Maria Helena Rocha Pereira - FÓRMULAS E EPÍTETOS NA LINGUAGEM HOMÉRICA
Maria Helena Rocha Pereira - FÓRMULAS E EPÍTETOS NA LINGUAGEM HOMÉRICA
Maria Helena Rocha Pereira - FÓRMULAS E EPÍTETOS NA LINGUAGEM HOMÉRICA
211:1-9, 1984
CONFERÊNCIA / C O N F E R E N C E
FÓRMULAS E EPÍTETOS NA L I N G U A G E M HOMÉRICA*
RESUMO: O artigo delineia uma breve perspectiva do que vem sendo uma das principais e mais
enriquecedoras orientações da pesquisa sobre os Poemas Homéricos — seu assentamento numa técnica
de improvisação oral em ligação com a métrica —, procurando, a seguir, analisar de perto os conceitos
básicos em que essa orientação se assenta. Tenta, a seguir, uma exemplificação, que, para possibilidade
de acompanhamento pelo leitor comum, se faz em textos traduzidos, com consciência das limitações dal
decorrentes.
UNITERMOS: Fórmulas; epítetos; linguagem homérica; técnica de improvisação oral; métrica;
protótipos formulares e variações.
* Conferência pronunciada no Instituto de Letras, Ciências Sociais e E d u c a ç ã o — U N E S P — Araraquara, em 1984, como par-
te das atividades do Programa de P ó s - G r a d u a ç ã o em Lingüística e L í n g u a Portuguesa.
** Universidade de C o i m b r a — Portugal.
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P E R E I R A , M . H . da R. — F ó r m u l a s e epítetos na linguagem h o m é r i c a . Alfa, São Paulo, 28:1-9, 1984.
desaparecido. Lord foi ainda mais longe, o aedo quer descrever uma cena ou fenó-
ao propor a chamada "tese do ditado", meno daqueles que ocorrem com frequên-
segundo a qual o poeta da Ilíada, forma- cia na natureza e na vida humana. Assim,
do numa rica tradição oral e ele mesmo por exemplo, o amanhecer. Ele tem um
compositor oral, teria ditado o poema a verso inteiro já pronto:
alguém que já dominava o nosso processo
da escrita. Deste modo se conciliaria a Eis que surge a filha da manhã, a Au-
coexistência de um plano grandioso e coe- [rora dos dedos róseos.
rente com as marcas características da im- (Ilíada 1.477).
provisação.
Outros estudiosos têm alargado o Mas, se apenas dispusesse desta fór-
campo de aplicação do método, procu- mula, em breve a narrativa se tornaria
rando semelhanças na poesia dos bardos monótona. Ele sabe mais, que pode apli-
medievais irlandeses, como K.O'Nolan e car quando quiser, como esta:
G. L. Huxley (ambos em 1969). Outros
ainda têm observado que as fórmulas épi- Derramava-se pela terra toda a Aurora
cas não são apenas um sistema rígido, [vestida da cor do açafrão,
mas também um processo flexível e cria- (Ilíada V I I I . 1.)
dor. É essa a tendência revelada pelos es-
tudos de A. Hoekstra (1965) e de J. B. (Note-se que, em ambos os versos, a
Hainsworth (1968), estes últimos com o deusa da Aurora é qualificada com epíte-
significativo título "The Flexibility of the tos diferentes, mas um e outro sugestivo
Homeric Formula". das cores que acompanham esse fenóme-
Delineada esta breve perspectiva do no natural. Ao mesmo tempo que a divin-
que continua a ser uma das principais e dade ê caracterizada como marcadamente
mais enriquecedoras orientações da pes- antropomórfica, pois tem "dedos róseos"
quisa sobre os Poemas Homéricos, procu- e veste uma túnica de açafrão).
raremos agora analisar de perto os concei- O fenómeno inverso deste, ou seja, o
tos básicos em que assenta, para depois anoitecer, também pode descrever-se por
tentarmos a exemplificação, tanto quanto meio de mais do que uma fórmula que
é possível fazê-la através de textos tradu- ocupa um verso inteiro. Bem próximo do
zidos. primeiro exemplo que demos há pouco
O mais importante é o de "fórmu- encontra-se este, a marcar a passagem a
la", que Milman Parry definiu como " u - outro dia:
ma expressão que é regularmente empre- Então o Sol mergulhou e desapareceu
gada, nas mesmas condições métricas, pa- [nas trevas
ra exprimir uma certa idéia essencial". (Ilíada 1.475).
