A Teia de Penélope
A Teia de Penélope
A Teia de Penélope
Abril de 2014
Abril de 2014
iii
AGRADECIMENTOS
iv
INS JORGE
RESUMO
ABSTRACT
Taking into account that craft is experiencing a moment of notable vigor and that
the perception towards it suffered different variations overtime, this study aims at
assessing the status and meaning of craft in the context of contemporary art practice.
Considering some of the possible developments of this reflection, the present
work is divided into three chapters.
After an introduction which briefly considers the history of the handmade before
Contemporary Period, beginning in Classical Antiquity and culminating with the
separation between beauty and utility that was generated in the eighteenth century, the
first chapter analyses the disputes and dialogues between folk art, fine art and industry,
from the Industrial Revolution and the Arts and Crafts movement of the nineteenth
century to the digital era that emerged in the 1980s.
The second chapter inquires the decorations interweaving with the dichotomy
between high culture and low culture, since its formulation in the nineteenth century
and up to today. In the course of these relations, we will emphasise the identification of
mass culture with the feminine and the ornament from the perspective of Modernism, in
addition to its reevaluation and criticism within Postmodernism, as well as within
feminism, in the 1970s and 1980s. We also investigate the way in which feminist
craftivism inspired a renewed alliance between craft and activism in our day.
Finally, the fourth, and final, chapter focuses on the work of four contemporary
artists-artisans whose works address the analysed subjects in a systematic manner.
Creations as disparate and geographically distant as those of Cristina Rodrigues from
Portugal and El Anatsui from Ghana, of Anne Wilson from the U.S.A. and Kathrin
Stumreich from Austria will be discussed.
vi
vii
NDICE
Introduo.........
11
20
............ 36
1.4.
44
1.5.
o Sculo XXI.......
50
62
Histria da Arte..
2. 3.
69
Cristina Rodrigues...... 86
3.2.
Stumreich........ 97
Consideraes Finais 112
Bibliografia.. 121
Apndice A: Anexos............... i
Crditos Fotogrficos.. xxxiv
viii
LISTA DE ABREVIATURAS
Apud
Citao indirecta
Cf.
Conferir
Co.
Companhia (company)
Ed.
Edio
Et al.
E outros (autores)
Ltd.
Empresa privada
Nmero
Op. Cit.
P.
Pgina
Prod.
Produo
Trad.
Traduo
Url
Pgina web
Vol.
Volume
ix
Telmaco, de falar altivo e de nimo indomvel! Que disseste tu, para nos cobrir de
vergonha, desejoso de macular-nos a reputao? A culpa no a imputes aos pretendentes
aqueus, mas a tua mi que, mais que outrem hbil em ardis. H j trs anos, e em breve
chegar o quarto, que ela anda a enganar o corao que bate no peito dos Aqueus. A todos d
esperanas e envia a cada um mensagens com promessas; mas outros so os planos que
maquina o seu esprito. Eis um novo ardil que ela cogitou em sua mente: tendo levantado no
palcio um grande tear, ps-se a tecer um vu fino e imenso; depois veio dizer-nos: Jovens,
meus pretendentes, j que o divino Ulisses morreu, no apresseis as minhas bodas, at que eu
termine a mortalha para o heri Laertes, temo que se perca quanto Penlope teceu para o
tempo em que o fatal destino da prostradora morte o fizer sucumbir; no suceda que alguma
das Aqueias por esta terra me censure de ser enterrado sem mortalha quem possua tantos
bens. Assim disse ela e o nosso intrpido corao deixou-se convencer. Ento, durante o dia,
trabalhava numa grande teia; desfazia-a, porm, de noite, depois de ao seu lado ter acendido
os fachos. Dste modo conseguiu, durante trs anos, esconder o ardil e que os Aqueus
acreditassem nela; mas quando entro o quarto e as estaes se sucederam, uma das suas
mulheres, que o conhecia bem, contou-o a ns, que fomos surpreende-la a desmanchar a sua
esplndida teia. Foi assim que ela, mau grado seu, se viu obrigada a conclu-la.
Homero, Odisseia, sc. VIII-VII a.C.
Contemporary art is significant not only for its own sake but for the questions it raises about
the way we live, our notions of what art is, of what is and is not appropriate as a means of
making art.
Sue Green, Book Review. By Hand: The Use of Craft in Contemporary Art, 2008
INTRODUO
No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deos, e o Verbo era Deos. FIGUEIREDO, Antnio P.
de, O Santo Evangelho de Jesu Christo segundo So Joo, A Biblia Sagrada contendo o Velho e o Novo
Testamento; traduzida em portuguez, segundo a vulgata latina, por Antonio Pereira de Figueiredo,
Londres: W. Clowes e Filhos, 1865, pp. 1032-1062.
2
MUTHESIUS, Stefan, Handwerk/Kunsthandwerk, Journal of Design History Special Issue: Craft,
Modernism and Modernity, vol. 11, n 1, 1998, pp. 85-91.
significa retroceder e avanar entre lnguas 3. Num plano mais abrangente, tal implicar
a considerao da diferena entre a origem germnica do ingls e a raiz latina do
portugus, dado que cada uma delas se insere numa determinada conjuntura
sociocultural que concebe de um modo especial a ligao entre a arte e a indstria.
No que diz respeito origem do conceito britnico craft, vrios autores
reiteraram a sua provenincia da palavra Sax para poder, fora () em Alemo este
o significado da palavra Kraft4, a qual pode aludir astcia, em particular, ou a
uma faculdade5, em geral. Com efeito, nos primrdios da Humanidade, os artesos
eram prestigiados fabricantes de objectos que emanavam autoridade e magia, energia
protectora e simbolismo, como era o caso de amuletos, talisms e outros utenslios que
se associavam aos fenmenos sobrenaturais. Mais tarde, estes artigos foram substitudos
pelo dinheiro na representao do poder e da utilidade, o que determinou a sua
circunscrio a um cariz utilitrio e destituiu o artfice da sua superioridade inicial.
Ao longo dos tempos, o significado do artesanato foi sofrendo mltiplas
transformaes, correspondendo, hoje em dia, ao termo craft que, na lngua inglesa,
sinnimo de handicraft (cujo prefixo hand remete para a aco da mo) e de
artisanship. Consequentemente, designados por artisans6 ou craftsmen, os seus
praticantes equivalem aos artesos, em portugus. Por seu turno, os substantivos
craft(smanship) e artisan(ship) pressupem um trabalho tcnico7, hbil ou perito
(skilled) e uma habilidade especial que algum usa para fazer algo belo com as suas
Traduo do original: It is essential to state, at the outset, that for this exercise it is not enough simply
to present English translations of foreign words (). Rather, what is needed are definitions, using a
wide vocabulary of adjacent words as well as their etymology, which means going backwards and
forwards between languages. MUTHESIUS, Stefan, op. cit., 1998, pp. 85-91.
4
Traduo do original: Craft stems from the Saxon word for power, force or strength in German this is
the meaning of the word Kraft. LESLIE, Esther, Walter Benjamin: Traces of Craft, Journal of Design
History, Vol. 11, n 1, Special Issue: Craft, Modernism and Modernity, Oxford: Oxford University Press,
1998, pp. 5-13. Cf. tambm SLIVKA, Rose, The Persistent Object, The Crafts of the Modern World,
Rose Slivka e Aileen O. Webb (eds.), Nova Iorque: Horizon Press, 1968, pp. 12-17; DUTTON, Denis,
The Difference Between Art and Craft, Borderlands of Art, Radio New Zealand, 11 de Julho de 1990,
emisso radiofnica.
5
Traduo do original: craft, kraft, krft,n. [O.E. craeft, craft, cunning, force, a craft = G. Sw. Icel. and
Dan. Kraft, D. kracht, power, faculty ()] (). KELLERMAN, Dana F., The New Grolier Webster
International Dictionary of the English Language, vol. 1, Nova Iorque: Grolier Inc., 1971, p. 235.
6
Traduo do original: A further English term comes to mind artisan together with the French
artisanat. The way it refers to the skilled worker, in contrast to the unskilled one, indeed corresponds to
the notion of skill in Handwerk (). MUTHESIUS, Stefan, op. cit., 1998, pp. 85-91.
7
Traduo do original: Artisan () n [C] someone who does skilled work with their hands. craft ()
n. () Dexterity in a particular manual occupation; () and occupation or employment requiring skills
(). O mesmo sentido inerente aos vocbulos handicraft, craftsman e craftsmanship, entre outros.
KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 1, 1971, pp. 62 e 235.
SOFISTICADO
enquanto expresso, objecto que fruto da criao esttica de algum que no tem
8
Traduo do original: craftsmanship () n.() 1 the special skill that someone uses to make
something beautiful with their hands (). SUMMERS, Della (ed.), Longman Dictionary of
Contemporary English New Edition, Essex: Longman Group Ltd., 1995, p. 316.
9
Traduo do original: I have selected four such flash points of craft practice, themes that show up
repeatedly in the writings of critics and practitioners: hand, material, skill, function. SHINER, Larry,
Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and Design, Philosophy
Compass [Em linha], Volume 7, N 4, Abril de 2012, [consultado em 16-04-2013], posto em linha a 19 de
Maro de 2012, url: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1747-9991.2012.00479.x/full>, pp.
230-244.
10
William Morris, principal defensor das artes decorativas na segunda metade do sculo XIX, exclamara:
() mark the word, Trade, not Craft! MORRIS, William, The Revival of Handicraft, The Craft
Reader, Glenn Adamson (ed.), 2010 [1888], pp. 146-156.
11
Traduo do original: Popular, () a. () Pleasing to or liked by the people in general; ()
pertaining to or of the common people; easy to comprehend; plain; familiar; constituted by or depending
on the people. KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 2, 1971, p. 741.
12
SILVA, Jorge H. Pais da e CALADO, Margarida, Dicionrio de Termos de Arte e Arquitectura,
Barcarena: Editorial Presena, 2005, p. 44.
13
KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 1, 1971, p. 437.
14
KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 1, 1971, p. 235.
15
Academia das Cincias de Lisboa e Fundao Calouste Gulbenkian (ed.), Dicionrio da Lngua
Portuguesa Contempornea da Academia das Cincias de Lisboa, Lisboa: Editorial Verbo, vol. 1, 2001,
p. 368.
Academia das Cincias de Lisboa e Fundao Calouste Gulbenkian (ed.), op. cit., vol. 1, 2001, p. 367.
HUYSSEN, Andreas, After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism, Teresa de
Lauretis (ed. geral), Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1986, p. 4.
17
Cf. GREER, Betsy, craft + activism = craftivism, posto em linha em 2003, [Em linha], url:
<http://craftivism.com/>, [consultado em 16-08-2013].
19
Cf., por exemplo, TAYLOR, Jerome (trad.), Chapter Twenty: The Division of Sciences into Seven,
The Didascalicon of Hugh of St. Victor: a medieval guide to the arts, Londres e Nova Iorque: Columbia
University Press, 1961, pp. 74-75 apud VTOR, Hugo de So, Didascalicon, Livro I, captulo 20, 760A,
c. 1136; SLIVKA, Rose, The Persistent Object, op. cit., 1968, pp. 12-17; RISATTI, Howard, A Theory
of Craft: Function and Aesthetic Expression, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2007;
MCCULLOUGH, Malcolm, Abstracting Craft: The Practiced Digital Hand, Massachusetts: MIT Press,
1996.
20
Cf. GREENHALGH, Paul (ed.), The Persistence of Craft: the applied arts today, New Jersey: Rutgers
University Press, 2003.
intelectuais21. Por esta razo, urgente repensar o valor da criao manual, num
momento em que tudo pode ser uma obra de arte22. Assim, torna-se fundamental
aferir a posio do artesanato na prtica artstica, como tm vindo a propor Peter
Dormer23, Howard Risatti24, Larry Shiner25, Glenn Adamson26 e Tanya Harrod27.
De resto, a pertinncia deste tema facilmente corroborada pela visibilidade
internacional que alguns artistas dedicados ao artesanato tm adquirido. A ttulo de
exemplo, salientamos a participao na Bienal de Veneza de artistas-artesos como o
ganiano El Anatsui, que se apropria de objectos encontrados para reinventar a tecelagem
tpica do seu pas (1990 e 2007), o australiano Ricky Swallow, com esculturas em
madeira (2005), a britnica Tracey Emin que articula bordados e nones, fotografia e
vdeo, desenho, escultura e pintura (2007) e a portuguesa Joana Vasconcelos que
concilia produtos industriais e tcnicas tradicionais como o croch e o azulejo (2013).
Significativa foi tambm a premiao de artistas como Tracey Emin (1999), Grayson
Perry (2003), Yinka Shonibare (2004) e Simon Starling (2005) com o prestigiado Turner
Prize, em virtude das suas criaes em tecido, cermica e madeira. Por outro lado,
mltiplas e notveis exposies tm sido organizadas em torno da manualidade, como
foi o caso de Out of the Ordinary: Spectacular Craft, organizada no Victoria and Albert
Museum de Londres (2007-08), The New Materiality: Digital Dialogues at the
Boundaries of Contemporary Craft, patente no Fuller Craft Museum de Massachusetts
21
Cf. ROBERTSON, Jean, Feminism and Fiber: A History of Art Criticism, Surface Design Journal,
26, n 1, Outono de 2001, pp. 39-46; RISATTI, Howard, op. cit., 2007, pp. 2-3; CLARK, Garth, How
Envy Killed the Crafts, op. cit., Glenn Adamson (ed.), 2010 [2008], pp. 445-456; BUSZEK, Maria Elena
(ed.), Extra/Ordinary craft and contemporary art, Durham: Duke University Press, 2011.
22
Esta afirmao de Boris Groys remonta mxima utpica de Joseph Beuys (1921-1986) everybody is
an artist que, por seu turno, remete para o Marxismo e para as vanguardas russas. GROYS, Boris, The
Weak Universalism, e-flux journal [Em linha], n 15, Nova Iorque, Abril de 2010 [consultado em 08-052013], posto em linha a 15 de Abril de 2010, url: <http://www.e-flux.com/journal/the-weakuniversalism/>.
23
Cf., por exemplo, DORMER, Peter, The Meanings of Modern Design: Towards the Twenty-First
Century, Londres: Thames & Hudson, 1991; DORMER, Peter, The Culture of Craft, Manchester:
Manchester University Press, 1997.
24
Cf. , por exemplo, RISATTI, Howard, op. cit., 2007.
25
Cf. , por exemplo, SHINER, Larry, The Invention of Art: A Cultural History, Chicago: University of
Chicago Press, 2001; SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its
Relation to Art and Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
26
Cf. , por exemplo, ADAMSON, Glenn (ed.), Thinking Through Craft, Oxford / Nova Iorque: Berg,
2007; ADAMSON, Glenn, The Craft Reader, Nova Iorque: Berg, 2010; ADAMSON, Glenn, The
Invention of Craft, Oxford / Nova Iorque: Bloomsbury, 2013.
27
Cf. , por exemplo, HARROD, Tanya, House-Trained Objects: Notes Toward Writing an Alternative
History of Modern Art, Colin Painter (ed), Contemporary Art and the Home, Oxford / Nova Iorque:
Berg, 2002, pp. 55-74; HARROD, Tanya, The Crafts in Britain in the Twentieth Century, New Haven /
Londres: Yale University Press, 1999; ADAMSON, Glenn, COOKE, Edward S. e HARROD, Tanya (ed.),
The Journal of Modern Craft, Oxford / Nova Iorque: Berg, 6 volumes, 2008-2013.
28
Cf. tambm a acepo filosfica do termo, elaborada por Giorgio Agamben. AGAMBEN, Giorgio,
What is the contemporary?, What is an apparatus?: And Other Essays, David Kishik e Stefan Pedatella
(trad.), Stanford: Stanford University Press, 2009, pp. 39-54.
29
KRISTELLER, Paul O., The Modern System of the Arts: A Study in the History of Aesthetics,
Journal of the History of Ideas, vol. 12, n 4, Outubro de 1951, pp. 496-527.
30
Cf. SHINER, Larry, op. cit., 2001.
() ao contrrio daqueles que possam pensar que devemos definir o artesanato nos seus
prprios termos, o artesanato enquanto categoria tem sido relacional desde o incio, posicionado
entre a produo industrial a montante e as belas-artes a jusante32. [grifo do autor]
31
Cf. KANT, Immanuel, Crtica da Faculdade de Juzo Esttica, Crtica da Faculdade do Juzo, Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992 [1790], pp. 89-267.
32
Traduo do original: Third, contrary to those who might think we should define craft on its own
terms, craft as a category has been relational from the beginning, positioned between industrial
production on one side and fine art on the other. SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking
the Concept of Craft and its Relation to Art and Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
33
Traduo do original: We forget that autonomy is a diacritical term like any other, defined in relation
to its opposite, that is, to subjection. FOSTER, Hal, Design and Crime: and other diatribes,
Londres/Nova Iorque: Verso Books, 2003, p. 102.
globalidade
do
tema
em
questo.
Comprometer-nos-emos
34
trama substantivo feminino 1. Fio que a lanadeira estende por entre os fios da urdidura. ()
substantivo de dois gneros 6. Enredo; intriga; maquinao; conspirao. (grifo do autor) trama,
Dicionrio
Priberam
da
Lngua
Portuguesa,
[Em
linha],
2008-2013,
url:
<http://www.priberam.pt/dlpo/trama> [consultado em 12-12-2013].
35
Cf. BAUMAN, Zigmunt, Liquid Modernity, Cambridge: Polity, 2000.
10
I.
O ARTESANATO ANTES DO ARTESANATO. DA TECHN CLSSICA
RUPTURA SETECENTISTA ENTRE A BELEZA E A UTILIDADE
Por via de uma breve anlise aos principais perodos histricos que precederam a
era contempornea, o presente captulo destina-se a evidenciar que o confronto terico e
institucional entre o artesanato e as belas-artes apenas se formou no sculo XVIII.
No pensamento clssico, o artesanato integrava um conjunto de actividades to
diversas quanto a poesia, a medicina e a escultura, quer na Antiga Grcia, sob o conceito
de techn, quer na Repblica e no Imprio Romano, por via do termo ars. Ambos os
vocbulos reportavam no a uma classe de objectos especfica, mas sim habilidade
humana para fazer e materializar algo abstracto. Como tal, na cultura greco-romana no
existia uma distino entre as artes plsticas e as artes manuais.
Embora diversos estudiosos do perodo clssico37 tenham defendido que a noo
de belas-artes emergiu nas reflexes platnica e aristotlica, de acordo com autores
como Jerome Pollitt38 e Howard Risatti39, na Hlade no existia uma categoria distinta
que compreendesse as diversas manifestaes artsticas. Com efeito, o grego arcaico
no abrange os conceitos de arte ou de artista, e apenas a poesia era apreciada
36
DEWEY, John, Art as Experience, Nova Iorque: Penguin Group, 2005 [1934], pp. 48-49.
Cf., por exemplo, TAYLOR, Alfred E., Aristotle, Toronto e Ontrio: Courier Dover Publications, 1955
e PONTYNEN, Arthur, For the Love of Beauty: Art History and the Moral Foundations of Aesthetic
Judgement, New Jersey: Transaction Publishers, 2006.
