devemos guardar com o maior
cuidado nosso corao do esprito da tristeza, pois, assim como a traa nas
roupas ou o cupim na madeira, a tristeza devora a alma do homem, quando
o persuade a evitar os bons encontros e no permite receber o conselho dos
melhores amigos, nem lhes dar uma resposta amvel e pacfica. Ela se
apodera da alma de todos os lados e a enche de amargura e de acdia.
Enfim, ela instiga a fugir dos homens como se fossem eles os responsveis
pela perturbao em que se encontra. E ela no permite alma reconhecer
que sua enfermidade no provm de fora, mas nasce no seu interior, coisa
que, alis, aparece quando as tentaes, surgindo inopinadamente pela
prtica, a fazem vir luz. De fato, jamais um homem prejudicado por
outro, se no possuir em si mesmo as causas das paixes.
[9,7] Tambm Deus, criador e mdico das almas, o nico que conhece
exatamente as feridas da alma, no nos ordena renunciar freqentao
dos outros, mas a extirpar as causas do mal em ns mesmos. Ele sabe que
a sade da alma no obtida separando-nos uns dos outros, mas vivendo e
nos exercitando junto a homens virtuosos. Quando abandonamos os irmos
por supostos bons pretextos, no suprimimos as ocasies de tristeza, mas
apenas as alteramos, pois o mal est em ns e surgir por outras razes.
[9,8] por isso que todo o nosso combate deve ser contra as paixes que
esto em ns. Uma vez que sejam expulsas de nosso corao com a graa e
a ajuda de Deus, viveremos com tranqilidade, j no digo entre os homens,
mas mesmo entre os animais selvagens, como diz o bem-aventurado J: Os
animais selvagens vivero em paz com voc[62].
[9,9] preciso ento combater primeiro contra o esprito da tristeza que
lana a alma no desespero, a fim de tir-lo de nossa alma. Foi este esprito,
de fato, que impediu Caim de se arrepender aps o assassinato de seu
irmo[63], e tambm Judas, aps ter trado o Mestre. S podemos manter a
tristeza trazida pelo arrependimento dos pecados que cometemos, mas que
acompanhada da boa esperana. Da qual diz o Apstolo: A tristeza
conforme a Deus causa uma penitncia duradoura para a salvao[64].
Com efeito, a tristeza conforme a Deus, que nutre a alma com a esperana
da penitncia, mesclada de alegria. por isso que ela torna o homem
cheio de ardor para submeter-se s boas obras, afvel, humilde[65], doce,
esquecendo-se das injrias, paciente para suportar todas as penas e
aflies, tudo o que vem de Deus. Desta tristeza enfim nascem no homem
os frutos do Esprito Santo, a saber, a alegria, a caridade, a paz, a
longanimidade, a bondade, a f, a temperana[66]. Da outra tristeza, ao
contrrio, reconhecemos os maus frutos, que so a acdia, a impacincia, a
clera, a raiva, a contrariedade, o desencorajamento, a negligncia na
orao.
[9,12] Assim, devemos nos afastar desta tristeza assim como fazemos com
a prostituio, a avareza, a clera e as demais paixes. Ela curada pela
prece, pela esperana em Deus, pela meditao nas palavras divinas e pela
freqentao dos homens piedosos.
Da acdia
6. [10,1] Nosso sexto combate ser contra o esprito da acdia que caminha
e trabalha junto com o esprito da tristeza. Este demnio terrvel e opressor
est sempre em guerra contra os monges.
[10,2] ele que ataca o monge na sexta hora, tornando-o lnguido e
entorpecido, fazendo-o sentir averso pelo lugar em que vive, pelos irmos
que vivem com ele, pelas ocupaes e at pela leitura das divinas
Escrituras. Ele lhe sugere que mude de lugar, pensando que, se no partir
para outras paragens, estar perdendo seu trabalho e seu tempo.
[10,3] Em primeiro lugar, por volta da sexta hora, ele o faz sentir fome,
como se tivesse passado trs dias sem comer, percorrido um longo caminho
ou cumprido alguma pesada tarefa. Ento ele lhe sugere o pensamento de
que esta enfermidade poder ser tratada se ele sair continuamente a ver os
irmos, sob pretexto de benefcio espiritual ou para visitar os enfermos. Se
no consegue fazer com que o monge caia em suas armadilhas, este
demnio o mergulha num profundo sono, tornando-se assim mais forte e
mais poderoso contra ele, e ento ele s poder ser expulso pela prece, a
fuga da tagarelice, a meditao sobre as palavras divinas e a pacincia nas
provaes.
