Félix Casaverde - Violao Negro - Tesis
Félix Casaverde - Violao Negro - Tesis
Félix Casaverde - Violao Negro - Tesis
So Paulo
2011
ii
Orientador:
Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda
So Paulo
2011
iii
E46f Elas Llanos, Carlos Fernando, 1978Flix Casaverde, violo negro: identidade e relaes de poder
na msica da costa do Peru / Carlos Fernando Elas Llanos. - So
Paulo : [s.n.], 2011.
213 f. ; il. + anexo
Bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Alberto T. Ikeda
Dissertao (Mestrado em Msica) Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes, 2011.
1. Msica afroperuana. 2. Msica Histria - Peru. 3. Msica
da costa do Peru. I. Casaverde, Flix. II. Ikeda, Alberto T. III.
Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Ttulo
CDD 780.9
iv
Data: 27 / 07 / 2011
Banca Examinadora:
vi
vii
AGRADECIMENTOS
A Flix Casaverde, por sus miles de horas de ensayos furtivos cuando nio, por las otras
tantas tocando un mundo de repertorios diversos con el Conjunto Especializado Los
Hermanos Casaverde, por El Sexto Poder, por oir diferente, por inventar algo diferente, por
tocar repetidamente sus Cuatro Tiempos Negros Jvenes an cuando los odos eran viejos,
blancoides y a veces bien ovoides, por los aos que tuvo que vivir fuera de su pas, por
el tiempo que lo recibe ahora, y por compartir uno de sus tesoros ms preciados y mejor
cuidados: su memoria.
Ao meu orientador Alberto Ikeda, por aceitar a empreitada, pelas horas de escuta atenta, pela
ajuda com o idioma, e por ser uma pessoa cujo interesse em temas como este confirma na
prtica o real significado de integrao latino-americana.
A Chalena Vsquez, el puerto ms seguro y humanista para cualquier investigador que desee
estudiar la msica peruana, porque recibe a todos sin distincin alguna sin medir tiempo ni
esfuerzo, por tener el placer de conocerla y sin ms presentaciones brindarme un ejemplar
original de su investigacin sobre la Danza de Negritos del Carmen, por la paciencia de
aguantar las centenas de cartas kilomtricas con preguntas rebuscadas y borrachamente
acadmicas, por ensearme que la teora ms importante, la ms influyente, es fruto de
nuestra propia observacin y sensibilidad. Por ensearme que en el lenguaje musical primero
se aprende el idioma y se culmina en la poesa, que hay vertientes que son como grandes ros
y otras que son como sus arroyitos, por el Cemduc, por escribir el libro de historia de las
msicas y las danzas peruanas que mis hijos estudiarn en el periodo escolar, en fin, por ser
practicamente la coorientadora de este trabajo.
Aos professores Dagoberto Jos Fonseca, da Faculdade de Cincias e Letras de Araraquara
(FCLAR/UNESP), Gisela Nogueira, do Instituto de Artes (IA/UNESP).e Dilma de Melo Silva
(PROLAM/USP) pelas suas valiosas sugestes na Banca de Qualificao e na Defesa.
Ao professor. Celso Delneri, pelas suas dicas preciosas no ltimo captulo e pela consultoria
ad-honorem em manejo de conflitos para-acadmicos, por me fazer descobrir que ainda em
plena escrita da dissertao sempre sobra um pouco de energia como para poder tocar
Takemitsu e Brouwer juntos: moleza.
Ao violonista Srgio Valdeos, pelas nossas conversas, pelas dicas e informaes valiosas, e
pelos sons que maquina na sua cabea e no seu hbrido violo crioulo de 7 cordas.
viii
A mis padres, Carlos y Mireya, por aceptar ese estado tan peculiar que define a la aoranza,
mezcla de angustia con alegra, que les toc vivir sin mayor aviso, por ser mis confidentes,
mis asistentes de campo, mi nico apoyo logstico con sede en Lima, y un recetario
inagotable de comidas y remedios caseros para momentos crticos.
A mi hermana, que me dio dos sobrinos Fajito y Nico- para guardarlos como foto en mi
billetera.
A mi abuela le ofrezco este regalo de cumpleaos nmero 89 anticipado, por repetir mi
nombre en las cuentas del rosario.
A minha esposa Carla, que se tornou nesta fase co-mestre em msica, alm de depositria
das minhas preocupaes, corretora de planto e responsvel por dar o chute inicial deste
mestrado que agora conclui.
A minha famlia de Aracaju, Carminha, Sabininho, Simone, Aline, Karine e a fulozinha
Kamille, pela torcida, pela fora, os quitutes e o carinho que deram a este sujeito.
A Oscar Clis Gonzlez, guitarrista colombiano y amante de la msica peruana, por su
versin de Cuatro Tiempos Negros Jvenes, y por la parcera en estudios felixianos
casaverdsticos.
Aos amigos do meu staff de dvidas lingusticas, cujas contribuies foram de um valor
inestimvel neste meu batismo de fogo em portugus: a Telma Queiroz, por estar a; a
Denise Queiroz, por me auxiliar pacientemente; a Rafael Marin, colega e violeiro da pesada;
ao professor Evandro Higa, pela sua gentileza.
Ao professor Murilo Jardelino, pelo finssimo tratamento que deu ao meu portugus
peruano, porque s um tradutor de Vilm Flusser, como ele, poderia compreender os
intrincados becos das minhas prprias autotradues.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela concesso
da bolsa de mestrado, apoio financeiro que me possibilitou ter dedicao pesquisa.
Por ltimo, agradeo imensamente a todos os colegas que compartilharam as disciplinas, tanto
na UNESP como na USP, por termos cruzado caminhos, conselhos e preocupaes.
ix
RESUMO
A partir da obra do violonista peruano Flix Casaverde, o presente trabalho disserta sobre as
diversas tenses que perpassam o trabalho do referido msico e seu contexto poltico e
cultural. Desde uma abordagem crtica das relaes de poder na msica, revisamos alguns
aspectos da convivncia social, atravessados pelas definies de racismo, discriminao e
excluso, que delimitaram a construo das alteridades na cidade de Lima, a capital do Peru,
entre finais do sculo XIX e grande parte do sculo XX. Nesse marco histrico, apresentamos
os conceitos de Peru negro e Negro do Peru com os quais comentamos o chamado
renascimento afroperuano da dcada de 1950 e seus vnculos com os conceitos de negritude
e afrodescendncia influenciados, principalmente, pelos movimentos dos direitos civis nos
Estados Unidos. No final, tenta-se traar um elo entre as questes expostas ao longo da
pesquisa e o relato contextualizado das msicas que povoam a memria do violonista. A
anlise da sute composta por ele, Cuatro Tiempos Negros Jvenes, se prope como exemplo
prtico de sua sntese artstica e poltica, em resposta aos sentidos e escalas de valor da
interpretao e a esttica cultural-musical do seu tempo.
Palavras-chave: Flix Casaverde. Msica da costa do Peru. Msica afroperuana. Identidade.
Relaes de poder. Discriminao racial.
ABSTRACT
LLANOS, Fernando. Flix Casaverde, black guitar: identity and power relationships in
Peruvian coastal music. 2011. 213p. Dissertation (Master's degree) Instituto de Artes,
Universidade Estadual Paulista, So Paulo, 2011.
This dissertation elaborates on the various political and cultural tensions pervading the work
of Peruvian guitarist Felix Casaverde. From a critical view of power relationships in music, I
discuss aspects of social life crossed by definitions of racism, discrimination and exclusion, to
delimit the construction of otherness in Lima, from the late nineteenth century through much
of the twentieth. At this historic period, I will introduce the concepts of Black Peru and
Black of Peru through which I will comment on the so-called afroperuvian renaissance in
1950s and its links to the concepts of blackness and African ancestry defined by the influence
of the civil rights movements in United States. Finally, I attempt to draw a bridge between the
issues explored during the research and a contextualized account of the songs in the memory
of the guitarist. The analysis of a suite composed by him, Cuatro tiempos negros jvenes, is
proposed as a practical example of the way in which his artistic synthesis and policy were
challenged by the meanings and value scales of cultural-musical interpretation and aesthetics
of his time.
Keywords:
xi
RESUMEN
xii
SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................
1 NEGRO, PERUANO, AFROPERUANO.........................................................
XIII
10
14
19
29
1.6 Momentos-chave...........................................................................................
36
1.6.1
41
45
47
54
2.3 Afro-indgena-hispano-peruano?...................................................................
62
72
79
81
94
106
3.3.1
Zapateo.............................................................................................
108
3.3.2
Marinera...........................................................................................
118
3.3.3
Land................................................................................................
123
3.3.4
Festejo................................................................................................
134
3.3.5
138
CONSIDERAES FINAIS.................................................................................
145
REFERNCIAS.....................................................................................................
152
APNDICES..........................................................................................................
164
Apndice A
165
Apndice B
166
ANEXOS...............................................................................................................
Anexo A
183
184
xiii
INTRODUO
Quando cheguei a pensar na msica da costa peruana como tema de pesquisa sabia que
poderia encontrar mais de uma possibilidade: queria pesquisar a questo da afroperuanidade
na obra de Chabuca Granda, em fazer um estudo comparativo do discurso musical
afroperuano e afrobrasileiro, em dissertar sobre a resistncia cultural de instrumentos como o
cajn -no Peru- e o tamb -no Brasil. Pensei tambm em que seria interessante pesquisar s
expresses culturais como a dcima e o zapateo, ou relatar diferenas e coincidncias da
msica afrodescendente no Peru e no Brasil em determinados compositores, a referncia
liberdade na obra de um msico negro de meados do sculo passado, os elementos no
folclore afroperuano presentes na msica comercial e popular dos ltimos cinco anos, e at
mesmo traar a rota do cajn marcando suas influncias, variantes e usos atuais etc, etc, etc...
Naquela tormenta de ideias tambm figurava uma pea para violo e cajn chamada
Cuatro Tiempos Negros Jvenes, composta pelo violonista Flix Casaverde, que em principio
parecia insuficiente para a minha voracidade de pesquisador que ainda desconhecia a
profundidade do assunto. A pergunta surgiria s depois de vrias escutas atentas e repetidas,
que me permitiram descobrir as camadas da obra e os pontos de vista distintos que a
interpelavam.
O dia em que surgiu a to desejada pergunta de pesquisa me descobri frente a um
problema maior que as minhas capacidades ou, para ser mais preciso, do tamanho de uma
sute de mais de sete minutos que, de certo modo, no se parecia em nada com o repertrio
tocado no violo por algum.
A primeira vez eu tinha escutado ela das mos de Alfredo Muro, um violonista
peruano que mora nos Estados Unidos e tive o prazer de conhecer pessoalmente em So
Paulo, onde coordenei uma apresentao sua em meio s pressas, aproveitando sua passagem
pelo Brasil. Depois viriam verses da mesma msica espalhadas em coletneas impessoais de
selos discogrficos desconhecidos, daqueles que misturam o violo da costa peruana com a
gaita escocesa, a ctara indiana, e assim por diante. Finalmente, chegaria na fonte, que era o
disco de Chabuca Granda, Tarimba Negra, gravado em Madrid no final da dcada de 1970.
xiv
I
NEGRO, PERUANO, AFROPERUANO
Ao andar pela cidade de Lima, possvel perceber que o tema da negritude1 est na
boca de todos. A sensibilidade para o assunto se distingue, sobretudo, em relao s
expresses artsticas ao falarmos da cultura afroperuana. Embora exista uma maior
aproximao com a cultura andina que migrou para a capital2, ambas atualmente passam por
um perodo de ressignificao. Incorporadas ao status quo da cidade de Lima, coexistem sob
aquele ideal que se supe deve ser atingido numa cidade ps-moderna: tolerncia frente
diversidade.
Com base em diversas das observaes de campo3, percebi que aqueles que trabalham
e moram na capital peruana parecem experimentar uma relao de identidade que os
diferencia do nacionalismo romntico, algo que poderamos chamar de localismo4, pois diz
mais a respeito a uma avaliao positiva do inventrio cultural do que efervescncia de um
ideal de nao. Essa avaliao aparece vinculada ao terreno do pertencimento social numa
espcie de discurso valorativo daquilo que existe s no pas e, em certa maneira, no existe
nos outros pases da regio. Tambm resulta distinta daquela avaliao surgida a partir do fim
da dcada de 1960 quando o panorama poltico peruano foi regido por um governo de
esquerda que se apropriou das expresses artsticas sob uma ideologia nacionalista, nos
moldes do pensamento indigenista e a influncia do bloco socialista em pases da regio5.
3
4
Definiremos este termos nas pginas seguintes. Contudo, na maior parte dos casos, negritude utilizado para
designar um determinado contexto poltico e social que permeia a atividade artstica -musical no nosso casoengajada nos seus princpios.
Os cdigos limenhos de interao com o migrante oscilaram entre a frico e a gradual aceitao, entre o
cholo de merda e o cholo do meu corao. Traduo nossa. Cf.: MELGAR BAO, 1993, p. 192. O
significado de cholo ser explicado nas pginas seguintes.
Dezembro de 2008 fevereiro de 2009; e julho de 2010.
No sentido de uma efervescncia regional e pensando em Lima como o catalisador dos smbolos nacionais. O
melhor exemplo est na atual campanha publicitria do Governo peruano para divulgar o pas como atrao
turstica e potencial destino de capitais estrangeiros: Cf.: MINCETUR. Ministerio de Turismo y Comercio
Exterior.
Documental
Marca
Per.
Lima:
MINCETUR,
2011.
Disponvel
em
<http://embajadoresperuanos.peru.info/> Acesso em 8 jun.2011.
O exrcito teve um papel relevante na histria peruana. Entre 1968 e 1976, governou Juan Velasco Alvarado
sob uma liderana militar-civil que teve a possibilidade de fazer experimentaes com a sociedade peruana
Nesses anos, o inventrio das manifestaes artsticas entendidas como cultura nacional foi
quota obrigatria na grade de programao das rdios, como foram tambm as pocas de ouro
das casas de cultura e as academias de folclore (FELDMAN, 2006, p. 127). A essa poca
tambm pertence o chamado renascimento afroperuano, no qual surgiram figuras
emblemticas na cena cultural da capital, como os irmos Santa Cruz: Nicomedes6 e Vitoria7,
seguidos de outros nomes que incorporariam o imaginrio de um Peru negro sintonizado com
o momento poltico francs de maio de 19688 e aquelas reivindicaes da populao negra
nos Estados Unidos.
Nessa poca, os significados dessas reivindicaes tinham seu equivalente nas
manifestaes artsticas, que inseriram na sociedade peruana, e limenha em particular, um
repertrio cultural legitimado politicamente e contemporneo receptividade das chamadas
minorias9, o que parece ter preparado o cenrio social atual para instaurar a primeira
afirmao positiva fora do referente tnico indgena ou crioulo10: o afroperuano.
A seguir, comentaremos alguns acontecimentos histricos que antecederam a
discusso sobre o negro, analisando exemplos da produo literria peruana no final do sculo
XIX e identificando sua relao com o imaginrio da sociedade limenha dessa poca.
Tambm, faremos uma breve meno das principais correntes de pensamento que
influenciaram tanto nesse perodo quanto nas primeiras dcadas do sculo XX: as que
defendiam conceitos como o da supremacia racial, as que forjaram os ideais polticos do
Estado-nao, e aquelas que justificaram a hegemonia cultural.
10
sem precedentes [] foi proscrito o uso da denominao ndio na linguagem oficial, enquanto se declarava o
quchua como idioma oficial; e foram abolidos inclusive Papai Noel e o Pato Donald como smbolos de
penetrao cultural. De outro lado, a abertura de relaes com o bloco socialista em plena guerra fria traria
legitimidade para a difuso da cultura socialista tanto na imprensa como nos estabelecimentos educacionais
do Estado. Nesse contexto, o prprio termo revoluo atingiria um nvel indito de legitimidade.
(RNIQUE, 2009, p. 127)
Nicomedes Santa Cruz Gamarra (1925-1992) foi poeta, folclorista e jornalista. Em parte da sua prolfica
produo, concentrada entre as dcadas de 1960 e 1970, se destacam as teses sobre as origens dos
instrumentos e gneros musicais da costa peruana, em particular aquelas que aludem ao entorno social das
famlias negras.
Victoria Santa Cruz Gamarra (1922), irm de Nicomedes e como ele pesquisou com o folclore da costa
peruana realizando importantes trabalhos desde a coreografia e dramaturgia. Suas contribuies no destaque
do negro na formao da cultura nacional sero analisadas nas pginas seguintes.
Chamado tambm de Maio de 68, refere-se aos conflitos sociais em torno greve geral em Frana nesse ano.
A data tornou-se emblemtica por se tratar de uma insurreio civil que agrupou pessoas sem divises de
classe, cor ou idade. Cf.: COHN Srgio, PIMENTA, Heyk (Orgs). Maio de 1968. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2008
Entendendo minorias como o oposto a uma cultura massiva ou em ascenso. A luta das minorias refere-se
reivindicao de seus valores, crenas e atitudes pelos quais se identificam. Ex.: grupos civis de negros,
mulheres ou homossexuais. Cf.: BARKER, 2004, p. 36.
Crioulo no contexto do presente trabalho no guarda relao com o significado em portugus (negro nascido
na Amrica, por oposio ao originrio da frica). Nas pginas seguintes explicaremos com mais detalhe.
Em 1897, o escritor peruano Clemente Palma (2007) afirmava que o negro fiel,
socivel e fantico; ao mesmo tempo covarde, rancoroso e sem energia (Id., p. 25). Sua tese
de bacharelado em letras, intitulada O porvir das raas no Peru11 -traduo nossa-. fazia parte
da aparelhagem discursiva tributria do racismo cientfico do sculo XIX e de parte do XX,
que estabelecia uma hierarquizao entre os seres humanos e em que os traos europeus
ibricos e anglo-saxes se encontravam no topo da preferncia geneticamente predestinada
para a prosperidade moral e econmica12.
Dizia Palma: a luta da raa negra com a branca constante nos centros em que se h
ingerido a svia africana: tais como nas repblicas americanas, nos Estados Unidos, no Brasil
etc. (Ibid., p. 27) -traduo nossa. Sendo assim, entendemos que se trata do arcabouo
ideolgico que compartilhavam no somente os pensadores da poca como tambm a classe
poltica e religiosa, que enxergavam nas comunidades negras e indgenas culturas condenadas
s formas mais primitivas de socializao, incapazes de gerar habilidades ou conhecimentos
tcnicos complexos, e cujas manifestaes expressivas artsticas pertenciam ao estgio
irracional do homem sucumbido lascvia, puramente instintivo, crente em uma f totemista,
xamnica, animista ou naturalista.
No seu livro As mscaras da representao13 -traduo nossa- o crtico literrio
peruano Marcel Velsquez Castro examina o discurso sobre o comrcio de escravos que
ocupou a literatura desse pas no perodo entre 1775 e 1895, e afirma que, na construo
cultural da alteridade, o sujeito escravocrata oscila entre a subjetivizao, representada pela
mulher escravizada, e a desumanizao, relacionada ao homem escravizado.
Tambm se identifica a existncia de procedimentos e dispositivos polticos que
reconheceram neles os indivduos pertencentes a uma tradio cultural que s atingia a
individualizao pela via da excepcionalidade:
11
12
13
Fig. 1. Caricatura de 185515, que satiriza ao caudilho presidente peruano Ramn Castilla
(personagem no centro), autor da disposio de lei que aboliu o sistema escravocrata, que aparece
como redentor dos negros e os indgenas, ao lado de dois homens que representam a burguesia
esclarecida nos ideais iluministas. A lenda da foto assinala: rompe estas correntes! Ergue o
indgena da prostrao! Conquistemos a imortalidade! (Foto do autor traduo nossa).
14
15
condio humana inferior: no plano sexual, o negro era visto como lascivo e, por essa razo, a
mulher era tida como prostituta, o homem, como estuprador. J na ordem social, tinha fama de
subversivo ou delinquente. Assim, entendemos que existia a percepo de que foram os
negros a razo pela qual o projeto nacional crioulo fracassou como tambm a certeza de que a
elite crioula limenha no teria sabido negociar as contradies inerentes a uma sociedade psescravocrtica. A partir dessa poca at incio do sculo XX, a sociedade peruana continuaria
sendo depositria das ideias que marginalizariam as culturas diferentes da cultura
hegemnica, cuja sede era a cidade de Lima e cujas influncias se encontravam na
intelligentsia16 europeia, em particular as vigentes em pases como Espanha, Inglaterra e
Estados Unidos.
O antroplogo peruano Jos Matos Mar assinala que a compreenso das questes
sociais no Peru passa pelo entendimento de dois planos. O primeiro seria o do Peru na sua
densidade histrica, pela linha do desenvolvimento autctone, que lhe permitiu ser o bero de
uma alta cultura. Dessa maneira, o pas deve ser analisado sob o enfoque de outras sociedades
mundiais tais como Mxico, Egito, ndia, Ir ou China. Assim, importante entender como tal
densidade histrica lhe influi e lhe afeta porque lhe oferece, dentro da opresso e da misria,
perspectivas, possibilidades e obstculos, que outras sociedades subdesenvolvidas no tm17
(MATOS MAR, 1969, p. 14 - Traduo nossa).
J o segundo plano se refere cultura ocidental, que quebrara tal desenvolvimento
independente via imperialismo colonial espanhol, universalizando o pas e posicionando-o
como periferia das sociedades capitalistas dominantes ao longo da histria: Espanha,
Inglaterra e Estados Unidos (Id. p. 13). semelhana dessa relao, a cidade de Lima
concentrou o poder em relao a uma periferia interna representada pelas demais provncias e,
por sinal, um poder culturalmente baseado num sistema de classes sociais relativamente
rgidas e na maneira como elas participam e recebem os recursos sociais, econmicos e
polticos (Ibid., p. 22 - traduo nossa):
17
Nome que se atribui classe ou grupo dos intelectuais, ou s elites das artes e da poltica. Cf.:
INTELLIGENTSIA. In: Michaelis Moderno Dicionrio Da Lngua Portuguesa. So Paulo: Ed.
Melhoramentos. 2009. Disponvel em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 21 jan. 2011.
... lo influye y lo afecta porque le ofrece, dentro de la opresin y la miseria, perspectivas, posibilidades y
obstculos que otras sociedades subdesarrolladas no tienen.
Porm, ali onde se exige uma compreenso particular sobre o Peru por ter
desenvolvido uma cultura milenar no deveria fazer-nos pensar o referido pas a partir de uma
origem comum, j que o prprio regime incaico no foi seno o auge sistematicamente
atingido por uma cultura assentada no vale do Cuzco, cujo poder poltico, blico e econmico
se imps ante as diversas e ricas culturas que povoavam as demais regies dessa parcela do
continente sul-americano, culturas que por sinal tinham suas prprias particularidades e
cosmovises (ROSTWOROWSKI, 2004, p. 32). Alm disso, as figuras do crioulo e do negro,
embora no possuam na regio a histria milenar dos diversos aborgenes do vasto Imprio
Incaico, sugerem quebrar essa linearidade autctone pensando nelas como a importao de
um modelo ocidental de hegemonia e centralismo que abalou ao seu equivalente andino, se
pensarmos a sede do Tahuantinsuyu -nome para os territrios Incas- tornando periferia ao
resto de cidades.
Voltando aos comeos do sculo XX e levando essas questes para o campo das
relaes de poder e das manifestaes artsticas, poder-se-ia dizer que estava em jogo no
somente aquilo que deveria representar o nacional, mas tambm o que deveria ser considerado
culto e, mais adiante, o que deveria ser preservado ou resgatado como smbolo do nacional.
Acreditamos tambm que, paralelamente, o imaginrio social como veculo de esteretipos e
estigmas povoou as entrelinhas da vida econmica e poltica, perpetuando o status quo da
cultura que estava no poder.
A historiografia peruana na passagem do sculo XIX ao XX tambm teve um papel
importante na racionalizao e articulao da retrica nacionalista crioula nascente,
transformada num discurso histrico instrumental de poder, coadjuvando a reproduo de
uma ideologia que visava a manuteno das hierarquias sociais18 (MNDEZ, 2000, p. 32 Traduo nossa). Contudo, as interpretaes histricas sobre a vida republicana no foram
convincentes para pensar o Peru como memria e projeto de futuro (MELGAR BAO, 1993, p.
187). Dessa maneira, entre a corrente indigenista apresentada na obra Sete ensaios de
interpretao da realidade peruana19,escrito por Jos Carlos Maritegui20, a corrente
hispanista apresentada no livro Peruanidade21 -traduo nossa- escrita por Victor Andrs
18
19
20
21
... coadyuvando a la reproduccin de una ideologa que tenda al mantenimiento de las jerarquas
sociales.
Cf.: So Paulo: Alfa-mega, 1975.
1894-1930. Considerado um precursor do marxismo latino-americano, seu pensamento reivindicou a imagem
e o homem da regio andina. Em 1928, publicou os Sete ensaios de interpretao da realidade peruana, no
qual realiza, na prtica, o primeiro esforo bem-sucedido para "nacionalizar" o arcabouo terico de Marx
em nosso continente (PERICAS, 2010)
Peruanidad.
22
23
1883-1966. Contemporneo a Maritegui mas contrrio as suas ideias, acreditava num projeto peruano
ocidental nos moldes do iluminismo progressista, que continuasse a tarefa de assimilar ao indgena,
comeada no vice-reinado pela obra educativa das ordens religiosas e da Igreja em geral (BELANDE,
1968 apud URIARTE, 1998) Para uma leitura revisitada em defesa das teses belaundistas leia-se CUBAS
RAMACCIOTTI, Ricardo. Vctor Andrs Belande y el debate intelectual en torno a la realidad
peruana. Centros de Estudios Peruanos, Univ. Catlica San Pablo. Disponvel em
<http://estudiosperuanos.ucsp.edu.pe/?option=6&item=10> Acessado em: 23 nov. 2010.
1882-1959. Para um anlise do pensamento de Vasconcelos no Brasil confrontar: CRESPO, Regina Ada.
Cultura e poltica: Jos Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-1938). Rev. Bras. Hist., So Paulo,
v. 23, n. 45, julho, 2003. Disponvel em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882003000100008&lng=en&nrm=iso> Acessado em: 24 nov. 2010.
Ao falar de crioulo nos pases de lngua espanhola nos referimos ao mestio de traos
europeus -brancos sem referentes arbicos24- na Amrica Hispnica25. No Peru, essa mesma
palavra tambm significou a garantia de uma herana e filiao no somente gentica como
tambm cultural de um discurso poltico que via nos indgenas e negros a anttese do
desenvolvimento nos termos do modernismo, dando a impresso de duas culturas ou subculturas diferentes e ainda contrapostas (MATOS MAR, 1969, p. 33; COTLER, 1969, p. 146).
Com as sucessivas ondas migratrias, esse escudo protetor da identidade nacional do bloco
oligrquico, mas tambm de alguns setores urbanos mdios e empobrecidos, comeou a
fragmentar-se pelas suas prprias leituras e antinomias (MELGAR BAO, 1993, 202).
Num artigo sobre os bairros populares e a cultura crioula em Lima de incios do sculo
XX, o socilogo peruano Aldo Panfichi (2000) apresenta outra acepo denominada crioulo
popular, mais ligada noo de proletrio26, que se trata do termo cunhado para moradores
dos becos na cidade que compartilhavam as mesmas condies de precariedade (Id. p. 153)
desde suas misturas de negros, cholos27 e brancos (MELGAR BAO, 1993, p. 203). Essa
compreenso do crioulo popular lhe confere adjetivos como os de alegre e festeiro, quando se
fala da sua sociabilidade, e os de pcaro e esperto, quando se trata de buscar solues para
sobreviver no meio da mais absoluta carncia28. O autor acredita que o arqutipo do crioulo
popular de alguma maneira um exemplo de resistncia s mudanas e tirania do relgio e
aos horrios modernos do trabalho29 (PANFICHI, 2000, p. 153 -Traduo nossa).
Outra ideia esboada que os bairros desenvolveram um papel importante na
definio da identidade dos limenhos e, nesse sentido, aqueles com maior populao negra
eram demograficamente heterogneos como tambm as relaes de solidariedade e
compadrio, tecidas no interior desses bairros para enfrentar a adversidade, parecem ter sido
um aporte negro cultura crioula, ao ser um cdigo social que incorpora como iguais todos
24
Em parte das regies costeiras e serranas do Peru, se utiliza coloquialmente a palavra chapetn para
designar ao espanhol ainda sem mestiagens locais O termo alude ao rubor nas bochechas.
25
Cf.: CRIOLLO. In: Diccionario de la lengua espaola - Vigsima segunda edicin. Madrid: Real Academia
Espaola. 2001. Disponvel em: <http://buscon.rae.es/draeI/> Acesso em: 21 jan. 2011.
26
Sobre as estruturas sociais da capital peruana nos incios do sculo XX confrontar: STEIN, Steve. Lima
obrera: 1900-1930. Lima: El Virrey, 1986.
27
Nesta noo do crioulo popular que inclui o negro e o branco, o descendente de indgena chamado de
cholo, que se pela sua origem social e prestgio da sua profisso se aproxima do indgena, em termos de
salrio, do tipo e independncia ocupacional que tm frente ao mestio, se distancia destes grupos tnicosociais. (COTLER, 1969, p. 183 -Traduo nossa).
28
Um dado emprico: em conversaes com peruanos residentes em So Paulo h tempo, sempre coincide-se
em identificar o malandro carioca com esta acepo do crioulo limenho.
29
... los cambios y la tirana del reloj o los horarios modernos de trabajo..
aqueles que conhecem e participam de suas prticas de identificao ritual (Id. p. 154 traduo nossa).
Num escrito de 1944, intitulado O crioulismo limenho30 - traduo nossa- se define em
mais de quarenta pginas o que deve ser considerado um crioulo da gema:
Por ser tarefa difcil a pesquisa racial, agrupa-se hoje sob o termo crioulo todos
aqueles cuja peculiar modalidade reflete um processo de sntese viva. A graa
desenvolta do crioulo limenho o ndice revelador do seu recndito otimismo. Seu
hedonismo superficial e transitrio, e muitas vezes simulado, reflete seu ntimo
desejo de atordoar-se para no sentir o dissabor interno provocado pelo conflito de
caracteres raciais antagnicos cuja soluo confia ao tempo. (AQUILES
HERRERA, 1944, p. 10-11.- Traduo e grifo nossos)
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El criollismo limeo.
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O conceito de negritude surge pela dcada de 1930, como um movimento literrio afro-franco-caribenho
baseado na concepo de que h um vnculo cultural compartilhado por africanos negros e seus descendentes
onde quer que eles estejam no mundo. So suas figuras principais o senegals Leopold Senghor (1906-2001),
o martinicano Aim Csaire (1913-2008) e o francs Lon Damas (1912-1978). Os mesmos enfatizavam,
como pontos capitais no movimento: a reivindicao, por parte do negro, da cultura africana tradicional,
visando afirmao e definio da prpria identidade; o combate ao eurocentrismo advindo do colonialismo
europeu e da educao ocidental prevalecente; e a valorizao da cultura negra no mundo, em razo de suas
contribuies especficas do ponto de vista cultural e emocional as quais o Ocidente, materialista e
racionalista, nunca apreciou devidamente. Na presente dissertao, o termo sera utilizado num sentido geral
para referir-se, em parte, quela negritude acima definida. Cf.: DIAGNE, 2004.
Famlia e sistemas de parentesco provenientes do negro e/ou o ndio.
... plantao significar uma propriedade agrcola operada por proprietrios dominantes (geralmente
organizados numa empresa) e uma fora de trabalho dependente, organizada para suprir um mercado em
larga escala, com uso de capital abundante, onde os fatores de produo so empregados primeiramente para
promover a acumulao de capital, sem relao com as necessidades de status dos proprietrios. Cf.: W.