38
Cf. POLLITT, Jerome J., The Ancient View of Greek Art, New Haven, Connecticut: Yale University
Press, 1974.
39
Cf. RISATTI, Howard, Craft and Fine Art, op. cit., 2007, pp. 67-149.
37
11
enquanto arte maior. Por sua vez, Plato e Aristteles consideravam a pintura e a dana,
o pico e a tragdia, a aprendizagem de lnguas e os rituais religiosos, a prtica
desportiva e o domnio tecnolgico como artes de imitao (do grego mmesis e do
latim imitatio), em virtude do seu poder de copiar, reproduzir ou representar a natureza.
Em consonncia com a filosofia aristotlica, a mimese constitua a razo de toda a arte e
diferenciava o ser humano dos restantes animais40.
Mais tarde, nos perodos Helenstico e de soberania romana, forjou-se uma
diferenciao entre as artes liberais e vulgares (ou servis). Se as primeiras eram
intelectuais e reservadas s elites sociais, as segundas envolviam trabalho fsico e/ou
remunerao. Neste mbito, as artes visuais e a prtica musical eram referidas enquanto
expresses servis ou mistas (intermdias). Por estes motivos, tericos, como Risatti,
concluram que o estatuto das belas-artes irrompeu no sculo XVIII, poca em que estas
manifestaes passaram a ser identificadas pelos seus procedimentos especficos41.
Adicionalmente, a noo clssica do artista era bastante mais prxima daquilo
que hoje se entende ser o arteso. semelhana do carpinteiro, do navegador, do pintor
e do escultor, o artfice devia ser capaz de reunir conhecimentos tericos e aptides
prticas ou tcnicas, ou seja, a techn. Ainda que numerosos tratados tivessem
sustentado esta tese42, em nenhum se props uma distino entre a arte e o artesanato.
Com base nesta verificao, Larry Shiner inferiu que os seus executores no eram nem
artesos, nem artistas no sentido moderno, mas artesos/artistas: praticantes
competentes e habilidosos43. A mesma perspectiva identificvel no pensamento de
John Dewey (1859-1952), segundo o qual toda a arte se alicera na produo de algo,
conforme atesta a citao que introduz o presente captulo.
Desta maneira, na Grcia Antiga, a imaginao, a originalidade e a autonomia
da arte eram estimadas, mas no com a nfase que viriam a adquirir em Setecentos. Na
sua maioria, os pintores e escultores eram admirados pela capacidade de confeccionar
coisas semelhantes. Por outro lado, a maior parte daquilo que hoje consideramos
como objectos artsticos, na Antiguidade greco-romana, integrava cerimnias de culto
40
CEIA, Carlos (coord.), Mmesis ou Mimese, E-Dicionrio de Termos Literrios de Carlos Ceia, [Em
linha], posto em linha em 2010, url: <http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_
mtree&task=viewlink &link_id=1551&Itemid=2>, [consultado em 08-09-2013].
41
Cf. RISATTI, Howard, Craft and Fine Art, op. cit., 2007, pp. 67-149.
42
Cf., por exemplo, Sobre o Artesanato (Peri Techns) de Hipcrates e Metafsica de Aristteles.
43
Traduo do original: The ancient practitioners of various arts from medicine and military strategy to
pottery making and poetry were neither artisans nor artists in the modern sense but artisan/artists:
skilled and tactful practitioners. SHINER, Larry, op. cit., 2001, p. 23.
12
ou o uso quotidiano e, portanto, o seu valor advinha da sua funcionalidade44 (Figura 1).
Embora os romanos tivessem introduzido o coleccionismo de arte grega (fruto dos
saques Hlade) e a encomenda de cpias da mesma, o seu desgnio primordial no era
a apreciao esttica mas, sobretudo, o enriquecimento e prestgio do proprietrio. Por
fim, o predomnio da funo sociopoltica de culto no contexto da produo criativa foi
fortalecido pelo reconhecimento do Cristianismo enquanto religio oficial e pela
subsequente queda do Imprio Romano do Ocidente, no ano de 476 (Figura 2).
No perodo medieval, a arte e o artesanato eram igualmente respeitados e
abarcavam no apenas as artes plsticas, mas tambm actividades como a cozinha, a
navegao, a cavalaria, a produo de calado e o malabarismo. No entanto, a pejorativa
diviso clssica entre as artes liberais e vulgares ou servis perdurou at ao sculo XII,
poca em que Hugo de So Vtor passou a designar as segundas por mecnicas,
palavra que compreendia todas as produes funcionais, no seu livro Didascalicon. De
Studio Legendi, escrita no final do decnio de 113045. Ao filsofo saxo deveu-se a
dignificao das artes mecnicas face s restantes, atribuindo s primeiras a capacidade
para restaurar a humanidade no mundo. Contudo, o pensamento medieval oscilou
frequentemente entre a preservao da hierarquia estabelecida por Aristteles e a
considerao por toda a criao (Figura 3).
Na Idade Mdia, a palavra artista estava geralmente reservada ao estudioso da
arte liberal, ao passo que o artfice (artifex) era o praticante de uma arte mecnica.
Termos mais especficos, como os de pintor, escultor e arquitecto, no detinham
o significado actual. A ttulo de exemplo, o pintor medieval equivaleria hoje a um pintor
decorativo de todo o tipo de edifcios e objectos encomendados. Por outro lado, poucos
arquitectos logravam atingir uma situao social privilegiada46. Efectivamente, a
demarcao entre artes liberais e mecnicas era sustentada pelas guildas, organizaes
de artfices que se dedicavam a manter padres de qualidade elevados nos vrios ofcios
e controlavam grande parte da actividade artesanal. Na prtica, os pintores pertenciam
s guildas dos boticrios, os escultores s dos ourives e os arquitectos s dos canteiros
(Figura 4), ao passo que a maioria dos artesos trabalhava para patronos que, com
44
Cf. ELSNER, Jas, Art and the Roman Viewer: the Transformation of Art from the Pagan World to
Christianity, Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
45
Cf. TAYLOR, Jerome (trad.), Chapter Twenty: The Division of Sciences into Seven, op. cit., 1961,
pp. 74-75 apud VTOR, Hugo de So, op. cit., c. 1138.
46
Cf. GOLDWAITE, Richard, The Building of Renaissance Florence, Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1980; KIMPEL, Dieter, La sociogense de larchitecture moderne, Artistes, artisans
et production artistique au moyen age, Xavier Barral i Altet (ed.), Paris: Picard, 1986, pp. 135-162.
13
47
Traduo do original: It had to applications: it was as much the ordinary skill of the blacksmith or the
weaver, as the more refined skill mastered by the goldsmith or the tapissier. MILIS, Ludo J. R., Angelic
Monks and Earthly Men: Monasticism and Its Meaning to Medieval Society, Suffolk/Nova Iorque:
Boydell & Brewer Ltd, 1992, p. 125.
48
Traduo do original: As the name of a process, craft, at its most generic is roughly synonymous
with skill, a meaning that goes back to the Middle Ages. SHINER, Larry, Blurred Boundaries?
Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
49
Cf., por exemplo, MLE, mile, Religious Art in France of the Thirteenth Century, Toronto: Courier
Dover publications, 2000 [1913] e SHAPIRO, Meyer, The Romanesque Sculpture of Moissac, Parte 1,
The Art Bulletin, 13, 1931, pp. 464-531.
14
Esta imagem ps-romntica no s est muito longe da verdade, mas aplica-se ainda
menos maioria dos pintores e escultores Renascentistas. () Trs tipos de evidncia sugerem
os princpios do conceito moderno de artista: a emergncia do gnero da biografia de artista, o
desenvolvimento do auto-retrato, e o nascimento do artista de corte50.
Traduo do original: Not only is this postromantic image wide of the mark for Michelangelo, it
applies even less to the majority of Renaissance painters and sculptors. () Three kinds of evidence
suggest the beginnings of the modern concept of the artist: the emergence of the genre of the artists
biography, the development of the self-portrait, and the rise of the court artist. SHINER, Larry, op. cit.,
2001, p. 39.
51
A expresso foi utilizada na Arte Potica de Horcio, escrita em c. 20 a.C. Cf. ESCARDUA, Carla,
Ut pictura poesis, op. cit., [Em linha], posto em linha em 2010, [consultado em 08-09-2013].
52
Rever a nota 49.
15
retratos e decorassem quartos ou, em alguns casos, pintassem moblia e dourassem cofres
(Cosimo Tura), desenhassem tapetes e tigelas (Mantegna, [Figura 7]), ou fizessem festivais e
trajes (Leonardo). Ao contrrio do artista moderno, a maioria dos artistas de corte realizavam as
suas obras encomendadas para uma funo especfica, ao invs de cri-las enquanto pura
expresso pessoal ()53.
53
Traduo do original: In reality, even most court artists were given an annual salary, along with free
board and room, and their employers expected them to paint portraits and decorate rooms or in some
cases to paint furniture and guild caskets (Cosimo Tura), design tapestries and bowls (Mantegna), or do
festivals and costumes (Leonardo). Unlike the modern artist, most of the court artists made their works on
order for a specific function rather than creating them as purely personal expression (). SHINER,
Larry, op. cit., 2001, p. 42.
54
Cf. DANTO, Arthur C., Aps o Fim da Arte: A Arte Contempornea e os Limites da Histria, So
Paulo: Odysseus Editora, 2006 [1997], p. 127.
55
Traduo do original: Stained glass, music, and sculpture were not beautiful simply because they gave
pleasure. They might give pleasure, or they might give instruction; but in their case, the medieval took the
view that their true beauty lay in their conformity with their purpose. ECO, Umberto, The Aesthetics of
Thomas Aquinas, Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1988, p. 183.
16
56
Traduo do original: Gender is the relationship between biological sex and behavior; a theory of
gender explains that relationship. (grifo do autor) UDRY, J. Richard, The Nature of Gender,
Demography, vol. 31, n 4, Michigan: Population Association of America, Novembro de 1994, pp. 561573. Cf. tambm HAIG, David, The Inexorable Rise of Gender and the Decline of Sex: Social Change in
Academic Titles, 19452001, Archives of Sexual Behavior, vol. 33, n 2, Abril de 2004, pp. 8796;
What do we mean by sex and gender?, World Health Organization, [Em linha], posto em linha em
2013, url: <http://www.who.int/gender/whatisgender/en/index.html>, [consultado em 15-09-2013].
57
Cf., por exemplo, POLLOCK, Griselda, Vision and Difference: Feminism, femininity and the histories
of art, Londres e Nova Iorque: Routledge, 2003 [1988], p. 60.
58
Cf. DESCARTES, Ren, Discurso do Mtodo, Mem Martins: Publicaes Europa-Amrica, 1977.
17
leis exclusivamente do gnio59. Tal diferenciao foi validada por filsofos iluministas
como Immanuel Kant que a operacionalizou nestes termos:
A arte distingue-se tambm do ofcio; a primeira chama-se arte livre, a outra pode
tambm chamar-se arte remunerada. Olha-se a primeira como se ela puder ter xito (ser bem
sucedida) conforme a um fim somente enquanto jogo; olha-se a segunda enquanto trabalho, isto
ocupao que por si prpria desagradvel (penosa) e atraente somente pelo seu efeito (por
exemplo pela remunerao), que por conseguinte pode ser imposta coercivamente60 [grifo do
autor].
Traduo do original: The latter [liberal arts] have fixed and settled rules which any man can transmit
to another, whereas the practice of the Fine Arts consists principally in an invention which takes its laws
almost exclusively from genius. DALEMBERT, Jean Le R., Preliminary Discourse to the Encyclopedia
of Diderot, Richard N. Schwab (trad.), Chicago: University of Chicago Press, 1995 [1751], p. 43.
60
KANT, Immanuel, op. cit., 1992 [1790], pp. 206-207.
61
Bela arte ao contrrio um modo de representao que por si prpria conforme a fins e, embora sem
fim, todavia promove a cultura das faculdades do nimo comunicao em sociedade. KANT,
Immanuel, op. cit., 1992 [1790], p. 179.
62
Esta noo foi forjada pelo filsofo da arte Paul Oskar Kristeller e desenvolvida por Larry Shiner, a par
de outros autores que tambm se inspiraram na primeira. KRISTELLER, Paul O., The Modern System
of the Arts: A Study in the History of Aesthetics, op. cit., 1951, pp. 496-527; SHINER, Larry, op. cit.,
2001, p. 226. Cf., por exemplo, BOURDIEU, Pierre, Distinction: A Social Critique of the Judgment of
Taste, Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1984; BOURDIEU, Pierre The Field of
18
institucional foi igualmente defendido por Peter Burger, para quem a formao da
instituio arte ocorreu no final daquele sculo, mas o decorrente processo de
autocrtica apenas teve incio no final do sculo XX, por via das vanguardas63. J o
filsofo Stephen Davies questionou este tipo de raciocnio, uma vez que, quer no
Ocidente, quer no Oriente, e tanto antes, como depois da inveno da arte no sculo
XVIII, houve numerosos e excepcionais exemplos de arte64. Todavia, o filsofo da arte
David Clowney65 reconheceu que Shiner no discriminou a actividade artstica das
civilizaes no-ocidentais, nem tampouco aquela que antecedeu a centria de
Setecentos. Ao invs, argumentou que a fico das artes menores e maiores
ocasionou o sentido moderno da arte e poder influenciar a nossa percepo e
entendimento das prticas de culturas passadas ou distintas.
Por seu turno, o historiador da arte Paul Barlow reprovou a presumida crena de
que a (in)verdade dos conceitos e procedimentos varia conforme a sua antiguidade66.
Ora, Paul Kristeller e Larry Shiner nunca partiram de tal premissa. Identicamente,
Barlow apelou considerao da referida ciso como parte do desenvolvimento
histrico que pode ter consequncias positivas na anlise dos objectos, em vez da
habitual lamentao e desejo da sua transposio. Apesar de se tratar de uma observao
vlida, esta no se coaduna com a opinio de Shiner acerca do sistema moderno das
belas-artes. De resto, o autor valoriza a correspondente arte e no prope o fim daquela
doutrina. Contudo, inquietam-no outras polaridades que esse sistema sustenta e que
afectam a nossa compreenso, a saber, da arte/artesanato, da mente/corpo, do
masculino/feminino, do branco/preto67. Por conseguinte, o objectivo de autores como
Larry Shiner tem sido indagar as origens histricas do sistema moderno das belas-artes,
de forma a contestar a validade universal que o prprio reivindica.
Cultural Production: Essays on Art and Literature, Nova Iorque: Columbia University Press, 1993;
EAGLETON, Terry, The Ideology of the Aesthetic, Oxford: Blackwell Publishing, 1990; MATTICK,
Paul, Art in its Time: Theories and Practices of Modern Aesthetics, Londres e Nova Iorque: Routledge,
2003.
63
BURGER, Peter, A Teoria da Vanguarda, Lisboa, Vega, 1993 [1974], p. 64.
64
DAVIES, Stephen, The Philosophy of Art, Oxford: Blackwell Publishing, 2006, pp. 1-25.
65
CLOWNEY, David, A Third System of the Arts? An Exploration of Some Ideas from Larry Shiner's
The Invention of Art: A Cultural History, Contemporary Aesthetics, [Em linha], posto em linha a 21
de Dezembro de 2008, url: <http://www.contempaesthetics.org/newvolume/pages/article.php?articleID
=519#FN9link>, [consultado em 12-02-2014].
66
BARLOW, Paul, Review of Shiner, The Invention of Art and MacDonald, Exploring Media
Discourse, Journal of Visual Culture in Britain, vol. 5, n 1, Vero de 2003, pp. 105-115.
67
Traduo do original: Once the modern system of fine arts was firmly in place in the nineteenth
century and art had come to designate an autonomous realm within society, the art-versus-craft
polarity was absorbed in to the more general polarities of art/craft, mind/body, male/female, white/black
inherent in the modern system. SHINER, Larry, op. cit., 2001, p. 278.
19
1.
O ARTESANATO NO ENREDO DAS BELAS-ARTES E DA INDSTRIA
Of course, the fear of technology is largely stuffy and oldfashioned, even reactionary. And yet it does have its validity, for
it reflects the anxiety felt in the face of the violence which an
irrational society can impose on its members (). This anxiety
reflects a common childhood experience (): the longing for
castles with long chambers and silk tapestries, the utopia of
escapism68.
Theodor Adorno, Functionalism Today, 1979 [1962]
ADORNO, Theodor, Functionalism Today, op. cit., 2010, p. 399 apud GLCK, Franz (ed.), Adolf
Loos: Smtliche Schriften 1897-1900, vol. 1, Vienna/Munich: Herold, 1962, pp. 395-403.
69
ADORNO, Theodor, Teoria Esttica, Lisboa: Edies 70, 1988 [1970], p. 47.
70
CLARK, Garth, How Envy Killed the Crafts, op. cit., 2010 [1995], pp. 445-453.
71
GREENHALGH, Paul (ed.), op. cit., 2003 [2002], p. 3.
20
72
Neste contexto, h que ter em conta que as resistncias e reflexes mais ou menos utpicas de tericos
marxistas como Walter Benjamin, Theodor Adorno e Clement Greenberg foram profundamente
influenciadas pela instrumentalizao fascista e comunista da tecnologia e da arte ao longo do sculo XX,
assim como pelos seus efeitos prejudiciais sobre a cultura ocidental. HUYSSEN, Andreas, op. cit., 1986,
p. ix.
73
SLIVKA, Rose e WEBB, Aileen O., op. cit., 1968, p. 13.
74
Por seu turno, o conceito de esttica foi inicialmente empregado num contexto estritamente filosfico
e em Setecentos, pelo alemo Alexander Baumgarten que a definiu como cincia do conhecimento
sensitivo. RISATTI, Howard, op. cit., 2007, p. 71.
21
SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and
Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
76
ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2010, pp. 4-5; ADAMSON, Glenn, op. cit., 2013, p. xiii.
77
BENEVOLO, Leonardo, Historia de la arquitectura moderna, Barcelona: Gustavo Gili, 2002 [1960],
p. 179.
22
seu envolvimento em causas pblicas, entre as quais, a fundao da Guild of St. George,
organizao colectiva e industrial de tipo cooperativo. J na segunda metade do sculo
XIX, a sua apologia contra o restauro e a favor do cuidado e manuteno constantes dos
monumentos alcanou uma popularidade considervel no Reino Unido e disseminou-se
pelo continente europeu.
De acordo com John Ruskin, era imperativo salvaguardar princpios morais e
estticos que, na sua perspectiva, eram indissociveis. Por conseguinte, a qualidade da
arte devia ser apreciada consoante o seu grau de utilidade social. Num captulo dedicado
natureza do gtico na obra The Stones of Venice (1886)78, o autor argumentou, por um
lado, que a arte s podia ser produzida por artistas e, por outro, que a arquitectura no se
restringia mera execuo mecnica ou habilidade tcnica. Paradoxalmente, Ruskin
tambm reprovou a apropriao da arte pelas classes abastadas, assim como defendeu a
sua acessibilidade a todos e a luta tanto pela melhoria das condies de trabalho, como
pela liberdade do operrio. No seu entender, estes requisitos eram essenciais para a
criao e, portanto, para o avano da arte. Enquanto os artistas se insurgiam contra o
sistema industrial que fomentava uma produo de qualidade inferior, num ciclo de
palestras ocorrido em 1858-1859, John Ruskin advertiu que a separao verificada entre
o artista e o arteso prejudicara a produo, quer artstica, quer a manual79.
