Estudo de Caso Etnográfico
Estudo de Caso Etnográfico
Estudo de Caso Etnográfico
Resumo
Para alm da enorme gama de propostas temticas, so vrias as possibilidades de anlise
terica e metodolgica na pesquisa em educao. Contemporaneamente, o campo da pesquisa
educacional tem ampliado suas opes tradicionais de anlise o materialismo histrico e a
pesquisa-ao esto entre as mais recorrentes - e lanado mo de abordagens consolidadas em
outros campos do conhecimento, como a histria, a sociologia e a antropologia. So
recorrentes as pesquisas fundamentadas, por exemplo, no inventrio do estado da arte, no
mapeamento das representaes sociais, no resgate da histria das mentalidades e da cultura
do cotidiano escolar, em particular, e educacional, em sentido mais amplo. Com imenso
potencial e rendimento analtico, algumas pesquisas tm focado o estudo de caso etnogrfico,
prprio da perspectiva antropolgica, e que vem sendo agenciado no mbito da pesquisa
educacional de forma bastante peculiar. Este trabalho tem como objetivo analisar o uso do
estudo de caso etnogrfico na metodologia da pesquisa educacional. Para tanto, tendo como
locus a dissertao de mestrado escrita por GARCIA (1996), a pertinncia e relevncia do
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desta abordagem metodolgica voltada para os estudos da educao, ser constituda a partir
do esquema paradigmtico de GAMBOA (2007). As categorias de anlise criadas por este
autor sero relacionadas com a construo terica e metodolgica apresentadas pela
pesquisadora na sua investigao, que versa sobre as prticas de avaliao do rendimento
escolar, com foco nos processos que resultam na aprovao ou na reprovao dos alunos.
Alm desta interlocuo descrita, a anlise pretendida conta tambm com as consideraes
adicionais de ANDR( 1995,1999,2001,2005), LDKE (1986) e ERICKSON (1989).
perspectivas metodolgicas:
GARCIA, Tnia Maria Figueiredo. Esculpindo geodos, tecendo redes: estudo etnogrfico sobre tempo e
avaliao na sala de aula. So Paulo, 1996. 195 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Faculdade de
Educao da Universidade de So Paulo.
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GAMBOA, Silvio Snchez. Pesquisa em educao: mtodos e epistemologias. Chapec: Argos, 2007.
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caso etnogrfico como opo metodolgica, assim como, sua pertinncia e relevncia no
campo da educao.
a desfamiliarizao -
ambiente escolar.
A relevncia da subjetividade do pesquisador assumida como elemento do trabalho
de campo e da construo da anlise em vrios momentos do texto, expressa na construo e
reconstruo do objeto ao longo da realizao da pesquisa e, de forma corajosa, assumida no
item trs deste primeiro captulo sob o ttulo: Idias e pressuposies levadas para o trabalho
de campo: avaliao como classificao, avaliao como julgamento; critrios objetivos;
modelo democrtico de ensino. Esta predisposio , antes de tudo, uma atitude de
honestidade com o leitor.
No segundo captulo, A Construo da avaliao, a autora relata a trajetria do seu
recorte e locus de pesquisa com seus dilemas e contradies como a mudana do foco da
sua pesquisa que passa da anlise do fracasso escolar para o sucesso - at a deciso final por
uma turma de terceira srie do ensino fundamental em uma escola pblica estadual. Descreve
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Para GEERTZ (1989), a cultura constitui-se como uma teia de significados tecida pelo homem e a descrio
densa a interpretao do fato descrito etnograficamente, procurando esses significados, ou seja, as motivaes
e seus objetivos.
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de forma minuciosa o perfil da professora e suas relaes com os alunos, bem como, suas
prticas de avaliao. Escreve tambm sobre a sala de aula e a sua configurao como espao
de reflexo e, finalmente, esclarece como foram organizadas suas anotaes de campo (outra
condio e caracterstica da abordagem etnogrfica) realizadas durante 1 (um) ano com 2
(duas) horas semanais.