Muitos anos mais tarde, J. B. Hainsworth
viria a encontrar uma forma mais sintéti- Uma variante que, por sinal, é exclu-
ca e clara: "Fórmula é um grupo de pala- siva da Odisseia e se repete com frequên-
vras que se repete". cia é:
A fórmula mais simples é a consti- O Sol mergulhou e todas as ruas fica-
tuída por um nome com o seu epíteto. A [ram na sombra.
essa voltaremos adiante. O esquema mais Festins religiosos e banquetes
complexo pode compreender vários ver- realizam-se muitas vezes. Uma fórmula
sos, ou apenas meio verso: exatamente extensa para descrever estas ocasiões era
desde o começo até à cesura ou desta até naturalmente uma grande ajuda que a me-
ao final, o que acentua a sua estreita liga- mória lhe dava, enquanto mentalmente
ção com a métrica. arquitetava em seu espírito a sequência da
Suponhamos em primeiro lugar que narrativa. Feitos os preparativs para se as-
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PEREIRA, M . H . da R. — F ó r m u l a s e epítetos na linguagem h o m é r i c a . Alfa, S ã o Paulo, 28:1-9, 1984.
sarem ao fogo as carnes dos animais, estes viciados da escrita que todos ainda
podia-se dizer, por exemplo: somos, era que o poeta do Canto IV co-
piara o do Canto V I I e, consequentemen-
Assim que terminavam o trabalho e te, dava-se como interpolação tardia o
[aprontavam o festim, banqueteavam- exemplo que citamos primeiro. Mas os
[se, e ao seu ânimo nada faltou no fes- trechos destinavam-se não à leitura, mas à
[tim equitativo. recitação, — e primitivamente, até, ao
Depois que se saciavam de bedida e de canto acompanhado à lira. Os ouvintes
[comida, deste segundo trecho da Odisseia já t i -
(Ilíada 1.467-469). nham bem longe, na sua retentiva, o do
Canto IV, quando o escutavam, — e isto,
Nos palácios senhoriais, o desconhe- supondo que os poemas eram ditos na
cido que vinha de longe e suplicava aco- íntegra, por aedos que se revezavam, co-
lhimento era recebido com honras e mo aconteceu durante séculos em Atenas,
tornava-se hóspede do dono da casa, no festival das Panatenéias, segundo o
criando assim um vínculo de ordem moral testemunho de um discípulo ou imitador
que teve desde sempre um papel prepon- de Platão, que, à falta de melhor, chama-
derante na ética grega. Os pormenores mos o Pseudo-Platão, no diálogo Hiparco
dessa recepção temos na Odisseia, quan- (228 b-c);
do, por exemplo, Telémaco chega, acom- "o mais sensato dos filhos de Pisístra-
panhado do filho de Nestor, ao palácio de to, que executou muitas e belas acções
Menelau, em Esparta: ditadas pela sabedoria, entre elas a de
Uma aia trouxe a água, em belo go- ter sido o primeiro que trouxe para esta
[mil de ouro, terra as epopéias de Homero, e obrigou
sobre bacia de prata, para lavarem as os rapsodos a recitá-los todos na Pa-
[mãos. natenéias, um após outro, tal como
Junto dele colocou uma mesa polida. ainda hoje se faz"...
A venerável dispenseira trouxe pão pa-
[ra os servir, Passemos agora a um tipo de exem-
pôs na mesa manjares inúmeros, plo muito corrente, a fórmula destinada a
[ regalando-os com o que havia. anunciar o discurso directo. Antes de o
(Odisseia IV.52-56) fazermos, lembremos que o discurso di-
Se continuarmos a folhear o poema, recto é tão importante nos Poemas Homé-
e atingirmos o momento em que o desco- ricos, onde ocupa aproximadamente dois
nhecido Ullises é, por sua vez, acolhido terços do total, que Schadewaldt pôde di-
por Alcínoo, rei dos Feaces, lemos exata- zer que é ele que conduz a acção e já se
mente a mesma coisa: pensou que o seu emprego seria uma das
grandes novidades destas epopéias, em re-
Uma aia trouxe a água, em belo gomil
lação às que as antecederam.