De resto, o vigsimo quinto aforismo de The Stones of Venice ditava que todo o
trabalho bom deve ser livre e manual80. No entanto, o autor admitiu que
() era possvel que os homens () reduzissem o seu trabalho ao nvel da mquina; mas desde
que os homens trabalhem como homens, empenhando-se de corpo e alma naquilo que fazem,
() ser claramente visto () que tenha existido () um cuidado (); e se a mente do homem
bem como o seu corao forem imiscudos, tudo isto estar nos stios certos, e cada parte estar
ajustada s outras81. [grifo do autor]
78
RUSKIN, John, Chapter VI The nature of Gothic, The Stones of Venice, vol. II: The Sea-Stories,
Nova Iorque: Cosimo Inc., 2007 [1886], pp. 151-231.
79
Cf. RUSKIN, John, The two paths: being lectures on art and its application to decoration and
manufacture, delivered in 1858-59, Londres: Smith, Elder & Co., 1859.
80
Traduo do original: Aphorism 25. All good work must be free hand-work. RUSKIN, John, op. cit.,
2001 [1849], p. 224.
81
Traduo do original: I said, early in this essay, that hand-work might always be known from machinework; observing, however, at the same time, that it was possible for men to turn themselves into machines
(); but so long as men work as men, putting their heart into what they do, and doing their best, () it
will be plainly seen that some places have been delighted in more than other that there have been a
pause, and a care about them; () and if the mans mind as well as his heart went with his work, all this
23
24
organizou ainda exposies sob o ttulo Arts and Crafts (Figura 13), das quais adveio o
movimento com o mesmo nome. Este perodo da sua vida foi acompanhado por uma
intensa escrita sobre arte e poltica, que resultou na publicao de trs volumes de
ensaios, o derradeiro dos quais postumamente83.
Dessa forma, o criador ultrapassou as limitaes do pensamento de Ruskin,
nomeadamente, a tradicional distino kantiana entre a beleza e a utilidade e a noo de
inspirao, que contestou e incorporou na ideia de ofcio. Este ltimo conceito era
mais radical do que a techn grega, por dois motivos: em primeiro lugar, transferia a
tnica do momento de concepo (intelectual) do objecto para o da sua execuo; em
segundo lugar, contemplava as artes manuais e exclua o trabalho mecnico84. De facto,
de acordo com Morris e em conformidade com o que haviam defendido John Ruskin e
Oscar Wilde (1854-1900)85, a mquina destrua o prazer do trabalho86 e, como tal, a
prpria arte. No entanto e como nota Glenn Adamson, o objectivo destes ltimos
autores no era elevar o estatuto do artesanato, mas sim lograr uma unidade entre todas
as artes87. Por conseguinte, o seu intuito no era reorganizar a hierarquia esttica, mas
antes desmantel-la, considerando a criao de uma forma to ampla quanto possvel, a
fim de incluir todos os produtos do trabalho que so reivindicados como belos88.
Efectivamente, o apego a um passado de labor artesanal, cooperativo e de
vivncia comunitria cingiu William Morris iluso, j que a sua prpria prtica
sobretudo, a txtil exigia a utilizao de mquinas. No obstante, e semelhana de
Ruskin, os seus ltimos escritos parecem revelar uma moderao da sua posio,
83
25
legitimando a utilidade da mquina, na condio de que o seu uso fosse comandado pelo
esprito humano89.
De qualquer maneira, a actividade criativa e terica de Morris foi pioneira no
estabelecimento de uma conexo entre a criao e a vida que viria a determinar o curso
da cultura moderna; entre a teoria e a prtica que, poca, eram consideradas domnios
incompatveis; e, sobretudo, entre as belas-artes e as artes decorativas e entre o artista e
o arteso, os quais a maioria dos pensadores e feitores insistia em distanciar90.
89
J no sculo XX, e na senda da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin e Theodor Adorno admitiriam o
mesmo, em virtude da interdependncia entre o avano da arte, as relaes de produo e, por
conseguinte, do progresso tcnico. Cf., por exemplo, MORRIS, William, The Revival of Handicraft,
op. cit., 2010 [1888], pp. 146-156.
90
No caso portugus, de salientar a iniciativa articuladora de Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905) e de
Joaquim de Vasconcelos (1849-1936).
O multifacetado Bordallo Pinheiro, para alm de uma vasta obra em desenho, aguarela, ilustrao,
docncia e caricatura poltica e social, foi director artstico da clebre Fbrica de Faianas das Caldas da
Rainha, onde logrou revitalizar a cermica local. A sua produo cermica foi de tal modo inventiva e
polivalente que, por um lado, compreendia a loia ornamental, cujo horror vacui barroco era equiparvel
aos trabalhos grficos e, por outro, concretizava a trs dimenses as personagens das suas ilustraes, tais
como o Z Povinho e a Maria Pacincia.
Embora hoje as Faianas Artsticas Bordallo Pinheiro sejam frequentemente associadas a um gosto
popular e mesmo kitsch, estas resultaram de um cruzamento original de correntes modernas em que se
destaca o Naturalismo de Oitocentos, espelhado na representao de pessoas, animais, frutos e vegetais,
bem como as delirantes colagens de pendor ante-surealista que criador aplicou numa arte decorativa,
serializada e tradicional. Se, poca, a criatividade de Bordallo Pinheiro tambm satisfez as elites, como
atestam as diversas encomendas de envergaduras variadas que se destinaram decorao de palacetes, na
actualidade, muitas destas peas integram o imaginrio nacional.
interessante verificar que, a par dos empreendimentos de William Morris, tambm a fbrica das
Caldas revelou ser um fracasso financeiro no seu tempo e, hoje, representa um patrimnio histricoartstico de grande valor que preserva tcnicas centenrias e o legado bordaliano, ao mesmo tempo que
cria produtos contemporneos.
Na mesma poca, Joaquim de Vasconcelos foi o principal agente na valorizao das artes mecnicas,
no somente no seu aspecto etnogrfico e folklorizante, de acordo com o esprito do tempo, mas tambm
na sua qualidade de objectos ergolgicos, produto do trabalho do homem. Vasconcelos props aliar os
costumes e tradies caracteristicamente portugueses ao desenvolvimento, cujo agente era o operrio,
semelhana do que defendiam John Ruskin e William Morris.
Considerado por Jos-Augusto Frana como o verdadeiro fundador da Histria da Arte em Portugal,
o crtico acompanhou as inovaes do ensino industrial em Inglaterra, mas considerava-se difcil adoptlas num pas onde a conscincia do desenvolvimento industrial no estava suficientemente difundida. Da
mesma forma, o historiador detectou o profundo hiato existente entre a arte acadmica e de elite e a arte
popular. No entanto, para Vasconcelos, a indstria e o artesanato deviam operar em conjunto.
O seu papel foi central na reforma do ensino artstico e industrial portugus, atravs da fundao da
Sociedade de Instruo do Porto, no ano de 1880. Semelhante associao visava incentivar o progresso
moral e intelectual nacional e foi luz deste intuito pedaggico que se realizaram exposies dedicadas
a indstrias locais. Como afirma Lcia Rosas: Esta misso, propulsora do fenmeno oitocentista da
proliferao de Museus e grandes Exposies, decorre de uma ideia simultaneamente elitista e
democrtica da arte e certamente da cultura e este um dos vectores do pensamento de Joaquim de
Vasconcelos, alma e idelogo da Sociedade (embora presidida por Aires de Gouveia Osrio) ().
Em particular, a Exposio de Cermica pretendeu insurgir-se contra a Exposio de Arte
Ornamental Portuguesa e Espanhola inaugurada pelos reis de Portugal e Espanha em Janeiro do mesmo
ano de 1882, o que revela um evidente significado poltico. At ao final do sculo XIX, Vasconcelos
organizou exposies de tipo temtico e regional. Chegamos assim ao segundo vector da exposio: a
valorizao do trabalho e a sua estreita relao com a obra de arte. () No a matria que determina o
valor do objecto, a arte, o trabalho da mo humana (grifo da autora).
26
Cf. FRANA, Jos-Augusto, O romantismo em Portugal, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 500-1;
FRANA, Jos-Augusto, Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa: Livraria Bertrand, 1980; ROSAS, LCIA
Maria C., Joaquim de Vasconcelos e a valorizao das artes industriais, Actas do Colquio Rodrigues
de Freitas: a obra e os contextos, Porto: C.L.C.-F.L.U.P., 1996, pp. 229-238.
91
O conceito de obra de arte total foi introduzido pelo compositor de pera alemo Richard Wagner por
volta de 1850 que ambicionava unir a msica, a poesia e as artes visuais, bem como teve origem na
esttica idealista romntica. Embora seja tentador situar esta noo nas culturas renascentista e barroca, a
obra de arte total no envolve apenas uma mescla de meios, mas tambm a vontade de alcanar uma
sntese orgnica que permita recuperar a unidade original dos objectos, da sociedade e entre a arte e a
vida. Cf. SMITH, Matthew W., The Total Work of Art: From Bayreuth to Cyberspace, Londres / Nova
Iorque; Routledge, 2007.
92
Ainda que viesse a aplicar diversos estilos arquitectnicos na construo de casa, igrejas e edifcios
comerciais, uma das tendncias mais associadas a Frank Lloyd Wright foi a das casas de plancie que
perdurou entre cerca de 1893 e a Primeira Guerra Mundial. Praticada nas plancies envolventes da cidade
de Chicago, nos estados de Illinois, Minnesota, Iowa e Wisconsin, esta proposta foi uma revolta e
reforma regional ento ocorrendo nas artes visuais. BROOKS, Harold A., The Prairie School: Frank
Lloyd Wright and His Midwest Contemporaries, Nova Iorque: Norton, 1972, p. 4.
27
93
Vede, isso que traz grandeza ao nosso tempo o facto de no termos a capacidade de fazer surgir um
novo ornamento. Ns supermos o ornamento, conseguimos vencer todos os obstculos at atingirmos a
ausncia de ornamentao. LOOS, Adolf, Ornamento e Crime, Ornamento e Crime, Lisboa: Edies
Cotovia, 2004, pp. 223-234.
94
GREENBERG, Clement, Avant-Garde and Kitsch, op. cit., 1989 [1939], pp. 3-21.
95
Traduo do original: Indeed, ornament problematizes the opposition of form and function, forcing us
to think in new ways of their relationship. MILLER, Bernie e WARD, Melony (ed.), Crime and
ornament: the arts and popular culture in the shadow of Adolf Loos, Toronto: YYZ Books, 2001, p. 20.
96
No entanto, o bom ou o mau trabalho no valorizado nas profisses que se derretem diante da tirania
da ornamentao. LOOS, Adolf, Ornamento e Crime, op. cit., 2004, pp. 223-234.
28
distintos, retos: o arteso s trabalha com estes. Ele no tem nada mais do que um propsito em
mente e nada mais do que materiais e ferramentas sua frente 97.
97
Traduo do original: Pure and clean construction has had to replace the imaginative forms of past
centuries and the flourishing ornamentation of past ages. Straight lines: sharp, straight edges: the
craftsman works only with these. He has nothing but a purpose in mind and nothing but materials and
tools in front of him. ADORNO, Theodor, Functionalism Today, op. cit., 2010 [1962], pp. 395-403.
98
No artigo The Tall Office Building Artistically Considered (1896), o arquitecto norte-americano
Louis Sullivan, cujo assistente foi Frank Lloyd Wright, cunhou a expresso segundo a qual a forma
segue sempre a funo (form ever follows function), da qual resultou a verso mais curta e eficaz.
99
Para Peter Burger, as vanguardas almejaram ultrapassar a autonomia da arte atravs do encontro entre a
arte e a vida, mas no foram bem-sucedidas neste intento. Cf. BURGER, Peter, A negao da autonomia
da arte na vanguarda, op. cit., 1993 [1974], pp. 87-96.
29
artistas modernos da competncia artesanal (desabilitao ou deskilling) e impelindoos a inventar novos mtodos artsticos (reabilitao ou reskilling100).
Excepcionalmente, algumas criadoras dadastas e surrealistas lograram operar no
domnio artesanal, como foi o caso da sua Sophie Teuber-Arp (1889-1943) que
imprimiu em trabalhos txteis um geometrismo austero, influenciado pelo cubismo
(Figura 18), mas tambm realizou uma srie de cabeas em madeira, bem como
desenhou cenrios e marionetas para espectculos. Por sua vez, a alem Hannah Hch
(1889-1978) foi uma das criadoras da fotomontagem, semelhana de George Grosz e
John Heartfield, concebendo ainda uma curiosa srie de bonecas Dd que integrava um
prisma feminista, comentando o menosprezo das mulheres na sociedade (Figura 19).
Relativamente ao readymade, foi por volta de 1913, pouco antes de emigrar para
os Estados Unidos da Amrica, que Marcel Duchamp (1887-1968) comeou a
aprofundar esse dispositivo. O readymade constitua um objecto pr-fabricado que,
merc da escolha do criador e da sua exposio num museu, era elevado ao estatuto de
obra de arte. Por esta via, Duchamp pretendia desvendar os jogos internos da
legitimao institucional e da reflexo crtica em torno do estatuto de determinados
autores e/ou criaes. Neste panorama, o readymade tambm introduziu um importante
debate acerca dos obstculos experimentados pelos artistas e artesos desconhecidos
que desejavam ingressar no mundo da arte101. No entanto, no nos parece que o
desgnio do readymade fosse inferiorizar o carcter autoral imiscudo na mo do feitor,
mas sim problematizar o termo teoricamente contrrio, handmade (artesanal ou
manual), atestando a importncia das artes decorativas naquela poca (Figura 20).
Na realidade, um dos aspectos mais revolucionrios que subjaz ao conceito de
readymade consiste na conscincia da arte como um universo em expanso que
atravessou os tempos at actualidade. Afinal, tratava-se de uma formulao
embrionria do mundo ou mundos da arte102 que Arthur Danto e o socilogo da arte
Howard S. Becker estabeleceram, igualmente reflectida, mas menos desenvolvida, na
100
Cf. ROBERTS, John, The Intangibilities of Form. Skill and Deskilling in Art After the Readymade,
Londres: Verso, 2007.
101
CROS, Caroline, Marcel Duchamp, Londres: Reaktion Books, 2006, pp. 46-47.
102
Cf. DANTO, Arthur C., Artworld, The Journal of Philosophy, vol. 61, n 9, Nova Iorque: American
Philosophical Association Eastern Division Sixty-First Annual Meeting, 15 de Outubro de 1964, pp. 571584; BECKER, Howard S., Artworlds, Califrnia: University of California Press, 1982. Para uma
perspectiva portuguesa, cf. MELO, Alexandre, O sistema da arte contempornea, Arte, Lisboa: Difuso
Cultural, 1994, pp. 11-31.
30
ideia da instituio arte103 exposta por Peter Burger. Efectivamente, estas noes
englobam a teoria institucional da produo artstica, a qual considera as redes e os
agentes que abrangem, integram e protegem a criao e difuso dos objectos e, portanto,
definem aquilo que ou no arte numa determinada poca histrica. Em termos
objectivos, ao longo de Novecentos, esta ideia foi envolvendo ofcios que eram
anteriormente ostracizados, conforme tem demonstrado a evoluo das coleces
museolgicas. Tendo em conta esta concepo, ainda que as vertentes artstica e
ornamental se tivessem contaminado constantemente, parece-nos incontestvel a
existncia de um mundo do artesanato, com espaos (museus, galerias, feiras,
blogosfera) e intermedirios (praticantes amadores, artfices rurais e urbanos, curadores)
especficos104.
Quando despontou todavia o mundo do artesanato na era contempornea? E de
que forma interagiu e se diluiu no mundo da arte? Recordemos a pioneira Art Workers
Guild que nascera em Londres, a partir do movimento Arts and Crafts. No mesmo
mbito espcio-temporal, adveio o Victoria and Albert Museum que, sob a designao
primria de South Kensington Museum, tivera a inteno de promover o design
industrial. Todavia, consoante verificaremos adiante, o ltimo museu apenas despertou
para o verdadeiro valor de muito do nosso artesanato nativo na dcada de 1970. Tal
foi patente aquando do enorme sucesso da exposio do Craft Advisory Committee,
The Craftsmans Art 105 [grifo meu], realizada em 1973 (Figura 21).
Com efeito, na Europa e sobretudo na Alemanha, a actividade de ateli foi
incorporada na inteno de unir a arte e a indstria, o design e a produo massiva106.
Na antiga Prssia, tal foi logrado atravs do destacamento do arquitecto Hermann
Muthesius (1861-1927) respectiva embaixada em Londres, com o intuito de investigar
a difuso do Arts and Crafts. Depois do seu regresso, Muthesius fundou a Federao
Alem do Trabalho ou Deutsche Werkbund em Munique, em 1907, a fim de estabelecer
103
31
um gosto nacional prprio amadurecido para aplicar, com base numa cultura nacional
actual107. Recentemente, John Maciuika enfatizou o patrocnio poltico daquela unio:
Ao conceder aos artesos o que este referia como as vantagens desfrutadas em grandes
empreendimentos, o Mistrio do Comrcio [prussiano] esperava revolucionar o design e a
produo dos bens de artes aplicadas na Alemanha e estimular a posio competitiva do pas nos
108
mercados internacionais .
Exposio da Werkbund (O
Apartamento) , organizada por Mies van der Rohe em Estugarda, no ano de 1927
(Figura 23). Apesar das contradies internas e de uma interrupo na sua actividade
entre 1938 e 1950, a Werkbund viria a influenciar a escola Bauhaus e perduraria at ao
sculo XXI.
No ano de 1919, os pressupostos da Werkbund confluram de resto na fundao
da academia Bauhaus (termo que significa literalmente casa de construo) na
Repblica de Weimar. Num primeiro momento, sob a liderana do arquitecto Walter
Gropius, a inspirao no movimento Arts & Crafts e a vontade de reconstruir a
sociedade que fora dilacerada pela Primeira Guerra Mundial levaram a instituio a
propor a reforma do ensino artstico, a par da demolio da barreira arrogante entre o
107
Traduo do original: Die deutschen Geschmacksindustrien, wie einst die franzsischen und
englischen, werden nur dann eine Weltmacht werden, wenn wir zu unserem technischen Geschick,
unserem Unternehmungsgeist und unserer Wissenschaft auch einen eigenen reifen Nationalgeschmack
einzusetzen haben, gegrndet auf einer zeitgemen nationalen Kultur. JESSEN, Peter, Der Werkbund
und die Grossmachte der deutschen Arbeit, Jahrbuch des Deutschen Werkbundes, Eugen Diederichs
(pub.), Jena: Diederichs, 1912, pp. 2-10.
108
Traduo do original: By conferring upon artisans what it called the advantages enjoyed by large
enterprise, the [Prussian] Commerce Ministry hoped to revolutionize the design and production of
Germanys applied arts goods and boost the countrys competitive position in international markets.
MACIUIKA, John V., The globalization of the Deutscher Werkbund: Design reform, industrial policy,
and German foreign policy, 19071914, Global Design History, Glenn Adamson et. al (ed.), Londres e
Nova Iorque: Routledge, 2011, pp. 98-106.
