Althusser. Aparelhos Ideológicos de Estado (1970)

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UM MAPA
DA IDEOLOGIA
Theodor Adorno Peter Dews Seyla Benhabib
Jacques Lacan . Louis Althusser Michel Pecheux
Nicholas Abercrombie Stephen Hill
Bryan S. Turner Goran Therborn Terry Eagleton
Richard Rorty Michele Barret Pierre Bourdieu
Fredric Jameson Slavoj Zitek
Organiza<;ao

Slavoj Zitek

Tradw;:ao

Vera Ribeiro
Revisao de tradw;:ao
Cesar Benjamin

1a reimpressao

(OnTRAPonTO

Titulo original: Mapping Ideology


Verso 1994
da tradw;:ao, Vera Ribeiro 1996

Direitos adquiridos para a Hngua portuguesa por


CONTRAPONTO EDITORA LTDA.

Caixa Postal 56066 - CEP 22292-970


Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Tel./ fax (021) 275-0751
Vedada, nos termos da lei, a reprodw;ao total
ou parcial deste livro sem autoriza~ao da editora.

Projeto grafico

Regina Ferraz
Revisao tipogdfica

Tereza da Rocha

la edi~ao, junho de 1996


Tiragem: 2.000 exemplares

I" reimpressao, mar.;:o de 1999


Tiragem: 1.000 exemplares

Urn mapa da ideologia / Theodor W. Adorno ... let. al.I j organizayao Slavoj Zitek;
tradu~ao Vera Ribeiro. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
337 p.
Tradu~ao

de: Mapping Ideology


Inclui bibliografia.
Conteudo: Zitek, Slavoj. 0 espectro da ideologia. - Adorno, Theodor W. Mensagens numa garrafa. - Dews, Peter. Adorno, p6s-estruturalismo e a crHica da identidade. - Benhabib, Seyla. A critica da razao instrumental. - Lacan, Jacques. 0 est<idio do espelho como formador da funyao do Eu. - Althusser, Louis. Ideologia
e Aparelhos Ideol6gicos de Estado (Notas para uma investiga.;:ao). - Pkheux,
Michel. 0 mecanismo do (des)conhecimento ideologico. - Abercrombie, Nicholas,
Hill, Stephen e Turner, Bryan S. Determinismo e indeterminismo na teoria da ideologia. - Therborn, Goran. As novas questoes da subjetividade. - Eagleton, Terry.
A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. - Rorty, Richard. Feminismo, ideologia e desconstru.;:ao: uma visao pragmatica. - Barrett, Michele. Ideologia, politica e hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. - Bourdieu, Pierre e
Eagleton, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. - Jameson, Fredric.
o p6s-modernismo e 0 mercado. - Zitek, Slavoj. Como Marx. inventou 0 sintoma?
ISBN 85-85910-12-7
1. Filosofia. 2. Sociologia.1. Adorno, Theodor W., 1903-1969. II. Ziiek, Slavoj,

1949CDD-IOO

IDEOLOGIA E
APARELHOS IDEOLOGICOS DE ESTADO
(NOTAS PARA UMA INVESTIGA<;:AO)

Louis Althusser

SOBRE A REPRODU<;AO DAS CONDI<;OES DE PRODU<;AO'

Como disse Marx, qualquer crian(j:a sabe que uma forma<;ao social que naa reproduzisse Silas condi<;6es de prodw;ao ao mesma tempo que as produzisse naa
duraria urn ano. 2 A condic;ao suprema da produc;ao, portanto, a reproduc;ao

das condi,aes de produ,ao. Esta pode ser "simples" (quando reproduz exatamente as condi<;oes de produc;:ao anteriores) au "ampliada" (quando as aumenta), Por ora, vamos ignorar a ultima distinc;ao.
Que vern a ser a reprodu,iiO das condi,oes de produ,iio?
Entramos aqui num campo ao meSillO tempo muito familiar (desde 0 volume II de 0 capitaf) e singularmente desconhecido. As evidencias tenazes (eviden-

cias ideol6gicas de tipo empirico) oriundas do ponto de vista da simples produ<faD, au mesmo as da mera pratica produtiva (ela pr6pria abstrata em relac;ao aD
processo de prodw;:ao), esUio tilo integradas em nossa "consciencia" cotidiana
que e extremamente dificil, para nao dizer quase impossivel, elevarmo-nos ao
ponto de vista da reprodurao. No entanto, fora desse ponto de vista tudo perma-

nece abstrato (mais que parcial: distorcido) a fortiori, no da simples pratica.

mesmo no nivel da produ,ao e,

Tentemos examinar a questao rnetodicamente.


Para sirnplificar nossa exposi<;:ao, e presumindo que toda forrna<;:ao social sur-

ja de urn modo de

produ~ao

dominante, podemos dizer que 0 processo de pro-

du<;:ao poe em movirnento as for<;:as produtivas existentes em e sob a vigen cia de

rela,Des de produ,ao definidas.


Dai decorre que, para existir, toda forma<;:ao social, ao mesmo tempo que
produz, e para poder produzir, tern que reproduzir as condi<;:5es de sua produ<;:ao. Portanto, tern que reproduzir:
1. as for<;:as produtivas;

2. as rela,aes de produ,ao existentes.


105

UM MAPA DA IDEOLOGIA

106

A reprodufilo dos meios de produfilo

III

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1,1

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Atualmente, tadas (inclusive as economistas burgueses que trabalham com a


contabilidade nacional, au os modernos "te6ricos macroeconomicos") reconhecern, porque Marx 0 demonstrou convincentemente no volume II de 0 capital,
que a produ<j:ao 56 se torna passivel se for assegurada a reprodu<;:ao das condi<;:oes
materiais de produ~ao: a reprodu~ao dos meios de produ~ao.
o economista primario, que nisso nao difere do capitalista prima rio, sabe
que, a cada anD, e essencial preyer como repOT 0 que foi usado au gasto na produc;ao: materias-primas, instalaC;6es fixas (predios), instrumentos de produyao
(maquinas) etc. Digo 0 economista primario = capitalista primario porque ambos expressam 0 ponto de vista da empresa, contentando-se em raciocinar, simplesmente, nos termos da pratica de contabilidade financeira da empresa.
Entretanto, grat;as ao talento de Quesnay, que foi 0 primeiro a formular esse
problema gritante", e a genialidade de Marx, que 0 resolveu, sabemos que a reprodu~ao das condi~6es materiais de produ~ao nao pode ser pensada no nlvel da
empresa, porque nao e ai que ela existe nas condit;6es reais. 0 que acontece no
nivel da empresa e urn efeito, que da apenas uma ideia da necessidade da reprodut;ao, mas nao perrnite de modo algum que suas condit;6es e mecanismos sejam
pensados.
Basta urn momento de reflexao para nos convencermos disto: 0 sr. X, urn capitalista que produz fios de la em sua fiat;ao, tern que reproduzir" sua rnateriaprima, suas maquinas etc. Mas ele nao as produz para sua pr6pria produt;ao outros capitalistas 0 fazem: urn grande criador de carneiros australiano, 0 sr. Y,
urn dono de uma metalurgica que produz maquinas-ferramenta, 0 sr. Z, etc.
E, para fabricar os produtos que sao a condi~ao de reprodu~ao das condi~6es de
pradut;ao do sr. x, 0 sr. Yea sr. Z tambem tern que reproduzir as candit;6es de
sua pr6pria produt;aa, e assim indefinidamente - tudo isso em proport;6es tais
que, no mercado nacional e at~ no mundial, a demanda de meios de produt;ao
(para reprodu~ao) possa ser atendida pela oferta.
Para refletir sobre esse mecanismo, que leva a uma especie de "cadeia interminavel", e preciso seguir 0 proceder global" de Marx e estudar, em especial nos
volumes II e III de 0 capital, as rela~6es entre a circula~ao do capital pelo Departamento I (produ~ao de bens de produ~ao) e 0 Departamento II (produ~ao de
bens de consumo) e a realizat;ao da mais-valia.
Nao entraremos na analise dessa questao. Basta haver mencionado a necessidade de reproduzir as condi~6es materiais de produ~ao.
Reprodu,ilo do forfa de trabalho

Entretanto, leit~r naa tera deixado de observar uma coisa. Discutimos a reprodu~ao dos meios de produ~ao - mas nao a reprodu~ao das for~as produtivas.

IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

107

Portanto, nao fizemos referencia a reprodu~ao daquilo que distingue as fOfl;as


produtivas e os meios de produc;ao, isto e, a reproduc;ao da fonya de trabalho.
A observac;ao do que acontece na empresa, em especial a partir do exame da
pratica de contabilidade financeira que preve a amortizac;ao e 0 investimento,
podia nos dar uma ideia aproximada da existencia do processo material de reproduc;ao. Agora, no entanto, entramos num dominio em que a observac;ao do
que acontece na empresa e, senao totalmente, ao menos quase inteiramente cega,
e por uma boa razao: a reproduc;ao da forc;a de trabalho ocorre essencialmente
fora da empresa.
Como se assegura a reprodw;ao da fon;a de trabalho?
Ela e assegurada em se fornecendo it for~a de trabalho os meios materiais para
sua reproduc;ao: atraves dos salarios. Os salarios aparecem na contabilidade de
cada empresa, mas como "capital aplicado em mao-de-obra'',3 e nao como uma
condi~ao da reprodu~ao material da for~a de trabalho.
Entretanto, e exatamente assim que ele "funciona", pais os salarios representam apenas a parcela do valor produzido pelo dispendio da for~a de trabalho,
indispensavel a sua reproduc;ao: au seja, indispensavel a recomposi~ao da forc;a
de trabalho do assalariado (os meios para pagar a moradia, a alimentac;ao e 0
vestuario, em suma, para permitir que 0 assalariado torne a se apresentar no portao da fabrica no dia seguinte - e em todos os outros dias que deus Ihe conceder)j convem acrescentar: indispensavel para criar e educar os filhos em quem 0
proletario se reproduz (em x exemplares em que x = 0, 1,2 etc) como for~a de
trabalho.
Lembremos de que essa quantidade de valor (0 salario) necessaria a reprodu~ao da for~a de trabalho nao e determinada apenas pelas necessidades de urn
"bioI6gico" sahirio minimo garantido [Salaire Minimum Interprofessionnel Garanti], mas pelas necessidades de urn minimo hist6rico (Marx observou que os
trabalhadores ingleses precisam de cerveja, enquanto as proletarios franceses
precisam de vinho) - isto e, historicamente variavel.
Assinalemos que esse minimo e duplamente hist6rico, por ser definido nao s6
pelas necessidades hist6ricas da classe trabalhadora, "reconhecidas" pela classe
capitalista, mas pelas necessidades hist6ricas impostas pela luta proletaria de classes (uma dupla luta de classes: contra 0 aumento da jomada de trabalho e contra
a redu~ao dos sahirios).
Mas, para que a for~a de trabalho se reproduza enquanto tal, nao basta assegurar as condic;6es materiais de sua reproduc;ao. Afirmamos que a mao-de-obra
disponivel deve ser "competente", isto e, apta a ser posta para trabalhar no COffiplexo processo de produ~ao. 0 desenvolvimento das for~as produtivas e 0 tipo
de unidade historicamente constitutiva das forc;as produtivas, num dado momento, geram 0 resultado de que a for~a de trabalho tern que ser (variadamente)
qualificada e, portanto, reproduzida como tal. Dito de outra forma: de acordo

108

UM MAPA DA IDEOLOGIA

com os requisitos da divisao tecnica e social do trabalho, com seus diferentes


"cargos" e "postas".
Como se assegura a reprodu~ao da qualifica~ao (diversificada) da for~a de
trabalho num regime capitalista? Neste, ao contrario das forma'Yoes sociais caracterizadas pela escravida.o au pela servidao, a reprodu<;:ao da qualifica<;:3o da
for~a de trabalho tende (trata-se de uma lei tendencial) cada vez menos a ser
fornecida in loco (0 aprendizado dentro da pr6pria produ~ao), sendo mais e
mais obtida fora dela: atraves do sistema educacional capitalista e de outras instancias e institui<;:oes.
Que se aprende na escola? Pode-se if mais au menos lange nos estudos, mas,
seja como fOf, aprende-se a lef, escrever e (ontar - ista f, algumas tecnicas
e tambem algumas outras (oisas, inclusive elementos de cultura cientifica" au
<'literaria" (que podem seT rudimentares OU, ao contrario, esrnerados), que tern
uma utilidade direta nos diferentes cargos da produyao (uma instrw;:ao para os
trabalhadores rnanuais, uma para os tecnicos, uma terceira para os engenheiros,
uma para a alta administrac;ao etc). E assim que se aprende 0 savoir-faire.
Mas, alern dessas tecnicas e conhecimentos, a escola tambem ensina as "normas" do born comportamento, ou seja, a atitude a ser observada por cada agente
na divisao do trabalho, con forme 0 emprego para 0 qual ele esteja "destinado":
regras de moral. consciencia civica e pro fissional, que na verdade equivalem a
normas de respeito pela divisao tecnica e social do trabalho, e, em ultima instancia, a normas da ordem estabelecida pela dominacrao de classe. Aprende-se tambern a "falar urn frances apropriado", a "redigir" direito, isto f, na verdade (para
os futuros capitalistas e seus servidores), a "comandar" de forma adequada, ou
seja, (idealrnente) a "dirigir-se aos trabalhadores" da maneira correta etc.
Para colocar isso em termos mais cientificos, eu diria que a reproduc;ao da
forc;a de trabalho requer nao apenas uma reproduc;ao de sua qualificac;ao, mas
tambem, ao mesmo tempo, uma reproduc;ao de sua submissao as regras da ordem estabelecida, isto e, uma reproducrao de sua submissao a ideologia vigente,
para os trabalhadores, e uma reproduc;ao da capacidade de manipular corretamente a ideologia dominante, para os agentes da explorac;ao e da repressao, a fim
de que tambem eles assegurem "com palavras" a dominac;ao da classe dominante.
Em outros termos, a escola (alem de outras instituiC;6es de Estado, como a
Igreja, ou outros aparelhos, como 0 Exercito) ensina a C<habilidade", mas sob formas que assegurem a sujeirao aideologia dominante ou 0 dominic de sua "pratica". Todos os agentes da prodw;ao, da explorac;ao e da repressao, para nao falar
dos "profissionais da ideologia" (Marx), devem, de urn modo Oll de outro, estar
"impregnados" dessa ideologia, a fim de cumprir "conscienciosamente" suas
tarefas - as tarefas dos explorados (os proletarios), dos exploradores (os capitalistas), dos auxiliares da explora~ao (os administradores) ou dos sacerdotes da
ideologia dominante (seus "funcionarios") etc.


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOLOGICOS DE EST ADO

109

Assim, a reprodus:ao da fors:a de trabalho revela, como sua condh;ao sine qua
naD apenas a reprodu<;:ao de sua "qualificas:ao, mas tambem a reprodus:ao

non,

de sua submissao a ideologia dominante au da "pratica" dessa ideologia, com a


ressalva de que nao basta dizer "nao apenas, mas tambem". pais esta claro que

enas formas e sob as formas da sujei,iio ideolOgica que se assegura a reprodu,iio da


qualifica,iio da for,a de trabalho.
Mas isso equivale a reconhecer a presenc;:a efetiva de uma nova realidade: a

ideologia.
Neste ponto, faremos dais comentarios.

o primeiro serve para rematar nossa analise da reprodu<;=3o.