[10,6] Com efeito, quando no o encontra munido destas armas, ele toma
as rdeas ao monge, tornando-o instvel, errante, negligente e ocioso,
fazendo-o circular de mosteiro em mosteiro sem se preocupar com outra
coisa do que encontrar comida e bebida. Pois o esprito do monge que
presa da acdia no imagina outra coisa do que distraes deste gnero; e,
a partir da, a acdia o prende s coisas do mundo e pouco a pouco o atira
[10,8] O doutor das naes, o arauto do Evangelho, aquele que foi elevado
at o terceiro cu, aquele que disse que o Senhor declarou que os que
predicam o Evangelho devem viver do Evangelho, ele prprio trabalha noite
e dia penando at o esgotamento para no se tornar um peso para
ningum. Que faremos ns ento, que sentimos desgosto pelo trabalho e
no buscamos seno o bem estar do corpo? Ns no recebemos nem o
encargo de anunciar o Evangelho, nem o de administrar a Igreja, mas
apenas o de cuidar de nossas almas. Depois, mostrando claramente o
prejuzo causado pelo cio, ele acrescenta: sem fazer nada e sempre
parecendo atarefados. Pois do cio nasce a ingerncia nos negcios
alheios, da a desordem e da desordem todos os males. Preparando em
Da vanglria
7. [11,1-3] Nosso stimo combate contra o esprito de vanglria, paixo
que se reveste de diversas formas e que muito sutil. Mesmo os mais
experientes no conseguem domin-la facilmente. De fato, os ataques das
outras paixes so mais manifestos e podemos combat-los com certa
facilidade, pois a alma reconhece o inimigo e o afasta rapidamente pela
rplica da orao. Mas a malcia da vanglria, revestindo-se de numerosas
formas, como dissemos, difcil de combater. Com efeito, ela se mostra em
todas as ocupaes, [nas roupas, no modo de andar], na voz, na palavra, no
silncio, na ao e na viglia, nos jejuns, na prece, na leitura, no
recolhimento e na pacincia. Em tudo isso, ela se esfora por ferir o soldado
de Cristo.
[11,4] Aquele a quem a vanglria no consegue enganar com a
suntuosidade das vestimentas, ela busca tentar com um vil uniforme.
Aquele a quem ela no conseguiu abater com as honrarias, ela tenta
empurrar para o orgulho de suportar a desonra. Aquele a quem ela no
conseguiu bajular pela arte das palavras, ela busca seduzir com um silncio
que se faz passar por recolhimento. A quem ela no conseguiu convencer
de se glorificar por um bom regime alimentar, ela atrai com um jejum feito
para ser louvado. Numa palavra, qualquer obra, qualquer ocupao fornece
a este mau demnio uma ocasio para atacar.
[11,14] Ademais, ele sugere tambm ao monge imaginar-se nas altas
patentes clericais.
[11,6] Lembro-me de um ancio, quando eu morava em Sceta. Dirigindo-se
cela de um irmo para visit-lo, ao aproximar-se da porta, ouviu algum
falando no interior. Pensando tratar-se de alguma passagem da Escritura,
ele parou para escutar. Ele ento percebeu que o irmo era presa da
vanglria, que ele imaginava ser dicono e acabava de despachar alguns
catecmenos. Aps ouvir isto, ele bateu porta e entrou. O irmo veio ao
seu encontro, saudou-o segundo o costume e lhe perguntou se ele estava
h muito tempo diante da porta. O ancio lhe respondeu calmamente: Eu
cheguei bem no momento em que voc despachava os catecmenos.
Diante destas palavras, o irmo caiu aos ps do ancio pedindo-lhe que
rezasse por ele, a fim de que fosse libertado da iluso.
[11,17] Lembrei-me deste acontecimento para demonstrar a que ponto de
inconscincia este demnio consegue levar o homem.
[11,19] Aquele que quiser combater perfeio e conquistar a coroa da
justia deve se esforar por todos os meios para vencer esta besta
multiforme, tendo sempre em mente as palavras de Davi: O Senhor
reduzir a p os ossos dos que seduzem os homens[69]. Que ele no faa
nada pelo desejo de ser louvado pelos homens, mas busque seu salrio
apenas diante de Deus e, sempre rejeitando os pensamentos bajuladores
que surgem em seu corao, desdenhe de si mesmo em presena de Deus.
Assim ele poder, com a graa de Deus, ser libertado do esprito da
vanglria.
Do orgulho
8. [12,1] Nosso oitavo combate ser contra o esprito do orgulho. Ele mais
terrvel e mais cruel do que todos os precedentes, atacando sobretudo os
perfeitos e esforando-se por derrubar aqueles que esto quase alcanando
o cume das virtudes.