32
Traduo do original: Let us then create a new guild of craftsmen without the class distinctions that
raise an arrogant barrier between craftsman and artist! GROPIUS, Walter, Programme of the
Staatliches Bauhaus in Weimar, Programs and manifestoes on 20th-century architecture, Ulrich Conrads
(ed.), Massachusetts: The MIT Press, 1970 [1919], pp. 49-53.
110
DROSTE, Magdalena et al., The Bauhaus Collection, Berlim: Bauhaus Archive Berlin, 2010, pp. 2234.
111
Desde logo, o ideal da gesamtkunswerk foi assumido no manifesto da Bauhaus: The ultimate goal of
all art is the building! The ornamentation of the building was once the main purpose of the visual arts, and
they were considered indispensable parts of the great building. Today, they exist in complacent isolation,
from which they can only be salvaged by the purposeful and cooperative endeavours of all artisans.
Architects, painters and sculptors must learn a new way of seeing and understanding the composite
character of the building, both as a totality and in terms of its parts. Their work will then re-imbue itself
with the spirit of architecture, which it lost in salon art. GROPIUS, Walter, op. cit., 2012 [1919].
33
112
34
da arte Anna Fariello, o artesanato afasta-se dos seus corolrios a arte e o design no
seu acolhimento da execuo ()114 e no controlo pessoal do produtor sobre a
totalidade dos processos que envolvem a manufactura de cada utenslio. De qualquer
modo, diversos autores115 tm vindo a defender que, to importante quanto inquirir a
atraco entre o artesanato e a arte, averiguar a conexo entre o artesanato e o design.
neste ponto que nos parece essencial estabelecer uma diferenciao geogrfica
a respeito da percepo das artes funcionais. Nos Estados Unidos da Amrica, a breve
histria ptria e a rpida extenso territorial haviam favorecido a criao de um estilo
vernculo eminentemente utilitrio, destinado a satisfazer as necessidades das massas.
Consoante elucidou a crtica norte-americana Rose Slivka, a ausncia de uma identidade
nacional fundadora e a pujana da engenharia e da tecnologia tinham impedido a
edificao de uma ideia de beleza116. Adicionalmente e sobretudo na poca da Grande
Depresso, a actividade artesanal foi recuperada com o intuito de restabelecer as razes
nativas, mas tambm de combater a pobreza rural. Por estes motivos, a historiadora
Imogen Racz demonstrou que o artesanato teve um papel basilar na conscincia dos
E.U.A. enquanto nao no incio do sculo XX, em virtude da sua importante expresso
na cultura amerndia e do seu cumprimento das necessidades de sobrevivncia 117.
Entretanto, a afluncia de arquitectos, designers e artesos oriundos da Europa
viabilizou a transmisso da ideologia modernista e a gradual quebra da tradicional
hegemonia das artes maiores naquele pas. Efectivamente, a instituio da New
Bauhaus (futuramente denominada The School of Design) em 1937, na cidade de
Chicago, por parte de Lszl Moholy-Nagy, a par da Black Mountain College na
Carolina do Norte onde foram professores Joseph Albers, Anni Albers (1899-1944) e
machine production, transformed crafts fundamental relationship to function by taking over production
of most of the functional objects of daily use. RISATTI, Howard, op. cit., 2007, p. xiii.
114
Traduo do original: Craft departs from its corollaries art and design in its embrace of execution,
the making of the work (). FARIELLO, M. Anna, Making and Naming: The Lexicon of Studio
Craft, Extra/Ordinary craft and contemporary art, Maria Elena Buszec (ed.), Durham: Duke
University Press, 2011, pp. 23-42.
115
Cf. LEES-MAFFEI, Grace e SANDINO, Linda, Dangerous Liaisons: Relationships between Design,
Craft and Art, Journal of Design History, vol. 17, n 3, Oxford: Oxford University Press, Setembro de
2004, pp. 207-220; SENNETT, Richard, The Craftsman, New Haven e Londres: Yale University Press,
2008; RISATTI, Howard, op. cit., 2007; CLARK, Garth, How Envy Killed the Crafts, op. cit., 2010
[1995], pp. 445-453; FERREIRA, ngela S, NEVES, Manuela e RODRIGUES, Cristina, Design e
Artesanato: um projecto sustentvel, REDIGE, v. 3, n. 1, Rio de Janeiro: SENAI/CETIQT, Abril de
2012, pp. 32-55.
116
SLIVKA, Rose, The Persistent Object, op. cit., Rose Slivka e Aileen O. Webb (eds.), op. cit., 1968,
pp. 12-17.
117
RACZ, Imogen, Contemporary Crafts, Oxford / Nova Iorque: Berg, 2009, pp. 6-7.
35
118
36
37
125
Traduo do original: The manner in which human sense perception is organized, the medium in
which it is accomplished, is determined not only by nature but by historical circumstances as well ()
The history of every art form shows critical epochs in which a certain art form aspires to effects which
could only be fully obtained with a changed technical standard, that is to say, in a new art form.
BENJAMIN, Walter, The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, Illuminations, Hannah
Arendt (ed.), Nova Iorque: Shocken Books, 1969 [1935-38], pp. 217-251.
126
Na presente dissertao, os termos medium e media sero respectivamente traduzidos por meio e
meios e referir-se-o sua concepo no mbito da teoria da arte, segundo a qual correspondem aos
materiais ou modos de expresso usados numa actividade artstica ou criativa.
127
KRAUSS, Rosalind E., A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition,
Nova Iorque: Thames and Hudson, 1999, pp. 45-46.
128
Desde o incio do sculo XXI, Esther Leslie, a professora de poltica esttica, tem investigado a obra
de Walter Benjamin sob uma perspectiva poltica. Este esforo possibilitou a rectificao do
enquadramento ps-estruturalista da maioria dos estudos sobre Benjamin, bem como da contextualizao
histrico-poltica dos escritos do autor.
129
Traduo do original: True experience was conceived as close and practised knowledge of whatever
was at hand. Recurrent in Benjamins delineations of experience were the words tactile, tactics and the
tactical, entering German as it entered English via the Latin tangere, touch. To touch the world was to
know the world. LESLIE, Esther, Walter Benjamin, Londres: Reaktion Books, 2008, p. 168.
130
O ensaio de Benjamin foi originalmente publicado na revista Orient und Occident, em Outubro de
1936. Cf. BENJAMIN, Walter, The Storyteller: Reflections on the Works of Nikolai Leskov, Walter
Benjamin: Selected Writings, Michael W. Jennings (ed.), vol. 3, Cambridge (Massachussets) e Londres:
Harvard University Press, 2004 [1936], pp. 143-166; LESLIE, Esther, op. cit., 2008, p. 169.
38
131
Traduo do original: Benjamins own braiding of craft and narration in The Storyteller went
further to illuminate an historical, practical affinity between craft skills and storytelling. LESLIE, Esther,
op. cit., 2008, p. 167.
132
Sobre esta querela na fotografia, cf. SHINER, Larry, op. cit., 2001, pp. 229-253.
133
Traduo do original: All this points to one of the essential features of every real story: it contains,
openly or covertly, something useful. () After all, counsel is less an answer to a question than a
proposal concerning the continuation of a story that is just unfolding. () Counsel woven into the fabric
of real life [gelebten Lebens] is wisdom. BENJAMIN, Walter, op. cit., 2004 [1936], pp. 143-166.
134
FOCILLON, Henri, Elogio da Mo, A vida das formas, Viseu: Edies 70, 1988 [1934], pp. 107-29.
135
COLLINGWOOD, Robin G., Art and Craft, Principles of Art, Londres, Oxford e Nova Iorque:
Oxford University Press, 1938, pp. 15-41.
39
136
CLARK, Garth, How Envy Killed the Crafts, op. cit., 2010 [1995], pp. 445-453.
HEIDEGGER, Martin, A Origem da Obra de Arte, Lisboa: Edies 70, 1992 [1936], p. 12.
138
HEIDEGGER, Martin, op. cit., 1992 [1936], p. 21.
139
HEIDEGGER, Martin, op. cit., 1992 [1936], p. 27.
140
HEIDEGGER, Martin, op. cit., 1992 [1936], p. 57.
137
40
41
42
147
43
Traduo do original: I find myself back in the realm of Good Design, where Pop, Op, Assemblage,
and the rest of Novelty art live. The continuing infiltration of Good Design into what purports to be
advance and highbrow art now depresses sculpture as it does painting. Minimal follows too much where
Pop, Op, Assemblage, and the rest have led (). GREENBERG, Clement, A New Installation at the
MMA, and a Review of the Exhibition Art in Progress, Art and Culture Critical Essays, vol. 1:
Perceptions and Judgments, Boston: Beacon Press, 1988-95, pp. 212-256.
150
SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and
Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
151
Cf. CHANDLER, John e LIPPARD, Lucy, The Dematerialization of Art, Art International, vol. 12,
n 2, Lugano: James Fitzsimmons, Fevereiro de 1968, pp. 31-36; LIPPARD, Lucy, Six Years: The
Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972, Nova Iorque: Praeger, 1973.
44
152
BECKER, Howard S., Arts and Crafts, op. cit., 1982, pp. 272-350; DORMER, Peter, op, cit., 1991,
p. 148; HARROD, Tanya, op. cit., 1999, p. 375.
153
ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2010, pp. 338-339.
154
Traduo do original: If they must be categorized in some way or another, I suggest they be thought
of as critical objects of crafts, objects whose aesthetic/artistic potential is concentrated in their
exemplary but unfulfillable function. RISATTI, Howard, op. cit., 2007, p. 460.
155
Cf., por exemplo, JONES, Amelia, Art history/art criticism: Performing meaning, Performing The
Body/Performing The text, Amelia Jones e Andrew Stephenson (eds.), Londres: Routledge, 1999, pp. 3651.
45
Traduo do original: The object of craft sustains the reality of human rhythms and being. SLIVKA,
Rose, The Persistent Object, op. cit., Rose Slivka e Aileen O. Webb (eds.), 1968, pp. 12-17.
157
RACZ, Imogen, op. cit., 2009, p. 14.
158
CLARK, Garth, How Envy Killed the Crafts, op. cit., 2010 [1995], pp. 445-453.
159
BECKER, Howard S., op. cit., 1982, p. 186. Cf. tambm BAUDELAIRE, Charles, The Life and
Work of Eugne Delacroix, Baudelaire: Selected Writings on Art and Artists, P. E. Charvet (trad.),
Cambridge (Massachusetts)/Nova Iorque/Melbourne: Cambridge University Press, 1981, p. 358-89;
ROSENBERG, Harold, The Tradition of the New, Nova Iorque: McGraw-Hill Book Co., 1965 [1959].
46
incio naquela dcada, tanto nos museus e no mercado de arte j consolidados, como em
universidades, galerias e outras entidades que foram edificadas de raiz para proteger e
divulgar as primeiras. No Reino Unido, por exemplo, a melhoria do nvel de vida
favoreceu uma impetuosa difuso comercial para os artesos-designers emergentes.
A partir dos anos 1970, a Inglaterra obteve um papel de destaque na criao de
organismos apoiados pelo Estado e destinados difuso da ornamentao. Neste
mbito, realamos o surgimento do Crafts Advisory Committee em 1971, que adquiriu a
designao posterior de British Crafts Council, e definiu uma nova orientao para
aquele tipo de manifestaes. Desde ento, este gnero de entidades tem tido um papel
determinante na revitalizao e unificao das artes aplicadas, ainda que, por vezes,
tenha motivado limites excessivos e ideologias restritivas160.
Nas dcadas de 1970 e 1980, em ambos os lados do oceano Atlntico, quer a
exibio (cf. Figuras 21 e 34), quer o mercado de artes decorativas sofreram uma
expanso e, a par do que sucedera com as vanguardas do incio do sculo, a actividade
dos negociantes continuou a ser fundamental para a sobrevivncia dos criadores.
Embora a vitalidade objectiva do artesanato no tivesse sido acompanhada por
um suporte terico e crtico que sustentasse o seu significado na contemporaneidade, os
anos 1980 proporcionaram um gradual reconhecimento do intercmbio entre a
vanguarda e a cultura de massas e, por acrscimo, entre a arte e o artesanato. Em
particular, foi desencadeada uma rectificao do papel da manualidade na modernidade
que se revelou vital para a salvaguarda do seu vigor. Efectivamente, a reviso
historiogrfica de gneros como a cermica, o vidro, o mobilirio, a joalharia e a
metalurgia impulsionou a restituio da narrativa, do simbolismo e do eclectismo na
prtica coeva, em detrimento da abstraco gestual que distinguira a dcada de 1970. Na
verdade, este mpeto tornou possvel desvendar o pior segredo guardado na histria da
arte161: a preponderncia do ornamento na prtica moderna e contempornea. Ao
mesmo tempo, o paradoxo entre a efectiva extino das fronteiras que separavam a arte
do artesanato e a sua permanncia na teoria e no mercado conduziu os artistas-artesos
160
RACZ, Imogen, op. cit., 2009, p. 8; PEACH, Andrea, What goes around comes around? Craft
revival, the 1970s and today, Craft Research, Bristol e Wilmington: Intellect Limited, vol. 4, n 2, 2013,
pp. 161-179.
161
Traduo do original: Crafts influence on virtually every aspect of contemporary art is the worst kept
secret in art history, as art historians are beginning to realize the profound debt current practices owe to
handmaking. BRYAN-WILSON, Julia, Eleven Propositions in Response to the Question: What Is
Contemporary about Craft?, The Journal of Modern Craft, vol. 6, n 1, Londres: Bloomsbury
Publishing Plc., Maro de 2013 pp. 7-10.
47
162
48
autoconscincia. Apesar do seu ponto de vista algo redutor e elitista, Arthur Danto no
colocava de parte a possibilidade de o artesanato ascender condio de arte.
Relativamente reviso histogrfica da dicotomia entre o artesanato e as artes
plsticas, destacamos brevemente a perspectiva feminista que elaborou uma combinao
clara entre dois elementos ostracizados, ou seja, dois outros do sistema moderno das
belas-artes: as mulheres, na sociedade e no campo artstico; e as artes aplicadas, em
relao s artes maiores, ao nvel institucional.
Escrito por Rozsika Parker, o livro The Subversive Stitch: Embroidery and the
Making of the Feminine (1984) foi consagrado inferiorizao do bordado no sector
artstico165. Na opinio da historiadora britnica, a partir do sculo XVIII, o bordado e a
mulher estavam associados decorao e delicadeza, mas tambm ausncia de
intelecto, o que determinara a sujeio de ambos ao domnio amador e domstico,
conforme retrata o filme Il Gattopardo O Leopardo, Figura 51 realizado em 1963
por Luchino Visconti, referente ao perodo de unificao italiana, onde as mulheres da
famlia Salina so cingidas a trs aces: rezar, bordar e chorar.
Perante a possibilidade de considerar o bordado enquanto arte, Parker concluiu
que tal implicaria a resignao s classificaes hierrquicas, assim como a negao das
importantes disparidades entre o primeiro e a pintura. Por outro lado, este lavor
tampouco ostentava o propsito utilitrio da criao artesanal, uma vez que era
primordialmente pictrico ou representativo. Por conseguinte, a autora optou por
classificar o bordado enquanto manifestao artstica, dado o entretecimento de
iconografia, estilo e uma funo social166 que este encerrava. Assim, Rozsika Parker
demonstrou que a manipulao dos materiais por via do bordado podia gerar diversos
significados (Figura 52). A mesma sugesto aproximava-se dos princpios do
artesanato de ateli dos anos 1950 e 1960, o qual proporcionou a independncia
profissional a algumas mulheres, devido ao seu contributo essencial para a evoluo de
artes como a cermica, a saber, por via da tecnologia do esmalte. Apesar destes
esforos, prticas como a olaria permaneceram enclausuradas nas artes ornamentais
ou menores, aspecto que, em parte, se deveu concernente conotao feminina.
165
Cf. PARKER, Rozsika, The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine, Nova
Iorque: I. B. Tauris & Co. Ltd., 2010 [1984].Cf. tambm PARKER, Rozsika e POLLOCK, Griselda, Old
Mistresses: Women, Art and Ideology, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1981.
166
Traduo do original: I have decided to call embroidery art because it is, undoubtedly, a cultural
practice involving iconography, style and a social function. PARKER, Rozsika, op. cit., 2010 [1984]. p.
6.
49
Por seu turno, no extremamente actual ensaio Making Something from Nothing
(Toward a Definition of Womens Hobby Art), publicado em 1978 na revista
Heresies167, Lucy Lippard defendeu que a sujeio da arte de recreao (hobby art)
feminina melhoria do lar afastava a ideia de uma actividade egosta e artstica, bem
como protegia as mulheres quer da intimidao, quer das presses profissionais e
econmicas inerentes cultura de elite. Por outro lado, evidente que o amadorismo
das artes manuais favorecia a segregao das mulheres no entorno social e artstico.
Embora apenas viesse a ser cunhado no sculo XXI, o termo artesanativismo
(craftivism168), alusivo tentativa de conciliar o artesanato e o activismo, comeou por
ser desenvolvido na arte feminista dos anos 1970 e 1980. A ser aprofundado no segundo
captulo, este movimento reivindicou a manualidade enquanto exerccio disseminado no
quotidiano, ao transportar a sua herana leiga e caseira para o espao pblico, onde se
tornava possvel a contestao. Tal mpeto utpico de transformao social envolvia
claras inspiraes no Modernismo e desembocou na expresso da experincia feminina
e na partilha da autoria, atravs da organizao de projectos colectivos.
Especificamente, foi no contexto destes debates que as performances feministas
empregaram com frequncia a prtica artesanal, tornando-a independente e no
subalterna da arte. Esta vitalidade influenciou consideravelmente a militncia do
artesanato no sculo XXI que expandiu estes objectivos a outros sectores sociais
ostracizados, com o auxlio das comunidades digitais169.
167
LIPPARD, Lucy, Making Something from Nothing (Toward a Definition of Womens Hobby Art,
Heresies: Womens Traditional Arts The Politics of Aesthetics, vol. 1, n 4, 1978, pp. 63-66.
168
O termo veio a ser cunhado por Betsy Greer em 2003, a fim de conciliar os mundos do artesanato e do
activismo. GREER, Betsy, op. cit., 2003. Cf tambm GREER, Betsy, Knitting for Good! A Guide to
Creating Personal, Social, and Political Change, Stitch by Stitch, Massachusetts: Trumpeter Books, 2008;
GREER, Betsy (ed.), Craftivism: The Art of Craft and Activism, Vancouver: Arsenal Pulp Press, 2014.
169
ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2010, p. 4.
50
Com efeito, ainda que ancestral, a luta entre o artesanato e a tecnologia foi
perdendo terreno at ao sculo XXI, momento em que ambos descobriram um prazer
em comum: fazer e manusear coisas. No que se refere ao debate em torno da
classificao artstica, Paul Greenhalgh esclareceu que a dcada de 1990 assistiu a uma
alterao da nfase na ideologia da reclamao negativa (porque no sou tratado como
um artista?) para um esprito integracionista (que importncia tem isso, desde que eu
170
Traduo do original: The avant-garde of the future will not be based on individuals, it seems, but
individualised companies. GREENHALGH, Paul (ed.), op. cit., 2003 [2002], p. 3.