Acabamos de estudar rapidamente as formas da reprodu~ao das for~as produtivas, isto e, dos meios de produ~ao, de urn lado, e da for~a de trabalho, de
outro.

Mas ainda nao abordamos a quesUio da reprodu,iio das reiafoes de produ,iio.


Ora, essa e uma questao crucial para a teoria marxista do modo de produc;:ao.
Deixa-la de lado seria uma omissao te6rica - pior, urn grave erro politico.
Portanto, vamos discuti-la. Mas, para obter os meios para discuti-la, teremos

que fazer outra longa digressao.

o segundo comentario e que, para fazer essa digressao, somos obrigados a


levantar outra vez nossa velha questao: que e uma soeiedade?
INFRA-ESTRUTURA E SUPERESTRUTURA

Em outra ocasiao,4 insistimos no caniter revolueiomirio da concep'rao marxista


do "todo social", no que ela se distingue da "totalidade" hegeliana. Afirmamos
(e essa tese s6 repetia proposic;oes famosas do materialismo hist6rico) que Marx
concebeu a estrutura de cada sociedade como sendo constituida por niveis", au
instancias", articulados por uma determinac;ao especifica: a infra-estrutura ou

base economiea (a "unidade" das for~as produtivas e das rela~6es de produ~ao)


e a superestrutura, que por sua vez contt~m dois niveis", ou instancias": a juridieo-politica (0 direito e 0 Estado) e a ideologica (as diferentes ideologias, religiosa, etica, legal, politica etc).
Alem de seu interesse te6rico-didatico (que revela a diferen'ra entre Marx e
Hegel), essa representa'rao oferece a seguinte vantagem te6rica crucial: ela possibilita inscrever no aparelho te6rico de seus conceitos essenciais 0 que chamamos
de indice de eficacia respectiva desses conceitos. Que significa isso?
E faeil ver que essa representac;ao da estrutura de toda sociedade, como urn
edificio que contem uma base (infra-estrutura) sobre a qual se erigem os do is
andares" da superestrutura, constitui uma metafora, ou, para ser exato, uma

metafora espacial: a metafora de uma topica [topiqueJ.' Como qualquer metafo


ra, esta sugere alga, torna algo visivel. 0 que? Preeisamente isto: que os andares

llO

UM MAPA DA IDEOLOGIA

superiores mI0 poderiam "sustentar-se" sozinhos (no ar), se nao se assentassem


sabre sua base.
Portanto, 0 objetivo da metafora do edificio f, antes de tudo, representar a
"determinac;ao em ultima instancia" pela base economica. a efeito dessa metafofa espacial e dotar a base de urn indice de eficacia conhecido pelos famosos termas: a determinac;ao em ultima instancia do que acontece nos "andares" superiores (da superestrutura) pelo que acontece na base economica.
Dado esse indice de eficacia "em ultima instancia", os "andares" da superestrutura sao daramente dotados de diferentes indices de efiokia. Que tipo de
indices?
Pode-se dizer que os andares da superestrutura nao sao determinantes em ultima instancia, mas sao determinados pela eficicia da base; que, se sao determinantes ii sua propria maneira (ainda indefinida), isso so e valido na medida em
que eles sao determinados pela base.
Seu indice de eficacia (ou de determina~ao), tal como determinado pela determinacrao em ultima instancia da base, e pensado de duas maneiras na tradic;ao
marxista: (1) ha uma "autonomia relativa da superestrutura em relac;ao a base;
(2) ha uma "ac;ao reciproca" da superestrutura sobre a base.
Assim, podemos afirmar que a grande vantagem te6rica da topica marxista,
isto e, da metafora espacial do edificio (base e superestrutura), e, simultaneamente, que ela revela que as questoes da determinac;ao (ou do indice de eficacia)
sao cruciais; revela que e a base que determina, em ultima instancia, todo 0 edificio; e que, por conseguinte, nos obriga a formular 0 problema teo rico do tipo de
eficacia "derivada, peculiar a superestrutura, ou seja, obriga-nos a pensar no
que a tradiC;ao marxista chama, conjuntamente, de autonomia relativa da superestrutura e de aC;ao reciproca da superestrutura sobre a base.
o maior inconveniente dessa representac;ao da estrutura de toda sociedade
at raves da metafora espacial do edificio e, obviamente, 0 fato de ela ser metaforica, isto e, de permanecer descritiva.
Agora nos parece possivel e desejavel representar as coisas de outra maneira.
Note-se bern: nao rejeitamos de forma alguma a metafora classica, pois essa propria metafora exige que a ultrapassemos. E nao a ultrapassamos para rejeita-la
como ultrapassada. Queremos apenas tentar pensar aquilo que ela nos da sob a
forma de uma descricrao.
A partir da reprodur;ao, acreditamos, e possivel e necessario pensar aquilo que
caracteriza 0 essencial da existencia e da natureza da superestrutura. Adotando-se
o ponto de vista da reproduc;ao, esdarecem-se imediatamente muitas das questoes que a metafora espacial do edifjcio havia mostrado existir, mas as quais ela
nao podia dar uma res posta conceitual.
Nossa tese fundamental eque nao epossivel formular essas perguntas (e, portanto, responde-las), a nao ser do ponto de vista da reprodurao.

I
I

rDEQLOGIA E APARELHOS IDEQL6GICOS DE ESTADQ

111

Paremas uma breve analise do Direito, do Estado e da Ideologia sob esse ponto
de vista. E revelaremos 0 que acontece do ponto de vista da pratica e da produyao, por urn lado, e do da reproduo, por Dutro.

ESTADO

A tradis:ao marxista e clara: no Manifesto Comunista e em 0 Dezoito Brumario


(bern como em tadas as textos classicos posteriores, sobretudo nos escritos de
Marx sobre a Com una de Paris e nos de Lenin em 0 Estado e a revolurao), 0
Estado eexplicitamente concebido como urn aparelho repressor. 0 Estado e uma
maquina" de repressao que permite as classes dominantes (no seculo XIX, a
classe burguesa e a "classe" dos grandes latifundiarios) assegurarem sua domina<rao sabre a classe trabalhadora, submetendo estas ultimas ao processo de extorsao da mais-valia (isto e, it explora<;ao capitalista).
o Estado, portanto, e antes de tudo 0 que os cIassicos marxistas chamaram de
Aparelho de Estado. Esse termo significa: nao apenas 0 aparelho especializado (no
sentido estrito) cuja existencia e necessidade reconhecemos pelas exigencias da
pnitica juridica, isto e, a policia, os tribunais e os presidios, mas tambem 0 exercito, que intervem diretamente (0 proletariado pagou com seu sangue essa experiencia) como fors:a repressora suplementar em ultima instancia, quando a pol1cia e seus corpos auxiliares especializados sao "superados pelos acontecimentos";
e, acima desse conjunto, 0 chefe de Estado, 0 governo e a administras:ao.
Apresentada dessa maneira, a "teoria" marxista-leninista do Estado toca no
ponto essencial, e nem por urn momento se pode pensar em rejeitar 0 fato de
que esse e realmente 0 ponto essencial. 0 Aparelho de Estado, que define 0 Estado como fors:a de execus:ao e intervenc;ao repressoras, "a servi<;:o das classes
dominantes", na luta de classes conduzida pela burguesia e seus aliados contra
o proletariado, e com certeza 0 Estado, e isso certamente define sua "fun<;:ao"
fundamental.

ateoria como tal


No entanto, tambem aqui, como assinalei com respeito a metafora do edificio
Da teoria descritiva

(infra-estrutura e superestrutura), essa representac;ao da natureza do Estado ainda e parcialmente descritiva.


Como teremos a oportunidade de usar esse adjetivo (deseritivo) diversas
vezes, faz-se necessaria uma palavra de explicac;ao para eliminar qualquer ambigiiidade.
Quando, ao falarmos da metafora do edificio ou da "teo ria" marxista do Estado, afirmamos que essas sao eoneepc;oes ou representac;oes descritivas de seus
objetos, nao tivemos maiores motiva<;:6es eritieas. Ao eontrario, temos todas as
razoes para erer que as gran des descobertas cientifieas passam inevitavelmente

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112

UM MAPA DA IDEOLOGIA

por uma fase que chamaremos de "teoria" descritiva. Essa e a primeira fase de
qualquer teoria, ao menos no dominic de que tratamos (0 da ciencia das forma'foes sociais), Como tal, podemos - e, em minha opiniao, devemos - encarar
essa fase como senda transit6ria, necessaria ao desenvolvimento da teoria. a fato
de ela ser transit6ria esta inscrito em minha expressao "teoria descritiva", que
revela, em sua conjunc;ao dos termos, 0 equivalente a uma especie de "contradic;ao". De fato, 0 termo teoria "choca-se", em certa medida, com 0 adjetivo "descritiva" que lhe foi anexado. Isso quer dizer, muito precisamente: (1) que a u teoria descritiva" realmente e, sem sombra de duvida, 0 comec;o irreversivel da
teoria; mas (2) que a forma C<descritiva" em que a teoria e apresentada requer,
justamente como efeito dessa C<contradi<;ao", urn desenvolvimento da teoria que
ultrapasse a forma da "descri,ao".
Deixemos essa ideia mais clara, retornando a nosso objeto presente: 0 Estado.
Quando dizemos que a "teo ria" marxista do Estado, de que dispomos, ainda e
parcial mente "descritiva", isso significa, antes de mais nada, que essa "teoria"
descritiva e justamente, sem sombra de duvida, 0 come<;o da teo ria marxista do
Estado, e que esse come<;o nos da 0 ponto essencial, isto e, 0 principio decisivo de
qualquer desenvolvimento posterior da teoria.
Com efeito, diremos que a teo ria descritiva do Estado e correta, ja que e perfeitamente possivel fazer com que a vasta maioria dos fatos observaveis no dominio a que ela concerne corresponda it defini,ao que ela fornece de seu objeto.
Assim, a defini,ao do Estado como urn Estado de classe, que existe no Aparelho
Repressivo de Estado, esclarece brilhantemente todos os fatos observaveis nas varias ordens de repressao, quaisquer que sejam seus dominios: desde os massacres
de junho de 1848 eda Comunade Paris, do Domingo Sangrento de maio de 1905
em Petrogrado, da Resistencia, da Charonne etc, ate as simples (e relativamente
anodinas) interven<;6es de uma "censura" que proibiu A religiosa, de Diderot, ou
uma pe,a de Gatti sobre Franco; ela lan,a luz sobre todas as formas diretas e
indiretas de explora<;ao e exterminio das massas populares (guerras imperialistas); lan,a luz sobre a sutil domina,ao cotidiana sob a qual se pode vislumbrar,
nas formas de democracia politica, por exemplo, 0 que Lenin, seguindo Marx,
chamou de ditadura da burguesia.
Mas a teoria descritiva do Estado representa uma fase na constitui<;ao da teoria, a qual exige a "supera<;ao" dessa fase. Pois esta claro que, se a defini<;ao em
questao realmente nos fornece meios para identificar e reconhecer os dados da
opressao, relacionando-os com 0 Estado concebido como Aparelho Repressivo
de Estado, essa "inter-rela<;ao" da margem a urn tipo muito especial de evidencia,
sobre 0 qual teremos algo a dizer dentro em pouco: "E, e isso mesmo, isso e realmente verdade!" E a acumula,ao de fatos a respeito da defini,ao de Estado pode
multiplicar os exemplos, mas nao faz realmente progredir a definic;ao do Estado,
isto e, a teoria cientifica do Estado. Toda teoria descritiva, par conseguinte, carre

InEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE ESTADQ

113

o risco de "bloquear" 0 desenvolvimento da teoria, embora esse desenvolvimento seja essencial.


Por isso, para desenvolver essa teoria descritiva numa teoria como tal, ou seja, para compreender melhar as mecanismos do Estado em seu funcionamento,
cremos ser indispensavel acrescentar alguma coisa achissica defini(j:ao do Estado

como Aparelho de Estado.

Os fundamentas da teo ria marxista do Estada


Esclares:amos primeiramente urn ponto importante:

Estado (e sua existencia

em seu aparelho) nao tern sentido a nao ser em fun,ao do pader estatal. Toda a
luta politica de classes gira em torna do Estado. Entendanlos: em torno da posse,
ista e, da tomada e preservac;:ao do poder estatal por uma certa dasse, ou por uma
alian<;:a entre classes au frac;:oes de classes. Esse primeiro esclarecimento nos obriga, portanto, a distinguir entre 0 poder estatal (conserva<;ao do poder estatal ou

tomada do poder estatal), 0 objetivo da luta politica de classes, de urn lado, e 0


Aparelho de Estado, de outro.
Sabemos que 0 Aparelho de Estado pode sob reviver - como ficou provado
pelas "revolu,oes" burguesas na Fran,a do seculo XIX (1830, 1848), pelos golpes
de Estado (2 de dezembro, maio de 1958), pelos colapsos do Estado (a queda do
Imperio em 1870, da Terceira Republica em 1940), ou pela ascensao politica da
pequena burguesia (1890-95 na Fran,a) etc - ele po de sobreviver a acontedmentos politicos que afetam a posse do poder estatal.
Mesmo depois de uma revolu,ao social como a de 1917, grande parte do Aparelho de Estado sobreviveu ap6s a tomada do poder estatal pela a!ian,a do proletariado com 0 campesinato pobre: Lenin reiterou esse fato repetidamente.

Pode-se dizer que a distin,ao entre poder estatal e Aparelho de Estado faz
parte da "teo ria marxista" do Estado, sendo explicita desde 0 Dezoito Brumdrio e
As iutas de classes na Franra. de Marx.
Para resumir a "teoria marxista do Estado" neste ponto, podemos dizer que os

chissicos marxistas sempre afirmaram: (1) 0 Estado e 0 Aparelho Repressivo de


Estado, (2) 0 poder estatal e 0 Aparelho de Estado devem ser distinguidos, (3) 0
objetivo da luta de classes concerne ao poder estatal e, por conseguinte, ao uso do

Aparelho de Estado pelas classes (ou alian,a de classes ou de fra,oes de classes) que
detem 0 poder estatal em fun,ao de seus objetivos de classe, e (4) 0 proletariado
deve tomar 0 poder estatal para destruir 0 Aparelho de Estado burgues existente e,
numa primeira fase, substitui-Io por urn Aparelho de Estado proletario e muito
diferente, e depois, em fases posteriores, acionar urn processo radical: 0 da destrui-

,ao do Estado

fim do poder estatal, 0 fim de todos os Aparelhos de Estado).


