Catalogo Forumdoc 2016
Catalogo Forumdoc 2016
Catalogo Forumdoc 2016
festival do filme
documentrio e etnogrfico
frum de antropologia e cinema
sumRIO
Apresentao 7
Sesso de Abertura 21
Mostra Queer e a Cmera 25
Mostra Contempornea Brasileira 59
Mostra Contempornea Internacional
Sesses especiais 99
Lanamentos 105
Seminrio Queer e a cmera 111
Ensaios 121
81
Programao
ndices 296
Crditos 298
289
Evo! forumdoc.bh.20Anos!
> Como ramos verdes quando comeou esse devaneio, tudo se passava
como se fssemos ntimos dos cineastas mais incrveis. Ficamos to
amigos de Jean Rouch! Vimos tantos de seus filmes! As festas Segui, as
baterias Dogon, Horendi, Yenendi ... seus ralenti: a danarina flutuando...
Uma nao inteira em festa, ornamentada em vermelho e amarelo! A
voz off! As casas na terra e em tom de terra, os bosques baixos e as
cavernas, longos caminhos! Caada ao leo, aos hipoptamos, um filhote,
brinquedo da meninada na beira do rio! O olhos dos Mestres Loucos!
A camiseta branca do Negro, o Jaguar! Tambm nos tornamos familiares dos bosqumanos do Kalahari, caadores de girafa! Que gaiata!
Fugia depois de flechada, ia longe, andava em crculos, voltando de onde
vinha. Aprendemos com de John Marshall as artimanhas vs de um
animal gigante para no se deixar capturar por humanos to pequenos.
Os bosqumanos estalam e assobiam para falar! Vimos a Amaznia, os
ltimos isolados, a dcada da destruio. Era a filmografia de Adrian
Cowell denunciando o fim dos tempos, a coliso dos mundos! Mas antes, a
beleza, a leveza elegante do caador caiap cercando a anta, correndo na
8
a borduna fatal! Desde o comeo, houve Vdeo nas Aldeias! Como cada
filme era um mundo! Era possvel reconhecer a riqueza das diferenas
indgenas, mas tambm nossa parte nos ndios, como a parte deles em
ns! Ficamos mais indgenas com o capito Vincent, Divino... O Glauber
estava na derradeira sesso de domingo! Era dele o dever de encerrar
a maratona. Glauber prevenia o prximo ano! Antes, no catlogo, havia
um texto do Gato! Ah! os catlogos! A vaca! A boneca parida de Terezinha
Maxakali! Os mutantes do Pedro Moraleida! verdade, faz tempo, eu vi!
Vimos coisas [Renata Otto]
que persigo esse filme desde aquela noite. Cada entrevista em Santo Forte
abre para uma cena teatral complexa. Se ele lapida algo do que Coutinho
j vinha gestando (um modo de abordar e compor a experincia), Santo
Forte tambm inaugura: nas cenas de Andr e Dona Thereza, encontro
agora prefiguraes de Jogo de Cena e de Moscou. Os filmes de Coutinho
prosseguem com a gente. [Cludia Mesquita]
> Em 2003, nos surpreendemos com A Kalahari Family. No foi uma sesso,
foi uma semana todas as manhs no Auditrio Snia Viegas, pois o filme
tem 5 episdios. Quando tinha 18 anos, John Marshall e sua famlia
fizeram uma expedio pelo deserto da Nambia, atrados por conhecer
os coletores/caadores da rea de Nyae Nyae. Encontraram os Ju/hoansi,
bosqumanos nmades, dando incio a uma grande amizade. Movida pelo
deslumbramento da viagem, a famlia Marshall no imaginou que os
rastros de pneus da sua expedio levariam colonizadores ocidentais a
encontrar estes mesmos povos, introduzindo nas suas terras a cultura
de gado e outras prticas cuja consequncia trgica foi a progressiva
destruio das formas de vida dos Ju/hoansi. Desde os anos 1950, Marshall
voltou inmeras vezes ao Nyae Nyae portando sempre uma cmera, e at
o fim da sua vida filmou os Ju/hoansi, porque cinema amizade, como o
forumdoc sempre me fez pensar. Marshall filmou intensa e extensivamente
por 50 anos (filmou desde a caada s girafas at as ameaas s formas
de vida dos seus amigos), procurando fazer do cinema uma forma de luta
em favor dos Ju/hoansi. Por esse motivo, a cada passo refletia sobre que
imagens estava criando, sobre como filmar, o que mostrar trabalho que
resultou em mais de 40 filmes. No fim de sua vida, Marshall reviu todo
o material que tinha filmado e montou A Kalahari family, uma enorme
reflexo sobre o encontro, o tempo, o cinema, a amizade e a resistncia.
[Daniel Ribeiro Duarte]
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guardam a histria oficial... Monsieur Chat e Chris Marker me acompanham pelas salas de aula a que sou convidada a participar, pelas ruas de
Paris e trilhos da Petite Ceinture onde atuam ainda hoje pela vontade
de vestir as pinturas de luta e ir para a rua sussurrar pela micropoltica
do anti-espetacular. Semana passada, em So Paulo, eis que me deparo
com mais um jeito, desta vez em trao contnuo, de desenhar a cabea
de um gato, e o corao j disparou alegre em rememorar de novo Les
chats perchs. [Milene Migliano]
> Pouco ou nada acontecia naquele filme uma mulher cozinhava, lavava
os pratos, tomava banho, recebia um cliente no quarto, servia o jantar para
o nico filho, lia a carta da irm, preparava a cama para dormir, apagava
cuidadosamente a luz de cada cmodo ao sair, circulava pela casa e
pelas ruas de Bruxelas como um autmato, expresso impassvel, gestos
medidos, passos ritmados. Pouco ou nada acontecia e tudo se repetia a
cada vez, um pouco diferente ao longo de pouco mais de trs horas de
sesso. Antes de ter incio Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080
Bruxelles (1975), Ivone Margulies, convidada para comentar a modesta
porm significativa retrospectiva de Chantal Akerman que organizamos
em 2006, pediu a todos os presentes: fiquem at o fim. Para surpresa da
pesquisadora, habituada com a impacincia do pblico diante de um filme
escasso em grandes acontecimentos e de tamanha durao, a expressiva maioria dos espectadores atendeu ao chamado. Ficaram, ficamos,
silenciosamente irmanados, imveis diante do que vamos, afetados pela
luz que emanava da tela como que a marcar em definitivo nossas retinas.
Samos com a sensao de que havamos partilhado naquela sala uma
experincia rara de cinema. Eu dava incio a uma pesquisa de mestrado
sobre a diretora e aquele filme, aquela mostra, teve ressonncias que
nem agora, dez anos depois, consigo racionalizar ou sistematizar, como
convm s grandes histrias de amor. Amor pela cineasta, amor pelo
festival, amor pela equipe que viabilizara tudo aquilo, amor pela senhora
que, ao fim do debate, se aproximou e nos agradeceu por ter visto o filme,
no serei mais a mesma, ela disse comovida. H filmes que provocam
esse efeito em ns. Naquela noite, naquela sesso, foi tudo semente e
sou grata por at hoje colher, dela, os frutos. [Carla Maia]
> Com licena potica dos ladres de cinema, o filme quis dizer: onde
jaz o teu sorriso? Moi? Une noir neguinha... Aqui? Favela, o rap representa. Nos olhos de mariquinha leio eroses e matria de composio.
Meu primeiro contato? Sim, o dia em que a lua menstruou, maxakaly
or not, tupy! Saute ma ville nha cretcheu! (Exploda minha cidade minha
querida!). Antes e agora: braos cruzados, mquinas paradas. Em histria
do brasil leio inventrio da rapina. L-bas alm dos trilhos roda terra em
transe, um cabaret mineiro. Serras da desordem, tempos de guerra e
sans soleil, vejo grey gardens tout une nuit. Margem terceira de duas
aldeias e uma caminhada. Os mestres loucos, o guru e os guris , o santo
forte, o cabra marcado, os catadores e eu. Das crianas ikpeng para o
mundo, dos aprendizados, o maior: shuku shukuwe, afinal, a vida para
sempre! O cinema? Aussi, oxal, amm! Um brinde forumdoc.bh.2016:
stolat! [Raquel Junqueira]
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> Um grande paj quis ajudar aquele cari, um ingls militar que acabara
de chegar na Floresta com seu exrcito armado. Tornaram-se amigos,
criaram afeio um pelo outro. O paj virou seu guia. Um dia, em uma
grande expedio, o chefe ingls foi subitamente atacado por uma ona,
mas o grande paj se adiantou e a flechou fatalmente. A morte dela
lhe perturbou muito. O esprito da ona vinha constantemente em seus
sonhos e seus sentidos comearam a bagunar; ele no conseguiu retomar
a harmonia da vida com os seres da Floresta. O amigo ingls, muito
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agradecido pelo feito, o convidou para conhecer sua casa na cidade. O paj
aceitou. Na casa do amigo ele no conseguia se levantar. S ficava sentado,
olhando pela janela as rvores e os pssaros l da rua. Um dia ele saiu
de casa e morreu l fora, ao cruzar a linha de trem. Foi ter com a ona.
Dersu Uzala, sesso de encerramento do forumdoc.bh.2011.
[Carolina Canguu]
> Aquilo no havia sido visto antes. Digo, nada parecido com aquilo. Os
corpos saltavam de um extremo ao outro da tela girando no ar. Um zumbido
contnuo, obsedante, instaurava uma atmosfera sonora compacta, quase
claustrofbica, e na qual possivelmente o ar comearia a rarefazer-se em
breve. Os corpos, espritos deste mundo e de outros mundos , coloridos
precisa e apressadamente, envoltos em pedaos de trapo, marcados com
canetas hidrocores fosforescentes, tufos de algodo, borres feitos por
corretores ortogrficos, nos circundavam, a ns, na sala de projeo.
As mulheres em tela viam aproximar-se de si corpos desfalecidos de
crianas nos braos dos espritos, e a um discreto toque nessas crianas,
irrompiam em um choro compulsivo. No sabamos muito bem localizar o
perigo em jogo, sairamos dali a salvo? Avaliando o estado de nosso corpo
na sala de exibio podamos perceber um frio no estmago, daqueles
que sentimos quando estamos apaixonados, ou quando experimentamos
uma sensao de tristeza ou alegria muito grande para nosso corpo. No
seramos mais os mesmos. Entre ns, brancos, a coisa mais prxima
daquilo talvez houvesse sido vista em filmes de Glauber e a surpresa ao
constatar que efeitos expressivos semelhantes podiam talvez convergir
em tela a partir de experincias de mundo to distintas. Diante e ao
redor de ns estava Tatakox o primeiro de uma srie de incrveis expe18
brancos ainda que estes, passados mais de dez anos daquela sesso,
permaneam quase totalmente surdos diante dos cantos e reivindicaes
daqueles povos. [Bruno Vasconcelos]
> O primeiro a deixar a cena o Alemo. Sai de quadro esgotado, arrasado. Marcelo o segue e, ento, Vincent, segurando a cmera. Estamos
tambm ns arrasados, dilacerados frente vulnerabilidade e resistncia silenciosa do ndio do buraco, que se recusa obstinadamente
ao cerco liderado pelo indigenista Marcelo Santos em busca da imagem
que afinal prova a existncia e garante proteo ao nico sobrevivente de
um grupo desconhecido, vtima de uma chacina que levou ao extermnio
de seu povo e dizimou dois grupos isolados na gleba de Corumbiara, no
sul de Rondnia. A imagem do contato nos coloca frente a dilemas ticos
insolveis, ao mesmo tempo em que dar a ver a luta pela sobrevivncia
levada ao limite, revelando nossa total incapacidade de conviver com os
povos nativos no Brasil, o desrespeito aos seus direitos fundamentais e
vida. Corumbiara, de Vincent Carelli, provocou em mim um deslocamento
fundamental. Experimentei, na primeira visionagem coletiva, ainda na
sala de montagem, e na sesso de abertura do forumdoc.bh, em 2009,
a mesma comoo e sensao de que o mundo afinal tinha chegado ao
fim. De fato, o filme narra o fim do mundo (de muitos mundos), o contato
com o desconhecido (tambm este uma espcie de fim de mundo que
se abre para outro) e uma histria sem fim de violncia e extermnio.
Quase dez anos depois, Corumbiara ainda ressoa em nossas memrias,
e o nascimento de Martrio, filme mais recente de Vincent e que, no por
acaso abre os vinte anos deste festival, nos coloca mais uma vez frente
aos equvocos da nossa histria, revelando as entranhas de um pas arruinado pela explorao predatria da terra, pelo avano do agronegcio e
pelo genocdio em curso dos povos Guarani e Kaiow. Numa construo
arrebatadora, Martrio narra o movimento pacfico de retomada deste povo
pela reconquista de seus territrios sagrados. No entanto, embora diante
do mesmo estado de violncia e extermnio de um povo, j presente em
Corumbiara, Martrio nos chama para a luta e provoca em ns o desejo
de insurgncia. Que tenhamos aprendido, ao longo desses vinte anos, na
resistncia dos filmes que assistimos e que nos formaram, no contato
com os povos indgenas e comunidades tradicionais com as quais trabalhamos nas construo de nossos prprios filmes, a mesma resistncia
(e alegria) desses grupos na luta pela sobrevivncia e pela defesa de
seus territrios. Ainda temos tempo. E no estamos ss. [Ana Carvalho]
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> Plantar uma semente de rvore ou uma muda de grama? Uma nasce e
cresce para o alto, outra se alastra e espalha pelo cho. A rvore, quando
cresce, abriga na sua sombra aqueles que chegam (as futuras geraes),
pois sempre possvel voltar para a raiz. A grama se dispersa, o centro
originrio desaparece na confuso, nos obriga ir adiante, procurar outras
fontes. O ideal seria ter ou saber de um lugar para onde voltar, mas sempre
bom poder se perder. O ideal ter uma crena a qual se apegar, mas muito
mais importante no querer julgar a crena do outro. sempre muito bom
ter algum para nos ensinar, s para no ter que segui-lo. Antes de tudo, no
cinema documentrio necessrio ouvir e dar a palavra. preciso manter
firme a f na fora do cinema documentrio para transformar o mundo, mas,
mais importante, preciso saber contemplar a f do outro ou saber que mesmo
na tristeza ou na penria material h uma alegria e uma dignidade a serem
desveladas. Se dermos razo ideia de Walter Benjamin de que articular
historicamente algo passado no significa reconhec-lo como realmente
foi, ento, podemos fazer da mquina cinematogrfica um dispositivo para
pensar, criar, imaginar, inventar. Formei algumas destas ideias a partir de
1999, quando vi Santo Forte de Eduardo Coutinho no forumdoc. Naquele ano, o
catlogo no formato grande (e na fortuna crtica) sucedeu aos dois pequenos
livretos que fundaram este lugar de encontro de afetos e ideias em torno de
cinema e antropologia. A rvore cresceu e, ao mesmo tempo, se ramificou. 20
anos depois j no temos mais Coutinho e tantos outros que ns seguimos e
que nos seguiram neste caminho. Certamente suas diferentes maneiras de
20
21
SESSO DE ABERTURA
Vincent Carelli
Todo dia, bate porta das nossas conscincias, atravs das redes sociais, a
notcia de um assassinato brutal, de um violento despejo. Do outro lado, na
grande imprensa, nas sentenas judiciais, nos discursos dos lobbistas do agronegcio, vemos a ignorncia ou omisso total da histria, a inverso cnica de
papis se apropriando da palavra resistncia, frente ao suposto terrorismo
dos ndios. Fazer Martrio se tornou uma compulso necessria para mim, que
tenho a vida atada deles; para Ernesto e Tita, que me acompanharam nessa
jornada. Um compromisso moral, tico, poltico, e sobretudo afetivo, com os
povos Guarani Kaiow.
NOTA DO DIRETOR
cine humberto mauro, 17 nov, 19h > cine 104, 18 nov. 19h
> Sesso comentada pelo diretor Vincent Carelli com a presena de lideranas Guarani e Kaiowa: Valdomiro Flores, Daniel Lemes Vasques e Genito Gomes.
The return of the big march for the retaking of the holy territories Guarani Kaiow through the filming of Vincent Carelli who registered the origin of the
movement in the 1980s. Twenty years later, taken by the reports of successive massacres, Carelli looks for the origins of that genocide, a conflict of disproportional powers: a peaceful and persistent protest Guarani Kaiow against the powerful apparatus of the agrobusiness.
O retorno ao princpio da grande marcha de retomada dos territrios sagrados Guarani Kaiow atravs das filmagens de Vincent Carelli, que registrou o
nascedouro do movimento na dcada de 1980. Vinte anos mais tarde, tomado pelos relatos de sucessivos massacres, Carelli busca as origens deste genocdio,
um conflito de foras desproporcionais: a insurgncia pacfica e obstinada dos despossudos Guarani Kaiow frente ao poderoso aparato do agronegcio.
Martrio
23
mostra
queer e a cmera
26
Queer e a cmera
Paulo Maia
Para a Jupira e o Rubinho,
pelos 20 anos de forumdoc,
e um beijo para as travestis.
27
28
3 http://www.forumdoc.org.br/catalogo-forumdoc-bh-2013/
29
30
5 Cf. ensaio de Jota Mombaa (2016), publicado na seo de ensaios do catlogo, para
uma viso crtica e alternativa dessa genealogia queer/Stonewall.
32
7 Cf. o texto de apresentao da mostra direto.doc por Paulo Maia para forumdoc.
bh.2010. http://www.forumdoc.org.br/2010/?page_id=731
33
34
nos faz sentir e pensar sobre esse trgico perodo de descoberta de uma
doena at ento completamente desconhecida.