MINTZ, Sidney; R. WOLF, Eric. Fazenda e plantaes na Meso-Amrica e nas Antilhas. In: MINTZ, Sidney
W . O poder amargo do acar. Produtores escravizados, consumidores proletarizados. Antologia de artigos
de Sidney W. Mintz. Traduo de Christine Dabat. Recife: UFPE, 2003. p. 147-202.
Ao falar em origens africanas no me refiro a um tipo especfico de africanidade homognea que serviria de
ponto de comparao. Pelo contrrio, desejo me referir superficialmente aos traos culturais que estariam
presentes nas comunidades maioritariamente negras, apenas para distingui-las das comunidades indgenas,
ambas largamente utilizadas como mo-de-obra durante a escravido. Quando falarmos em origem, tambm
acho importante saber que, entre o sc. XVI e o XIX, Lima concentrou grande parte do mercado de mo-deobra escrava afrodescendente que abastecia as diversas regies andinas, e que, embora muitos vieram
diretamente da frica, a maioria foram ou reexportados de Panam ou Cartagena, ou exportados por Portugal
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para Espanha, e, de l, para o Novo Mundo. Cf: FRANA PAIVA, Eduardo; PEREIRA IVO, Isnara.(Org).
Escravido, mestiagem e histrias comparadas. So Paulo: Annablume, 2008. p. 59-76.
A etimologia do termo refere-se a todo descendente de africano e por extenso associado cor da pele
negra. Posteriormente, o termo tornou-se um novo paradigma e configurou-se no campo jurdico a partir de
2001, devido Conferncia Mundial contra o Racismo (em ingls World Conference against Racism)
celebrada nesse ano na cidade de Durban (frica do Sul), auspiciada pelas Naes Unidas. Ao longo da
pesquisa tenta-se contextualizar a discusso, por isso, toda vez que fala-se em afrodescendente nos referimos
s interaes entre o citado termo-chave e suas leituras ou apropriaes na sociedade peruana.
Na retrica aristotlica, designa-se ethos a construo de uma imagem de si, os traos de carter apelo destinados a garantir o sucesso de um discurso. A temtica (a mensagem ou a referncia) e o modo
(disposio dos sons) de determinado tipo de msica entendido como o ethos da mesma. Cf.:
HALLIWELL, Stephen. Aristotles poetics. University of Chicago Press, 1998.p. 151.
Canto de sirena.
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regio sul da costa, com suas matrizes diversas, andinas, afroperuanas, ao mesmo tempo em
que se faz um inventrio da maquinaria feudal: o moinho e, sobretudo, o trapiche38.
Noutro plano, a manumisso do escravizado por razes do liberalismo econmico
propagado especialmente pela Inglaterra, na passagem do sculo XIX para o XX, significou
tambm passar da escravatura do patro-de-engenho a outra do Estado hegemnicohomogeneizador. Assim, a abolio no teria sido seno uma mera mudana jurdica sem
condies socioculturais, pois a estrutura social e a cultura que a animava no estavam nem
preparadas nem dispostas para permitir a integrao de quem at pouco tinham sido seus
escravos e objetos de compra-venda39 (MELGAR BAO, GONZLEZ MARTNEZ, 2007, p.
39 -Traduo nossa).
O declnio dos referentes europeus, logo no fim da primeira guerra mundial, em 1918,
significou para uma grande parte de Amrica Latina a oportunidade de procurar no prprio
seio a identidade que lhe pertenceria, o que no Peru tomou forma de um retorno ao passado
indgena40, que se pode resumir como um processo dialtico de pertencimento entre
aristocratas hispanizantes, democratas europeizantes e socialistas indigenistas, estes ltimos
estimulados, alis, pelas revolues mexicana e russa (MATOS MAR, 1970, p. 206). Ao
mesmo tempo em que a Europa se entusiasma pela arte negra, a Amrica Latina descobre o
valor esttico da arte indgena, considerada pelo indigenismo como a nica fonte possvel de
arte autenticamente nacional41 (FAVRE, 1998, p. 50 -Traduo nossa). Contudo, e longe de
constituir um movimento homogneo, este no teria passado de um discurso urbano de
brancos ou mestios, que buscou, atravs do referencial indgena enfrentar Lima e inventar
uma peruanidade geogrfica e regional que os inclusse enquanto no-limenhos (URIARTE,
1998; TUR DONATI, 1993, p. 160). No longo processo que durou quase a metade do sculo
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Antigo moinho usado no campo para espremer a cana de acar e extrair seu caldo. Cf.: TRAPICHE. In:
Diccionario de la lengua espaola - Vigsima segunda edicin. Madrid: Real Academia Espaola. 2001.
Disponvel em: <http://buscon.rae.es/draeI/> Acesso em: 21 jan. 2011.
La estructura social y la cultura que la animaba no estaban ni preparadas ni dispuestas para permitir la
integracin de quienes hasta ayer haban sido sus esclavos y objetos de compraventa.
Importante lembrar que o Peru ingressava no sculo XX devastado pela chamada Guerra do Pacfico (18791893) travada entre a aliana peruano-boliviana e as foras chilenas. A figura do poltico e anarquista Manuel
Gonzlez Prada (1844-1919) seria o mais importante articulador do severo repdio da ptria crioula: o
influxo do gonzalespradismo se estende, em primeiro lugar, como uma verbalizao da amargura suscitada
pela derrota perante o Chile; em segundo lugar, como fico orientadora da oposio antioligrquica; e,
finalmente, como elemento essencial do arsenal retrico daqueles que, sob a influncia do fascnio do
outubro russo, tentariam pensar cientificamente no problema da revoluo no Peru. (RNIQUE, 2009, p.
23). Nesse sentido, Prada via na populao indgena o nico embasamento possvel da nao a ser construda,
em contraposio quela nao formada pelos agrupamentos de crioulos e estrangeiros que habitavam a
faixa de terra situada entre o Pacfico e os Andes (Id., p. 26)
... en que Europa se entusiasma por el arte negro, Amrica Latina descubre el valor esttico del arte indio
que el indigenismo seala como la nica fuente posible de un arte autnticamente nacional.
13
XX, o indigenismo teve como principal funo ressaltar os valores da antiga cultura peruana,
rebatendo assim o hispanismo como alienao, mas caindo, ao cumprir tal objetivo, no
etnocentrismo (MATOS MAR, 1970, p. 207).
Inserido na corrente culturalista norte-americana42, tambm podemos dizer que o
indigenismo no Peru inspirou grande parte dos trabalhos de etnologia, arqueologia e, em
geral, da pesquisa antropolgica (Id. p. 206), na procura de uma identidade peruana (FAVRE,
1998, p. 45), que, desde seus primrdios, se deteve menos a analisar o Outro na costa, o negro
e seus descendentes, do que o Outro nacional erigido na figura do ndio e sua pretendida
linhagem incaica43.
Apesar de a cidade de Lima ser historicamente africanizada desde meados do sculo
XVI at fins do sculo XVIII, e de que em alguns momentos os negros e seus descendentes
chegaram a superar 45% da populao total, em 1940 essa cifra desceria a s 1,66%, algo que,
em parte, poderia ter sido influenciado pelos reassentamentos por motivos laborais e pela
miscigenao como efeito dos movimentos migratrios, mas tambm por um fator que teria
distorcido as cifras estatsticas: a vergonha tnica ou a negao da filiao a uma comunidade
de negros por parte de um nmero significativo da populao que se autodenominava mestia,
negando seus traos afrodescendentes (VELZQUEZ CASTRO, 2005).
Em resumo, entre a rejeio a uma afrodescendncia vinculada escravido colonial e
estigmatizao pela negritude e posterior invisibilizao produto de um dualismo cultural
entre hispanistas e indigenistas, se entende que o negro e seus descendentes no teriam se
conformado em um grupo coeso e sim, individualmente, se somado como atores coadjuvantes
a reivindicaes no-negras no plano das discusses polticas e sociais peruanas da primeira
metade do sculo XX44.
Contudo, nos parece importante ressaltar que as teses da miscigenao,
desmobilizao (ex.: do campo cidade), descaso do Estado ou a eventual vergonha na
autodefinio tnica no parecem ser suficientes para explicar a decrescente taxa demogrfica
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do negro no Peru. Isto abre uma brecha para acreditar que no pas andino dessa poca uma
classe governante e civil compartilhava os desejos do cientista brasileiro Joo Batista Lacerda,
proferidos no Congresso Universal das Raas, em Londres, no ano de 1911: em um sculo a
populao do Brasil ser provavelmente branca e no mesmo perodo os ndios e os negros
desaparecero (SCHWARCZ, 2011).
Tais afirmaes vm de encontro anlise feita a seguir, em que observaremos a
ressignificao que, desde meados do sculo XX, o negro experimenta tanto como sujeito
poltico quanto no debate acerca de um discurso sobre a cultura afroperuana, o que
denominaremos como a discusso entre o Negro do Peru e o Peru negro45. Nessa mesma
perspectiva, comentaremos o surgimento, no plano internacional, de novos paradigmas, que
reivindicariam os direitos civis das assim chamadas minorias, e analisaremos a reconfigurao
do panorama social e demogrfico na cidade de Lima, j sob o signo de uma cultura migrante
andina.
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Assim, se estabeleceu uma dinmica entre um Peru oficial, crioulo, e um Peru real,
cholo, que resultou no decorrer das dcadas num encontro conflituoso entre duas culturas,
ambas notavelmente modificadas, como amplo intercmbio de elementos entre si, com
numerosos pontos de contato entre ambas47 (QUIJANO, 1980 apud BALBI, 1997, p. 12 Traduo nossa). Em determinado momento, a demografia social e cultural de Lima,
concentrava uma parte da heterogeneidade do pas, transformando essa cidade no s num
caldeiro de todos os sangues, como tambm na principal arena cultural e social onde o
sujeito urbano devia construir sua prpria identidade48.
nesse contexto que o negro no Peru se configura econmica e politicamente,
baseado nas possibilidades que lhe ofereciam as relaes de poder, que nem o colocavam em
vantagem nem o desfavoreciam por completo. Por um lado, o negro passou a formar parte dos
smbolos da peruanidade em que o migrante da serra no tinha vez - pois se tratava de um
dos grupos humanos mais antigos da cidade, por outro, as suas condies materiais estavam
mais prximas da camada populacional indgena que vinha se assentando na capital.
A partir dessa reflexo, podemos dizer que a segunda metade do sculo XX se impe
como um divisor de guas quando se fala em cultura afroperuana, pois existe quase um
consenso em assinalar esse perodo como o mais significativo para uma discusso social do
negro no Peru moderno49. Os autores tambm concordam que nesse perodo se deu a conhecer
um grande nmero de grupos de msica negra na costa, muitos dos quais de famlias que
tambm migraram do campo. Sob os moldes da profissionalizao cultural e do exerccio do
espetculo artstico, parte desses grupos teria sido encaminhada para apresentar-se nos
diversos meios de comunicao -no caso, nas rdios e depois na televiso-, nas eventuais
delegaes artsticas nacionais -conjuntos que representavam o pas internacionalmente-, em
apresentaes associadas ao turismo local, e na institucionalizao do repertrio musical
atravs das escolas de folclore.
representatividade cultural lhe acompanhou uma representatividade poltica ativa,
inspirada, num primeiro momento, nos movimentos de direitos civis estadunidenses, pelos
ideais representados pelo slogan Black Power, que nas dcadas de 1960 e 1970 foi decisivo
para a revalorizao da cultura negra nos Estados Unidos e para a conscincia do racismo
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... encuentro conflictivo entre dos culturas, ambas notablemente modificadas, como amplio intercambio de
elementos entre s, con numerosos puntos de contacto entre ambas.
Idem.
Cf.: MELGAR BAO, 1993; RODRGUEZ PASTOR, 2008; ROSTWOROWSKI et al., 2000; SANTA CRUZ,
1978 apud VZQUEZ RODRGUEZ, 1982; ROMERO, 2007, 2008; FELDMAN, 2006; LEN QUIRS,
2003; TOMPKINS, 2006, 2008; LLORNS AMICO, 1983
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Na dcada de 1960, a luta pelos direitos civis dos negros foi marcante nos Estados Unidos e repercutiu
poderosamente em outros pases de ocidente: No exterior, tinha-se um pas vergonhosamente envolvido na
guerra do Vietn, onde as suas tropas (dos EUA) cometiam atrocidades [] Internamente, contudo,
brilhavam as chamas libertrias da contracultura, do feminismo, do poder negro. (RISRIO, 2007, p. 112)
The young members followers learned the formal aspects of the music and choreographies, but were not
introduced to the philosophical and historical knowledge of their leaders.
Existe uma referncia anterior: o grupo Ricardo Palma, fundado por Samuel Mrques, teria apresentado em
1936, fragmentos de msicas negras que sobreviveram at essa poca. (Cf.: TOMPKINS, 2008, p. 484)
17
artstica anos depois teriam seus prprios recursos e discursos a respeito da cultura negra
peruana, chamada, logo em seguida, de afroperuana: msicos como o cajoneador Carlos
Caitro Soto de la Colina, e outros como Abelardo e Vicente Vsquez, Ronaldo Campos, e o
prprio Nicomedes foram, alm de profissionais, representantes e autoridades nem sempre
concordantes em assuntos afroperuanos (LEN QUIROZ, 2003, p. 104). Embora o trabalho
de Durand tenha se preocupado exclusivamente com a reconstruo histrica baseada em
escritos e imagens do sculo XIX ou anteriores, os grupos de famlias negras no fizeram da
rigidez documentria um obstculo e, em muitas ocasies, superavam a ausncia de pesquisa
histrica, preenchendo as suas performances com msicas e coreografias da poca (Id.).
Fig. 2. A capa do livro do pesquisador Luis Rocca nos revela uma foto que ilustra bem o momento analisado: Em
primeiro plano, vemos aos msicos Abelardo Vsquez (esq.) ao lado de Arturo Cavero, percutindo um checo e
uma angara, respectivamente. Detrs, os folcloristas Arturo Jimnez Borja (esq.) e Jos Durand (cent.), ao lado
do violonista Vicente Vsquez (ROCCA TORRES, 2009, p. 11)53.
53
Na ocasio, o checo e a angara foram apresentados no marco das pesquisas dos mencionados folcloristas, em
1979 (Id.), que o prprio Rocca retoma em parte na referida publicao. O crdito da fotografia de Carlos
Chino Domnguez.
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Para o caso peruano acredito que, tanto em 1950 como hoje, possvel passar por uma situao de
esquizofrenia quando vemos que se celebra indstrialmente a msica afroperuana enquanto o povo aludido
nessas msicas muitas vezes vive na extrema pobreza ou nem tem chance de se reconhecer afroperuano nos
censos nacionais.
Acredito que seja possvel pensar que o intuito de legitimar-se como um forte porta-voz do discurso
afroperuano tenha sua contraparte no interesse comercial, tanto das apresentaes ao vivo como daquelas
prprias da indstria fonogrfica da poca. Hoje possvel que o controle do discurso afroperuano siga um
caminho distinto: se apresentando como prova de um discurso cientfico vlido e depois legitimando-se
artisticamente como representante autorizada (Cf.: LEN QUIROZ, 2003, p. 114).
19
Certeau & Julia mencionam ao se referir beleza do morto (sic.) para explicar o conceito de
cultura popular:
A prpria cincia recebe os objectos e a forma do acontecimento e a forma do
acontecimento poltico, mas no o seu estatuto; no lhe redutvel. Sem dvida ser
sempre necessrio que haja um morto para que haja discurso; ela dir a sua ausncia
ou sua falta mas, assinalar o que a tornou possvel um momento dado no equivale a
explic-la. (DE CERTEAU; JULIA, 1989, p. 75)
Nos seguintes dois subttulos, faremos uma crtica mais detalhada das ideias
apresentadas anteriormente, para entender como, num panorama poltico propicio, foi possvel
pensar ao sujeito negro alm do estigma marcante da escravido e a discriminao racial.
Nessa direo, sero apresentadas e analisadas algumas testemunhas de negros peruanos que,
na segunda metade do sculo XX, jogaram um papel importante na histria desse pas, como
atores destacados do imaginrio social nacional. Em primeiro lugar, Victoria Santa Cruz falar
da reivindicao do corpo negro e de sua opo, por vezes transcendental, mas sempre
singular, de reconstruir o passado da cultura afroperuana.
Da dcada de 1960 em diante, Victoria Santa Cruz no s foi uma figura principal ao
formar - junto a seu irmo Nicomedes - um dos primeiros elencos teatrais e de dana
compostos inteiramente por negros, mas tambm foi a responsvel por construir uma
negritude muito particular, cuja chave principal -no incio e na partida- seria o prprio corpo
negro.
Em 1978, Eugenio Barba, personagem central do chamado teatro antropolgico57,
entrevistou Victoria Santa Cruz e ofereceu em 21 minutos de registro audiovisual
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57
Slogans como black is beautiful, black power, esto atrelados luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e
tiveram seu auge na dcada de 1960. Resultaram muito importantes poltica, social e culturalmente, pois
representou um momento-chave em que os negros estadunidenses se redefiniram: Arquivou-se para sempre,
ali, o esteretipo do sambo, do good nigger, do negro que conhece seu lugar, O clich racista do preto bobo,
dcil e idiotamente feliz. Com o black power, os negros norte-americanos passaram a se ver como agentes
enrgicos de seu prprio destino. (RISRIO, 2007, p. 106)
Falar em Teatro Antropolgico falar do italiano Eugenio Barba (1936), ator e diretor de teatro que por sua
vez foi fortemente influenciado pelas concepes teatrais do polaco Jerzy Grotowski (1933-1999), que
introduz conceitos como o teatro experimental, teatro laboratrio e teatro do pobre. Barba tambm fundou em
1979 o International School of Theatre Anthropology (ISTA) e, em 2002, o CTLS (Centre for Theatre
Laboratory Studies. Cf.: EUGENIO BARBA. Breve biografia em portugus. Odin Teatret. Disponvel em:
<http://www.odinteatret.dk/media/222239/CV%20brief%20EB%20-%20POR%20-%20OKT%202010.pdf>.
Acessado em: 24 jan. 2011.
20
(VICTORIA-BLACK AND WOMAN, 1978) uma sntese da filosofia que inspirou o trabalho
de quem, por essa poca, dirigia o Conjunto Nacional de Folclore de Lima. Segue uma
transcrio literal de boa parte da entrevista, para logo analisarmos de forma detalhada as
afirmaes feitas na ocasio:
Eugenio Barba: Tinha sete anos [de idade] quando a chamaram negra, e voc
aceitou esse nome e comeou a retroceder at quase cair, mas no caiu. Como foi a
situao, a experincia que [lhe] deu a fora para no devir o que os outros a
chamavam?
Victoria Santa Cruz: A experincia implica todo um processo muito complicado,
porque quando me disseram negra realmente no tinha ainda sete anos e recm
percebi o que isso significava... no falei com ningum, mas tinha algo que me dizia
que isso era meu, que isso eu tinha de compreender e eu tinha que sair da s! Ento,
em um momento da minha vida odiei. Odiei e sei o que odiar, e no aconselho
ningum, porque isso no faz mais que te destruir, mas, no meu processo, odiei, e
com o passar do tempo fui compreendendo que aquilo era tambm importante
porque se no fosse por isso eu no seria hoje o que sou. Ento, isto me fez
compreender que o negativo cumpre tambm um papel, no ficar com aquilo, mas
ver o que fazemos com aquilo, e que produz em mim aquela coisa, e como pode ir
equilibrando-se at que hoje posso dizer: abenoado seja Deus, que algum me
chama de negra para que eu entendesse hoje que sou negra, mas no como eles
diziam... que sou negra e que fao parte desse mosaico que o homem negro,
amarelo, vermelho. Enquanto o vermelho, o branco, o amarelo e o negro no
percebam que so um s jamais podero descobrir o que o homem!. (VICTORIABLACK AND WOMAN, 1978 Traduo nossa)
Fig. 3. Eugenio Barba e Victoria Santa Cruz, Lima, 1978. (Odin Teatret Archives / Photo Peter Bysted)58
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21
Neste incio de conversa, Victoria parece deixar clara a viso de negritude que
caracterizaria as suas futuras falas sobre o assunto: a do homem que no depende dos outros e
capaz de forjar seu prprio destino no meio da maior adversidade: ...tinha algo que me
dizia que isso era meu, que isso eu tinha que compreend-lo e eu tinha que sair da s!.
tambm com essa convico que ela tece o sentido de uma existncia possvel fora da
dicotomia de oprimido/opressor, em que as injrias, embora possam despertar o dio, no
necessariamente alimentavam a vingana, mas a fortaleciam como sujeito, numa espcie de
encontro consigo mesma: isto me faz compreender que o negativo cumpre tambm um
papel, no ficar com aquilo, mas ver o que fazemos com aquilo [...] e como pode ir
equilibrando-se. Nesse processo que ela consegue entender o que acontece fora, por que a
chamam negra, e s atravs dessa descoberta pessoal que se soube negra no sob o signo do
estigma social, mas como afirmao de autoestima: ... abenoado seja Deus que algum me
diz negra para que eu entendesse hoje que sou negra, mas no como eles diziam. Alm de
tudo, Victoria no s renasce fortalecida, mas tambm esclarecida de que a sua negritude
pertence a uma dimenso maior e totalizadora da experincia humana: Em quanto o
vermelho, o branco, o amarelo e o negro no percebam que so um s jamais podero
descobrir o que o homem!.
Esse sentimento de pertena a um todo social maior tambm uma chave pela qual
Victoria compreende o porqu do dio a ela:
Victoria Santa Cruz: ... se o branco no abre os olhos e se une ao negro, ao ndio e
ao vermelho, vai desaparecer, e com o seu desaparecimento est tambm o nosso
[desaparecimento] porque somos parte deles, e eles parte nossa. Se no fosse assim
no teriam me agredido... me agrediram porque so parte minha, seno, no teria
sido possvel. (Id. - traduo nossa)
Guardando coerncia com essa lgica, Victoria argumenta a favor de uma essncia
nica do ser humano, que se enganaria na iluso de estabelecer uma diferena cultural entre as
pessoas, e fala especificamente do devir do negro peruano, que, segundo ela, nunca chegou a
ser escravizado ao fim, pois sua individualidade o conservou livre em seu prprio ritmo
interior:
22
na frica, encontrei a base para ficar em p, mas tive de comear pelo negro, por
esta coisa que me fez dizer um dia estas combinaes rtmicas africanas herdamos e
conservamos to zelosamente ao longo de 400 anos... pelo qual eu diz um dia o
negro no foi jamais escravo porque ningum pde escravizar seu ritmo interno que
o nico guia do ser humano. (Id. - Traduo nossa)
A prpria Victoria explicaria que, ao se referir ao ritmo, ela faria aluso a uma espcie
de princpio reitor que impe seu equilbrio a todas as coisas desde sempre e cujo
entendimento ultrapassa a erudio e a razo, pois tem de ser exclusivamente emprico. Esse
ritmo a que se refere tampouco aquela definio que vem da teoria musical, seno um ritmo
vital presente nas pessoas ao longo de sua prpria descoberta, como sujeito em constante
evoluo, independente da cor e da geografia que se manifesta atravs do corpo como sinal de
uma liberdade inalienvel:
Eugenio Barba: voc diz que o negro nunca foi escravo porque ele guardou seu
ritmo interno. Para voc o ritmo como a riqueza, a beleza que faz aparecer o
homem nos amarelos, nos brancos, nos negros. Que , ento, esse ritmo?
Esse ritmo csmico que pauta o devir, segundo Victoria, seriam combinaes que
surgem ao longo de um processo de evoluo, no qual o negro configurar-se-ia como uma
entre outras possveis combinaes. A mesma noo aparece como sinnimo de escolhas e
podem se aplicar a um conceito muito particular de cultura e sociedade. Essa parte da sua fala
guarda relao com os postulados que Eugenio Barba expressa ao definir o Teatro
Antropolgico:
23
Onde os artistas podem encontrar as bases materiais para a sua arte? Estas so as
questes que a antropologia de teatro tenta responder. [...] msicos diferentes, em
diferentes lugares e tempos, e apesar das formas estilsticas especficas s suas
tradies, tm princpios comuns. A primeira tarefa da antropologia teatral traar
estes princpios recorrentes. (BARBA; SAVERESE, 1991, p. 8 -Traduo nossa)
De certa forma, Victoria acreditava que podia fazer a sua parte, como mulher, negra e
peruana, mas que tudo isso s faria sentido numa realidade acima das diferenas de cor,
gnero e geografia. A ligao com o texto de Barba est em que parte do trabalho feito por
Victoria, de valorizao, sistematizao e ensino de prticas artsticas associadas ao negro no
Peru se enquadrariam nesse universo de princpios recorrentes que tomam vida, que se
encarnam atravs das condutas e das particularidades socioculturais de um artista.
Todos essas ideias descritas tambm so familiares ao humanismo existencialista de
Jean-Paul Sartre59, muito presente na segunda metade do sculo XX60, cuja nfase no
indivduo e em sua relao subjetiva com o mundo podiam se expressar na seguinte frase:
voc sempre pode fazer algo distinto daquilo em que se h tornado (FLYNN, 2004 traduo nossa)
61
[] entre os entes que h no mundo, h um, em particular que, no curso de sua autorealizao, encontra-se inevitavelmente com a questo da natureza fundamental de
todos os entes, inclusive a sua prpria. Esta coisa o Dasein -aquele modo de ser
peculiar cuja essncia toma a forma da existncia, e que vive o mais tipicamente no
e atravs do humano. Ao realizar as suas possibilidades, o Dasein no tem como no
59
60
61
Com isto quero sugerir que, atravs da leitura e anlise dos dilogos apresentados entre Eugenio Barba e
Victoria Santa Cruz, assim como outros escritos da prpria Victoria, poder-se-ia identificar uma influncia do
pensamento sartriano na concepo de negritude que ela defende, o que amerita maior aprofundamento e
escapa ao foco do presente trabalho.
Victoria Santa Cruz estudou na Frana, graas ao apoio do Governo desse pas, entre os anos de 1961 e 1966,
em L'Universit du Theatre des Nations (surgida nas discusses de LInstitut International du Thtre,
vinculada Unesco) e na E.S.E.C (Ecole suprieure d'tudes chorgraphiques).
...you can always make something out of what you've been made into..
24
Eugenio Barba: esta desordem, que voc fala, era uma desordem de situao
humana, existencial... para voc, como negra e tambm como mulher?
Victoria Santa Cruz: O ser mulher e ser negra so problemas que para o ente
racional que ainda no tem compreendido continua sendo um problema, mas quando
comeamos a intuir a possibilidade que temos quando h uma complicao, este
problema se transforma numa condio, uma condio para se forjar. O ser humano
no pode tirar a liberdade do outro, isso a nica coisa que o homem no pode fazer
tirar a liberdade, porque ela est dentro de voc e, quando algum tem contato com
ela, no h ningum que possa tir-la, ningum! Somente voc pode tirar a sua
liberdade com a sua prpria negatividade, com o seu dio, com a sua prpria
incompreenso, e digo mais, neste momento, eu falo pra voc Eugenio, hoje
ningum pode me magoar, eu sim (a mim)!. O dia que eu acredito que isto que
encontrei me pertence eu perco tudo porque isto no me pertence, isto disso, disso
que voc chama espiritual, desse absoluto. (VICTORIA-BLACK AND WOMAN,
1978 Traduo nossa)
25
Aquilo que Victoria afirma no lhe pertencer, pois se situa no espiritual, no absoluto,
apareceria na sua fala como um norte que justifica moralmente um longo processo de
redeno, em que o negro tem de perceber que seu destino atingir a plena conscincia de sua
humanidade universal.
Por outro lado, se entendemos essa humanidade universal como uma noo de
modernidade no pensamento de Victoria, embora possua certos traos holsticos, ele no
nem ambguo nem ingnuo na hora de colocar as tenses tnicas em pauta, o que a distancia
de definies como as do filsofo norte-americano Marshall Berman, que via na modernidade
a alegoria de um caminho largo e aberto que oferece uma viso mais ampla de nossa prpria:
experincia, sem fronteiras de tipo social, tnico, de classe, de gnero etc.:
O caminho largo e aberto apenas um entre os muitos outros possveis, mas tem
suas vantagens. [] Ele cria condies para o estabelecimento de um dilogo entre
o passado, o presente e o futuro. Ele transpe as fronteiras do espao fsico e social,
revelando solidariedades entre pessoas comuns, e tambm entre pessoas que vivem
nas regies a que damos os nomes pouco adequados de Velho Mundo, Novo Mundo
e Terceiro Mundo. Ele estabelece uma unio que transcende as barreiras de etnia e
nacionalidade, sexo, classe e raa. (BERMAN, 2007, p. 11)
Em Tudo que solido desmancha no ar, o referido autor define que preciso romper
com a abordagem museolgica (Id.), que fragmentaria as problemticas humanas em
relaes de poder, classe, etnia etc., pois a presena dessas categorias no faz seno
transformar a cultura em prises e sepulcros caiados (Ibid., p.12.), incapazes de dar conta da
vitalidade das atuais apropriaes culturais mltiplas, permeveis, que dificilmente podem se
rotular ou se enquadrar em casos separados.
A respeito dessa modernidade abrangente e uniforme e de sua relao com a histria
da dispora africana e da escravido, Paul Gilroy dedica um captulo inteiro, destacando, em
sentido oposto, sua preocupao com as variaes e as descontinuidades na experincia
moderna e com a natureza descentrada e indiscutivelmente plural da subjetividade e da
identidade modernas (GILROY, 2001, p. 110):
26
Voltando entrevista com Victoria Santa Cruz, podemos desdobrar seu conceito sobre
a negritude peruana e pan-africana62 e sua lgica aparentemente existencialista como a
construo de um messianismo capaz de dar suporte moral s expectativas do indivduo negro
numa sociedade forjada no preconceito e de um passado escravocrata que contribuiu para a
degradao do componente tnico afrodescendente na cultura nacional.
Se fosse possvel descrever uma histria das moralidades e das ticas no Peru,
teramos de escrever que o negro - assim como o indgena da serra, da Amaznia, e o
contingente de chineses apelidados discriminativamente coolie63- tambm foi barbarizado na
escravido e discriminado na vida republicana, cabendo-lhe sua reputao moral a instituies
como as ordens religiosas de tradio crist conservadora e aos meios de comunicao
respectivamente64, pois ambas pareciam cumprir um papel de basties do imaginrio social,
do pblico.
O caso que, em meados do sculo XX, o que h em termos de evoluo limita-se ao
que chamam de racismo moderno (RODRIGUES, 1999, p. 158),em que a presso por
normas sociais mais liberais gera algo assim como um preconceito de ter preconceito, que
aparentemente teria regulado a discriminao aberta em troca de sua internalizao, sentando
as bases do estigma entre posio social e cor da pele nos dias de hoje:
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O pan-africanismo surgiu no sculo XIX como expresso de repulsa em relao situao degradante do
negro em todo o mundo. Entre seus vrios princpios, pensava a frica como um continente formado por
um nico povo, o povo negro, o que lhe conferia uma unidade natural. Esse pressuposto bsico do panafricanismo era estendido aos afro-americanos e afro-caribenhos que por integrarem uma raa comum
compartilhavam, mesmo que de forma parcial, da ancestralidade africana. (HERNANDEZ, 2005, p. 141). O
pan-africanismo tambm era limitado espacialmente pois seu eixo de concepo e difuso de ideias era
europeu e norte-americano [] Sua expanso na frica ocorreu bem mais tarde, por volta da Segunda
Guerra Mundial . (Id., p. 139)
Designa-se a palavra para trabalhadores braais oriundos da sia, em particular a China. No Peru se
conhecem como cules. No Brasil a situao no foi muito diferente com a mo de obra chinesa, os chamados
chim, tambm em regime de semiescravido. Cf.: DEZEM, Rogrio. Matizes do Amarelo: A gnese dos
discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). So Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2005.