Nessa perspectiva, portanto, 0 que n6s poderiamos prop or para acrescentar a
"teo ria marxista" do Estado ja esta literalmente presente. Mas parece-me que,
mesmo completada dessa forma, a teo ria ainda e parcial mente descritiva, embo-

In. >

(0

114

UM MAPA DA IDEOLOGIA

fa contenha agora elementos complexos e diferenciais, cujo funcionamento e


a'r3o flaG podem ser compreendidos sem recurso a urn desenvolvimento te6rico
suplementar.
Os Aparelhos Ideol6gicos de Estado

Logo, 0 que tern que ser acrescentado a"teoria marxista" do Estado eDutra coisa.
Aqui, devemos avan'rar com cautela por urn terreno em que, na verda de,
as chissicos marxistas entraram muito antes de n6s, mas sem sistematizarem sob
forma te6rica os avanyos decisivos contidos em suas experiencias e metodos.
A rigor, suas experiencias e metodos permaneceram, grosso modo, no campo
da pnitica politica.
Com efeito, em sua pnitica politica, os chissicos marxistas trataram 0 Estado
como uma realidade mais complexa do que a defini.-;ao dele fornecida na "teoria
marxista do Estado", mesmo depois de ela ser suplementada como acahei de sugerir. Eles reconheceram essa complexidade em sua pnitica, mas nao a expressaram numa teoria correspondente. 6
Gostariamos de tentar fazer urn esbo.-;o muito esquematico dessa teoria correspondente. Por isso, propomos a seguinte tese.
Para fazer progredir a teoria do Estado, e indispensavel levar em conta nao
apenas a distin~ao entre poder estatal e Aparelho de Estado, mas tambem uma
outra realidade que est. claramente ao lado do Aparelho (Repressivo) de Estado,
mas nao se confunde com ele. Designarei essa realidade par seu conceito: os Aparelhos Ideo16gicos de Estado.
Que sao os Aparelhos Ideol6gicos de Estado (AlEs)?
Eles nao se confundem com 0 Aparelho (Repressivo) de Estado. Convem
lembrar que, na teoria marxista, 0 Aparelho de Estado (AE) contem 0 governo,

os ministerios, 0 exercito, a policia, os tribuna is, os presidios etc, que constituem


o que doravante denominaremos de Aparelho Repressivo de Estado. 0 "repressivo" sugere que 0 Aparelho de Estado em questao "funciona pela violencia" pelo menos no limite (pois a repressao, por exemplo a repressao administrativa,
pode assumir formas nao fisicas).
Daremos 0 nome de Aparelhos Ideol6gicos de Estado a urn certo numero de
realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituiyoes
distintas e especializadas. Delas propomos uma listagem empirica, que ohviamente tent que ser examinada em detalhe, verificada, corrigida e reorganizada.
Com todas as restri.-;oes envolvidas ~essa exigencia, podemos, de momento, considerar as seguintes institui.-;oes como Aparelhos Ideol6gicos de Estado (a ordem
em que as listamos nao tern nenhuma importancia particular):
o AlE religioso (0 sistema das diferentes Igrejas);
o AlE escolar (0 sistema das diferentes "escolas", publicas e particulares);

IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

115

a AlE familiar;7
a AlE juridico;8
o AlE politico (0 sistema politico, induindo os diferentes partidos);
a AlE sindical;
a AlE da informac;ao (imprensa, radio e televisao etc);

o AlE cultural (literatura, arIes, esporles elc).


Afirmei que os AlEs nao devem ser confundidos com 0 Aparelho (Repressivo) de
Estado. Em que consiste a diferen,a?
Num primeiro momenta, esta claro que, enquanto

ha urn Aparelho (Repres-

sivo) de ESlado, ha uma pluralidadede Aparelhos Ideologicos de Estado. A unidade que constilui essa pluralidade de AlEs como urn corpo - mesmo supondo
que ela exista - nao e imediatamente visivel.
Num segundo momenta, podemos constatar que, enquanto 0 Aparelho (Repressivo) - unificado - de Estado pertence inteiramente ao dominio publico, a

grande maioria dos Aparelhos Ideologicos de Estado (em sua aparente dispersao) pertence, ao conttario, ao dominio privado. Igrejas, partidos, sindicatos,
familias, algumas escolas, a maio ria dos jornais, as empreendimentos culturais
etc sao particulares.
Deixemos de lado, por urn momenta, nossa primeira observaC;ao. Concentremo-nos na segunda, perguntando com que direito podemos considerar como
Aparelhos Ideologicos de Estado instituiC;6es que, em sua maioria, nao possuem
urn estatuto publico e sao, pura e simplesmente, instituic;6es privadas. Como
marxista consciente, Gramsci ja previu essa objec;ao. A distinc;ao entre 0 publico
e a privado e uma distinc;ao interna ao direito burgues~ e valida nos dominios

(suballernos) em que 0 direito burgues exerce sua "autoridade". 0 dominio do


Estado Ihe escapa, por estar "alem do Direito": 0 Estado, que e 0 ESlado da dasse
dominante, na~ e publico nem privado; ao contrario, e a condiC;ao para qualquer
distinc;ao entre 0 publico e a privado. Digamos a mesma coisa, partindo agora de

nossos Aparelhos Ideologicos de Estado. Nao importa se as instilui,6es em que


e1es se materializam sao "publicas" au "privadas". 0 importante e como funcionam. As instituiC;6es privadas podem perfeitamente "funcionar" como Aparelhos Ideologicos de Estado. Vma analise razoavelmente minuciosa de qualquer
dos AlEs comprova isso.

Agora, porem, vamos ao essencial. 0 que dislingue os AlEs do Aparelho (Repressivo) de Estado e a seguinte diferen,a fundamental: 0 Aparelho Repressivo
de ESlado funciona "pela violencia", ao passo que os Aparelhos Ideologicos de
ESlado funcionam ''pe/a ideologia".
Podemos esclarecer as coisas, retificando essa distinc;ao. Diremos, antes, que

todo Aparelho de Estado, seja ele repressivo ou ideol6gico, "funciona" ao mesmo


tempo pela violencia e pela ideologia, mas com uma distinC;ao importantissima,

.L

116

UM MAPA DA IDEOLOGIA

que torna imperativo nao confundir os Aparelhos Ideol6gicos de Estado com 0


Aparelho (Repressivo) de Estado.
Trata-se do fato de que 0 Aparelho (Repressivo) de Estado funciona maci,a
e predominantemente pela repressao (inclusive a repressao fisica), e secundaria mente pela ideologia. (Nao existe um aparelho puramente repressivo.) Por
exemplo, 0 exercito e a policia tam bern funcionam pela ideologia, tanto para
garantir sua propria coesao e reprodu<;:ao quanta nos valores" que propoem
para fora.
Do mesma modo, mas no sentido inverso, e essen cia 1dizer que, por sua vez,
os Aparelhos Ideol6gicos de Estado funcionam mad,a e predominantemente
pela ideologia, mas tambem funcionam secundariamente pela repressao, ainda
que, no limite, mas somente no limite, esta seja muito atenuada e escondida, ate
mesmo simb6lica. (Nao ha algo que se possa chamar de aparelho puramente
ideoI6gico.) Assim, as escolas e igrejas dispoem de metodos adequados de puni<rao, expulsao, sele<r3o etc, para "disciplinar" flaO apenas seus pastores, mas tambern seus rebanhos. 0 mesma se aplica a familia ... E 0 mesma se aplica ao AlE
cultural (censura, entre outras coisas) etc.
E preciso acrescentar que essa determinac;:ao do dupla "funcionamento" (em
car<lter predominante ou secundario) pela repressao e pela ideologia, can forme
se trate do Aparelho (Repressivo) de Estado ou dos Aparelhos Ideol6gicos de
Estado, deixa claro que se podem tecer combinac;:oes explicitas au tacitas muito
sutis, a partir da intera~ao do Aparelho (Repressivo) de Estado com os Aparelhos Ideologicos de Estado. A vida cotidiana nos fornece inumeros exemplos
disso, mas eles devem ser minuciosamente estudados para que possamos ir alem
dessa mera observacrao.
No entanto, esse comentario nos leva a compreender 0 que constitui a uniao
do corpo aparentemente desconexo dos ALEs. Se os AlEs "funcionam" maci<;:a e
predominantemente pela ideologia, 0 que unifica sua diversidade e precisamente esse funcionamento, na medida em que a ideologia pela qual eles funcionam e sempre efetivamente unificada, a despeito de sua diversidade e suas contradi,oes, sob a ideologia dominante, que e a ideologia da "classe dominante".
Dado que, em principio, a "classe dominante" detem 0 poder estatal (abertamente au, na maioria das vezes, mediante aliancras entre classes ou fracroes de
classes), e, portanto, tem a seu dispor 0 Aparelho (Repressivo) de Estado, podemos admitir que essa mesma classe dominante e atuante nos Aparelhos Ideo16gicos de Estado, na medida em que, em ultima analise, e a ideologia dominante que se realiza nos Aparelhos Ideologicos de Estado, atraves de suas pr6prias
contradicroes. E muito diferente, e claro, agir por meio de leis e decretos no
Aparelho (Repressivo) de Estado e "agir" por intermedio da ideologia dominante nos Aparelhos Ideol6gicos de Estado. Sera necessario investigar os pormenores dessa diferenc;:a - mas ela nao pode mascarar a realidade de uma

Ilex


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE ESTADO

117

identidade profunda. Ao que saibamos, nenhuma classe e capaz de deter 0 poder


estatal por urn periodo prolongado sem, ao mesmo tempo, exercer sua hegemonia

sobre e dentTO dos Aparelhos IdeolOgicos de Estado. Basta-me, como prova, apenas urn exemplo: a angustiada preocupa<;:ao de Lenin de revolucionar 0 AlE
educacional (entre outros), simplesmente para possibilitar ao proletariado sovietico, que havia tomado 0 poder estatal, assegurar 0 futuro da ditadura do
proletariado e a transicrao para 0 socialismo. 9
Este ultimo comentario deixa-nos em condi<;:6es de entender que os Apa-

relhos Ideol6gicos de Estado podem ser nao apenas 0 alvo, mas tam bern 0 lugar
da luta de classes, e, freqiientemente, de fafmas encarnicyadas de luta de classes.
A classe (ou alian,a de classes) que ocupa 0 poder nao pode ditar a lei nos AlEs
com a mesrna facilidade com que 0 faz no Aparelho (Repressivo) de Estado, nao
86 porque as antigas classes dorninantes neles conseguem preservar posic;:6es de
forcr a durante muito tempo, mas tambem porque a resistencia das classes explofadas e capaz de encontrar meios e oportunidades de se expressar ali, seja utilizando as contradi~oes que ali existem, seja pela conquista de posi<;:oes de combate dentro deles, na luta. lo

Permitam-nos rever nossos comentarios.


Se a tese que propusemos tern fundamento, somos levados a retomar a cIassica teo ria marxista do Estado, tornando-a mais precisa num aspecto. Dissemos
que Ii necessario distinguir entre 0 poder estatal (e sua posse por. .. ), de urn lado,
e 0 Aparelho de Estado, de outro. Mas acrescentarnos que 0 Aparelho de Estado
contern dois corpos: 0 corpo das institui,5es que representam 0 Aparelho Repressivo de Estado, por urn lado, e 0 corpo de institui<;:oes que representam os
Aparelhos Ideol6gicos de Estado, por outro.
Mas, se e assim, ha que se formular a seguinte pergunta, mesmo nas condi<;:oes
sumarissimas de minhas<sugestoes: qual e, exatamente, a extensao do papel dos
Aparelhos Ideol6gicos de Estado? Em que se baseia sua irnportilncia? Em outras
palavras, a que corresponde a "fun,ao" dos Aparelhos Ideol6gicos de Estado que
nao funcionam pela repressao, mas pela ideologia?
SOBRE A REPRODUyXO DAS RELAyOES DE PRODUyXO

Podemos agora responder aquestao central, deixada em suspenso por longas paginas: como se assegura a reprodurao das relaroes de produriio?
Na linguagem da t6pica (infra-estrutura, superestrutura), dizemos: em sua
maior parte, II ela e assegurada pela superestrutura juridico-politica e ideoI6gica.
Mas, como argumentamos ser indispensavel ir alem dessa linguagem ainda
descritiva, diremos: em sua maior parte, eia e assegurada pelo exercicio do poder
estatal nos Aparelhos de Estado - de urn lado, 0 Aparelho (Repressivo) de Estado, e de outro, os Aparelhos Ideol6gicos de Estado.

UM MAPA DA IDEOLQGIA

118

Deve-se levar em eanta 0 que dissemos antes, e que nos resumimos agora nas
tres caracteristicas seguintes:
1. Todos os Aparelhos de Estado funcionam pela repressao e pela ideologia ao
mesmo tempo, com a diferen<;a de que 0 Aparelho (Repressivo) de Estado fundona maciya e predorninantemente pela repressiio, enquanto os Aparelhos Ideo16gicos de Estado fundonam mad<;a e predominantemente pela ideologia.
2. Enquanto 0 Aparelho (Repressivo) de Estado constitui urn todo organizado, cujas diferentes partes centralizam-se abaixo de uma unidade de camandaa da politica da luta de classes aplicada pelos representantes politicos das classes
dominantes que detem 0 poder estatal - , os Aparelhos Ideol6gicos de Estado
sao multiplos, distintos, C<relativamente autonomos" e capazes de proporcionar
.urn campo objetivo para as contradil;oes, que expressam, sob forrnas limitadas
au extremadas, os efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de
classes proletaria, bern como suas fafmas subordinadas.
3. Enquanto a unidade do Aparelho (Repressivo) de Estado e garantida por
sua organizas:ao, unificada e centralizada sob a lideran'ra dos representantes das

classes ocupantes do poder, que executam a politica da luta de classes das classes
que estao no poder, a unidade dos diferentes Apatelhos Ideol6gicos de Estado e
garantida, em geral sob formas contradit6rias, pela ideologia dominante, a ideo-

logia da c1asse dominante.


Levando em conta essas caracteristicas, e possivel representar da seguinte manei-

ra a reprodu<;ao das rela<;6es de produ<;ao, 12 segundo uma especie de "divisao do


trabalho".
o papel do Aparelho (Repressivo) de Estado, na medida em que ele e urn
aparelho repressor, consiste essencialmente em assegurar, atraves da for~a (fisica ou de outro tipo), as condi<;6es politicas de reprodu<;ao das rela<;6es de prodUyao, que sao, em ultima instancia, relayoes de explorarao. Nao s6 0 Aparelho
de Estado contribui para grande parte de sua pr6pria reprodu<;ao (0 Estado capitalista contem dinastias politicas, dinastias militares etc), como tambem, e

adma de tudo,
mais brutal

Aparelho de Estado assegura, atraves da repressao (desde a

for~a

fjsica, ate meras ordens e proibiyoes administrativas, ou a cen-

sura franca e tacita), as condi<;6es politicas de atua<;ao dos Aparelhos [deoI6gicos de Estado.
Na verdade, e esta ultima que garante, em grande parte, a reproduyao das

rela<;6es de produ<;ao, por tnis de urn "escudo" forneddo pelo Aparelho (Rep ressivo) de Estado. E ai que 0 papel da ideologia dominante concentra-se maci~a
mente - a ideologia da classe dominante, que detem 0 poder estatal. E a intermediayao da ideologia dominante que assegura uma harmonia" (as vezes tensa)

entre 0 Aparelho (Repressivo) de Estado e os Aparelhos Ideol6gicos de Estado, e


tambem entre os diferentes Aparelhos Ideol6gicos de Estado.