[de ouro,
sobre bacia de prata, para lavarem as Os exemplos são inúmeros, mas va-
[mãos. mos tirá-los quase todos do Canto I da
Junto dele colocou uma mesa polida. Ilíada, onde eles se multiplicam no longo
A venerável dispenseira trouxe pão pa- trecho da assembleia dos chefes aqueus.
ira o servir, Ao apresentá-los, assinalaremos a cesura,
pôs na mesa manjares inúmeros, como se se tratasse do original (embora,
[regalando-o com o que havia. evidentemente, não seja verso a simples,
(Odisseia V I I . 172-176) tradução literal que vamos dar). Feitas es-
Apenas o destinatário das iguarias tas reservas, vejamos dois exemplos cujo
passou para o singular... A explicação primeiro hemistiquio é rigorosamente
corrente dada até há poucos decênios, por igual:
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pacidade para resolver situações dificíli- nhas aventuras, o verso introdutório des-
mas e a sua resistência moral às mais du- sa longa narrativa, exatamente no mo-
ras provas. Ora, os epítetos em causa apar- mento em que ela passa de extradiagética
cem no lugar e momento apropriados. As- — heterodiegética a intradiegètica — ho-
sim, quando o herói adormece, na terra modiegética, é este:
dos Feaces, onde arribara a custo após Em resposta declarou-lhe Ulisses dos
uma tempestade que o fizera naufragar, o [mil artifícios
poeta diz: (Odisseia IX. 1)
Assim adormeceu nesse lugar o divino No decorrer da história, é assim que
[Ulisses, o tratará Circe:
[que muito sofreu, vencido pelo
[sono e pela fadiga. Divino filho de Laertes, Ulisses dos mil
(Odisseia VI. 1-2) [artifícios
E, ao longo da narrativa em Esqué- (Odisseia X. 401)
ria, o epíteto vai sendo repetido inúmeras Circe, a feiticeira cuja magia perigo-
vezes, quando o herói é acolhido por sa o herói da astúcia conseguira dominar.
Nausícaa, a jovem princesa, e finalmente' Mas, para além da sua adequação ao
satisfaz a sede e a fome, quando é recebi- contexto, e consequente contributo para a
do pelo rei na qualidade de hóspede, e co- melhor caracterização da figura, e do mo-
mo tal tratado. Chega, porém, o momen- mento, os epítetos também preservam tra-
to em que, terminadas as libações, a sós dições ou factos históricos, que a arqueo-
com o régio par, a soberana dos Feaces logia e a linguística combinadas têm con-
quer saber como é que Ulisses obteve a seguido desvendar. Outros conservam
roupa que enverga, e que ela bem sabe ter ainda oculto o seu mistério, como em bre-
sido tecida por si mesma e pelas aias, em ve veremos.
sua própria casa. É a famosa pergunta de Quando se lê, por exemplo, o sintag-
Arete, momento crucial da cena, que só ma "Heitor de casco faiscante", ou " A -
raros comentadores têm sabido interpre- queus de belas grevas" ou "os Aqueus de
tar. Ulisses dá-lhe uma longa e bem elabo- brônzeas túnicas", é fácil aceitar que to-
rada explicação, que coloca bem dos estes epítetos distintivos não são des-
Nausícaa, ao abrigo de qualquer censura. providos de significado. Mais ainda, co-
A frase que introduz o discurso directo, mo notou Page, eles vêm dos tempos mi-
escolheu o outro epíteto para caracterizar cènicos juntamente com as figuras que ca-
o falante: racterizam. Os três casos apontados di-
zem respeito a peças da armadura. Pelo
Em resposta declarou-lhe Ulisses dos que se refere aos Aqueus, o uso de tais pe-
[mil artifícios. ças tem sido revelado aos poucos pelas es-
(Odisseia VI 1.240) cavações. Grevas para protegerem as per-
A mesma fórmula será ainda repetida nas dos guerreiros têm sido encontradas
quando o herói justifica Nausícaa, aos em várias partes da Grécia. Quanto às
olhos do pai, por a princesa se ter limita- "brônzeas túnicas", elas foram durante
do a dar-lhe vestuário e mantimentos, sem muito tempo um enigma para os comenta-
o encaminhar até ao palácio (Odisseia dores, não obstante a elevada frequência
7.302). Em ambos os casos, Ulisses foi su- do seu emprego — nada menos de sessen-
ficientemente hábil na resposta para satis- ta e seis vezes. Uma primeira tentativa de
fazer o interlocutor, sem revelar a sua solução foi proposta em 1950, quando
identidade. distinta arqueóloga inglesa, H . L . Lori-
Quando, porém, a partir do Canto mer, publicou um livro que fez época,
IX, o herói vê chegada a altura de decla- Homer and the Monuments. Supunha ela
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rar o seu nome e de contar as suas estra- que o chamado "Vaso dos guerreiros",
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obra micénica do séc. X a.C, proporcio- ruja". Ora a coruja é, como todos sabem,
nava a explicação, uma vez que aí estão a ave simbólica da deusa. Estaria por trás
desenhados guerreiros com túnicas curtas, deste epíteto uma reminiscência de uma
às quais estão aplicadas placas de bronze. fase teriomórfica da religião grega — fase
Porém, em anos muito recentes, apareceu essa não documentada, pois os deuses he-
numa localidade da Grécia, Dendra, uma lénicos são logo de início antropomórfi-
armadura* toda de bronze, formada por cos? Ou será o primeiro elemento uma
uma espécie de largos aros metálicos que simples notação de cor ("Atena dos olhos
se ligam uns aos outros, e datável de 1425 brilhantes"), como sugere a descrição da
a 1400 a.C. É a um modelo desses certa- primeira visão da deusa no Canto I do
mente que aludia o famoso composto dos poema ("Os seus olhos tinham um brilho
aedos homéricos. terrível" (1.200)? Os estudos sobre o as-
Também os Troianos têm o seu epíte- sunto têm-se multiplicado nestes últimos
to distintivo. Eles são os "Troianos do- anos, sem que a questão possa dar-se por
madores de cavalos". Se, como pensa a solucionada. Mas ela não é caso único.