So bem estudados o papel das confrarias de negros na poca da colnia e a histria do Cristo de
Pachacamilla, que passou de culto marginal a um rebatismo e oficializao como culto nacional sob o nome
de Senhor dos Milagres. J nos meios de comunicao, foram notrios os avisos pblicos procura de negros
cimarres, amas de leite e crnicas sobre a vida nos bairros negros de Lima do sc. XIX e incios do XX.
Cf.: GONZLES MARTNEZ, Jos Luis. Sincretismo afroperuano: El papel de la religin en la construccin
de una identidad tnica de resistencia. Ensaio apresentado no IV Coloquio Internacional sobre Religin y
Sociedad: Religiones afroamericanas y las identidades en un mundo globalizado, La Habana, julio 2005.
Disponvel em <http://www.geocities.com/cliolatina/SincretAfro.doc> Acesso em 17 jun. 2009.
27
Frente a esse contexto adverso, a negritude definida por Victoria pensa no corpo negro
como centro das tenses sociais, o que se entende como um movimento que despreza e rejeita
tudo o que carrega em si por conta do passado e o capitaliza como fonte de orgulho,
afirmando e reabilitando uma identidade cultural da personalidade prpria dos povos negros
(MUNANGA, 1986, p. 40):
Quais teriam sido os valores da cultura ocidental que Victoria fez equivaler
africanizando-os em nome de uma negritude? As vertentes ibricas e indgenas da msica da
costa peruana? Em funo de que foi trabalhada uma identidade do orgulho negro? Na mesma
linha que toma o desprezo como ponto principal para o fortalecimento de um discurso esttico
reivindicativo, podemos ver que existe tambm uma definio complexa que passa por pensar
ao negro no como um Outro distinto e separado mas como parte do resto (me agrediram
porque so parte minha) onde a negritude teria uma funo de desintoxicao semntica que
faria do corpo negro esse novo lugar de inteligibilidade da relao consigo, com os outros e
com o mundo (Ibid.).
A liberdade interior via o corpo negro artstico seria tambm uma liberdade condio
social histrica do sujeito negro, pois surgido sob uma esttica essencialista, de apelo s
origens, a uma universalidade humanstica, realiza um contrapeso aos discursos duros,
neoliberais, materialistas e superficiais que lhe relembram constantemente o peso da histria
escravocrata, a discriminao racial ps-abolicionista e a segregao atual -expressa ou sutil.
A identidade orgulhosa do negro um plano de valia, rico em sentido, irredutvel, e
humanamente ecumnico, que se torna num dispositivo particular em resposta ao que Sartre
opinava sobre a relao raa/classe:
28
assim que a negritude testemunhada por Victoria Santa Cruz, como nesta entrevista,
mudaria o curso das respostas discriminao, colocando num stio privilegiado a moral do
negro que se prope a entender o racismo como oportunidade de esclarecer as tenses
histricas inerentes a sua pele e fisionomia, devolvendo a esse indivduo uma ontologia
composta de vises humanistas em que a noo de ancestralidade, herana e essncia no
sujeito visariam reparar a degradao que o pas instaurara sistematicamente nos corpos
negros.
Outra leitura possvel seria analisar o discurso de Victoria dentro do pensamento dos
grupos de direitos civis estadunidenses na dcada de 1960, expressado no slogan black is
beautiful, pois seu trabalho frente do Conjunto Nacional de Folclore e sua influncia em
outros grupos de dana negros65 salientaram como princpio tico o orgulho da
afrodescendncia, fato que impulsionou as conquistas sociais de uma populao, at ento,
invisibilizada.
Embora haja pesquisadores que afirmam que o discurso de Victoria se torna s vezes
reificado66, elaborado sob uma africanidade ancestral heterognea e imprecisa em
documentao histrica, que apelaria fortemente para uma essncia da raa negra
(FELDMAN, 2000, p. 53), a presente anlise procurou apresentar que o passado pode ser
mais um meio que uma finalidade e que tal abordagem visaria reconstruo moral do corpo
negro, irrompendo no seio do imaginrio social com o propsito de representar o discurso
65
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Victoria e Nicomedes formaram o conjunto Cumanana. Logo viriam Per Negro, formado por Ronaldo
Campos, Gente Morena de Pancho Fierro, Los Frijoles Negros, entre outros mais orientados manuteno de
espetculos com fins estritamente comerciais. (TOMPKINS, 2008, p. 485)
No sentido de alienar ao negro atravs das diversas representaes artsticas da negritude, apresentando estas
como realidade objetiva do negro no Peru. Aqui estou me referindo tanto banalizao da cultura como mera
atividade comercial como idealizao romntica da cultura expressada no conceito de folclore manejado
nos anos de 1950.
29
subversivo do Outro falando em voz mais alta que o normal: guiada pela black proud
Victoria negra, no cabe dvidas, mas no como os outros a chamam67.
Outros pontos de vista, na hora de apresentar a questo do negro no Peru, nem sempre
passaram por uma problematizao poltica ou cultural, procura de um protesto que devolva
algum direito negado. Em seu lugar, a opo moral da perseverana individual, sem importar
a cor de pele, surge como o antdoto infalvel para qualquer uma das adversidades na
sociedade. o caso que analisaremos a seguir.
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Numa entrevista em 2008, para um programa divulgado na televiso estatal, longe de modificar suas ideias
como resultado da passagem do tempo, Victoria as reafirmou contando em detalhe como o racismo que
sofreu foi o grande divisor de guas da sua vida. Cf.: Victoria Santa Cruz, negro es mi color. Retratos. Lima:
TV Per - Canal 7, 2008. Srie de documentrios na TV. Fragmentos do programa disponiveis em:
<http://youtu.be/754QnDUWamk>. Acessado em: 20 jan 2011
Cf.: ORO NEGRO (Chile). Fundacin de afrodescendientes de Chile. [email protected].
Disponvel em: <http://usuarios.multimania.es/oronegro/quienes_somos.htm>. Acesso em: 21 jan. 2011.
Cf.: Visible/invisible. las representaciones de la cultura afro-argentina en los museos. Buenos Aires: Museo
Histrico Nacional, 2010. Programao do evento disponvel em: <http://www.typa.org.ar/Visibleinvisible%20%28agenda%20y%20expositores%29_5.pdf>. Acessado em: 20 jan 2011.
CF.: Grupo de trabalho afrodescendentes das Amricas. censos de 2010. Unesco. Material de divulgao.
Disponvel em: <http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000666.pdf>. Acessado em: 20 jan 2011.
30
Com isso no quero dizer que no existam conflitos desse tipo e sim que no parecem
estar presentes nem na fala das pessoas71, nem na mdia em geral ou nos espaos de debate
poltico.
Por tudo isto, gostaria de definir o conceito de negritude no qual me focarei ao abordar
as tenses sociais da identidade cultural peruana: se trata de uma negritude bipolar e oscilante,
pois ora divulgada, pblica e dinamicamente cultural nas suas representaes artsticas, e
ora esquizofrnica e romntica, como uma negritude que parece reificada nas expresses
culturais, tais como a msica.
Retomando brevemente uma parte da entrevista de Victoria Santa Cruz e sua filosofia
redentora na ancestralidade do corpo negro, gostaria de resgatar a tenso racial que adquire a
seguinte frase: ... tinha algo que me dizia que isso era meu, que isso eu tinha que
compreend-lo e eu tinha que sair da s!. A escolha explcita pela viso psicolgica, antes da
viso coletiva do problema, pode levar a pensar que a racializao foi tomada por ela no do
ponto de vista de um sistema des-humanizante, que impunha hierarquias entre as pessoas, mas
como produto de uma zona de desconhecimento entre o discriminado e o discriminador, na
qual a certeza da igualdade72 jaz desvelada em apenas um dos lados. Como Victoria, outros
peruanos negros tambm pensaram o assunto nessa direo, embora a crtica discriminao
racial em Lima tenha em outros casos tons apaziguadores no intuito de eliminar possveis
tenses entre a cor da pele e um suposto rancor histrico pelos maus tratos da escravido e
posterior excluso social, econmica e cultural do projeto republicano: ou seja, h uma
corrente que evita problematizar como se fosse possvel jogar o problema da discriminao
racial fora das relaes sociais. Ao invs disso, se destaca um discurso romntico de unio em
que as adversidades do cotidiano - leia-se o racismo entre outras - devem ser encaradas em
prol dos que compartem (convivem?) uma mesma ptria independente de sua cor.
Para o ex-jogador de futebol, o peruano Tefilo Cubillas, renomado no seu pas e
internacionalmente por sua participao nas copas do mundo da dcada de 197073, a cor da
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72
73
Impresso pessoal, a julgar pela pesquisa de campo em diversos espaos de lazer pblico e privado, nas
conversas formais e informais que tive ao longo da minha passagem, na experincia do transporte pblico
entre outros espaos de sociabilidade na cidade de Lima. Aqui tambm entra em jogo o fato da minha
subjetividade vivenciar dois nveis diferentes de discusso e sensibilidade a temas como racismo e
discriminao. s dizermos que no Peru no existe de fato uma figura penal para o crime de injuria com
preconceito. O assunto se encontra na forma de projeto de Lei e foi apresentado ao Poder Legislativo peruano
s no ms de dezembro de 2010.
Penso no chamado princpio de isonomia ou igualdade perante a lei, no sentido inclusivo do termo.
Cf.: LOPES, Nei. Tefilo Cubillas. In: Enciclopdia brasileira da dispora africana. So Paulo: Selo
Negro, 2004. p. 219.; SNYDER, John. Tefilo Cubillas. In: Soccer's most wanted: the top 10 book of
clumsy keepers, clever crosses, and outlandish oddities. Brassey's, 2001.p. 38; WITZIG, Richard. Tefilo
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plano existencial surge nas entrelinhas como o libi principal para mudar o destino do
indivduo, pois o pensamento-guia que todos somos iguais ou que, em caso contrrio, temos
de s-lo.
Outro testemunho intitulado A africana no foi um obstculo para mim77- Traduo
nossa-, da laureada voleibolista Luisa Fuentes, conhecida pelas pocas douradas do vlei
peruano nos ltimos anos da dcada de 1960 e em toda a dcada de 197078, chega ainda a
coincidir com a noo que Victoria Santa Cruz constri sobre a importncia do obstculo:
Em algum momento, especialmente na minha adolescncia, senti que poderia ser um
obstculo ser negra e pobre79, e compreendi o importante papel que cumpre esse obstculo,
mas tambm compreendi que assim mesmo, tinha o suficiente para venc-lo80
(ROSTWOROWSKI et al., 2000, p. 166 - traduo nossa).
Se em Victoria a fora veio da ancestralidade, em Luisa o ncleo familiar e o esforo
individual que a sustentaram como mulher, junto ao rigor esportivo que adquiriu quando
passou a integrar seleo nacional de vlei. Prova do seu esforo a meno do
reconhecimento pblico que o Estado lhe fez ao escrever seu nome no frontispcio do Estdio
Nacional, lauris esportivos que significam uma conquista pessoal e representam um legado
familiar para os filhos de Luisa e seus descendentes (Id. p. 167).
Novamente, assistimos a um dilogo entre um indivduo e uma comunidade negra em
terceira pessoa, embora a jogadora se refira, com mais especificidade que o relato anterior,
sua afrodescendncia e ao fato de o clima da sua regio guardar semelhanas com o sol
ardente africano81, como se aquilo tivesse matado a saudade dos antigos escravizados (Ibid.,
p. 165).
Em outra passagem, tambm se apela para um sentimento patritico acima das
diferenas e, nesse sentido, tampouco fica clara a posio ao abordar o tema da discriminao,
77
78
79
80
81
PromPer.
Disponvel
em:
<http://www.peru.info/s_ftociudades.asp?pdr=1202&jrq=3.10.1.3&ic=6&ids=5271>. Acessado em: 21 jan.
2010.
33
pois coincide com a sentena homognea do testemunho anterior e condena a separao das
pessoas por motivos de religio, cor, forma e outros valores (Ibid., p. 167), de tal maneira que
tanto vale para a discriminao contra o negro como para as aes afirmativas negras contra a
discriminao racial nas relaes sociais.
Em ambas as falas, estamos frente a dois reconhecidos esportistas, um deles com
ampla visibilidade miditica e representatividade poltica e social at os dias de hoje82. Ambos
formam parte do modelo nacional esportivo, pois trabalharam na seleo do pas em jogos
internacionais e conseguiram logros em nome do Peru, discurso que faria parte da construo
mtica do negro futebolista como orgulho nacional83. Em ambas as falas, ser negro no
representa um problema, algo que desde o ttulo dos testemunhos se enfatiza em forma de
negao: Nunca aninhei amargura; A africania no foi um obstculo para mim -destaque
nosso-.
O papel do negro que entra em conflito em virtude de sua negritude e faz questo de
explicitar a tenso racial nas relaes sociais aparece representado por uma terceira pessoa,
aludida em ambos os relatos: so os alguns, os outros, os muitos, os uns que, ou
aparecem como um coletivo passivo prestes a justificar sua excluso qual destino marcado, ou
batalham e ao se deparar com a discriminao, a assinalam, gerando um embate frontal.
neste duplo sentido que gostaria de aprofundar a anlise de ambos os esportistas: como o
discurso apresentado no contundente em afirmar a presena de uma tenso racial,
deixando, ao mesmo tempo, uma condenao aberta sua problematizao.
A palavra igualdade aparece repetidas vezes em ambos os testemunhos. Ao se referir
igualdade da raa humana, parece se aludir ao discurso presente nas teses que, ao
advogarem contra a discriminao, negam a ideia de raa e a racializao das relaes sociais
ou sua compreenso por meio dessa lgica. Por outro lado, o mesmo discurso no reconhece por exemplo- as aes afirmativas em favor dos negros nem as polticas pblicas ou os
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83
Cf.: Ex mundialistas peruanos rechazan nacionalizar jugadores para la seleccin. Jornal El Comercio
Edio on-line. 2 set. 2010. Disponvel em <http://elcomercio.pe/deportes/632863/noticia-mundialistasperuanos-rechazan-nacionalizar-jugadores-seleccion>. Acessado em: 15 nov. 2010.
O esporte foi historicamente um lugar de ascenso social para os negros em Lima. A histria do clube
peruano de futebol Alianza Lima -onde Cubillas comeou- o mais claro exemplo disto (MELGAR BAO,
GONZLEZ MARTNEZ, 2007, p. 13; THORNDIKE, 2000, p. 121) A figura da mulher negra nas times de
vlei profissional fez e faz parte do cenrio social do deporte no Peru. A msica Manos Morenas composta
pelo msico peruano Jos Escajadillo em 1980 um hino do voleibol peruano: Mos peruanas se elevam e
ponto / Mos morenas gloriosas que merecem ponto / Mos que so o orgulho das nossas cores / Almas que
deram ao vlei seus anos melhores [Manos peruanas seguras se elevan y punto / Manos morenas gloriosas
que merecen punto / Manos que son el orgullo de nuestros colores /Almas que dieron al voley sus aos
mejores] Traduo nossa.
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Em defesa desta tese se destacam -entre outros- os trabalhos do cientista e professor da UFMG, Srgio Pena,
que atravs de pesquisas genticas visa compreender a real -Destaque nosso- formao e estrutura da
populao brasileira, relativizando -por outro lado- afirmaes tnico culturais tais como a africanidade do
sambista Luiz Antnio Feliciano Marcondes, o Neguinho do Beija-flor, que numa anlise do seu DNA feita
pelo referido professor -a pedido da BBC Brasil e como parte do projeto chamado Razes Afro-brasileirasresultou em maior porcentagem de genes europeus. Quem quiser conhecer mais esta linha de pensamento,
conferir: MAGGIE, Yvonne. Pela igualdade. Rev. Estud. Fem., Florianpolis, v. 16, n. 3, Dec. 2008 .
Disponvel em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2008000300011&lng=
en&nrm=iso>. Acessado em 16 nov. 2010.
O esporte como meio privilegiado de mobilidade social e a questo racial na figura do heri negro no futebol
peruano parece-me guardar muitas semelhanas com a realidade brasileira. Cf: SOARES, Antnio Jorge.
Histria e a inveno de tradies no futebol brasileiro. In: SOARES, Antnio Jorge; LOVISOLO, Hugo;
HELAL Ronaldo. Inveno do pas do futebol, a Mdia, Raa e Idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. p.
13-50.
O nome vem de Tia Nastcia, personagem da obra do escritor Monteiro Lobato que, igual ao esteretipo
estadunidense denominado Mammy, representa a velha matrona negra das antigas casas de fazenda,
encarregada dos afazeres domsticos e culinrios, que pelos anos de bom servio e convvio ganhava um
trato quase familiar. Cf.: WALLACE-SANDERS, Kimberly. Mammy: a century of race, gender, and
Southern memory. University of Michigan Press, 2008.
35
No caso do Peru, o mito da democracia racial um discurso capturado por uma elite
que, de fato, a capitaliza como uma panaceia que fomenta um pas cuja classe media repete o
discurso de um projeto crioulo harmnico, onde se respeitam as diferenas e se enaltecem os
sentimento de peruanidade mas do ponto mais alto do centralismo limenho87. Dessa forma,
acredito que o exemplo brasileiro possa servir perfeitamente para entendermos os
testemunhos oferecidos por Fuentes e Cubillas, uma vez que as questes levantadas pelo
chamado racismo cordial no somente banalizaram a tenso racial como apagaram a
discusso da discriminao perante filosofia da vontade individual, por sinal, muito atrelada
ao ideal que a nao norte-americana incorporou sob o signo do self-made man, pelo qual a
nossa sorte produto do trabalho duro e no do destino, divino ou social88. Sem dvida, a
ideia da democracia racial tambm circundou outras sociedades alm da brasileira. Coadunase com essas reflexes o seguinte trecho de uma entrevista de Alfredo Bossi a Otavio Ianni,
que ressalta o seguinte:
Bossi: Nos centros urbanos, penso que temos experincias dos dois lados: pessoas
que se sentem marginalizadas e outras que se sentem inseridas. H personalidades
democrticas e tambm autoritrias. Voc pode dizer se h uma hegemonia da
excluso ou da integrao? H duas teorias paralelas: a de que o Brasil um pas
autoritrio e a de que h democracia racial.
Ianni: A situao, de fato, a que voc est apresentando. H uma gama nuanada
de situaes que, mesmo visvel nas relaes entre as pessoas, mostra, numa
interpretao mais ou menos rigorosa, a descoberta de que essa situao est apoiada
numa cultura de tradies, que vo at o escravismo, alm de serem reiteradas no
contexto da sociedade de classes. [...]Esse mito da democracia racial antes de ser
87
As recentes eleies presidenciais no Peru foram um laboratrio atual do discurso sobre a democracia racial
no Peru. Iniciada como uma disputa aberta sob um clima de respeito e tolerncia entre os candidatos, acabou
protagonizando um segundo turno eleitoral onde o pais se dividiu entre comunistas de esquerda
representantes dos pobres -na figura de Ollanta Humala- e neoliberais do investimento e da mo de ferro representados na figura de Keiko Fujimori. As ltimas semanas da disputa eleitoral estiveram carregadas de
fortes tintes racistas entre partidrios de ambos os candidatos.
88
Esta espcie de mito fundador, foi central na tese do terico social Max Weber, em 1905, sobre a tica
protestante, e historicamente apresentada no discurso homnimo, Self-made man, de Frederick Douglass,
nascido escravizado e se tornado uma das figuras proeminentes do abolicionismo nos Estados Unidos do sc.
XIX.
36
A partir das questes levantadas nas anlises dos subttulos recentes, cabe-nos lembrar
que, apesar de o renascimento afroperuano ter significado um olhar diferenciado sobre a
questo do negro no Peru, batizando-o como afroperuano e propondo at certo ponto a noo
de orgulho negro para encarar a discriminao, por outro lado tambm foi possvel evitar a
aluso direta ao problema racial, tentando ressignificaes a partir de experincias da prpria
negritude. Nas linhas seguintes, possvel encontrarmos ligaes muito distintas sobre um
mesmo assunto: o afroperuano. De um lado, a reminiscncia do passado escravocrtico
lembrado tanto em atos oficiais de perdo pblico, como em museus. De outro lado, a figura
de um passado cultural em reconstruo.
1.5. Momentos-chave.
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37
2002
2004
20/Jun/2006
13/Jan/2008
4/Jun/2009
27/Nov/2009
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91
A resoluo foi dada pelo Instituto Nacional de Cultura, organismo autnomo at a criao do Ministrio da
Cultura, em 2010. Cf.: PER. Resolucin Directoral Nacional, No 798/INC , de 2 de agosto de 2001. Diario
Oficial El Peruano. Normas Legales, suplemento. AO XIX, No 7719. Organismo Autnomo. Lima: 10
ago. 2001, p. 208594.
[El cajn peruano] tiene su origen en la poca de la Colonia, cuando la poblacin de origen africano lleg
a tierras peruanas y empez a hacer msica en grupo, acompandose com simples cajnes de madera,
fijndose paulatinamente la forma con que actualmente se conoce y que lo han convertido en el instrumento
de percusin principal de muchos ritmos peruanos como el festejo, Land, Zamacueca, marinera y otros,
siendo adems un instrumento nico en su tipo a nivel mundial.
38
historicamente seja identificado com esses ritmos (SANTA CRUZ, 1977; AZCUEZ, 1982 apud
LLORNS AMICO, 1983, p. 89; TOMPKINS, 2008, p. 476).
93
94
95
A resoluo foi dada pelo Instituto Nacional de Cultura, organismo autnomo at a criao do Ministrio da
Cultura, em 2010. Cf.: PER. Resolucin Directoral Nacional No 1765/INC, de 28 de dezembro de 2007.
Diario Oficial El Peruano. Normas Legales, suplemento. Ano XXV, No 10104. Organismo Autnomo.
Lima: 13 jan. 2008, p. 363905.
Nomeada pelo Governo do Presidente Humala como Ministra da Cultura, em 2011.
Cf.: SUSANA BACA. Latin Grammy Award Winners. Base de dados. Disponvel em:
<http://www2.grammy.com/Latin/Winners_Search/>. Acessado em: 22 jan. 2011.
O selo discogrfico pertence a David Byrne, ex-vocalista de uma banda nova-iorquina da dcada de 1970,
Talking Heads. Em seus incios, Luaka Bop focou-se na recopilao de msicas j lanadas da Amrica
Latina e frica. Sua primeira srie de coletneas, Beleza Tropical (1989), foi integramente dedicada msica
brasileira. Embora a escolha de uma esttica tnica a coloca no mercado da World Music, isto negado pelo
prprio Byrne sob o argumento que os artistas devem ser valorados pelo seu aporte esttico mais que por uma
procura da autenticidade (FELDMAN, 2006, p. 221). Contudo, Luaka Bop ao igual que outros selos, como
Putumayo, pertencem a um segmento altamente fragmentado do processo produtivo da indstria da msica,
39
Estados Unidos e pases de Europa, seu nome figura nas prateleiras de discos num segmento
adulto contemporneo ao lado do de Caetano Veloso, do da argentina Mercedes Sosa e do da
cabo-verdiana Cesrea vora (LEN QUIRS, 2003, p. 257).
Esse giro na vida de Susana Baca foi, se falarmos em termos de msica brasileira,
como a apresentao no Carnegie Hall em 1969para o Bossa Nova, ou o encontro de Antnio
Carlos Jobim com Frank Sinatra em 1979: uma janela para o mundo, uma situao
surpreendente para o caso peruano, em se tratando de uma cantora negra que contrasta com a
imagem de um pas historicamente associado s msica da regio andina.
Trs anos depois, em 2005, o Museu Afroperuano de Zaa96 foi inaugurado por uma
disposio oficial do Instituto Nacional de Cultura, sob a curadoria e pesquisa de Luis Rocca
Torres, socilogo peruano que iniciou suas pesquisas de campo na cidade de Zaa97, em 1974,
recompilando ao longo de dez anos a histria oral das famlias descendentes de negros e
chineses que conviviam nessa regio, eminentemente agrcola, desde os tempos da
escravido98. Os trabalhos de pesquisa do acervo histrico e material foram realizados graas
ao trabalho voluntrio que envolveu a prpria comunidade de moradores da cidade, o que em
si representa uma experincia muito singular na criao de um museu no Peru. Entre outros
projetos, a instituio tambm dirige a construo de rplicas de instrumentos musicais
associados s famlias afrodescendentes da costa peruana, apoiada em pesquisas
etnomusicolgicas, testemunhas orais e documentos e arquivos da poca colonial peruana99.
Sobre a lei que declara o dia 4 de junho como Da de la Cultura Afroperuana100, podese dizer que foi resultado de uma intenso trabalho de convencimento, gestado entre ativistas
afroperuanos e polticos do Poder Legislativo peruano, que escolheram tal dia por coincidir
com o nascimento de Nicomedes Santa Cruz (THOMAS III, 2009). O texto em particular,
96
97
98
99
100
que ora se consolidam como transnacionais ora concentram ainda mais o poder das Majors, como a Warner
Music no caso de Luaka Bop. (PERES DA SILVA, 2008, p. 121)
Histrico da criao do Museo afroperuano de Zaa. Cf.: MUSEO AFROPERUANO. Sitio na Internet do
Museo afroperuano da cidade de Zaa. Disponvel em: <http://www.museoafroperuano.com/index.php?
option=com_content&view=article&id=92&Itemid=175>. Acessado em: 23 jan. 2011.
Nome de uma pequena cidade no interior da provncia de Chiclayo, no litoral norte do Peru,
aproximadamente a 10 horas da capital, Lima.
O resultado da pesquisa foi publicado no seguinte livro: ROCCA Luis. La Otra Historia, Memoria
colectiva y canto del pueblo de Zaa. Lima: Instituto de Apoyo Agrario, 1985.
Cf.: Despus de 2 siglos extinguidos se escucharn en Chiclayo 3 instrumentos musicales. Museo
Afroperuano de Zaa. Disponvel em <http://www.museoafroperuano.com/index.php?option
=com_content&view=article&id=130:despues-de-2-siglos-se-escucharan-en-chiclayo-3-instrumentosextinguidos&catid=55:noticias&Itemid=190>. Acessado em: 04 dic. 2010.
Cf.: PER. Lei No 28761, de 30 de maio de 2006. Diario Oficial El Peruano. Normas Legales,
suplemento. Ano XXIII, No 9503. Poder Legislativo. Lima: 20 jun. 2006, p. 321958.
40
divulgado no Dirio Oficial do Estado, cumpriu uma funo informativa sem nenhum outro
tipo de aluso que explique os motivos ou os significados atrelados referida lei.
Precisamente, no Dia da Cultura Afroperuana de 2009, foi inaugurado o Museu
Nacional Afroperuano101, que ocupa o antigo prdio da Casa de las Trece Monedas, e se
encontra situado em pleno centro da cidade de Lima, a poucos metros da sede do Poder
Legislativo peruano. Construdo entre os sculos XVII e XVII, o prdio recria a arquitetura
espanhola da poca, to em voga entre as famlias limenhas, consideradas nobres durante a
perodo colonial102. O acervo mostrado nas diferentes salas do museu provm em grande parte
de colecionadores privados ou de documentos em poder do Estado, reencaminhados quele
lugar.
Finalmente, o perdo ao povo afroperuano em nome do Estado103 se justifica pelos
abusos, excluso e discriminaes cometidas em agravo, desde a poca colonial at a
atualidade, motivo pelo qual se reconhece publicamente o esforo e luta afroperuanos na
afirmao da identidade nacional, a gerao e difuso de valores culturais e a defesa da
ptria104 -Traduo nossa. No pronunciamento oficial, se menciona tambm a implementao
de polticas pblicas direcionadas comunidade afroperuana e se prenuncia o ato pblico que,
semanas depois, aconteceria em Palcio de Governo, com a presena do Presidente da
Repblica, Alan Garca105, diversos representantes de movimentos sociais afroperuanos e os
meios de comunicao.
O fato de analisar os referidos momentos-chave e descrev-los brevemente no visam
demonstrar uma espcie de fugaz interesse ao que o termo afroperuano se refere. Tenta-se,
antes de mais nada, advertir, de um modo geral,para a tendncia maior a se discutir as
alteridades culturais e sociais fora da ptica da homogeneidade, destacando que, no caso do
negro, o Estado peruano quem finalmente os vem considerando como interlocutores
representativos dos movimentos polticos afroperuanos.
101
102
103
104
105
Cf.: Dignatario inaugura Museo Nacional Afroperuano. Diario El Peruano, Lima, p. 3, 5 jun. 2009
Cf. HIGGINS, James. Lima: a cultural and literary history. Signal Books, 2005. p. 49-53
Cf.: PER. Resoluo Suprema N 010-2009-MIMDES, de 27 de novembro de 2009. Diario Oficial El
Peruano. Normas Legales, suplemento. Ano XXVI, No 10808. Poder Executivo. Lima: 28 nov. 2009, p.
406826.
Exprsese Perdn histrico al Pueblo Afroperuano por los abusos, exclusin y discriminacin cometidos en
su agravio desde la poca colonial hasta la actualidad, y reconzcase su esfuerzo y lucha en la afirmacin
de nuestra identidad nacional, la generacin y difusin de valores culturales, as como la defensa de nuestro
suelo patrio..
Em exerccio de 2006 a 2011.
41
A grande interrogao desde o ltimo censo de 1940, onde se registrou uma taxa
decrescente na populao identificada como negra no Peru, a constituem as informaes
oficiais a respeito. As variveis que desenham o rosto do negro no Peru e sua proporo em
termos demogrficos escassa por no dizermos nula.
106
42
43
Fig. 6. Populao afroperuana por rea urbana/rural (INEI, 2006 apud DEFENSORIA DEL
PUEBLO, 2011, p. 111)
107
Outro esforo importante foi o mapa geo-tnico de comunidades afroperuanas na costa realizado em 1996
pelo Centro de Desarrollo tnico CEDET, que consignamos na seo de anexos.
44
45
II
MSICAAFROPERUANA,
SNTESE PERUANA
46
caso de Gil e Buarque, meu esforo para identificar de ouvido os acordes e as levadas
chegava a extremos cansativos de escutas repetitivas durante meses.
J no Brasil, quando me perguntavam sobre as minhas lembranas musicais peruanas,
sempre me saa melhor, obviamente, tocando uma dzia de temas de Silvio e outra dzia de
bossa novas que sabia de cor e at arriscava cant-las. Essas situaes me despertaram vrios
questionamentos, como qual teria sido a paisagem sonora que vivi no meu pas, quais as
hierarquias que teria estabelecido para me autodefinir culturalmente... em suma, percebi que
estava entrando numa crise ao descobrir que era mais cidado do mundo do que propriamente
peruano, pelo menos no sentido nacionalista do termo. Longe de casa, o fato de me sentir
parte de uma dispora peruana espalhada pelo mundo, me sensibilizou de tal maneira que s
assim consegui dimensionar e ter plena conscincia do legado musical peruano com sua
histria social e poltica.