O terceiro captulo, O Tempo: perguntando por seu papel, constitu-se em uma
discusso terica sobre o tempo e as suas dimenses (cientfica, cotidiana e escolar). A
seleo desta categoria de anlise para pensar as formas de avaliao se deu a partir da
constatao de que a organizao, a distribuio e o uso do tempo na sala- de- aula, da
ateno aos alunos, do lazer no recreio, so fatores determinantes na aprendizagem e na
construo das prticas de avaliao.
Finalmente no quarto e ltimo captulo, A Riqueza do tempo perdido, a rotina da sala
de aula analisada principalmente com relao distribuio e o ritmo do tempo
(supostamente perdido) na sala de aula e da rotina de atendimento e correo das atividades
de forma individualizada organizada pela professora, com foco na relao entre a gesto de
tempo e s prticas de avaliao do aluno, assim como, na interao entre professora e alunos.
Ao ter o tempo necessrio de convivncia por intermdio da observao participante a
pesquisadora constata que na perda de tempo as prticas de avaliao constituem-se de
modo complexo e efetivo.
Nas suas consideraes finais, a autora analisa as implicaes da relao entre o
atendimento individual dos alunos e das formas de avaliao e acaba por rever alguns dos
seus pressupostos iniciais como: a necessidade de se repensar as classificaes que
distinguem o ensino centrado no professor e o ensino centrado no aluno; a necessidade de se
repensar o trabalho coletivo e o trabalho individual; a necessidade de se repensar o uso de
instrumentos formais de avaliao.
Os anexos aos captulos coerentemente demonstram a opo metodolgica pelo estudo
de caso etnogrfico, uma vez que apresenta: a listagem dos registros realizados durante o
trabalho de campo, mapas da posio dos alunos em sala, os registros de observao da turma,
entrevistas com a professora e com os alunos.
Anlise Da Dissertao De Acordo Com O Esquema Paradigmtico De Gamboa:
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iniciante. Deste modo ao invs de analisar o fracasso, como era o intuito inicial, a
pesquisadora passou a pensar o sucesso. Pois a professora escolhida, alm de experiente, era
bastante respeitada pela comunidade acadmica e vista como referncia de profissional
competente.
Outro dimensionamento que se apresentou na dinmica da pesquisa foi eleger o tempo
como uma categoria de anlise para pensar a avaliao. Esta escolha surgiu quando a
pesquisadora observou que esta professora, denominada Laura, to organizada (e que
considerava a organizao como a principal caracterstica de um bom professor) perdia
demasiado tempo na correo individual das atividades em sala.
Desta forma a questo passa da reflexo sobre o fracasso escolar para: o estudo de
processos relacionados a organizao das atividades da professora e sua distribuio no
tempo, no dia-a-dia dessa sala de aula, procurando identificar os elementos que a professora
usa para avaliar o desempenho dos seus alunos (GARCIA, 1996, p. 61).
Esta dimenso dialtica e de repensar continuamente a relao entre teoria e prtica
uma caracterstica importante do mtodo etnogrfico. Pois o pesquisador tem um esquema
aberto e artesanal de trabalho que permite um transitar constante entre observao e anlise,
entre teoria e empiria(ANDR, 1999, p. 38-39). E esta a dinmica desta pesquisa: a
categoria de anlise e a dimenso terica j existem mas a observao acaba por transformar o
trabalho e apontar novas categorias para o estudo.
Depois que analisa a construo da pergunta Gamboa passa para a categoria da
construo da resposta que divide nas dimenses tcnica, metodolgica, terica,
epistemolgica, gnosiolgica e ontolgica. importante registrar que estas categorias no so
isoladas e muitas vezes aparecem de forma sobreposta. A diviso meramente didtica e
muitas vezes foi difcil na anlise da disstertao separar de forma ntida os componentes de
cada uma.