171
Traduo do original: The marketplace success of such objects may be the result of changes in the
economics of distribution, which allow a return to small-batch production; it may reflect a shift in the
market for high-style design, which has now begun to approach the heady heights of contemporary art; or
it may simply be a matter of diversification within the market, with the handmade carving out its niche
through its stylistic opposition to overly refined, slick computer-based work. ADAMSON, Glenn
(ed.), op. cit., 2010, p. 461.
51
172
Traduo do original: An interesting aspect of the classification debate during the course of the 1990s
has been a shift in emphasis from the ideology of the negative complaint (why am I not treated like an
artist?) to an integrationalist spirit (what does it matter as long as I create and communicate?).
GREENHALGH, Paul (ed.), op. cit., 2003 [2002], p. 3.
173
CLARK, Garth, How Envy Killed the Crafts, op. cit., 2010 [1995], pp. 445-453. Este artigo baseiase num discurso proferido a 16 de Outubro de 2008 no Pacific Northwest College of Art, sob o ttulo
How Envy Killed the Crafts Movement: An Autopsy in Two Parts. No ano seguinte, Garth publicou um
livro com o mesmo nome.
174
Tal foi igualmente defendido pela historiadora da arte norueguesa Jorunn Veitberg. Cf. VEITBERG,
Jorunn, Craft in Transition, Bergen: Bergen International Academy of Art, 2005.
175
DORMER, Peter (ed.), The Culture of Craft, Manchester: University Press, 1997.
52
176
Os artigos apresentados neste simpsio integram a publicao Exploring Contemporary Craft: History,
Theory and Critical Writing. KOPLOS, Janet, Whats Crafts Criticism Anyway?, Exploring
Contemporary Craft: History, Theory and Critical Writing, Jean Johnson (ed.), Toronto: Coach House
Books, 2002, pp. 81-90. Cf. tambm KOPLOS, Janet e METCALF, Bruce, Makers: A History of
American Studio Craft, Carolina do Norte: The University of North Carolina Press, 2010.
53
RISATTI, Howard, Taxonomy of craft based on applied function, op. cit., 2007, pp. 29-40.
Traduo do original: Function forces us to understand them, not as discrete components, but as a
constellation of interrelated elements residing at the core of the craft object. RISATTI, Howard, op. cit.,
2007, p. 32.
179
RISATTI, Howard, op. cit., 2007, pp. 15-16.
178
54
() podem sumarizar-se estas direces como incluindo uma nfase nos significados
metafricos do quotidiano, natureza morta e localizao, nas instalaes, conceitos nofuncionais, tcnicas mistas, prticas digitais e colaborativas e criaes de cultura material
representativas do que Hal Foster, Alex Coles e outros identificaram como a viragem
etnogrfica181.
SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and
Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
181
A concepo do artista como etngrafo que Hal Foster desenvolveu ser explanada aquando da anlise
da obra da artista portuguesa Cristina Rodrigues.
Traduo do original: Although never systematically analyzed in the exhibition, one might
summarize these directions as including an emphasis on the metaphorical meanings of the everyday, still
life and location, on installations, nonfunctional concepts, mixed media, digital and collaborative practice
and formations of material culture representative of what Hal Foster, Alex Coles and others have
identified as the ethnographic turn. MARGETTS, Martina, Out of the Ordinary: Spectacular Craft, The
Journal of Modern Craft, vol. 1, n 2, Oxford / Nova Iorque: Berg, Julho de 2008, pp. 299-302.
55
182
Cf. PETRY, Michael, The Art of Not Making: The New Artist/Artisan Relationship, Londres: Thames
& Hudson, Ltd., 2012.
183
Traduo do original: Craft has become a form of persuasiveness, a technique for grabbing attention
and holding it, and can serve to either open up thought or to close it down. BROWETT, David L., The
Meanings
of
Making,
Brimstones
&
Treacle,
[Em
linha],
c.
2010,
url:
<http://brimstonesandtreacle.wordpress.com/writing/dl-browett-writing/meanings-of-making/>,
[consultado em 27-09-2013].
184
PLACINO, M. Portia O., Art Publics: Contemporary challenges to criticality, Tutok FoE, [Em
linha], posto em linha a 5 de Agosto de 2013, url: <http://tutok.org/discussions/art-publics-andcriticality/>, [consultado em 06-10-2013].
56
No artigo The Work of Art in the Age of Digital Reproduction (An Evolving
Thesis: 1991-1995), cujo ttulo estabelece um paralelismo com o ilustre ensaio de
Walter Benjamin, Douglas Davis salientou que o advento da reprodutibilidade
computorizada da obra de arte ditou o fim da distino e a consequente fuso entre o
original e a cpia. Na prtica, semelhana da antecessora reproduo tcnica, a
era digital voltou a desafiar os cnones artsticos, ao motivar a partilha e reinveno de
imagens, sons e palavras, em virtude da sua visualizao, audio e armazenamento. De
acordo com o artista e terico, por um lado, a multiplicao electrnica precipitou a
condenao da aura e da criao autntica que Benjamin previra. Por outro lado, este
fenmeno ditou a transferncia da aura para a cpia individuada. Deste modo, o
receptor torna-se to actuante na materializao do objecto quanto o criador, acedendo
ao mesmo a partir de ferramentas como a mquina fotogrfica ou de filmar digital e da
Internet. Aparte os novos modos de recepo, a expanso mais fascinante da obra de
arte para os interiores ntimos do nosso corpo, mente e esprito185.
Em contraste com a precedente cpia tcnica, a multiplicao computorizada
preserva a obra original com preciso, sem a danificar e facilita a sua manipulao. Do
ponto de vista de Davis, as formas de interaco proporcionadas pela digitalizao e
pelo ciberespao contm implicaes em termos sociais e psicolgicos. Identicamente, a
rplica electrnica tambm afecta os produtos manuais no sentido literal atribudo
pelo autor que, contudo, apenas mencionou a escrita, o desenho e a pintura. Na
realidade, agora possvel gravar, copiar, colar, editar virtualmente o trabalho de
origem e experienci-lo a um grau indito, em contexto privado.
No livro Abstracting Craft: The Practiced Digital Hand, publicado cerca de um
ano depois do anterior, o especialista em computao urbana e em design de interaco
local Malcolm McCullough afirmou que a emergncia do computador providenciou no
s novos utenslios, mas tambm uma crescente afinidade entre os recursos manuais e
digitais186. Em particular, o autor argumentou que a utilizao proficiente dos novos
dispositivos electrnicos exige qualidades humanas como a coordenao entre o olho e
185
Traduo do original: But the work of art is not only changing its form and means of delivery. By far
its most provocative extension is into the intimate bowels of our body, mind, and spirit. DAVIS,
Douglas, The work of art in the age of Digital Reproduction (An Evolving Thesis: 1991-1995),
Leonardo, vol. 28, n 5, Massachusetts: The MIT Press, 1995, pp. 381-386.
186
MCCULLOUGH, Malcolm, op. cit., 1996. Sobre esta articulao, cf. tambm BARBROOK, Richard
e SCHULTZ, Pit, The Digital Artisans Manifesto, nettime conference, Ljubljana, 1997, [Em linha],
posto em linha em 2007, url: <http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/16/the-digital-artisansmanifesto-by-richard-barbrook-and-pit-schultz/>, [consultado em 13-01-2014].
57
187
Traduo do original: In QuickTime movies sent over computer networks and the phenomenon of
video conferencing, we see yet further squeezing of now and then, here and there, real and artificial,
original and manipulated. DAVIS, Douglas, The work of art in the age of Digital Reproduction (An
Evolving Thesis: 1991-1995), op. cit., 1995, pp. 381-386.
188
Traduo do original: Here is where the aura resides-not in the thing itself but in the originality of the
moment when we see, hear, read, repeat, revise. DAVIS, Douglas, The work of art in the age of Digital
Reproduction (An Evolving Thesis: 1991-1995), op. cit., 1995, pp. 381-386.
58
blogues e das redes sociais189 para comunicar e promover a sua causa, o artesanato
amador rapidamente se disseminou pelo mundo. Ao invs da total insurgncia contra o
presente que originara o movimento Arts and Crafts, o neo-artesanato ostenta uma
atitude deliberadamente irnica perante o passado 190. Esta fuso entre a fabricultura e
a cibercultura tem possibilitado a criao de redes informticas de contactos (networks)
destinadas partilha de histrias e de prticas entre mulheres, mes e activistas191 que
formam comunidades em linha ou guildas virtuais192. Semelhante designao
corrobora a recuperao do antigo sistema oficinal, embora se aparte do seu propsito
econmico tradicional e conteste o isolamento que caracterizava aquele, o artista
idealizado pelos sculos XVIII e XIX e os militantes na dcada de 1970. Em
simultneo, os mltiplos livros e revistas193 subordinados ao tema servem de suporte
aprendizagem quer prtica, quer da ideologia subjacente ao Faa-Voc-Mesmo.
De uma forma geral, o intercmbio entre a arte, o design e a tecnologia tem
ampliado exponencialmente as fronteiras da percepo, da interaco social e da
representao. Ao mesmo tempo, a interseco entre os mundos virtual e real e o
confronto entre o fluxo de dados e os sentidos humanos tm gerado surpreendentes
possibilidades de ligao.
189
Cf., para alm do stio referido na nota 18, as organizaes e projectos Anti-Factory
(www.stephaniesyjuco.com/antifactory/), Body count mittens (www.craftsanity.com/pdf/mittenpattern
.pdf), Craftster (craftster.org), Church of Craft (churchofcraft.org/), Craft Hope (www.crafthope.com/),
Crafts for Critters (craftsforcritters.org/), Extreme Craft (www.extremecraft.com), Gang da Malha
(https://www.facebook.com/gangdamalha), Handmade Nation (indiecraftdocumentary.blogspot.pt/;
LEVINE, Faythe e HEIMERL, Cortney, Handmade Nation: The Rise of DIY, Art, Craft, and Design,
Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 2008; Handmade Nation, Faythe Levine (dir.),
Milwaukee/Wisconsin: Milwaukee DIY, 29 de Janeiro de 2009, 90 min., documentrio; Knitta Please
(knittaporfavor.wordpress.com/), Microrevolt (microrevolt.org), neoFOFO (https://www.facebook.com/
neoFOFO?fref=ts), Stitch n Bitch (stitchnbitch.org/) e Subversive Cross Stitch (www.subversivecross
stitch.com/), entre outros.
190
PEACH, Andrea, What goes around comes around? Craft revival, the 1970s and today, op. cit.,
2013, pp. 161-179.
191
BRUSH, Heidi M., Fabricating Activism: Craft-Work, Popular Culture, Gender, Utopian Studies,
vol. 22, n 2, 2011, pp. 233-260.
192
BONANNI, Leonardo e PARKES, Amanda, Virtual Guilds: Collective Intelligence and the Future of
Craft, op. cit., Glenn Adamson (ed.), vol. 3, n 2, Julho de 2010, pp. 179-90.
193
Cf., por exemplo, TAPPER, Joan, Craft Activism, Nova Iorque: Random House LLC, 2011; SIMS,
Jade, Craft Hope, Asheville: Lark Books NC, 2010; WASINGER, Susan, Eco-Craft, Asheville: Lark
Books NC, 2009.
59
2.
O ARTESANATO E O FEMINISMO NO ENREDO DA CULTURA DE ELITE E
DA CULTURA DE MASSAS
Craft still stands against the anonymity of massproduction and for the personalized object.
Craft still stands against ugliness and, on occasion, for
beauty.
Craft still stands against big-money capitalism and for
small-scale entrepreneurship.
Craft stands against corporate labour, where most workers
are replaceable parts in a bureaucracy, and for individual selfdetermination.
Craft stands for the rich potential the human body at work
and against disembodiment in all its forms.
Bruce Metcalf, Contemporary Craft: A Brief Overview,
2002195
O presente captulo tem como primeiro intuito situar a prtica artesanal na trama
da cultura de elite e da cultura de massas. J descrevemos a formao e o
desenvolvimento do sistema moderno das belas-artes, o qual gerou o mito da
originalidade da vanguarda196 que Rosalind Krauss analisou e que organismos como
os museus preservaram. Conforme explicou a autora, todas estas instituies foram
concertadas, em conjunto, para encontrar a marca, o fundamento, a certificao do
[objecto] original197 e conceptual, individual e livre, inferiorizando a actividade
manual, colectiva e servil. Tendo os mesmos pressupostos institucionais em vista,
194
ANTONELLI, Paola, Nothing Cooler than Dry, Droog Design: Spirit of the Nineties, Gijs Bakker e
Renny Ramakers (ed.), Roterdo: 010 publishers, 1998, pp. 12-15.
195
METCALF, Bruce, Contemporary Craft: A Brief Overview, op. cit., 2002, pp. 13-24.
196
KRAUSS, Rosalind E., The Originality of the Avant-Garde, The originality of the avant-garde and
other modernist myths, Cambridge (Massachusetts): The MIT Press, 1991, pp. 151-70.
197
Traduo do original: And throughout the nineteenth century all of these institutions were concerted,
together, to find the mark, the warrant, the certification of the original. KRAUSS, Rosalind E., op. cit.,
1991, p. 162.
60
198
Traduo do original: Mass culture has always been the hidden subtext of the modernist project.
HUYSSEN, Andreas, op. cit., 1986, p. 47.
199
Sobre a nunca suplantada tenso entre a cultura de elite e a cultura de massas, cf. FUNCKE, Bettina,
Pop or Populus: Art Between High and Low, Berlim e Nova Iorque: Sternberg Press, 2009.
200
Cf., por exemplo, ARNOLD, Matthew, Culture and Anarchy: An Essay in Political and Social
Criticism, Londres: Smith, Elder and Co., 1869.
201
Traduo do original: high, () lofty; elevated (). Exalted in rank or estimation; () grave or
serious; () rich or luxurious; () of great amount, degree or force; () haughty or arrogant, as manner
or expression; extreme in doctrine or opinion. KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 1, 1971, p. 453.
202
Traduo do original: low () humble or meek; of inferior quality or character; not advanced in
civilization or organization; () vulgar; () cheap (). KELLERMAN, Dana F., op. cit., vol. 1, 1971,
p. 566.
61
62
Traduo do original: In contrast to the liberal era, industrialized as well as popular culture may wax
indignant at capitalism, but it cannot renounce the threat of castration. Cf. ADORNO, Theodor A. e
HORKHEIMER, Max, op. cit., Londres: Verso, 1979 [1944], p. 141; HUYSSEN, Andreas, Mass Culture
as Woman, op. cit., 1986, pp. 44-62.
204
ADORNO, Theodor, op. cit., 1988 [1970], p. 16.
205
Traduo do original: Premodern art hoped to alter reality, while autonomous art is the quintessence
of the division between mental and manual labour in a class society. ADORNO, Theodor A. e
HORKHEIMER, Max, op. cit., Londres: Verso, 1979 [1944], p. 6.
206
GREENBERG, Clement, Avant-Garde and Kitsch, op. cit., 1989 [1939], pp. 3-21.
63
manuais ou locais e prticas industriais ou de massas, quer dizer, entre uma arte do
povo e uma arte para o povo. Por acrscimo, este conflito pressupunha a mera invaso
da alta cultura pela baixa cultura e ignorava os constantes dilogos estabelecidos entre
ambas.
Por outro lado, ao delinear as teses da especificidade do meio e da tendncia
autocrtica do Modernismo, Greenberg visava preservar uma hierarquia esttica que
dirigiu todo o seu pensamento. Todavia, a sua concepo no esgotava a era
contempornea que, conforme apurmos, tivera incio com a procura da obra de arte
total e do desmantelamento da dicotomia arte/artesanato, por via de correntes como o
Arts and Crafts. Ao invs, a classificao do autor favorecia a pureza das
disciplinas artsticas (e parece no ter sido acidental o seu uso frequente do termo
disciplines, dada a sua conotao de controlo, normalizao e cientificao de uma
prtica), a qual, a seu ver, era alcanvel por meio da restrio aos procedimentos
concernentes207. Segundo Clement Greenberg, este objectivo fora concretizado pelo
abstraccionismo que, na sua opinio, era o nico caminho possvel para a arte na
segunda metade do sculo XX, atravs do expressionismo abstracto.
Contudo, a criao artstica desenvolvida desde o final do decnio de 1950,
descendendo, em parte, das vanguardas e do prprio expressionismo abstracto que fora
lanado na dcada de 1940 por figuras como Jackson Pollock (Figura 58), ostentou um
percurso de destruio do objecto (pictrico) aurtico, o qual deu lugar aco; de
eroso das fronteiras entre expresses artsticas como a pintura, a escultura, a
arquitectura, a dana e o teatro; de apropriao de tcnicas manuais e industriais
(Figuras 59 e 60); e de referncia afuncionalidade das artes plsticas, no contexto do
artesanato de ateli. Independentemente daquilo que pudesse ser mais saudvel para o
desenvolvimento da actividade artstica, o facto que, analogamente ao artesanato
conceptual, as neovanguardas, de que foram exemplo a instalao, o site-specific, a land
art, o happening, a performance e a body art propuseram um teste aos limites, no s de
207
Traduo do original: Thus would each art be rendered pure, and its purity find the guarantee of its
standards of quality as well as of its independence. GREENBERG, Clement, Modernist Painting, op.
cit., vol. 3: Affirmations and Refusals, 1988-95, pp. 85-91. Cf. tambm GREENBERG, Clement,
Towards a Newer Laocoon, op. cit., vol. 1: Perceptions and Judgments, 1988-95, pp. 23-41. No por
acaso, o ttulo deste ltimo ensaio reporta-se ao tratado de esttica de Gotthold Lessing (1729-1781),
Laaocon oder ber die Grenzen der Malerei und Poesie (Laocon: Sobre os Limites da Pintura e da
Poesia), publicado em 1766 e dedicado s especificidades das categorias artsticas, bem como ao texto de
Irving Babbitt The New Laookon: An Essay on the Confusion of the Arts, escrito em 1910 e igualmente
subordinado ao assunto da autonomia da arte.
64
cada campo, mas sobretudo da arte enquanto instituio, a fim de colocar em causa a
autonomia criativa. Em suma, todas as manifestaes mencionadas patentearam um
trajecto de hibridizao e de definio disciplinares, concomitantemente no de uma
ou de outra.
Ainda que Adorno ou por Greenberg no o tivessem reconhecido, a fuso entre a
arte popular e de elite deveu-se principalmente Pop Art. Entre o final da dcada de
1950 e o final da dcada de 1960, esta corrente inspirou-se nas vanguardas histricas,
sobretudo no dadasmo e na sua aplicao da collage, passando a integrar imagens da
publicidade e da imprensa, como atesta a obra Just what is it that makes today's homes
so different, so appealing? Exactamente, o que que torna as casas de hoje to
diferentes, to atraentes?, 1956, Figura 61 , de Richard Hamilton. Neste sentido, tanto
no Reino Unido como nos E.U.A., a Pop Art efectivou a transfigurao do banal208
relatada por Arthur Danto, ao incorporar, recompor e submeter os elementos da cultura
de consumo subjectividade criativa dos respectivos artistas. Consecutivamente, tal
realizao possibilitou a gradual insero da cultura de massas nas galerias de arte.