Numa espcie de reencontro com a minha identidade musical, a obra de Flix
Casaverde foi um achado inesperado. Sua proposta esttica no precisamente se enquadrava
dentro daquilo que j tinha ouvido sob o nome de violo da costa peruana e, principalmente,
a sua opo pela msica instrumental algo que no Peru pouco comum. Num primeiro
momento, a escolha que fiz de sua msica passou por uma categoria que, nesse momento,
identifiquei como ritmos negros ou afroperuanos. possvel que aquilo fosse uma
conseqncia das minhas inquietaes como pesquisador, ou das minhas vivncias brasileiras,
pois foi s chegando neste pas que as tenses raciais despertaram em mim uma anlise crtica
a respeito desse assunto - certamente, influiu o fato da populao negra e afrodescendente ser
muito maior que no Peru. Assim, num determinado momento, cheguei a pensar que a msica
de Flix me serviria como uma ponte cultural que ajudaria a estabelecer um dilogo entre a
linguagem esttica da negritude peruana e a do Brasil. Por esses motivos, escolheria analisar
Cuatro Tiempos Negros Jvenes, e continuaria essa ponte fora da pesquisa acadmica, nos
projetos musicais pessoais, talvez at com a inquietao, algumas vezes vanguardista e outras
vezes tradicional, que em Flix me parecem fundamentais.
Ainda hoje no ano de 2011 - no sei ao certo se meu interesse no seu estilo
violonstico se deve mais sua personalidade na hora de propor um ponto de vista musical
que se identifica como peruano-nacional de uma forma bastante singular, ou ao seu poder
antropofgico na hora de sintetizar aquelas vertentes cubanas e brasileiras que tanto
contornariam seus processos musicais, e os meus prprios.
47
108
109
Hiptese levantada pelo citado violonista peruano que ser discutida no presente captulo. Contudo, no ser
desenvolvida em profundidade, pois excede os alcances da presente dissertao.
Na cidade de Lima, a umidade relativa do ar muito elevada, com persistente neblina entre junho e
dezembro. Com uma chuva quase nula e ausncia de sol em boa parte do ano, grande parte de sua populao
padece de doenas respiratrias.
48
Fig. 7. Felicita Mara Vivanco Vivanco e Luis Alberto Casaverde Ardiles. (Arquivo pessoal)
A influncia da msica em Flix vem do lado paterno110. Seu pai, que possua especial
habilidade com os instrumentos, chegou a montar uma banda com seus trs irmos, Los
Hermanos Casaverde, que era sempre contratada para animar festas e reunies privadas.
Paralelamente, trabalhava tambm como msico nas rdios locais e complementava a renda
familiar como despachante na subprefeitura de Miraflores, seu antigo bairro. Precisamente,
pela vida difcil que levava, o pai sempre que podia desencorajava a Flix e fazia de tudo para
que este no seguisse os seus passos como msico:
110
A anlise em profundidade das influncias musicais na vida de Flix e sua relao com a paisagem sonora da
cidade de Lima sero abordadas no captulo seguinte, ao descrever a pea composta por ele, Cuatro Tiempos
Negros Jvenes.
49
Flix: Eu, definitivamente! quem mais poderia s-lo em casa...ento ele [imitando ao
pai, com voz aguda] "Olha o moleque, pegou meu violo e o desafinou...". Porque
ele no queria, no queria que eu fosse violonista... coitado do meu pai... dizia
[imitando a voz do pai] "no, no, no... se sofre muito... voc tem que seguir uma
profisso... voc v -me dizia- eu trabalho na subprefeitura, estou j h tantos anos a
e de despachante... trabalhei na secretaria, eu fui secretrio". Ou seja, meu pai era
assim. Ele me expulsava para que sasse da msica, da onda musical... a nica
pessoa que me apoiava era meu tio Jorge, seu irmo, que tocava violo, j agora
falecido... ento me dizia "no, sobrinho, siga em frente". Ele me apoiava em tudo o
que meu pai no queria! Ento, foi uma poca em que eu via a msica no como um
divertimento... nunca a considerei um divertimento [] a msica e o violo para
mim eram... de repente como uma porta para fugir ou me esconder de algo. Assim a
sentia, porque, tratando de lembrar esses sentimentos... h tantos anos! (Id. traduo nossa)
Com o passar dos anos, essa participao se tornaria cada vez maior at o ponto de
substituir por completo a antiga formao de Los Hermanos Casaverde, ficando s o pai de
50
Pergunta: Ah, ?
Flix: Eu acho que meu tio Carlos porque ele ficava disfnico, e no caso do meu tio
Rodolfo porque ele gostava de beber e eu lhe dizia "O senhor no pode trabalhar
assim, bbado". No pelo meu tio Carlos, que no bebia, mas meu tio Rodolfo sim.
[imitando a voz do tio Rodolfo] "Filho, mas voc tem que entender que..."... Eu no
podia entender, no podia entender. Meu pai nunca bebe, mas tem que trabalhar, no
? O que conseguem estragar a imagem da banda. Ento, meu pai chegou um dia e
me falou: "bom, eu j no suporto mais tudo isto, teus amigos da escola podem
trabalhar comigo?", "sim, meu pai" [risos], da vieram e aqui ensaivamos.
Pergunta: Roberto?
Flix: Roberto Arguedas111. Eu ensinava ele, eu ensinei ele a tocar o baixo [risos]
olha que no tnhamos outra sada! Acima de tudo, eu tinha que aprender [as
msicas do repertrio] para ensin-los. Tive que aprender a tocar timbal para ensinar
ao substituto... bom, j tocvamos na escola.
Pergunta: Tanto Roberto, como Donald, como Antnio, eram todos teus colegas do
ensino tcnico, no Ricardo Palma [nome da unidade escolar]?
111
O prprio Roberto Arguedas falaria a respeito de El Sexto Poder o seguinte: Depois fizemos um grupo de
son cubano, com Flix Casaverde... eu tocava o baixo -[eramos] Flix Casaverde, Lalo Muchaipia e outros
caras, e se chamava El Sexto Poder. No tempo em que saram [os do] Black Power, lembra? Ento, a gente se
chamou El Sexto Poder porque ramos seis negros. (ARGUEDAS, 2000 apud QUIRZ LEN, 2003, p.
182 Traduo nossa)
51
Flix teve uma breve passagem pela vida militar, da qual restaria s o gosto amargo do
desencanto. Uma vez admitido na Fora Area, em 1969, ele no tardaria muito em rever seus
conceitos sobre disciplina castrense e consagrao a servio da ptria. Na realidade, o que
Flix enfrentaria na instituio no seria mais do que o reflexo do clima poltico que vivia o
Peru naquele momento: um governo militar que ditava as regras do jogo poltico conforme
seus interesses112. Recm ingressado, ento, como mecnico de manuteno de motores de
avio, ele seria designado para trabalhos de contra inteligncia, onde denunciaria a existncia
de esquemas de corrupo que envolviam o alto escalo da Fora Area. Contrrio s presses
recebidas para omitir esses acontecimentos, foi confinado por dois anos de recluso por
indisciplina. Dessa maneira, passou alguns anos da sua vida em um centro de deteno
militar, situado numa ilha afastada, em frente ao litoral limenho, e foi tambm durante essa
estadia que ele soube da morte da me, em 1972. No ano seguinte, a ordem de castigo foi
revogada e ele se desligou da instituio, podendo se reintegrar sua vida civil, profissional,
familiar e sentimental113.
Fig. 9. Flix na sua breve passagem como membro da Fora Area. (Arquivo pessoal)
112
113
Conforme explicado no primeiro captulo, entre 1968 e 1976 o governo militar de Juan Velasco Alvarado
ditava as regras no Peru.
Naquela poca estava noivo de Sabina Ramos, sua esposa at hoje.
52
A partir do ano 1974, iniciaria uma fase importante em sua carreira de violonista ao
conhecer Isabel Granda Alarco, mais conhecida como Chabuca Granda, com quem trabalhou
intensamente durante quatro anos, nos quais conseguiu visibilidade no meio musical peruano
e internacional, graas qumica entre os msicos de Chabuca e, em particular, a fase que a
cantora e compositora dedicara aos chamados ritmos negros peruanos114:
[...] Primeiro viajei ao Brasil [no ano de 1973]. Ento, retornando da integrei a
banda de Chabuca... [19]74, [19]75, [19]76, [19]77. Aos poucos, com Chabuca se
abre, como eu j te disse, passado todo esse mundo de coisas, de coisas dantescas
[refere-se experincia como militar], o mximo foi encontrar a Chabuca, uma
mulher que dizia bom, este sujeito tem tempo livre, jovem, tem interesse, gosta de
me perguntar..., imagina que pessoa no gosta que lhe perguntem, sobretudo, no
caso de Chabuca, que para mim era a antecedente ou paralela minha me. No se
esquea que eram contemporneas. Minha me aos 11 anos de idade foi ama do seu
irmo mais jovem [de Chabuca]. Chabuca tinha 13 anos de idade, minha me 11.
Ento, para mim era perguntar para Chabuca "como era a Bajada de los Baos de
Barranco onde a senhora vivia?", sem contar pra ela ainda que minha me tinha
trabalhado na casa dela. Ela me falava que os costumes [em pocas passadas] eram
assim ou assado, que Lima foi tal coisa, que os chapus, ou seja, falava do mundo
que lhe encantava recriar, ou da etapa qual gostaria de regressar. E isso era para
mim Chabuca, uma referncia viva do que j no podia perguntar minha me, [ou]
porque minha me no desejava lembrar ou nunca mais quis me contar [...] Ento,
Chabuca foi para mim uma referncia importante. (CASAVERDE, 2009b Traduo nossa)
Fig.10. Flix (de camisa branca ao centro) junto banda do msico Mximo
Damin e os Danzantes de tijeras, no FEARTE de Gramado (POA), Brasil, em
1973. Na poca viajou como cajoneador e no como violonista. (Arquivo pessoal)
114
A fase afroperuana de Chabuca e seu correlato musical, onde se destaca o trabalho de Flix, sero analisados
no seguinte captulo.
53
Nos prximos anos, Flix gravaria dois discos como solista115 e continuaria
acompanhando diversas cantoras peruanas como violonista e produtor musical116. Por esses
anos, finais de 1970, ele tambm estrearia porm como pai de dois filhos: Luis e Yaninha.
Com tantas responsabilidades, o msico diversificou suas atividades profissionais
complementando a renda como professor de violo em diversos centros de ensino117.
Fig. 11. Flix ao lado de seus filhos, Luis e Yaninha, e seu pai. (Arquivo pessoal)
As dcadas de 1980 e 1990 no foram muito diferentes, at que em 2001 viajou para o
Mxico, onde se estabeleceria profissionalmente ao lado da cantora Tania Libertad118. S em
2010, Flix retornaria definitivamente ao Peru e aos seus projetos pessoais viajando em
turns, retomando antigas parcerias musicais que prontamente o requisitaram e
reapresentando suas obras e lecionando para novas geraes de violonistas que
desconheciam seu trabalho119.
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119
O primeiro, Flix Casaverde Somos Ad (IEMPSA, 1986) , e o segundo, Memorias de Flix Casaverde
Guitarra Negra (IEMPSA, 1990).
Entre as parceiras musicais de Flix, temos: Susana Baca, Eva Aylln, Tania Libertad, Olga Milla, Carmina
Cannavino, e mais recentemente, Carmen Lamarque e Mirtha Guerrero, entre outras.
Como a Escuela Nacional de Folclore Jos Mara Arguedas, e o Centro de Msica y Danza de la Pontifcia
Universidad Catlica del Per, entre outros.
1952-. Cantora peruana, naturalizada mexicana. Sua prolfica produo discogrfica abarca diversos estilos
que vo desde o bolero, passando pela msica de protesto latino-americana, at a Mpb, a pera e a salsa.
Gostaria de destacar a expectativa que geraram as obras para violo solo e acompanhamento de cajn,
compostas por Flix e desconhecidas entre o pblico jovem -na faixa dos 20 a 30 anos-, no I Festival de
Guitarra Cuerdas al Aire, organizado pelo Coletivo Cuerdas al Aire e a Asociacin Peruano Japonesa, na
cidade de Lima, entre os dias 1 e 3 de setembro de 2010. Cf.: COLECTIVO CUERDAS AL AIRE. Sitio
54
120
121
122
55
cultural de matriz africana, quanto pelos traos fsicos. Ao mesmo tempo, se alude que na
expresso povo negro coexiste um juzo de valor que mediria o grau de afrodescendncia de
acordo com os vestgios da escravido que, eventualmente, tivessem sobrevivido ao passar
dos sculos, e no qual o Atlntico Negro -representado por Cuba e Brasil- seria visto como a
imagem ideal do povo que alguma vez existiu entre os negros peruanos. Tal seria o processo
de reconhecimento e legitimao da negritude em pases que integram o Pacfico Negro (Id. p.
207).
Ainda de acordo com as teorias de Gilroy, Feldman fala sobre a dispora negra, que
teria deixado aquelas estruturas baseadas na relao entre centro (frica) e periferia (destino
de exlio) por outras geografias descentralizadas de fluxos culturais ps-nacionalistas e
multidirecionais -eis a leitura rizomrfica e fractal-, colocando assim o movimento
afroperuano como a periferia da experincia cultural de uma parte do Atlntico Negro
detentor e centro hegemnico do discurso sobre a negritude e a afrodescendncia dessa poca,
entre 1950 e 1970 (Ibid).. Seguidamente, se aponta que o conjunto de significados polticos e
culturais do negro no Peru, entendido como estruturas de sentimento123, encontraria seu
catalizador referencial nas africanidades maiores brasileiras e cubanas, de sorte que, a
relao entre a sociedade peruana e o negro configurar-se-ia mais como uma afrodescendncia
globalizada do que a compreenso de uma peculiar negritude andino-hispnica124. Essa
espcie de transplante representado na tenso das contnuas trocas entre uma africanidade
adscrita e uma adquirida, seja l qual e como for, simbolizariam a auto-afirmao ansiosa da
mencionada dupla conscincia (Ibid., p. 208).
Aps uma breve resenha do comrcio de mo-de-obra escrava de origem africana em
tempos da colnia espanhola, Feldman centra sua explicao na cidade de Lima nos incios do
sculo XX, na transio de uma economia e sociedade agrrias para o desenvolvimento das
cidades litorneas que centralizariam o capital produtivo da em diante. Logo, se faz uma
referncia noo de crioulismo como a primeira ideologia cultural nacional que procurar
unificar a identidade da nascente sociedade peruana no meio das tenses polticas dessa
123
124
Feldman fala das estruturas de sentimento, citando Raymond Williams (WILLIAMS, apud FELDMAN,
2005, p. 206) , como sendo a estrutura poltica e cultural que apela histria no s dos africanos trazidos ao
nosso continente, mas tambm dos seus descendentes. O termo utilizado no sentido do conjunto do discurso
acadmico, plstico, potico e esttico que alude a determinado arqutipo que remete a o africano. Sobre o
mesmo conceito em Williams, podemos dizer que no se reduz noo clssica de ideologia, embora seja
algo produzido no contexto de condies histrias determinadas. No geral, est ligada forma que adquirem
as prticas e hbitos sociais e mentais, mas seu terreno mais ntido o da intrincada relao entre o que
interno e o que externo a uma obra de arte quando analisada em confronto com o seu contexto social.
(WILLIAMS, 2002, p. 37).
Com suas respectivas estruturas de sentimento.
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128
129
130
Conforme tratado no primeiro captulo desta dissertao, surgiam por essas pocas os Estudos Culturais e
ganhavam representatividade poltica as chamadas minorias.
Caberia cham-la de intelligentsia afroperuana?
Por projetos de memria desejo me referir s agendas estabelecidas pelas necessidades e desejos do presente
que direcionam as pessoas para seletivamente lembrar certos aspectos do passado e omitir outros (Ibid., p.
226 - traduo nossa)
Nicomedes Santa Cruz props que o land seria uma dana dos afrodescendentes peruanos at entrado o
sculo XX e que serviria de base para a atual dana da marinera. Alm disso, as origens do land estariam no
lund angolano que derivou no lundu brasileiro e da partiria para o Peru. Cf.: SANTA CRUZ, 1970, pp. 1820 apud FELDMAN, 2005, p. 213)
Canto a Elegua uma msica inspirada tanto nos rituais afro cubanos de santeria, como nos de candombl
afro brasileiro. Sua encenao carregada de smbolos pan-africanos e o canto cheio de frases aleatrias e
palavras derivadas dessas prticas religiosas.
Parafraseando De Certau, esta seria uma negritude perifrica entendida como consumidora tctica de uma
esttica transnacional estratgica com maior volumem e circulao de produtos culturais. Neste caso
especfico, trata-se de uma clssica relao centro-periferia, onde a ltima se aproxima definio oferecida
pela antropologia urbana, como locus por excelncia da pobreza e excluso (FRGOLI JUNIOR, 2000, p.
38)
57
132
Segundo Hobsbawm, por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas, normalmente reguladas
por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente; uma continuidade
em relao ao passado. Trata-se, contudo, de uma continuidade artificial em relao ao passado, posto que
estamos falando em tradies inventadas. Cf.: HOBSBAWM; RANGER, 1984. p. 9.
Na linha dos black studies movements e dos African studies.(BORGATTA; V. MONTGOMERY, 2000, p. 67)
58
133
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135
Este ponto de vista considera extintas as tradies religiosas afro americanas, as mesmas que no teriam
sobrevivido avalanche da modernidade que assolara os Estados Unidos no sculo XIX. claro que no
podemos descartar a priori os estudos sobre identidade e negritude alm dos vnculos com as religies
protestantes estadunidenses, achando que no seriam o suficientemente africanas - sem mencionarmos, na
msica, os significados atrelados a gneros como o gospel e o spiritual. Contudo, essa discusso est alm
das possibilidades do presente trabalho.
[...] por toda el rea del nuevo Mundo, del candombl brasileo, la santera cubana y el vud haitiano,
adems de las cofradas afrocatlicas y otras formas de catolicismo popular donde se camuflan presencias
africanas[...]
Embora sejam omitidos na abordagem da presente pesquisa, gostaria de mencionar dois pares das referidas
59
[...]A rota dos escravos tambm a rota dos ndios nos Andes. Que posicionamento
tomaram? Em quais lugares estiveram? Quais discursos produziram em relao a
essa diferena que no passou pela monstruosidade do Outro radical, o branco?
Talvez nos seja permitido, nesse contexto, distinguir a diferena do que foi contado
pelo negro a respeito do branco. Isso nos leva a outra hiptese muito mais complexa,
j que vamos revisar o que o ndio, ao enxergar ele no lugar do negro (Ibid., p.
87. traduo nossa).
Sobre o segundo ponto, que aborda o renascimento afroperuano como uma tradio
inventada no processo das tenses para legitimar sua origem, se adota em parte a definio
trazida pelo historiador britnico Eric Hobsbawm (1998), sobre o sentido do passado nas
sociedades ocidentais. Atravs desta e outras abordagens semelhantes, foi apontado que a
msica afroperuana pode ser entendida como uma sntese de gneros musicais cubanos e
brasileiros amplamente divulgados e muito bem recebidos e manuseados136. Sobre isso, os
relatos textuais e discursivos dos diversos agentes culturais (msicos, danarinos,
pesquisadores, polticos, meios de comunicao e sociedade peruanos) teriam contribudo ao
recriar as origens da afroperuanidade, modelando e apresentando um imaginrio cultural
chamado Peru negro.
Tais afirmaes vm ao encontro do que acreditamos ser um processo mais complexo
do que uma simples relao de dependncia ou subalternidade cultural construdas, pois, a
nosso ver, as reflexes colocadas nessa ordem passam a impresso de uma negritude com
base numa afroperuanidade forjada, nem o suficientemente africanizada como seus
equivalentes do Atlntico negro, nem capaz de criar sua prpria esttica, por sua vez
importada e reelaborada. Em suma, falar-se-ia de uma afroperuanidade como uma criao
literrio-social integrada histria nacional desse pas.
136
60
Este aspecto foi abordado no subttulo Africanidade na escravido e negritude na modernidade?, no primeiro
captulo desta dissertao.
61
XX138, falar em inveno da msica afroperuana seria como se referir aos remanescentes de
um Peru negro exclusivamente documentado, pela boca dos historigrafos, dos viajantes, das
ordens religiosas, os cronistas, e toda a classe letrada que viveu durante o regime de
escravido.
Longe dessas variadas possibilidades histricas, configuradas a partir do relato de
um Peru negro, constatar-se-ia que a realidade entendida como as vicissitudes e as
particularidades- do Negro do Peru, junto aos outros atores sociais, no parece ter sido a
diretriz que traou o caminho para o conhecimento do outro na costa peruana.
Assim sendo, salientamos que a msica afroperuana poderia ser tanto simblica como
efetiva, pois, de fato, diz respeito a uma oportunidade que teria valorizado o corpo negro
destacando-o como nunca antes aconteceu na histria desse pas.
Posto que as relaes sociais entre identidade e msica apresentam variveis para l de
intrincadas, consideramos que pouco teria a dizer sobre o Negro do Peru uma anlise do
modus operandi da chamada msica afroperuana. A comprovao e identificao de
influncias cubanas e brasileiras nas suas estruturas formais musicais encontrar-se-iam num
dilema metodolgico ao limitar a sua problematizao validade ou no do referido
pressuposto.
Nesse sentido, a meno continua de dados histricos, conceitos antropolgicos e
teorias sociolgicas, poder-se-ia entender mais como elementos coadjuvantes de um
questionamento sobre os aspectos tcnicos da msica afroperuana dai que a hiptese central
se sustenta, principalmente, na anlise comparativa das estruturas musicais- do que uma
anlise sobre os processos culturais e a imbricao da msica com os mais variados fatos
sociais. Enfim, sem maiores ressalvas ou restries, a argumentao de Feldman sobre a
msica afroperuana como sntese das estticas afro de Cuba e Brasil, fundamentada em
evidncias estritamente comparativas, distanciar-se-ia das caractersticas do trabalho onde a
ideia de msica como cultura se encontra atrelada a uma viso holstica, contextualizadora e
relativista do fato musical (CMARA DE LANDA, 2004, p. 9)
Outra leitura da msica afroperuana passaria por entend-la como uma resposta
cultural contempornea com o esprito social e poltico da poca, traduzido em uma
linguagem musical muito particular e nica, em certo sentido. Embora no repertrio musical
138
Hoje tampouco resulta muito diferente se pensarmos no chamado racismo cordial, tratado no primeiro
captulo desta dissertao.
62
2.3. Afro-indgena-hispano-peruano?
O prprio Flix chegaria a dizer que, entre as dcadas de 1950 e 1960, alguns msicos de famlias negras
representantes do chamado renascimento afroperuano, como o msico Abelardo Vsquez, tambm
cantavam msicas cubanas, ou que o cantor Zambo Cavero tocava bateria e cantava msicas de Benny
Mor numa boate chamada Negro Negro, e que emblemtico cajoneador Chocolate Argendones era
tambm bongocero -que toca bongos-. (CASAVERDE, 2006)
63
Flix: Naturalmente, [e] como estamos no Peru, [resulta que agora somos]
afroperuanos...
Flix: Mas distante mesmo!, muito distante! [risos] porque esse negro misturou-se
com o chins, esse negro misturou-se com todo mundo... ento bem difcil. Um
pouco conversava disso com Juan Jos Vega [historiador peruano]...
Flix: Ou Ibero como voc fala, iberoperuano. Em algum momento eu li sobre isso,
pois deve ser difcil que [se] em algum momento se diz afroperuano [tambm] pode
ser hispanoperuano... [risos], ento me pareceu genial a ideia.
Chalena: Claro, se h uma raiz ali, h uma raiz no outro lado e h outra aqui, ento...
64
isso!. peruano j.
Flix: Temos que fal-lo. Parece que as pessoas ainda tm um pouco de temor em
aceitar sua peruanidade. (CASAVERDE, 2006 Traduo nossa)
Nestas primeiras linhas podemos notar uma ideia que perpassar no resto da
entrevista: uma peruanidade em crise com a alteridade, pelo distinto, como na tenso entre o
tradicional e as formas que o confrontam. Seja nas formas de rtulos que so de outros,
como falcia sem embasamento histrico ou como signo de uma peruanidade deturpada,
apresentar-se-ia o afroperuano com um sentido decidido a problematizar em termos raciais o
misturado e a africanizar o nacional:
Chalena: Claro, contudo, [se falou em afroperuano] para reafirmar, para destapar,
pois estava um pouco oculto, o fato da contribuio africana formao da cultura
[peruana]. Ento, num momento foi necessrio, era necessrio dizer afroperuano.
Nesse sentido foi que o props Nicomedes, eu acho...
Flix: Eu tenho as minhas dvidas porque eu sei que em determinado momento esta
pessoa [Nicomedes], que obviamente no pode se defender mais, j feneceu, e sua
lembrana e sua amizade sempre ficaram aqui... seu trabalho, acho que ele
complicou politicamente as coisas um pouco, e esta acepo, esta teoria eu sei que
[ele] a props na prpria Casa de las Amricas140, mas no foi bem recebida. As
aluses, como Fernando Romero141 diz, do afro-negrismos, que so baseados na sua
maior parte por questes de [Fernando] Ortiz142, hein?, o prprio Argeliers Len143,
hein? So interessantes porque simplesmente afirmam que pontos importantes na
Amrica, como Cuba e como Brasil, so os que serviram para somar, hein? ao
140
141
142
143
Organizao fundada logo aps a instaurao do governo da Revoluo Cubana, em 1959. Fomenta a
discusso sociocultural das artes em geral, com exceo das artes visuais e audiovisuais, com foco nos pases
da Amrica Latina e o Caribe, e promove o prmio Casa de las Amricas.
(1905-1996) Historiador e pesquisador das relaes raciais no Peru, em particular das populaes negras. Seu
nome figura associado aos estudos africanos da primeira metade do sculo XX, junto ao cubano Fernando
Ortiz, o estadunidense Melville Herskovits e o brasileiro Arthur Ramos.
(1881-1969). Ensasta e etnomusiclogo cubano. Conhecido por introduzir o termo transculturao, em 1940,
tambm realizou pesquisas sobre as culturas indgenas e afrodescendentes nesse pas.
(1918-1991) Musiclogo e compositor cubano. Suas pesquisas se focaram a explicar os traos culturais
formadores da nao cubana, desde as teorias do folclore. So conhecidos seus trabalhos sobre as influncias
da cultura africana na ilha.
65
Flix: Mas, isso outra coisa! [risos] Ento esse [afronegrismo aclimatado] uma
rea linda e frtil para continuar se aprofundando, mas por que no aceitar [que no
nosso]? (Traduo nossa) 144
Flix desdobra seu pensamento e faz uma referncia direta s teses promovidas por
Nicomedes Santa Cruz que, efetivamente, sustentou frequentes encontros com destacados
pesquisadores de meados do sculo XX, como o cubano Ortiz e os brasileiros Edison
Carneiro e Cmara Cascudo, na poca historiadores muito identificados s pesquisas
folclricas. Nesse sentido, a sua dvida traria a ideia de que Santa Cruz no teria favorecido
uma reivindicao social e poltica do negro e sim pela legitimao do seu discurso. No
obstante, conforme dito acima persiste a percepo das teorias do afroperuanismo como um
evento politicamente incmodo.
A respeito das ideias de emprstimos aclimatados e trabalhados, encontramos certa
relao destas com as teorias de aculturao e de transfigurao tnica, a primeira cunhada
pela antropologia cultural estadunidense da dcada de 1930, e a segunda elaborada por Darcy
Ribeiro a partir da crtica ao conceito de aculturao movida pela Antropologia desenvolvida
na Amrica Latina (ATHIAS, 2007, p. 71). Nesse sentido, uma leitura possvel seria que o
uso do termo aclimatao passaria pelo entendimento de uma terceira sociedade, a
afroperuana, resultante da conjuno das duas outras, a cubana e a brasileira.
Noutra oportunidade, sempre na posio crtica do termo afroperuano, Flix falaria da
viagem que realizou a Cuba, provavelmente em 1974, junto a um grupo de msicos e
intrpretes de ritmos da costa peruana. Na ocasio, o espetculo da comitiva artstica foi
divulgado como Ritmos Negros do Peru traduo nossa , e dessa maneira, compartilharam
o cenrio junto a diversos expoentes da nova trova e o latin jazz cubano:
Estamos num pas que leva o nome de Peru. Agora, aquilo de afroperuano, voc me
pergunta: eu, quando trabalhava com Chabuca [1974-1977], havia o que se chamava
de msica negroide. Eu diz [a Chabuca] Senhora, existem os ovoides?, claro
que no -Chabuca respondeu-, no podemos fritar ovoides... numa vez ela mesma
144
66
chegou a falar isso num programa. Bom, ento j foi criado o nome de msica negra
do Peru. Assim a levei a Cuba. Ritmos Negros del Peru, assim chamou-se o
espetculo que apresentei, tocando depois de Irakere, com um violo natural assim
como este [mostra o violo acstico], levando a Cecilia Barraza, levando gente
muito bacana e querida. ... Too Gonzles, Carlos Wong, Carlos Espinosa, a senhora
Elena Bustamante, como celestina de Cecilia Barraza. Esse grupinho, assim, por
surpresa, deu uma boa arremessada. Quem mais?, a Chucho [Valdez], fiz amizade
com ele, com Silvio, bom, com Pablo, ele foi quem me convidou, e como no me
conheciam, no sabiam de Casaverde, bom, ao final [destacou-se] a msica, a nossa
msica, repito, a msica peruana, esta msica costeira, como prefiram, mas
peruana! (CASAVERDE, 2010 Traduo nossa).
[...] Agora somos afroperuanos. Ento, isso me deu coceira, porque na frica, em
Angola, na Rdio Angola, viajando com Tania [Libertad], dei uma interview [sic.,
entrevista, em ingls] ento, me diz um locutor que falava portugus [...] vocs
chamam de afroperuana a sua msica [...] porque ns no consideramos vocs afro,
hein?... para ns vocs so sul-americanos: h centro-americanos e norteamericanos... ns somos os africanos!. Me fez rir. E analisando e procurando...
tambm j o falei na Escuela Nacional de Folclore, da qual fui professor, faz dez
anos atrs, e venho falando, que me perdoem os pesquisadores etnomusiclogos,
mas tudo est baseado no folclore de Cuba e no folclore do Brasil, tanto para
[Fernando] Ortiz como para a figura de l [do Brasil]. E Nicomedes, de quem me
tornei amigo, ganhei seu respeito e amizade, [me deu a razo] pela minha
insistncia, de dizer que eu no tinha que viajar para a frica para entender que
estava acontecendo uma espcie de neofolclore costeiro (Id. - traduo nossa).
145
A pretensa negritude originaria da frica, em linha direta com Cuba e Brasil, se forjava em msicas como A
la Molina no voy ms, que se assumia como datada dos tempos da escravido. Composta por Samuel
Marques y Ballesteros a msica no era mais que um encargo que fazia parte de uma obra costumbrista de
Jos Durand. (CASAVERDE, 2006)
67
68
Flix: Com todas as nossas misturas!, ou seja este crisol de raas est [presente] e se
isto que comeou no tem cinquenta anos como novamente surgindo [alude ao
"renascimento" afroperuano de 1950], bom, temos que entend-lo como aquilo que
, com todas as misturas, com pedras, batatas, camote [tipo de batata doce], e
sigamos em frente como uma coisa j nossa, j prpria da nossa poca
(CASAVERDE, 2006 Traduo nossa).
Flix: Alis... [risos] eu recusei essa teoria, e tenho-a recusado faz muitos anos atrs.
Meu pai era amigo de Nicomedes e, bom, a primeira vez que eu o escutei eu disse
[silncio]... e comprei ento o disco que agora o encontrei...
Na bibliografia da presente dissertao figura sob o ttulo Saludo y despedida a la negritud. Confrontar com
outras verses do mesmo texto: DEPESTRE, Ren. Buenos das y adis a la negritud. La Habana:
Cuadernos Casa de las Amricas, N 29, 1987. Existe uma verso em portugus: DEPESTRE, Ren. Bom
dia e adeus negritude. In: Projeto CD-ROM, Antologia de Textos Fundadores do Comparatismo
Literrio Interamericano. Traduo de Maria Nazareth Fonseca e Ivan Cupertino. UFRGS. Disponvel em:
<http://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/>. Acessado em: 02 fev. 2011.