Gamboa afirma que o nvel tcnico se relaciona com fontes, tcnicas de coleta,
organizao, sistematizao e tratamento de dados e fontes (GAMBOA, 2007, p. 72). Nesta
dimenso o texto analisado foi construdo a partir de referenciais tericos, entrevistas e
observao de campo. importante registrar que a relao entre as fontes foi dinmica. As
categorias apareciam de acordo com a necessidade e as reflexes suscitadas pela pesquisa.
importante destacar tambm que no essencialmente a escolha do material de
coleta que define o mtodo antropolgico pois esta formas (entrevista, observao ou teoria)
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so utilizadas por outras formas de pesquisas qualitativas. O que diferencia o estudo de caso
etnogrfico na educao o seu objeto. Na educao isso significa um estudo em
profundidade de um fenmeno educacional, com nfase na singularidade e levando em conta
os princpios do mtodo da etnografia (ANDR, 2005, p. 19). E foi este o tratamento que foi
submetido os dados coletados.
O segundo nvel analisado com relao a resposta, de acordo com Gamboa, o nvel
metodolgico que ele define como a abordagem e processos de pesquisa: formas de
aproximao ao objeto (delimitao do todo, sua relao com as partes) e (des) considerao
dos contextos(GAMBOA, 2007, p. 72). No trabalho analisado a relao entre sujeito e objeto
dialtica pois o objeto transformou o problema de pesquisa durante o percurso da mesma. O
contexto considerado (relao escola/comunidade, escola/sistema municipal de ensino, etc.)
mas as relaes entre o micro/macro poderiam ser mais exploradas de forma mais sistemtica
em alguns momentos.
O nvel terico o terceiro quesito na construo da resposta para Gamboa. Ele define
este item como anlise de fenmenos privilegiados, ncleo conceitual bsico, autores e
clssicos cultivados, pretenses crticas, tipo de mudana proposta(GAMBOA, 2007, p. 72).
O fenmeno o privilegiado no texto analisado foi a dinmica da ao de uma professora que
conseguia sucesso na suas avaliaes. A autora trabalhou com duas categorias principais:
avaliao e tempo, mas no deixou de abordar a cultura escolar ou a produo terica sobre as
observaes em sala de aula, por exemplo. A qualidade das discusses tericas e o
brilhantismo das interpretaes dos dados uma caracterstica constante neste trabalho e
demonstra uma formao slida e grande capacidade intelectual da pesquisadora. O que para
os estudiosos do tema passa a ser uma condio necessria para os estudos etnogrficos de
qualidade que tem uma forte dependncia da capacidade, sensibilidade e preparo do
pesquisador (ANDR, 2005, p. 36).
A dissertao no propugnou nenhuma mudana, mas uma essencial ocorreu: a
prpria pesquisadora passou a repensar no final do trabalho as suas certezas e pressupostos
com relao a avaliao e na dicotomia professor/aluno, autoridade/dominao ou
acompanhamento/avaliao formal.
O nvel epistemolgico se configura como o quarto quesito na construo da resposta
para Gamboa. Ele pode ser identificado na busca da concepo de causalidade, de validao
da prova cientfica e da cincia (critrios de cientificidade) (GAMBOA, 2007, p. 72). Neste
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de que a
reconstruo do real feita pelo pesquisador no a nica possvel ou a correta, mas espera-se
que oferea os elementos suficientes (provas, indcios) de modo que o leitor possa julgar a
credibilidade do relato e a pertinncia das interpretaes (ANDR, 2005, p. 63). A
generalizao se d na dimenso do leitor. O autor fornece informaes e uma descrio
densa consistente para que o leitor a partir da sua prpria experincia generalize e faa
relaes com outros casos similares.