A dcada de 1990 foi completamente impactada pela epidemia AIDS/
HIV, que se espalhou pelo mundo na dcada anterior. A imagem, bem
como a existncia, de homossexuais, transgneros e pessoas queer (at
essa poca percebemos uma sinonmia entre queer, homossexuais e
transgneros em geral), fora posta em cheque e, como se sabe, uma
grande onda de preconceito e discriminao contra pessoas que no eram
heterossexuais se formou. Logo a comunidade LGBT foi taxada como o
principal grupo de risco9 na contaminao e transmisso do HIV, como
se a causa da doena e, consequentemente, a responsabilidade sobre
ela fosse exclusivamente dos homossexuais.
Roger Hallas afirma que os corpos homossexuais foram expostos
como uma ameaa traumatizante ao pblico em geral, enquanto vidas
queer traumatizadas no eram levadas em conta (apud Yann Beauvais,
2015, p. 68). Esse ataque frontal ao movimento e s pessoas queer/LGBT
foi to pesado que parte do movimento, com grande repercusso na cena
cinematogrfica da poca, levou um tempo para se recompor e traar
estratgias de luta em favor de avanos nas pesquisas e nos tratamentos
pblicos para pessoas infectadas com HIV/AIDS, bem como cavar um
modo de dar visibilidade, reivindicar direitos e combater o preconceito
em relao s pessoas que vivem com HIV/AIDS. Segundo Yann Beauvais,
nas dcadas de 1980 e 1990 na mdia a aids no era visvel (idem, p. 69).
O campo das artes, do cinema, do vdeo e da msica ter a um papel
fundamental, tendo a AIDS influenciado profundamente, como sugere a
exposio Art Aids America do The Bronx Musem of Arts (2016), a arte e
a cultura americanas. Imagino que essa uma tese a ser avaliada em
todo o mundo. No caso do cinema queer, especificamente, o impacto da
AIDS foi dilacerante.
Ruby Rich, uma crtica de cinema norte-americana, no ano de 1992,
aps realizar uma turn no ano anterior em alguns dos principais festivais de cinema do mundo Festival dos Festivais de Toronto (Canad),10
Festival de Cinema Gay e Lsbico de Amsterd (Holanda), Sundance em
Park City, Utah (EUA), Festival de Cinema Gay e Lsbico de So Francisco
(EUA), entre outros , publica um ensaio, j citado anteriormente, que
entrar para a histria do cinema ao caracterizar um fenmeno nomeado
35
por ela de New Queer Cinema. Tal fenmeno teria se iniciado no outono de
1991 no Festival de Toronto, no Canad. Segundo Rich, naquela ocasio,
repentinamente havia um conjunto de filmes fazendo algo novo, renegociando subjetividades, anexando gneros inteiros, revisando histrias
em suas imagens. Ao longo de todo inverno, da primavera e do vero, a
mensagem foi alta e clara: queer sexy. (1992, p.18)
No artigo New Queer Cinema, Rich apresenta uma bela sntese a
respeito dessa nova voga do cinema e do vdeo que se condensa no incio
dos anos 1990. Segundo a autora,
claro que os novos filmes e vdeos queer no so todos um s e
tampouco compartilham um nico vocabulrio esttico, estratgia
ou preocupao. Ainda assim, eles so unidos por um estilo comum:
chamaremos de HomoPomo. H traos em todos esses filmes de
apropriao, pastiche e de ironia, assim como uma reelaborao da
histria que leva sempre em considerao um construtivismo social.
Definitivamente rompendo com abordagens humanistas antigas e
com filmes e fitas que acompanham polticas de identidade, essas
obras so irreverentes, enrgicas, alternadamente minimalistas e
excessivas. Acima de tudo, elas so cheias de prazer. Elas esto aqui,
elas so queer, acostume seus quadris a elas. (1992, p.20)
Dentre a dezenas diretores e diretoras abarcados por Rich sob a
alcunha de New Queer Cinema, apresentaremos, na mostra/seminrio
Queer e a cmera, um conjunto de obras realizadas nesse perodo, um
arco que vai de Sadie Benning a Dereck Jarman, passando por Bruce
LaBruce, Marlon Riggs, Jennie Livingston e o pessoal do Queer Nation.
Jollies (1990), de Sadie Benning, o curta-metragem mais experimental dessa leva. Realizado com uma cmera Pixelvision da marca de
brinquedos Fisher-Price e com um custo bem reduzido, Jollies um dos
diversos vdeos realizados por Benning aos dezoito anos de idade que tem
como um dos traos a experimentao de sua sexualidade lsbica e da
linguagem cinematogrfica por intermdio de uma cmera de brinquedo.
Nas palavras de Rich, Benning fez um Retrato da Artista Jovem Sapato
como nunca antes havamos visto. (idem, p.28)
Um dos aspectos latentes dessa filmografia queer da passagem dos
anos 1980 para os 1990 diz respeito questo racial, s especificidades
e diferenas internas da queerness negra ou negritude queer. Louise
Wallenberg sugere inclusive o nome de New Queer Cinema Negro para
36
37
11 Cf. na seo de ensaios deste catlogo o Manifesto QUEER NATION em sua verso
completa.
38
12 Cf. o texto Pontes e cercas entre Teoria Queer e movimento LGBT de Anna Paula
Vencato (2016) na seo de ensaios deste catlogo. Texto preparado para a mesaredonda Teoria Queer Hoje!, organizada pelo forumdoc.ufmg em maio de 2016 na
Faculdade de Educao (UFMG). A mesa contou com a participao de Paulo Henrique
Nogueira (FaE-UFMG) e a mediao de Paulo Maia (FaE-UFMG).
binarismo gay/htero em favor de formas expressivas, no necessariamente identitrias, mas fludas e contraditrias, no raro fora da norma.
O ingls Derek Jarman talvez seja um dos nomes de maior destaque
do cinema queer britnico e mundial. Tendo se aproximado das primeiras
reunies do Gay Liberation Front em 1971 em Londres, Derek teria se
afastado definitivamente das associaes polticas para assumir o vasto
campo das artes como sua zona de expresso. No caso do cinema, experimentou diferentes suportes, primeiro em super 8 e depois em outros
formatos, inclusive em 35 mm. Blue (1993) seu ltimo filme e para
muitos o mais radical. Jarman, doente e j no estgio final da AIDS, com
srios problemas de perda de viso, escreve um dos textos mais belos,
impactantes e eloquentes do gnero ensastico do cinema sob e sobre
o impacto da AIDS em sua vida e na de seus amigos, mortos em virtude
de complicaes decorrentes da AIDS. David, Howard, Graham, Terry,
Paul, so repetidamente lembrados no texto, que avisa que o amor
vida que dura eternamente. As memrias de meu corao voltam para
vocs. Outra caracterstica radical do filme est em sua forma; o filme
apresentado em um nico bloco de cor azul (em referncia ao artista
Yves Klein). Jarman l o texto repleto de citaes e intercalado com
sons, barulhos, msicas, a voz de uma mulher que tambm recita um
texto, todos de forma alternada, compondo a banda sonora. O resultado
arrebatador. O azul protege o branco da inocncia. O azul brilha atrs
do preto. Blue a escurido que retorna visvel, lacra Jarman.
Tendo apresentado parte da filmografia do chamado New Queer
Cinema, podemos avanar no que poderamos chamar de inflexes, desdobramentos e outras genealogias do queer para alm da Amrica do Norte
e da Inglaterra. hora de continuar nossa narrativa queer por meio de
outros territrios e filmes realizados na Amrica Latina.
Logo que iniciamos nossa pesquisa curatorial para a mostra Queer
e a cmera, nos perguntvamos se no Brasil e na Amrica Latina havia
ocorrido, nesse mesmo perodo do New Queer Cinema, desdobramentos
que poderiam estar articulados, ainda que de forma independente,
por questes correlatas quelas delineadas pelo estilo ou esttica
Homo Pomo.
Preldio de uma morte anunciada (1991), de Rafael Frana, foi a obra
brasileira que de imediato nos conectou a essa filmografia em lngua
inglesa, antecipando fortemente alguns aspectos presentes na obra derradeira de Jarman. Trata-se de um filme tambm derradeiro na carreira
de um realizador que est prestes a morrer, assim como muitos de seus
amigos, em decorrncia do HIV/AIDS. Com as cabeas cortadas e de mos
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que apresentamos nesta mostra, Joo um desses caras que, diante das
cmeras, torna indistinguvel o que genuno e o que pura performance.
Los Leones, longa de estreia do mineiro Andr Lage, rodado em uma
ilha argentina, desenvolve-se dentro e no entorno da casa de um casal,
a travesti Mariana e seu companheiro Ral Francisco, ambos soropositivos, assim como boa parte do crculo de amigos que frequenta a casa.
Com enquadramentos rigorosos e um tempo (timing) que acompanha a
cena de suas personagens, ao invs de imp-la, o filme impressiona pelo
retrato apaixonante do modo como o casal leva a vida, a despeito de todas
as dificuldades que Mariana encontra com os medicamentos retrovirais.
Outro filme profundamente impactado pelo fato de suas personagens
serem soropositivas.
Trans*lucidx (2014), de Miro Spinelli, e Ingrid (2016), de Maick Hannder,
apresentam-se como ensaios audiovisuais que tm o corpo como campo
de batalha. O primeiro tensiona a linguagem por meio de imagens autodocumentais publicadas online por indivduos trans*, e o segundo aproximase aos poucos e com cuidado do corpo tensionado de Ingrid, uma mulher
nascida aos 23 anos de idade, aps sua primeira cirurgia de prtese de
silicone, e que, em suas palavras, lutou contra a natureza, contra o
prprio corpo. Corpos que interessam (Bodies that matter).
Virgindade (2015), de Chico Lacerda, outro filme da mostra centrado
na figura de um narrador, sobreposta a diferentes planos da cidade de
Recife, tendo como pano de fundo as tramas subjetivas de uma pessoa
que descobre ao mesmo tempo, e de forma entrelaada, sua sexualidade
e os espaos da cidade, uma espcie de cartografia iniciatria ou ritual
de passagem. Como sintetiza Eduardo de Jesus em ensaio escrito especialmente para o forumdoc sobre o filme, percebida agora no mais na
fora do espetculo ou da midiatizao, tampouco na forma absoluta de
seu espao construdo, a cidade atravessa e atravessada pelo desejo
entre os corpos e os espaos, fazendo ecoar na imagem a intensidade
da experincia.
O conjunto final de filmes que compem a mostra/seminrio Queer
e a cmera costuma circular mais pelos circuitos das artes do que em
festivais e salas de cinema a conexo com o campo das artes talvez
a caracterstica que os une.
Srgio e Simone (2014), de Virgnia de Medeiros, participou da 31
Bienal de So Paulo em 2014 e foi apresentado na forma de trptico. O
filme narra em telas consecutivas o trnsito da travesti Simone, que no
filme bebe seus orixs em uma fonte de gua pblica, para Srgio,
um pastor evanglico da periferia de Salvador, aps uma experincia de
41
14 http://brasileiros.com.br/2016/10/o-que-ha-de-queer-na-incerteza/ (acessado em
outubro de 2016)
15 Heaven faz parte da 32a Bienal de So Paulo Incerteza Viva (2016).
42
17 http://books.scielo.org/id/yn/pdf/mott-9788523208905-08.pdf
18 Cf. ensaio de mesmo nome de Jota Mombaa neste catlogo.
43
44
por aceitarem nosso convite, por cederem seus filmes e por terem escrito
ou liberado a publicao de ensaios especiais para esta edio de 20 anos.
Agradeo a Ana Martins Marques pela reviso cuidadosa deste texto. Sem
a equipe da Filmes de Quintal nada disso seria possvel!
Referncias
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videoarte no combate AIDS. In: New Queer Cinema Cinema, Sexualidade
e Poltica. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015.
Bettim, Lucas. Old Queer Cinema. In: New Queer Cinema Cinema,
Sexualidade e Poltica. Murari, Lucas; Nagime, Mateus (orgs.), 2015.
Caixeta, Ruben. O inimigo e a cmera. In: Catlogo forumdoc.bh.2013. Belo
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Queer Lisboa Festival Internacional de Cinema Queer, Antnio Fernando
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Maia, Carla e Mesquita, Cludia. A mulher e a cmera. In: Catlogo forumdoc.
bh.2012. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2012. Disponvel em: <http://
www.forumdoc.org.br/?reviews=catalogo-forumdoc-bh-2012>. Acesso
em: 29/10/2016.
Maia, Paulo. O animal e a cmera. In: Catlogo forumdoc.bh.2011. Belo
Horizonte: Filmes de Quintal, 2011. Disponvel em: <http://www.forumdoc.
org.br/2011/?page_id=13>. Acesso em: 29/10/2016.
Martins, Marcos. Trnsitos, (des)aprendizados e cinema: uma conversa
com Camila Jos Donoso, diretora de Naomi Campbel. In: Catlogo
forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.
45
46
The film brings together the best moments of a long interview with Aaron
Payne, better known as Jason Holliday, a peculiar figure of the 60s in
the United States. Between cigarettes and drinks, Holliday tells some
facts of his life and reflects on what it means to be a black and gay man
in that country, at that time.
cine humberto mauro, 20 nov, 17h > cine 104, 24 nov. 20h40
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Sadie Benning apresenta uma cronologia de seus beijos e paixes, delineando o desenvolvimento de sua sexualidade nascente. Para tanto,
ela se dirige cmera com um ar de seduo e romance, e oferece ao
espectador um sentimento de sua ansiedade e de seu prazer particular
ao tomar conscincia de sua identidade lsbica.
This Super-8 home movie explores the radical advances made by PWA (People
With AIDS) in the developing of their own healthcare. DHPG Mon Amour focuses
precisely on the minutiae of David Conover and Joe Walshs daily life, showing
the struggle for self-determination and control over ones body and resonating
on an intimate and more broadly political level.
Jollies
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cine humberto mauro, 18 nov, 21h > cine 104, 24 nov. 20h40
Paris is Burning presents the scene of 1980s New York Ballrooms created
by African-Latin LGBT populations. The film focuses on some remarkable
characters of a still alive scene by exploring aspects and reflections of the
context. Its considered a milestone in the visibility of US LGBT populations.
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Completed just before his death, Rafael Franas last work is one of the
rare moments when his video production converges with documentary.
As La Traviata plays in a dramatic interpretation by Brazilian singer
Bidu Sayao, the artists body touches his boyfriends, Geraldo Rivello.
Meanwhile, the names of friends who died of AIDS appear on the screen.
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With a sharp eye to the urban context of Brazilian cities the film contrasts
two identities of the same person: Simone, the travesti who worships orixs
in a public fountain of Salvador and Sergio, the evangelical preacher whom
Simone turns herself into, after a near death experience.
In his final and most daring cinematic statement, Jarman the romantic
meets Jarman the iconoclast in a lush soundscape pulsing against a purely
blue screen. Laying bare his physical and spiritual state in a narration
about his life, his struggle with AIDS, and his encroaching blindness, Blue
is by turns poignant, amusing, poetic and philosophical.
Sergio e Simone
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Yermn uma transsexual de 30 e poucos anos que trabalha como tarloga e vive na emblemtica populao de La Victoria, em Santiago. Na
luta para financiar sua operao de mudana de sexo, ela decide tentar
a sorte em um programa de TV sobre cirurgias plsticas, onde conhece
uma imigrante enigmtica que deseja fazer uma cirurgia para ficar igual
a Naomi Campbell.
After January 1, 2031 the World Health Organization will remove transsexualism ICD 10 F 64 from its list of diseases.
Naomi Campbel
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Uma dinastia recm inaugurada decide prestar homenagem a uma escultura esquecida h dois sculos atrs.
La visin de los vencidos > The defeated > A viso dos derrotados
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Bolvia, 2013,cor, 13
direo director Carlos Motta
fotografia cinematography Carlos Motta
montagem editing Carlos Motta
produo production Carlos Motta
contato contact [email protected]
Naufragios
Nefandus
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Castanha
Joo um ator de 52 anos que vive com sua me Celina. Ele se divide entre
o trabalho noturno como transformista em bares gays e a atuao em
peas de teatro ou filmes. Dia a dia, Joo confunde de maneira crescente
a realidade em que vive com a fico que interpreta.
John is a 52-year-old actor who lives with his mother Celina. He spends
his time between working at night as a drag performer in gay bars and
acting in plays or films. Day by day, John increasingly confuses reality
with the fiction that he plays.
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The film Deseos exposes the ways in which medicine, law, religion, and
cultural tradition shaped dominant discourses on gendered and sexual
body. There are two parallel stories, that of Martina, who lived in Colombia
during the late colonial period and the fictionalized life of Nour, who lived
in Beirut during the late Ottoman Empire.
Trans*lucidx
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Se pudesse, eu voltaria a ser uma criana s pra poder fazer mais do que
eu j fiz quando era pequena!
If I could Id become a child once again so I could do more than I did when
I was a little girl!
Ingrid
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HEAVEN
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mostra
contempornea BRASILEIRA
Carla Italiano
Julia Fagioli
Roberto Cotta
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relao com o modo ensastico de escrita. Comeamos com um longussimo plano sequncia por entre os cmodos de uma casa: cmera na mo
(feminina), cada passo dado sentido nas bordas do quadro, toda sorte
de objeto encontrado nesse caminhar. Se primeira vista a casa parece
despovoada, trata-se do exato oposto; carrega consigo pessoas e tempos
passados, fiapos de rememorao, entidades. Vemos um diploma de
cultos afro-brasileiros, um cocar, uma figura enigmtica a cruzar a sala,
enquanto fragmentos de som so dispostos em camada na banda sonora.