maioria dos especialistas, a Tróia homéri- Outros deuses podem ocultar ou não
ca se situa na colina de Hissarlik, na ac- vestígios de teriomorfismo nos seus epíte-
tual Turquia, no local onde Schliemann tos, embora, note-se desde já, eles não se-
principiou a escavar, no último quartel do jam distintivos como o da patrona da sa-
século passado, e se, de entre as nove ci- bedoria. Se Poséidon, por exemplo, é
dades sobrepostas no local, são, como Kyanochaita, o composto pode aludir aos
pensou Blegen, quando levou termo os "cabelos de anil" que ficariam bem no
trabalhos, a VI e a Vila. que melhor con- deus do mar; pode relacionar-se com o
dizem com a Tróia da Ilíada, uma vez que termo de Ku - wa - no, revelado pelas ta-
têm restos de cerâmica contemporâneos buinhas micénicas; e como os termos de
dos de Micenas, capital de Agamémnon, cor na língua grega são vagos como em
possuem fortes muralhas e viviam na opu- nenhuma outra, pode querer dizer apenas
lência, então compreendemos porque ê "de cabelos escuros". "De crinas escu-
que os Troianos eram "domadores de ca- ras" é aplicado a um cavalo em Ilíada,
valos". É que os habitantes da Tróia V I , XX. 224. E o cavalo era um animal sim-
quando vieram instalar-se naquele cobiça- bólico deste deus, por isso também apeli-
do e estratégico sítio, trouxeram consigo dado de hippios. Pelo que também aqui
essa novidade, que então revolucionou o alguns estudiosos põem a hipótese de
sistema de transportes: a domesticação do possíveis vestígios de teriomorfismo.
cavalo. O próprio Heitor também recebe Outro dos poucos casos congéneres
esse epíteto, e é com ele que fecha o poe- existentes é o da deusa Hera. Ela é chama-
ma. da de boopis, que etimologicamente que-
Muitos dos epítetos divinos são anti- rerá dizer " de olhos de vaca". A tentação
quíssimos, e, se alguns têm um sentido de ligar tal atributo à representação ani-
que aponta claramente para os atributos malesca da deusa Hathor do Egipto é,
primitivos do deus cujo nome exornam grande. Mas, se alguma vez ele teve esse
(por exemplo, "Zeus que amontoa as nu- sentido, tal já não se verificava, certamen-
vens" revela bem que o deus supremo co- te, com os aedos homéricos. Outras figu-
meçava por ser o deus do tempo atmosfé- ras femininas, seja uma aia de Helena em
rico, esse tempo atmosférico de que o ho- Ilíada I I I . 144, seja a ninfa marinha Halia
mem primevo dependia inteiramente), ou- em X V I I I . 40 do mesmo poema, podem,
tros permanecem obscuros e encerram ter esse qualificativo. O que mostra que,
ainda um mistério. Assim, Atena é chama- para eles, já só significava "de olhos
da glaukopis, composto que parece signi- grandes" ou "de olhos doces".
ficar, etimologicamente,, "de olhos de co- Mas não são apenas os epítetos de al-
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gumas divindades que suscitam contro- e descobrir, que na Europa havia, para
vérsia. Também há, por exemplo, um dos além dos conhecidos jacintos amarelados
qualificativos do mar — oinopa ponton ou arroxeados, ou ainda brancos, espécies
— geralmente traduzido por "pélago cor amarelas dessa flor, o que possibilitaria a
de vinho". Já dissemos que a terminolo- equivalência a "cabelos louros". Mas
gia das cores é muito oscilante em grego. precisamente de Ulisses se afirma (com
Que o mar seja glauco, conforme vimos uma excepção) — ao contrário do que su-
há pouco, ou "pardacento", como tantas cede com os outros heróis aqueus — que
vezes se diz na Odisseia, parece natural. possuem cabelos escuros... Por isso pare-
Mas "cor de vinho" tem desafiado a.ima- ce mais provável a opinião dos que pen-
ginação dos comentadores. Explicam al- sam que a notação diz respeito à forma —
guns que poderá entender-se da tonalida- a característica forma encaracolada da-
de das águas observada ao nascer ou ao quela flor.