A par do olhar atento, mas no acrtico sobre a produo massificada 209, a Pop
Art tambm examinou as artes aplicadas. Conforme constatou Lawrence Alloway no
comunicado de imprensa da exposio This is Tomorrow, organizada em 1956 pelo
Independent Group na Whitechapel Art Gallery de Londres e entendida como um dos
beros deste movimento210, o seu objectivo era fazer perdurar uma tradio de
colaborao harmoniosa entre pintores, escultores, arquitectos e designers que no
desapareceu com os construtores de catedrais ou os decoradores de interiores
georgianos211. Segundo o autor, o ideal da arte arquitectura simbitica212 fora
investigado desde o sculo XIX, mas sem sucesso. Em resultado, consoante atesta o
208
DANTO, Arthur C., The Transfiguration of the Commonplace: A Philosophy of Art, Cambridge
(Massachusetts) / Londres: Harvard University Press, 1981.
209
MASSEY, Anne, The Independent Group: Modernism and Mass Culture in Britain, 1945-1959,
Manchester e Nova Iorque: Manchester University Press, 1995, p. 77.
210
Cf. HONNEF, Klaus, Pop Art, Kln: Taschen, 2004, pp. 16 e 40; MASSEY, Anne, op. cit., 1995, p. 98.
211
Traduo do original: Leading British artists and architects of the younger generation have pooled
their talents to prove that the ability of painters, sculptors, architects and designers to work harmoniously
together did not die out with the cathedral builders or the Georgian interior decorators as older critics
and Royal Academicians maintain but is flourishing still. ALLOWAY, Lawrence, This is Tomorrow:
At the Whitechapel Art Gallery, 9 August-9 September 1956 (comunicado de imprensa da exposio)
apud ALTSHULER, Bruce (ed.), Salon to Biennial - Exhibitions That Made Art History, vol. 1, 18631959, Nova Iorque/Londres: Phaidon Press, 2008, p. 36.
212
Traduo do original: Early modern art is full of theories concerning the integration of all the arts,
with realisation of the ideals scheduled for another time. But yesterdays tomorrow is not today - and the
ideal of symbiotic art architecture has not been achieved. ALLOWAY, Lawrence, BANHAM, Reyner e
LEWIS, David, This is Tomorrow, Londres: Whitechapel Art Gallery, 1956, s/p.
65
DANTO, Arthur C., Introduo: Moderno, Ps-moderno e Contemporneo, op. cit., 2006 [1997], pp.
3-22.
214
HIGGINS, Dick, Statement on Intermedia, Theories and Documents of Contemporary Art: A
Sourcebook of Artists' Writings, Kristine Stiles e Peter H. Selz (ed.), Califrnia: University of California
Press, 1996 [1966], pp. 728-730.
215
Cf. nota 150.
216
Cf. KRAUSS, Rosalind E., op. cit., 1999.
217
KRAUSS, Rosalind E., The Originality of the Avant-Garde, op. cit., 1991, pp. 151-70.
66
interpretao do receptor, a quem cabe completar a obra218. Ora, tal como defendeu
Krauss, de acordo com este modelo, a criao passvel de ser fruda de modos
diferentes, sem que isso afecte a sua irreproduzvel singularidade219. Tal significa
que, por vezes, como refere Margarida Brito Alves, a noo de originalidade que aqui
registamos no corresponde a uma originalidade que se define como irrepetvel, mas
antes a uma originalidade que depende de uma repetio 220, pois cada interpretao
pessoal equivale a um momento nico e, portanto, irrepetvel. Ora, as descobertas de
tericos como Krauss e Eco favoreceram uma percepo renovada da reproduo
gestual e formal que, afinal, caracterizava criao funcional, a indstria e as prprias
artes plsticas.
No campo da arte, a dcada de 1960 assistiu afirmao do Nouveau Ralisme
francs, cujo ttulo exprimia o intuito de inquirir novas aproximaes perceptivas do
real221 e cujas dcollages, feitas de elementos pouco convencionais e de despojos,
constituam o reverso das collages da Pop Art222. Por sua vez, a Funk Art californiana
tencionou elevar a cermica categoria da arte, renunciando actividade utilitria
tradicional e introduzindo objectos do quotidiano, populares e at kitsch na sua
produo. No mbito desta corrente, Robert Arneson empregou o auto-retrato como via
para recriar conceitos e sentimentos universais de forma humorstica, assim como de
subverter o lugar-comum de que a manualidade se cinge funo (Figura 62). Outras
colectividades, como o Fluxus e a Internacional Situacionista, almejavam reconciliar a
arte e a vida e impugnar a sociedade de consumo capitalista, o que implicou a incluso
de materiais como o barro e a impresso tipogrfica em meios tecnolgicos,
nomeadamente, audiovisuais223. Exemplarmente, o Fluxkit de 1965 constitui uma pasta
218
67
que contm uma coleco de cpias e impresses de objectos realizados por vrios
membros do grupo que contriburam para os respectivos festivais e eventos (Figura 63).
Tais artigos destinavam-se a ser agarrados, lidos e manipulados, como era o caso de
Endless Box Caixa Sem Fim, Figura 64 de Mieko Shiomi, composta por cubos de
papel encaixados. semelhana do posterior movimento feminista, os ltimos dois
grupos converteram as situaes e indivduos marginalizados nos principais temas de
uma prtica artstica que era excepcionalmente politizada para a poca e que, por isso,
antecipou a transformao cultural do quotidiano que Andreas Huyssen proclamaria
no decnio de 1980, em plena era da globalizao.
Nas dcadas de 1960 e 1970, sobressaiu ainda a arte conceptual que levou ao
extremo as pretenses de correntes como o cubismo, o dadasmo, o expressionismo
abstracto e a Pop Art, a fim de reivindicar a supremacia da ideia sobre o artefacto, ou
seja, da concepo mental sobre a execuo fsica da obra. Ainda que, num plano
imediato, tal assuno parecesse transparecer um distanciamento entre as artes
maiores e as artes ornamentais, veremos que foi precisamente a partir deste momento
que as fronteiras entre ambas comearam a dissipar-se de forma dramtica.
Coincidentemente, as profundas transformaes polticas, sociais, econmicas e
tecnolgicas da dcada de 1960 geraram incertezas quanto qualidade ambiental e ao
envolvimento dos governos nos conflitos armados, bem como desejos de conceber
oportunidades comerciais no corporativas e de redimir o Homem atravs do trabalho
manual. semelhana do que ocorrera no sculo XIX, estas circunstncias conduziram
emergncia de novas vagas artesanais associadas ao activismo, atravs das quais um
conjunto de pessoas socialmente desprotegidas procurou readquirir um sentido de
emancipao e de identidade colectiva224. Esta comunho de convices instigaria o
encontro entre o feminismo e o artesanato.
224
PEACH, Andrea, What goes around comes around? Craft revival, the 1970s and today, op. cit.,
2013, pp. 161-179.
68
69
227
Traduo do ttulo original: NOCHLIN, Linda, Why have there been no great women artists?, Art and
Sexual Politics, Elizabeth Baker e Thomas B. Hess (eds.), Londres:, Collier Macmillan, 1973, p. 2. Cf.
tambm o artigo em que a autora coloca a pergunta inversa, Why have there been great male ones? The
de-politicisation of Courbet, publicado em 1982, no n 22 da revista October.
228
JONES, Amelia, Introduction, op. cit., 1999, pp. 1-10.
70
229
BURISCH, Nicole, The Dematerialization of the Craft Object: Performance Art and Contemporary
Craft, Montreal: Concordia University, 2011, pp. 42-3 (dissertao de Mestrado apresentada em
Setembro de 2011, no departamento de Histria da Arte da Universidade de Concordia, Montreal).
230
Cf. HANISCHE, Caroline The Personal Is Political, Feminist Revolution: Notes From the Second
Year, S. Firestone e A. Koedt (ed.), Nova Iorque: Redstockings, 1969, pp. 204-205.
231
NELSON, Alice A., Political Bodies: Gender, History, and the Struggle for Narrative Power in Recent
Chilean Literature, Nova Jrsia: Bucknell University Press, 2002, p. 85.
71
Traduo do original: Embroidery connotes not only home but a socially advantaged home, securely
placed in the upper reaches of the class structure. PARKER, Rozsika, op. cit., 2010 [1984], p. 2.
233
PARKER, Rozsika, op. cit., 2010 [1984], p. xii; ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2010, p. 491.
234
HUYSSEN, Andreas, Mass Culture as Woman, op. cit., 1986, pp. 44-62.
72
Todavia, Lippard argumentou que este pendor amador no devia ser ponderado
como uma condio a ultrapassar, mas antes como um parmetro a partir do qual se
avaliaria o grau de excluso social e de gnero. Conforme esclareceu a autora na
introduo de uma compilao de textos feministas de 1976, o trao mais marcante da
arte feminista foi a sua insurgncia
() contra o patronato dos artistas, contra a imposio do gosto de uma classe sobre toda a
gente, contra a noo de que se no se gosta da obra deste e daquele pelas razes certas, no
se pode gostar dela de todo, bem como contra a sndrome da obra-prima, a sndrome dos trs
235
grandes artistas e assim por diante .
() rompa com os mecanismos opressivos do discurso hierrquico (elite vs. popular, o novo vs.
o velho novo, arte vs. poltica, verdade vs. ideologia), e () [que] a questo da vanguarda
236
literria e artstica de hoje seja () posicionada numa estrutura socio-histrica alargada () .
Traduo do original: I recognize now the seeds of feminism in my revolt against Clement
Greenbergs patronization of the artists, against the imposition of the taste of one class on everybody,
against the notion that if you dont like so-and-sos work for the right reasons, you cant like it at all, as
well as against the masterpiece syndrome, the three great artists syndrome, and so forth. LIPPARD,
Lucy R., From the Center: feminist essays on womens art, Nova Iorque: A. Dutton, 1976, p. 3.
236
Traduo do original: For if discussions of the avantgarde do not break with the oppressive
mechanisms of hierarchical discourse (high vs. popular, the new vs. the old new, art vs. politics, truth vs.
ideology), and if the question of todays literary and artistic avant-garde is not placed in a larger sociohistorical framework, the prophets of the new will remain locked in futile battle with the sirens of cultural
decline a battle which by now only results in a sense of dj vu. HUYSSEN, Andreas, op. cit., 1986, p.
4.
237
Traduo do original: As the word postmodernism already indicates, what is at stake is a constant,
even obsessive negotiation with the terms of the modern itself. HUYSSEN, Andreas, op. cit., 1986, p. x.
73
238
HUYSSEN, Andreas, Mass Culture as Woman, op. cit., 1986, pp. 44-62.
HUYSSEN, Andreas, op. cit., 1986, pp. 3-4.
240
Sobre o tema da globalizao, cf. ROBERTSON, Roland, Globalization: Social Theory and Global
Culture, Londres: SAGE, 1992; FEATHERSTONE, Mike, LASH, Scott e ROBERTSON, Roland (ed.),
Global Modernities, Londres: SAGE, 1995.
241
BORRIAUD, Nicolas, Relational Aesthetics, Paris: Les Presses du Rel, 2002 [1998]. Antes deste
primeiro estudo aprofundado, o termo foi empregado por Borriaud em 1996, no catlogo da exposio
Traffic que esteve patente no Museu de Arte Contempornea de Bordeaux e da qual foi curador.
239
74
242
75
244
76
77
Cf. ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2007; ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2010, pp. 4-5;
ADAMSON, Glenn, COOKE, Edward S. e HARROD, Tanya (ed.), The Journal of Modern Craft, Oxford
/ Nova Iorque: Berg, 6 volumes, 2008-2013; ADAMSON, Glenn, op. cit., 2013.
253
SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and
Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
254
GREENHALGH, Paul (ed.), The Genre, op. cit., 2003 [2002], pp. 18-27.
255
O conceito de pastoral reporta-se a um gnero literrio de origem clssica em que a deslocao dos
centros de poder considerada como uma forma de alcanar a objectividade e, portanto, a observao
crtica. Esta distncia tanto espacial, no sentido em que os textos pastorais so localizados em periferias
urbanas e protagonizados pela figura do pastor, como temporal, dado que se reportam ao passado.
78
256
Intitulado The Pastoral, um dos captulos da obra Thinking Through Craft dedicado associao
cultural que inerente noo de pastoral. Cf. ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2007.
257
BUSZEK, Maria Elena (ed.), op. cit., 2011, p. 16.
258
BLACK, Anthea e BURISCH, Nicole, Craft Hard, Die Free: Radical Curatorial Strategies for
Craftivism in Unruly Contexts, op. cit., Glenn Adamson (ed.), 2010, pp. 609-619. Sobre as tendncias
actuais do artesanato enquanto via de protesto, cf. WALLACE, Jacqueline, Yarn Bombing, Knit Graffiti
and Underground Brigades: A Study of Craftivism and Mobility, Wi: Journal of Mobile Media vol. 6, n
3, [Em linha], posto em linha no Outono de 2012, url: <http://wi.mobilities.ca/yarn-bombing-knit-graffitiand-underground-brigades-a-study-of-craftivism-and-mobility>, [consultado em 07-09-2013].
79
com quadrados tricotados e feitos em croch com linha cor-de-rosa por um grupo de
pessoas de mltiplas nacionalidades (Figura 71). Assim, a fabricultura constitui uma
forma de militncia que desafia as convenes da actividade, quer artstica, quer
artesanal.
Com efeito, a micro-revolta no entende o artesanato como meio ou processo,
mas como um modo de fazer que est ao alcance de toda a gente, por via de uma
aprendizagem de tipo informal e, frequentemente, colectivo, o que demonstra os fortes
laos entre a arte popular e o activismo. Como explica Elizabeth Garber, especialista em
educao pela arte, o neo-artesanato parte do princpio de utilizar os recursos
disponveis para criar algo cuja finalidade ser partilhado com os outros 259, repelindo a
criao solitria que define o artesanato de ateli. Nas organizaes artesanativistas,
as ideias so tecidas em conjunto e no existe uma liderana hierrquica imposta, a
par do que sucede na performance, cujo dilogo com as artes decorativas tem sido
revitalizado nos ltimos anos260. De facto, os contributos pessoais so aplicados na
configurao da democracia e da cidadania participativas, em correspondncia com a j
referida esttica relacional que Nicolas Borriaud identificou, com a esttica
social261 que props Lars Bang Larsen e com o community-specific, novo gnero de
arte pblica262 que, segundo reconheceu Miwon Kwon, transps o site-specific.
Adicionalmente, o artesanato subcultural firmado naquilo que Jack Bratich e
Heidi Brush qualificam de trabalho afectivo, na medida em que permite aperfeioar
competncias para agir, fortalecer comunidades e capacitar (empower) os cidados
desfavorecidos263 e/ou pertencentes a minorias tnicas. Por esta razo, semelhana do
que reivindicara John Ruskin, Malcolm McCullough declarou que criar [manualmente]
cuidar264. Esta expresso foi traduzida do original to craft is to care, cujo verbo
259
GARBER, Elizabeth, Craft as Activism, The Journal of Social Theory in Art Education, n 33,
Kryssi Staikidis (ed.), 2013, pp. 53-66.
260
Cf., por exemplo, BURISCH, Nicole, op. cit., 2011.
261
Cf. LARSEN, Lars B., Social Aesthetics: 11 Examples to begin with, in the light of parallel history,
Afterall, n 1, Central Saint Martins School of Art and Design, 1999, pp. 77-97.
262
Esta definio foi originalmente concebida por Suzanne Lacy. Cf. KWON, Miwon, From Site to
Community in New Genre Public Art: The Case of Culture in Action, One Place After the Other SiteSpecific Art and Locational Identity, Massachusetts: The MIT Press, 2002, pp. 100-137; LACY, Suzanne
(ed.), Mapping the Terrain: New Genre Public Art, Seattle: Bay Press, 1995.
263
Cf. BRATICH, Jack e BRUSH, Heidi, Craftivity Narratives: Fabriculture, Affective Labor,
and the New Domesticity, International Communication Association, So Francisco, [Em linha] posto
em linha a 8 de Maio de 2013 [24 de Maio de 2007], url: <http://www.allacademic.com/meta/
p170989_index.html>, [consultado em 04-10-2013].
264
MCCULLOUGH, Malcolm, op. cit., 1996, pp. 21-2.
80
265
Como constatou Garth Johnson, a reutilizao criativa, distinta da reciclagem pelo seu intuito
artstico e decorativo, uma prtica transcultural que remonta ao Antigo Egipto e ao Imprio Mogol,
passando pela Antiga Grcia. Contudo, o perodo ureo da reutilizao criativa ocorreu no Imprio
Romano, em que as esttuas de mrmore eram reesculpidas e os elementos ornamentais dos edifcios
eram pilhados para construir novos monumentos e significados, tais como o Arco de Constantino.
No sculo XX, o readymade revolucionou a arte moderna, ao apresentar objectos comuns como obras
de arte. A estes e outros exemplos subjaz o princpio da poupana. Outro tipo de reutilizao criativa teve
lugar na Werkbund alem que, nos anos de carncia que sucederam Segunda Guerra Mundial,
transformou mscaras de gs e capacetes militares em elegantes produtos utilitrios. Cf. JOHNSON,
Garth, Introduction, 1000 Ideas for Creative Reuse: Remake, Restyle, Recycle, Renew, Minneapolis:
Quarry Books, 2009, pp. 8-9; JOHNSON, Garth, Recycling Sucks! The History of Creative Reuse: Garth
Johnson at TEDxEureka, posto em linha a 1 de Janeiro de 2013, [Em linha], url:
<https://www.youtube.com/watch?v=Ez4pMe8M4hM>, [consultado em 05-11-2013].
266
Traduo do original: Right now, craft seems to play a bigger part in how and why art is produced. It
probably has something to do with the recent interest in slow work and regaining control over our lives
by slowing things down. HUNG, Shu e MAGLIARO, Joseph (ed.), By Hand: The Use of Craft in
Contemporary Art, Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 2007, p. 160.
267
A arte de guerrilha um tipo de street art que se inspira na arte de aco do segundo ps-guerra,
protagonizada pelo grupo japons Gutai e pelos environments e happenings de Allan Kaprow, bem como
em colectivos do final da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970 (ex.: Guerrilla Art Action Group
GAAG). Esta actividade annima e surge sem aviso no espao pblico, a fim de criticar o contexto
sociopoltico ou apenas de subverter a realidade. Por outro lado, quer o seu pendor artstico, quer a sua
escala so muito variveis. Por vezes, a arte de guerrilha infringe a lei e, frequentemente, assume a forma
de cartazes, sinais, desenhos ou grafitti. Tal o caso das Guerilla Girls que, desde 1985, produzem
outdoors, adesivos, videocassetes e performances que denunciam a fraca representao das mulheres e
minorias tnicas na arte. LAZZARI, Margaret R., The Practical Handbook for the Emerging Artist:
Enhanced Second Edition, Wadsworth: Cengage Learning, 2010, pp. 34-5.
81
268
HOMERO, Odisseia, vol. 1, Lisboa: Livraria S da Costa, 1944 [sc. VIII a.C.], p. 14.