O sincretismo dessas referncias pode gerar certa desconfiana; afinal,
que vida teria lugar para tantos, e to diversos, caminhos? Eis que somos
apresentados a Abigal Lopes, vista primeiro no material de arquivo das
expedies de primeiro contato com os Xavante da Serra do Roncador (GO).
Era conhecida como dona das panelas pelos Xavante, alm de ser filha
de Obalua no Candombl, dentre os muitos detalhes que nos informa a
voz over de uma das realizadoras na narrao, ao mesmo tempo sbria
e afetiva. O curta mobiliza com destreza seus materiais, reservando para
o final as imagens atuais de Abigail. Com isso, ele cria para si um ritmo
prprio, suave e insistente como o passar dos anos, no retrato de uma
personagem to fascinante e rara quanto as histrias que a acompanham.
Os sonhos se dilaceram nos versos de Cantares, cano que mistura
anarquicamente trechos da obra potica de Antonio Machado com estrofes
compostas pelo msico espanhol Joan Manuel Serrat em sua homenagem. A msica atravessa feito vendaval as imagens de arquivo lapidadas
por Carlos Adriano em Sem Ttulo #3: E Para que Poetas em Tempo de
Pobreza? Golpe a golpe, verso a verso, somente atravs de sua prpria
expresso que o artista reagir s intempries de um mundo corrodo
pelas mais variadas formas de dominao. E o artista se desdobra em
muitos: Mallarm, Pasolini, Huillet, Straub, Pound, Cocteau, Santos
Dumont, Bernardo Vorobow. Desbravando caminhos espessos, a ideia
de permanncia daquilo que se ama permeia o fractal de registros esquadrinhados pelo filme. A tessitura de sons e imagens que peregrinam
camadas impulsiona um gesto que confronta a passagem do tempo e a
deteriorao do processo de criao. Aqui jaz uma iminente vontade de
lidar com um mundo no qual a poesia se entranha em cada experincia
de vida. Qualquer cerceamento desse gesto criativo, contudo, se perder
no mar de sonhos que a imaginao pode proporcionar.
Em Runa, de Gabraz Sanna, a criao bloqueada pelos imprevistos
do espao. Maria Bethnia tenta declamar um poema de Manoel de Barros,
mas os rudos implodem a paisagem sonora prevista, cortando o fluxo
de encenao e a nitidez da captura de sua voz. No entanto, um novo
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Abigail
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Since 2013, Battle of Matrix takes place at the main church square of So
Bernardo do Campo, So Paulo State. Every Tuesday MCs battle and
one of them emerges as the winner of the night. On March the 15th 2016,
microphones were opened only for girls, celebrating the Womens Month.
Av Marangatu
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Cinema Novo um ensaio potico que investiga um dos principais movimentos cinematogrficos latino-americanos, atravs do pensamento e
fragmentos de filmes dos seus principais autores. O filme mergulha na
aventura da criao de uma gerao de cineastas que inventou uma nova
forma de fazer cinema no Brasil que tinha como desejo um cinema que
tomasse as ruas e fosse ao encontro do povo brasileiro.
Construda dentro de uma caixa preta, uma sala de estar recebe homens
variados e coloca-os diante do espelho social. O que nos dizem da imagem
feminina que se apresenta? E ns? Onde estamos? Dentro, fora ou no
limite da caixa?
Cinema Novo is a poetic essay that investigates one of the major Latin
American film movements through its main authors and film fragments.
The documentary delves into the creation of a filmmakers generation who
invented a new way of making films in Brazil that came from the desire
to have a cinema that would take the streets and meet Brazilian people.
Built inside a black box, a living room welcomes various men and places
them before a social mirror. What would they say about the female images
that appear? What about us? Where are we? Inside, outside, or at the
boundaries of the box?
Cinema Novo
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The barber shops of slums and suburbs are the places where the new
aesthetics of the outskirts rises and expands. Meeting point for young
people, barber shops have become spaces of exchange within youth.
Fix up, look sharp enters this universe and, among cuts, razor blades
and snips, shows whats in a barbers minds as well as in their clients.
The film pictures the daily life of a migrant family. Almirenio dreams
on taking his wife and children to their homeland, Bahia, to once again
meet his aunt.
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A sensitive look at the racism experienced daily by black women. The discovery of an ancient force that emerges from their curly hair transcending
whitening. A subjective exercise of self-representation and empowerment.
KBELA
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The map doesnt walk, it doesnt fly, or run. It doesnt feel discomfort,
or has an opinion. For the map there is no government, there is nocoup
dtat, there is no revolution. Its never nighttime in the map.
Para Onde Foram as Andorinhas? > Where did the swallows go?
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Algumas consideraes (im)provveis e (im)ponderveis sobre a (im)pertinncia e o (no)lugar da poesia em nossos tempos. Um ensaio potico? Um
manifesto potico? Uma (in)apropriao potica? Da srie Apontamentos
para uma AutoCineBiografia (em Regresso).
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5 VHS tapes found at the UFGs (State University of Gois) old School
of Communication trigger the desire for this film. Years later, loaded
with more photographic and audiovisual images, we went to an was
people meeting in order to take these images to be seen, and discuss the
possibility of a film being made. More images emerge from this meeting.
In the Brazilian desert, northeast backlands, a big band cheer up debutante parties. Meanwhile, the region is transformed by machines that
change their arid landscape while animals sing and dance to the sound
of American standards... Start spreading the news...
Taego wa
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mostra
contempornea internacional
(A)mostra internacional
Carolina Canguu
Pedro Veras
Renata Otto
Frederico Sabino
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Terra ou, simplesmente, terranos (povos originrios, animais, vegetais, minerais, espritos diversos) e aquele do estado-mercado-nao
erigido a partir da assimetria entre humanos e no-humanos. Essa coliso
tem provocado a inevitvel extino da diversidade tnico-biolgica em
prol de uma realidade antropocnica profundamente alterada pela
interferncia humana.
A maior parte dos filmes que nos chegaram denunciam, de uma
forma ou de outra, essa decadncia ambiental, social, corporal e espiritual na qual parece se afundar, vertiginosamente, nossa vaidosa era
da supremacia tcnico-cientfica. Como falar em progresso diante das
milhares de crianas abortadas, nascidas prematuramente, deformadas,
alrgicas, com problemas cardacos ou respiratrios, paralisia cerebral,
leucemia, cncer, entre muitos outros males causados pela ingesto das
guas e o consumo dos peixes contaminados pelos produtos txicos que,
durante quase um sculo, navios norte-americanos despejaram, sem
nenhum escrpulo, nos rios e mares prximos a suas antigas bases militares situadas em portos da Filipinas? O que dizer, ainda, da devastao
socioambiental haitiana provocada, no pelos terremotos e furaces, mas
pela poltica protecionista norte-americana, cuja concorrncia agrcola
desleal levou aquele que foi o pas mais rico da Amrica Latina at o
sculo XIX completa bancarrota, situao tornada calamitosa aps o
surto de clera transmitido pelos soldados nepaleses da ONU, ali levados
para uma suposta ajuda humanitria?
Esse cenrio catastrfico documentado, respectivamente, pelo
seminal Wake (Subic) de John Gianvito, e pelo sbrio mas certeiro Kombit
de Anbal Garisto, chega s vias de fato com a guerra sria retratada de
modo assombrosamente intimista em The Cow Farm, de Ali Sheikh Khudr.
Nesse filme, realizado em forma de dirio familiar, vemos a histria de
Hasan, um jovem campesino que queria apenas cuidar das suas vacas, mas
que, por presso social, se alinhou s foras rebeldes srias, sucumbindo
no campo de batalha, destino semelhante a toda uma gerao forada a
escolher entre o exlio e a morte.
Esses filmes mostram, portanto, guerras atuais transcorridas em
diferentes partes do globo no exato instante em que projetamos suas
imagens. Eles nos fazem ver uma coliso entre mundos provocada pelo
embate terranos versus estado-mercado-nao ou, simplesmente, o
mundo em modo de guerra constante. Essa mesma guerra agride, ainda,
famlias de origem tnica Tatar, que foram foradas a deixar suas terras
seculares na Crimeia, Ucrnia, como nos revela When Will This Wind Stop, de
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moderna. Vendem seus corpos para outros homens (quase todos velhos),
bebem suas cervejas, consomem suas drogas, fazem planos de viajar pela
Bulgria, mas sempre voltam a danar at altas horas em uma boate com
espelhos em todas as paredes. Nesse longa-metragem, situado no limite
entre a fico e o documentrio, os personagens provocam um curtocircuito nas fronteiras de gnero, assim como nas fronteiras nacionais.
Em uma Viena xenfoba e vigilante, restaram-lhes apenas seus prprios
corpos msculos, mestios, rijos, desejveis e disponveis ao preo de
trinta ou quarenta euros a hora. Eles sabem satisfazer seus clientes. So
bons profissionais. Por vezes, recebem mais de mil euros. No sempre,
mas quando acontece, durante toda a noite, danam loucamente em meio
ao neon rosa-choque de um inferninho vienense frequentado apenas por
jovens imigrantes blgaros ilegais que, no se sabe at quando, resistem
falncia do mundo.
Outro filme que nos convida a danar como forma de resistncia o
iraniano I Dance with God, de Hooshang Mirzaee. Ao longo de 39 minutos,
um casal dana, no com Deus, como sugere o ttulo, mas com fantasmas
de um tempo que no volta nunca mais, embora continue a assombrar
dia aps dia. Eles danam para espantar o luto causado pela morte do
filho e para adiar o desfecho das suas prprias vidas.
La balada del Oppenheimer Park, de Juan Manuel Seplveda, tambm
coloca a dana no centro da resistncia contra esses tempos catastrficos.
Seus danarinos embriagados so indgenas de diferentes etnias que
vivem confinados num parque de Vancouver. Ali, sob canteiros floridos,
oculta-se um cemitrio onde jazem os restos fnebres dos seus ancestrais. A memria da opresso e do massacre ainda povoa (passaram-se
anos desde o extermnio) os discursos (dos sobreviventes). Descobrimos
como esses ltimos remanescentes de uma populao autctone numerosa jamais abandonaram o esprito guerreiro expresso no modo como
exaltam suas razes tnicas, como reconhecem-se ndios. Assim, mais
do que registrar a catstrofe, La balada del Oppenheimer Park se afirma
como uma ode resistncia. De fato, constantemente vencidos, os indgenas jamais foram vencidos! Apesar de amargarem uma vida de penria,
permanecem irreverentes. De forma incansvel, reivindicam seus lugares
de origem, embora estes tenham se tornado territrios fantasmas que
existem apenas na memria de ndios quase sempre bbados.
Mesmo porque esses resistentes sabem que a terra sempre foi a morada
de fantasmas antiqussimos, como nos revela o curta-metragem Curupira,
de Pedro F. Neto. Durante um passeio noturno realizado sobre uma canoa
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Ama-San
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Os marinheiros so como terroristas, eles chegam aos portos e arremessam uma bomba chamada amor. E sabe o que acontece? Quando
vo embora, a bomba explode e eles nunca mais retornam, destruindo
os coraes daquelas mulheres. Quo estranho amar algum que
nos paga...
Sailors are like terrorists. They arrive in ports with a bomb called love and
throw it. And do you know what happens? The bomb explodes when they
go away and they never come back, destroying the hearts of all the girls
in the neighborhood. How strange... To love somebody who pays you...
Curupira
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Kombit
Argentina, 2015, cor, 63
direo director Anibal Garisto
fotografia cinematography Federico Luaces
montagem editing Anibal Garisto, Carlos Galn
som sound Carlos Galn
produo production Anibal Garisto, Carlos Galn, Carolina Fernandez,
Jorge Cols, Ruka Cine, Salamanca Cine
contato contact [email protected]
O curdo Ali Badri, noivo h apenas trs meses, ficou cego em meio a
uma caada de bodes. Apesar de estar sem seus olhos, o seu desejo por
independncia o fez aprender a costurar. Somente aps prtica constante
deste ofcio, Ali se tornou alfaiate. I dance with god um exemplo potente
da batalha pela sobrevivncia e da determinao do esprito humano.
Ali Badri ,old Kurdish man ,had been blind during hunting . When he was
three month groom, he lost his eyes in the middle of hunting goats . For
being independent , he learned sewing by more and more practice . How
would you work as tailor if you are completely blind? I Dance with God is
a powerful example of the struggle to survive and determination of the
human spirit despite the difficulties they have.
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The Ballad of Oppenheimer Park is a film that celebrates the every day life
of a group of First Nations, exiles from the Canadian reserves, who, over
a fleeting summer, occupy a municipal park in Vancouver. Through direct
participation in the filmmaking process, the day to day becomes a ritualistic
space in the struggle to overcome historical and ongoing hardships.
In 2010, this film started out as an ordinary documentary about the makers
family and the city of Salamya where they live. However, it immediately
fixates on its first subject: Hassan, the makers farmer cousin with a shed
full of cows he is very fond of. When Ali Sheikh Khudr returned two years
later, the war proved to have inflicted deep wounds.
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When protest fails, whats left? A hypnotic and unsettling blend of archival
footage and music, Then Then Then offers a stark glimpse into the moral
struggles of a generation coming to terms with its own inability to affect
social change. This meditation on civil disobedience is a timely reminder
of the lengths some have gone to in order to have their voices heard.
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Forado ao exlio e condenado a 20 anos na priso, um lder indgena enfrenta grandes empresas que esto arruinando a Amaznia.
Recusando-se a se render, ele continua sua luta, lanando luz sobre
as conflitantes vises que moldam o destino da Amaznia e o futuro do
clima do mundo.
An indigenous leader forced into exile and facing 20 years in prison for
resisting the environmental ruin of Amazonian lands by big business.
Refusing to surrender he continues his quest, shedding light on conflicting
visions shaping the fate of the Amazon and the climate future of our world.
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Kiedy ten wiatr ustanie | When Will this Wind Stop >
Quando Esse Vento Vai Parar
The film tells four stories of one Crimean Tatar family. Their story concentrates the experience of a larger community living under occupation. The
main motive of the film is not the occupation itself, but its consequences,
how it affects the lives of those who want to live, to love and to have a family.
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sesses especiais
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Em 2014, mestres quilombolas e indgenas estiveram na UFMG para compartilhar seus conhecimentos, inaugurando, em parceria com o INCTI/UnB, o
Encontro de Saberes na universidade. O filme recupera os registros do curso
ministrado pelos mestres ao longo de um semestre, para mostrar como
a presena de outros corpos, lnguas e cosmologias capaz de alterar a
cena sensvel da sala de aula, na vizinhana com a natureza e os espritos.
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lanamentoS
Movie session with Jardim Nova Bahia (1971) and Tarum (1975) with
the presence of Gustavo Raulino.
Sesso dos filmes Jardim Nova Bahia (1971) e Tarum (1975), com a
presena de Gustavo Raulino.
[Aloysio Raulino]
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Seminrio
Queer e a cmera
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Minicurrculos
Ana Luiza Santos > Bacharel em Comunicao Socia (UFMG, 2000),
Mestrado Comunicao Social Sociabilidade Contempornea (UFMG, 2003),
Ps-Graduao em Performance (Fac Angel Vianna RJ/Casa Paola Rettore
BH, 2013), atua como artista visual e curadora, com destaque para a linguagem
da performance. Trabalha como professora, pesquisadora e consultora em
cursos e projetos artsticos nas reas de figurino, audiovisual, design de moda
e patrimnio.
Andr Lage > Possui Ps-doutorado em Artes Cnicas pela USP, psdoutorado em Literatura Comparada pela UFMG e Doutorado em Literatura
Francesa pela Universit Paris VIII (Antonin Artaud: Reflxions propos
du thtre, 1998), Graduao em Letras pela UFMG. Desenvolve pesquisas
sobre as Poticas de Antonin Artaud, tem experincia em Teorias e Prticas
contemporneas do teatro e da performance, nos processos criativos
hbridos e na relao entre a literatura e as outras artes. Los Leones
(2016) seu longa de estria.
Davidson Maurity > Mestrando do Programa de Estudos Literrios Poslit, da Faculdade de Letras da UFMG. Formou-se bacharel em Estudos
Literrios tambm pela FALE. ator e um dos fundadores do coletivo
TODA DESEO, de Belo Horizonte.
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TODA DESEO > um coletivo de artistas mineiros, envolvidos com questes relacionadas s pessoas Trans. Transgressoras e encorajadoras,
as aes desse coletivo visam garantir a liberdade de expresso e da
participao dos sujeitos trans na vida social e cultural da cidade de
Belo Horizonte (MG). So atos de resistncia, incluso e de luta contra o
preconceito. So 3 anos de existncia do coletivo e 5 trabalhos no repertrio: No soy un Maricn: o Espetculo-Festa, Campeonato Interdrag de
Gaymada, Performance: Corpos que no importam, Nossa Senhora [do
Horto] e Ser: Experimento para tempos sombrios.
Igor Leal > Ator, performer e pesquisador. Mestre em Artes Cnicas pela
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG
(2014) Possui graduao em Psicologia pela Universidade Federal de
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Minas Gerais (2011). ator formado pelo Centro de Formao Artstica Cefar, Palcio das Artes. Artista/coordenador do Coletivo de interveno
urbana Paisagens Poticas Co-realizador da Transresidncia experimento queer, parceria com Guilherme Morais - This is Not , Ana Luisa
Santos e Fernanda Branco Polse. Atualmente realiza o trabalho No conte
comigo para proliferar mentiras com a direo do artista Alexandre de
Sena. idealizador do Beijo no seu preconceito e da ocupao Afazeres
Queer 2015.