IOEOLOGIA E APARELHOS IOEOL6GICOS DE EST ADO

119

Somos, pois, levados a considerar a seguinte hip6tese, justamente em fun~ao

da diversidade das Aparelhas Idealogicas de Estada em seu papel comum, parque compartilhada, de reprodu<;aa das rela<;6es de produ<;aa.
De fata, listamas urn numero relativamente grande de Aparelhas Ideal6gicos de Estado nas forma~oes sociais capitalistas contemporaneas: 0 aparelho
escolar, 0 religioso, 0 familiar, 0 politico, 0 sindical, 0 das comunica~oes, 0
"cultural" etc.
Mas, nas forma.yoes sociais do modo de produyao caracterizado pela "servi-

daa" (geralmente chamada de mada de produ<;aa feudal), abserva-se que, embara haja urn unico Aparelha (Repressiva) de Estada, a qual, desde as primeiros
Estadas canhecidas da Antiguidade, para naa falar nas manarquias absalutas, fai
formalmente muito semelhante ao que hoje conhecemos,

numero de Apare-

Ihas Ideal6gicos de Estada e menor, e seus tipas individuais saa diferentes. Por
exempla, abserva-se que, durante a Idade Media, a Igreja (a AlE religiasa) acumulava diversas fun<;6es que atualmente competem a varias Aparelhas Idealogicos de Estado distintos, fun.yoes novas em relayao ao passado que estamos evo-

canda, em particular educacianais e culturais. Aa lada da Igreja, havia a Aparelha


Idealogica de Estada da familia, que desempenhava urn papel consideravel, incompanlvel ao seu papel nas forma.yoes sociais capitalistas. Apesar das aparen-

cias, a Igreja e a familia naa eram as unicos Aparelhas Ideal6gicos de Estada.


Havia tambem urn AlE politico (os Estados Gerais, 0 Parlamento, as diferentes
facyoes e Ligas politicas, ancestrais dos modernos partidos politicos, e todo 0 sistema politico das Comunas livres e, depois, das Villes). Havia ainda urn poderoso

Aparelha Idealogico de Estada "prota-sindical", se pademas arriscar esse terma


tao anacr6nico (as guildas dos mercadores e banqueiros poderosos, as associayoes de artifices etc). Ate as editoras e as informayoes assistiram a urn desenvolvimento incontestavel, assim como os espetaculos; a principio, ambos eram parte
integrante da 19reja, vindo depois a se tornar cada vez mais independentes dela.
No periodo hist6rico pre-capitalista, que examinamos em trayos sumamente gerais, esta absalutamente claro que havia urn Aparelho Ideo16gico de Estado
dominante, a Igreja, que concentrava em si nao apenas as func;oes religiosas,
mas tambem as escolares e grande parte das fun.yoes de informayao e da "cul-

tura". Naa fai par acasa que tada a luta idealogica, desde a secula XVI ate a seculo XVIII, a partir dos primeiros choques da Reforma, concentrou-se numa luta
anticlerical e anti-religiosa; isso se deu precisamente ern funC;ao da posiyao do-

minante da Aparelha Idealogica de Estada religiasa.


o principal abjetiva e a principal resultada da Revalu<;aa Francesa naa consisti ram simplesmente em transferir 0 poder estatal da aristocracia feudal para a
burguesia capitalista-comercial, romper em parte 0 antigo Aparelho Repressivo

de Estada e substitui-Ia par urn nava (par exempla, a Exercita Nacianal Papular), mas tambem combater a Aparelha Idealogico de Estada numero urn: a Igre-

120

UM MAPA DA IDEOLOGIA

ja. Dai a definic;:ao de urn estatuto civil para 0 clero, 0 cantiseo dos bens eclesiasticos e a cria~ao de novos Aparelhos Ideol6gicos de Estado para substituir 0 aparelho religioso em seu papel dominante.
Naturalmente, essas coisas naD aconteceram de maneira automatica: basta
testemunharmos a Concordata, a Restaurac;:ao e a langa luta de classes entre a
aristocracia rural e a burguesia industrial durante todD 0 seculo XIX, em prol do
estabeledmento da hegemonia burguesa em fun~6es antes desempenhadas pela
Igreja, sobretudo nas escolas. Pode-se dizer que a burguesia apoiou-se no novo
AlE politico, parlamentar-democratico, instalarlo nos primeiros anos da Revoluc;:ao e reinstaurarlo ap6s longas e violentas lutas, por alguns meses em 1848 e por
decadas ap6s a queda do Segundo Imperio, para conrluzir seu combate contra a
Igreja e dela arran car as func;:6es ideologicas - em outras palavras, para assegurar nao apenas sua propria hegemonia politica, mas tambem sua hegemonia
ideol6gica, indispensavel areprodu~ao das rela~6es capitalistas de produ~ao.
E por isso que acreditamos ser lkito propor a seguinte tese, com todos os riscos que ela comporta. Cremos que 0 Aparelho Ideol6gico de Estado que se instalou na posi'fao dominante nas forma 'foes sociais capitalistas maduras, em decorrencia de uma violenta luta politica e ideologica de classes contra 0 antigo
Aparelho Ideol6gico de Estado dominante, foi 0 Aparelho ldeologico escolar.
Essa tese talvez pare~a paradoxal, dado que, para todo 0 mundo, isto e, na
representa~ao ideologica que a burguesia tentou dar a si mesma e as classes que
ela explora, 0 AlE dominante nas forma'foes sociais capitalistas realmente nao
parece ser a escola, mas 0 AlE politico, ou seja, 0 regime de democracia parlamentar que combina 0 sufragio universal e a luta partidaria.
Entretanto, a hist6ria, inclusive a hist6ria recente, mostra que a burguesia foi
e ainda e capaz de se ajustar a outros AlEs politicos que nao a democracia parlamentar: 0 Primeiro e 0 Segundo Imperios, a Monarquia Constitucional (Luis
XVIII e Carlos X), a Monarquia Parlamentar (Luis Filipe) e a Democracia Presidencial (de Gaulle), para mendonar apenas a Fran~a. Na Inglaterra, isso fica ainda mais claro. Ali, a Revolu~ao foi particularmente "exitosa" do ponto de vista
burgues, ja que, ao contrario da Fran~a - onde a burguesia, em parte pela estupidez da pequena nobreza, teve que concordar em ser conduzida ao poder pelas
"jornadas revolucionarias", camponesas e plebeias, que lhes custaram muito
caro - , a burguesia inglesa soube "conciliar-se" com a aristocracia e "compartiIhar" com ela 0 poder estatal e 0 uso do Aparelho de Estado durante muito tempo (paz entre todos os homens de boa vontade nas classes dominantes!). Na Alemanha as coisas sao ainda mais impressionantes, pois foi sob urn AlE politico protegido pelos junkers imperiais (cuja epitome foi Bismarck), com seu exercito
e sua policia, e seus quadros dirigentes - que a burguesia imperialista fez seu
arrasador ingresso na historia, antes de "atravessar" a Republica de Weimar e se
entregar ao nazismo.

IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOLOGICOS DE EST ADO

121

Por isso, cremos ter boas razoes para considerar que, nos bastidores de seu AlE
politico, que ocupa a frente do palco, 0 que a burguesia instalou como seu Apare-

Iho Ideol6gico de Estado numero urn, isto e, dominante, foi 0 aparelho escolar,
que de fato substituiu em suas fun~6es 0 AlE dominante anterior, a Igreja. Poderse-ia ate acrescentar:

par escola-familia substituiu

par Igreja-familia.

Por que 0 aparelho educacional ede fato 0 Aparelho Ideol6gico de Estado dominante nas formas:oes sociais capitalistas, e como ele funciona?
Por ora, basta dizer que:
I. Todos os Aparelhos Ideol6gicos de Estado, sejam quais forem, contribuem

para urn mesmo resultado: a reprodu~ao das rela~6es de produ~ao, isto e, das
capitalistas de explora~ao.
2. Cada qual contribui para esse resultado unico da maneira que Ihe epr6pria.
o aparelho politico, submetendo os individuos 0 ideologia politica do Estado,
o ideologia "democratica" "indireta" (parlamentar) ou "direta" (plebiscitaria
ou fascista). 0 aparelho da informa~ao, empanturrando cada "cidadao" com dorela~6es

ses diarias de nacionalisrno, chauvinismo, liberalismo, moralisrno etc, atraves da

imprensa, do radio e da televisao. 0 mesmo se aplica ao aparelho cultural (o papel do esporte no chauvinismo e de suma importancia) etc. 0 aparelho religioso,
relembrando em seus sermoes, e nas outras grandes cerimonias do Nascimento,
Casamento e Morte, que 0 homem sao apenas cinzas, a menos que arne seu pr6-

ximo a ponto de dar a outra face a quem quer que bata primeiro. 0 aparelho
familiar. .. bem, nao ha necessidade de prosseguir.
3. Esse concerto e regido por uma s6 partitura, ocasionalmente perturbada
por contradis:oes (as dos remanescentes das classes dominantes anteriores, as dos
proletarios e suas organiza<;:oes): a partitura da ideologia da atual classe dominante, que integra em sua melodia os grandes temas do Humanismo dos Grandes Patriarcas, que produziram 0 Milagre Grego antes mesmo do Cristianismo,
e depois a Gl6ria de Roma, Cidade Eterna, e tam bern os ternas do Interesse, particular e geral, etc, do nacionalismo, do moralismo e do economicismo.

4. Nao obstante, nesse concerto, urn Aparelho Ideol6gico de Estado certamente detem 0 papel dominante, embora quase ninguem de ouvidos asua musica - ele e tao silenciosot Trata-se da escola.
Ela pega crians:as de todas as classes desde a tenra idade escolar e, durante anosos anos em que a crian~a esta mais vulneravel", espremida entre 0 Aparelho de

Estado familiar e 0 Aparelho de Estado escolar -, martela em sua

cabe~a,

quer

utilize metodos novos ou antigos, uma certa quantidade de saberes" embrulhados pela ideologia dominante (frances, aritmetica, hist6ria natural, ciencias, literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (etica, orienta~ao civica, filosofia). Em algum momenta por volta dos dezesseis anos, uma
imensa massa de criafl(ras e ejetada para a produ<;:ao": trata-se dos openirios ou

122

UM MAPA DA IDEOLOGIA

dos pequenos camponeses. Outra parcela de jovens academicamente ajustados


segue adiante: e, para 0 que der e vier, avan'1a urn pOlleD mais, ate ficar pelo caminho e if preenchendo os postas dos tecnicos pequenos e medias, dos funcionarios de colarinho branco, dos pequenos e medias executivDs, de tada sorte de
pequeno-burgueses. Uma ultima ponrao chega ao topo, seja para cair no semiemprego intelectual, seja para fornecer, alem dos "intelectuais do trabalhador
coletivo", os agentes da explorayao (capitalistas, dirigentes), os agentes da rep ressao (soldados, policiais, politicos, administradores etc) e os profissionais da ideologia (pregadores de to do tipo, em sua maioria "leigos" convictos),
Cada massa ejetada pelo caminho e provida, na pratica, da ideologia que
se ajusta ao papel que the compete exercer na sociedade de classes: 0 papel dos
explorados (com uma consciencia altamente desenvolvida", profissional",
etica", civica", nacional" e apolitica"); 0 papel dos agentes da explora~ao
(capacidade de dar ordens aos trabalhadores e falar com eles: as "rela<;6es hmnanas"); dos agentes da repressao (capacidade de dar ordens e impor obediencia
"sem discussao", au capacidade de manipular a retorica demagogica do lider
politico); ou dos profissionais da ideologia (capacidade de tratar as consciencias
com 0 respeito - isto e, com 0 desdem, a chantagem e a demagogia - que elas
merecem, adaptado as inflex6es da Moral, da Virtude ou da "Transcendencia",
da Na<;ao, do Papel Mundial da Fran<;a etc),
Eclaro que muitas dessas Virtudes contrastantes (modestia, resigna~ao e submissao, de urn lado; cinismo, desprezo, arrogancia, confian~a, empafia e ate labia
e astucia, de outro) tambem sao ensinadas na familia, na Igreja, no Exercito, nos
Bans Livros, nos filmes e ate nos estadios de futebol. Mas nenhum outro Aparelho Ideologico de Estado tem a audiencia obrigatoria (e gratuita) da totalidade
das crian~as na forma~ao social capitalista, oito horas par dia, durante cinco ou
seis dias par semana.
E pelo aprendizado de saberes envoltos no repisar maci~o da ideologia da
classe dominante que sao, em grande parte, reproduzidas as relafoes de produfiio
de uma fonnayao social capitalista, isto e, as relayoes dos explorados com as
exploradores e dos exploradores com os explorados. Naturalmente, os mecanismas que produzem esse resultado, vital para a regime capitalista, sao encobertos
e ocultados par uma ideologia da escola, universalmente dominante par ser
uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideologia que
representa a escola como urn ambiente neutro, desprovido de ideologia (par
ser...laico), onde os professores, respeitadores da "consciencia" e da "liberdade"
das crian<;as que lhes sao entregues (em completa confianI'a) pelos "pais" (tambem eles livres, isto e, proprietarios de seus filhos), abrem para elas 0 caminho
da liberdade, da moral e da responsabilidade de adultos, atraves de seu proprio
exemplo, do saber, da literatura e de suas virtudes "libertadoras".
Pe~o perdao aos professores que, em condi<;:oes sumamente adversas, tentam


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE ESTADQ

123

yoltar as poucas annas que conseguem encontrar, na hist6ria e no saber que "ensinam", contra a ideologia, 0 sistema e as pniticas em que estao aprisionados. Eles
sao uma especie de her6is. Mas sao raros, e quantos (a maioria) nem sequer chegam a sllspeitar do "trabalho" que 0 sistema (que e maior do que eles e os esmaga) os obriga a fazer, ou quantos, pior ainda, empenharn todD 0 seu cora<;ao e
habilidade para executa-Io da forma mais esmerada (os famosos nOVDS metodos!). Tao pequena e a desconfian~a deles de que sua propria dedica~ao contribui
para a manuten<;ao e a alimenta<;ao dessa representac;ao ideologica da escoia, que
a torna hoje tao <'natural", indispensavellutil e ate benefica para flOSSDS (Olltemporaneos, quanta a Igreja era "natural", indispensavel e generosa para 110SS0S
ancestrais de alguns seculos atras.
De fato, a Igreja foi hoje substitufda, em seu papel de AlE dominante, pela
escola. Acopla-se a familia, exatamente como urn dia a Igreja tambem esteve
acoplada it familia. Podemos hoje afirmar que a crise, de uma profundidade sem
precedentes, que abala 0 sistema educacional de tantas nayoes do globo, amiude
em conjun~ao com uma crise (ja prodamada no Manifesto Comunista) que abala 0 sistema familiar, assume urn sentido politico, uma vez que a escola (e 0 par
escola-familia) constitui 0 AlE dominante, 0 aparelho que desempenha urn papel decisivo na reprodu~ao das rela,6es de produ~ao de urn modo de produ~ao
ameayado em sua existencia pela luta de classes mundial.

SOBRE A IDEOLOGIA

Quando propusemos a conceito de Aparelho Ideol6gico de Estado, quando afirmamos que os AlEs "funcionam pela ideologia", invocmTIos uma realidade que
requer uma certa discussao: a ideologia.
E sabido que a expressao "ideologia" foi inventada por Caban is, Destutt de
Tracy e seus amigos, que lhe atribuiram como objeto a teoria (genetica) das
ideias. Quando Marx retomou 0 termo, cinquenta anos depois, deu-lhe urn sentido muito diferente, mesmo em suas obras de juventude. Ali, a ideologia e 0
sistema de ideias e representayoes que domina a mente de urn homem ou de urn
grupo social. A luta ideologico-politica conduzida por Marx, ja em seus artigos
na Gazeta Renana, colocou-o, inevitavel e rapidamente, cara a cara com essa
realidade, e foryou-o a aprofundar suas primeiras intuiyoes.
Entretanto, aqui deparamos com urn paradoxo bastante surpreendente. Tudo
parecia levar Marx a formular uma teoria da ideologia. De fato, A ideologia alemil
nos oferece, depois dos Manuscritos de 1844, uma teoria explicita da ideologia,
mas ... ela nao e marxista (veremos isso dentro em pouco). Quanto a 0 capital,
embora decerto contenha muitas sugestoes de uma teoria das ideologias (visivelmente, a ideologia dos economistas vulgares), ele nao contem essa teoria em si,
que depende, em sua maior parte, de uma teoria da ideologia em gera!.