69
Flix: Claro! Onde est a teoria e toda histria do lund [no disco Cumanana, de
Nicomedes Santa Cruz] Eu disse: pois, isto... que esquisito... interessante mas
esquisito.... De qualquer maneira eu tive que ler muita coisa, muitos livros...
Chalena: Mas a tua hiptese me parece interessante, o que voc me falou uma vez,
ou seja, essa relao com a msica cubana...148
Flix: Claro! Eu acredito que sim, definitivamente vejo [a msica afroperuana] mais
prxima a isso que ao africano...(CASAVERDE, 2006 Traduo nossa)
possvel que as teorias sobre as pretensas origens africanas dos ritmos negros
peruanos tenham tido, sim, um impacto forte entre os msicos e entre a populao em geral,
pela dcada de 1950, no chamado renascimento afroperuano, como mostra a fala de Flix
Casaverde.
Assim, entendemos que os trabalhos de Nicomedes Santa Cruz resultaram importantes
enquanto chamaram a ateno para outras possibilidades de discutir a msica popular
peruana, introduzindo como atores principais os negros e seus descendentes. No entanto, o
seu discurso ps-colonial de reivindicao do negro no parecia dar conta da miscelnea
tnica, cultural e social que, no passar do sculo XIX e XX, reconfigurou o pas. Por isso,
Flix sentiu necessidade de ampliar seus referentes sobre o negro no Peru, como tambm
sobre os diversos pormenores da histria peruana em cada um dos seus diversos atores sociais
e culturais:
148
A tese de Flix sobre a relao entre os ritmos cubanos e os chamados afroperuanos ser analisado no
prximo captulo desta dissertao.
70
[] Cuba tem o seu porqu. Bom, ali matou-se a todos os aborgenes e restou a
sociedade negra, no ?, [foi] escrava logo depois mulata e por a fica. Brasil
tambm, suas histrias, com sua religio, e tudo isso. Tudo esta ali. Mas no a gente
[os negros peruanos, o chamado afroperuano]. Nos misturamos muito at o ponto
em que fomos mulatos, quarteires, oitaves e tudo, e ramos a maior parte da
populao de Lima se que no toda a populao de Lima, e isso tambm est nos
documentos que falam sobre a colnia e tudo, mas eximidos do tipo religioso []
alis, a inquisio fez todo o possvel para que isso acontecesse. Foi pior do que
sabemos hoje. Deve ter sido muito mais repressivo, definitivamente. Se alguma
pessoa vestia um trapo vermelho, no tinha escapatria... j diziam que estava
endemoniado, e pronto, um ato de f [demonstrao pblica de f] (Ibid. - traduo
nossa).
Flix critica uma denominao de afroperuano, mas entende que os negros no Peru
foram mulatos, quarteires, oitaves e tudo. Para ele, a rejeio ao termo encontrar-se-ia
mais na aluso a uma negritude homognea que no fato de destacar a presena histrica dos
negros, pois ele mesmo aceita que estes chegaram a formar at a maior parte da populao de
Lima. O caso que o violonista peruano no ficou alheio a nenhum dos assuntos sensveis
sua gerao e, pelo contrrio, procurou esgotar os vrios pontos de vista de um mesmo
assunto, no caso, o processo histrico da discriminao racial. Nesse sentido, poder-se-ia
afirmar que a definio de negritude ganha nele uma dimenso que o compele a recorrer a
fontes histricas ou antropolgicas que teriam contribudo para a formao do seu
pensamento crtico a respeito destas ideias, como tambm do seu posicionamento frente aos
msicos contemporneos a ele:
149
71
Sobre o sentido expresso na frase grifada acima, poder-se-ia entender de duas formas:
quer como uma interpretao historicista150 da sociedade, onde se inserem convenientemente
os traos que desejamos transmitir e representar, quer como ato de reivindicao necessria e
explcita de uma parcela de atores de determinada poca. Para o primeiro caso, citaremos
como exemplo o fato de Flix no admitir que uma figura importante como Lalo Izquierdo
utilize conscientemente elementos culturais venezuelanos apresentando-os como constitutivos
da arte peruana. Para a segunda acepo, a referncia s guerras civis dos Estados Unidos e
Espanha simbolizam para ele uma dvida do discurso histrico que deve ser paga, onde o
papel do negro teria sido subestimado.
Doutro lado, identificamos certas semelhanas entre a ideia de afroperuano e a de
minoria151 tnica no fato de ambas no terem significado, segundo ele, uma melhora real e
evidente na condio material das populaes s quais fizeram, e ainda fazem, referncia:
150
151
A historicidade a construo de um discurso onde se acredita na soma de personagens, fatos e datas como
forma de prever leis universais no devir histrico das sociedades. Cf.: HISTORICIDADE. Historicidade. In:
Dicionrio UNESP do portugus contemporneo. DA SILVA BORBA, Francisco (Org.). So Paulo:
Unesp, 2004. p. 719.
Por sinal, a discusso da afrodescendncia surgiu sob o guarda-chuva conceitual das chamadas minorias,
termo utilizado nas cincias sociais para designar grupos de menor poder poltico, social, e econmico.
Historicamente, tambm tem sido utilizado para descrever a distino fenotpica praticada com os
afrodescendentes e outras pessoas por razes de cor de pele. Cf.: Minorities. DARITY, 2008, p. 190.
72
73
Como msico, Flix conheceu famlias negras e colegas do meio musical que
pertenciam a essas, conseguindo identificar certa esttica e escolhas na interpretao do
repertrio musical popular que seriam frequentes em msicos negros, sem que tais
caractersticas fossem suficientes para afirmar que pertenceriam a outra histria cultural que
no fosse a que ele vivia no seu dia-a-dia em Lima, a capital. Para ele, ser negro tampouco
parece ter despertado um interesse do tipo biolgico, procura de uma ancestralidade. Em
todo caso, sua compreenso da negritude teria acontecido sempre dentro do contexto social
que compartilhava com o resto dos seus pares e, se afetado diretamente por sua cor de pele, a
resposta no implicaria numa tenso social diferenciada, exclusiva da sua condio de negro
(CASAVERDE, 2009b).
Contudo, embora no de forma militante, ele foi consciente de que muitas das
preferncias musicais consagradas como expresso do nacional no precisamente passavam
pelos ritmos conhecidos como negros ou afroperuanos. Ao se referir participao da msica
Land, de Chabuca Granda, no Festival OTI da Cano, de 1977, celebrado em Madrid,
Espanha, comentou:
Pela primeira vez nestes festivais se arranja para orquestra um ritmo, porque essa
a verdade, que no tem nada a ver com o contexto das coisas que o Festival OTI
apresentava, que eram baladas, ou valsas, boleros, mas nunca coisas que estejam
relacionadas ao land, festejo, nem nada disso. [] Ento, esse foi um golpe brutal
para muitos... [silncio] s que, o arranjador o escreve em compasso ternrio [a
msica Land, de Chabuca]. A comea aquilo que eu te disse. Digo a ele mas,
maestro... [ e ele respondeu] olhe, voc estude e depois me fale que aqui o msico
sou eu, e logo Pancho Senz [msico da poca] me diz no, voc no me pode
dizer nada porque eu sou quem conhece, voc no sabe nada... continuas a ser um
analfabeto musical( Ibid. - traduo nossa)
74
Sei que alguns senhores que gostavam das valsas de Chabuca ficaram contra mim,
me disseram Casaverde, voc tirou Chabuca da valsa e a colocou na msica dos
negros. Assim me falaram. E, bom, eu acredito que tudo igual. Para mim no h
negro, para mim no h branco, para mim no h chins, para mim tudo [] um
crioulismo. Para mim isso. (CASAVERDE, 2010 Traduo e grifo nossos)
De certo modo, a ressalva qual se refere Flix tem relao com o ditado anterior de
Palma, mas se agora tudo um crioulismo podemos perguntar-nos se ele est falando s de
152
As msicas compostas por Chabuca Granda na sua fase inicial de carreira, em meados do sculo passado,
como La flor de la canela ou Fina estampa, falam da cidade de Lima e de certa nobreza de outrora, na
mesma linha do costumismo literrio romntico inaugurado pelo escritor peruano Ricardo Palma (18331919) numa coletnea em dez volumes, reunindo contos folclricos, histricos e lendrios, chamada
Tradiciones Peruanas (1872-1906).
75
76
s arquibancadas, e uma tela gigante acho que havia. E parado ali, com o meu
violo, com a minha mulher, estava por perto Dom Ral Garca Zrate e eu me
aproximei para cumpriment-lo. Ficamos falando, sobre o frio desse dia, o difcil
que tocar o violo assim, ao ar livre, era um tempo assim, em outubro, me lembro.
Quando nesse momento, viro a um lado e via que vinha Dom Nico com seu
cachimbo de So Joo, eu zombava dele [risos]... e [com] seu chapu ele vinha.
Acabava de regressar da Espanha, ento chegou perto e cumprimentou a Ral Garca
Zrate e ali, ento, eu naturalmente, como o menino pergunto. A eu disse Dom
Nico, como vai...?[ ele diz] Tudo bem, vocs vo tocar juntos?, No, eu vou
tocar o meu, e Dom Ral... Ah, tudo bem.... E foi a que declarou diante de Dom
Ral Garca Zrate, que at agora digo assim porque acredito que seja minha nica
testemunha disso... porque foi nesse instante que [Nicomedes] me disse Bem, meu
filho, tudo o que falamos nestes anos... ento, voc tinha razo... tudo est aqui. Eu
vi isso como se fosse uma comunho, entende? Um ato sacramental, porque uma
vez mais reafirmei o fato de que como povo temos de ter o nosso, e o nosso ergu-lo
mas [a partir] do nosso, do que criamos ns, no do que falam que somos.
(CASAVERDE, 2006 Traduo nossa)
Esse ato sacramental ao que Flix se refere seria um ponto de partida para seu
prprio trabalho como artista e como profissional, j que a discusso sobre o afroperuano na
msica passaria a um segundo plano logo aps a beno recebida de Nicomedes, quem, por
sinal, vinha refletindo sobre seu prprio trabalho nos ltimos anos. No passar dos anos, Santa
Cruz teria reconsiderado tanto as relaes estabelecidas com Cuba e Brasil e sobre as
pesquisas folclricas, como tambm suas posies sobre o comunismo e a reivindicao
poltica do negro baseada no pensamento da dispora africana.
Distante j dos tempos daquela intransigncia frrea a respeito do Peru e sua
africanidade em linha direta, Nicomedes reconheceria, entre as dcadas de 1970 e 1980, que a
importante tarefa de pesquisar os aportes africanos na formao da cultura peruana teria como
objetivo responder questo existencial sobre quem somos, tarefa para l de rdua que no
poderia ser respondida por meio de simples especulaes sobre renascimentos africanos
(FELDMAN, 2006, p. 119). Alm disso, por esses anos, ele manteria um maior contato com a
cultura andina e a figura do homem da serra peruana, chegando at a promover o idioma
quchua num dos seus trabalhos para a Rdio Exterior de Espanha (MARIEZ, 2000, apud
SANTA CRUZ, 2010).
Nicomedes que sempre foi, at certo ponto, foco das atenes de Flix, pela sua figura
carismtica que tantas vezes causou polmica com suas teses sobre o negro no Peru, emergia
em seus ltimos anos de vida como um etnomusiclogo autodidata, maduro e capaz de
entender as variveis interculturais da histria social da msica peruana melhor que alguns
dos seus contemporneos eurocntricos ou africanistas (FELDMAN, 2006, p. 120).
77
O que viria depois, ainda naquele mesmo dia da apresentao de Flix no Estdio
Nacional, seria uma sorte de proposta musical que sintetizaria a negritude pessoal que ele
construra a partir das suas prprias convices, certezas e apropriaes:
O convite aberto de Flix, para dizer negro sem a dureza que Victria lhe conferiu
originalmente em seu poema, funcionaria naquele dia como uma catarse destinada a tirar o
peso histrico atrelado referida palavra.
Por um lado, aquilo representaria para Flix um posicionamento no qual se
reconhecem as tenses sociais, polticas e culturais baseadas nas variadas formas de
discriminao, entre elas a racial. Por outro lado, tambm possvel entender que a soluo
traada por ele no passaria necessariamente pelo confronto a tais tenses, nem pela
construo de discursos polticos divorciados da populao real e social da qual se dizem
depositrios culturais.
Assim, entendemos que o negro, negro cantado por Flix e coreado pelo pblico,
no seria nem a reafirmao do renascimento afroperuano e sua linguagem esttica surgida
a partir de 1950, nem a aceitao das teses primeiras de Nicomedes Santa Cruz sobre os
percursos geogrficos dos ritmos afroperuanos, via Angola e depois Brasil, nem uma
novssima proposta com a inteno de melhorar o alcance das outras duas questes colocadas.
Em meu entender, Flix sugeriria compreender aquela negritude ofendida no poema de
Victoria: Eu me sentia realizado, mais que nada pelo fato de que o pblico, como j disse,
possa me dizer negro com um sorriso de meia lua[ amplo], [esse] era o assunto principal
78
(CASAVERDE, 2006).
difcil aceitar que uma posio crtica como a de Flix careceria de um
direcionamento definido e que seria simplesmente uma manifestao desprovida de intenes
ulteriores, quaisquer que sejam elas. Acreditamos que o mais importante foi ter exposto a
complexidade dos percursos no pensamento do referido violonista peruano, a respeito dos
temas que interessam presente dissertao: a msica da costa peruana, as relaes de poder
nos discursos sobre cultura popular, a questo da identidade e as variveis sociais da
discriminao, a questo do negro e as chamadas minorias, a relao entre essas questes e as
prticas musicais.
No prximo captulo, focaremos principalmente o panorama musical no qual Flix
Casaverde cresceu, ampliando algumas informaes j descritas neste segundo captulo: o
trabalho do seu pai, Luis Casaverde, frente do conjunto musical Los Hermanos Casaverde e
a banda do prprio Flix, El Sexto Poder, que iria trabalhar com seu pai substituindo a outra;
o repertrio musical que eram obrigados a tocar (os chamados ritmos afroperuanos e outros
ritmos da costa peruana); seu despontar profissional ao lado de Chabuca, at chegarmos ao
disco Tarimba Negra, onde finalmente veremos a pea Cuatro Tiempos Negros Jvenes,
composta por ele e na qual examinaremos os aspectos formais da mesma.
No ltimo captulo da dissertao, com base na meno detalhada destes aspectos
musicais, analisaremos as eventuais relaes surgidas entre o referido msico e os contextos
polticos e sociais que contornaram o seu fazer musical.
79
III
CUATRO TIEMPOS NEGROS JVENES
Nos dois primeiros captulos foram discutidos e apresentados contextos, nem sempre
lineares, nos quais as alteridades que conviveram no processo de empoderamento poltico e
econmico da cidade de Lima, a capital peruana, atuaram e interagiram no marco de relaes
que, poderamos dizer, sofisticaram as desigualdades ao falar em ideais liberais e
democrticos, em que todos sem distino deveriam tomar parte do projeto nacional, e cada
grupo social poderia expressar a sua cultura, a sua Weltanschauung ou viso do mundo
livremente.
O que a histria local parece ter deixado no caminho foi, grosso modo, uma coletnea
de tenses sociais e culturais estreitamente ligadas a outras de natureza mais econmicas e
polticas.
Na presente dissertao, h no s vrios questionamentos sobre a discriminao racial
para com o negro e seus descendentes, numa tentativa de pens-lo como objeto de pesquisa
antropolgica e social, como tambm se apresentaram variveis distintas sobre a
discriminao cultural a respeito do negro, como sujeito num contexto amplo e complexo. Por
tudo isso, a eventual inteno de pesquis-lo isoladamente, desconectado das histrias
concomitantes que o interpelaram e de seus atores, pode fazer-nos acreditar num estado
excepcional do negro e numa viso exclusiva e diferenciada dele, contrariamente ao que
observamos na relao cultural e poltica com os outros subalternos heterogneos154, em
diversos espaos sociais e sob diversos vnculos, sejam esses laborais, religiosos, ou at
familiares.
Nesse panorama, surgiu uma pergunta pontual, lgica e at necessria: quem , ento,
esse negro? Nessa mesma linha, possvel falarmos em uma cultura negra? Ela foi
cultivada por negros exclusivamente? E so s eles que a mantm viva? Ser negro praticar
essa cultura negra? Reconhece-se o negro s pelos traos fsicos que a sociedade identifica
154
80
como sendo prprios dele ou por que lhe acompanham traos mais bem culturais?
No captulo anterior, em determinados momentos da anlise, Flix Casaverde foi
severo com a chamada msica afroperuana, que considera um gnero neofolclrico, e com o
termo afroperuano, que considera um rtulo til para o jogo de polticos e msicos, mas
absolutamente intil para aqueles que supostamente representa. Para ele, suficiente aceitar a
condio de peruano e compreender nossa prpria complexidade, intercultural e heterognea.
Para Flix, ser peruano no falar de uma nica raiz, nem apostar numa origem s, a partir de
que se poderia dizer que, nele, a ideia de mestiagem crioulizao, nos termos em que na
costa peruana se usa est fortemente presente. Contudo, o violonista no foi alheio a
situaes que o discriminaram e o colocaram em menos valia: seja por sua instruo
autodidata155 e no erudita, seja por sua fisionomia e cor de pele, seja por sua escolha de uma
linguagem esttica no tradicional, ou pela sua extrao econmica.
A partir dessas reflexes, perguntamos: se Flix Casaverde no se autodefiniu como
afroperuano, apesar de ter sofrido discriminao racial, e nem quis tomar parte da chamada
msica afroperuana numa poca em que a sociedade peruana limenha, em particular o
identificava assim, qual teria sido a justificativa para criar uma msica que, alm de mostrar
seu estilo no violo, pretendia ser uma referncia autoral de quatro tempos -gneros negros
jovens peruanos?
Num violonista que alega que tudo msica crioula e a peruanidade mestia em
todos os sentidos, existiu de fato uma necessidade de reescrever, ou melhor, rejuvenescer a
tradio e de reafirmar que h quatro estilos musicais propriamente negros na costa peruana?
No presente captulo, ensaiaremos diversos caminhos a fim de compreender melhor os
processos sociais e culturais que atravessaram a vida do violonista, como tambm faremos
meno a msicas que teriam influenciado a sua gerao. Isto nos servir como contexto da
obra que escolhemos para analisar e que propomos hipoteticamente como sendo uma
sntese esttica e poltica desse msico
155
Embora ele afirme no ter sido aluno de uma pessoa especfica, acreditamos que o crculo de violonistas
que tocaram com Chabuca Granda so importantes na hora de pensar no aprendizado de violo de Flix. Eles
foram: Rafael Amaranto, scar Avils, Lucho Gonzales, Rufino Ortiz e lvaro Lagos. Aprofundar-nos nas
particularidades de cada um destes msicos uma tarefa que excede o esforo do presente trabalho.
81
Flix Casaverde cresceu estimulado pelo universo sonoro, e para ele, a msica,
aparentemente, no s foi uma prtica profissional, mas tambm um lugar para construir
seu discurso esttico, poltico, assim como um exerccio para se identificar, frente aos outros e
com ele mesmo. possvel resumir as suas influncias musicais como um verdadeiro
caldeiro ecltico, porm, em vrias passagens da sua vida, ele encarnou o papel de
representante tradicional, por vezes ortodoxo, da msica da costa peruana. Assim, gostaria de
preparar o terreno para uma leitura no-linear dos momentos que o violonista decidiu
compartilhar, os quais proponho compreend-los, fazendo uma analogia com o processo da
composio musical, em que so igualmente importantes as notas e os silncios.
Quando criana o ambiente familiar e seu clima de sociabilidade permitiram a Flix
comear a questionar seu prprio contexto e a desenvolver seus primeiros contatos com a
msica:
Flix: [] eu, com sete anos ia perguntando tudo o que via, e tambm chegavam na
casa conhecidos de outra famlia, cujo sobrenome era Bolaos, os mesmos que
tinham amigos.... negros ingleses que vinham de... Bahamas...
Flix: Das Antilhas! Por que eu digo isso?, porque meu padrinho de batismo no
tinha um sobrenome espanhol, tinha um sobrenome ingls... Ferguson [no foi
possvel identificar exatamente o sobrenome, pelo qual escrevo tal e como se
ouviu]... Charles Ferguson. [] E ele chegava em casa e tocava o banjo. Nessa
poca da minha vida ia gente na minha casa, a casa dos meus pais...
Flix: Estou te falando do ano 1954, tinha sete anos. E chegavam os msicos amigos
do meu pai, ai, eu via um banjo, que no era igual que um violo, e tinha que
perguntar. Como aquela vez que chegaram quando tinha mudado para Surquillo
[bairro de Lima] e tambm tive uma reunio, tinha j nove anos de idade []
chegou um duo de gente que dizia que era jamaicano... eu no posso te confirmar
isso... mas tambm estavam nas jaranas156 de casa, da [minha] famlia, e da famlia
156
Jarana (substantivo feminino) um termo usado na costa peruana para descrever uma prtica social que
celebra as msicas, as comidas e os bailes locais. Nos seguintes subttulos falaremos a respeito.
82
O relato carrega um tom de lembrana que bem poderia enfocar a viso dele, quando
criana, do mundo adulto: aquele mundo das novidades sonoras que ele presenciava ora como
convidado, ora como penetra, pois pairava nesses encontros uma linha divisria geracional
que o proibia de participar. Nesse sentido, fazer msica pode ter sido para ele como subverter
uma conveno, algo que teria funcionado como estopim de seu autodidatismo posterior, essa
espcie de orfandade metodolgica que ele teria sabido contornar, observando
detalhadamente ao seu redor:
Flix: [] o negcio est no fato que eu, quando criana, tive presenas, ou seja,
lembro fatos marcantes. Lembro que ia tocar este pessoal em casa, ou na casa do
meu padrinho Charles Ferguson [] este pessoal, msicos que chegavam
itinerantes, amigos do meu padrinho, amigos da minha famlia...
Flix: Os das Antilhas, e chegavam com o banjo, chegavam como o xilofone que te
falei [a marmbula] e eu estava [nessas reunies] e perguntava e perguntava
[imitando o chamado de ateno do pai] Chega, menino malcriado, para de
atrapalhar s pessoas, e eu curiosssimo. Isso foi a primeira novidade que j ouvi,
sinceramente, mas no rdio ouvia msica espanhola, como tambm ouvia msica
cubana. [] A msica cubana da poca de Benny Mor, da poca das Big Band
cubanas de Benny Mor, o mambo... (Id. - traduo nossa)
O violonista peruano teria vivido e ouvido durante sua infncia parte da idade de
ouro da msica caribenha e da cubana em particular158, fortemente divulgadas pelas
gravadoras norte-americanas no incio do sculo XX, que gerara ampla repercusso na
Amrica Latina e criara mercados vidos por seu consumo em diversos pases europeus
(WAXER, 1994, p. 139). Seu auge remonta ao sculo XIX e compreende uma relao intensa
entre msicos cubanos e estadunidenses, alm de influncias, na msica cubana, de outros
157
158
A marmbula um idifono pulsado, feito a partir de um caixa mais ou menos retangular, furada no centro,
com linguetas no corpo do instrumento. A afinao se da amassando as barras de metal e ajustando o
tamanho das linguetas.
Outros estilos musicais sero mencionados mas no sero igualmente aprofundados como este, isto porque a
msica caribenha e cubana em particular so um ponto recorrente na fala de Flix.
83
pases do Caribe como Haiti e Jamaica (Id., p. 141; ALN RODRGUEZ, 2008, p. 112).
Foram dois os ritmos que o influenciaram fortemente neste perodo: o son e o danzn.
O primeiro provinha da rumba159, estilo musical associado aos negros e seus descendentes na
regio rural oriental de Cuba, que ganhara cidadania ao ser conhecida na capital da Ilha,
Havana. As formaes instrumentais com 6 ou 7 soneros160 tocavam na maioria das rdios e
eram a febre nas danceterias pblicas e privadas. O son se dividia em estribillo, primeira
parte em que se apresentavam os versos da cano, e montuno, que era a chamada e resposta
entre o cantor principal e o conjunto, com improvisos nas letras e na melodia. Este ltimo
podia se estender vontade dos msicos, em progresses do tipo I-IV-V-I, de dois ou quatro
compassos (WAXER, 1994, p. 142).
O referido padro chamado tambm de 3-2, e pode ser executado ao contrrio, 23, dependendo da acentuao da msica em particular (Id., 2002, p. 43). O montuno dessa
poca fazia na linha do baixo uma variao dos padres da habanera, que ficou conhecida
como baixo antecipado:
161
159
160
161
Rumba (substantivo feminino) o nome dado a uma srie de gneros musicais cubanos. Entre os mais
conhecidos esto o guaguanc, a columbia e o yamb (ALN RODRGUEZ, 2008, p. 115). Comumente se
confunde com o nome Rhumba, utilizado pela indstria discogrfica estadunidense da primeira metade do
sculo XX, que designava assim s msicas inspiradas no son. (MOORE, 1991 apud WAXER, 1994, p. 144)
A formao antiga compreendia voz, claves, bong, maracas, tres cubano (cordfono parecido ao violo de 3
cordas dobradas), e baixo (originalmente tocado na marmbula). Posteriormente se somou um trompete ou
uma corneta.
O exemplo est em 4/4, mas existem outros exemplos em 2/4. Cf.: MANUEL, 1987, p. 250.
84
= 120bpm), chamado de
163
O mambo viria a ser, em princpio, a seo que encerrava um danzn, e diferenciavase por ter um andamento mais rpido e sees com improvisaes ao estilo do montuno.
Depois de 1940, produto dos contextos polticos e econmicos e das trocas culturais e prticas
musicais entre Estados Unidos e Cuba, o mambo tornara-se um gnero independente que,
junto ao cha-cha-ch, se vincularam a nomes como os do pianista Dmaso Prez Prado e o
violinista Enrique Jorrn, ambos cubanos.
Parte dessas trocas culturais se refletiu na adoo das sonoras Big Band norteamericanas como formato instrumental das referidas msicas caribenhas e suas posteriores
variaes. Na poca, Nova York era um plo importante para o desenvolvimento profissional
deste matrimonio musical (WAXER, 1994, p. 154)164.
No Peru, na primeira metade do sculo XX, foram importantes as apresentaes
musicais realizadas nos auditrios das primeiras rdios AM comerciais e pblicas do pas.
Paralelamente, repertrios de msica crioula (valsas, marineras e polcas) e andina (huaynos e
yaraves) compartilhavam o espao radiofnico e o mercado discogrfico -ainda importadocom outros ritmos, alm dos j mencionados, como foxtrot, boogie-woogie, swing, charleston,
tango, pasodoble, rancheras, pasillos etc (RUBIO GUERRERO, 2007, p. 332; BASADRE,
1964, apud ROMERO, 2008, p. 457).
162
163
164
Comeou com um clarinete, uma corneta, um trombone, um tmpano e um giro. Posteriormente, ficou
conformado por uma flauta, violinos, piano, baixo, timbales e giro.
O exemplo est em 4/4, mas h exemplos em 2/4. Cf.: MANUEL, 1987, p. 251.
Nas seguintes pginas analisaremos outros desdobramentos da msica cubana e da chamada msica tropical
na indstria discogrfica peruana.
85
O Brasil daquela poca tambm teve uma fase de constantes influncias musicais
estrangeiras em dilogo com as locais: modinhas e lundus, valsas e polcas, quadrilhas e
mazurcas, que precederam aos tangos, tanguinhos, dobrados -nome do pasodoble no Brasil,
tocado principalmente em bandas-, gavotas e cavatinas, xtis, havaneiras e cakewalks,
ragtimes, galopes e fados, one-steps, two-steps e maxixes, e por fim o samba (DUPRAT,
2005, 245). Na Lima de 1947, no tempo em que Flix nasceu, a grande e variada leva de
influncias musicais ainda recolheria seus frutos, provavelmente graas s referncias
musicais dos pais:
Flix: Nessa poca aprendi a tocar o pasodoble [...] era o que se ouvia naquela
poca. O pasodoble era [toca o violo, faz o citado ritmo e canta os baixos, imitando
a linha das tubas no pasodoble das bandas]. Como a polca,... e tambm aquilo que
cantavam Los Churumbeles de Espaa165, que era um conjunto que se fez famoso
em toda Amrica Latina... e tambm cantavam isto: [tocando o violo em tempo de
pasodoble] estn clavadas dos cruces / en el monte del olvido / por dos amores que
han muerto / sin haberse comprendido...
Pergunta: onde ouvias essas msicas? As escutavas do teu pai, pelo rdio...?
Flix: O rdio!.... o rdio era como a televiso agora, era o que mais importava numa
sala, era o luxo das casas... casas que no tinham rdio eram pobres!... olha que
havia at um sistema de aluguis de rdios para quando houvesse reunies... ia-se e
alugava-se um rdio para t-la na reunio, assim, j no destoavas com a era da
radiofonia. E eu falo que se alugava porque lembro, a minha me alugava um rdio
pequeno, Phillips, marrom, para escutar. [] Alugava, no sei quanto era em
dinheiro, para escutar a novela daquela poca que era O direito de nascer, escrita por
um cubano que se chamava Flix B. Calgnet, olha s! Eu lembro que o colocava
num estante alto e ali colocava seu rdio, e escutava a novela acho que era entre 1 ou
2 horas da tarde, ou de 1 a 3 da tarde, porque era a hora em que almovamos, ou
comamos, como tambm se diz. Ento, o rdio era importantssimo tambm.166
165
166
167
= 110bpm)
Orquestra fundada pelo espanhol Jos Fernndez Ruiz (1914-2004), quem fugiu do ps-guerra do seu pas
com destino a Cuba. Posteriormente, assentado em Mxico, fundou a orquestra Los Churumbeles de Espaa
que durou de 1950 a 1966. Cf.: Pepe Fernndez, fundador de Los Churumbeles de Espaa. Jornal El Pas,
Espanha. Disponvel em: <http://www.elpais.com/articulo/agenda/Pepe/Fernandez/fundador/Churumbeles
/Espana/elpepigen/20040108elpepiage_9/Tes>. Acessado em 14 abril 2011.
Idem. Traduo nossa.
Cf.: CASAVERDE, 2009a, KENNEDY, 2004, p. 548. H tambm um artigo sobre o compositor Isaac
Albniz e suas composies inspiradas sobre temas folclricos espanhis. Cf.: ISTEL; MARTENS, 1929, p.
145. Contudo, h definies de pasodoble em 6/8. Cf.: APEL, 1974, p. 646.
86
169
O franquismo foi um regime poltico fascista aplicado na Espanha entre 1939 e 1976, durante a ditadura do
general Francisco Franco (1939-1975).
A cano referida se chama Dos cruzes e foi imortalizada por Juan Legido, a voz tradicional da orquestra.
Existem duas verses de Milton Nascimento gravadas em espanhol: a primeira em 1972, para o disco Clube
da Esquina, e a segunda com Wagner Tiso no piano, para uma apresentao em 1980, nos estdios de
gravao de uma televiso Sua. Nesta ltima, no comentrio prvio cano, Milton afirma que uma
msica que lembra a todas as coisas, principalmente a Minas Gerais (sic.)
87
A mdia da poca, representada pelo rdio, funcionava como uma janela para o mundo
exterior, com uma programao de contedo principalmente adulto. As msicas, as canes e
os dilogos que o rdio emitia no discriminavam idade e podiam ser ouvidos distancia,
com ou sem o consentimento dos pais: [...] para mi o rdio era o mundo. Os noticirios que
passavam diziam Washington... era pra mim, n?, todo um aprendizado de algo que no
conhecia. Conhecia a minha casa, minha famlia e s, n?(CASAVERDE, 2009a -Traduo
nossa). O rdio descrito na fala de Flix como cumprindo um papel social dentro e fora de
casa: por meio do rdio, podiam-se distinguir as pessoas que ouviam o mundo daquelas que
ainda no sabiam o que se passava. Ao contrrio do jornal, o rdio tornou-se uma revoluo
tecnolgica apresentando vrios tipos de informao num formato sonoro que exigia a escuta
atenta do ouvinte, deixando imaginao o plano visual.