Luiz Roque > Bacharel em artes visuais pela UFRGS. Talent Campus
Buenos Aires, 2005, e Talent Campus Berlim, 2007, sua obra tem sido
exibida em mostras e exposies como Constructions Views, New Museum,
Nova York (2010); Da prxima vez eu fazia tudo diferente, Piv (Copan),
So Paulo (2012); e Video Links Brazil, Tate Modern, Londres (2007). A
apropriao esttica da fico cientfica, a ndole da paisagem e a temporalidade da imagem esto entre os temas que mobilizam o artista. Trabalha
com filme, vdeo e fotografia.
Pri Bertucci > Artista social, identifica-se como gnero queer, dirige
documentrios, fotgrafo, diretor de arte e fundadorx do [SSEX BBOX],
projeto de justia social que prope a incluso racial da populao LGBTQIA,
com sede em So Francisco. responsvel pela idealizao, curadoria
e produo da 2 Conferncia Internacional [SSEX BBOX] & MIX BRASIL.
Priscilla trabalhou no cinema em filmes nacionais e internacionais, e
fundador da Kumba Films que atualmente est produzindo documentrios
ao redor do mundo.
Vitor Grunvald > Graduado em Cincias Sociais pela PUC-RJ (2005), com
perodo de intercmbio em Antropologia na Universidad Autonoma de
Madrid (2003). mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ
(2009) e doutor em Antropologia Social pela USP (2015) com perodo de
pesquisa no Departamento de Histria de Arte e Estudos da Comunicao
na McGill University, Canad. Cineasta e videoartista, tem experincia e
interesse nos campos da Antropologia Visual, Antropologia da Performance,
da Arte, do Corpo, do Gnero e da Sexualidade.
120
ensaios
Martrio:
1. Martrio um ttulo de filme que, j de entrada, adverte o espectador para o desconforto: do comeo ao fim. No d pra se alegrar,
apenas se indignar. No d para no ter lado, ou fingir que apesar
de tudo somos todos humanos e iguais, ns, os brancos e eles, os
ndios. No, os ndios, situados no pas chamado Brasil, mais particularmente no Mato Grosso do Sul, sofrem todo tipo de preconceito,
violncia fsica e perseguio implacvel pelos donos do poder e da
terra. No, os ndios no esto situados num tempo passado e num
espao longnquo, por exemplo, naquele da chegada dos europeus
no continente americano ou da Palestina, eles resistem e lutam para
sobreviver hoje e na nossa faixa de Gaza. O povo Guarani Kaiow
a prova de que o Brasil no um pas pacfico e que no respeita
as diferenas e os direitos dos ndios a ocuparem sua terra, para
sobreviver fsica e culturalmente, como, alis, diz a prpria Lei maior
do pas. Ao contrrio, sempre houve uma estratgia deliberada pelo
Estado, desde o tempo do imprio, passando pela nova repblica e
pela ditadura militar ps-64, at os governos mais recentes, para
civilizar o ndio e transform-lo num cidado brasileiro pobre, trabalhador nas fazendas ou no meio urbano, sem terra, ou, no melhor
dos mundos, portador de uma carteira de identidade, de um ttulo
de eleitor, de um subemprego ou, qui, de uma bolsa famlia e de
uma cesta bsica.1 Ver Martrio, para mim, confirma que impossvel
1 Como disse Viveiros de Castro, em sua aula pblica durante o ato Abril Indgena,
Cinelndia, Rio de Janeiro 20/04/2016: Forados a se descobrirem ndios, os ndios
brasileiros descobriram que haviam sido unificados na generalidade por um poder
transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados, homogeneizados,
123
2. No d pra no ter lado. Ainda assim, Martrio no um filme panfletrio ou s militante. um filme de investigao, que procura se indagar
sobre as origens da violncia contra os Guarani Kaiow e sua resistncia
pacfica por saberem que ocupam o lado frgil e minoritrio no embate
contra um sistema dominado pelas foras militares, pela mdia hegemnica, pelos juzes, pelos polticos locais e nacionais, pelos latifundirios
e ruralistas. Martrio d tempo ao espectador de criar uma conscincia
crtica, se posicionar sem aderir incondicionalmente. Pode ser que ele
pense que o passado tenha sido pior para os ndios do que o presente, ou
o contrrio! Pode ser que ele tente achar um governo local ou nacional
menos pior para os ndios. Que Rondon, fundador do Servio de Proteo
aos ndios, em 1910, como positivista, tenha tentado retirar das misses
religiosas a misso de catequizar e civilizar os ndios, transferindo-a
para as mos do Estado. Que hoje h uma educao diferenciada para
os ndios garantida pela Constituio de 1988. Que, exatamente, depois
de 1988, o Estado estaria obrigado a respeitar e proteger as terras e as
culturas indgenas. Que, no governo anterior, tentou-se evitar o conflito
dos ndios contra os fazendeiros e, por isso, teria sido suspensa a demarcao das terras indgenas, em favor da concertao e de um dilogo entre
as partes, ou, ainda, que o governo estaria sendo realista ao retomar o
projeto militar de construo da hidreltrica de Belo Monte, j que o pas
no podia prescindir do desenvolvimento em favor de alguns grupos
minoritrios. Ou seja, Martrio no quer ser um filme sem partido, mas
sabe que a realidade muito mais confusa do que se possa imaginar. Que
124
abrasileirados. O pobre antes de mais nada algum de quem se tirou alguma coisa.
Para transformar o ndio em pobre, o primeiro passo transformar o Munduruku
em ndio, depois em ndio administrado, depois em ndio assistido, depois em ndio
sem terra.
preciso agir logo, filmar antes que a bala seja disparada na cabea de
uma liderana indgena e que o corpo dela desaparea! Ainda assim,
apenas um filme! Urgente, imprescindvel, mas um filme! Enquanto ele
estava sendo filmado e montado (anos a fio), agora visto, a realidade dos
Guarani Kaiow no mudou muito ainda que possamos nos indignar e
apupar a dama da motoserra (Ktia Abreu) na sala de exibio. Precisamos
fazer mais, mas Martrio apenas um filme (um grande filme)!
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4 Mais uma vez, a aula de Viveiros de Castro, aqui j citada, esclarece o ponto: Ser
indgena ter como referncia primordial a relao com a terra em que nasceu ou
onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo
no serto, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas.
ser parte de uma comunidade ligada a um lugar especfico, ou seja, integrar um
povo. Ser cidado, ao contrrio, ser parte de uma populao controlada (ao mesmo
tempo defendida e atacada) por um Estado. O indgena olha para baixo, para a Terra
a que imanente; ele tira sua fora do cho. O cidado olha para cima, para o Esprito
encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto.
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5 Estou aqui me referindo analogia que Isabelle Stengers (2015: 15) faz entre as
expresses objetores de crescimento e objetores de conscincia, esta ltima
designando aqueles que se recusam a agir ou a participar de atos que considerem
ferir suas convices religiosas, polticas ou ticas, correndo o risco de desobedecer
a lei. [Nota do editor do livro de Stengers].
13. Isso no tudo, foi preciso abrir espao no filme para que o prprio
corpo do inimigo pudesse esgoelar (e revelar) a conscincia fascista a
propsito da suposta manipulao de outras mentes! Diz a Senadora Ktia
Abreu (quando ainda era do PSD, antes de ser Ministra), primeiramente
no Congresso Nacional, depois num leilo para arrecadar fundos para a
organizao da luta dos fazendeiros contra os ndios:
Amigos, ns levamos 10 anos para vencer o MST, ns levamos 15 anos
para vencer o Cdigo Florestal. E agora a questo indgena. Os nossos
adversrios, muitos deles ocultos, no se cansam de armar e inflar
armadilhas contra o setor agropecurio, que mais ajuda a economia
nacional. A nica palavra que eu tenho a dar para vocs, que hoje
na CNA (Confederao da Agricultura e Pecuria do Brasil), na Frente
Parlamentar da Agricultura, entre tantas ocupaes que ns temos
de problemas no Brasil inteiro, mas pra ns, hoje, no tem nada mais
importante de solucionar que a questo indgena. Ns vamos instalar a
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6 No precisa, Martrio no interfere na fala da Senadora Ktia Abreu. Mas aqui cabe
falar: o trabalhador do campo (muitos deles em situao anloga da escravido)
quem trabalha, o proprietrio da terra (a classe representada pela Senadora,
presidente da CNA), agricultor ou produtor rural (eufemismos para latifundirio ou
oligarquia rural), na verdade, explora a fora de trabalho e os recursos naturais, alm
de obter subsdios do Estado, para obter lucro s isso!
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voc est reagindo a uma agresso. Quem vai poder dizer ao cidado
que quer continuar a sua atividade aqui, trazer os seus filhos, que
ns [no] sabemos at quando chegar mais um novo antroplogo
na sua propriedade rural, para dizer que ali, tomando santo daime,
teve um sonho tambm que tinha ndios naquela regio. [Senador
Ronaldo Caiado, DEM-GO]
Se locupletar, roubar, profanaram nossas instituies, desmoralizaram tudo aquilo que ns acreditamos. A propriedade a coisa mais
sagrada que o ser humano tem. A propriedade aquilo que motiva
o cidado para viver. E ns temos uma misso: zelar para a nossa
propriedade, porque quem no cuida do que seu no merece t-lo.
[Proprietrio-Poltico no identificado]
Vocs esto organizando este movimento para defender as propriedades, os oitenta processos que vocs tm aqui no Mato Grosso do Sul,
os trinta processos que eu tenho no Rio Grande do Sul, no Paran, em
Santa Catarina, em Roraima, em qualquer Estado, vo ser mantidos,
e vocs vo ter que aguentar ndios invadindo, e a Polcia Federal e a
Fora Nacional, no lhes dando proteo. E essa questo ideolgica,
quando no governo da Presidente Dilma tem algum que diz que
desenvolvimentista, leva o Brasil pra frente, leva a produo, tem
no Palcio do Planalto um ministro da Presidente Dilma, chamado
Gilberto Carvalho, que aninha no seu Gabinete ndios, negros, semterra, gays, lsbicas [tudo que no presta]. A famlia no existe no
Gabinete deste senhor. [Deputado Luiz Carlos Heinze, PP-RS]
18. Corte para a encenao da propaganda de uma empresa de segurana (na verdade, uma milcia armada) da qual os fazendeiros da regio
contratam servios para proteger suas propriedades: depois de mostrar
em primeiro plano um braso (uma caveira sobreposta a duas armas),
um atirador revelado em ao disparando dois ou trs tiros. Corte para
a vida real e alm da propaganda: os prprios ndios filmam um ataque
de pistoleiros e jagunos (os mesmos da empresa de segurana?) a um
acampamento indgena. Fim do filme. Pausa nesse martrio.
Referncias
Albert, Bruce & Kopenawa, Davi. 2015. A Queda do Cu: palavras de um
xam yanomami. So Paulo: Cia das Letras.
Comolli, Jean-Louis. 2012. Corps et cadre: cinma, thique, politique. Paris:
Verdier, 2012.
Stengers, Isabelle. 2015. No tempo das catstrofes. So Paulo: Cosac Naify, 2015.
Viveiros de Castro, Eduardo. 2016. Os involuntrios da ptria. Aula pblica
durante o ato Abril Indgena, Cinelndia, Rio de Janeiro 20/04/2016.
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Leandro Saraiva
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Andr Brasil
1. Mbaraka
Sob a imagem ainda abstrata, ouvimos o canto, seu desenho
circular, ritmado pelo bater dos ps: as vozes das mulheres
cuidam para guardar uma leve defasagem em relao ao coro dos
homens. A abertura do enquadramento permite ento perceber o
Mbaraka, que se agita em primeiro plano, diante do fundo noturno.
Agora, so vrios os chocalhos, empunhados pelos rezadores
que cantam em uma linha transversal ao quadro. A manh d
seus primeiros sinais, nos sugerindo que o grupo atravessou a
noite em viglia. O close no rosto de um rezador leva a intuir um
parlamento que liga visvel e invisvel.
Martrio (2016), de Vincent Carelli, inicia-se pelas imagens
feitas pelo diretor, ainda em 1988, quando esteve no Mato Grosso
do Sul para acompanhar o Jerokyguasu, a grande reza guarani
-kaiow: como nos diz a narrao, a consulta aos espritos durante
a noite indicava o rumo das discusses polticas do dia seguinte.
Ao nos mostrar o encontro entre lideranas, o filme no desfaz
nossa ignorncia sobre o debate em curso: compartilhamos
com Carelli, que filmou a conversa s surdas, o desconhecimento da lngua ali falada, identificando uma ou outra palavra
em portugus, entre elas esta: capitalismo.
Figura-se assim o sentido de um movimento invisvel para
o pas, que o diretor acompanhou por cerca de 10 anos: a retomada das terras pelos Guarani-Kaiow, que vinculava, de modo
indissocivel, a luta poltica ao trabalho espiritual, em uma experincia que hoje chamaramos de cosmopoltica. Em um mesmo
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2. Deserto
Destas cenas iniciais, que nos convidam a acompanhar a mnima variao
dos rostos, dos gestos e dos cantos, a cuidadosa enunciao das palavras,
passamos ao trnsito ininterrupto dos caminhes e ao travelling pelo interminvel deserto de soja. Recorrente em Martrio, esse travelling confere
materialidade e, ao mesmo tempo, cifra conceitualmente, o modo como
o imaginrio expansionista do agronegcio confina e cerceia a vida dos
ndios, empurrando-os para as margens estreitas das rodovias, que eles
atravessam com dificuldade, levando suas crianas pelas mos.
3. Pedagogia do corte
No sem espanto, vemos ento o discurso da senadora Ktia Abreu,
bandeira do Brasil ao fundo, a nos indagar quando tero paz os fazendeiros.
cnica retrica ruralista, Martrio responde com um corte, digamos,
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4. Reencontros
Como nos mostra Clarisse Alvarenga (2016), Corumbiara (2009), filme
anterior de Carelli, se move pela cena equvoca do contato, cena que no
cessa de se atualizar e de espalhar vestgios dos desastres que produz.
L, o cineasta hesita em filmar, se arrisca, recua (lembremos da sequncia do ndio do buraco, escondido na cabana de palha, lana aguda,
a recusar o contato com os brancos, entre eles, aquele que empunha a
cmera). So os prprios termos da relao que esto em jogo, em uma
aliana ainda por se construir ou por se recusar.
Agora no h hesitao: trata-se, afinal, de rever companheiros de
luta, buscar velhos aliados, reencontrar inesperadamente aqueles com
quem se conversou h pouco, ou h muitos anos. A histria que Martrio
nos conta feita de desterros, de reencontros e de retomadas.
assim desde o comeo do filme, quando Carelli reencontra os
companheiros Celso e Myriam, que o ajudaro nas conversas com os
Guarani-Kaiow. O casal, por sua vez, se alegra ao rever seus amigos
Jos Benites e Emlia Romero, sobreviventes das primeiras invases dos
fazendeiros na regio do Jaguapir. E ainda, mais adiante, somos tocados
pelo reencontro de Carelli com Velho Ambrsio em Pyelito Kue, local de
onde foi expulso em 1950 e para onde manifestava o desejo de regressar
quando exilado na reserva de Sassor.
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5. Estar com
Essa histria feita de retornos e reencontros, que dispersa seus traos
pelos arquivos de imagens, a histria de um povo cuja errncia no
contradiz a estreita ligao com a terra, com a qual mantm relao
espiritual, tica e esttica. Afinal, para os Guarani, a terra um corpo
que respira; que fala, sussurra, que v e se adorna. Corpo com o qual
mantm relao de reciprocidade (diz um ancio que a rvore que d
bons frutos deve ser plantada por outros, que a deixam para aqueles
que esto por vir).1
Se o discurso dos ruralistas distorce deliberadamente a frmula do
nomadismo para us-la contra os ndios (ao dizer que eles no se fixam
terra e, portanto, no podem ser donos dela), o filme faz o trabalho
inverso: retorna aos locais, refaz os percursos, recolhe os testemunhos
e reencontra os traos que religam os sujeitos terra, em um vnculo
que no se define pela propriedade. No se trata da circunscrio de um
domnio o prprio , mas de estabelecer trocas e traar relaes com
o entorno. Se as linhas da propriedade so limites, aqui os vnculos com
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1 Devo essa sugesto a Josely Vianna Baptista. Em busca do tempo dos longos sis
eternos. In: Roa Barroca. So Paulo: Cosac Naify, 2011.
6. Cenrio da resistncia
A roa, nos diz a narrao, um verdadeiro cenrio da resistncia
Guarani-Kaiow. A mandioca e as bananeiras de Bonifcio persistem, brotando
resilientes do solo coberto pela soja. Essa persistncia demonstra como,
ao contrrio da perspectiva crist que projeta o paraso alm desta vida, yvy
marey, a terra sem males que move os Guarani em suas buscas, deve nascer
de um trabalho terreno: em meio ao deserto de soja, cultivar a roa como
cuidar de um corpo que adoece, curando-o para o bem viver (ande reko).
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7. Narrar, participar
So vrios os caminhos que ligariam Martrio herana de Cabra marcado
para morrer, de Eduardo Coutinho. Como lembra Victor Guimares em seu
belo texto sobre o filme, ambos, Cabra e Martrio (assim como Serras da
Desordem, de Andrea Tonacci) assumem a responsabilidade de edificar
uma contra-narrativa de ampla envergadura histrica.2 No teramos aqui
como tirar consequncias dessa comparao, mas um ponto mereceria
ateno: ambos os filmes se apresentam, cada qual a seu modo, como
uma resposta cinematogrfica ao impasse que a histria nos impe,
impasse que nos levaria a opor, como inconciliveis, os gestos de narrar
e participar (para narrar devo me distanciar e perspectivar o acontecimento; para participar devo me lanar ao interior do acontecimento,
adiando, portanto, a tarefa de narr-lo).