124

UM MAPA DA IDEOLQGIA

Eu gostaria de arriscar urn esbos:o inicial e muito esquematico de tal teo ria.
As teses que estoll prestes a formular certamente nao sao improvisadas, mas nao
podem ser sustentadas e provadas, ista e, confirmadas ou rejeitadas, a nao ser
atraves de estudo e analise minuciosos.

A ideologia nao tern histaria


Antes de mais nada, uma palavra para expor a razao que me pareee, em principia, fundamentar OU, peIo men as, justificar 0 pfojeto de uma teo ria da ideologia
em geral, e nao de uma teoria de ideologias particulares, que, seja qual for sua
forma (religiosa, etica, juridica, politica), sempre expressam posi~oes de classe.
E bastante 6bvio que e preciso avanc;:ar para uma teo ria das ideologias nos
dais aspectos que acabo de sugerir. Assim, ha. de estar claro que uma teo ria das
ideologias se baseia, em ultima instancia, na hist6ria das forma<;oes sociais, e,
portanto, dos modos de prodw;ao combinados nas forma<;oes sociais e das Iutas
de classes que se desenvolvem dentro delas. Nesse sentido, e claro que nao ha
nenhuma possibilidade de uma teo ria das ideologias em gera!, ja que as ideologias
(definidas no duplo aspecto sugerido acima: regionais e de classe) tern uma hist6ria cuja determina<;ao, em ultima instancia, situa-se claramente fora das ideologias em si, embora as suponha.
Ao contrario, se estou apto a propor 0 projeto de uma teo ria da ideologia em
gera~ e se essa teoria e realmente urn dos elementos de que dependem as teorias
das ideologias, isso acarreta uma proposi<;ao aparentemente paradoxal, que
expressarei nos seguintes termos: a ideologia nao tern hist6ria.
Como sabemos, essa formula'rao aparece literalmente numa passagem de A
ideologia alema. Marx a enuncia a respeito da metafisica, que, ele diz, tern tao pouca hist6ria quanta a moral (fica subentendido: e as outras formas de ideologia).
Em A ideologia alema, essa formulac;ao aparece num contexto francamente
positivista. A ideologia econcebida como pura ilusao, puro sonho, isto e, como 0
nada. Toda a sua realidade the e externa. Assim, a ideologia e pensada como urn
constructo imaginario cujo status e exatamente identico ao status te6rico do sonho entre os autores anteriores a Freud. Para esses autores, 0 sonho era 0 resultado puramente imaginario, ou seja, nulo, de residuos diurnos" dispostos num
arranjo e numa ordem arbitnirios, e as vezes ate "invertidos" - em outras pal a vras, em desordem". Para eles, 0 sonho era a imaginario vazio e nulo, arbitrariamente montado", uma vez fechados as olhos, a partir dos restos da unica
realidade plena e positiva, a realidade do dia. E exatamente esse 0 status da filosofia e da ideologia em A ideologia alerna (ja que, nesse livro, a filosofia e a ideologia
par excelencia).
Para Marx, portanto, a ideologia e uma montagem imaginaria, um puro sonho, vazio e fUtil, constituido pelos residuos diurnos" da unica realidade plena e
positiva: a da historia concreta de individuos concretos, materia is, produzindo


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

125

material mente sua existencia. E com base nisso que a ideologia nao tern hist6ria
em A ideologia aZema, ja que sua hist6ria esta fora dela; a unica hist6ria existente e
a hist6ria dos individuos concretos etc. Em A ideologia alema, portanto, a tese de
que a ideologia naa tern hist6ria e uma tese puramente negativa, pais significa:
1. que a ideologia nao e nada, na medida em que e puro sonho (fabricado
sabe-se hi por qual poder, ou pela aliena,ao da divisao do Irabalho, mas lamb em
essa e uma determina~ao negativa);
2. que a ideologia nao tern hist6ria, 0 que nao significa, decididamente, que
nela nao haja historia (muito pelo contrario, pais ela e meramente 0 reflexo palido, vazio e invertido da hist6ria real), mas que ela nao tern uma hist6ria propria.
Pois bern, embora a tese que desejo defender, falando formalmente, adole os termas de A ideologia alema (<<a ideologia nao tern hist6ria"), ela e radicalmente
diferenle da lese positivista-hisloricisla de A ideologia alema.
Por urn lado, penso ser possivel afirmar que as ideologias tern urna hist6ria
propria (ainda que esla seja delerminada, em ultima inslancia, pela lula de classes); e por outro, creio ser possIvdafirmar que a ideologia em geral nao tern hist6ria - nao num sentido negativo (sua hist6ria the e externa), mas num sentido
absolutamente positivo.
Esse sentido e positivo - se e verdade que a peculiaridade da ideologia esta
em ela ser dotada de uma estrutura e funcionamento tais que a tornam uma realidade a-hist6rica, isto e, uma realidade oni-hist6rica - no sentido de essa estrutura e funeionamento serem imutaveis, acharem-se presentes de uma mesma forma em tudo 0 que cham amos hist6ria, no sentido em que 0 Manifesto Cornunista
define a hist6ria como Iutas de classes, isto e, a hist6ria das sociedades de classes.
Para fornecer uma referenda te6riea neste ponto, eu poderia dizer que voltando ao nosso exemplo do sonho, desta vez em sua eoncepr;ao freudiana
- nossa proposi,ao de que a ideologia nao tern historia pode e deve (e de urn
modo que nao tern absolutamente nada de arbitrario, mas, muito peIo eontrario, e teoricamente necessario, pois ha urn vinculo organico entre as duas proposir;oes) ser diretamente relacionada com a proposis:ao freudiana de que 0 inconsciente e eterno, isto e, nao tern hist6ria.
Se eterno nao significa transcendente a toda a hist6ria (temporal), mas onipresente, trans-hist6rico, e portanto irnutavel em sua forma em toda a extensao
da hist6ria, adotarei a expressao de Freud palavra por palavra e escreverei:
a ideologia e eterna, exatamente como 0 inconsdente. E acrescento que julgo
essa comparar;ao teoricarnente justificada peIo fato de que a eternidade do inconscienle guarda alguma rela,ao com a etemidade da ideologia em gera!.
E por isso que creio ser He ito, ao menos par conjectura, propor uma teo ria
da ideologia em gera!, no sentido como Freud expos uma teoria do inconsciente

emgeral.

126

UM MAPA DA IDEOLOGIA

Para simplificar a expressao, e conveniente, levando em eanta 0 que se disse


sobre as ideologias, usar 0 simples termo "ideologia" para designar a ideologia
em geral, que acabei de dizer que nao tern hist6ria, Oll - 0 que da oa mesma
_ que e eterna, ista C, onipresente em sua forma imutavel por toda a hist6ria
(= hist6ria das formaC;6es sociais que englobam as classes sociais), Por ora, YOU
restringir-me as "sociedades de classes" e sua hist6ria.

A ideologia euma "representa~ao" da relafao imaginaria


dos individuos com suas condifoes reais de existencia
Para me aproximar de minha tese central sabre a estrutura e funcionamento
da ideologia, apresentarei primeiramente duas teses, uma negativa e Dutra positiva. A primeira diz respeito ao objeto "representado" sob a forma imagimlria da
ideologia; a seguuda diz respeito a materialidade da ideologia.
TESE I: A ideologia representa a rela<;:30 imagimiria dos individuos com suas condi<;:6es reais de existencia,

E comum chamarmos a ideologia religiosa, a ideologia moral, a ideologia juridica, a ideologia politica etc de "concep<;:6es de mundo", A menos que vivamos
uma dessas ideologias como a verdade (por exemplo, "acreditemos" em Deus, no
Dever, na Justi<;:a etc), admitimos que a ideologia que estamos discutindo de urn
ponto de vista critico, examinando-a como urn etn610go examina os mitos de
uma "sociedade primitiva", que essas "concep<;:6es de mundo" sao em grande
medida imaginarias, ou seja, nao "correspondem a realidade",
Entretanto, mesmo admitindo que elas nao correspondem a realidade, isto
e, que constituem uma ilusao, admitimos que elas efetivamente se referem a
realidade, e que s6 precisam ser "interpretadas" para que se descubra a realidade do mundo que esta por tnis dessa representa<;:ao imaginaria desse mundo
(ideologia ~ ilusao/alusao).
Ha diferentes tipos de interpretac;:ao, os mais famosos dos quais sao 0 tipo
meca11icista, corrente no seculo XVIII (Deus e a representa<;:ao imaginaria do Rei
real) e a interpreta<;:ao "hermeneutica", inaugurada pelos primeiros Patriarcas da
Igreja e retomada por Feuerbach e pela escola teologico-filosofica descendente
dele - por exemplo, 0 teologo Barth (para Feuerbach, por exemplo, Deus e a
essencia do Homem real). 0 ponto essencial e que, desde que interpretemos
a transposic;:ao (e a inversao) imaginaria da ideologia. chegarnos a conclusao de
que, na ideologia, "os homens representarn para si mesmos suas condic;:6es reais
de existencia sob forma imaginaria".
Infelizmente, essa interpreta<;:ao deixa urn probleminha por resolver: por que
os homens "precisam" dessa transposi<;:ao irnaginaria de suas condi<;:6es reais de
existencia para "representar para si" essas condi<;:6es reais de existencia?


IDEQLOGIA E APARELHOS IDEOL6cICOS DE EST ADO

127

A primeira resposta (a do seculo XVIII) propoe uma solu~ao simples: os Padres au os Despotas sao as responsaveis. Eles "forjaram" Belas Mentiras para
que, acreditando obedecer a Deus, as homens de fato obedecessem aos Padres e
aos Despotas, 0 mais das vezes aliados em sua impostura, os Padres agindo em
favor dos interesses dos Despotas au vice-versa, conforme as posic;6es politicas
dos "te6ricos", Hi, pais, uma causa para a transposic;ao imaginaria das condic;6es reais de existencia: essa causa e a existencia de urn pequeno ntimero de homens cinicos, que fundamentam sua dominac;ao e explora<;ao do "povo" numa
representac;:ao falseada do mundo, que eles criaram com 0 objetivo de escravizar
outras mentes, dominando-Ihes a imagina'tao.
A segunda resposta (a de Feuerbach, retomada literal mente por Marx em suas
obras de juventude) e mais "profunda", ou seja, igualmente falsa. Tambem ela
procura e encontra uma causa para a transposi'tao imaginaria e para a distor'tao
das condi'toes reais de existencia dos homens, em suma, para a aliena'tao, no
imaginario da representa'tao, das condi'toes de existencia dos homens. Essa causa
ja nao sao as Padres ou os Despotas, nem tampouco sua imagina'tao ativa e a
imagina'tao passiva de suas vitimas. Essa causa e a aliena'tao material que impera
nas condi'toes de vida dos pr6prios homens. Assim e que, em A questao judaica e
em outros textos, Marx defende a ideia feuerbachiana de que os homens criam
para si uma representa'tao alienada (= imaginaria) de suas condi'toes de existencia porque essas mesmas condiyoes de existencia sao alienantes (nos Manuscritos
de 1844, porque essas condiyoes sao dominadas pela essencia da sociedade alienada: 0 "trabalha alienada").
Todas essas interpretayoes tomam ao pe da letra a tese que pressupoem e da
qual dependem, isto e, a de que 0 que se reflete na representay30 imaginaria do
mundo encontrada na ideologia sao as condi't0es de existencia dos homens, ou
seja, seu mundo real.
Agora posso voltar a uma tese que ja antecipei: 0 que "as homens" "representam para si" na ideologia nao sao suas situayoes reais de existencia, seu mundo
real; acima de tudo, e sua relayao com essas condi'toes de existencia que se representa para eles na ideologia. E essa rela y30 que esta no centro de toda representay30 ideo16gica, portanto imaginaria, do mundo real. E nessa rela'tao que se acha a
"causa" que tern de explicar a deformayao imaginaria da representayao ideol6gica do mundo real. AU entao, deixando de lado a lingua gem da causalidade, e
necessario formular a tese de que a natureza imaginaria dessa relafao e que subjaz
a toda a deformay30 imaginaria que se po de observar (quando nao se vive em sua
verdade) em qualquer ideologia.
Falando numa linguagem marxista: se e verdade que a representa y30 das condiyoes reais de existencia dos individuos que ocupam os postos de agentes de
produ'tao, explora'tao, repress3o, ideologizay3o e pratica cientifica tern raizes, em
ultima instancia, nas relayoes de produ'tao e nas rela'toes decorrentes das rela't6es

~)

128

UM MAPA DA IDEOLOGIA

de prodwrao. podemos dizer 0 seguinte: toda ideologia representa, em sua deformac;ao necessariamente imagimlria, flaD as relac;oes de produc;:ao existentes (e as
outras rela\Des que delas decorrem), mas, adma de tudo, a rela\ao (imaginaria)
dos individuos com as rela\Des de produ\ao e com as rela\Des que delas decorrem. 0 que e representado na ideologia, portanto, nao e 0 sistema das relaC;:6es
reais que regem a existencia dos individuos, mas a relac;ao imaginaria desses individuos com as relac;6es reais em que vivem.
Se e assim, a questao da ((causa" da deformac;ao imagimiria das relac;oes reais
na ideologia desaparece e cleve ser substituida por uma questao diferente: por
que a representa\ao dada aos individuos de sua rela\ao (individual) com as relac;:6es sociais que regem suas condic;6es de existencia e sua vida coletiva e individual e, necessaria mente, imagimiria? Equal e a natureza desse imagiwirio?
Formulada dessa maneira, a questao desacredita a solw;:ao pautada numa "panelinha",13 num grupo de individuos (Padres ou Despotas) que seriam os autores
da grande mistificac;:ao ideol6gica, assim como desacredita a solw;:ao pautada no
carater alienado do mundo real. Na seqiiencia da exposi\"ao verernos por que.
Por ora, nao irei rnais adiante.
TESE II: A ideologia tern uma existencia material.

Ja nos referimos a essa tese, de passagern, ao dizer que as "ideias" ou "representac;:oes" etc que parecem formar a ideologia nao tern uma existencia ideal [ideale
ou ideelle] >I- au espiritual, mas material. Chegamos mesmo a sugerir que a existencia ideal [idealeou ideelle] e espiritual das "ideias" tern raizes exclusivamente
em uma ideologia da "ideia" e da ideologia, e, permitam-me acrescentar, em
uma ideologia do que parece haver "fundamentado" essa concep\ao desde 0
surgimento das ciencias, isto e, do que os praticantes das ciencias representam
para si, em sua ideologia espontanea, como "ideias", verdadeiras au falsas.
E claro que, apresentada sob forma de uma afirmac;:ao, essa tese nao esta demonstrada. Pec;:o apenas que 0 leitor adote uma disposi\"ao favoravel a ela, digamos, em nome do materialismo. Vma longa serie de argumentos seria necessaria
para prova-la.
Essa conjectura da existencia nao espiritual, mas material, das "ideias" ou
outras "representac;:oes" e realmente necessaria para que prossigamos em nossa
analise da natureza da ideologia. Ou melhor, ela e simplesmente util, para melhor revelar 0 que toda analise minimamente seria de qualquer ideologia mostra, imediata e empiricamente, a qualquer observador, por mais critico que seja.
Ao discutir os Aparelhos Ideo16gicos de Estarlo e suas praticas, dissemos que
cada urn deles era a realiza\ao de uma ideologia (sendo a unidade dessas diferen,.. Althusser usa os dois termos em seqti~ncia. 0 segundo deles, "ideelle", tern as acep~oes de ideativa, conceitual, irnaginaria. (N. da T.)