O rdio tambm pode ter sido, para Flix, uma espcie de escola de msica da vida,
que o estimulava a imitar seus sons para reproduzi-los no instrumento, claro, quando pegava
o violo do pai escondido:
Flix: Bom, isso o que eu lembro [o pasodoble]... porque aos 7 anos de idade170
me apresentei numa rdio e isso foi o que cantei.
Relendo as entrevistas com Flix, teve a impresso que quando ele se refere a uma idade em particular, por
exemplo, 7 anos, se refere mais poca que idade em particular. Eu a interpreto assim: por volta dos 7
anos.
88
O relato nos traz um momento com sabor de vitria particular, marcante para o
autodidatismo musical do violonista: aquela criana, penetra, das reunies musicais dos
adultos, que ouvia suas canes e se deleitava com os hits ouvidos num rdio que a me
alugava, viria a materializar o esforo dos ensaios, ainda que furtivos, que o levaram a
manifestar a sua primeira e pequena autoafirmao em pblico. Sobre o pai, um msico
talentoso e multifacetado, com um alto grau de conscincia das necessidades materiais da sua
famlia, que alm de gerenciar um conjunto musical integrado por familiares, exercia o ofcio
de despachante e secretrio numa subprefeitura da cidade de Lima, cabe perguntar-se: Teria se
orgulhado do garoto ou sentido a frustrao de v-lo se iniciar na msica, lembrando-se das
penrias de um ofcio que no desejava para ele?
Uma coisa podemos afirmar sem temor e dvidas: nesse dia, o pai entendeu finalmente
por que o seu violo de trabalho quase sempre estava meio desafinado.
O fato que as reunies sociais em casa, as chamadas jaranas, continuaram, e vieram
vrias outras, quando se tratava de datas comemorativas de familiares. Desta vez, ao falar em
gneros musicais, Flix faria questo de enfatizar que nunca ouviu falar em festejo, muito
menos em land171:
Flix: O rdio cumpriu, pelo menos pra mim, uma funo de encontrar coisas
diferentes daquelas que escutava, que eram msicas peruanas, limenhas... valsas,
polcas, marineras. Nunca festejo, nunca ouvi festejo, nunca escutei festejo na minha
famlia, menos land. Ou no se costumava ou no se escutava.
Flix: No...
Pergunta: Tondero172...
Flix: Tondero sim, porque ia um pessoal amigo do meu pai, por exemplo,
Washington Gmez, aquele que era do trio Los Chamas, ia Osvaldo Campos, ia
171
172
Curiosamente, quem at agora identificado como o papa do movimento afroperuano da dcada de 1950,
Nicomedes Santa Cruz, tambm afirmaria que nunca ouviu falar do festejo (VSQUEZ RODRGUEZ, 1982,
p. 45). Sobre a historicidade ou no dos ritmos musicais que identificaram ao negro no Peru discutiremos nas
seguintes pginas.
A dcima uma construo potica de rimas do tipo ABBA ou ABCB, que pode ser declamada,
parodiada ou recitada vontade do decimista. A cumanana e o tondero so ritmos da costa peruana. Nas
pginas seguintes abordaremos uma parte do assunto.
89
Javier Gonzles, o pai de Lucho Gonzles173... junto com Oswaldo Campos eram
nessa poca Los Trovadores del Per. Ia Fetiche... ento, chegavam ao aniversrio
do meu pai, ia um pessoal e cantavam valsas, tonderos, por que no? Pra falar
verdade era costume o Triste con Fuga de Tondero. Isto eu j posso contar, isto,
uma memria coletiva, agora que pude ir crescendo e conhecendo as coisas. De
criana escutava e escutava, e absorvia e absorvia como uma esponja...
Flix: ficavam...
Flix: No, eu era proibido disso porque era uma criana. [] no aniversrio do
meu tio Jorge, eu tinha 14 ou 15 anos de idade, ele era o tio que me animava [a ser
msico], morava em Ciudad y Campo [bairro antigo de Lima], pela biblioteca
pblica, que nessa poca lhe chamavam o Altillo, eu lembro [imitando voz do pai]
Temos que ir no aniversrio de Jorge, eu lembro claramente. Ento, amos, e todo
o mundo chegava e pegava o violo, meu tio tocava e os amigos do meu tio, e todo o
mundo cantava [imitando a voz do tio] bom, agora, Lucho [pai do Flix] vamos
cantar! Eles faziam um lindo duo (CASAVERDE, 2009a Traduo nossa)174.
173
174
175
Violonista peruano residente na Argentina. Como Flix, tambm tocou ao lado de Chabuca Granda.
Flix mencionou que seu pai e seu tio Jorge chegaram a viajar ao Rio de Janeiro, convidados pela embaixada
peruana como uma comitiva cultural em representao do pas. Alm das cartas e documentos guardados por
Flix, no foi possvel obter documentos da delegao peruana no Rio.
Existe um senso comum nos moradores da cidade de Lima de que os bairros com maior concentrao de
negros so os mais pobres e mais perigosos. Sendo difcil afirmar e distinguir que h um bairro negro, pois
ele na prtico heterogneo, historicamente, certos bairros da cidade levam esse apelido: La Victoria, El
Rmac, Barrios Altos, Surquillo, por mencionar alguns. Embora o Estado no tenha divulgado dados censuais
a respeito, visvel o correlato que no plano econmico confirma a pobreza destas zonas urbanas, junto com
o estigma social que elas -e seus moradores- carregam at hoje.
90
afroperuana, como se o repertrio atual refletisse alguns tipos de prticas culturais herdadas e
resgatadas do assim chamado Per negro176.
Num outro momento da fala, Flix elenca uma srie de nomes representativos para a
msica popular da costa peruana. Fetiche era o nome artstico de Rosa Palma Gutirrez (19282005), cantora negra que desenvolveu uma extensa carreira no Peru, no Mxico e na
Argentina, onde residiu por muitos anos. Em seu repertrio, estavam representadas a msica
crioula peruana e os boleros. No auge da sua carreira, l pela dcada de 1950, frequentemente
despertava comparaes com a mexicana Toa La Negra e a cubana Olga Guillot.
Por sinal, o bolero foi um gnero que se arraigou no gosto dessa gerao -nascida nas
primeiras dcadas do sculo XX-, a julgar pela vasta quantidade de gravaes desse estilo no
Peru177. Seu padro rtmico pode ter derivado do tresillo ou habanera, seja como uma
variao sem a ligadura no segundo tempo ou uma maior acentuao no terceiro tempo:
Fig 18. (parte sup.)Tresillo ou habanera. (parte inf.) Padro do bolero (4/4,
(MANUEL, 1987, p. 251).
= 90bpm)
Tambm podemos acrescentar que se trata de um gnero nascido das trocas culturais e
econmicas entre Mxico (via Veracruz e Yucatn) e Cuba (via Havana), mas que s ao
chegar Cidade do Mxico desenvolveu um lirismo urbano, inspirado no cenrio social dos
bordis da metrpole, em que se revelou um dos seus principais expoentes, o pianista Agustn
Lara, que na poca interpretava tangos (PEDELTY, 1999, p. 36). No passou muito tempo e,
entre as dcadas de 1930 e 1940, a Cidade do Mxico se converteu na Meca do bolero,
divulgando um estilo que tanto dialogava com o requinte da vida moderna da cidade, no uso
do piano, do violino e de tcnicas provenientes do bel canto, como com as classes
176
177
Na dcada de 1950 em diante, no contexto do renascimento afroperuano, surgiram vozes de artistas que,
atentos s circunstncias polticas e econmicas favorveis a uma cultura no branca, souberam capitalizar
suas artes como reivindicaes histricas de presumveis tradies negras peruanas at ento esquecidas.
Assim, teriam surgido reconstrues como o land, cuja autoria seria de Vicente Vsquez, a zamacueca,
trabalhada por Victoria Santa Cruz, e o festejo, com Porfirio Vsquez (VSQUEZ RODRIGUEZ, 1982, p.
44). Retomaremos a discusso nas pginas seguintes.
Nas seguintes pginas falaremos mais a respeito do referido gnero.
91
marginalizadas pela sociedade, com suas letras melodramticas (Id. p. 43) ou carregadas de
certo desespero romntico178.
Na lista de msicos elencados na fala de Flix, h vrios nomes. Por exemplo,
Washington Gmez (? - 2004), que, junto com seu irmo Rolando e Oscar Bromley, formou o
Tro Los Chamas, conjunto que internacionalizou a msica crioula peruana (lembrando que na
poca eram basicamente valsas, polcas e marineras). J Oswaldo Campos e Javier Gonzles,
passaram a ser conhecidos junto com Miguel Paz como o tro Los Trovadores del Per, com
repertrio semelhante ao do grupo anterior.
Todos esses msicos aparecem como parte da gerao do seu pai, isto , do crculo de
adultos que frequentavam as jaranas em sua casa ou na casa de parentes e amigos da famlia.
Muitos deles viveram no s durante o apogeu do rdio, como tambm da leva de msicas
internacionais anteriormente descritas, as mesmas que coexistiram com os gneros
considerados tradicionalmente peruanos, que ressoavam fortemente nas emissoras limenhas
sob o rtulo de msica crioula. Este ltimo resultaria na evidncia no s do poder econmico
da capital peruana, que na poca concentrava os principais meios de comunicao, como
tambm do seu controle cultural, por se atribuir a capacidade de definir o que era a msica
nacional nesse momento e o que deveria represent-la nas ondas radiofnicas (LLORNS
AMICO, 1983, p. 62). Lembremos que foi em Lima e em meados da dcada de 1950 e 1960
que surgiram os principais selos discogrficos peruanos: Odeon Records, que se fundiu com
IEMPSA (Industrias Elctricas y Musicales Peruanas S. A.); Virrey, associado com Phillips;
FTA, que se tornou subsidiria da RCA Victor; Sono-Radio, uma afiliada da Columbia
Records; MAG e Smith (ROMERO, 2001, p. 112)
Mas, voltando vida familiar de Flix, que tipo de msica cantavam seus tios numa
festa de aniversario? Seriam os ritmos de moda vindos do estrangeiro ou alguma polca, valsa
ou marinera que soava pelo rdio?:
Flix: Msica? Limenha!... Valsas... [} Por exemplo, eles cantavam muitas coisas
de Pinglo, como [pega o violo e canta La oracin del labriego]: Es ya de
madrugada / el labriego despierta / al entreabrir sus ojos / la luz del alba ve.... Isso
eu lembro, no sei se era a poca... ainda restavam reminiscncias deste bardo,
poeta...
Pergunta: Se identificavam?
178
O bolero tambm afetou as expresses musicais brasileiras, como o caso do samba-cano. Cf.:
ARAJO, 1999.
92
Flix: claro! Todo Peru se identificou, os que conheceram a Felipe Pinglo, porque
eram canes que tinham a ver com o povo... El Plebeyo, Mendicidad, La obrerita...
se ouviam, porque tinham sado de uma guerra de vrios anos serem banidas das
rdios. Um Governo que acreditava que eram perigosos e contestatrios [as msicas
crioulas desse estilo] ao status de vida da gente que tinha integridade... eles
falavam assim! Ento, me lembro, meu pai cantava muito bem, cantava bem
timbrado, muito alto... e meu tio era sua segunda voz e seu segundo violo
(CASAVERDE, 2009a Traduo e grifo nossos).
O peruano Felipe Pinglo Alva (1899-1936) tido como a quintessncia de uma idade
dourada da msica limenha (portanto, nacional) e figura emblemtica de uma poca vista
como pura e exclusivamente crioula (LLORNS AMICO, 1983, p. 24). Uma das fases mais
lembradas do compositor aquela que descreveu as diferenas sociais e econmicas da Lima
de seu tempo, quebrando os padres lricos da chamada velha guarda crioula com seu relato
triste de uma nascente fora obreira pauprrima, que correspondia realidade de uma
metrpole governada pela elite empresarial.
Contudo, ele foi um compositor de msica crioula que tambm viveu a era do rdio e a
moda das msicas estrangeiras de sucesso. No fundo, Pinglo e toda essa gerao nascida
entre o final do sculo XIX e primeiras dcadas do sculo XX -incluindo o pai de Flix e seus
amigos- foram testemunhas de uma grande mudana sociocultural -e econmica- das
condies de criao e produo da msica.
modernidade, com sua produo discogrfica em srie e seus meios de comunicao
radiofnicos, lhe seguiriam novos critrios de valorao musical: a diviso do trabalho e a
demanda por uma maior especializao reconfigurariam a cadeia de produo na msica,
tornando possvel a independncia profissional do compositor, do arranjador, o diretor de
orquestra, o cantor, o instrumentista, o solista etc, todos eles disputando a vaga do melhor
na sua rea, ao mesmo tempo em que empresrios do ramo musical apresentavam a prxima
revelao (Id., 1987, p. 266).
Essa gerao de adultos que influenciaram toda a infncia e adolescncia de Flix foi
de alguma forma responsvel por configurar a esttica que se poderia considerar uma
moderna msica da costa peruana, embora crioula e, por extenso, nacionalista: a msica cuja
linguagem bebeu de uma velha guarda crioula, pr-moderna, e que foi se adaptando s
mudanas dos ouvintes, que constituam, na poca, a audincia de programas de rdio e
consumidores de um mercado fonogrfico.
93
94
Flix: Los Hermanos Casaverde tocavam quatro horas, das 8 s 12 [das 20h at a
meia-noite], E tocvamos valsas e tnhamos que fazer danar e danar, e quando
todo o mundo se cansava tnhamos que tocar msica suave, msica simples. []
Sbado e domingo tnhamos que tocar, [por exemplo] havia um almoo em Ancn
[bairro no litoral de Lima], de uma hora da tarde s cinco. Voltvamos e tnhamos de
tocar num outro lugar, hein? Eu me lembro de uma vez que trabalhamos 14 horas.
Minha me me dizia tadinho do meu cholito, deve estar cansado... viu, Lucho
[Nome familiar para Luis (Luiz, em portugus)], eu acho que voc est trabalhando
muito, minha me dizia. Voc sabe que eu tinha meu dever de faz-lo, no tinha
conversa, no era uma questo imposta, era algo necessrio e imprescindvel e por
isso... como dizer... os anos vo passando. (CASAVERDE, 2009b Traduo nossa)
179
Todas estas informaes so um apanhado que sintetizei das minhas pesquisas de campo e as entrevistas com
Flix. Ele chegou a mencionar que como Los Hermanos Casaverde, existiam outros conjuntos
especializados: Los Hermanos Campos, que conformavam o Conjunto Mulatos del Caribe; Los Hermanos
Vera, que tocavam s boleros e msica crioula. Os conjuntos especializados tambm eram preferidos no lugar
das orquestras, pois ocupavam pouco espao. (CASAVERDE, 2009b)
95
Fig. 19. Conjunto especializado Los Hermanos Casaverde. Na sanfona, o pai de Flix. (Arquivo pessoal)
No captulo anterior, mencionamos que Flix formou uma banda ainda na escola,
quando era adolescente. Ele nunca tinha trabalhado com os tios nem com o pai at que este
viu que j era hora de apresentar o filho como o novo integrante do conjunto180. Portanto,
possvel pensar que a dura jornada laboral, compartilhada com o pai e os tios, foi de alguma
maneira a primeira grande escola musical e o primeiro laboratrio de ensaios para o jovem
Flix:
181
At porque, segundo j foi dito, os tios de Flix confundiam lazer com trabalho, pondo em risco muitas
apresentaes. Nesse sentido, Luis Casaverde, o pai, tambm via em seu filho e sua banda um timo material
disponvel para continuar trabalhando e ficar atualizado com os gostos musicais.
1928-1966. Cantor e compositor italiano, conhecido internacionalmente pela cano Nel Blu Dipinto Di
Blu, que em espanhol foi traduzido como Volar. Ele inaugurou um estilo denominado canzone d'autore e
seu estilo na voz se assemelhava muito ao bel canto popular. Cf.: FABBRI; CHAMBERS, 1992, p. 137.
96
para baixo): maracas, llamador (as vezes conga aguda), tambor (as vezes bong) e bombo (as vezes
tumba).(WAXER, 2002, p. 59)183
183
A Sonora Matancera e o Tro Matamoros so conjuntos cubanos emblemticos, formados na dcada de 1930,
em pleno auge do son e o danzn. Compay Quinto um conjunto musical peruano formado na dcada de
1970, com repertrio dedicado msica caribenha.
Este padro para o estilo de cumbia e porro na chamada msica tropical, que desde a dcada de 1940 se
configura como uma adaptao cosmopolita dos ritmos folclricos da costa atlntica colombiana, como so
cumbia, porro e gaita (Id., p. 58 Traduo nossa). No caso do Peru, embora guarde certa relao com o
gnero colombiano trata-se de uma variante prpria influenciada pela msica andina, chamada chicha
(VZQUEZ RODRGUEZ, 2007a, p. 29)
97
poltico.
Nas festas da assim chamada high society, as msicas teriam representado no
imaginrio social a construo de um ideal esttico almejado como projeto cultural nacional,
em que a msica considerada popular deveria permanecer como o estigma cultural daqueles
que no possuam a mencionada integridade.
Teria este mesmo ideal se atualizado constantemente por motivo das tenses sociais e
culturais ao longo das dcadas? Teria essa mesma diviso em nome da referida integridade
sido replicada e aplicada numa eventual comparao entre a msica crioula e a msica
afroperuana nessa poca? Ao que parece, alm do status que as msicas francesas, italianas e
norte-americanas ganharam, passar-se-ia a outra diviso inspirada na msica crioula -a valsa,
a polca e a marinera- e cubana, que aparentemente provocam a omisso de referentes
musicais especficos do negro no Peru. Poder-se-ia pensar que na cidade de Lima os ritmos
considerados posteriormente afroperuanos no existiam por essas pocas?
De fato, sem lugar para soar nas rdios, nem nas festas da high society ou nas
jaranas limenhas populares, como se no existisse, pois, aparentemente, nem se falava,
nem se comentava, nem se escutava. Nessas relaes de poder, se dificilmente as msicas
crioulas e a cubanas eram aceitas como ntegras, tampouco o eram os ritmos considerados
afroperuanos ou quais fossem essas diversas linguagens artsticas que identificavam e
autoafirmavam o negro no Peru, que nem apareciam como populares dentro do popular, isto
, sem o direito de se manifestar como um evento cultural pblico e aberto184. Por tudo isso, a
sociedade limenha de meados do sculo XX teria traado assim um complexo mapa das
relaes de poder atravs da msica, cuja melhor compreenso requereria estudar as
linguagens estticas definidas pelas interaes socioculturais, considerando no uma e sim
vrias altas e baixas culturas com seus prprios centros de poder185. Voltando fala de Flix
Casaverde, continuemos analisando as influncias musicais citadas por ele e vejamos como
foi a experincia de juntar duas geraes musicais bem diferenciadas pelo tempo e as
linguagens formais da msica, representadas na relao pai e filho:
Flix: Se amos [tocar] para gente mais velha tnhamos que fazer um slow, se amos
para a embaixada da Frana tnhamos que tocar aquilo que j te falei [msica
francesa, italiana etc]... a bossa nova tambm esteve na moda! [toca no violo os
184
185
Acreditamos que na poca deve ter existido seu correlato socioeconmico no negro peruano, questo que
foge ao esforo da presente pesquisa.
Estas questes so uma tentativa de levantar possveis critrios de anlise e no pretendem ser um roteiro
para pesquisar o assunto, o qual escapa aos nossos esforos.
98
187
Un homme et une femme, (Frana, 1966). Dirigido por Claude Lelouch. Na trilha sonora, composta por
Francis Lai, h duas bossa novas: Un homme et une femme, e Samba Saravah, esta ltima uma verso do
Samba da Beno de Baden Powell e Vincius de Moraes. O sucesso das msicas foi tal que em 1969, um dos
atores do referido filme, Pierre Barouh, viajou at Rio de Janeiro e registrou no documentrio Saravah
msicos como o prprio Baden Powell, Maria Bethnia, Paulinho da Viola, Joo da Baiana e at Pixinguinha.
Cf.: A lifelong ambassador of Brazil Pierre Barouh. Disponvel em: <http://www.rfimusique.com/
musiqueen/articles/063/article_7486.asp>. Acesso em 4 de abr. 2011.
Nesta parte Flix se refere ao movimento de rock em espanhol que teve uma curta, porm forte presena na
cena musical limenha. Nas seguintes pginas retomaremos o tema.
99
Fig 21. Capa do disco do grupo peruano Los Reis do Samba (sic.) (Arquivo do autor)
189
190
Baseando-nos nas seguintes recopilaes: (Vrios autores e compositores). O melhor do choro brasileiro:
60 peas com melodias e cifras. Vol. 1 e 2. So Paulo, Irmos Vitale, 1997; CHEDIAK, Almir. Songbook:
Choro. Vol. 1 e 2. So Paulo, Irmos Vitale, 2007.
Cf.: LOS REIS DO SAMBA. Canta Brasil. Direo artstica: Daniel Ros. Lima, Sono Radio, 1961. 1 disco
sonoro (45 min), 33 1/3 rpm, monoaural, 12 pol.
Quem fora cavaquinista da banda, Nico Larrea, ainda encontra-se em atividade. Em 2006 gravou o disco
compacto Esa parte de mi, com temas que integram parte do seu prolfico acervo de composies.
100
191
192
193
194
O prprio Flix participou de vrios projetos musicais com ela. Nas seguintes pginas falaremos a respeito.
Cf.: BOSSA 70. Bossa 70. Arranjos: Nilo Espinoza. Lima: El Virrey, 1971. 1 disco sonoro (45 min), 33 1/3
rpm, estreo, 12 pol.
O prprio nome de Bossa 70 parece-nos inspirado em nomes como Srgio Mendes & Brasil' 66, Srgio
Mendes & Brasil' 77, formaes que acompanharam ao referido msico brasileiro..
Em particular no seu auge posterior apresentao em Nova York, no memorvel festival de Woodstock de
1969.
101
196
197
198
199
200
Copacabana (Estados Unidos, United Artist, 1947), dirigido por Alfred E. Green, com participaes estelares
de Carmem Miranda e Groucho Marx.
Anna (Itlia, 1951), dirigido por Alberto Lattuada, com participaes estelares de Silvana Mangano, Vittorio
Gassman, entre outros.
Alguns deles despertam no mnimo uma curiosidade: com algumas dcadas de diferena, estaramos nos
referindo ao papel de uma italiana e um francs como veculos de uma cultura brasileira transnacional na
indstria fonogrfica e cinematogrfica por essas pocas?
Vale a pena destacar a importncia do cantor Roberto Carlos no Peru, quem junto a figuras como o espanhol
Julio Iglesias e o mexicano Jos Jos, so um verdadeiro fenmeno de massas. Cf.: ARAJO, 1988 , p. 69.
J mencionado nas primeiras pginas do captulo anterior.
Os pianistas Charlie Palmieri (1927-1988) e seu irmo, Eddie Palmieri (1936-); Los Hermanos Lebrn,
Pablo, Jos, ngel, Carlos e Frankie, em atividade desde 1965; o pianista Richie Ray (1945-) e seu parceiro
musical, o cantor Bobby Cruz (1937-); o cantor Gilberto Miguel Caldern (1931-2009), Joe Cuba; o
compositor e cantor Cheo Feliciano (1935-): todos so parte da histria dos msicos porto-riquenhos do
bairro de Harlem, em Nova York, na primeira metade do sculo XX. Cf.: GLASSER, Ruth. My music is my
flag: Puerto Rican musicians and their New York communities, 1917-1940. University of California,
1995.
102
comeamos a tocar essa msica no grupo [El Sexto Poder] e tivemos sucesso. E
bom, o que acontecia, eu era feliz, mas meu pai dizia isso no vai durar muito
tempo... voc tem que ter uma profisso.
[...]
Pergunta: Estamos falando de que poca?
= 130bpm)
Desde os tempos da msica caribenha, agrupada sob o nome de msica cubana como
verbete discogrfico, l pela dcada de 1930, passando pela chamada msica latina de 1940 e
1950, e o boogaloo de 1960, a intelligentzia do music business norte-americano finalmente
capitaliza todo este legado cultural sob o termo genrico de salsa, cunhando na dcada de
201
103
1970 o rtulo de uma esttica pan-caribenha (BEARDSLEY, 2003, p. 38) ou melhor, panlatino-americana vinculada a uma sociedade co-etnicamente miscigenada migrantes
hispanofalantes e seus descendentes em Nova York que viam nesse clima estigmatizante
uma oportunidade para deslanchar profissionalmente e abandonar as constantes precariedades
que acompanhavam a comunidade (GLASSER, 1991, apud WAXER, 1994, p. 162; BLUM,
1978, p. 146).
No Peru, o boogaloo s teria servido como um estopim para entrar de cheio na salsa,
esta sim uma febre nacional que perduraria at nossos dias (ROMERO, 2008, p. 459).
Entre as dcadas de 1960 e 1970, o pas andino refletia no mercado discogrfico local
uma atividade intensa na formao de agrupaes inspiradas na chamada msica tropical202:
Pedro Miguel y Sus Maracaibos, Alfredo Linares y su sonora, El Combo De Pepe, Mario
Allison y Su Combo, La Sonora De Lucho Macedo, Compay Quinto, Orquesta Casino De
Hugo Macedo, Coco Lagos y sus orates, Betico Salas y su sonora, Joe Di Roma y su
orquesta, Popi y sus piraas, Melcochita y Karamanduka, Los Kintos, Chivirico Dvila y
Sonora Mag, Carlos Pickling y Orquesta, Willy Marambio, Los Hilton's, Alfredo Linares y su
sonora, Los Girasoles, Los Diablos Rojos, Andrs De Colbert y orquesta, entre outros203.
No meio da mar tropical no podemos nos esquecer de dois momentos importantes
que tambm influenciaram musicalmente Flix. Um deles o rock em espanhol e sua curta,
porm, intensa vida no cenrio artstico de Lima (ROMERO, 2008, 458). Num primeiro
momento, o pas foi um importante consumidor de rock de lugares como Argentina e Mxico,
mas logo depois se converteu num produtor de bandas de garagem204, cujos estilos
incursionaram plenamente na linguagem instrumental do rock psicodlico, com suas
guitarras205 com efeitos (fuzz, reverb, phaser, flanger etc), seus rgos eletrnicos ou
sintetizadores Moog e diversos efeitos de estdio.
Entre elas temos: Los Juniors, Los Drag's, Los Shain's, Los Saicos, Kela Gates, Los
Holy's, Los Datsun's, Los Teddy's, Los Far Fen, Beautiful Days, Los Comandos, The Same
202
203
204
205
No Peru, um conjunto de msica tropical pode ter mais ou menos influncia de determinados gneros como:
a cumbia, a salsa, o boogaloo etc.
Muitos destes nomes passaram pelo selo discogrfico MAG (sigla de Manuel Antonio Guerrero), cujo acervo
foi adquirido pelo selo Vampi Soul, associado do selo Munster Records, ambos sediados na Espanha. Cf.: CD
(vrios compositores e intrpretes). Gzalo! - Bugal Tropical Vol 1. Vampi Soul: c2007. 1 CD (50 min).
A palavra vem do ingls garage band e designa um perodo da msica nos Estados Unidos quando a
chamada invaso britnica em meados de 1960 (Beatles e semelhantes) inspirou os jovens norteamericanos a formar suas bandas amadoras de rock. Nesse sentido, o termo refere inicialmente a um tipo de
performance num espao bem definido e usado por jovens pr-universitrios brancos suburbanos.
O prprio Flix tocava guitarra desde os 15 anos. Cf.: ANDRADE, 1996, p. 87.
104
People, El Opio, Los Zheros, Los Jaguar's, Telegraph Ave, The Ringers, We All Together,
Monik, Fe 59, Los Destellos, Los Siderals, Jean Paul El Troglodita, Los York's, Melcochita
y sus invitados, Pax, El lamo, Texao, Traffic Sound, Zul, El Polen, Cacique, Cerro Verde,
Sudamrica, Termits, Golden Stars, Los Mutables, Los 007, Pina y Sus Estrellas, Hot Butter's
Sound, Ringers, New Juggler Sound, Smog, Laghonia, Black Sugar, Los Mirlos, entre
outros206.
Algumas bandas incluram ritmos derivados da salsa ou do boogaloo e, em outros
casos, a musicalizao era mais andina -El Polen-, ou trafegava por linguagens que se
enquadravam nos primrdios do punk Los Saicos ou numa cumbia com influncias de
ritmos da amaznia peruana -Los Mirlos207.
O outro momento foi o da chamada nueva cancin latinoamericana, que comeou a
despertar uma conscincia poltica na classe universitria peruana, pelas contribuies de
pases como Cuba, com os representantes da nueva trova, Silvio Rodrguez e Pablo Milans, e
a nueva cancin chilena, com figuras como Victor Jara e Violeta Parra.
Fig. 24. (Da direita) Flix Casaverde ao lado de Elena Bustamante. No centro Silvio Rodrguez e
no extremo esquerdo Pablo Milans, ambos emblemas da Nueva Trova Cubana. A foto no canto
superior tem duas presenas brasileiras: a terceira pessoa -comeando pela direita- o prprio
Flix ao lado de Gilberto Gil e, em sequncia, Chico Buarque. (Arquivo pessoal)
206
207
Cf.: CD (vrios compositores e intrpretes). Back To Peru (1964/1974). Vampi Soul: c2006. 1 CD (50 min).
Cf.: TORRES ROTONDO. Carlos. Demoler: un viaje personal por la primera escena del rock en el Per
: 1957 1975. Lima: Revuelta Ed., 2009.
105
208
Embora nas discusses acadmicas se afirma que estas agrupaes reduzem suas prticas musicais a
espetculos para turistas (ROMERO, 2008, p. 458), acredita-se que um julgamento do tipo esttico, moral ou
maniquesta no seja suficiente para entender a lgica das relaes de poder poltico e econmico que as
referidas prticas musicais andinas atravessam. sob esta tica que seria interessante compreender como
esses msicos capitalizam sua memria musical como remessa cultural e quais os mecanismos sociais e
polticos que o propiciam.
106
211
212
213
214
= 65-100 bpm
213 214
), a valsa (
= 75-85
107
bpm),
o land (
215
108
estabelece as condies propcias para que Chabuca o convidasse a um passeio pelo seu
imaginrio, povoado de impresses, de lugares e pessoas, que o msico valorizaria tanto
como uma experincia indita, enriquecedora e referencial pelo resto da sua vida, comparvel
s ao mundo que, quando criana, conheceu pela fala da me (CASAVERDE, 2009b)216.
O recorte destas particularidades217 , em nossa compreenso, importante para tentar
explicar parte do processo criativo de Flix Casaverde e, por extenso, a pea que escolhemos
para analisar a seguir.
3.3.1. Zapateo
Cuatro tiempos negros jvenes inicia-se com um motivo musical prprio do zapateo
criollo (sapateado crioulo traduo nossa), dana para contextos de confronto e
competio218, como a cumanana, o amor fino e o canto de jarana (TOMPKINS, 1981 apud
LEN QUIRS, 2003, p. 126) associadas tambm cultura negra peruana219.
Na sua interpretao, dois zapateadores medem o grau de elaborao de suas pasadas
unidades coreogrficas com determinadas combinaes de passos num contraponto regido
por uma terceira pessoa, designada como juiz do encontro.