Aqui tambm Vincent Carelli alia-se aos Guarani-Kaiow para recusar
essa fronteira, demonstrando como narrar pode ser um gesto de engajamento e como se pode passar de um a outro, da narrao interveno e
desta de volta narrao, tornando indissociveis esses gestos, sem os
quais a experincia histrica no se constitui enquanto tal. Ao trabalho de
pesquisa nos arquivos da histria; ao trabalho de observao e escuta do
testemunho dos Guarani-Kaiow, e ao trabalho de narrao e comentrio
s imagens, o diretor acrescenta a tarefa de engajar-se, implicar-se e
intervir no curso dos acontecimentos, recusando-se a respeitar os limites
da cena, para adentr-la e se posicionar em seu interior.
Na visita s comunidades de Mbarakai e de Pyelito Kue, depois de
uma fala desesperanada de Celso, Carelli pede a palavra: como Celso
t falando, ns no somos autoridade. Mas, se depender das autoridades,
vocs tm que tomar a frente. E importante que as imagens, a fala de
vocs cheguem nas cidades. Ao no se conter e lanar-se em cena, ele
acusa a percepo de que narrar a histria intervir em seu curso e de
que a interveno no presente faz parte da narrao que dele se produzir.
Ao final do filme, o gesto mximo dessa postura: depois de voltar a
Pyelito Kue, onde o grupo havia ocupado a sede da fazenda, e de testemunhar as marcas de bala, resultado dos ataques dos pistoleiros, Carelli
e seus aliados retornam uma vez mais, agora trazendo uma cmera, que
ser deixada para a comunidade. Como se ao cinema se exigisse tarefa
mais urgente.
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2 GUIMARES, Victor. Que fazer? In: Revista Cintica, 28 set. 2016. Disponvel em
http://revistacinetica.com.br/nova/que-fazer.
8. Encontrar a palavra3
O filme reafirma uma crena na palavra, em sua possibilidade. No momento
em que o martrio do povo Guarani e Kaiow, parece no encontrar mais
palavras para design-lo dada a situao de etnocdio a que esto submetidos os ndios o movimento de Martrio oposto: acreditar na palavra,
reencontr-la ali, nos locais em que ela se mistura luta; tom-la como
testemunho e como interveno no presente. Abrindo-se ao testemunho
de uma luta em curso, o filme novamente aproxima, torna intercambiveis
narrar e intervir.
Por isso mesmo, os testemunhos so sempre situados: ao mesmo
tempo em que observa e escuta com ateno, a cmera est disponvel
a percorrer o territrio com os sujeitos para com eles buscar os vestgios dos massacres, reencontrar os cemitrios onde enterraram seus
ancestrais, acompanhar os cantos que, novamente, religam testemunho
histrico e palavra mtico-potica.
Se as palavras no devem ser dissociadas dos espaos de onde
nascem por conta de uma mtua implicao: de um lado, situada e
incorporada, a palavra ganha a fora da experincia que tem na terra seu
lastro e seu sentido. De outro lado, as falas so capazes de transfigurar
o espao visvel, fenomnico, do filme, fazendo-o atravessar por imagens
que o testemunho ou o canto evocam.
Dessa mtua transfigurao da palavra pelo espao e do espao
pela palavra parece vir a fora do testemunho de Damiana, cacique de
Apykai que, h 12 anos, acampa beira da estrada, enfrentando uma
luta desigual para retornar ao seu tekoha. Ela nos conta sobre a histria
do lugar, lembra o despejo que a comunidade sofreu pela usina So
3 Empresto essa ideia ao curso que vem sendo ministrado na UFMG, no mbito do
Programa de Formao Transversal em Saberes Tradicionais, denominado Ojuhu
ee/Mbopaje ee Encontrar a Palavra/Encantar a palavra. Em parceria com a
professora Luciana de Oliveira, o curso vem sendo ministrado pelos Guarani-Kaiow
Daniel Vasquez, Genito Gomes e Valdomiro Flores.
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9. Medida do insustentvel
A testemunha, nos diz Jeanne Marie Gagnebin, no somente quem viu
com os prprios olhos, mas tambm aquele que no vai embora, que
consegue ouvir a narrao insuportvel do outro e que aceita que suas
palavras levem adiante, como num revezamento, a histria do outro.4 A
equipe de Martrio assume a tarefa da testemunha. Aquele que porta a
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11. Traduo
A clareza de propsitos que caracteriza o projeto do filme no desfaz
totalmente o desconhecimento que permanece em relao experincia
poltica e cultural ali implicada. A despeito da lcida generosidade e, para
alguns, do didatismo que marcam Martrio, preservar essa opacidade e
esse no-saber ser, no filme, um modo de reafirmar a autonomia e a
autoafirmao dos Guarani-Kaiow.
O fato que a profunda elaborao histrica a que o filme se dedica,
valendo-se para isso da retomada dos arquivos, acaba por coincidir com o
diagnstico feito pelas lideranas, ainda em 1988. o que percebe Carelli
ao traduzir, muitos anos depois, os registros da reunio que filmara s
surdas, apresentada sem traduo no incio do filme. Ali, constatamos a
acuidade da anlise histrica feita pelas lideranas: na conversa, percebese a conscincia que guardam em relao ao Estado, desde quando o
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16. Povos
Seja porque subexpostos pela invisibilidade a que so submetidos, seja
porque sobreexpostos pela luz do espetculo, os povos, nos diz DidiHuberman, esto expostos a desaparecer. Como ento fazer para que
se exponham a si mesmos e no ao seu desaparecimento?6
Ao entrelaar a histria de um povo quela de uma nao, evitando a
todo custo que uma se sobreponha outra, Martrio nos questiona, ento,
sobre o que seria afinal um povo. O filme parece explicitar aquela fratura
que, para Giorgio Agamben, divide a ideia em duas metades dialticas:
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6 DIDI-HUBERMAN, George. Coisa pblica, Coisa dos povos, Coisa plural. In: A
repblica por vir: Arte, Poltica e Pensamento para o Sculo XXI. Lisboa: Gulbenkian,
2011, p. 41.
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17. Cinema I
Calculadamente e em cada um de seus passos, Martrio se nega a colocar
o cinema adiante da causa que ele decidiu encampar; talvez Vincent
Carelli preferisse recusar o cinema a ter que deixar de filmar com,
lado a lado e aprendendo com aqueles que filma, engajado em suas lutas.
Ao engajar-se to clara e firmemente na luta dos Guarani-Kaiow,
Martrio parece mesmo enderear ao cinema novas exigncias, que teriam
como medida sua capacidade de intervir e contribuir efetivamente para
a causa a que se dedica. Essas exigncias levariam o cinema sair de si
mesmo, a lanar-se, digamos, em uma tarefa no cinematogrfica, ou,
ao menos, no primeiramente cinematogrfica.
Mas, o produtivo paradoxo aqui no o de que essa tarefa a de
lanar-se para fora do cinema se faa, justamente, por meio do cinema?
As linhas de ao que o filme carrega seu fazer com os Kaiow no
isso o que fora sua forma para constitu-la e alter-la? Atravessar
e alterar o cinema por uma experincia que o ultrapassa, no esse o
trabalho de inveno que se pede a um filme?
18. Cinema II
Vincent Carelli deixa na retomada de Pyelito Kue a pequena cmera
que produz as imagens que encerram o filme. Nelas, vemos a ao dos
pistoleiros que atiram impunemente contra homens, mulheres e crianas,
crivando de balas as paredes dos barracos.
No teria muito a acrescentar anlise precisa que Amaranta Csar
fez destas imagens urgentes, que ganham fora poltica ao ter reativado
seu poder de evidncia. A fragilidade do corpo que segura a cmera e a
usa como um escudo precrio imprime-se na tenso que faz tremer as
bordas do quadro e na profundidade de campo atravs da qual se negocia a
distancia segura para o olhar. Em risco, na busca estreita pela justa distncia,
o cinema se faz, resume a autora, como questo material de justia.8
Antes de Martrio ser finalizado, as imagens circularam pela internet,
valendo inclusive como evidncia para aes na justia. Situadas pela
montagem ao final do filme, elas talvez prosseguem o trabalho de Martrio,
que, de modo aberto e inacabado, entrelaa o cinema ao; a tomada
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9 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incndio. Uma leitura das teses Sobre o
conceito de histria. So Paulo: Boitempo, 2005.
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Tenho raiva
Nossas irms mais fortes disseram aos nossos irmos que havia duas coisas
importantes para se lembrar sobre as revolues que vm. A primeira que
vamos apanhar. A segunda que vamos vencer.
Tenho raiva. Tenho raiva por ser condenado morte por estranhos dizendo
voc merece morrer ou a AIDS a cura. A raiva explode quando uma
mulher Republicana vestindo milhares de dlares em roupas e joias
desfila atravs dos cordes policiais sacudindo a cabea, agitando e
apontando o dedo para ns como se fossemos crianas mimadas exigindo
demandas absurdas e fazendo pirraa quando no so atendidas. Tenho
raiva enquanto Jos agoniza desembolsando 8 mil dlares por ano para
pagar AZTs que devem mant-lo vivo por um pouco mais de tempo e que
ainda o tornam mais doente do que a doena com que foi diagnosticado.
Tenho raiva quando ouo um homem me dizer que depois de mudar o
seu testamento cinco vezes, j no tem mais para quem deixar os seus
bens. Todos os seus melhores amigos esto mortos.
Tenho raiva quando me vejo num mar de colchas de quilt,2 quando vou
em uma marcha luz de velas ou em mais um funeral. No irei marchar
em silncio com uma merda de uma vela e quero pegar aquelas malditas
colchas e me embrulhar nelas, rasg-las e arrancar os meus cabelos
amaldioando toda religio j criada em nome de Deus. Recuso-me a
aceitar uma criao que elimina pessoas em sua terceira dcada de
vida. cruel, vil e sem sentido e tudo o que eu tenho em mim vai contra
este absurdo. Inclino o meu rosto para as nuvens e uma gargalhada
furiosa, mais demonaca que alegre, irrompe da minha garganta, enquanto
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[Sem-ttulo]
Desde o princpio dos tempos, o mundo foi inspirado pelo trabalho de
artistas queer. Em troca, houve sofrimento, dor e violncia. Ao longo da
histria, a sociedade travou uma batalha contra os seus cidados e cidads
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Gritaram.
Em 1990, 50 ataques homofbicos foram registrados apenas no ms
de Maio. Ataques violentos. 3.720 homens, mulheres e crianas morreram
de AIDS no mesmo ms, provocados por um ataque ainda mais violento a
omisso do Estado, enraizada na homofobia crescente na nossa sociedade.
Esta uma forma de homofobia institucionalizada, talvez ainda mais
perigosa para a existncia queer porque os agressores no tm rosto.
Consentimos estes ataques atravs da nossa prpria paralisia diante
deles. A AIDS atingiu o mundo htero e agora eles nos culpam por ela e
se utilizam dela para justificarem sua violncia contra ns. Eles no nos
querem mais. Eles iro nos bater, nos estuprar e nos matar, antes que
tenham que continuar a conviver conosco. O que dever levar at que tudo
isto no seja ok? Demonstre alguma raiva! Se a raiva no empoder-la,
tente o medo. Se no funcionar, tente o pnico.
Grite!
Tenha orgulho! Faa o que for preciso para sair do estado habitual
de aceitao. Seja livre! Grite!
Em 1969, as queers reagiram. Em 1990, dizem ok.
No ano que vem, estaremos aqui?
[Sem-ttulo]
Eu odeio Jesse Helms. Eu odeio tanto Jesse Helms que ficaria feliz se ele
casse morto de repente. Se algum o matasse, eu diria que a culpa foi dele.
Eu odeio Ronald Reagan tambm, porque ele assassinou em massa o
meu povo por oito anos seguidos. Mas, para ser sincera, eu o odeio ainda
mais por elogiar Ryan White sem antes admitir a sua prpria culpa, sem
antes implorar o perdo pela morte de Ryan e pela morte de dezenas de
milhares de outras pessoas com AIDS - quase todas queer. Eu o odeio
por zombar do nosso luto.
Eu odeio a porra do Papa, a porra do cardeal John OConnor e odeio
toda a porra da Igreja Catlica tambm! O mesmo vale para as Foras
Armadas, e especialmente os oficiais da lei amerikanos os policiais
sadistas sancionados pelo Estado que brutalizam travestis, prostitutas
e prisioneiros queer. Tambm odeio os sistemas mdico e psiquitrico,
em especial aquele psiquiatra que me convenceu a no fazer sexo com
outros homens durante trs anos at que eu (isto , ele) pudesse me
fazer bissexual antes que anormal (queer). Tambm odeio o sistema
educacional pela sua cota no nmero de jovens queer que foram levados
ao suicdio nos ltimos anos. Odeio o respeitvel mundo da arte; e a
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especial o The New York Times. De fato, odeio cada setor do establishment
heterossexual deste pas dentre os quais os piores querem nos ver
mortas e os melhores nunca do as caras para tentar nos manter vivas.
Odeio heterossexuais que pensam terem algo inteligente a dizer sobre
sair do armrio. Odeio heterossexuais que pensam que suas histrias so
universais e que as nossas dizem respeito apenas homossexualidade.
Odeio msicos heterossexuais que fazem suas carreiras decolarem s
custas do povo queer e depois nos atacam, se sentindo feridos quando
demonstramos raiva e negando terem nos trado ao invs de se desculparem. Odeio heterossexuais que dizem: No entendo porque voc sente
a necessidade de usar esses btons e camisas. Eu no saio por a dizendo
pro mundo que sou htero.
Eu odeio o fato de que em vinte anos de educao pblica jamais fui
ensinada sobre o povo queer. Odeio o fato de ter crescido pensando que
eu era a nica estranha neste mundo, e odeio ainda mais o fato de que
muitas das crianas queer ainda crescem do mesmo modo. Odeio ter sido
atormentada pelas outras crianas por ser uma bicha e ainda mais por ter
sido ensinada a sentir vergonha de ser o objeto da crueldade delas, como
se a culpa fosse minha. Odeio o fato da Suprema Corte deste pas afirmar
que ok criminalizar algum como eu pela maneira como fao amor.
Odeio o fato de tantos heterossexuais demonstrarem-se preocupados
com a porra da minha vida sexual. Odeio o fato de tantos heterossexuais
desequilibrados se tornarem pais enquanto eu tenho que lutar feito o
diabo para obter permisso para ser pai. Odeio hteros.
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[Sem-ttulo]
Quando algum te agride por ser queer, um ataque anti-queer. Certo?
Um grupo de 50 pessoas deixa um bar gay, ao fechar. Na rua, alguns
170
171
Por qu Queer?
Queer!
Ah, temos mesmo que usar essa palavra? furada! Cada pessoa gay tem a
sua opinio sobre ela. Para algumas, significa estranha, excntrica e algo
misteriosa. Tudo bem, gostamos disso. Mas algumas garotas e garotos
gay no. Elas pensam que so mais normais do que estranhas. E para
algumas, queer evoca aquelas terrveis memrias do sofrimento vivido
na adolescncia. Queer. Na melhor das hipteses, a palavra agridoce e
extravagante, na pior, frustrante e dolorosa. No poderamos simplesmente dizer gay? A palavra muito mais radiante. E no sinnimo
de alegre? Quando vocs militantes vo crescer e superar a mania de
serem diferentonas?
Bem, sim, gay lindo. Tem seu lugar. Mas quando muitos homens
e mulheres gays acordam, pela manh, sentimos raiva e desgosto, no
alegria. Por isso escolhemos nos chamarmos queer. Usar queer uma
maneira de lembrarmos como somos percebidas pelo resto do mundo.
uma maneira de dizermos que no precisamos ser pessoas empolgadas
e charmosas, que levam suas vidas discretamente e margem do mundo
htero. Usamos queer como homens gays que amam lsbicas e lsbicas
que amam ser queer. Queer, ao contrrio de gay, no significa macho.
E, quando falada para outros gays e lsbicas, um modo de sugerir
que cerremos fileira e esqueamos (temporariamente) nossas diferenas
individuais, uma vez que enfrentamos um inimigo comum e mais perigoso. Sim, queer pode ser uma palavra dura, mas tambm uma arma
sagaz e irnica que podemos roubar das mos dos homofbicos e us-la
contra eles.
[Sem-ttulo]
Porque diabos permitimos hteros nas boates queer? Quem se importa
se eles gostam de ns porque realmente sabemos dar uma festa? Ns
temos que fazer isso para ajudar a levantar a estima que eles nos negam o
tempo todo! Eles saem por onde querem, e roubam muito espao na pista
ostentando seus passinhos a dois. Eles vestem sua heterossexualidade
como um sinal de afaste-se ou um manto sagrado.
Porque diabos toleramos eles quando invadem nosso espao como se
fosse um direito seus? Porque permitimos que eles esbanjem heterossexualidade uma arma que o mundo deles ergue contra ns bem debaixo
dos nossos narizes, nos poucos espaos pblicos onde ns podemos nos
expressar libidinosamente sem temer um ataque?
hora de parar com isso de deixar que as pessoas htero deem
todas as regras. Comecemos pregando este recado na porta de cada
bar ou boate gay:
Regras de conduta para hteros
1.
2.
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4.
5.
6.
7.
Foda-se voc!
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Odeio Hteros
Eu tenho amigos. Alguns deles so hteros.
Todos os anos, encontro meus amigos hteros. Quero encontr-los,
saber como vo as coisas, acrescentar alguma novidade s nossas longas
e complicadas histrias, experimentar alguma continuidade.
A cada ano, eu continuo achando que os fatos da minha vida so
irrelevantes para eles e que eu sou apenas parcialmente ouvida, que sou
apenas o apndice para as tarefas de um mundo maior, um mundo de
poder e privilgios, mundo das leis de instalao, mundo de excluso.