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

12 9

tes ideologias regionais - religiosa, moral, juridica, politica, estetica etc - garantida por sua sujei\=3o a ideologia dominante). Retornamos agora a essa tese:
uma ideologia existe sempre num aparelho e em sua pnitica OU pniticas. Essa
exist~ncia ematerial.
Obviamente, a existencia material da ideologia num aparelho e em Silas praticas nao e da mesma modalidade que a existencia material de uma pedra de cal\amento au de urn fuzil. Mas, correndo 0 risco de ser tornado por neo-aristotelico
(assinalemos que Marx tinha enorme considera<r3o por Arist6teles), direi que
"a materia se expressa em muitos sentidos, ou melhoT, que ela existe em diferentes modalidades, tadas enraizadas, em ultima instancia, na materia "fisica".
Dito isto, tomemos 0 caminho mais curto e vejamos a que acontece com os
"individuos" que vivem numa ideologia, isto e, numa determinada representa<;ao (religiosa, moral etc) do mundo, cuja deforma<;ao imaginaria depende de sua
relaltao imaginaria com suas condic;:oes de existencia; em outras palavras, em ultima instancia, com as rela<;oes de produ<;ao e com as rela<;oes de classe (ideologia ::= relac;ao imaginaria com as relac;oes reais). Diremos que essa relac;ao imaginaria tern, ela mesma, existencia material.
Agora, observemos 0 seguinte.
Urn individuo acredita em Deus, ou no Dever, na ]ustic;a etc. Essa crenlta decorre (para todo 0 mundo, isto e, para todos os que vivem numa representac;ao
ideologica da ideologia, que reduz a ideologia a ideias dotadas, por defini<;ao, de
uma existencia espiritual) das ideias do individuo em questao, ou seja, dele
como sujeito provido de uma consciencia que con tern as ideias de sua crenc;:a.
Desse modo, isto e, mediante 0 dispositivo conceitual" absolutamente ideo16gico assirn instaurado (urn sujeito dotado de uma consciencia em que ele forma
livremente ou reconhece livremente as ideias em que acredita), 0 comportamento (material) do sujeito em causa e uma decorrencia natural.
o individuo em questao porta-se de tal ou qual maneira, adota tais e tais
comportamentos praticos e, mais importante, participa de algumas praticas
submetidas a regras, que sao as do aparelho ideologico de que "dependem" as
ideias que ele, corn plena consciencia, livremente escolheu como sujeito. Se
acredita em Deus, ele vai a igreja assistir a missa, ajoelha, reza, confessa-se, faz
penitencia (ern certa epoca, eia era material, no sentido comum do termo) e,
naturalmente, arrepende-se, e continua etc. Se acredita no Dever, ele tern as atitudes correspondentes, inscritas ern pniticas rituais "de acordo com os principios corretos". Se acredita na ]ustic;a, subrnete-se sem discussao as normas do
Direito e po de ate protestar quando elas sao violadas, assinar petic;:oes, participar de manifesta<;oes etc.
Em todo esse esquema, observamos que a pr6pria representac;:ao ideo16gica da
ideologia e forc;:ada a reconhecer que todo "sujeito" dotado de uma "consciencia", e confiando nas ideias" que sua consciencia" the inspira e livremente acei-

______________________
.1

13 0

UM MAPA DA IDEOLOGIA

ta, cleve" agir de acordo com suas ideias" - portanto, cleve inscrever suas ideias,
como sujeito livre, nos atos de sua pratica material. Se nao 0 fizer, esta errada.
Na verdade, se ele nao faz 0 que deveria fazer ern funs:ao daquilo em que
acredita, e porque faz alguma Dutra coisa, 0 que, ainda em fun(j:ao do mesma
esquema idealista, sugere que ele tern outras ideias na cabe<;a alem daquelas que
proclama, e age de acordo com essas outras ideias, como urn homem "inconseqiiente" ("ninguem e voluntariamente mau))), au cinko, au perverso.
Em qualquer dos casas, a ideologia da ideologia reconhece, pOI-tanto, apesar
de sua deforma<;:ao imagimiria, que as "ideias" de urn sujeito humano existem
au devem existir em seus atos, e que, quando isso nao acontece, ela Ihe atribui
outras ideias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele de fata pratica. Essa ideologia fala de atos; n6s falaremos de atos inseridos em praticas.
E pretendemos assinalar que essas praticas sao regidas por rituais em que elas se
inscrevem, dentro da existencia material de um aparelho ideo16gico, oem que seja
numa pequena parte desse aparelho: uma pequena rnissa numa igrejinha, urn
funeral, urn joguinho num clube esportivo, urn dia de aula, uma reuniao de partido politico etc.
Alias, devemos a"dialetica" defensiva de Pascal a esplendida formula que nos
facultad inverter a ordem do esquema nocional da ideologia. Pascal diz mais ou
menos 0 seguinte: "Ajoelhe-se, mexa seus labios numa orac;:ao e voce ted fe."
Assim, ele inverte escandalosamente a ordem das coisas, trazendo, como Cristo,
nao a paz, mas a discordia, e alem disso algo que dificilmente seria cristao (pois
triste daquele que traz 0 escandalo ao mundo!) - 0 proprio esd.ndalo. Urn escaodalo afortunado, que 0 fez ater-se, pela provocac;:ao jansenista, a uma linguagem que nomeia diretamente a realidade.
Hao de nos permitir deixar Pascal entregue aos argumentos de sua luta ideologica com 0 AlE religioso de sua epoca. E hao de esperar que usernos urn vocabulario rnais diretarnente marxista, pois estamos avanc;:ando por terrenos ainda
precariamente explorados.
Assim, diremos que, no que tange a um unico sujeito (tal ou qual individuo),
a existencia das ideias que formam sua crenc;:a e material, pois suas ideias sao

seus atas materia is, inseridos em prtiticas materiais regidas par rituais materiais, os
quais, por seu turno, sao definidos pelo aparelho ideologico material de que derivam
as ideias desse sujeito. Naturalmente, as quatro inscri<;-oes do adjetivo "material"
em nossa formulac;:ao devem ser vistas de formas diferentes: a materialidade de
urn deslocamento para ir amissa, do ajoelhar-se, do gesto do sinal da cruz ou do
mea culpa, de uma frase, uma orac;:ao, urn ata de cantric;:ao, urna penitencia, urn
olhar, urn aperto de maos, de urn discurso verbal externo ou de urn discurso
verbal "interno" (a cons.ciencia), nao sao uma e a me sma materialidade. Deixarei de lado 0 problema de uma teo ria das diferenc;:as entre as modalidades da
materialidade.


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOLOGICOS DE EST ADO

'3'

Persiste 0 fato de que, nessa apresenta<;ao invertida das coisas, na~ estamos
lidando com "inversao" alguma, ja que constatamos que algumas no<;oes pura e
simplesmente desapareceram de nossa nova exposi<;ao, enquanto Qutras, ao C011trafio, sobrevivem, e novas termos aparecem.
Desapareceu: 0 termo ideias.
Sobrevivem: os termos 5ujeito, consciencia, crenra, atas.
Aparecem: os termos praticas, rituais, aparelho ideologico.
Por conseguinte, nao se trata de uma derrubada (exceto no sentido em que se
poderia dizer que urn governo au um copo sao derrubados), mas de urn remanejamento (de tipo nao ministerial) - urn remanejamento muito estranho, ja
que chegamos ao seguinte resultado.
Desaparecem as ideias como tais (enquanto dotadas de uma existencia ideal
ou espiritual), na exata medida em que ficou claro que sua existencia esta inscrita nos atos ou prtiticas regidos por rituais que se definem, em ultima instancia,
por urn apareIho ideologico. Assim, evidencia-se que 0 sujeito age na medida
em que "e agido" pelo seguinte sistema (enunciado na ordem de sua determina<;:ao real): uma ideologia existente num aparelho ideologico material, que prescreve praticas materiais regidas por urn ritual material, praticas estas que existern nos atos materia is de urn sujeito que age, com plena con sci en cia, de acordo
com sua cren<;:a.
Mas essa propria apresenta<;:ao reveIa que preservamos as seguintes no<;:6es:
sujeito, consciencia, cren<;:a, atos. Dessa serie, extrairemos de imediato 0 termo
central decisivo, do qual depende tudo 0 mais: a no<;:ao de sujeito.
E formularemos prontamente duas teses conjuntas:
I. nao existe pratica, a nao ser atraves de uma ideologia, e dentro dela;
2. nao existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos.
Agora, podemos chegar anossa tese central.

A ideologia interpela as individuos como sujeitos


Esta tese apenas torna expHcita minha ultima proposi<;:ao: nao existe ideologia,
exceto peIo sujeito e para sujeitos. 0 que significa: nao existe ideologia a na~ ser
para sujeitos concretos, e essa destina<;:ao da ideologia so e possivel peIo sujeito,
ou seja, pela categoria de sujeito e seu funcionamento.
Com isso quero dizer que, mesmo que eia s6 apare<;:a com esse nome (0 sujeito) com 0 advento da ideologia burguesa, e sobretudo com 0 advento da ideologia juridica,14 a categoria do sujeito (que pode funcionar com outros nomes, como, a alma em Platao, Deus etc) e a categoria constitutiva de qualquer ideologia,
seja qual for sua determina~ao (regional ou de classe) e seja qual for sua data~ao
hist6rica - ja que a ideologia nao tern historia.

132

UM MAPA DA IDEOLOGIA

Dizemos que a categoria do sujeito e constitutiva de qualquer ideologia, mas,


ao meSilla tempo e imediatamente, acrescentamos que a categoria do sujeito 56 e
canstitutiva de qualquer ideologia na medida em que toda ideologia tern a fUIl,iio
(que a define) de "constituir" individuos concretos como sujeitos. E nesse jogo de
dupia constituir;:ao que tada ideologia funciona, nao sendo -a ideologia mais do
que seu funcionamento nas fafmas materiais de existencia desse funcionamento.
Para apreender 0 que se segue, e essencial reconhecer que tanto 0 autor destas
linhas quanta 0 leitar que as Ie sao, eles mesmos, sujeitos, e portanto, sujeitos
ideo16gicos (proposir;:ao tautoI6gica), ista e, que 0 autor e 0 leitar destas linhas
vivem, C<espontanea" all ((naturalmente", numa ideologia, no sentido em que
afirmamos que "0 homern e urn animal ideologico por natureza".
o fato de 0 autor, na rnedida em que escreve as linhas de urn discurso que se
pretende cientifico, estar completamente ausente, como "sujeito", de "seu" discurso cientifico (pois todo discurso cientifico, por definic;:ao, e urn discurso sem
sujeito, nao existe "sujeito da ciencia", a nao ser numa ideologia da ciencia) e
uma outra questao, que deixaremos de lado por enquanto,
Como disse adrniravelrnente Sao Paulo, e no "Logos" - entendamos, na
ideologia - que temos "0 ser, 0 movimento e a vida", Decorre dai que, para
voces e para mirn, a categoria do sujeito e uma "evidencia" basica (as evidencias
sao sempre basicas): e claro que voce e eu somos sujeitos (livres, morais etc).
Como todas as evidencias, inclusive as que fazem com que uma palavra "norneie
uma coisa" ou "tenha urn significado" (incluindo, portanto, as evidencias da
{(transparencia" da linguagem), essa "evidencial> de que voce e eu somos sujeitos
- e de que isso nao e urn problema - e urn efeito ideologico, 0 efeito ideol6gico elementar,I5 Com efeito, e uma peculiaridade da ideologia impor (sem aparentar faze-Io, Ja que se trata de "evidencias") as evidencias como evidencias,
que nao podemos deixar de reconhecer e diante das quais temos a inevitavel e
natural reac;:ao de exclamar (em voz alta ou no "silencio da consciencia"): "
evidente! E isso mesmo! E verdade!"
Nessa reac;:ao opera a func;:ao ideologica do reconhecimento, que e uma das
duas fun~6es da ideologia como tal (sendo seu inverso a fun~ao do desconhecimento [meconnaissance]).
Tomando urn exemplo altamente "concreto": todos temos amigos que, quando batem em nossa porta e perguntamos atraves dela "Quem 8", respondem (ja
que He evidente"): "Sou eu", E reconhecemos que "e ele" ou "ela", Abrimos a
porta e, "e verdade, e ela mesma que esta ali". Tomemos outro exemplo: quando
reconhecemos na rua alguern de nosso conhecimento (previo) [( re) -connaissaneel, mostramos que 0 reconhecemos (e que reconhecemos que ele nos reconheceu) dizendo-Ihe "Como e que vai, amigo!" e apertando sua mao (uma pnitica
ritual material do reconhecimento ideologico na vida cotidiana, peIo menos na
Franc;:aj em outros lugares, hi outros rituais).