pôr do sol (conforme o observador estiver Mas voltemos à fórmula oinopa
na costa oriental ou ocidental grega). Mas ponton, que não está ainda esgotada. É
é preciso lembrar que só o alto mar é de- que o adjetivo também se aplica aos bois,
signado por pontos, o mar junto à costa é como sucede em Ilíada XIII.703, e até já
hals, e que num verso como Ilíada 1.350 se apareceu para designar um desses animais
opõe "a praia do mar cinzento" (halos numa tabuinha micénica de Pilos, do séc.
polies) ao "pélago cor de vinho". Melhor X I I I a.C. Aqui, naturalmente, voltou a
seria o paralelo, pensamos nós, com o exercitar-se a inventiva dos críticos. Será
"mar cor de violeta" (ioeidea ponton) de o composto referente ao amarelo-
///crrfaXI.298 e Odisseia V.56. Este último avermelhado de certos bovinos? Ou antes*
qualificativo aplica-se a águas profundas, sugestivo da espuma que aparece sobre o
escuras. Seria, portanto, uma notação va- pelo, quando eles acabam de executar tra-
ga da cor, a juntar a tantas outras. Existe, balho extenuante nos campos? Novamen-
porém outra tentativa de explicação que te a hesitação entre a cor e a forma, agora
merece ser mencionada. No sintagma transposta para uma área semântica di-
oinopa ponton estaria implícita uma me- versa.
táfora alusiva a espuma do vinho. O mar Outras dificuldades existem ainda, de
seria "espumoso", como espumoso é o que vamos dar alguns exemplos. São de
vinho deitado de alto nas taças. Teríamos, natureza muito diferente. Trata-se da
por conseguinte, uma notação, não de aplicação de epítetos, pelo menos, apa-
cor, mas de forma. Uma situação paralela rentemente, em contexto errado. O adjeti-
àquela que leva o aedo do Canto V I da vo amymon — usa-se para distinguir uma
Odisseia a descrever assim Ulisses, depois pessoa sem mácula, como Calcas, o "irre-
do banho e da metamorfose embelezado- preensível adivinho" (mantis amymon)
ra operada por Atena: do exército dos Aqueus (Ilíada, I . 92), ou
melhor ainda "o irrepreensível médico"
Então Ateneia, filha de Zeus, fê-lo pa- (amymon ieter) (Ilíada IV. 194, X I . 835).
[recer Mas, nesse caso, como explicar que no
mais alto e mais forte e fez pender da Canto I da Odisseia, precisamente quan-
[sua fronte do, reunidos os deuses em concílio, Zeus
cabelos encaracolados, como as flores vai censurar o procedimento de Egisto,
[do jacinto. que acabava de morrer às mãos de Ores-
tes, em castigo de ter cortejado a mulher
(Odisseia VI. 229-231) de Agaménnon e assassinado o rei de Mi-
cenas no seu regresso de Tróia, não obs-
Neste passo, os comentadores leva- tante as advertências dos deuses para que
ram o seu escrúpulo ao ponto de indagar, o não fizesse. É assim que começa o discu-
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tido trecho, que Jaeger havia de chamar so, para com a sua madeira construir a
"a mais antiga teodiceia grega"; jangada em que se fez ao mar, era neces-
Os restantes deuses sariamente possuidor de uma " m ã o ro-
estavam reunidos no palácio de Zeus busta".
[Olímpico. Mas o mesmo não se poderá afirmar
Para eles começou a falar o pai dos ho- do passo do princípio do Canto X X I , em
[mens e dos deuses. que idêntica fórmula aparece aplicada a
É que lhe vinha ao espírito a lembrança Penélope, quando ela abre a sala das ar-
[do irrepreensível Egisto, mas, para retirar de lá o famoso arco de
a quem matara o glorioso Orestes, f i - Ulisses, com o qual vai experimentar a.
[lho de Agamémnon. perícia dos pretendentes:
KEY- WORDS: Formulas; epithets; Homeric language; oral improvisation technique; formula pro-
totypes and variations.