[12,3] Tal como uma doena infecciosa e fatal que destri no um membro
mas o corpo inteiro, tambm o orgulho no destri uma parte, mas a alma
inteira. Cada um dos outros vcios, mesmo perturbando a alma, atacam
apenas a virtude que lhes oposta tentando venc-la; eles no visam nem
perturbam a alma como um todo. Somente o vcio do orgulho a obscurece
totalmente e a leva runa completa. Para melhor captar o que quero dizer
lembremos que a gula se contrape temperana, a prostituio
castidade, a avareza ao despojamento, a clera mansido, e as demais
espcies de malcias s suas virtudes contrrias. Mas a malcia do orgulho,
quando se apodera da infeliz alma, como o mais feroz dos tiranos que toma
DO
MESMO
LENCIO
ESPIRITUAL
DISCERNIMENTO
CASSIANO
DISCURSO
SOBRE OS
AO
CHEIO
PADRES
HIGOUMENO
DE
BENEFCIO
DE SCETA E O
[1,4] Ento o abade Moiss falou: Muito bem, vocs me indicaram o fim.
Mas o objetivo que devemos ter em vista, sem nos afastarmos da via reta,
para obter o reino dos cus, isto vocs no disseram. Depois que
confessamos nossa ignorncia, o ancio retomou a palavra:
O fim da nossa profisso , realmente, como vocs disseram, o reino de
Deus; mas o objetivo, a pureza do corao, sem a qual impossvel
alcanar este fim. Ento, que nosso intelecto esteja sempre orientado para
este objetivo. Mesmo que acontea s vezes do corao se afastar da via
direita, preciso reconduzi-lo imediatamente, nos orientando para este
objetivo por meio de uma regra.
[1,5] Sabedor disto, o bem-aventurado apstolo Paulo disse: esquecendome do que fica para trs avano para o que est na frente. Lano-me em
direo meta, em vista do prmio do alto, que Deus nos chama a receber
em Jesus Cristo[80]. em vista deste objetivo que devemos, tambm ns,
tudo fazer. em vista deste objetivo que desdenhamos tudo, ptria, famlia,
riquezas e o mundo inteiro, a fim de adquirir a pureza do corao. E, se
esquecermos este objetivo, inevitvel que, caminhando nas trevas e
deixando a via reta, faamos inmeras voltas e desvios.
[1,6] o que aconteceu a muitos que, no comeo de sua renncia,
desprezaram a riqueza, os bens e o mundo inteiro, mas se deixavam tomar
de clera e furor por uma foice, uma agulha, uma pena ou um livro. Eles no
precisariam passar por isso, se se lembrassem do objetivo pelo qual
desprezaram aquelas coisas. de fato por amor ao prximo que
desprezamos a riqueza, para no entrar em querelas a respeito e perdermos
a caridade dando lugar clera. Ento, se por bagatelas manifestamos
irritao contra um irmo, afastamo-nos do objetivo e no tiramos nenhum
benefcio de nossa renncia. por isso que o Apstolo dizia: Mesmo que eu
atire meu corpo ao fogo, se no for pelo amor, isto de nada servir[81].
Aprendemos assim que no se atinge a perfeio de uma s vez pelo
despojamento e pela renncia s coisas, mas pelo crescimento do amor,
cujas caractersticas o Apstolo descreve: O amor, diz ele, no tem inveja,
no se enche de orgulho, no se irrita, no denigre, no faz nada que seja
frvolo, jamais pensa o mal[82]. Tudo isto assegura a pureza do corao.
[1,7] por ela que tudo deve ser feito: desprezar os bens terrestres, sofrer
com facilidade os jejuns, dedicar-se leitura e salmdia. No quer dizer
que a negligenciemos, se, por qualquer necessidade ou por algum assunto
de Deus, sejamos impedidos de fazer o jejum e a leitura habitual. Porque
menos se ganha com o jejum do que se perde com a clera, e o benefcio de
uma leitura no iguala o dano produzido se desprezarmos ou contristarmos
nossos irmos. Com efeito, como eu disse, nem os jejuns, nem as viglias,
nem a meditao das Escrituras, nem o despojamento das riquezas, nem a
renncia ao mundo constituem a perfeio, mas instrumentos da perfeio.