O quinto quesito apresentado por Gamboa no seu esquema paradigmtico para a
construo da resposta foi a dimenso gnosiolgica defina pelo autor como as maneiras de
abstrair, generalizar, conceituar, classificar e formalizar, ou maneiras de relacionar sujeito e
objeto. Critrios de construo do objeto cientfico(GAMBOA, 2007, p. 72)
O texto analisado conceitua algumas categorias (tempo e avaliao essencialmente)
mas evita a classificao. A teorizao aparece de acordo com a necessidade da autora e se
percebe que ela permeia todo o texto. A generalizao tambm no utilizada pois na
perspectiva etnogrfica ela perde o sentido. A idia do geodo figura apresentada abaixo -
excelente para entender essa dinmica e utilizada pela autora como metfora das relaes
entre avaliao e tempo na sala de aula
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Por exemplo, no item que comenta a organizao do tempo escolar, a autora cita
Enguita e a sua anlise de como as relaes capitalistas acabam por influenciar o cotidiano
escolar. A partir da observao a autora demonstra que a professora Laura no tinha esta
preocupao e que utilizava o tempo de maneira lenta e flexvel, com o objetivo de atingir
todos os alunos em um atendimento individualizado, contrria a dinmica da sociedade
capitalista, onde tempo dinheiro e no deve ser desperdiado. Este caso especfico ilumina
as reflexes tericas sobre a utilizao do tempo na dinmica escolar e foge de determinismos
tericos.
Na leitura do texto percebe-se que outras categorias poderiam ser eleitas, como a
relao entre a disciplina e organizao ou o planejamento e comprometimento demonstrado
pela professora. E esta uma positividade da anlise etnogrfica: o leitor que generaliza e
abstrai mantm um dilogo intenso com o autor. Desta forma, em nossa discusso sobre o
trabalho, tambm pensamos em outras categorias que tambm serviriam de fio condutor para
esta descrio, como foi citado.
As relaes com o macro poderiam ser mais exploradas em alguns tpicos. Por
exemplo, quando a professora Laura descreve a sua rotina de correo de cadernos
(geralmente durando quatro horas todas as noites, das 20h00min at 24h00min horas)
sentimos a ausncia de uma reflexo sobre as condies de trabalho dos professores
(GARCIA, 1996, p. 52). Mas uma questo compreensvel pois este trabalho no seria
concludo se todas as variveis fossem esgotadas.
Uma outra questo que chamou a ateno foi o fato da pesquisadora excluir como
possibilidade de pesquisa a escola com a qual ela tinha mais familiaridade (denominada B).
Em nossa opinio, isso no se justificava pois o ambiente e a cultura escolar faziam parte do
seu cotidiano. Desta forma o esforo de estranhamento do mtodo etnogrfico seria o mesmo
em ambas escolas e, em nosso ponto de vista, o conhecimento da dinmica interna desta
escola seria inclusive uma vantagem no momento de analisar o material observado.
Concluso
Um alerta metodolgico ficou claro. A riqueza do material exige um tempo
considervel para a anlise e produo do relatrio. As fontes so ricas e pela leitura dos
anexos muitas possibilidades de reflexo ainda so vislumbradas.
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Para finalizar, importante resgatar uma questo essencial. Este trabalho com uma
qualidade excepcional s foi possvel devido a competncia e sensibilidade da pesquisadora.
A sua dissertao foi construda no intervalo de 1992 a 1996 e ela contou com uma licena da
sua atividade na prefeitura, condio que muitos pesquisadores no podem gozar pois tem que
atender aos prazos das agncias de fomento ou esto inseridos em uma dinmica profissional
que no valoriza a formao do professor. Alm disso, a sua dupla formao, a autora
pedagoga e tambm filsofa, lhe proporcionou um aparato terico significativo e refinado.
Essa capacidade transparece na redao fluda, na sensibilidade e na qualidade das discusses
tericas. Enfim, como unanimidade entre os tericos da pesquisa etnogrfica, a flexibilidade
e a liberdade deste mtodo exigem maior responsabilidade e empenho do pesquisador para
um trabalho de qualidade, como o caso da dissertao analisada.
A partir das reflexes apresentadas no texto foi possvel sintetizar as dificuldades e a
riqueza do estudo etnogrfico em educao. A dissertao produzida por Garcia tem uma
qualidade mpar e possibilita entender a dinmica da produo cientfica e tambm a
necessidade de uma formao slida e do tempo necessrio para o amadurecimento da
pesquisa.
REFERNCIAS:
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