Existem exemplos, como nos contrapontos de pasadas da Danza de negritos220
(VZQUEZ RODRGUEZ, 1982, p. 78), em que o acompanhamento musical segue um
compasso binrio simples e a dana justape o seu composto (Id., p. 81 - Fig. 25), e outras em
que ambas as partes tm a mesma mtrica mas h quilteras e sncopas (Ibid., p. 87 - Fig. 26):
216
217
218
219
220
109
= 104 bpm), o
No caso do zapateo criollo, a msica utilizada pode ser um festejo interpretado apenas
no violo, instrumento que serve de guia s diferentes variaes de pasadas. No seguinte,
Zapateo en Mayor (SANTA CRUZ, 1971), sapateado em [tom] maior (traduo nossa), o
violo interpreta um solo com variaes que parecem sintetizar o acompanhamento e as
pasadas no contraponto entre os baixos e as vozes agudas:
110
111
= 120bpm)
221
222
Para a anlise das estruturas formais na msica utilizaremos a teoria desenvolvida pelo professor Sergio
Paulo Ribeiro de Freitas, que tem mostrado na prtica ser a tese mais aberta e compreensiva das prticas
musicais e sua relao com os eventos socioculturais e contornam suas estticas, principalmente na chamada
msica popular. O referido trabalho, parte da firme convico de demonstrar que a msica compreende uma
comunidade s, oral e escrita, que observa transversalmente os mesmos feitos e fazeres da harmonia e da sua
teoria.
Esta relao rtmica que contrape dois ritmos na proporo de 3:2 onde dois um tempo a menos ,
tambm chamada de sesquiltera ou hemiola (APEL, 1974, p. 382), muito caracterstica em toda a msica
da costa peruana. Analisaremos este aspecto nas seguintes pginas.
112
No trecho, Casaverde faz uma aluso direta ao estilo de Vsquez, por quem reiteradas
vezes tm expressado grande admirao (CASAVERDE 2006, 2009b, 2010). Assim, a
passagem no guarda muita diferena daquilo j falado nas pginas anteriores a no ser na
mtrica: o cajn est em 12/8 junto com o violo embora a acentuao possa ser lida como
4/4 com sncopas e quilteras e as progresses harmnicas so basicamente I-IV-V. As
posies na mo esquerda transcorrem praticamente por arraste (todas em primeira posio).
Contudo, Flix utiliza essa evocao do zapateo clssico de Vicente, como preparando o
caminho de sua primeira variao:
113
Na mesma passagem, as notas d-si-sib parecem ensaiar uma frase meldica que se
espelha no do-do#-r, que serve como ligao para retornar ao lugar diatnico inicial, CMaj7,
e facilita a passagem da primeira terceira posio na mo esquerda:
Fig. 35. Volta ao motivo clssico com trmolo, em Cuatro tiempos.., (12/8,
Poderamos aprofundar mais sobre o tema das harmonias do chamado rock progressivo ou psicodlico, em
particular aquele representado no trabalho musical da banda do guitarrista Santana do final da dcada de
1970, disco que influenciou muitos msicos da gerao de Flix. Em nossas conversas, observamos como ele
consegue inserir passagens harmnicas deste estilo em temas tradicionais peruanos, no que poderia chamar
de psicodelia afroperuana ao estilo da referida poca, lembrando que estamos falando da fora miditica do
latin rock e do boogaloo como simbolismo musical do negro e do latino dos Estados Unidos na poca das
114
frases musicais que exploram o subsistema de tenses do Sol mixoldio, sem necessariamente
ter que preparar o ambiente de resoluo maior (CMaj), para um repouso tnico. As vozes no
instrumento tm uma harmonia fechada e se executam nas quatro ltimas cordas,
apresentando frases rtmicas em dialogo com o cajn:
Fig. 36. Flutuao harmnica que explora a gama do Sol Mixoldio, violo (sup.) e cajn (inf.), no
zapateo de Cuatro tiempos... (12/8,
= 115 bpm),
115
Vemos, por exemplo, como h uma inteno renovada por continuar adiando o
repouso clssico no CMaj, explorando brevemente a regio tonal mediante (Em), como
sugerindo algum repouso prvio nas instncias provisrias. O fato que, longe de cumprir
com sua promessa, Flix volta gama das frases em mixoldio:
116
Uma possvel luz a respeito disso, talvez esteja no que na harmonia jazzstica
denomina-se de countdown: um conjunto de solues uma estratgia produto do desafio
de adiar, incitar, complicar, intensificar a potncia, o vigor e o interesse da trama
(FREITAS, 2010, p. 248), expandindo as possibilidades expressivas do tema musical:
Fig. 39. Ciclos de teras maiores e meios de preparao: estiramentos da frmula Dois Cinco (FREITAS,
2010, p. 252)
117
118
A marinera uma das danas em dupla no Peru que se popularizou ao longo do sculo
XIX e recebeu diversas denominaes: zamacueca, chilena, mozamala e resbalosa. O nome
atual se d em homenagem aos marinheiros peruanos que perderam suas vidas na Guerra do
Pacfico, contra o Chile, l pela dcada de 1880 (VZQUEZ RODRGUEZ, 2007a, p. 28;
1982, p. 36; ROMERO, 2008, p. 454).
Das suas variantes regionais, a mais importante para um estudo sobre a msica e sua
relao com a populao negra no Peru a da marinera de Lima, ou marinera limea
(TOMPKINS, 2008, p. 483), que acontece em dois possveis contextos: como um confronto
(contrapunto) entre dois ou mais cantores, chamado canto de jarana ou jarana; ou como uma
simples msica para danar e cantar. Geralmente se acompanha com dois violes um deles
nos bordes das cordas graves e outro fazendo um rasqueado rtmico , um cajn e palmas,
que numa performance tradicional completa a seguinte estrutura: inicia-se com trs ou cinco
= 65-75 bpm) -cada uma com trs estrofes, sob ttulos distintos-, seguidas de
uma resbalosa ( = 90-95 bpm) -mais rpida e sincopada, com duas ou mais estrofes- e
marineras (
finalizando numa fuga -canto de coplas ou quadras trocadas rapidamente de um cantor a outro
(Id.).
Mesmo que nomes como os dos irmos Elas e Augusto Ascuez tenham sido
considerados como uma referncia da marinera limea da primeira metade do sculo XX
(Ibid., p. 484; LEN QUIRS, 2003, p. 125), temos razes para acreditar que Flix teria
aprendido principalmente das jaranas celebradas na casa dos seus pais e familiares
(CASAVERDE, 2009a). Observemos um bordo clssico da primeira guitarra, interpretado
por Vicente Vsquez no sugestivo ttulo Aqu est la marinera (SANTA CRUZ, 1970):
119
Na marinera limea do Cuatro tiempos... , Flix utiliza uma linguagem muito parecida
com o exemplo anterior, dando especial realce ao motivo no bordo e ao recurso do mordente,
tudo em pizzicato:
Fig. 41. Passagens iniciais da marinera limea, em Cuatro tiempos... Reparem no inicio, do tipo guitarra llama a
cajn -violo chama ao cajn- onde a pea inicia pelo convite de um instrumento ao outro, muito parecido ao
galanteio que rege a dana desta variante de marinera peruana.
120
Depois, a msica destaca uma linha meldica para depois retomar os bordes
clssicos:
224
225
121
122
E/G# A13, com rasqueados representados pela letra xis- de apagamento na mo direita (X) B7 (X) B7:
motivo rtmico reforado na linha dos baixos
EMaj
De volta ao trecho anterior da marinera (Fig. 27), notamos que a harmonia apresenta
uma progresso do tipo I-IV-II7-V7, onde o segundo grau tem uma funo de pr-dominante F#7- da tonalidade de EMaj, no qual tambm podemos advertir para a utilizao da ttrade
meio diminuta l#-do-mi-sol# como preparao para V7. Como no zapateo, o intuito de
expandir a expressividade do campo tonal maior tambm est presente na marinera, no uso
reiterado da 4aum -l#- como uma inflexo particular que permite driblar o lugar comum do
IIm-V7-I (FREITAS, 2010, p. 138). Flix e o cajoneador finalizam a dana, retomando a
passagem meldica num andamento menor e concluem num ritardando sem maior
antecipao.
123
3.3.3. Land
(SANTA CRUZ,
226
As transcries so referenciais, principalmente as partes do violo 2 e o bong, nas quais fiz um apanhado
das frases completas que consegui distinguir da gravao.
124
Fig. 49. Samba Malat (12/8, = 80 bpm) (cont.), no estilo antifonal entre solista e coro. As outras partes -de
cima para baixo- so: palmas, violo 1, violo 2, bong, cajn e campana.
125
A histria do land tem um contexto de reconstruo histrica, pois tudo indica que
no momento em que se prestou ateno dana, muito de suas coreografias e msicas teriam
desaparecido. O prprio Vicente Vsquez afirmou que o land surgiu de maneira espontnea,
quando lhe cantaram uma msica para que ele colocasse o ritmo que quisesse (VSQUEZ
RODRGUEZ, 1982, p. 44). Coincidentemente, nesta poca Nicomedes Santa Cruz chegou a
ensaiar uma justificativa histrica no seu af de explicar os percursos do land, o qual teria
vindo do lund de Angola, ao lundu do sculo XVIII e XIX via dispora africana, logo ao
land que seria esquecido pelos afrodescendentes no Peru, e que desembocaria na marinera
no sculo XX (FELDMAN, 2006, p. 102). O prprio Nicomedes teria ensaiado os seguintes
percursos para essas matrizes rtmicas, que seriam o lund de Angola e a kalenda do Congo,
para estilos como o land no Peru e gneros similares em outros pases:
O padro rtmico do land tambm se viu influenciado pela msica Toro Mata (SOTO,
2000), que a princpio teria sido um estilo musical prprio (TOMPKINS, 1981 apud QUIRS
LEN, 2003, p. 235), mas posteriormente encontraria o seu desenvolvimento junto ao land
(VSQUEZ RODRGUEZ, 2007b, p. 26). Desde sua estreia em 1971, pela cantora Cecilia
Barraza at hoje, esta msica influenciou o estilo de percutir no cajn o land , sem variar
significativamente:
126
Fig. 50. Padro bsico do cajn para o land ( = 60 bpm): toque executado no Toro Mata pelo prprio Caitro
(parte sup.), e toque executado Juan Medrano Cotito (parte inf.) (QUIRS LEN, 2003, p. 235).
de (comeando de cima) Cecilia Barraza (1971), o prprio Caitro Soto (2000), e Susana Baca (2002).
227
No sentido descrito por Nettl (1981, p. 218) refere-se comparao de verses diferentes de um mesmo
evento ou fenmeno (poesias, contos, canes etc.) a fim de chegar a um arqutipo reconstrudo, algo assim
como a soma dos traos comuns que evidenciariam um conceito-chave nos referidos eventos ou fenmenos.
Neste caso, arqutipo utilizado como a ideia musical que, em conjunto, tornou-se sinnimo de determinado
ritmo principalmente na sua divulgao nas mdias.
127
228
Flix gostaria de sinfonizar o land, pois ele um ouvinte fiel da msica clssica. Ele imaginava um som
mais diversificado na instrumentalizao deste ritmo. A sua prpria linguagem harmnica lhe pedia ir alm
dos acordes de 7mas, adicionando 9nas, 11ras ou 13ras. (CASAVERDE, 2006)
128
Fig. 54. Tipos de tetracrdios descendentes (GROUT e PALISCA, 1994, BUKOFZER, 1947 apud FREITAS, op
cit. p.584).
Por outro lado, na ambincia modal frgia das danas flamencas espanholas comum
chamar de cadencia andaluza a progresso IVm-IIIb-IIb-I (no caso do land de Flix, BmAMaj-GMaj-F#Maj). Na msica ocidental erudita, esta linha meldica descendente se designa
como catabasis e/ou descensus, e constitui um arqutipo retrico-musical empregado para
expressar a tristeza, o pesar (BARTEL, 1997, LOPEZ CANO, 2000 apud FREITAS, op. cit, p.
583).
Retomando a anlise da introduo do land em Cuatro tiempos..., gostaria de
ressaltar a importncia do acorde Bm5: uma trade do tipo 1-5-8, dentro de uma escala
pentatnica (si-d#-mi-f#-l), sem terceiro nem stimo grau229, com a nota si dobrada na 3
e 4 corda, que parece conferir passagem uma particular dureza e, ao mesmo tempo, um tom
de solenidade.
Nos seguintes compassos, Flix desdobra a mesma ideia musical apresentada na
introduo junto com outros recursos prprios das caractersticas do gnero230 (hemiola e
sesquiltera principalmente). Numa primeira variao, aparece um motivo reiterado na
progresso Im-VII-VI7, numa contagem de 6/4, que o violonista reconhece como sendo um
estilo clssico de geraes passadas de intrpretes nesse estilo (QUIRS LEN, 2003, p.
242):
229
230
Chamados de power chords (1-5-8 e 1-5-9), esto presentes no rock e no pop em geral. Num plano
conceitual, integram uma contracultura tonal perante a hegemonia da progresso V-I e I-VIm (FREITAS,
2010, p.696).
Para Flix (CASAVERDE, 2006) o ritmo lento e cadenciado imprescindvel para que a poesia discorra
quase como uma fala, sem mtrica.
129
130
Podemos tentar um padro das variaes, com o propsito de explicar esta ltima
Bm6/F#
compassos 137-140), muito parecido com um dos trechos da introduo (Fig. 32, compassos
126-128), com o acorde Em como novo lugar de chegada e de passagem, sempre no mesma
lgica do descensus j explicado anteriormente. Vemos tambm a utilizao de um acorde do
tipo VI7/14# (Fig. 35, compasso 141) que acrescenta certa tenso passagem na ordem de uma
segunda menor composta e, por outro lado, a persistncia da relao rtmica 3:2 nas ltimas
quatro figuras do compasso 140. Estes mesmos compassos tambm parecem ser daqueles que,
como se diz coloquialmente, do pano pra manga, seno, reparemos no seguinte dilogo
131
rtmico entre o violo e o cajn, numa mtrica proposta pelas frmulas de compasso que
obedecem s acentuaes de cada instrumento na referida passagem:
Podemos somar agora um recurso harmnico que gera uma temporria sada do centro
tonal do land at o momento (Bm). Se trata de um ciclo fechado de dois cinco, (Am7-D7
Bm7-E7) onde a funo do VII grau passa a de IIm7 cadencial pr-dominante. Outra forma
de pensar esta passagem numa escala de Am onde a 6 e 7 sero sempre f# e sol#-a
chamada jazz melodic minor scale, fazendo possvel que as trocas entre I e VI grau (C e Am)
impliquem numa srie desdobramentos e polivalncias complexas (FREITAS, 2010, p. 145):
132
antecipado nos compassos 146 e 148 (l e mi, das penltimas notas, respectivamente).
Voltando pea, chegamos num ponto prximo do final da mesma, no que
consideramos que so os compassos mais expressivos do land, devido, sobretudo profuso
de sincopas que d a impresso de estar fora de qualquer mtrica, chegando a ser quase um
encadeamento de eventos sonoros que, em determinado momento da msica, sintetizam nos
intrpretes as vozes que falam com as vozes que cantam: aquela que se interessa pelo dito e a
que se interessa pela maneira de dizer (TATIT, 1995, p. 15):
133
Vemos como no compasso 155 o motivo retorna mtrica dos primeiros compassos, o
que produz maior contraste em relao ao trecho anterior. Antes de dar por finalizada a pea,
resta a exposio do festejo, que Flix decide preludiar numa passagem com diversos pontos
de chegada na harmonia:
7/9
134
3.3.4. Festejo
O festejo tradicional para estabelecer uma diferena com o festejo como gnero
cano ou mais atual consiste numa melodia de frases curtas num andamento ligeiro,
geralmente interrompido por uma pausa repentina ou pelo canto de uma nota comprida. A
dinmica de pergunta e resposta se acentua quando ao final o coro e o solista realizam uma
fuga, que so a troca de fragmentos meldicos de forma antifnica.
Costuma ter uma frmula de compasso de 6/8, embora existam vrias outras
(TOMPKINS, 2008, p. 480). O acompanhamento se d com vozes (solista e/ou coro), violes,
cajn, quijada percusso feita com a mandbula de qualquer equdeo e palmas. O zapateo
criollo uma dana que compartilha muito das estruturas meldicas, rtmicas e harmnicas do
festejo. Como exemplo, podemos mencionar a introduo de Mi compadre Nicols
(SANTACRUZ, 1971), com Vicente Vsquez no violo:
135
Este gnero, em particular, o que mais tem sido utilizado em diversas experincias
musicais com gneros dos mais diversos: nomes como os de Jos de la Cruz Guajaja e Miki
Gonzles, esto atrelados a fuses do festejo com ritmos como o rock, o dance hall reggae, o
rap, e o techno (QUIRS LEN, 2003, p. 199). J desde 1980 at hoje, as cantoras Eva
Aylln e Tania Libertad tambm experimentaram modernizar o referido estilo232.
231
232
Neste caso, a comparao ficou dispensada, pois no haveria maneira de escolher um marco claramente
representativo no surgimento do referido arqutipo, como sim foi possvel faz-lo com o land. Para uma
leitura das diversas apropriaes do festejo num cenrio transnacional confrontar: LEN QUIRS, op. cit.
Idem, p. 200.
136
No caso de Aylln, a proximidade com a salsa mais notria. Sobre este ponto, o
prprio Flix reconhece uma linha interpretativa que teria adaptado a linha do baixo na salsa
com o referido arqutipo:
O festejo que Flix comps para o Cuatro tiempos... resulta particularmente difcil
enquadr-lo, seja no tradicional como no mais contemporneo.:
137
Depois daquele preparo harmnico destinado a cair no Bm5, o violonista decide ainda
aumentar mais a espera e passear no Em7/9 (compasso 164), que tem uma funo piv, pois
serve tanto de pr-dominante (IIm7) junto ao A
7/13
(comp. 172), enquanto na execuo h uma acentuao e ligaduras que obrigam a pensar dois
compassos como se fossem um 12/8 oscilando o padro rtmico de :
: (comp.
185)
As harmonias da parte final da pea so novamente aquelas que ficaram preparando o
Bm5 que nesta vez sim chegar a se concretizar: logo de oscilar no segundo grau do Im
(IIbMaj7 IIm5-) define-se pela dominante (F#7).
O resto um retorno ao land, no s como centro tonal do prprio festejo, mas como
um tema ao qual o festejo lhe foi um divertimento, uma sada para contornar e dissertar a
expressividade esttica:
138
H um aspecto que nos chamou a ateno desde as primeiras ocasies em que ouvimos
o tema. Trata-se de um estopim esttico que tambm nos fez pensar sobre a questo da
identidade num contexto de discusso poltica das relaes de poder. Resumindo, pensamos
que Flix foi capaz, sim, de construir seu prprio arqutipo musical e, atravs dele, de
conseguir cunhar uma assinatura poltico cultural.
Nosso percurso at agora se concentrou s numa msica233, que segundo o prprio
violonista como sua autodefinio esttica e poltica. Assim, gostaramos de ressaltar o
termo autodefinio e relacion-lo com o de metanarrativa, pois observamos que, em todo
momento, a palavra se refere a uma descrio do indivduo nos seus prprios termos-chave
culturais e a uma dissertao musical de quatro danas negras jovens baseadas em quatro
ritmos tradicionais (velhos?) da costa peruana: poder-se-ia propor uma ponte da autodefinio
de um repertrio emblemtico do msico, fornecido por ele mesmo, ao produto musical, no
caso, quatro tempos negros jovens, baseados em quatro tempos negros tradicionais.
Assim, como o msico autodefine seu trabalho artstico com a escolha da obra
analisada, haveria, no interior dessa obra, outro projeto esttico e poltico, que se afirma no
decorrer do prprio evento musical. neste evento musical que seria possvel encontrar uma
feio que expressa sua metanarrativa, como fez o msico escolhendo essa obra, e como a
obra acabou se tornando aquilo que o msico incorporou a ela. Portanto, perguntamos:
possvel, no fazer de um artista, falar-se de um arqutipo musical determinado, e pode este ser
um elemento de tenso esttica e poltica na arena das identidades em sociedade?
Ao longo do presente captulo, foram aplicadas teorias a respeito da msica, que
funcionam como um marco para os feitos e fazeres artsticos e tericos de uma espcie de
comunidade epistmica da harmonia complexa (MARTINEZ, 2000, apud FREITAS, 2010,
p. XXV), mas, como pensar o extramusical (as circunstncias que condicionam o fazer
musical) a partir de uma ao musical especfica?
233
certo que precisaramos de uma anlise no mnimo detalhada do conjunto de obras do referido msico para
satisfazer um critrio quantitativo de rigor metodolgico, como tambm comparar essas informaes com
outras experincias musicais ao redor do prprio Flix. Somente assim, poderemos ter certeza de uma
quantidade considervel de evidncias e variveis que, eventualmente, fariam de nossa pesquisa um trabalho
que tente compreender melhor a complexidade da obra musical de um ator representativo na histria da
msica de um pas. Contudo, acreditamos que este esforo seja s possvel num eventual futuro
desdobramento da presente pesquisa.
139
= 100 bpm).
Estes acordes esto presentes ao longo da pea Cuatro tiempos..., mas tambm so
uma constante em toda a produo discogrfica do violonista. Basicamente se trata de um
glissando de arpeggio, que executa uma srie de notas com um mesmo dedo aproveitando as
cordas soltas do violo, e que Flix costuma realizar com diversas finalidades estticas dentro
de uma pea, entre elas, a de ser uma ambientao harmnica prvia (compassos 13-20)
posterior (comp. 64 e 65) ou final (comp. 70-73) a ritmos mais marcados, mais sincopados ou
figuras na ordem de 3:2.
140
Fig. 68. Paulo Bellinati, Suite Contatos235, I Cadncia e II Contatos, ltimos compassos.
Com isto, s queremos ilustrar como parte do repertrio de solues tcnicas de Flix
eventualmente esto presentes em repertrios da chamada msica erudita.
No caso do violonista peruano, ela passa mais por um recurso expressivo que por um
acabamento tcnico, em consequncia, alm de estar presente na sua execuo musical serve
como um elemento caracterstico, um sotaque possvel de ser realizado quando ele trabalha
alguma msica, e imitvel se algum extrasse esse recurso e o identificasse como sendo de
Flix.
234
235
141
236
Cf.: SANTA CRUZ, Octavio. La guitarra en el Per: bases para su historia. Lima: Noche de Sol, 2004.
LETURIA CHUMPITAZI, Jos Antonio; CASAS PUIG, Jaime de. Origen, ritmos y controversias de la
142
No caso do violo nos ritmos da costa peruana, dois nomes foram referncias desde a
dcada de 1950: Carlos Hayre e Oscar Avils
237
237
msica criolla del Per, y poemas modernos. Madrid: Cultiva Libros, 2011.
Avils (1924-) tem tambm uma carreira semelhante, como compositor e arranjador, destacando-se como
promotor de diversas formaes artsticas de msica crioula. Hayre (1932- ) teve formao erudita e uma
produo musical considervel, como compositor e arranjador. Se tivssemos que utilizar um exemplo
brasileiro, diramos que tem a mesma influncia e trajetria que Pixinguinha. Atualmente, um dos msicos
que colabora com a cantora Susana Baca est preparando um livro sobre sua obra, o mesmo que encontra-se
no prelo e ao qual no foi possvel ter acesso.
143
Se diria que ele algum a respeito da tradio musical da costa peruana pois esse
Que ele negro e que seus pas tambm e por isso h sentido em que ele seja bom
msico -pois no h como negar a circulao deste racismo positivo, que acomoda ao negro
num lugar j previsto na sociedade?,
Que ele pode ser muito intuitivo, mas no tem o conhecimento acadmico do seu lado
-assim, apela-se circulao do preconceito em que o negro hbil na sua relao com o
natural, o plano oral do conhecimento, mas no assim com razo (MUNANGA, 1986, p. 25) ?
consagrados para o violo da costa peruana, e que alm de ser um signo de contradio
negro, isto , no pode valer a pena o que for que ele crie?
Um aspecto tcnico e banal como uma passagem musical, o toque Casaverde, pode
ser o centro e o ponto de partida de uma descrio densa, que deve ser encarada em termos
das interpretaes s quais pessoas de uma determinada cultura submetem sua experincia
como parte da realidade que elas descrevem (GEERTZ, op. cit., p. 25): os Cuatro tiempos
negros jvenes so uma formulao musical a partir do autor que a materializou, e tanto a
pea como o violonista so, ao mesmo tempo, um discurso a respeito de uma realidade que
incide neles como tambm um discurso da prpria realidade: a valia da negritude, a valia da
esttica na msica da costa peruana, a valia da famlia e o universo sonoro do rdio e do
Conjunto Casaverde, o neofolclore afroperuano, a vida militar, Chabuca etc.
No mesmo enfoque tambm devemos colocar o disco que estrearia o Cuatro tiempos...
em 1978, Tarimba Negra, de Chabuca Granda, no qual ela e seus colaboradores entre eles
Flix quiseram lembrar o carimbo, marca de ferro colocada nos negros durante o regime
escravocrata, numa espcie de homenagem reparadora, pois a tarimba do disco pretendia ser
como um ferro doce para as outras raas: a doce marca da dana (sic.) (GRANDA, 1978
Traduo nossa).
144
145
CONSIDERAES FINAIS
Os termos emic e etic (no caso, mico e tico) procedem das palavras fonemic e fonetic, utilizados na
lingustica, foram propostos pelo missionrio Kenneth Pike para designar,na antropologia, os critrios
conhecimentos e significados mantidos pelos membros de uma cultura observada (analisada, pesquisada etc)
e os que aporta o observante com o seu estudo, respectivamente. (CMARA DE LANDA, 2004, p. 35
traduo nossa)
146
projeto revelaria sua fase detergente, em que a valorizao no estaria numa relao
equitativa de trocas culturais e sim no aporte providencial do homem branco ocidental, que,
na verdade, sentia-se destinado por essa via a atribuir suas qualidades supostamente inatas s
culturas indgenas e negras.
Na sequncia, discutimos o que consideramos uma passagem provocada pelas tenses
do referido projeto crioulo: dos referentes afrodescendentes vinculados ao perodo
escravocrata que se tornaram referentes de negritude nos primrdios da modernidade.
Entretanto, vimos tambm como foram possveis as trocas culturais na convivncia com
outras particularidades histricas de marcadores maioritrios como o andino e o
hispanocrioulo, que, em primeira instncia, transmitiam a imagem de ausncia de coeso entre
os grupos sociais de negros e de seus descendentes, dando-lhes um papel de atores
coadjuvantes a reivindicaes no-negras no plano das discusses polticas e sociais
peruanas da primeira metade do sculo XX.
Nesse percurso, chegamos ao que seria denominado o renascimento afroperuano e
cholificacin., A partir de 1950, esse renascimento significou basicamente uma leitura
distinta do projeto de nao em que o Peru (ou os peruanos?), desta vez inserido na corrente
culturalista que inspirou grande parte da pesquisa antropolgica da poca, se voltaria a
questionar uma identidade nacional e buscaria uma soluo nas supostas origens ou razes
locais, propiciando um terreno vido por conhecer a cultura do Outro nas relaes sociais: o
ndio e o negro. Para este ltimo em particular, significou uma oportunidade de abandonar a
vida rural e, entre outras possibilidades, somar-se aos quadros artsticos que surgiam em
Lima, resultado da efervescncia da chamada msica negra.
Ao mesmo tempo, comeou a brotar entre os negros no Peru uma conscincia poltica
fortemente influenciada por diversos acontecimentos internacionais: a luta dos movimentos de
direitos civis estadunidenses e a revalorizao da cultura negra naquele pas, a descolonizao
no continente africano, a revoluo socialista cubana, a revoluo chinesa etc. Todos esses
acontecimentos aproximaram a questo racial e a reivindicao social das prticas culturais
que fortaleciam uma identidade negra e peruana. Numa segunda fase desse renascimento
afroperuano, o plano de identidade regional com pases como Brasil e Cuba estaria sob o
guarda-chuva conceitual denominado dispora africana, ideia que por sua vez deu vazo a
discursos sobre a afrodescendncia no Peru, inaugurando o que poderamos chamar de
conflito pelo controle da produo e circulao do discurso da afroperuanidade,
protagonizado por figuras como Jos Durand e Nicomedes Santa Cruz.
147
Tambm foi possvel conhecer parte do trabalho de Victoria Santa Cruz e sua
reconstruo moral do corpo negro por meio de conceitos como ancestralidade, herana e
essncia no sujeito, ideias familiares corrente existencialista que ela conheceu na dcada de
1960 quando estudou na Frana. Dentro da linha de experincias e testemunhas, analisamos as
reflexes do futebolista Tefilo Cubillas e da voleibolista Luisa Fuentes, negros peruanos
destacados como esportistas que representaram o pas, e problematizamos seus relatos por
meio da tica do complexo de Tia Anastcia ou zona de conforto em que as tenses sociais
herdeiras do racismo cientfico do sculo XIX pactuam um lugar designado para o negro via a
justificativa de supostas qualidades inatas, seja na dana, na msica, no esporte ou no tempero
da gastronomia nacional.
Finalizamos o captulo com referncias ao que consideramos momentos-chave na
discusso das representaes do negro no Peru. Pudemos perceber, em parte, como na
atualidade o pas tem lhe atribudo uma maior cidadania cultural que se tornou evidente com a
oficializao do dia da cultura afroperuana por meio de decreto que incorpora dois
instrumentos da chamada msica afroperuana a cajita e o cajn como representativos da
Nao. Ademais, houve a inaugurao de museus afroperuanos dedicados memria de fatos
e acontecimentos referentes ao negro no Peru e, principalmente, um gesto simblico de
perdo oficial em nome do Estado pelos abusos cometidos durante o regime escravocrata. Por
outro lado, vimos como essa cidadania cultural no reflete uma cidadania poltica e
econmica, uma vez que o negro permanece invisvel em planos mais concretos como sua
identificao plena no censo nacional e nas polticas pblicas de sade.
No segundo captulo, conhecemos parte da vida do violonista Flix Casaverde, suas
relaes no entorno familiar, sua iniciao na msica por influncia do conjunto musical do
pai e seus tios, sua passagem pela vida militar, que lhe proporcionou grandes decepes, e a
retomada de sua vida artstica com Chabuca Granda, cuja participao registrou no disco
Tarimba Negra em que mostrou uma de suas composies, que analisamos em profundidade.
Antes, contudo, decidimos apresentar o panorama da discusso etnomusicolgica,
abordando duas ideias que levam a pensar, em primeiro lugar, a msica afroperuana como
uma periferia anexada s negritudes brasileiras e cubanas e, em segundo lugar, a inveno de
uma tradio afroperuana prpria, fruto do desejo de participar de uma circulao
transnacional de linguagens estticas alusivas ao corpo negro. Nesse sentido, consideramos
mais adequado fugirmos do enfoque estruturalista, para compreender a msica afroperuana
148
como um lugar e um evento para negociar a negritude sob os mesmos termos como ela foi e
ainda tratada no Ocidente.
Em seguida, passamos a analisar o discurso sobre negritude na fala de Flix Casaverde
e percebemos como so constantes os embates e as tenses nas referncias ao conceito de
identidade, quando se pensa que as chamadas afrodescendncia e afroperuanidade seriam, no
fundo, emprstimos importados, que no passariam de uma peruanidade deturpada, que
problematiza as diferenas fenotpicas em termos raciais e africaniza o nacional. Por ltimo,
compreendemos melhor qual seria o lugar ou o nome atribudo por Flix aos conflitos que
comprometem sua identidade, como peruano, negro e msico sem instruo formal.