E como a perfeio no se encontra nestas prticas, mas vem por meio
delas, em vo que glorificamos o jejum, a viglia, a pobreza e a leitura das
[2,6] E que dizer destes dois irmos que habitavam para alm do deserto de
Tebaida, l aonde o bem-aventurado Antnio havia residido, e que, levados
pela falta de discernimento, decidiram-se a marchar para o interior do
deserto, imenso e estril, sem receber alimento dos homens, mas
contentando-se apenas com aquilo que o Senhor lhes fornecesse
milagrosamente? Perdidos no deserto e morrendo de fome, eles foram
vistos de longe pelos Maziques. Este povo o mais selvagem e cruel de
todos quantos existem. Mas mudando, pela providncia divina, sua
selvageria e crueldade em benevolncia, eles foram ao encontro dos irmos
com pes. Um deles, inspirado pelo discernimento, recebeu os pes com
alegria e reconhecimento, dizendo para si mesmo que se homens to cruis
e selvagens, que tinham prazer em derramar sangue, foram movidos pela
compaixo diante de seu esgotamento e lhes ministraram alimento, isto s
poderia ser por impulso divina. Mas o outro, recusando o alimento
oferecido por homens e permanecendo provado de discernimento, morreu
de fome. Todos os dois, de incio, haviam tomado uma deciso errnea,
partindo de uma opinio irracional e funesta. Entretanto o primeiro,
lembrando-se do discernimento, fez bem em renunciar ao seu propsito
temerrio e imprudente. O segundo, ao contrrio, obstinado em sua tola
presuno e em sua falta de discernimento, entregou-se morte da qual
Deus tentara desvi-lo.
[2,7] Que dizer ainda deste outro, que no nomearei porque vive ainda? Ele
acolheu por inmeras vezes o demnio como se fosse um anjo, recebendo
dele revelaes e vendo brilhar continuamente em sua cela a luz de uma
lmpada. Finalmente, ele recebeu do anjo a ordem de imolar a Deus em
sacrifcio seu filho que habitava com ele no mesmo mosteiro, para
compartilhar do mrito de Abrao. Esta sugesto o iludiu de tal maneira que
ele teria matado o prprio filho se este, vendo-o afiar seu cutelo de forma
inusitada e preparar as cordas com as quais iria amarr-lo como vtima, no
tivesse assegurado sua salvao pela fuga.
[2,8] Para terminar contarei ainda a iluso daquele monge da Mesopotmia
que praticava uma extrema temperana, recluso por anos a fio em sua cela,
e que, finalmente, enganado por revelaes e sonhos diablicos que depois
de anos de trabalho e virtudes que o haviam elevado acima de todos os
monges da regio, converteu-se ao judasmo e se fez circuncidar. Para
engan-lo, o diabo lhe mostrou em diversas ocasies verdadeiras vises, a
fim de torn-lo mais disposto a crer nas falsidades que ele lhe iria
apresentar. Ele lhe mostrou ento, numa noite, de um lado o povo cristo
com os apstolos e os mrtires como tenebrosos e cheios de vergonha,
mergulhados na tristeza e no luto; e de outro lado o povo judeu, com Moiss
e os profetas, irradiando uma luz deslumbrante e vivendo na alegria e na
felicidade. O sedutor lhe props, caso quisesse partilhar da alegria e da
beatitude do povo judeu, que se fizesse circuncidar. E assim iludido, o
monge se dez circuncidar. evidente que, de todos estes monges, nenhum
teria sucumbido to triste e miseravelmente iluso, se possussem o
carisma do discernimento.
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Mateus V, 28.
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[13]
Salmo C, 8.
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[15]
[16]
Esta citao no se encontra tal e qual nas obras de so
Baslio. Encontramos algo prximo (Eu escapei ao ato da fornicao, mas
manchei minha virgindade nos pensamentos de meu corao)
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[21]
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[23]
Colossenses III, 5.
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[27]
Deuteronmio XX, 8.
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[29]
[30]
[31]
2 Timteo IV, 7.
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[37]
Esta sentena, com a passagem das Instituies que
contm, apresentada nasSentenas dos Padres do deserto, Cassiano 7.
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[40]
[41]
[42]
Salmo VI, 8.
[43]
Eclesiastes VII, 9.
[44]
Tiago I, 20.
[45]
[46]
[47]
[48]
[49]
Salmo IV, 5.
[50]
Salmo IV, 5.
[51]
[52]
Malaquias IV, 2.
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[54]
[55]
[56]
[57]
[58]
[59]
[60]
[61]
Mateus V, 22.
[62]
J V, 23.
[63]
[64]
[65]
[66]
Glatas V, 22-23.
[67]
[68]
[69]
Salmo LII, 5.
[70]
[71]
Salmo LI, 3.
[72]
[73]
[74]
Joo XV, 5.
[75]
Salmo CXXVI, 1.
[76]
[77]
Tiago I, 17.
[78]
1 Corntios IV, 7.
[79]
[80]
[81]
1 Corntios XIII, 3.
[82]
[83]
J, XXXVI, 27.
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[87]
[88]
[89]
[90]
[91]
Provrbios XXXI, 3.
[92]
[93]
[94]
Hebreus V, 14.
[95]
[96]
[97]
[98]
Isaas l, 4.
[99]
[100]
Cf. 1 Samuel, 3.
[101]
Atos IX, 6.
[102]
Glatas II, 2.
[103]
Deuteronmio XXXII, 7.