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOLOGICOS DE EST ADO

133

Nesse comentario preliminar e nessas ilustra<;6es concretas, quero apenas


assinalar que voce e eu somas sempre jd sujeitos, e que, como tais, praticamos
constantemente os rituais do reconhecimento ideol6gica, 0 qual nos garante
que somas de fato sujeitos concretos, individuais, distinguiveis e (naturalmente) insubstituiveis. 0 texto que estoll redigindo neste momento e a leitura que
voce esta fazendo neste momento l6 tambem sao, nesse aspecto, rituais de reconhecimento ideol6gica, que incluem a evidencia" com que a "veracidade" au
a "equivocacrao" de minhas reflexoes podem impor-se a voce.
Mas, reconhecer que somas sujeitos e que funcionamos nos rituais pniticos
da mais elementar vida cotidiana (0 aperto de mao, 0 fato de eu 0 (a) chamar
pelo nome, 0 fato de ell saber, mesmo que nao saiba qual e ele, que voce "tern"
urn nome proprio, que significa que voce e reconhecido(a) como urn sujeito unico etc} s6 nos da a "consciencia') de nossa pnltica incessante (eterna) do reconhecimento ideol6gico - a consciencia dela, au seja, seu reconhecimento - , mas
nao nos fornece, em nenhum sentido, 0 conhecimento (cientifico) do mecanismo
desse reconhecimento. Ora, quando falamos em ideologia e de dentro da ideologia, eesse conhecimento que temos de atingir, se quisermos esboc;ar urn discurso
que tente romper com a ideologia, para que ele Duse ser 0 comec;o de urn discurso cientifico (ista e, sem sujeito) sabre a ideologia.
Assim, para representar por que a categoria do sujeito" e constitutiva da
ideologia, que s6 existe ao constituir sujeitos concretos em sujeitos, empregarei
urn modo especial de exposi~ao: suficientemente concreta" para ser reconhecida, mas abstrata 0 bastante para ser pensivel e pensada, dando origem a urn
conhecimento.
Como formula~ao inicial, direi: toda ideologia invoca ou interpela os individuos
como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito.
Essa e uma proposi~ao que exige fazermos uma distin~ao, par ora, entre os
individuos concretos, de urn lado, e as sujeitos concretos, de outro, embora, nesse nivel, as sujeitos concretos s6 existam na medida em que tern como suporte
urn individuo concreto.
Depois, vamos sugerir que a ideologia "age" au funciona" de maneira tal que
"recruta" sujeitos entre os individuos (ela as recruta a todos), au que "transforrna" os individuos em sujeitos (transforma-os a todos), por essa operas:ao muito
precisa que denominei de interpelafaO, e que po de ser imaginada nos moldes da
mais corriqueira interpelayao cotidiana da Policia (ou de Dutro): Ei, voce ail"17
Presumindo-se que a cena te6rica que imaginei ocorra na rua, 0 individuo
chamado se voltari. Par essa mera virada fisica de 180 graus, ele se torna sujeito.
Par que? Porque reconheceu que 0 chamado "realmente" se dirigia a ele, e que
"era realmente ele que estava sendo chamado" (e nao outra pessoa). A experiencia mostra que a comunicayao pratica dos chamamentos e tamanha que eles raramente erram seu alvo: quer se trate de uma interpelas:ao verbal ou de urn asso-

134

UM MAPA DA IDEOLOGIA

bio, 0 interpelado sempre reconhece que e realmente ele quem esta sendo charnado. E, no entanto, trata-se de urn fen6meno estranho, que na~ pode ser explicado apenas pelos "sentimentos de culpa", a despeito do grande mimero dos que
"tern urn peso na consciencia".
Naturalmente, a bern da conveniencia e da clareza de nosso teatrinho te6rico,
tivemos que apresentar as coisas sob a forma de uma sequencia, com urn antes e
urn depois, e portanto, sob a forma de uma sucessao temporal. Ha individuos
andando. Em algum lugar (geralmente, atras deles), saa 0 chamada: "Ei, vace
aW' Urn individuo (nove em cada dez vezes, 0 individuo certo) se volta, acreditanda/descanfianda/sabenda que e com ele, ista e, reconhecendo que "e realmente ele" quem e visado pela chamamento. Mas, na realidade, essas coisas
acontecem sem nenhuma sucessao. A existencia da ideologia e 0 charnamento ou
interpelaC;ao dos individuos como sujeitos sao uma e a mesma coisa.
Poderiamos acrescentar: 0 que parece ocorrer fora cia ideologia (para ser exato, na rua) ocorre, na realidade, na ideologia. 0 que de fato acontece na ideologia, portanto, parece acontecer fora dela. E por isso que quem esta na ideologia
acredita-se, por defini~ao, fora dela: urn dos efeitos da ideologia e a negafaa
pratica, pela ideologia, do carater ideal6gico da idealogia. A ideologia nunca diz
"sou ideologica". E preciso estar fora da ideologia, isto e, no saber cientifico, para
poder dizer: "eu estoll na ideologia" (caso muito excepcional) ou ((eu estava na
ideologia" (caso geral). Como se sabe, a acusa~ao de estar na ideolagia s6 se aplica aos outros, nunea ao proprio sujeito (a menos que se seja realmente espinozista ou marxista, 0 que, nessa materia, e ser exatamente a mesma eoisa). Isso
equivale a dizer que a ideologia nao tem um exterior (para si mesma), mas, ao
mesmo tempo, que ela nlw nada senao a exterior (para a ciencia e a realidade).
Espinoza explicou isso com perfeic;ao dois seculos antes de Marx, que 0 praticou, mas sem explid.-Io em detalhe. Mas deixemos de lado esse ponto, embora ele seja carregado de conseqiiencias, eonseqiiencias que sao nao apenas teoricas, mas tambem diretamente politicas, ja. que, por exemplo, toda a teo ria
da critica e da autocritica, a regra de ouro da praxis marxista-Ieninista da luta
de classes, depende delas.
Portanto, a ideologia interpela os individuos como sujeitos. Hi que a ideologia e eterna, devemos agora eliminar a forma temporal em que expusemos seu
funcionamento e dizer: a ideologia sempre ja. interpelou os individuos como sujeitos, 0 que equivale a deixar claro que os individuos sao sempre ja. interpelados
pela ideologia como sujeitos, 0 que nos leva, necessariamente, a uma ultima
proposiC;ao: as individuos sao sempre ja sujeitos. Dai os individuos serem ((abstratos" em relaC;ao aos sujeitos que eles sempre ja saO. Essa proposiC;ao talvez parec;a
paradoxa!.
Nao obstante, que 0 individuo esempre ja sujeito, antes mesmo de nascer, e a
simples realidade, acessivel a qualquer urn e nern urn pouco paradoxal. Freud


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

135

mostrou que as individuos sao sempre abstratos" em rela<;ao aos sujeitos que
eles sempre jli sao, simplesmente observando 0 ritual ideo16gico que cerca a exn
pectativa de urn "nascimento", esse "afortunado evento , TodD 0 munrlo sabe 0
quanta e de que maneira uma crian<;a ainda nao nascida e esperada. 0 que equivale a dizer, muito prosaicamente - se concordarmos em abandonar os "sentimentos", ista e, as fafmas de ideologia familiar (paterna/materna/conjugallfraterna) em que a crian<;a por nascer e esperada - , que e certo, de antemao, que
ela recebenl 0 nome do pai e, por conseguinte, teni uma identidade e sera
insubstituivel. Antes de nascer, portanto, a crian<;a e sempre ja um sujeito, apontada como tal na e pela configura~ao ideol6gica familiar especifica em que e
esperada" depois de concebida. Mal preciso acrescentar que essa configura<;ao
ideologica familiar e, em sua singularidade, altarnente estruturada, e que e nessa
estrutura irnplacavel e mais ou menos "patologica" (pressupondo que se possa
atribuir algurn sentido a esse terrno) que 0 antigo sujeito-por-vir tera que "encontrar" "seu" lugar, ou seja, "tornar-se" 0 sujeito sexual (menino ou menina)
que ja e de antemao. E claro que essa coenrao e pre-designa<;ao ideologicas, bern
como todos os rituais de cria<;ao e educacrao na familia, tern uma certa relacrao
com 0 que Freud estudou sob a forma das "fases" pre-genital e genital da sexualidade, isto e, da "captacrao" do que Freud registrou, por seus efeitos, como sendo
o inconsciente. Mas deixemos tambem este ponto de lado.
Permitam-me dar mais urn passo. Aquilo para 0 qual voltarei minha atencrao
agora e a modo como os atores" dessa mise en scene da interpela~ao e seus respectivos papeis refletem-se na propria estrutura de toda ideologia.

Urn exernplo: a ideologia religiosa crista


Como a estrutura formal de qualquer ideologia e sempre a mesma, restringiremos a analise a urn tinico exemplo, acessivel a todos, que e 0 da ideologia religiosa, com a ressalva de que essa mesrna dernonstracrao po de ser produzida para a
ideologia moral, juridica, politica, estetica etc.
Consideremos, pois, a ideologia religiosa crista. Usaremos uma figura de retorica para faze-Ia falar", isto e, para compilar num discurso ficcional 0 que ela
"diz", nao apenas ern seus dois Testamentos, seus teologos e seus sermoes, mas
tambem ern suas praticas, rituais, cerim6nias e sacrarnentos. A ideologia religiosa
crista diz alguma coisa assim: dirijo-me a voce, individuo humane charnado
Pedro (todo individuo e charnado par seu nome, no sentido passivo, nunca e ele
quem se da seu proprio nome), para Ihe dizer que Deus existe e que voce deve
responder perante Ele. E acrescenta: Deus dirige-Se a voce par minha voz (posta
que as Escrituras compilararn a palavra de Deus, a tradicrao a transmitiu, e a infalibilidade papal fixou-a para sempre em seus pontos "delicados"). Ela diz: eis
quem voce e: voce e Pedro! Esta e sua origem, voce foi criado par Deus para toda
a eternidade, embora tenha nascido em 1920 d.C.! Este e seu lugar no mundo!

136

i
,

UM MAPA DA IDEOLOGIA

Isto e 0 que voce cleve fazer! Por esses meios, se observar a "lei do amar", voce
sen! salvo, Pedro, e se tornara parte do glorioso Corpo de Cristo! Etc. ..
Ora, esse e urn discurso muito conhecido e banal, mas e, ao mesma tempo,
muito surpreendente.
Surpreendente porque, se considerarmos que a ideologia religiosa realmente
se dirige aos individuos 18 a fim de "transforma-los em sujeitos", interpelando 0
individuo Pedro para fazer dele urn sujeito, livre para obedecer au desobedecer
ao apeta, ista e, aos mandamentos de Deusj se eia invoca esses individuos por
seus nomes, assim reconhecendo que eles sao sempre ja interpelados como sujeitos dotados de urna identidade pessoal (a ponto de 0 Cristo de Pascal dizer: "Foi
por ti que derramei esta gota de meu sangue!"); se ela os interpela de tal maneira
que 0 sujeito responde "Sim, sou eu mesmof', se obtem deles 0 reconhecimento de
que eles realmente ocupam 0 lugar que ela lhes designa como seu no mundo,
como uma residencia fixa: "Sou eu mesmo, estou aqui, opera.rio, patrao ou soldado!" neste vale de lagrimas; se obtem deles 0 reconhecimento de urn destino
(vida ou maldi(j:ao eternas) consoante ao respeito ou desprezo que eles demonstrarem pelos mandamentos de Deus", Amor tornado Lei; se tudo isso efetivamente acontece dessa maneira (nas praticas dos rituais conhecidos do batismo,
crisma, comunhao, confissao e extrema-un(j:ao etc), cabe notar que todo esse
processo" para estabelecer sujeitos religiosos cristaos e dominado por urn fenomeno estranho: s6 poder haver tal multidao de possiveis sujeitos religiosos sob a
condi~ao absoluta de que haja urn Outro Sujeito Absoluto, Dnico, isto e, Deus.
Convem designar esse novo e notavel Sujeito grafando Sujeito com S maiusculo, para distingui-Io dos sujeitos comuns, com s minusculo.
Depreende-se, pois, que a interpela<;ao dos individuos como sujeitos pressupoe a existencia" de urn Dutro Sujeito, Vnico e Central, em cuja Nome a ideologia religiosa interpela todos os individuos como sujeitos. Tudo isso esta escrito
com clareza 19 no que e justamente chamado de as Escrituras.
E sucedeu que nesse momenta a Senhor Deus (Ieova) falou a Moises do meio
das nuvens. E a Senhor bradou a Moises, Moises!" E Moises respondeu:
Eis-me (realmente) aqui! Sou eu, Moises, vosso servo, falai e escutarei!" E a
Senhor falou a Moises e lhe disse: Eu sou 0 que sou."
Assim, Deus Se define como 0 Sujeito por excelencia, aquele que e por si e
para si CEu sou 0 que sou"), e que interpela seu sujeito. 0 individuo sujeitado a
ele por sua propria interpela(j:ao, isto e, 0 individuo chamado Moises. E Maises,
interpelado-chamado por seu nome, tendo reconhecido que era "realmente" ele
quem estava sendo chamado por Deus, reconhece que e urn sujeito, urn sujeito
de Deus, urn sujeito subrnetido a Deus, urn sujeito atraves do Sujeito e sujeitado ao
Sujeito. Prova disso e que ele Lhe obedece e faz seu povo obedecer aos rnandamentos de Deus.


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE ESTADQ

137

Deus, portanto, e 0 Sujeito, e Moises e os inurn eros sujeitos do povo de Deus,


os interlocutores-interpelados do Sujeito: seus espelhos~ seus rejlexos. Acaso os
homens flaD foram feitos aimagem de Deus? Como prova toda reflexao teologica, embora "pudesse" muito bern ter prescindido dos homens ... , Deus necessita
deles, 0 Sujeito precisa dos sujeitos, assim como os homens precisam de Deus,
como os sujeitos necessitam do Sujeito. Melhor ainda: Deus precisa dos homens, 0 Sujeito majusculo precisa de sujeitos, meSilla quando Dearre a terrivel
inversao de Sua imagem neles (quando os sujeitos espojam-se na devassidao,
ista e, no pecado).
Melhor: Deus Se duplica e envia Seu Filho a Terra, como urn mero sujeito
"abandonado" por Ele (0 Ion go lamento do Jardim das Oliveiras, que termina na
Cruxifica<;:ao) - sujeito mas Sujeito, homem mas Deus - , para fazer 0 que ira
preparar 0 terreno para a Reden<;:ao final, a Ressurrei<;:ao de Cristo. Portanto,
Deus precisa fazer-Se" homem, 0 Sujeito precisa tornar-se sujeito, como que
para mostrar empiricamente, de urn modo visivel aos olhos e tangivel as maos
(vide Sao Tomas) dos sujeitos, que, se eles sao sujeitos, sujeitados ao Sujeito, isso
e unicamente para que, no fim, no Dia do Juizo Final, eles reingressem no Seio
do Senhor, como Cristo, au seja, reingressem no Sujeito. 20
Decifremos em linguagem teorica essa esplendida necessidade da duplica<;:ao
do Sujeito em sujeitos e do proprio Sujeito num sujeito-Sujeito.
Observa-se que a estrutura de qualquer ideologia, ao interpelar os individuos
como sujeitos em nome de urn Sujeito Unico e Absoluto, e especular, ou seja, e
uma estrutura em espelho, e duplamente especular: essa duplica<;:ao em espelho
e constitutiva da ideologia e garante seu funcionamento. 0 que equivale a dizer
que toda ideologia e centrada, que 0 Sujeito Absoluto ocupa 0 lugar singular do
Centro e interpela a seu redor a infinidade de individuos a se tornarem sujeitos,
numa dupla rela<;:ao especular, de tal ordem que sujeita os sujeitos ao Sujeito, ao
mesmo tempo que Ihes da, no Sujeito em que cada sujeito pode contemplar sua
propria imagem (presente e futura), a garantia de que isso realmente concerne a
eles e a Ele, e de que, como tudo ocone dentro da Familia (da Sagrada Familia:
a Familia e essencialmente Sagrada), Deus nela reconhecera os seus" - au seja,
aqueles que reconheceram Deus e que se reconheceram n'Ele serao salvos.
Fa<;:amos urn resumo do que descobrimos sobre a ideologia em geral.
A dupla estrutura especular da ideologia garante, simultaneamente:
1. a interpela<;:ao dos "individuos" como sujeitos;
2. sua sujei<;:ao ao Sujeito;
3. 0 reconhecimento mutuo entre os sujeitos e 0 Sujeito, 0 reconhecimento
das sujeitos entre si e, par ultimo, 0 reconhecimento de si mesmo pelo sujeito;2!
4. a garantia absoluta de que tudo realrnente e assim e de que, desde que os
sujeitos reconhe<;:am 0 que sao e se comportem consoantemente, tudo ficara
bern: Amem -Assim seja".