Isso no verdade, argumentam meus amigos hteros. H apenas
uma certeza na poltica do poder: aqueles que esto de fora imploram
incluso, enquanto os que esto dentro afirmam que eles j foram includos.
Homens fazem isso com mulheres, brancos fazem isso com negros e
todo mundo faz isso com as queer.
A principal linha divisria, tanto consciente quanto inconsciente,
a procriao... alm daquele mundo mgico - a Famlia. Com frequncia,
aqueles dentre os quais nascemos nos renegam quando descobrem quem
realmente somos. Somos punidas, insultadas, afastadas e tratadas como
sediciosos da criao infantil condenados tanto se quisermos tentar
quanto se quisermos nos abster. como se a propagao da espcie fosse
uma diretiva to frgil que sem forar as pessoas a tal, como uma verdadeira agenda, a humanidade fosse novamente se dissolver no caos primitivo.
Detesto ter que convencer as pessoas htero que os gays e lsbicas
vivem numa zona de guerra, que estamos rodeadas pelos sons das bombas
que s ns parecemos ouvir, que nossos corpos e almas so empilhados
aos montes, mortos de medo, esmagados, estuprados, mortos por desgosto
ou doena, despidos de sua personalidade.
Eu odeio os heterossexuais que so incapazes de ouvir a nossa raiva
queer sem dizer Ei! nem todos os heterossexuais so assim. Tambm
sou htero, voc sabe, como se os seus prprios egos j no estivessem
suficientemente protegidos neste mundo arrogante e heterosexista. Porque
deveramos cuidar deles, em meio toda raiva infligida a ns por sua
sociedade de merda?! Porque acrescentarmos claro, no quis dizer voc,
voc no age assim. Deixe que descubram por si mesmos se merecem
ou no serem includos entre os alvos da nossa fria.
Mas, claro, isso exigiria ouvir o som da nossa fria, o que eles quase
nunca fazem. Eles se esquivam, dizendo Eu no sou assim ou Agora
veja quem est generalizando ou Voc atrairia mais apoiadores se fosse
gentil... ou Se voc focar somente no pior s atrair mais coisas ruins...
174
grite comigo, estou do seu lado ou Eu acho que voc est se excedendo
ou Cara, voc to amargo!.
Roberto Romero
175
176
VERSO DA DIRETORA1
B. Ruby Rich
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do Desejo (Swoon 1992), de Tom Kalin; The Living End (1992), de Gregg
Araki; e R.S.V.P. (1991), de Laurie Lynd.
Tanta tinta j havia sido gasta na grande imprensa por tal causa? A
ala da comunidade queer que se acha dona da verdade organizou piquetes
contra Instinto Selvagem (at que sapates comeassem a descobrir como
o filme era divertido), enquanto crticos renomados impressionavam-se
avidamente pela queer new wave e empenhavam-se em fazer, dos novos
garotos no pedao, estrelas. No que o momento esteja livre de contradies: o Festival de Cinema Gay e Lsbico de San Francisco deste vero
teve sua edio mais bem-sucedida em seus 16 anos de histria, dobrando
seu pblico em com-parao a 1991, mas o Fundo Nacional para as Artes
(NEA National Endowment for the Arts) retirou seu financiamento uma
cortesia da ala direitista ressurgente do Partido Republicano, que v votos
onde quer que haja valores familiares a serem defendidos.
O fenmeno do cinema queer foi apresentado no outono de 1991 no
Festival dos Festivais de Toronto, o melhor lugar na Amrica do Norte,
para rastrear novas tendncias cinematogrficas2. Naquela ocasio,
repentinamente havia um conjunto de filmes fazendo algo novo, renegociando subjetivida-des, anexando gneros inteiros, revisando histrias
em suas imagens. Ao longo de todo o inverno, da primavera e do vero,
a mensagem foi alta e clara: queer sexy. Meu itinerrio acelerou meu
ritmo de descobertas, conforme fui de festival a festival, tirando um
tempo para ir Quinta Conferncia Anual de Estudos Lsbicos e Gays na
Universidade de Rutgers, em Nova Jersey. Conferi o circuito internacional
de Park City a Londres, passando por Berlim. Prmios foram entregues,
festas aconteceram. Em Sundance, no corao do pas mrmon, houve
at mesmo um painel dedicado a discutir o tema queer, organizado por
esta que vos escreve.
O painel dos Beijos de Arame Farpado colocou oito debatedores no
palco, com tantos cineastas queer assistindo que uma lista de presena
teve que ser lida. Cineastas se levantaram, um a um, para serem aplaudidos
pela plateia vespertina. Sundance onde voc pode ver o que a indstria
consegue tolerar, disse o debatedor Todd Haynes, que estava l para falar
sobre o ano em que Veneno (Poison, 1991) passou na linha de fogo. Ele
ainda permaneceu para ser impressionado pela criana-prodgio Sadie
178
3 A Miramax era uma companhia ainda em seus primrdios em 1992, sendo o Prestige
seu setor (de vida breve) de filmes de arte.
4 Sthephen Cummins morreu dois anos mais tarde, em 1994, de causas relacionadas
aids. Simon Hunt tem uma longa carreira, ainda em atividade, como escritor, satirista
e at aspirante a poltico, sob o nome artstico Pauline Pantsdown. Ele me entrevistou
em Sidney, em 1999
5 Apenas 14 anos depois, o filme finalmente foi realizado com Van Sant, sem Stone.
179
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6 Esta no era uma considerao terica. Eu j havia sido atacada por cineastas
que se sentiram deixados de fora da discusso. Em Sundance, como sempre, foram
escolhidos, para os painis, cineastas cujas obras estavam sendo exibidas no festival
(alm de Todd Haynes, vencedor do ano anterior). Aps me recusar a moderar um
painel completamente masculino, consegui acrescentar a artista em vdeo Sadie
Benning e minha editora do Village Voice, Lisa Kennedy, mas nenhuma cineasta. Su
Friedrich me enviou uma diatribe me acusando de traio e infidelidade. Fui atacada
na coluna de cartas do Village Voice por Jennie Livingston por no inclu-la no artigo,
embora ela no tivesse tido participao nos eventos que descrevi. Mesmo a admirada
Teresa de Lauretis me enviou uma carta de reclamao, embora mais solidria que
as outras, expressando mais decepo que raiva: por que eu tinha que descrever um
desequilbrio de gnero to desolador?
Toronto, 1991
A msica estava no ar em Toronto em setembro de 1991, onde a reputao
do cinema e do vdeo queer comeou a se construir. Ou talvez eu apenas
tenha amado R.S.V.P., de Laurie Lynd, porque ele tornou possvel meu
passeio de elevador com Jessye Norman. O filme de Lynd usa a ria de
Norman de Les Nuits dt, de Berlioz, como sua Madeleine supostamente Lynd enviou o filme pronto para Norman como uma forma de pedir
autorizao para o uso da msica, e ela gostou tanto que se ofereceu
para comparecer estreia mundial em Toronto. Com o tapete vermelho
arrumado e uma casa cheia indo loucura, ela sentou-se durante a
projeo segurando a mo de Lynd. R.S.V.P. sugere que a tragdia e o
trauma da aids levaram a um novo tipo de prtica de filme e de vdeo, uma
que assume as estratgias estticas que os diretores j aprenderam e as
aplica para uma necessidade maior do que a arte por ela mesma. Dessa
181
vez, a arte por ns, e ela poderosa: ningum pode permanecer com
os olhos secos ao longo dessa elegia espirituosa.
Lynd estava l tambm como produtora, tendo trabalhado em The
Making of Monsters (1991), do tambm canadense John Greyson. Na
imaginao maravilhosamente fervorosa de Greyson, George Lukcs
larga a aposentadoria para produzir um filme para a televiso e contrata
Bertolt Brecht para dirigi-lo. Ao lado da comdia caracterstica de Greyson
e dos rapazes de cuecas, h uma reencenao do argumento esttico
central da Escola de Frankfurt naquilo onde pode ser aplicado s crises
de representao engendradas pela reao e pela violncia antigay e
pelos tratamentos na televiso da era da aids.
Tanto filmes com oramentos elevados quanto com oramentos
parcos foram exibidos em Toronto. De modo nada surpreendente, os
filmes dirigidos por homens eram os de oramento elevado, e os dirigidos
por mulheres, de recursos parcos. No que eu fosse negar um centavo
a Gus Van Sant ou retirar um nico fotograma de Garotos de Programa
(My Own Private Idaho, 1991), um filme que seguramente o coloca como
o herdeiro aparente de Fassbinder. E da se ele no conseguiu uma nica
indicao ao Oscar? Na outra ponta do espectro estava a vanguardista
veterana Su Friedrich, cujo ltimo filme, First Comes Love (1991), provocou
silvos de desaprovao de sua plateia majoritariamente queer. Isso aconteceu porque o tema do filme o casamento, um assunto sobre o qual
o filme saudavelmente ambivalente, misturando o ressentimento com
a inveja, a raiva com a nsia? Ou foi uma reao esttica, uma vez que
Friedrich retorna a um modo quase estruturalista para sua acusao da
heterossexualidade institucionalizada, e, portanto, possivelmente aliena
audincias acostumadas a solues queer mais fceis? Foi porque a
diretora era uma mulher, e a nica outra lsbica disposio era Monika
Treut, que, a essa altura, provavelmente deveria ser classificada como
ps-queer, dada a expanso de personagens e interesses de seus filmes?
Seja como for, a reao ao elegante curta de Friedrich distinguiu-se do
resto, um barmetro anunciando tempestades adiante num conjunto de
agradadores do pblico.
O momento epfano, se houve um, foi a exibio de Eduardo II, de
Jarman, que reinscreveu a homossexualidade to integral sua fonte
do sculo XVI. O estilo de vida de Christopher Marlowe efetivamente
impediu que seu corpo fosse sepultado no santificado Canto dos Poetas,
na Abadia de Westminster, trs sculos aps sua morte em uma luta
de taverna, segundo Jarman. No de se espantar que este tenha se
182
7 Nota dos editores: O termo tambm faz referncia sigla pela qual a Rainha (Queen)
Elizabeth II conhecida: QE2.
183
Amsterd, 1991
O carro oficial apareceu no aeroporto todo coberto por cartazes do festival
exibindo garotas e garotos luxuriosos. Amsterd, cidade das luzes para
viados e sapates, oferecia a promessa de um evento totalmente prprio
cidade celebrada por sua queerness. A cidade com as melhores leis. O
lugar onde a liberao gay havia sido mais institucionalizada. A casa de
Cinemien, a distribuidora mais antiga de filmes de mulheres no mundo. A
noite de abertura tinha assentos reservados para dignitrios heterossexuais e discursos realizados por polticos locais ansiosos para reivindicar
um eleitorado queer: os discursos realizados pelos vice-prefeitos e por
ministros da cultura pareciam durar para sempre. Mas poucas concesses foram feitas presena deles: um trailer em 35mm foi projetado,
repleto de casais nus de queers de ambos os gneros mandando ver na
tela, esquentando as camas e, ento, subitamente se entregando aos
prazeres da carne para rolar no cho, observados por uma freira na tela
de uma televiso, provavelmente uma referncia ao tema favorito da
coorganizadora do festival, Annette Forster (freiras lsbicas).
Os discursos oficial e subcultural da noite de abertura se fundiram nos
prmios conferidos ao conjunto das obras dos diretores Ulrike Ottinger e
Derek Jarman. Embora o prmio entregue fossem placas convencionais,
aquele que d nome premiao uma figura menos convencional: Bob
Angelo. Nomeados em homenagem a um famoso antifascista e membro
da resistncia holandesa cujo nome de guerra era Angelo, os prmios
lembram de sua identidade proeminente de queer. Ele fundou a primeira
organizao de liberao homossexual holandesa em 1945, imediatamente aps a guerra, e, aps isso, criou os precursores dos maiores
grupos em defesa dos direitos gays da Holanda. Geralmente, eu acho
cerimnias de entregas de prmios bastante aborrecidas, mas havia algo
honestamente comovente nesta. Quando Derek Jarman se aproveitou
da oportunidade para pedir a descriminalizao de Oscar Wilde, em um
perdo oficial a tempo do centenrio de sua condenao em 1995, prometendo tambm lanar uma comisso para que fosse posta uma esttua
de Wilde nas ruas de Londres, o passado e o presente queer pareceram
estar em um firme dilogo um com outro.
O festival teve dois diretores, uma mulher e um homem, e dois tipos
de camisetas, uma com rapazes, outra com garotas. Meu amigo britnico Mark Nash provocou confuso pedindo uma com mulheres para ele
prprio. Havia dois cinemas tambm, e o festival geralmente passava
os filmes realizados por homens na sala que era maior. Um visitante
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9 Seu ttulo provisrio no festival era Red Ears Hunt through Ash.
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cmera, fala sobre sua vida trgica, crescendo em uma fazenda, mudandose para San Francisco para trabalhar em um bar lsbico e conhecer as
mulheres no exrcito, seu amor verdadeiro perdido em uma batalha da
Segunda Guerra Mundial. Ela entrecortada pelos contracampos originais de Davis reagindo, culminando com esta lhe dando os braos (e a
levando para casa). A montagem une tristeza heterossexual e admirao
pela coragem e tristeza lsbicas. Brooke e Cottis no apenas oferecem
um final feliz para espectadoras lsbicas, mas, na verdade, tambm uma
explicao lgica para a narrativa original do filme.
Para alm dos vdeos, as lsbicas do festival depositaram todas
as suas esperanas voyeursticas na Festa Molhada, onde elas, por
fim, chegariam aos finalmentes. Bem, ou quase isso. Todas certamente
tentaram. Os trajes variavam da infncia-na-praia processada por engenhosidade camp seriedade e ostentao do couro. Mulheres balanavam
na piscina, brincando com colches flutuantes e bonecas inflveis negras
e brancas (Parmar observaria depois que havia mais bonecas inflveis
negras do que mulheres negras). As sex stars de San Francisco, Shelly
Mars e Susie Bright, fizeram apresentaes, embora o grande momento
no qual Bright parecia nos estar ensinando acerca da roupa ntima
edipiana tenha se revelado um trocadilho cruel: ela estava, na verdade,
se referindo a roupas ntimas comestveis.10 Mas os quartos dos fundos
foram usados para conversas ntimas, no para a ao. Capturadas entre
os estados de roupas elaboradas e do despimento, todas esperaram para
que outra pessoa fizesse algo.
Outras festas ofereceram outros prazeres. Em uma delas, Jimmy
Somerville, de surpresa, fez uma homenagem a Sylvester, a saudosa diva
disco de San Francisco. Em outra, Marilyn Monroe apareceu, desenhada
em um bolo gigante, agarrando a saia, s para ser retalhada por um bando
de chefs homens. No final, de algum modo, Amsterd foi o festival que
voc amou odiar, o lugar onde todos queriam o mundo e no sossegariam por nada menos, onde a roupa suja pde ser lavada em pblico e
qualquer autoridade desafiada, onde as audincias foram resistentes a
obras experimentais e no narrativas, e onde crticas foram concedidas
mais generosamente do que elogios. E ainda assim... enquanto o mercado
pode ser sedutor, ele no democrtico. Amsterd foi o lugar onde uma
Festa Molhada pde ao menos acontecer, onde novas obras realizadas por
mulheres e por pessoas negras receberam tratamento de honra, onde o
vdeo foi totalmente integrado programao. Amsterd foi um encontro
10 Nota do tradutor: Trocadilho entre oedipal (edipiano) e edible (comestvel).
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existencial para uma era ps-porn, um filme que coloca queers no mapa
como um tema e um gnero legtimos. , quintessencialmente, um filme
de seu tempo.
Swoon tambm o era, embora possa parecer diferente, com seus
irnicos cenrios de poca, com seus registros roubados dos anos 1920
e com o roteiro fiel ao que aconteceu no tribunal, baseado no julgamento
realizado em Chicago, em 1924, de Leopold e Loeb, o par de garotos
judeus ricos que se uniram, fizeram planos e finalmente mataram um
menino. No rastro do caso Dahmer, seria fcil pensar neste como um
filme sobre atos horrveis.11 Swoon, no entanto, lida com parmetros
diferentes: a histria dos discursos que est sob o microscpio de
Kalin, como ele demonstra quo facilmente os setores dominantes da
sociedade da dcada de 1920 podiam unir comunidades discretas de
outsiders (judeus, queers, negros, assassinos) em uma comunalidade da
perverso. Todo o olhar do filme a diretora de fotografia Ellen Kuras
ganhou um prmio em sua categoria em Sundance enfatiza esta viso
com a qualidade grfica de seu antirrealismo, mostrando o quanto Kalin,
Kuras e a coprodutora, Vachon, costuraram o seu visual de acordo com
seus argumentos implcitos.12
Como parte de uma nova gerao de diretores, Kalin no est satisfeito em viver no passado, mesmo que num passado ps-moderno. No,
Swoon, assume toda a empreitada das imagens positivas para queer,
mas somente para definitivamente rejeitar qualquer projeto nesse sentido
e virando a coisa toda de cabea para baixo.13 Eu duvido que qualquer um
que tenha condenado O silncio dos inocentes (The Silence of the Lambs,
1991, Jonathan Demme) por homofobia txica v engolir Swoon facilmente,
11 Jeffrey Dahmer era o notrio serial killer e canibal que matou 17 homens e meninos
em Milwaukee. Ele foi capturado no vero de 1991 quando aquela que seria sua dcima
oitava vtima conseguiu escapar mesmo algemada, em seguida levando a polcia at
o apartamento. Dahmer foi a julgamento em 1992, condenado e, ento, assassinado
por outro presidirio dois anos mais tarde. Seus crimes recebiam grande destaque na
imprensa na poca de estreia de Swoon em Sundance.