Traduo do original: Changing the world one stitch at a time. About us, Craftivist Collective,
[Em linha], posto em linha em 2013, url: <http://craftivist-collective.com/about/>, [consultado em 01-112013].
270
BLACK, Anthea e BURISCH, Nicole, Craft Hard, Die Free: Radical Curatorial Strategies for
Craftivism in Unruly Contexts, op. cit., Glenn Adamson (ed.), 2010, pp. 609-619.
269
83
271
Traduo do original: It explores three key contributing factors: the role of infrastructure and the
state, craft and fine art ideologies, and revival as a response to socio-economic factors. PEACH, Andrea,
What goes around comes around? Craft revival, the 1970s and today, op. cit., 2013, pp. 161-179.
272
Traduo do original: For example, the current governments desire to champion traditional or
heritage crafts in a time of crisis is in sharp contrast to the more hubristic and forward-thinking
aspirations the state had for craft in the 1970s, which sought to distance craft from industry and align it
with the ideology and status of fine art. PEACH, Andrea, What goes around comes around? Craft
revival, the 1970s and today, op. cit., 2013, pp. 161-179.
84
3.
CASOS DE ESTUDO: ARTISTAS-ARTESOS CONTEMPORNEOS
Traduo do original: Otherwise put, the role of artworks is no longer to form imaginary and utopian
realities, but to actually be ways of living and models of action within the existing real, whatever scale
chosen by the artist. BORRIAUD, Nicolas, op. cit., 2002 [1998], p. 13.
274
CONTRERAS, Juan Carlos, The adaptative capacity of rural crafts in the face of global changes, op.
cit., vol. 1, Bristol e Wilmington: Intellect Limited, Agosto de 2010, pp. 101-112.
275
Traduo do original: In 1990 in Venice I showed as an African artist, a geographically defined artist.
But sixteen years after that, I went as just an artist. VOGEL, Susan (dir.), Fold Crumple Crush: The Art
of El Anatsui, Prince Street Pictures e Isaac Kpelle (prod.), Veneza/Nsukka/E.U.A.: Icarus Films, 2011, 53
min., documentrio.
85
VOGEL, Susan, A Fateful Journey: Africa in the Works of El Anatsui, Nka: Journal of
Contemporary African Art, vol. 28, Durham: Duke University Press, 20 de Maro de 2011, pp. 146-148
(crtica exposio individual realizada no Museu Nacional de Etnologia de Osaka, entre 16 de Setembro
e 7 de Dezembro de 2010); cf. tambm VOGEL, Susan, El Anatsui: Art and Life, Nova Iorque: Prestel
Verlag, 2012.
277
Traduo do original: The idea of the broken pot was based on the belief that when a pot breaks, it's
not the end of its life but the beginning of a new life for it... In essence, a broken pot is a symbol for
regeneration. SNYDER, Nina, El Anatsui Photos, About.com Denver, [Em linha], posto em linha em
2012, url: <http://denver.about.com/od/photogalleries/ss/El-Anatsui-Photos_2.htm> [consultado em 2111-2013].
278
GEE, Erika et al., El Anatsui: When I Last Wrote to You about Africa: Educators Guide, Nova
Iorque: Education Department/Museum for African Art, 2010, p. 9 (guia de educao para a exposio
que esteve patente neste e noutros museus norte-americanos, bem como no Royal Ontario Museum de
Toronto, entre 2010 e 2012).
87
esculturas formadas por placas de madeira que eram fabricadas por entalhadores locais,
marcadas com adinkra e suspensas na parede. Assim, peas como Signature (1999)
replicam o costume nigeriano de marcar com uma pincelada as pranchas de madeira
cortadas antes de serem vendidas pelo proprietrio, como se de uma assinatura autoral
se tratasse. Por seu turno, a escolha dos ttulos constitui um momento crucial do seu
processo artstico, no s porque que se relaciona com a linguagem, a mitologia, a
literatura, a poesia e a histria de frica, mas tambm porque repercute o modo como
alguns artesos ganianos denominam as suas criaes, com base em eventos, mitos ou
provrbios279.
Em meados da dcada de 1980, Anatsui estreou a edificao de painis de
parede formados por ripas verticais de madeira de rvores decduas que dispunha lado a
lado. Embora ainda recorra a este formato, o criador no deixou de se regenerar, j que,
a partir da dcada seguinte, passou a submeter os mesmos sarrafos ao corte da
motosserra, aplicao da exposta caligrafia visual com um maarico oxiacetilnico, ao
polimento e inciso de um padro gradeado, no qual tambm talhava e pintava signos.
A montante, o alinhamento das tbuas de madeira reproduzia as dobras de um
velho pedao de tecido, como atesta o ttulo de um dos conjuntos, Old Cloth Series
(Figura 79). Efectivamente, os txteis compostos por faixas que so cosidas umas s
outras so caractersticos da cultura ganiana. O tpico pano Kente, feito de seda e
algodo e identificvel pelas cores fortes e padres vibrantes utilizado na elaborao
de tnicas cerimoniais que so vestidas por reis, rainhas e outras figuras importantes dos
povos Akan e Ewe280. Suspensos na parede, estes muros de El Anatsui constituem uma
assimilao contempornea das artes tradicionais do Gana e da Nigria, ao passo que os
caracteres, a deteriorao, a fragmentao compositiva e a combusto sugerem a runa
de frica levada a cabo pelo Ocidente industrializado, mas tambm a itinerncia,
migrao e segmentao que distinguem aquele continente. Por conseguinte, estamos
perante uma manifestao mestia, cujo suporte de apresentao autenticamente
africano. Por outro lado, as mltiplas partes que formam estas estruturas podem ser alvo
279
Este guia de educao foi amplamente baseado no catlogo da exposio referida, editado por Lisa M.
Binder e ao qual no tivemos acesso. GEE, Erika et al., op. cit., 2010, pp. 21-27.
280
GEE, Erika et al., op. cit., 2010, p. 25.
88
Traduo do original: Many of his large compositions consist of multiple parts. Anatsui encourages
diverse readings by rearranging sections of scorched wood slats or linked aluminum caps, seeing such
movement as part of his nomadic aesthetic. GEE, Erika et al., op. cit., 2010, p. 3.
282
El Anatsui acompanhado por uma vasta equipa de assistentes na execuo das suas obras.
FORSTER, Ian (prod.), El Anatsui: Studio Process, Series Art21: Exclusive, [Em linha], Ian Forster
(prod.), episdio n 161, 2012, 424, documentrio, url: <http://www.artbabble.org/video/art21/elanatsui-studio-process>, [consultado em 21-11-2013].
89
CARDWELL, Ellen C., Museum Admission: Monumental Consumption with El Anatsui, New
American Paintings, [Em linha], posto em linha a 29 de Maro de 2013, url:
<http://newamericanpaintings.wordpress.com/2013/03/29/museum-admission-monumental-consumptionwith-el-anatsui/ Pepperdine University>, [consultado em 21-11-2013].
90
284
Cf. NEGRIN, Llewellyn, On the museums ruins: a critical appraisal, Theory, Culture and Society,
vol. 10, n 1, 1993, pp. 97-125.
91
as criaes constituem menos uma forma de protesto do que de alerta, se bem que o seu
enfoque local esclarece uma ntima ligao com as artes mecnicas associadas ao
feminino e o folclore, assim como a valorizao do homem comum e do patrimnio que
remonta ao socialismo utpico ingls do sculo XIX.
Enquanto directora da empresa CR Architects e coordenadora dos projectos de
investigao Villages in the Interior of Portugal e Design for Desertification, elaborados
em parceria com a Manchester School of Architecture, Rodrigues tem ainda indagado
frmulas novas e sustentveis de design rural que permitam combater a desertificao
humana e geogrfica, face s rpidas alteraes provocadas pela globalizao285. Neste
mbito, o caso de estudo seleccionado foi o concelho limtrofe de Idanha-a-Nova,
situado na regio da Raia (denominao que significa fronteira), em cujo Centro
Cultural Raiano a artista cria as suas peas, juntamente com investigadores locais e um
grupo de mulheres com quem partilha saberes e experincias de vida. Em suma, a
comunidade o fazer, falar e agir colectivo o sujeito e o objecto destas obras.
semelhana dos Broken Pots de El Anatsui, a srie das Mouras Vestidas
(2013) de Cristina Rodrigues tambm abrange um conjunto de vasos, desta feita, de
maiores dimenses e cobertos de fitas de cores ou rendas entranadas que, de novo,
subvertem a sua utilidade enquanto recipientes segundo a classificao de Howard
Risatti (Figura 86). Ora, a par dos recipientes partidos do criador ganiano, a inaptido
destes vasos como contentores, receptculos ou guardies exprime o teor fragmentrio
das memrias populares que nos cabe salvaguardar mas como? Na actividade de
Rodrigues, tal no se resume investigao arqueolgica dos artefactos como via de
reconstituio histrica, mas envolve ainda um levantamento de manifestaes da
cultura imaterial, isto , das canes ou lendas religiosas e mouras que tm sido
oralmente transmitidas de gerao em gerao286. Na verdade, expresses efmeras
como estas integram a essncia de um povo e devem ser inventariadas.
Por outro lado, a participao das artfices idanhenses na realizao das peas
demonstra afinidades com o trabalho afectivo neo-artesanal e com a arte relacional
285
SOUSA, Cristina, Cristina Rodrigues, 21st Century Rural Museum, [Em linha], posto em linha em
2013, url: <http://www.21stcenturyruralmuseum.com/cristina-rodrigues>, [consultado em 11-10-2013].
286
Para explorar tradies orais como as de Idanha-a-Nova, cf. BARBIERI, Jos, Memoriamedia: eMuseu do Patrimnio Cultural Imaterial, [Em linha], posto em linha em 2012, url:
<http://www.memoriamedia.net/> [consultado em 18-10-2013]; Centro de Estudos Atade de Oliveira,
Arquivo Portugus de Lendas, [Em linha], posto em linha em 2006, url: <www.lendarium.org>
[consultado em 18-10-2013].
92
O Museu de Arte de Guangdong, na China, o Museu do Design e da Moda, a S-Catedral de Idanha-aVelha, o Museu Nacional de Arqueologia (2013) e a Catedral de Manchester (2014) foram alguns dos
locais eleitos. SOUSA, Cristina, Cristina Rodrigues, op. cit., 2013.
288
SOUSA, Cristina, Cristina Rodrigues, op. cit. 2013.
95
289
Cf. BENJAMIN, Walter, O Autor como Produtor, Sobre Arte, Tcnica, Linguagem e Poltica,
Lisboa: Relgio dgua, 1992 [1934], pp. 137-156.
290
Esta prtica de representao do outro reporta-se ao Romantismo, no mbito do qual artistas como
Jean Auguste Ingres (1780-1867) retratavam de forma idealizada personagens orientais como odaliscas.
J sob influncia da esttica realista, destacamos a srie Estudos de Personagens Camponesas (18811885) de Van Gogh, de que constam retratos de mulheres a tecer ou a coser e de homens a fazer cestos.
291
FOSTER, Hal, The Artist as Ethnographer, The Return of the Real: the avant-garde at the end of the
century, Massachusetts: The MIT Press, 1996, pp. 171-204.
292
Cf. POLLOCK, Griselda, op. cit., 2003 [1988].
96
A pixilation consiste numa tcnica de animao stop motion ou seja, de manipulao fsica dos
objectos que simula o seu movimento independente em que os atores ou objectos posam para a cmara
e, por cada fotograma ou fotogramas (frame) que so captados, alteram ligeiramente a sua posio.
294
Sobre a elaborao deste par conceptual na arte do sculo XX, cf. GRENIER, Catherine, Big Bang:
Destruction et cration dans lart du XXe sicle, Editions du Centre Pompidou, Paris, 2005, pp. 13-20.
97
perfuradas e costuradas (Feast Festim, 2000, Figura 90), depois por pequenssimos
desenhos tridimensionais de renda preta encontrada que eram digitalizados, filtrados,
impressos em papel e novamente costurados nos panoramas originais (Topologies
Topologias, 2002-2008, Figura 91). Essencialmente, as bases arquitectnicas destes
cenrios parecem-se com mesas que, de acordo com a taxonomia de Howard Risatti,
pertencem categoria dos suportes. Ora, num sentido metafrico, suportar pode
significar apoiar fsica ou psicologicamente e ainda sofrer por algo ou por algum.
Neste sentido, se estas mesas representam urbes, no deveriam as mesmas ser
sustentculos para as comunidades? Ser essa uma prioridade do planeamento urbano
nos dias de hoje? Em Feast, a esta acepo junta-se o facto de as toalhas de mesa no
cumprirem a sua funo taxonmica de cobrir, quer dizer, de proteger ou ocultar algo.
Assim, sero as cidades uma fonte de proteco ou, pelo contrrio, como indicia o ttulo
Feast, acabaro estas por nos oferecer apenas festa e consumo, em vez de nos socorrer
quando necessrio?
Interpretando as mesmas mesas como mesas de refeio que, por norma,
propiciam encontros ou divergncias e representam cdigos sociais, podemos inquirir se
a famlia hoje sinnimo de auxlio e proteco, como antes, ou se, inversamente,
perdeu o sentido de unio na sociedade actual. Semelhante discusso tambm
evidenciada pelo ttulo (Feast) que parece evocar a instalao Dinner Party Festa de
Jantar, 1974-79, Figuras 92 e 93 de Judy Chicago. Nesta, o cenrio da (ltima?) ceia
recriado numa mesa triangular sendo o tringulo a figura geomtrica que representa
o feminino construda por artesos, onde se glorificam trinta e nove mulheres ilustres
que a Histria defraudou. Outra possvel referncia de Feast refere-se comparao
entre o alimento e o sexo que remonta aos estudos psicanalticos de Sigmund Freud 295,
no mbito dos quais a sexualidade se converteu num elemento-chave do eu. Como
afirma Donald Preziosi, na modernidade, tu no s apenas o que comes ou o que
fazes, consomes, ou coleccionas, mas s tambm e, especialmente, o que desejas 296.
Nesta linha de pensamento, apesar das mltiplas menes na arte contempornea arte
equiparao entre a viso e a oralidade (sexual)297, julgamos que, distintamente, a pea
295
Cf. FREUD, Sigmund, Psicopatologia da vida quotidiana, Lisboa: Estdios Cor, 1974.
Traduo do original: You are not only what you eat or what you make, consume, or collect, but
you are also, and especially, what you desire. PREZIOSI, Donald, Performing modernity: the art of art
history, op. cit., Amelia Jones e Andrew Stephenson (eds.), 1999, pp. 27-35.
297
Cf., por exemplo, os trabalhos de Jasper Johns The Critic Sees e A Painting Bitten by a Man, ambos de
1961, assim como Trademarks de Vito Acconci, performance em que o artista imprime no seu corpo as
marcas das suas prprias dentadas, a fim de ilustrar a contnua interaco entre o sujeito e o objecto, a par
296
98
de Wilson remete para o trfico das nossas identidades e corpos na cultura popular. Por
fim, se as mesas de Feast forem entendidas enquanto mesas de costura que,
semelhana de Dinner Party, enaltecem a intricao e delicadeza da actividade manual,
domstica e feminina, no sero estas um smbovrias vitrines mveis, formadas por
tramas horizontais de fios de arame,lo da mulher como alicerce vital da famlia, em
contraste com a sua frequente representao como ser frgil e submisso? Qualquer que
seja o significado, indubitvel a insinuao do corpo nesta obra.
J no projecto escultrico Portable City de 2008 Cidade Porttil, Figura 94
de Anne Wilson, as correspondncias entre os txteis, o urbanismo e a tecnologia so
examinadas com maior profundidade. Este trabalho compreende
ora esticadas e
da auto-reflexividade do gesto artstico. POGGI, Christine, Following Acconci/targeting vision, op. cit.,
Amelia Jones e Andrew Stephenson (eds.), 1999, pp. 237-53.
99
298
100
Por sua vez, a austraca Kathrin Stumreich (n. 1976, Viena) tem vindo a explorar
a ligao entre a tecelagem e a electrnica299. Ao manipular plasticamente os
equipamentos digitais com finalidades estticas, a criadora celebra o poder
transformador que a tecnologia representa para a indstria e para as artes, no mbito das
quais se produziu uma nova materialidade300. Por outro lado, o seu trabalho atesta
que, quer o artesanato, quer a tecnologia so assinalados pela formao de conexes,
tanto no sentido literal, como no sentido figurado. Metaforicamente, tais
entrelaamentos podem reportar-se ao sistema biolgico humano e s ligaes pessoais
que so proporcionadas pela Internet e pelas redes sociais, semelhana do que sucede
nas paisagens em rede de Anne Wilson301.
Permanecendo no tema da mobilidade que encontrmos na cidade porttil de
Wilson, a instalao Der Faden (O Fio, 2010, Figura 97) de Stumreich compreende
uma bobina que montada em veculos como autocarros e bicicletas. medida que a
viatura conduzida e avana, o cordo desenrola-se e desenovela a cidade. Em
simultneo, o trilho da corda define um distanciamento e uma geometria espaciais que
so recolhidos por um microfone piezoelctrico302, o qual amplifica o som resultante e
cria um mapa do itinerrio escala real. Por sua vez, o som deste desenredamento capta
a ateno dos transeuntes que produzem as suas fantasias acsticas individuais 303. Da
que este projecto contenha uma vertente performativa, propagando-se no espao,
dependendo da aco do receptor e proporcionando um ensaio temporrio que
ultrapassa o mero objecto (a bobina) e a sua funo tradicional (enrolar o fio para o
tecimento). Desta maneira, proposta uma implicao do artesanato na tecnologia de
ponta e, portanto,na contemporaneidade.
299
101
Traduo do original: As such, they were poetic work in the Aristotelian sense; works capable of
setting into play a creative interpretation of human life and action. BONNEMAISON, Sarah e MACY,
Christine (ed.), Festival Architecture, E.U.A./Canad: Routledge, 2007, p. 3 apud HVATTUM, Mari,
Essence and Ephemera, Themes in Nineteenth Century Architectural Discourse, artigo apresentado na
conferncia Society of Architecture Historians Annual Meeting, Virginia, Abril de 2002.
305
Cf., por exemplo, DEBORD, Guy, A sociedade do espectculo, Lisboa: Afrodite, 1972.
102
detalhado306. J no decnio de 1960, Cage deu um concerto com o artista de vdeo Nam
June Paik (1932-2006) e concebeu o espectculo multimdia HPSCHD, em colaborao
com o compositor Lejaren Hiller (1924-1994) e distinguido pela aleatoriedade, pela
insero de sons computorizados e pela projeco de desenhos e filmes307.
Embora j tivesse sido investigado na obra musical de Marcel Duchamp,
designadamente em Erratum Musical (c. 1913, publicada em 1934) e do prprio John
Cage, com a pioneira pea Music of Changes (1951), o carcter aleatrio atingiu o seu
auge na pea HPSCHD que resultou num evento de cinco horas, ao qual o pblico
chegava depois do incio e de onde saa antes do seu termo. Na realidade, o trabalho
desenvolvido por Cage na dcada de 1960 foi influenciado pelos escritos de Marshall
McLuhan (1911-1980), respeitantes aos efeitos dos meios de comunicao e de R.