J,

UM MAPA DA IDEOLOGIA

Resultado: apanhados nesse sistema quadruplo de interpelac;:ao como sujeitos, de submissao ao Sujeito, de reconhecimento universal e de garantia absoluta,
os sujeitos "trabalham", e "trabalham sozinhos", na vasta maioria dos casos, com
excec;:ao dos maus sujeitos", que vez por outra provo cam a intervenc;:ao de urn
dos destacamentos do Aparelho (Repressivo) de Estado. Mas a vasta maioria de
(bons) sujeitos trabalha direitinho "por ela mesma", isto e, pela ideologia (cujas
formas concretas realizam-se nos Aparelhos Ideologicos de Estado). Eles se inserem em praticas regidas pelos rituais dos AlEs. "Reconhecem" 0 existente [das
Bestehende]' que e realmente verdade que as coisas sao assim, e nao de Dutra
maneira", e que eles devem obedecer a Deus, a sua consciencia, ao padre, a de
Gaulle, ao chefe, ao engenheiro, que "amaras 0 proximo como a ti mesmo" etc.
Seu comportamento concreto, material, e simplesmente a inscric;:ao, na vida, das
admiraveis palavras da orac;:ao: "Amem - Assim seja".
Sim, os sujeitos "trabalham sozinhos". Todo 0 misterio desse efeito reside nos
dois primeiros momentos do sistema quadruplo que acabei de discutir, ou, se
voce preferir, na ambigiiidade do termo sujeito. No sentido corrente do termo,
sujeito efetivamente significa: (1) uma subjetividade livre, urn centro de iniciativas, autor e responsavel por seus atos; (2) urn ser sujeitado, que se submete a uma
autoridade superior e que, portanto, e desprovido de qualquer liberdade, exceto
a de aceitar livremente sua submissao. Esta ultima observac;:ao nos da 0 sentido
dessa ambigiiidade, que e meramente urn reflexo do efeito que a produz: 0 individno einterpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente aos mandamentos do Sujeito, isto e, para que aceite (livremente) sua sujeir;ao, ou seja, para que
"execute sozinho" os gestos e atos de sua sujeic;:ao. Nao hd sujeitos senao por e para
sua sujeifiio. Epor isso que e1es "funcionam sozinhos".
"Assim seja!... " Essa frase, que registra 0 efeito a ser obtido, prova que as coisas
nao sao naturalmente" assim ("naturalmente": fora da orac;:ao, isto e, -fora da intervencrao ideologica). Essa frase prova que tem que ser assim, para que as coisas
sejam como devem ser; soltemos as palavras: para que se garanta a reproduc;:ao das
relac;:oes de produc;:ao, inclusive nos processos de prodw-rao e circulac;:ao, todos os
dias, na "consciencia", isto e, no comportamento dos individuos-sujeitos que
ocupam os lugares que a divisao tecnica e social do trabalho Ihes atribui na produc;:ao, explorac;:ao, repressao, ideologizac;:ao, pratica cientifica, etc. Com efeito, 0 que
esta real mente em quesUio nesse mecanismo do reconhecimento especular do Sujeito e dos individuos interpelados como sujeitos, e da garantia dada pelo Sujeito
aos sujeitos, se eles aceitarem livremente sua sujeic;ao aos "mandamentos" do Sujeito? A realidade envolvida nesse mecanismo, a realidade necessariamente desconhecida [meconnuel nas proprias formas de reconhecimento (ideologia = desconhecimento/ignorancia), e de fato, em ultima instancia, a reproduc;:ao das relaC;:6es
de produ,iio e das rela,6es delas derivadas.

janeiro-abril de 1969


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

139

P.S. Estas poucas teses esquematicas permitem esclarecer alguns aspectos do funcionamento da superestrutura e de seu modo de intervenc;:ao na infra-estrutura,
mas sao obviamente abstratas e, necessariamente, deixam senl resposta diversos
problemas importantes, que devem ser mencionados:
1. 0 problema do processo global da realiza~ao da reprodu~ao das rela~6es de
produ~ao.

Como urn dos componentes desse processo, os AlEs contribuern para essa reproduc;ao. Mas esse ponto de vista, de sua simples contribuic;:ao, ainda e abstrato.
E so mente dentro dos processos de produc;:ao e circulac;:ao que essa reprodu<;:ao se realiza. Ela e realizada pelo mecanismo desses processos, nos quais a formac;:ao dos trabalhadores se "conclui", seus postos lhes sao atribuidos etc. Enos
mecanismos internos desses processos que a efeito das diferentes ideologias se
faz sentir (sobretudo 0 efeito da ideologia juridico-moral).
Mas esse ponto de vista ainda e abstrato. Pois, numa sociedade de classes, as
relac;:oes de produc;:ao sao relac;:oes de explorac;:ao e, por conseguinte, relac;:oes entre classes antagonicas. A reproduc;:ao das relac;:oes de produc;:ao, objetivo ultimo
da classe dominante, nao pode, pois, ser uma simples operac;:ao tecnica que prepare e distribua os individuos nos diferentes pastas da '~divisao tecnica" do trabalho. Na verdade, nao existe "divisao tecnica" do trabalho, a nao ser na ideologia da classe dominante: toda divisao "tecnica", toda organizac;:ao "tecnica" do
trabalho e a forma e a mascara de uma divisao e organizac;:ao sociais (= de classes)
do trabalho. A reprodu~ao das rela~6es de produ~ao, portanto, s6 pode ser urn
empreendimento de classe. Realiza-se atraves de uma luta de classes que opoe a
classe dominante a classe explorada.
Assim, 0 processo global de realiza~ao da reprodu~ao das rela~6es de produ~ao
permanece abstrato, enquanto nao for enfocado sob 0 ponto de vista dessa luta
de classes. Adotar 0 ponto de vista da reproduc;:ao, portanto, equivale, em ultima
instancia, a adotar 0 ponto de vista da luta de classes.
2. 0 problema da natureza de classe das ideologias existentes numa fonnac;:ao
social.
o "mecanismo" da ideologia em geral e uma coisa. Vimos que ele pode ser
reduzido a alguns principios, expressos em poucas palavras (tao "precarias"
quanta as que, segundo Marx, definem a prodwrao em geral, ou as que, em
Freud, definem 0 inconsciente em geral). Se ha nele alg11ma verdade, esse mecanismo e abstrato em relac;:ao a todas as formac;:oes ideologicas reais.
Sugeri que as ideologias realizavam-se em institui'roes, em seus rituais e suas
praticas, nos AlEs. Vimos que, com base nisso, elas contribuem para essa forma
de luta de classes que e vital para a classe dominante, a reprodu~ao das rela~6es
de produc;:ao. Mas 0 ponto de vista em si, por rna is real que seja, ainda e abstrato.
De fato, a Estado e seus aparelhos s6 tern sentido do ponto de vista da luta de
classes, como urn aparelho da luta de classes que assegura a opressao das classes e

~t

14 0

UM MAPA DA IDEOLOGIA

garante as condi'foes de explorac;ao e sua reprodwr3.o. Mas flaO ha luta de classes


sem classes antagonicas. Quem fala em luta de c1asse da classe dominante fala em
resistencia, revolta e luta de classe da classe dominada.
E por isso que os AlEs flaD sao a realizac;:ao da ideologia em geral, nem tampouco a realiza,ao sem conflito da ideologia da classe dominante. A ideologia da
classe dominante nao se transforma na ideologia dominante pela grac;a divina,
nem em virtude da simples tomada do poder estatal. E atraves da instaurac;ao dos
AlEs, em que essa ideologia e realizada e se realiza, que ela se torna a dominante.
Mas essa instaurac;ao flaD se faz sozinha; ao contraria, e 0 piv6 de uma luta de
classes muito acirrada e continua, primeiro contra as classes dominantes ante riores e sua posicrao nos velhos e novos AlEs, e depois contra a classe explorada.
Mas esse ponto de vista da luta de classes nos AlEs continua a ser abstrato.
De fato, a luta de classes nos AlEs e rnesrno urn aspecto da luta de classes,
as vezes irnportante e sintornatico: por exernplo, a luta anti-religiosa do secu10 XVIII, ou a crise do AlE escolar em todos os paises capitalistas de hoje. Mas
as lutas de classes nos AlEs sao apenas urn aspecto de uma luta de classes que vai
alom deles. A ideologia que uma classe detentora do poder transforma na ideologia dominante, em seus AlEs, de fato se realiza" nesses AlEs, porern vai muito
alem deles, po is vern de outro lugar. Sirnilarmente, a ideologia que uma classe
dorninada consegue defender, dentro e contra esses AlEs, vai alem deles, pois
vern de outro lugar.
E so mente do ponto de vista das classes, isto e, da luta de classes, que se podem explicar as ideologias existentes numa formacrao social. Nao s6 e desse ponto
de partida que se pode explicar a realiza,ao da ideologia dominante nos AlEs,
bern como das formas de luta de classes de que os AlEs sao a sede e a pivo, como
tarnbem, e acima de tudo, e desse ponto de partida que e possivel cornpreender a
proveniencia das ideologias que se realizam nos AlEs e que neles se confrontam.
Pois, se e verdade que as AlEs representam a forma em que a ideologia da classe
dominante tern que, necessaria mente, se realizar, e a forma com ql,le a ideologia
da classe dominada tern que, necessaria mente, ser comparada e confrontada, as
ideologias nao "nascern nos AlEs, e sim nas classes sociais que estao em confronto na luta de classes: em suas condicr6es de existencia, suas praticas, sua experiencia da luta etc.
abril de 1970
NQTAS

I. Este texto compoe-se de dais excertos de urn estudo em andamento. 0 SUbtitlllo, "Notas para
uma investiga~ao", edo pr6prio autor. As idCias expostas nao devem ser encaradas como mais
que a introduc;:ao a uma discussao.
2. Marx a Kugelmann, II de julho de 1868, Selected Correspondence, Moscou, 1955, p. 209.

3. Marx dell-lhe sell conceito cientifico: capital varia vel.


IDEOLOGIA E APARELHOS IDEOL6GICOS DE EST ADO

'4'

4. Em For Marx (Londres, 1969) e Reading Capital (Londres, 1970).

5. T6pi((l, do grego topos, lugar. A t6pica representa, num espa~o definido, as respectivos sftios
ocupados por diversas realidades: assim, 0 economico esta embaixo (oa base), e a superestrutura, em cima.
6. Ao que eu saiba, Gramsci foi 0 unico a percorrer uma certa distancia oa trilha que estoll
tornando. Ele teve a ideia "notavel" de que 0 Estado nao podia seT reduzido ao Aparelho
(Repressivo) de Estado, mas incluia, a seu ver, urn certo numero de instituit;:oes da "sociedade
civil": a Igreja, as escolas, as sindicatos etc. Infelizmente, Gramsci nao sistematizou suas
intui/foes, que pennaneceram em estado de flotas argutas, mas fragmentadas (cf. Gramsci,
Selections from the Prison Notebooks, International Publishers, 1971, p. 12, 259, 260-63; ver
tam bern a carta a Tatiana Schucht de 7 de setembro de 1931, em Gramsci's Private Letters.
Lettere del Carcere, trad. Hamish Henderson, Londres, 1988, p. 159-62.
7. A familia, obviamente, tern outras "fun.;oes" alem das de urn AIE. Ela intervem na reprodw;ao
da for.;a de trabalho. Nos diferentes modos de produ~ao, e unidade de produ.;ao e/ou unidade
de consumo.
8. A "Lei" pertence tanto ao Aparelho (Repressivo) de Estado quanto ao sistema dos AlEs.
9. Num texto patetieo, eserito em 1937, Krupskaya narrou a hist6ria dos esfor~os desesperados
de Lenin e 0 que ela considerou ter side 0 fraeasso dele.
10. Evidentemente. 0 que eu disse nessas breves palavras sobre a luta de classes nos AlEs esta longe
de esgotar a questao da luta de classes.
Para abordar essa questao. ha que ter dois principios em mente:
o primeiro principio foi formulado por Marx no Prefacio da ContribuifllO ii: critica da econo11Iia politica: "Ao eonsiderar essas transforma~oes [uma revolw;:ao social], convem sempre fazer uma distin.;ao entre a transforma~ao material das condi.;oes economicas de produ~ao, que
podem ser determinadas com a precisao da ciencia natural, e as formas juridieas, politieas,
religiosas. esteticas ou filosoficas - em suma. as formas ideol6gicas - em que os homens
conscientizam-se desse conflito e 0 eonduzem." A luta de classes, portanto. e expressa e exercida sob form as ideol6gicas, e tambem. sendo assim, nas formas ideol6gicas dos AlEs. Mas a
luta de classes estende-se 11Iuito albn dessas formas, e e par se estender para alem delas que a
luta das classes exploradas tam bern deve ser exercida nas formas dos AlEs, voltando, com isso,
a arma da ideologia contra as classes que ocupam 0 poder.
Isso, em virtude do segundo principio: a luta de classes vai alem dos AlEs porque se enraiza
noutro lugar que nao a ideologia, na infra-estrutura, nas rela~6es de prodw;ao, que sao rela.;oes de explora~ao e constituem a base das rela~oes de classe.
11. Em sua maior parte, pais as rela.;oes de produ.;ao sao inicialmente reproduzidas pela materialidade dos processos de prodw;:ao e eircula.;ao. Mas nao se deve esquecei que as rela.;oes
ideol6gicas acham-se imediatamente presentes nesses mesmos processos.

12. Quanta ii parte da reprodw;ao para a qual 0 Aparelho (Repressivo) de Estado e 0 Aparelho
Ideol6gico de Estado contribrtem.
13. Uso deliberadamente esse termo modernissimo. Pais, ate nos circulos comunistas, in felizmente, e comum "explicar-se" urn desvio poHtico (urn oportunismo de direita ou de esquerda) pela a~ao de uma "panelinha".
14. Que tomou de emprestimo a categoria juridica de "sujeito da lei", para fazer dela uma no<;ao
ideologica: a homem e, por natureza, urn sujeito.
15. Os linguistas e os que recorrem a lingiiistica para varios fins deparam, freqiientemente, com
dificuldades que surgem por eles desconhecerem a a<;ao dos efeitos ideol6gicos em todos os
discursos - ate mesmo nos diseursos cientificos.
16. Esse duplo "neste momento" e mais uma prova de que a ideologia e "eterna",ja que esses dois
"neste momento" sao separados por um intervalo indefinido; estou eserevendo estas linhas
em 6 de abril de 1969, e voce pode Ie-las em qualquer ocasiao posterior.

==3 T

5'

142

UM MAPA DA IDEOLOGIA

17. 0 chamamento. como pnitica cotidiana sujeita a urn ritual precisQ, assume uma forma muita
"especial" na pr<itica de "interpela~ao" do policial concernente a interpelas:ao dos "suspeitos".
18. Embora saibamos que a individuo e sernpre ja sujeito, continuamos a usar esse terma, que e
conveniente pela efeito contrastante que produz.
19. Falfo a citac;:ao de modo associativo, nao ao pi! da ietra, mas "no espirito da verdade".
20. 0 dogma da Trindade e justamente a teoria da dup1icas:ao do $ujeito (0 Pail num sujeito
(0 Filho) e da liga'Tao especular entre eles (0 Espirito Santo).
21. Hegel e (sem saber) urn "te6rico" adminivel da ideologia, na medida em que e urn "te6rico"
do Reconhecimento Universal, que infelizmente termina na ideologia do Saber Absoluto.
Feuerbach e urn "teorico" assornbroso da ligay<lo especular, que infelizmente termina na ideologia da Essencia Humana. Para encontrar 0 material com que construir uma teoria da garantia, devemos voltar-nos para Espinoza.

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