12 Este efeito ainda mais pronunciado na verso em DVD de Swoon da Strand, uma
vez que a diretora de fotografia Ellen Kuras cuidou da masterizao digital do filme
de modo a criar uma clareza impossvel de se ver na cpia original em 16mm. A
dedicao da Strand em trazer de volta muitos filmes do comeo da dcada de 1990
em DVDs de alta qualidade fundamental para preservar a histria do New Queer
Cinema, assim como a fundao da companhia foi fundamental para o florescimento
inicial do NQC.
13 Ningum pronunciou o nome de Vito Russo, mas ele pode estar se contorcendo em
seu tmulo se Celluloid Closet (o livro) for um guia confivel para seu mapa de imagens
positivas e negativas; The Celluloid Closet, de Rob Epstein e Jeffrey Freedman, e o
novo documentrio Vito, de Jeffrey Schwartz, so fontes excelentes para as vises
ativistas de Russo.
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mas, esperanosamente, o filme forar que se repensem essas posies. Reivindiquem os heris, reivindiquem os viles, e no confundam
qualquer um deles pela realidade.
Ao longo de Sundance, um comentrio que Richard Dyer fez em
Amsterd ecoou na minha memria. H duas maneiras de desqualificar
filmes gays, ele disse: uma dizer oh, apenas um filme gay, enquanto
a outra proclamar oh, um timo filme, no importante que ele seja
gay. Ele estava se referindo aos filmes de Jarman e de Ottinger, defendendo que eles eram timos precisamente devido aos modos como eram
gays. Mas esse critrio tambm se aplicou aos filmes em Sundance, como,
filme queer atrs de filme queer, as obras apresentadas capturaram
minha imaginao, os aplausos da plateia e a ateno da imprensa. No,
sua queerness no era mais arbitrria do que sua esttica, nem mais do
que suas preocupaes individuais em interrogar a histria. Em celuloide e fitas magnticas, assim como na vida e na cultura fora das telas,
o presente queer negocia com o passado, sabendo perfeitamente bem
que o futuro queer est em jogo.
Vdeos so pressgios ainda maiores desse futuro, mas, ainda assim,
Sundance, como a maioria dos festivais, no exibiu nenhum. Para levantar
a questo da carncia de longas-metragens lsbicos e para confrontar a
indstria com suas prprias excluses, nosso painel dos Beijos de Arame
Farpado teve incio com uma exibio de Jollies, de Sadie Benning, um
vdeo que levou a plateia loucura. Com uma economia de meios absoluta,
Benning fez um Retrato da Artista Quando Jovem Sapato como nunca antes
havamos visto. Eu tive uma paixo. Foi em 1978, e eu estava no jardim
de infncia. As falas so ditas encarando a cmera, com imagens em
preto e branco flutuando no quadro ao lado das palavras usadas para
enunciar suas emoes, com cortes associativos colocando assunes
estabelecidas em questo. Sim, um gnero nasceu.
O festival acabou, claro. Isaac Julien voltou para Londres para finalizar Black and White in Colour (1992), seu documentrio sobre a histria
dos negros na televiso britnica. Sadie Benning, que abandonou a escola,
foi embora para exibir seus filmes em Princeton e para fazer outro, It
Wasnt Love, que prova que seu talento no fruto do acaso. Derek Jarman
e Jimmy Somerville foram presos em Londres por protestar fora do
Parlamento.14 Cristopher Mnch e Tom Kalin receberam prmios em
Berlim. Gregg Araki encontrou um distribuidor. Novas obras continuaram
sendo produzidas: o festival gay e lsbico Frameline, de San Francisco,
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Jota Mombaa2
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Referncias
HIJA DE PERRA. Interpretaes imundas de como a teoria queer coloniza nosso contexto sudaca, terceiro-mundista e pobre de aspiraes,
perturbando com novas construes de gnero aos humanos encantados pela heteronorma. In: Peridicus, Bahia, v.1, n.2, nov.2014/abr.2015
Disponvel: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/
article/view/12896>
PELCIO, Larissa. Subalterno quem, cara plida? Apontamentos margem
sobre ps-colonialismos, feminismos e estudos queer. In: Contempornea,
So Carlos, v.2, n.2, jul./dez. 2012, p. 395-418. Disponvel em: <http://www.
contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/89/54>
Acesso em 18/08/2016.
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trpicos. In: Contempornea,
So Carlos, v.2, n.2, p. 371-394, jul./dez. 2012. Disponvel em: <http://www.
contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/88/53>
Acesso em 18/08/2016.
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Vitor Grunvald
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alguns dos quais marcados menos pela vontade que pela necessidade.
Da porque o brao que penetra como um dildo e o cu que penetrado
so potencialmente subversivos. Desestabilizam no o corpo, mas o
organismo, esse conjunto de relaes necessrias que Artaud sugere
suprimir dos rgos.
A contrassexualidade proposta por Paul B. Preciado (2014[2002])
, nesse sentido, uma contra-pedagogia, no exato mesmo sentido que
a ps-pornografia o . Uma tecnologia de esquecimento mais do que
aprendizado. Como desaprender o mundo e suas normas, legadas a ns
por um aparato de enunciados discursivos e no-discursivos altamente
discriminatrios e hierarquizantes tanto de raa, origem e nacionalidade,
quanto de classe, gnero, sexualidade, funcionalidade corporal, etc? Como
desaprender o corpo e suas prticas, fazendo-o ficar deriva entre outras
(quantas? Infinitas!) possibilidades de vida?5
Se essa contra-pedagogia que resiste e deforma a prvia normalizao dos discursos hegemnicos e da organizao dos corpos pode ser
entendida como pedra de toque de uma tica queer/cuir possvel, ento,
um cinema queer no deveria ser aquele que faz jus a essas modulaes
contra-naturais e contra-sociais? E, mais importante que isso, que fabula
(e, ao fabular, produz) possibilidades de alianas dissidentes?
Na mesma coletnea onde aparece o artigo de Jordy Jones, Jack
Halberstam (2006[1991]) republica um texto no qual analisa o filme O
silncio dos inocentes de Jonathan Demme, utilizando a ideia de monstro
para articular a maneira como o filme subverte concepes normativas
de gnero em direo a um gnero ps-humano. Buffalo Bill, o serial
killer perseguido pela detetive Clarice Starling, aparece, na anlise de
Halberstam, como personagem que desafia construes heterosexistas
e misginas de humanidade, naturalidade e interioridade de gnero,
sendo o gnero, ento, concebido no como significante transcendente de
humanidade, mas como sua tecnologia mais eficiente (2006[1991], p. 582).
Fer Nogueira e Pdra Costa (2014), ao analisar filmes da pornochanchada, defendem que essas produes vem oferecer uma pardia
daquele comportamento conservador com relao s sexualidades e aos
gneros esperados pelo regime militar no auge da ditadura e se configuram como representaes onde se dissemina a filosofia da desconstruo tupiniquim. A desconstruo derradeira que passa pelo riso, pela
distncia e estranhamento que ele provoca entre o sujeito que atua e a
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5 Para um texto introdutrio (com mais referncias) que escrevi sobre ps-porn
para o site do projeto Flesh Mag, cf. Grunvald, 2016.
Referncias
BESSA, Karla. 2012. Estranhezas que roubam a cena: entre celuloides,
tapetes e closes. In: MISKOLCI, Richard e PELCIO, Larissa (orgs.). Discursos
fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. So Paulo: Annablume.
DE LAURETIS, Teresa. 1987. Technologies of Gender. Essays on Theory, Film,
and Fiction. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press.
GRUNVALD, Vitor. 2016. Teoria, carne e marcos iniciais da ps-pornografia.
In: site Flesh Mag. Disponvel em: http://flesh-mag.com/teoria-carne-e
-marcos-iniciais-da-pos-pornografia/ (acessado em: 15/out/16).
HALBERSTAM, Judith. 2006. Skinflick: posthuman gender in Jonathan
Demmes The Silence of the Lambs. In: STRYKER e WHITTLE (orgs.). New
York; London: Routledge.
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Horizontes reduzidos1
Kiki Mazzucchelli
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vai comear pela apropriao dos nossos corpos como lugares essenciais
do desejo, livres das restries e do copyright.
Um corte para 25 anos depois e um voiceover computadorizado nos
informa que a Organizao Mundial de Sade no considera mais o transexualismo como uma desordem psicolgica. Nesse conto de fico-cientfica
utpico realizado por Roque, uma bela mulher transgnero a ltima
pessoa a ser analisada pelas autoridades sanitrias antes do fechamento
definitivo de todos os centros de tratamento de desordens ligadas
mudana de sexo. Ns a vemos deitada, nua, em um leito hospitalar,
enquanto uma engenhoca robtica de baixa tecnologia uma cabea de
manequim montada sobre um brao mecnico escaneia cada centmetro
do seu corpo modificado. A cena final um plano frontal do torso nu e
da cabea da mulher sobrepostos por crculos cintilantes de luz verde,
como uma deusa a sinalizar que a revoluo de gnero finalmente chegou.
Ano branco foi comissionado pela Bienal do Mercosul, sediada na
cidade brasileira de Porto Alegre. Com 7 minutos de durao, o trabalho
mais longo de Roque at ento a maioria dos seus filmes no alcanam
a marca dos 5 minutos. Alm disso, vale notar que possui uma narrativa
bem mais discernvel e linear do que outros de seus trabalhos, nos quais
os sentidos so produzidos exclusivamente pela potncia expressiva
das imagens. Com a utilizao frequente de tecnologias analgicas de
filmagem (Super 8 ou 16mm), o artista cria composies cinematogrficas
com belas texturas que sugerem um deslocamento temporal para outros
tempos histricos, seja o passado, seja o futuro imaginado no passado.
Desse modo ele tece narrativas abertas que tocam, livremente, em ideias
relativas s modernidades imaginadas ou ao corpo ps-gnero.
As experimentaes de Roque com a plasticidade imagtica e a
composio flmica aparecem mais claramente em obras como O novo
monumento (2012), filmado em preto-e-branco e 16mm. O filme comea
com uma citao do ensaio Nove pontos sobre a monumentalidade
(1943) escrito colaborativamente pelo historiador da arquitetura Sigfried
Giedion, pelo artista Fernand Lger e pelo arquiteto Josep Llus Sert na
qual eles afirmam que os monumentos s podem existir em perodos
marcados por uma conscincia e uma cultura unificadora. Vemos, ento,
dois jovens de p em um terreno baldio vestidos com trajes que lembram
uma espcie de Mad Max tropical, enfeitados com espelhos, ossos e
correntes. Eles comeam a realizar movimentos sincronizados no estilo
vogue, ao som de uma melodia tribal. A cmera de Roque captura os
detalhes da paisagem rural ao redor e passa brevemente pela superfcie
212
ondulada de uma lagoa, pelo velho pavilho da fazenda e por uma coruja
213
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Eduardo de Jesus
0,7. Curitibas
Conheo esta cidade
como a palma da minha pica.
Sei onde o palcio
sei onde a fonte fica,
S no sei da saudade
a fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa.
(Paulo Leminsky em La vie em close)
1. cinema e cidade
Cidade e cinema esto na mesma trama, como parte de uma
mesma raiz da modernidade ligada ao urbano. Os museus de cera,
os panoramas e as exibies de cadveres em Paris no sculo
215
2. imagens da cidade
O local passa a ser distribudo globalmente, como j havia afirmado
anteriormente Guattari: a cidade-mundo do capitalismo contemporneo
se desterritorializou, seus diversos constituintes se espargiram sobre
toda a superfcie de um rizoma multipolar urbano que envolve o planeta
(2000, p. 171). Distribuio como servio e arquitetura, mas sobretudo
como imagem.
Nesse contexto emergem muitas vises da cidade no cinema. Uma
que aqui nos interessa aquela que faz da cidade do cinema um territrio
de resistncia, explicitando os poderes que, de um lado, transformaram
a cidade em um campo de mltiplas especulaes e, de outro, fazem
da experincia urbana um estranho conforto instalado em um espao-lixo (junkspace).
216
218
Referncias
GUATTARI, Flix. Restaurao da cidade subjetiva. In: Caosmose um novo
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GROYS, Boris. A cidade na era da reproduo turstica. In: Arte poder. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2015
219
Marcos Martins1
1*
Nota introdutria
Este breve comentrio se constitui numa encruzilhada. Os caminhos que o atravessam seguem percursos fronteirios. Seus
trnsitos evidenciam a proliferao das frices causadas pelos
encontros entre saberes, lugares, vivncias diversas. E nem de
longe essas zonas de convergncia so pacficas e apaziguadas.
Elas se conformam justamente a partir do conflito que a alteridade d cabo, ou no. Dos imperativos coloniais que captura(ra)m e, como num procedimento de autpsia, disseca(ra)m
carnes, afetividades, desejos, subjetividades, nossos modos de
ser e, mais diretamente, de nos relacionar. Desde ac como
canta Mano Brown, no lado sul do mapa.
Meu primeiro contato com o filme de Camila Donoso se
deu a partir de um levantamento de festivais de cinema lgbt
realizados em Amrica Latina. Envolto a tantos filmes que fui
encontrando, sua obra, Naomi Campbel, pareceu, pelo menos
atravs de algumas leituras e entrevistas prvias sobre o filme,
dialogar com a proposta que vinha se estruturando na organizao
desta mostra. Aps assisti-lo tive certeza! No entanto, quando
pensamos em prticas+experincias queer no cinema, do qu
estamos tratando? De onde falam estes filmes, estes olhares,
estas perspectivas queer? Reivindicam esta expresso pra si?
Os primeiros passos na preparao da mostra/seminrio
Queer e a cmera deixaram evidentes o quo escorregadio
1 Graduando do curso de Cincias Sociais pela UFMG.
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3 Acerca da histria deste movimento no Brasil ver Green & Trindade (2005), Facchini
(2005), Netto, Frana & Facchini (2006), Simes & Facchini (2009), e MacRae (1990).
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Assim como a definio da identidade depende da diferena, a definio do normal depende da definio do anormal. Aquilo que
deixado de fora sempre parte da definio e da constituio do
dentro. A definio daquilo que considerado aceitvel, desejvel,
natural inteiramente dependente da definio daquilo que considerado abjeto, rejeitvel, antinatural. A identidade hegemnica
permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existncia
ela no faria sentido. (2007, p.84)
Para um debate sobre as diferenas preciso que reconheamos
que tanto a identidade quanto a diferena so produzidas nas interaes
entre indivduos, no interior da vida social. Nos identificamos e rejeitamos
diversos modelos e prticas que existem, esto disponveis, no mundo (ou
na sociedade em que fomos socializados). Ambas se desvelam a partir
do (re)conhecimento de si frente ao outro. As categorias de identificao,
nesse sentido, no nos comunicam lugares na vida apriori das relaes
sociais. Em outras palavras, no somos quem somos ou estamos quem
estamos porque temos uma diferena, uma marca no corpo, que nos
individualiza. Essas marcas que nos produzem estabelecem sim distines, mas preciso entend-las como produzidas no bojo das relaes
sociais. E elas so muito mais particulares e contextuais do que globais.
Se nos despirmos de certos pertencimentos de raa/etnia, gnero ou
sexualidade que no so socialmente hegemnicos seremos legitimados
automaticamente? Ou a produo social das diferenas algo bem mais
complexo que isto?
A identidade e a diferena so produzidas durante o processo de
socializao, um processo permanente de aprendizado cultural, que
se estende desde o nascimento at a morte de um indivduo. Assim, a
partir do processo de socializao que aprendemos e assimilamos aos
valores e experincias de uma cultura (no caso, a nossa). A medida em
que nascemos, crescemos e desenvolvemo-nos, vamos incorporando as
normas sociais e agimos cada vez mais de acordo com a forma com que
fomos ensinados. Este processo no se d de forma consciente e, em
geral, essas regras nos so ensinadas a partir das experincias sociais
ao longo de nossas vidas. Em resumo, a socializao consiste em um
processo de aprendizado cultural que (in)forma os comportamentos de
todos indivduos e permite que pertenam a dada sociedade.
Um desses aprendizados diz respeito ao gnero e s sexualidades.
Nesse contexto, podemos afirmar que meninos e meninas, possuem
comportamentos diferentes no em funo de transmisso gentica ou
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232
4 Para compreender melhor esta trajetria da teoria queer no Brasil ver Miskolci,
2009, 2012.
O termo foi primeiramente usado pejorativamente para definir homossexuais e mais tarde englobado pelos movimentos ativistas, que tentavam
ressignific-la (esse movimento fala numa poltica e numa teoria queer).
Queer pode significar, tambm, estranho.
Em certo sentido, a teoria queer anda pelo mesmo caminho dos
ps-estruturalistas, sendo que suas discusses remetem a questes de
identidade. Para essa teoria, as identidades apreendidas como norma
ou antinorma no so fixas e no determinam quem somos. Nesse
ponto, podemos dizer, ao mesmo tempo em que aparece colada a ideia
de LGBT, por exemplo, ela tece crticas a ela e busca compreender de
que modo so produzidas e a partir de que relaes ou normas.
Essa teoria sugere que no h porque falar em mulheres, homens,
ou qualquer outra categorizao que pressuponha uma essncia, pois as
identidades so compostas de tantos e distintos elementos que a simples
afirmao de que pessoas podem ser agrupadas por possurem uma ou
duas caractersticas comuns seria algo enganoso.