Dessa maneira, revelamos situaes em que Flix enfrentou certa discriminao por
todos esses condicionantes no Festival da OTI, ou durante sua passagem como violonista de
Chabuca, acusado de levar a cantante ao ritmo dos negros , assim como em outros
momentos nos quais recebeu uma distino por defender a compreenso de uma negritude a
partir das particularidades histricas locais como quando Nicomedes aceita que tudo o que
deve procurar para conhecer o Negro do Peru est no prprio pas. Por esse motivo, Flix
sintetizaria sua viso de negritude e marcaria suas distncias com a gerao do pensamento
Santa Cruz ao fazer uma releitura menos reivindicadora daquela negritude ofendida no
poema de Victoria.
No ltimo captulo, sintetizamos as anlises elaboradas ao longo da dissertao: a
construo do imaginrio social racista, o projeto crioulo de nao, a afrodescendncia que se
tornou negritude, o renovado interesse pelo Outro na sociedade peruana procura de uma
identidade nacional, os discursos a respeito da msica negra no Peru e a cidadania cultural da
afroperuanidade, no extensiva ao plano social e econmico. Tudo isso permitiu examinar
parte das afirmaes ditas por Flix Casaverde sobre certas experincias de sua vida familiar e
profissional.
O intuito do ltimo captulo foi apresentar a pea Cuatro Tiempos Negros Jvenes
como catalisador capaz de gerar uma reao entre os vrios aspectos abordados. Por meio
dela, revelamos parte do percurso musical que o referido violonista seguiu ao longo de sua
experincia de vida e que seguramente fizeram parte de suas escolhas no processo
composicional. Na meno aos diversos estilos musicais que conformaram o universo sonoro
do msico est presente o conhecimento dos diversos atores culturais que integram a sua
sntese poltica e esttica.
149
150
A musicografia, isto , a inteno de plasmar na escrita uma obra de tradio oral, nem
sempre pensada em termos de literatura musical erudita, tambm nos parece, de longe, um
dever de qualquer msico preocupado com sua parcela de memria musical pblica,
compartilhada
como
referente
identitrio. Acreditamos
que
um
registro
escrito,
151
152
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164
APNDICES
165
Fig. 70. Too Gonzles e Flix Casaverde. Formao que gravou a presente verso musicografada de
Cuatro tiempos negros jvenes. (Arquivo pessoal).
166
Flix: El hecho de que yo con siete aos iba preguntando todo lo que vea y tambin
llegaban a la casa amigos de otra familia, que se apellidaban bolaos, los cuales
tenan amigos... negros ingleses que venan de... Bahamas...
Flix: Te estoy hablando del ao 1954, tena siete aos. Y llegaban msicos amigos
pues de mi padre y entonces yo vea un banjo que no era igual que la guitarra y tena
que preguntar. Como una vez que llegaron cuando me mud a Surquillo y tambin
tuve una reunin -tendra ya nueve aos... y ya nos habamos mudado a Surquillo, a
Dante 837, en Surquillo...
Flix: Por Angamos... lleg un do de gente que decan que eran jamaiquinos... yo
no puedo asegurarte esto... pero tambin estuvieron en las jaranas de la casa, de la
familia, y de la familia Bolaos, a la cual siempre me dejaban... y era un... que
despus lo he visto en Cuba... que era un... el cajn que tiene fletes para sonar... la
marmbula, entonces, la marmbula... Entonces para mi todos eran preguntas. No te
olvides, yo ya pulsaba, haca mis acordes, mi pap no me ense...
167
Yo: Un sentido...
Flix: Era un... no! Era... la msica y la guitarra para mi era... de repente como una
puerta para escaparme o esconderme de algo. As lo senta, porque, tratando de
recordar esos sentimientos... tantos aos! Yo recuerdo que cuando no estaba mi
padre yo agarraba la guitarra, o sea, no la agarraba por supuesto cuando estaba l...
Flix: A ver! Es que no me gusta pedir prestada la guitarra... El paso doble era...
Como la polca... y eso lo cantaban Los Churumbeles de Espaa que era un conjunto
que se hizo muy famoso en toda Latinoamrica... y tambin cantaban esto: estn
clavadas dos cruces / en el monte del olvido / por dos amores que han muerto / sin
haberse comprendido...
Pregunta: y esas msicas t las escuchabas dnde? Se las escuchabas a tu pap o por
la radio?...
Flix: La radio!... la radio era como la televisin de ahora, era lo que primaba en una
sala, era el lujo de las casas... casas que no tenan radio eran pobres!... fjate que
haba un sistema de alquiler de radios cuando haban reuniones... base y alquilbase
168
Pregunta: Alquilaba?...
Pregunta: Ah, s?
Flix: S, yo era asmtico, y decan quera bronquitis espsmica pero yo era asmtico,
porqu no s... y ah viva en Miraflores y Miraflores es hmedo y yo hasta los 11,
12 aos sufr de ese mal. Casualmente, el cambio de residencia de Miraflores... donde est EsSalud, barrio que hasta ahora existe aqu en Miraflores, muy cerca a la
Diagonal, que era prcticamente la bajada a los baos de Miraflores- los mdicos
dijeron bueno, a este chico tienen que cambiarlo de clima... y por eso nos fuimos a
Surquillo y pasamos a Dante -837, que es Surquillo- y era ms seco el clima. Eso ha
sido ya... yo he estado all hasta el ao 1964, y ya pues, se terminaron las bronquitis
y las asustaderas de mi padre y de mi madre, porque claro, era un pito... tal es que
antecedieron a mis hermanas que haban muerto. Yo tuve dos hermanas mayores que
yo, una muri de un problema de la garganta que se llamaba... en aquella poca... ai,
es una enfermedad bravsima de la garganta... no me acuerdo el nombre... y viene
una hermana despus que muri de dos aos y medio, mi hermanita, Ana Mara, y es
Marga, la cholita que le decan, que muri de una pulmona teniendo 8 meses... una
cosa terrible, entonces imagnate, que viene el tercer hijo, hombre, y enfermo de
problemas de bronquitis... entonces, como todo nio avezado me haca el enfermo
en la maana y no iba al colegio, me entiendes? (risas) y s entend que por ah poda
tener el tiempo suficiente para agarrar la guitarra y estar hurgando, o sino cuando
mis padres nomas iban a una fiesta, me dejaban dormir, yo me despertaba en la
noche y no estaba mi pap y mi mam entonces agarraba la guitarra, y mi gato...
tena un gato...
[...]
Flix: Bueno, es lo que me acuerdo... porque a los 7 aos estuve en una radio y eso
fue lo que cant.
169
por ejemplo: Sevilla tuvo que ser / con su lunita plateada... y tena que hacerlo,
con imitaciones de los espaoles Testigo de nuestro amor... Un chiquillo as, con
la guitarra, me paraba en una silla para alcanzar al micro, y mi pap o alguien me
agarraba la guitarra porque yo no poda. Despus de eso...
Pregunta: Gan cierto respeto o hubo menos discusiones con su padre a partir de ese
momento?
[...]
Flix: Lo nico que yo que con esa radio que por ah la tengo todava, que es una
radio Phillips, de cuatro bandas me acuerdo la radio... ya no funciona porque busqu
los bulbos y ya no se encuentran... hubo una poca que me dediqu a rehacer esa
radio. Bueno, para mi la radio era el mundo. Los noticiarios que venan decan
Washington... era para mi, ah?, toda una apertura a algo que no conoca pues.
Conoca mi casa, mi familia y punto, no? Mi historia no era de viajar a provincia, mi
madre tampoco, eran limeos limeos, ah?... para ellos Lima era el mundo.
Flix: Claro. Los dos, los dos. Y ahora que estoy tratando...
Flix: Luis Alberto Casaverde Ardiles. Mi madre Felicita Mara Vivanco Vivanco.
[...] Mi madre trabaj en la casa de Chabuca. Cuando yo le cont a Chabuca que mi
madre se llamaba Mara dijo no puede ser..., le dio como una cuestin de sorpresa.
Mi madre a los 11 aos trabaj, como te cont, en la casa de Chabuca...
Flix: A los 11 aos, ella, mi madre. Y fue ama del hermano menor de Chabuca, de
Csar. Entonces, cuando yo le cont a Chabuca eso, Mara?, tu mam es Mara?
(voz normal) [...] la figura est en el hecho de que yo, de nio, tengo presencias, o
sea, recuerdo cosas vvidas. Yo recuerdo que iba a tocar esta gente a la casa, o a la
casa de mi padrino Charles Fergusson, que te digo... esta gente, musicos que
llegaban itinerantes, amigos de mi padrino, amigos de la familia...
Flix: De las Antillas, y llegaban con el banjo, llegaban con el xilfono que te cont,
y yo estaba y preguntaba y preguntaba Ya, muchacho, malcriado, deja de
fastidiar... (voz normal) y yo curiossimo. Eso fue lo primero novedoso que yo
170
Flix: La msica cubana de la poca de Benny Mor, de la poca de las big band
cubanas de Benny Mor, el mambo...
Flix: No! Las escuchaba. Es lo que entraba por la radio. La radio cumpli, por lo
menos en mi, una funcin de encontrar cosas diferentes de las que yo escuchaba, que
era msica peruana, limea... valses, polcas, marineras. Nunca festejo, nunca
escuch festejo en mi familia, menos land. O no se estilaba o no se escuchaba.
Flix: No...
Pregunta: Tondero...
Flix: Tondero s, porque iba gente amiga de mi padre, ponte, Washington Gmes, el
que era del tro Los Chamas, que iba Osvaldo Campos, iba Javier Gonzales, el pap
de Lucho Gonzales... con Osvaldo Campos eran en esa poca Los Trovadores del
Per. Iba Fetiche... entonces llegaban, al santo de mi pap, llegaban gente y cantaban
valses, tonderos por qu no?, aunque se estilaba mucho el Triste con Fuga de
tondero. Esto ya lo he podido contar, esto, una memoria colectiva, ahora que he
podido un poco ir creciendo y conociendo las cosas. De nio escuchaba y
escuchaba, y absorba y absorba como una esponja...
Flix: Se quedaban...
Flix: No, eso me estaba negado porque era una criatura. Con decirte que en el santo
de mi to Jorge, yo tendra 14 o 15 aos, era el to este que me animaba, viva en
Ciudad y Campo, por la biblioteca pblica, que en esa poca le llamaban el Altillo,
me acuerdo, Ay que ir al Altillo que es santo de Jorge (voz normal) me acuerdo
clarito. Entonces bamos, y llegbamos todos, y agarraban la guitarra, mi to tocaba
y los amigos de mi to y todo mundo cantaba... bueno, ya, Lucho, vamos a cantar!
(voz normal) y hacan un lindo duo. Ellos fueron representantes del Per en Brasil,
fueron a Rio [de Janeiro]
171
Flix: Por ejemplo, ellos cantaban muchas cosas de Pinglo, ponte (cantando con la
guitarra) Es ya de madrugada / el labriego despierta / al entreabrir sus ojos / la luz
del alba ve... (msica: La oracin del labriego, de Felipe Pinglo Alba) Eso me
recuerdo, no s si es la poca... todava quedaba la reminiscencia de este bardo,
poeta...
Pregunta: Se identificaban...
Flix: Claro! Todo el Per se identific, los que conocieron a Felipe Pinglo, porque
eran canciones que tenan que ver con el Pueblo... El Plebeyo, Mendicidad, La
obrerita... se escuchaban, porque haban salido de una guerra de aos no querer
pasarse por radio. Un gobierno que en su medida crea que eran [las msicas, los
msicos y los valses en general] peligrosos o contestatarios al estatus de vida de la
gente que tena integridad... lo decan! Entonces, yo me acuerdo, mi padre cantaba
muy bien, cantaba muy timbrado, muy alto... y mi to porque era su segunda voz y
su segunda guitarra. Era interesante porque ellos fueron en el ao 1956 a Brasil,
dentro de una comitiva de danza y cancin. Mi to Jorge, mi padrino Nacho
Bolaos... no s de qu era padrino al final... mi pap, Teresa Bolvar que era una
cantante nacional, el famoso Nio.
Flix: ... No haba eso de que a la primera hora descansas veinte minutos, no. Los
Hermanos Casaverde tocaban cuatro horas, de 8 a 12?, [entonces era] de 8 a 12!. Y
tocbamos valses y haba que hacer bailar y bailar, y cuando todo el mundo se
cansaba haba que tocar msica suave, msica llana...
Flix: No!... Sbado y domingo tenamos que tocar, haba un almuerzo en Ancn, de
una de la tarde a cinco. Volvamos y tenamos que tocar en otro lugar, ah? Yo me
acuerdo una vez que trabajamos 14 horas. Mi mam deca -a mi me deca cholito mi
mam- pobrecito mi cholito debe estar cansado... oye, Lucho, yo creo que ests
trabajando mucho, deca mi mam. Tu sabes que tena mi deber de hacerlo, no
haba vuelta, no era una cuestin impositiva, era una cuestin necesaria e
imprescindible y por eso... qu decirte... los aos van pasando. Yo entr a la fuerza
area en el '69... y ah yo tena mi grupo, en la fuerza area, que era mi grupo de
colegio, de [enseanza] industrial, en la gran unidad, que ramos muchachos y
despus fuimos reemplazando a mis tos...
Pregunta: Ah, s?
172
Pregunta: y a tu to Carlos...
Flix: Claro! Antonio Mosquera, que tocaba la tumbadora. Donald Sandoval Arroyo,
l era el timbalero... eh... Arguedas... su nombre era... le decamos... bueno!
Arguedas pon como apellido... despus ha sido guitarrista de Susana Baca...
Pregunta: Roberto?
Pregunta: Tanto Roberto, como Donald, como Antonio, eran todos tus colegas de la
media industrial, del Ricardo Palma?
Flix: Claro!
Flix: Si bamos para gente grande tenamos que tocar slow, si bamos a la embajada
de Francia haba que tocar pues lo que te digo... o bossa nova que se puso de moda!
Se estil mucho, se toco mucho tambin Un hombre y una mujer, de una pelcula
[Un homme et une femme, 1966]. El bossa nova entr por una cuestin que yo le
llamo...
Flix: No, no entr por la radio, entre para la gente, entr por los msicos que les
gustaba... en el medio, en las recepciones, en una embajada, en un coctel, se usaba...
173
la msica italiana, la msica francesa, la msica brasilea, que en este caso era el
bossa nova...
174
[...]
Flix: El Sexto Poder. Y el Sexto Poder, por supuesto, como muchacho me gustaba
[Carlos] Santana (risas), ah?, me entiendes?. Nos gustaba Santana esencialmente, y
nos gustaba la msica tropical de esa poca... esencialmente Richie Ray and
Bobby Cruz . Nos gustaba Eddie Palmieri, nos gustaba... Joe Cuba Sexteto, que es
de donde sali Cheo Feliciano. Y era interesante como cantaban en ingls msica
bailable. Haba una, El pito se llamaba... despus sali otro... entonces, era el
Bugal, la poca del Bugal. Entonces, eso, comenzamos a meter en el grupo y
tuvimos xito. Y bueno, pues, qu pasaba, yo estaba feliz pero mi pap me deca
eso no te va a dar para mucho... t tienes que tener una profesin... pero pap si
yo soy msico estoy ganando ms que t inclusive... porque yo estaba ganando ms
que l, que trabajaba en el Concejo. Pap, mira... bueno, ya estbamos adelantados
175
con las mesadas que hay que pagar el prstamo de la casa, estamos adelante dos,
estamos adelante tres, o sea, ya no haba la presin de que a fin de mes haba que
pagar. Estoy con la msica, esta es mi profesin, no, me deca, tienes que
estudiar...
[..]
[...]
Flix: Llevando msica tambin a una Fearte, con ese seor, el que te contaba...
Flix: Esa fotografa... con Mximo, con Kato Caballero, con Vctor Campos, y los
danzantes [de tijera] estos famosos que te digo, los ms antiguos que conoc porque
ya habrn muerto. Con ellos fuimos a Brasil y fuimos a una Fearte en Gramado, que
es una ciudad del interior, no?, muy cerca de Porto Alegre, y para mi fue el
descubrimiento, ah?, el salir fuera del pas... y fui como cajoneador ni siquiera como
guitarrista. Son como ciclos que te dan de nuevo en la cara, porque entenda que ser
percusionista era importante. Y conocer el instrumento, cajn, era importante, y
conocer su folclore, o sea, un artista no puede salir si no conoce su folclore y yo
tena la suerte de haber escuchado toda mi vida, ah?. Saba lo que era un huayno,
tambin he tocado un huayno, o sea, era muy importante, y entend que nadie era
menos definitivamente.
[...]
Flix: [...]Primero viaj a Brasil [no ano de 1973]. Entonces, regresando de eso vine
a la banda de Chabuca... (19)74,(19)75, (19)76, (19)77. Y a poco con Chabuca se
abre, vuelvo a repetirte, despus de todo ese mundo de cosas, de cosas dantescas [se
refiere a la experiencia como militar], el mximo fue encontrar a Chabuca, una
mujer que dijo bueno, este tipo tiene tiempo, es joven, es interesado, le gusta
preguntarme..., imagnate qu persona no le gusta que le pregunten, sobre todo en
el caso de Chabuca, que para mi era el antecedente o el paralelo de mi mam. No te
olvides que eran contemporneas. Mi madre a los 11 aos era ama de su hermano
176
menor [de Chabuca]. Chabuca tena 13, mi madre 11. Entonces, para mi era
preguntarle a Chabuca cmo era la bajada de los baos de Barranco donde Ud.
viva?, sin decirle todava que mi madre trabaj en su casa. Y ella me deca que
esto as, que esto as, que Lima ac, que los sombreros, o sea, me hablaba de su
mundo, que le encantaba, recrear o regresar a esa etapa. Y eso era para mi Chabuca,
una referente viva de lo que ya no le poda preguntar a mi mam, porque mi mam
no quera recordar o nunca me cont ms.[...] Entonces, Chabuca fue para mi un
referente importante.
Flix: S que algunos seores que gustaban de los valses de Chabuca me dieron la
contra, me dijeron, Casaverde t has sacado a Chabuca del vals y la has puesto en la
msica de los negros. As me dijeron. Y, bueno, yo creo que para mi todo es lo
mismo. Para mi no hay negro, para mi no hay blanco, para mi no hay chino, para mi
todo [es] un criollismo. Para m es eso.
Entrevistadora: Claro porque sino seran una suerte de especies, no? Uno por aqu,
otro por all... mentira!
Flix: No hay minoras tnicas en nuestro pas con la gracia de Dios. Somos
multitnicos, multiculturales. Ricardo Palma deca el que no tiene de inga, tiene de
mandinga. Por qu queremos seleccionarnos? Por qu queremos hacernos tan
selectivos, eso de las minoras tnicas, que me disculpen los seores que la usaron.
Yo soy as, lo hablo... ms de veinte aos en el Congreso [Poder Legislativo] para no
hacer nada de las minoras tnicas. Que me disculpen! Y todava existen y estn. Y
por eso digo, y a la contra, no hay minoras tnicas.
Entrevistadora: En ese sentido, en esa lnea, qu dice Flix Casaverde cuando hablan
de la msica afroperuana?
177
Flix: [silencio]... claro, en todo caso msica costea, msica serrana y msica de la
selva, as estamos.
Flix: Entonces, voy a eso porque despus, cambia el gnero y la msica. Ahora
somos afroperuanos. Entonces, eso me dio un escozor, porque en frica, en Angola,
en radio Angola, viajando con Tania, me hicieron una interview [sic.] entonces me
dice un comentarista que hablaba portugus... yo entiendo el portugus... no falo
mal pero le doy... me dice ustedes le llaman afroperuano a su msica [...] porque
nosotros no los consideramos a ustedes afro, ah?... para nosotros ustedes son
sudamericanos: hay centro americanos y hay norteamericanos... nosotros somos los
africanos!. Me dio una risa. Y analizando y rebuscando... tambin ya lo he dicho en
la Escuela Nacional de Folclore, de la que he sido profesor, hace ya mas de diez
aos, lo vengo diciendo, que me respeten, que me disculpen los estudiosos
etnomusiclogos, si todo est basado en el folclore de Cuba y en el folclore de
Brasil, tanto para Ortiz como para la figura de all. Y Nicomedes, con quien me hice
amigo, me gan su respeto y su amistad, por mi terquedad, de decir que yo no tena
que ir a frica para entender lo que estaba pasando, una suerte de neo-folclore
costeo.
178
Chalena: Ni colores...
Flix: Pero muy lejana ya pues!, muy lejana! (risas) porque ese negro se mezcl
con el chino, ese negro se mezcl con todo mundo... entonces es bien difcil. Un
poco conversaba con Juan Jos Vega eso...
Flix: O ibero, como dices t, ibero-peruano. En un momento lea eso, pues debe ser
difcil si en algn momento se dice afro-peruano tambin puede ser hispanoperuano... (risas) entonces me pareci genial la idea.
Chalena: Claro, si hay una raz all hay una raz en el otro lado y hay otra ac,
entonces... s pues. Es peruano ya.
Flix: Hay que decirlo. Parece que todava la gente tiene un poco de temor en
aceptar su peruanidad.
Chalena: Claro, sin embargo, para reafirmar, para destapar, pues estaba un poco
oculta, el hecho de la contribucin africana a la formacin de la cultura (nacional,
peruana). Entonces en un momento fue necesario, era necesario decir afro-peruano.
En ese sentido fue que lo planteaba Nicomedes, creo yo...
Chalena: T crees?
Flix: Yo tengo mis dudas porque yo s que en determinado momento esta persona,
que por supuesto ya no se puede defender el est, ya feneci, y su recuerdo y su
amistad siempre quedarn ac... su trabajo. Creo yo que l un poco complic las
cosas polticamente, y esta acepcin, esta teora yo s que la propuso en la misma
Casa de las Amricas pero no fue muy bien recibida. Las alusiones, como Fernando
Romero dice, de afronegrismos, que son basadas en su mayora por cuestiones de
Ortiz, ah?, el mismo Argeliers Len, ah? Son interesantes pues porque
simplemente aseveran que puntos importantes en Amrica, como es Cuba y como es
Brasil, son los que han servido para sumar, ah?, al lenguaje castellano muchos de
estos afronegrismos, por tanto son cosas prestadas! (risas)
179
Flix: Pero, eso es otra cosa! (risas) Entonces ese es un campo lindo y frtil para
seguir ahondando, pero por qu no aceptar...?
Flix: Con todas nuestras mezclas!, o sea este crisol de razas est y si esto que ha
comenzado no tiene cincuenta aos como de nuevo resurgir, bueno, tommoslo
como es, con todas las mezclas, con piedras, papas, camote, y vamos para adelante
como una cosa ya nuestra, ya propia de nuestra poca pero ya no pensar...
Flix: Adems... (risas) esta teora que yo rebat, y he rebatido hace bastantes aos.
Mi padre era amigo de Nicomedes y, bueno, la primera vez que yo lo escuch dije...
y compr entonces el disco que ahora lo encontr...
Flix: Claro, donde est la teora y toda la historia del lund y que est, no?, yo dije
pues, esto... que es extrao, es interesante pero es extrao... igualito, me tuve que
leer muchas cosas, muchos libros...
Chalena: Pero tu hiptesis me parece interesante, la que me dijiste una vez, o sea,
esa relacin con la msica cubana...
180
Flix: Por primera vez en estos festivales se orquesta un ritmo, porque esa es la
verdad, que no tena nada que ver con el contexto de las cosas que el Festival OTI
presentaba, que eran baladas, o valses, boleros, pero nunca cosas que tengan que ver
con land, festejo, ni nada de eso.
Chalena: Es verdad.
Flix: Entonces, eso fue, un golpe tremendo para muchos... solo que, el arreglista lo
escribe en tres cuartos (3 / 4). Ahi viene lo que te digo. Yo le digo pero maestro,..
mire -me dice- usted estudie y despus me dice pues yo soy msico, y despus
Pancho Senz me dice no, t no me puedes decir nada porque yo soy el que s, t
no sabes nada... sigues siendo analfabeto musical...
[...]
Chalena: En qu sentido?
Flix: En el sentido de que como raza fuimos los ms, este... eh, acomodados?,
acomodados!, acomodadizos, mejor dicho, al sistema. O fuimos cocheros, o fuimos
amas, ah?, o fuimos msicos, o fuimos maestros de danza, o fuimos amantes...
Chalena: (risas)
Flix: Me entiendes?, ah?, pero no fuimos tan sacrifi... algunos s hay casos de
elementos sacrificados pero [no] tan sacrificados como el chino y el oriundo de aqu,
y all hay un punto interesante, que es totalmente la...
Flix: Que no se habla mucho de ello. Eh... Cuba tiene su porqu. Bueno, all se
mat a todos los aborgenes y quedaron la sociedad negra, no?, esclava despus
mulata y punto. Brasil tambin, sus historias, con su religin, y todo ello. Todo est
ah, pero nosotros no. Nosotros nos mezclamos bastantes hasta el punto en que
ramos mulatos, cuarterones, quinterones y todo, y ramos la mayor parte de la
poblacin de Lima sino casi toda la poblacin de Lima, y eso tambin est en los
documentos que hablan sobre la colonia y todo, pero exentos de tipo religioso,
exentos de una religin, por qu?
Flix: Se pierde la religin, y adems porque la inquisicin hace todo lo posible por
ello. Fue peor de lo que sabemos ahora. Debe haber sido mucho ms represiva
181
Chalena: Claro.
Flix: As era. Y se fue mitigando hasta que lleg un momento en que, ya si los
negros venan como dicen muchos de los libros, que ac en el Per llegaban los
bozales, porque no podan hablar ni podan expresarse bien, pero no solamente eso,
no se podan integrar con los dems que traan, o sea, era ms brava la cosa, o sea, la
estrategia les sali bestial, no? Ellos hicieron todo el negocio aqu, ac, en Lima. Y
eran gente que tena que pedir trabajo... yo he casi llorado de algunos libros, eran
como cincuenta y dos libros. Una vez con Zelmira Velarde, vas a escuchar ese
nombrecito, una morenita ella, esa Zelmira se consigui todos los libros porque
queramos hacer una obra teatral, una cosa. Yo he ledo, oye, en esa poca, en su
casa, no s... (risas) aprend a leer rpido, y no solo cosas, no solamente de ac de
afuera, de Colombia, de Venezuela, no s de adonde se consiguieran pero eran ese
nmero, "cincuentaitantos" nmeros sobre el tratado del negro en Amrica, o sea en
general, lo general. Y es increble como nosotros tenemos otra historia. Yo a Lalo
(Izquierdo, director de Per Negro) le he dicho que toma las cosas venezolanas y las
ha estado enseando en la escuela como cosas ciertas ac y eso est mal. Yo, habla,
compadre, eso es otra cosa.... Bueno, no hay que seguir inventando, no hay que
seguir inventando cosas que uno no tiene certeza pues. Mejor habla las cosas como
son. Yo s que los pueblos omiten sus verdades, como el norteamericano omite que
hubieron destacamentos negros en la guerra de secesin que fueron los verdaderos
hroes de muchas cosas y no, lo callan. O como en Espaa tambin, en la guerra de
Franco, y se callan, no se cuentan su verdadera historia, pero nosotros tenemos que
despertar un poco de eso.
Flix: A partir de ah con mucha mayor fuerza me he puesto a discutir la figura del
afro-peruanismo ac, hasta que llegu donde Nicomedes. Por supuesto que Don
Nicomedes me mand que me vaya al frica (risas). No tengo plata Y qu!, t
tienes que comer con la mano para que veas... Ah, s? Qu extrao.... Yo nunca
he comido con la mano pero si en frica se come con la mano debe ser por algo.
Creo que tambin los palestinos tambin comen con la mano, pero esas son
costumbres de all. Es necesario eso para saber que mi msica es africana? No s digo- Don Nico. Entonces la discusin pasaron aos, Chalena, esta discusin...
Flix: No, pero las veces que me acercaba le deca Don Nico -Hola hijo, qu
tal...- deme una bibliografa, porque quiero saber tal cosa..., y l Ah, t siempre
con el problema, no...! y siempre me largaba. Hasta que lleg un da, que fue para
el 87 (1987), el Sicla (Semana de la Integracin Cultural Latinoamericana, Lima, 6 a
15 de abril, 1986), que en el Estadio Nacional, y estaba me acuerdo yo con mi
guitarra esperando. Ya haba estado en el Estadio Nacional, pero nunca como
msico... y en el Estadio Nacional, lo que fue extrao. Entonces, me sent extrao
ante el escenario y la parte dispuesta para la tribuna, y una pantalla gigante creo que
haba. Y parado ah, con mi guitarra, con mi mujer, estaba Don Ral Garca Zrate y
yo me acerqu a saludarlo. Nos quedamos conversando, sobre el fro que haca, lo
difcil de tocarla guitarra as, al aire, era un tiempo as, en octubre, me acuerdo.
Cuando en eso me volteo as y vea que vena Don Nico con su cachimba de San
Juan (cachimbo) que yo lo vacilaba (risas)... y su sombrero l vena. Haba venido
de Espaa, as que se acerc y salud a Ral Garca Zrate y ah yo pues, como el
chiquito preguntn. Ah le digo Don Nico, cmo le va... Qu tal, van a tocar
182
juntos? No, yo voy a tocar lo mo y Don Ral... Ah, que bien... que por ac, y
ah fue que declar delante de Don Rul Garca Zrate que hasta el momento digo
as porque creo que sea mi nico testigo de ello, porque lo fue en ese instante, me
dice (Nicomedes a Flix) Oye hijo, todo lo que hemos estos aos... S pues...
Oye -me dijo- tenas razn, ah?... todo est ac. Entonces, yo a eso vi como si
fuera una comunin, entiendes?, un acto sacramental, porque una vez ms reafirm
el hecho de que como pueblo tenemos que tener lo nuestro, y lo nuestro levantarlo
pero de lo nuestro, lo que creamos nosotros, no lo que nos dicen que somos. [...] No
s si cant lo que yo despus intitul de Negro negro, que es un fragmento del
poema de Victoria, Me dijeron negra, y como yo no quera presentarlo as como me
dijeron negra porque me era un poco difcil (risas) entonces yo le puse Negro
negro. [...] y el Negro negro como yo lo tomaba parece que era dificultoso para la
acepcin, o el visto bueno de Victoria porque para ella yo le malogr el tema...
Flix: Bueno, el poema (de Victoria) es ms amplio pero yo comienzo de esta parte
y lo toco as y pido a la gente que diga (coje la guitarra y pide al pblico que repita
con l "negro, negro, negro, negro, siguiendo la cadencia de la msica) entonces,
uso el fragmento de Victoria Santa Cruz, y digo negro, s, negro, soy, negro por la
voluntad de Dios, de hoy en adelante no quiero lacear mi cabello -en mi caso no
puedo se me est cayendo del techo, digo (risas)- y voy a rerme de aquellos que por
evitar segn ellos, que por evitarnos algn sinsabor llaman a los negros gente de
color, ah!, como si furamos color, el negro es la negacin del color (risas) -claro
pues, cromtica mente hablando-. Entonces, jugaba con el pblico para que
entonces gritara, era la oportunidad, como les deca, era la oportunidad de su vida,
para que ustedes me digan negro...
Flix: Entonces, deca, digan conmigo, deca. A una seora le deca seora, diga
con todo el esfuerzo pero usted diga negro.... Entonces la gente se rea y poda decir
negro negro sabiendo que no era ofensivo decir negro, me entiendes?. Por supuesto
esto es una anttesis de lo que preconizaba Victoria. Desde all, ya, es el deslinde.
183
ANEXOS
184
ANEXO A MAPA
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* Referncia: LLANOS, Fernando. Flix Casaverde, violo negro: identidade e relaes de poder na
msica da costa do Peru. 2011. 213f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Artes,
Universidade Estadual Paulista, So Paulo, 2011.