Buckminster Fuller (1895-1983), tocantes ao poder da tecnologia na promoo da
mudana social. Em virtude do seu carcter socialista e utpico, a obra do compositor
alcanou uma complexidade sem precedentes, bem como inspirou o surgimento da
msica electrnica na segunda metade de Novecentos.
Entretanto, a evoluo do computador conduziu propagao da tecnologia
digital destinada produo musical e, na dcada de 1990, a inveno do sintetizador
viabilizou a concepo, modificao e gravao do som 308. Por seu turno, o sculo XXI
assistiu disseminao destas duas inovaes que revolucionaram a performance
sonora. Em paralelo, a Internet fomentou a democratizao da criao musical, bem
como o fabrico caseiro de msica electrnica e de ferramentas personalizadas. Mais
uma vez, a tecnologia possibilitou que uma forma de arte maior se tornasse acessvel
a um pblico amplo, ainda que imediatamente se tivesse estabelecido uma diviso entre
a msica de arte e a msica popular309.
De qualquer forma, a multiplicidade sensorial da obra de John Cage tambm
assinala a pea Notations Notaes de Anne Wilson (2008, Figura 101), cujo ttulo
deriva do livro homnimo, assinado pelo primeiro e pela artista Fluxus Alison Knowles
(n. 1933) em 1969. A pea consiste num sistema notacional que resulta do registo
306
O termo happening foi forjado e posteriormente definido por Allan Kaprow, um dos alunos de John
Cage, juntamente com os quais desenvolveu este gnero artstico, no mbito da disciplina de Composio
Experimental que o segundo leccionou na New School for Social Research, em Nova Iorque.
307
PRITCHETT, James, The Music of John Cage, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 159-61.
308
Cf. RANDEL, Don Michael (ed.), The Harvard Dictionary of Music, Cambridge (Massachusetts) e
Londres: Harvard University Press, 2003.
309
RANDEL, Don Michael (ed.), op. cit., 2003, p. 125.
103
sonoro e visual dos gestos repetitivos das mos de Wilson, durante a prtica do croch e
do tric. As sequncias de movimento resultantes foram digitalmente fotografadas e
captadas em vinte partituras que se fixam na parede (Figura 102). Baseando-se nos
sons recolhidos, o artista de som Shawn Decker comps msicas que ecoavam de um
modo aurtico pelo espao, como se sacralizassem a actividade manual da criadora310.
Ainda no trabalho de Wilson, o registo audiovisual de Topologies deu origem s
instalaes Errant Behaviors e Mess (2006, Figura 103) que possibilitam a expanso
das significaes da obra esttica original, devido sua aleatoriedade, ausncia de
princpio ou fim e infinitude de encadeamentos. Analogamente, a elaborao das
animaes fotograma a fotograma replica a confeco cumulativa da renda, assim como
o comportamento errante da mo criadora a que o ttulo alude (Figura 104). De facto,
embora a mquina proceda de maneira previsvel e quase irrepreensvel, esta nunca
superar completamente as mos como as de Charlie Chaplin no filme Modern Times
de 1936 (Figura 105) , cuja ligao com a mente e com o olhar pode ocasionar
capacidades e gestos singulares. Do mesmo modo, as interaces humanas envolvem
actos imprevistos, inadequados ou padronizados, de humor ou perversidade que as
tecnologias da comunicao procuram proporcionar e simular. Por ltimo, alicerados
nas imagens, os arranjos sonoros efectuados por Shawn Decker so constitudos por
sons encontrados e processados, assim como por ritmos naturais, humanos e
artificiais311.
Ora, se, como explanmos anteriormente, a prtica manual foi um dos temas
nucleares das performances feministas, no contexto da discusso acerca do papel da
mulher nas esferas pblica e privada, j a actividade de Anne Wilson e Kathrin
Stumreich atesta uma nova associao entre as artes funcionais e a performance na
actualidade que alude ao sentido mgico e ritual original das primeiras. Em prol desta
afinidade, Wilson concretizou trs coreografias sob o nome Wind-Up: Walking the
Warp que foram apresentadas na Rhona Hoffman Gallery, em Chicago (2008), no
Museu de Artes Contemporneas de Houston (2010) e na Whitworth Art Gallery, em
Manchester (2012). Estas encenaram os rituais envolvidos na tecelagem e originaram
a confeco e exposio de uma pea txtil.
310
ULLRICH, Polly, Anne Wilson: New Labor, Sculpture, vol. 27, n 4, Nova Jrsia: International
Sculpture Center, Maio de 2008, pp. 38-43.
311
WILSON, Anne, Errant Behaviours, Vimeo, [Em linha], posto em linha a 31 de Maio de 2010
[2004], Chicago, 832, url: <http://vimeo.com/12185840>, [consultado em 23-11-2013].
104
105
314
STUMREICH, Kathrin, Fabricmachine, Kathrin Stumreich, [Em linha], posto em linha em 2013,
url: <http://www.kathrinstumreich.com/stofftonband/>, [consultado em 10-11-2013].
106
Consoante a taxonomia de Howard Risatti, confrontamos a colossal mantatapete com a sua utilidade tradicional de cobrir e a significao metafrica de resguardar
ou esconder algo ou algum. Neste sentido, no ser a prtica artesanal um modo de
proteco para determinados indivduos? De facto, o pblico de Local Industry foi
incitado a reflectir sobre a decadncia da tecelagem que fora o sustento de muitas
famlias e sobre as questes ticas inerentes ao trabalho nas manufacturas globais, assim
como a experienciar a dignidade e dureza do fabrico manual.
Todavia, enquanto em Walking the Warp o enovelamento do artesanato na
performance destinava-se a recriar a memria e a enfatizar a identidade nacional que a
sociedade frequentemente menospreza ou julga obsoleta, j Local Industry incitou o
pblico aco, cumprindo a esttica relacional determinada por Nicolas Borriaud.
Na verdade, a prpria arte relacional surgiu como resposta condio ps-industrial, em
que o fazer deu lugar imaterialidade e serventia como principais motores da
economia. De uma maneira similar, a ltima iniciativa de Wilson explora as relaes
humanas e o seu contexto social, em vez de um espao independente ou privado 315,
demonstrando que, na sociedade actual, o factor mais urgente j no a emancipao
dos indivduos, mas sim () a emancipao dimensional da existncia 316. neste
sentido que se vislumbram influncias do artesanativismo.
Por conseguinte, as peas de Wilson e de Stumreich espelham os
desenvolvimentos da teoria e da prtica artsticas e artesanais a partir do segundo psguerra que as propuseram no enquanto conjuntos de utenslios, mas sim de processos
ou experincias. Deste modo, o trabalho das duas criadoras pondera a crescente
descorporalizao que pautou a manualidade desde o advento do artesanato de ateli, ao
subverter as noes tradicionais de material e objecto, funo e habilidade.
No fim de contas, a obra de ambas as artistas concretiza a techn, ou seja, a
interpenetrao entre a arte e a tcnica, o intelecto e a mo que iluminou as
consideraes de John Ruskin, Walter Benjamin, Douglas Davis e Malcolm
McCullough. Efectivamente, se para outros autores a mecanizao aniquilava a aura,
quer dizer, a individualidade, especificidade e autenticidade da obra de arte, os
315
Traduo do original: Relational (art): A set of artistic practices which take as their theoretical and
practical point of departure the whole of human relations and their social context, rather than an
independent and private space. BORRIAUD, Nicolas, op. cit., 2002 [1998], p. 113.
316
Traduo do original: In our post-industrial societies, the most pressing thing is no longer the
emancipation of individuals, but the freeing-up of inter-human communications, the dimensional
emancipation of existence. BORRIAUD, Nicolas, op. cit., 2002 [1998], p. 60.
107
LORBER,
Michael,
Door
augmented,
op.
cit.,
[Em
linha],
2013,
url:
<http://www.kathrinstumreich.com/door-augmented/>, [consultado em 10-11-2013]; STUMREICH,
Kathrin,
Door
augmented,
op.
cit.,
[Em
linha],
2013,
Viena,
110,
url:
<http://www.kathrinstumreich.com/door-augmented/>, [consultado em 06-12-2013].
108
109
322
Como rebateu o terico da cultura polaco Tomasz Zauski, a repetio nas suas vrias formas no s
uma condio essencial da performance, mas tambm contm em si um potencial criativo prprio.
Performance art, that is the art of repetition, Galeria Labirynt, [Em linha], posto em linha em 2013, url:
<http://labirynt.com/en/performance-art-czyli-sztuka-powtorzenia-tomasz-zaluski/>, [consultado em 1211-2013].
323
HARRINGTON, B. A., New Materiality and the sensory power of craft, op. cit., 2010, pp. 6-7.
324
Traduo do original: A living being always implies a bodily being. Without a body there is no life.
Or, to be more precise without a body, there is nothing that touches. But of course the body as such, is not
a sufficient precondition of life. () life can only be understood on the basis of the difference between
living and inanimate or lifeless bodily matter. This is a difference that, while inscribed in the body,
constitutes the body as living body. SLATMAN, Jenny, The Sense of Life: Husserl and Merleau-Ponty
on Touching and Being Touched, Chiasmi International, n 7, Milo: Mimesis, 2005, pp. 305-325.
110
que a mo fosse compreendida enquanto corpo, isto , como um fazer que envolve
fisicalidade (especialmente, no caso do sopro do vidro)325.
Ora, tal aproxima-nos (perigosamente?) do mpeto de Richard Sennett que, no
seu livro The Craftsman (2008), props uma qualificao do artesanato enquanto
processo aplicvel a reas to variadas quanto o ensino, a alvenaria, a cirurgia, a
culinria e a educao dos filhos, assim como a cermica, a tecelagem e o fabrico de
mveis326. Ora, embora a recente teoria da arte popular e no a confine a uma classe
singular de objectos, mas sim a uma metodologia327, forma de conhecimento328 ou
tema329, esta acepo comporta o risco de descaracterizar totalmente as artes
decorativas.
Em particular, a nossa posio distingue-se na medida em que, quer os bons
artesos, quer os bons artistas devem ser diferenciados dos restantes homens pela sua
singular capacidade de executar manualmente aquilo que concebem intelectualmente.
De um modo idntico, s a colaborao entre o corpo e a mente, a destreza manual e a
conscincia artstica pode concretizar a obra de arte, consoante reivindicaram John
Ruskin, William Morris, Henri Focillon, Walter Benjamin, Martin Heidegger, Theodor
Adorno, Rose Slivka, Richard Sennett e Malcolm McCullough, semelhana do que
props o artesanato conceptual da dcada de 1960.
Aps este trajecto deixado em aberto e tendo em conta a infinitude de
possibilidades que os recursos digitais tm representado para o artesanato, acreditamos
que a chave est na assuno da complexidade destes enredamentos, bem como na
procura de um equilbrio entre os plos abstractos que aflormos, a saber, a mo e a
mente, a prtica e o discurso terico, o manual e o mecnico, a materialidade e a
incorporalidade e, claro, o artesanato e a arte.
325
SHINER, Larry, Blurred Boundaries? Rethinking the Concept of Craft and its Relation to Art and
Design, op. cit., 2012, pp. 230-244.
326
SENNETT, Richard, op. cit., 2008, pp. 101-289.
327
LEEMAN, Judith e STRATTON, Shannon, Gestures of Resistance: The Slow Assertions of Craft,
College Art Association Conference, Dallas, [Em linha], posto em linha em 2008, url:
<http://www.performingcraft.com/>, [consultado em 21-10-2013].
328
PRESS, Mike, Handmade Futures: The Emerging Role of Craft Knowledge in Our Digital Culture,
NeoCraft: Modernity and the Crafts, Sandra Alfoldy (ed.), Halifax: The Press of the Nova Scotia College
of Art and Design, 2007, pp. 249-266.
329
ADAMSON, Glenn (ed.), op. cit., 2007, p. 110.
111
CONSIDERAES FINAIS
No presente estudo, procurmos analisar a relaes entre o artesanato e as belasartes ao longo da poca contempornea e posicionar o primeiro na produo artstica da
poca contempornea, no sentido de averiguar o seu valor e significado. Chegados ao
fim desta dissertao, procuraremos retirar algumas ilaes a partir do trabalho
desenvolvido e sintetizar os resultados alcanados.
Enquanto preldio do perodo contemporneo que nos ocupou, o primeiro
captulo permitiu constatar que, para aferir o estatuto actual do artesanato, necessrio
ter em conta o enquadramento histrico, terico e institucional que foi definindo a sua
posio na arte e na sociedade.
Neste contexto, comprovmos que, antes da constituio do sistema moderno
das belas-artes no sculo XVIII, no se generalizara o conceito distintivo de artista,
nem tampouco existiam entidades que defendessem a superioridade das artes maiores,
em detrimento das artes menores. Por outro lado, a recuperao de termos como a
techn do grego antigo permitiu atestar a crena numa ligao entre as capacidades
mentais e fsicas que, por sua vez, filsofos como Descartes vieram a distanciar. Ao
mesmo tempo, os progressos tcnicos foram determinando uma crescente adaptao ao
corpo humano, desde o crebro at ponta dos dedos. Tambm tornmos evidente que,
previamente aos escritos de Immanuel Kant, no se consolidara a ciso entre a beleza e
a utilidade, dado que se atribua aos objectos o que Walter Benjamin designou como
valor de culto (cult value)330, quer dizer, uma ligao com determinada(s)
divindade(s) que proporcionava a venerao, ou um apreo que advinha da sua
funcionalidade. Adicionalmente, inferimos que no se gerara o corte entre o original e a
cpia, conforme corroborara a introduo e popularizao da encomenda de imitaes
de arte grega por parte dos Romanos.
Em paralelo, refutmos a ideia do artista como gnio solitrio e atormentado, a
qual representava uma tentao perigosa que o Renascimento, o Romantismo e o
Modernismo procuraram alimentar e que, at hoje, obscurece o entendimento das
condicionantes da criao e, por conseguinte, a evoluo da historiografia e crtica da
330
BENJAMIN, Walter, The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, op. cit., 1969 [193538], pp. 217-251.
112
arte. Para alm dos exemplos convocados no corpo do texto, no podemos deixar de
recordar a figura de Michelangelo da Caravaggio, cujos aspectos biogrficos suplantam
com frequncia a observao atenta da sua obra e suscita interpretaes fantasiosas.
Neste estado de alerta, propicimos uma desmistificao da arte no Renascimento,
demonstrando a persistncia da produo oficinal e colectiva, assim como da
encomenda artstica, a par do carcter minoritrio do artista de corte. Com efeito, a
Histria da Arte revela-nos que ser artista envolve a constante experimentao de meios
dspares da tela ao metal, da pedra ao corpo , seja por necessidade econmica, seja
por mpeto criativo.
Todavia, no deixmos de evidenciar a importncia histrica de acontecimentos
como a ruptura entre as artes liberais e servis nas pocas Helenstica e de dominao
romana que circunscreveu as primeiras s elites e a uma actividade livre, ao passo que
limitou as segundas a um lavor, ou seja, a um encargo. Salientmos a relevncia dos
primeiros passos no coleccionismo e na reutilizao criativa, retomando a situao da
arte grega durante o Imprio Romano. J no sculo XII, destacmos a substituio do
adjectivo pejorativo servil pelo de mecnico, graas a Hugo de So Vtor. Quanto
ao Renascimento, referimos o papel de Giorgio Vasari na promoo da pintura
categoria das artes liberais e na dignificao do pintor, do escultor e do arquitecto como
indivduos, em detrimento dos oficiais que trabalhavam nas guildas, em equipa. Na
mesma poca, relatmos a restrio da mulher funo de me e de dona de casa que
resultou na diminuio do nmero de praticantes femininas das artes mais estimadas e
do emprego oficinal. Relativamente a Seiscentos, mencionmos o advento da Academia
Real Francesa de Pintura e Escultura que ditou a excluso, por um lado, do ornamento
e, por outro, do gnero feminino.
A partir desta anlise, foi possvel deslindar a fundao do sistema moderno das
belas-artes no sculo XVIII que concebeu uma separao entre as artes decorativas e as
artes plsticas, a qual foi sustentada por filsofos iluministas como Immanuel Kant, a
quem seria atribuda a autoria da noo de autonomia artstica, se bem que
erroneamente. No que se refere a esta ltima, procurmos abord-la numa perspectiva
menos utpica e mais operativa, no sentido de entender o encadeamento dinmica entre
a criao e a sociedade. De qualquer forma, conclumos com Rosalind Krauss que a
hierarquia estabelecida foi consolidada por via da formao dos museus, os quais se
empenharam na preservao de mitos como o da originalidade da vanguarda.
113
MARX, Karl, The Capital, 3 volumes, Londres: Penguin Classics, 2006 [1867].
114
116
SCHWENDENER, Martha, Re: Art Criticism Today, The Brooklyn Rail: critical perspectives on
arts, politics, and culture, [Em linha], posto em linha a 10 de Dezembro de 2012, url:
<http://www.brooklynrail.org/2012/12/artseen/re-art-criticism-today-martha>, [consultado em 07-032014].
117
Helena Vieira da Silva, Guilherme Camarinha, Maria Keil, Ernesto de Sousa, Manuel
Cargaleiro, Lourdes Castro, Ren Bertholo, Alberto Carneiro, Carlos Barroco, Alberto
Vieira, Teresa Pavo, Sofia Areal, Pedro Proena, Rui Chafes, Joo Pedro Vale, Snia
Almeida e Srgio Carronha333.
Em termos gerais, ideias como o artesanato moderno (modern craft) que
Glenn Adamson postula reflectiram-se, a montante, no recuo aos processos de
industrializao e de constituio das belas-artes e, a jusante, no apuramento do grau de
modernidade ou seja, da articulao entre a destruio e a criao 334 da
manualidade.
Identicamente contraditrio e autoconsciente o artesanativismo presente,
dada a sua abrangncia do amadorismo e do profissionalismo, da marginalidade e do
compromisso poltico, do crafter e do artfice, da mo e do computador. Apesar desta
diversidade, o artesanativismo funda-se naquilo que o artesanato sempre foi, ou seja,
num trabalho afectivo e colectivo, baseado no aproveitamento dos recursos
disponveis, atravs do qual se partilham saberes e se fortalecem comunidades. De
qualquer modo, o que distingue a corrente actual a ateno sobre grupos sociais
habitualmente ostracizados e o uso das redes sociais como fonte de divulgao e
promoo das suas causas e aces. Tais caractersticas tornam-no o eterno adversrio
da economia capitalista de consumo e, por via da sua irreverncia, foi-nos possvel
identificar a influncia dos seus procedimentos sobre artistas que so altamente
estimados no mundo da arte.
Contudo, como todas as formas de arte rebeldes, o artesanativismo corre o
risco de ser submetido institucionalizao museolgica e ao poder poltico. Neste
ltimo caso, desvalorizamos a instrumentalizao de qualquer tipo de arte(sanato) ao
servio dos Estados, sobretudo quando esta no tem em conta o seu interesse social e
cultural, mas apenas tem por intuito canalizar estratgias conservadores. No obstante,
terminamos este estudo como comemos: confiantes na persistncia do artesanato
enquanto alternativa vivel num mundo em que a mudana (para o que ramos antes?)
to premente quanto indispensvel.
333
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