As identidades seriam, em suma, plurais, em constante construo
e este processo no teria margens nem limites. O termo queer expressa,
assim, os diferentes aspectos de uma pessoa, entendendo-a como sujeito
multifacetado e em constante mudana. Ou, para citar Tiago Duque (2014),
reifica uma ... valorizao da prtica, da experincia, e no necessariamente o agenciamento via uma identidade (2014, p.73): valoriza-se, em
suma, mais aos desejos do que s classificaes identitrias, tidas como
limitadas, engessadas e com alto potencial normativo.
A pauta do direito diferena e do combate desigualdade vem
tensionando a cena pblica. Os Direitos Humanos5 e o direito diferena,
ao contrrio do que se poderia pressupor, causam polmica e estranhamento sobretudo em contextos conservadores lembrando que o
conservadorismo informa amplamente a formao do Brasil enquanto
nao e, isto explica, porque to difcil nos livrarmos dele. Esta tenso
5 A noo de Direitos Humanos, conforme explicitado pela da Organizao das
Naes Unidas (ONU) atravs da Declarao Universal dos Direitos Humanos, referese ao conjunto de leis que contemplam o direito vida e proteo a uma pessoa ou
a um conjunto de pessoas em relao s diversas formas de abusos, tanto fsicos
quanto psicolgicos. Para Norberto Bobbio direitos humanos so aqueles cujo
reconhecimento condio necessria para o aperfeioamento da pessoa humana,
ou para o desenvolvimento da civilizao, etc. (1992, p. 17). Para Samuel A. M. de
Oliveira, devemos analisar que a dignidade do ser humano enquanto membro
vivente de uma sociedade est situada num contexto poltico atualmente marcado
por grandes injustias sociais, profundas diferenas socioeconmicas e pelas no
menos trgicas disparidades de distribuio de renda. Para que um ser humano
tenha direitos e possa exerc-los, indispensvel que seja reconhecido e tratado
como pessoa, o que vale para todos os seres humanos. (2007, p. 363).
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aumenta significativamente se o direito humano em questo estiver relacionado seara dos direitos sexuais e reprodutivos.6 Mesmo em mbitos
regulatrios internacionais que definem como os direitos humanos devem
ser compreendidos na esfera global (CORREA, 2009), no raro perceber
que quando o direito das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos
emergem no debate h setores conservadores que se contrapem, mesmo,
insero da pauta e do debate nesses organismos.
Conforme Claudia Fonseca e Andrea Cardarello (1999) pode-se falar,
nesse contexto, que mesmo no mbito do que se convencionou chamar
de direitos humanos hoje h categorias que so priorizadas em detrimento de outras, o que desvela lutas simblicas e critrios particulares
de legitimao de diferenas e indivduos que, quando se reivindicam
direitos, determinam quem mais e quem menos humano, e, nesse
sentido, humanos com mais chance de estarem contemplados nas polticas
pblicas e de acessarem os bens de cidadania e terem sua humanidade
reconhecida do que outros.
H uma tenso evidente entre o movimento LGBT e a teoria queer no
Brasil. A teoria queer acusada de negar as identidades o que faria dela,
por este motivo, homofbica. Questiona-se a instrumentalidade desta
teoria para o movimento. Ao questionar a essencializao das identidades,
e a veracidade de sua coerncia interna, a teoria queer causa desconforto.
Especialmente porque dialoga com uma estratgia poltica de parte do
movimento LGBT se denominou de essencialismo estratgico. Causa
desconforto tambm por informar que as identidades, ao serem tomadas
como verdades, tornam-se tambm normativas. Sergio Carrara e Julio
Simes (2007) acenam para a possibilidade de dilogo ao afirmarem que
a tenso entre as aspiraes inclusivas e pluralistas, de um lado, e
a adeso compulsria lista de identidades reconhecidas como alvo
da ao do movimento, de outro, no tem levado somente a conflitos
amargos e autodestrutivos, mas tambm a iniciativas bem-sucedidas como as Paradas do Orgulho GLBT, expresses de um espao
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6 Podemos definir Direitos Sexuais como direitos a uma vida sexual com prazer e
livre de discriminao e Direitos Reprodutivos como aqueles que dizem respeito ao
direito bsico de todo casal e de todo indivduo de decidir livre e responsavelmente
sobre o nmero, o espaamento e a oportunidade de ter filhos/as e de ter a informao
e os meios de assim o fazer, gozando do mais elevado padro de sade sexual e
reprodutiva. Fonte: Reprolatina. Para a definio ampliada dos conceitos, veja o
site: <http://www.reprolatina.org.br/site/html/areas/sexualidade.asp>. Acesso em:
18 maio 2014.
235
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Dissertao (Mestrado em Programa de Ps-Graduao em Educao) Universidade de So Paulo, 2011. Disponvel em: <http://www.teses.usp.
br/teses/disponiveis/48/48134/tde-06072011-095913/pt-br.php>. Acesso
em 23/06/2014.
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Roberto Romero
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militares nas suas aldeias, foi em seguida exportado para os ndios das
etnias Krah, Karaj, Gavio e Xerente. Os ndios considerados desajustados ou revoltosos eram punidos na prpria aldeia ou enviados para
o Reformatrio Indgena Krenak ou para a Fazenda Guarani, dois centros
de deteno criados no estado no mesmo perodo. Com toda pompa e
circunstncia, os primeiros oitenta indgenas formados pela GRIN desfilaram nas ruas de Belo Horizonte na manh do dia 05 de fevereiro de
1970, diante de autoridades civis e militares e de uma plateia animada. O
evento, em particular, e a histria da GRIN, em geral, passaram despercebidos ou completamente ignorados pelas denncias que vieram tona
durante o processo de redemocratizao. Foi nos arquivos do Museu do
ndio, no Rio de Janeiro, que o pesquisador e vice-presidente do grupo
Tortura Nunca Mais/SP, Marcelo Zelic, encontrou as imagens da formatura,
registradas pelo cinegrafista Jesco von Puttkamer e mantidas numa fita
sob o inocente ttulo Arara. Imaginando se tratar de um arquivo da
etnia de mesmo nome, Zelic se surpreendeu ao constatar que a referncia era, na verdade, s imagens dos ndios carregando um homem
em um pau-de-arara em pleno desfile. Publicado pelo jornal Folha de S.
Paulo, numa extensa reportagem da jornalista Laura Capriglione, o vdeo
chamou a ateno novamente para este captulo esquecido da histria
da ditadura. Foi neste momento, enquanto participava de uma oficina de
cinema ministrada por Roney Freitas, em So Paulo, que a indgena Rosi
Araujo props ao cineasta que fizessem um filme sobre o tema.
Mas a Histria, do ponto de vista indgena, outra histria. Os
Tikmuun costumam se referir ao Tempo de Pinheiro como quando
os tikmuun viraram soldados, tikmuun te yy h xonat ih. A expresso
uma constante ao longo dos depoimentos do filme e h nela mais do que
talvez se possa imaginar primeira vista. Em Maxakali, o verbo yy h diz
respeito a transformaes ou metamorfoses como aquelas dos personagens dos mitos que, antigamente, viraram cobra, viraram capivara,
viraram gavio... Assim, quando os Tikmuun nos dizem que viraram
soldados preciso remeter tal afirmao no apenas transformao
histrica que atravessaram, como tambm ao seu histrico de transformaes ou sua histria vivida enquanto transformaes. Para entender
o que esto nos dizendo quando dizem que viraram soldados preciso,
portanto, se aproximar do que virar quer dizer, entre eles. Neste sentido,
as narrativas registradas no filme apontam pistas importantes. Note-se,
para comear e o filme acerta muito ao comear por a que o velho
Tot descreve a transformao em soldado a partir, sobretudo, dos corpos
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dos soldados aqueles que usavam roupa verde mas tambm, como
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Capito Pinheiro. Eu sei que uma parte ruim e uma parte boa tambm,
afirma Nomia Maxakali em seu depoimento. Tal ambivalncia pode
estar, em parte, associada ao fato de que os entrevistados foram todos
os mais velhos, testemunhas oculares ou corporais da transformao
em soldados, mas tambm aqueles que contam ou sabem contar as
histrias dos antigos. importante, por isso, observar que muito do que
se entende sobre o perodo tem passado atualmente por considerveis
revises, conduzidas especialmente por jovens lideranas e pesquisadores
indgenas como os prprios co-diretores do filme, Isael e Sueli Maxakali.
Note-se a esse respeito o evidente constrangimento de Isael diante da fala
do velho Rondon, numa das cenas mais incmodas e arriscadas de Grin.
A ambiguidade, entretanto, tem de fato algo de recorrente nos relatos
tikmuun e preciso procurar entender suas motivaes. Creio que ela
est igualmente associada a um longo histrico de contatos travados
por eles com uma diversidade de outros, dentre eles, aqueles que
costumamos chamar seus espritos, os ymiyxop.
H, dentre os ymiyxop, alguns reputados especialmente ferozes
e indomveis, como os espritos da fibra da mandioca, os kotkuphi.
Guerreiros e canibais, os kotkuphi foram amansados com tempo e
muito custo, atravs de peridicas ofertas de comida pelas mos das
mulheres menstruadas.4 Quando vm passar temporadas nas aldeias
tikmuun, os kotkuphi erguem uma verdadeira trincheira ao redor do kuxex
(casa dos cantos), de onde nunca saem para danar ou cantar. Me disse
um amigo que ela como uma placa de proibido atravessar. Quando
os seus gritos anunciam de longe o retorno de uma expedio de caa,
as mulheres e crianas apressam-se a entrar dentro de suas casas, de
onde s saem depois que os ymiy adentram o kuxex. Por que teriam os
antigos Tikmuun insistido num contato com povos to ferozes quanto
estes espritos da mandioca? Ora, porque eles tambm traziam consigo
bens valiosos como cantos, flechas e muita caa, alm de defend-los
sempre que eram atacados pelos seus inimigos botocudo. Os soldados
da GRIN (ou o povo do pinheiro,5 como tambm so chamados) no
4 Como observa Rosngela de Tugny: Os kotkuphi j mataram sumariamente vrios
ancestrais tikmuun que no respeitaram as regras que impem aos homens e mulheres
quanto ao que pode ou no ser visto. J me relatou uma mulher tikmuun que esse ymiy
foi amansado pelas mulheres, que durante muito tempo lhes alimentaram com comidas
feitas enquanto estavam menstruadas. (Escuta e poder na esttica tikmuun Maxacali,
Rio de Janeiro, Museu do ndio, 2009: 428).
242
5 Piyet xop, em Maxakali. Chamo a ateno para o uso deste coletivizador xop, que os
Tikmuun empregam tambm para se referirem aos povos espritos: mogmoka xop (povo
gavio-esprito), putuxop (povo papagaio-esprito), maxux xop (povo anta-esprito), pop
xop (povo macaco-esprito), etc.
6Treinados pela PM, ndios-soldados reprimiam seus pares, por Andre Campos, 25
de junho de 2013.
7 Exemplo destas metamorfoses descontroladas a perigosa transformao em
inmxa, uma espcie de monstro canibal, meio-zumbi, extremamente temida pelos
Tikmuun. Algum que no cumpre o resguardo ps-parto, em especial a interdio ao
consumo de carne, enlouquece, vira bicho. Dentre os principais sintomas desta
transformao indesejada est o apetite por carne crua, alm desta estranha atitude
de no reconhecer os prprios parentes, agredindo-os violentamente e podendo, s
vezes, mat-los.
243
incomuns em toda a regio e menos ainda os seus desdobramentos policiais e jurdicos. Mesmo tendo acontecido na porta de um estabelecimento
comercial, em plena luz do dia, nenhum dos presentes viu ou soube apontar
qualquer indcio do assassino ou do seu veculo. Por falta de evidncias, o
crime foi arquivado. Este justamente o evento que conferiu montagem
do filme o seu fio condutor. No esforo de embaralhar o passado e o
presente de violncias, o documentrio intercala as entrevistas com as
imagens do ritual de cura da sobrinha que sonhou com a tia falecida, da
visita de Isael e Sueli Maxakali ao tmulo de Osmino Maxakali (esposo
de Daldina, assassinado por um fazendeiro e abandonado na estrada de
gua Boa, em 1984), alm da manifestao que os Tikmuun realizaram
no local do atropelamento da prpria, onde, dias depois da sua morte,
alguns ouviram-na cantar.
Numa tarde de junho de 2016, durante uma reunio em que algumas
autoridades alertavam os Tikmuun para as consequncias nefastas do
golpe que ento se tramava em Braslia, Sueli Maxakali tomou o microfone e afirmou: Para ns, a ditadura ainda no acabou!. Eu arriscaria
acrescentar: no acabou porque tambm no comeou com a ditadura.
O que costumamos identificar como um perodo especialmente violento
da nossa histria foi, para os Tikmuun, mais um perodo numa histria
de violncias que se arrasta durante sculos de chumbo. Violncias que
ainda enfrentam, diariamente, cada vez que se atrevem a deixar as diminutas terras onde foram confinados e que nenhum governo democrtico
se esforou at hoje para ampliar; quando algum fazendeiro dispara seu
revlver contra crianas que saram em busca de algum passarinho nas
suas terras; quando algum ndio morto num acidente qualquer que,
como outro qualquer, no ser investigado ou punido; quando padecem
nas enfermarias da regio sofrendo com as doenas que seus pajs no
podem curar; quando choram os filhos que perderam, vtimas de gripe
ou desnutrio; quando so extorquidos e perpetuamente endividados
pelos comerciantes locais; quando tm de se virar para comer e beber o
que tm, quando tm; e quando, apesar de tudo isso, ainda precisam ouvir
da boca de algum regional que todos eles no passam de cachaceiros
preguiosos sustentados pelo governo.
E no que, ao contrrio das nossas expectativas (e talvez justamente para contrari-las), os Tikmuun no passam os seus dias se
lembrando de tudo que sofreram e ainda sofrem diariamente?! Isto no
quer dizer que no se lembrem, claro. Lembram-se muito bem de
tudo o que aconteceu e, especialmente, onde aconteceu mais at do
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8 Fao aqui aluso ao texto A imagem pode matar?, de Jos Marie Mondzain (Lisboa,
Passagens, 2009)
9 Numa fala recente, durante o evento Mekukradj: crculo de saberes indgenas,
organizado pelo Ita Cultural, em So Paulo, Sueli Maxakali disse que as imagens
so como flechas que entram no nosso corpo e capturam a nossa alma.
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Jair Fonseca
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Cabelo Mgico
Jnia Torres
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de beleza majoritariamente masculinos, espaos de intensa proximidade entre quem filma e filmado e entre ns que assistimos ao filme.
O que nos coloca de forma contundente dentro do universo filmado e do
filme nos aprece ser a proximidade detalhista da cmera que etnografa
os rostos, os cabelos, os desenhos e os penteados, proximidade que
tambm conformada pela espacialidade, pela impossibilidade de recuo,
onde o espao reduzido alis caracterstica da espacialidade prpria
dessas comunidades tem o efeito de gerar forma flmica, intimidade e
cumplicidade. Deixa na Rgua nos transporta para ambientes especiais,
podendo ser ele mesmo, uma espcie de ritual de cabelo, que nos torna
participantes de um universo prprio de cabelos especialmente esculpidos,
desenhados, moldados.
A vida l fora em Deixa na Rgua (e h muita vida l fora) acessada
e nos tornada acessvel to somente a partir de espaos encerrados e
dos assuntos que l se travam temas da vida privada, como a alegria
pelo primeiro filho, os amores que deram certo e que no deram, as
conquistas sexuais, a tristeza da perda da irm para o trfico, a conversa
sobre preos e modelos das armas, objetos includos no cotidiano desta
comunidade, fazem parte da vida. Incertezas e existncias particulares
se revelam entre o amor e o conflito aqui, como em todo lugar. Aspectos
da vida so contados, narrados, zoados, sem quaisquer interferncias
em off ou dialgicas do diretor a transparecerem nos planos montados
(evidentemente deve haver dilogo e at mesmo particular direo entre
o realizador e as pessoas em cena, mas no esta a matria constitutiva
do filme que nos oferecido). O que importa trazer essa vida comentada entre iguais circunstanciais, frequentadores daqueles espaos dos
sales semanalmente e donos daqueles cabelos (!), comunidade nem
to circunstancial.
A exposio das obras cabelos amplificada pelas imediatas e
urgentes fotografias ou selfies para postagem. Adquirem sentido quando
compartilhadas. So feitas para serem compartilhadas, pode-se dizer.
Esse simbolismo pblico dos cabelos para quem quer deixar na rgua
diz algo sobre o estado das coisas, mas tambm faz coisas, muda coisas,
conforma socialidades e subjetividades especficas, faz viver junto, embeleza o mundo, faz fazer um filme que muda a forma pela qual nos relacionamos com tais universos e personagens e seus valores estticos
diversos, nos faz admir-los, e por vezes, magicamente, nos faz querer
imitar seus cortes, ou suas imensas tranas coloridas a causar beleza e
assombro nos espaos pblicos da cidade. Potncia esttica e, portanto,
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Desses espaos pequenos e compartilhados coletiva e animadamente emergem fatos da vida dos meninos e homens do morro, um
mundo masculino que emerge inusitadamente reconfigurado por cuidados
e vaidade, nos revela um filme cuja forma aparentemente simples, como
a vida pode ser aparentemente simples, dentro de um salo de beleza. Tal
simplicidade aparente no o diminui, pelo contrrio, ao que nos parece.
Forma do filme, correlata ao universo que partilha. Queremos apostar
que a magia, que est nos cabelos, na dana, no corpo, est tambm,
nesse caso (e em tantos outros), no documentrio. Nos parece que um
dos empreendimentos mgicos do filme nos fazer pensar nos filmes
do cinema direto, como os de Wiseman, onde a cmera parece milagrosamente no estar l, tal a naturalidade com que os atores continuam
envolvidos em suas aes e conversas cotidianas, algo dificlimo frente
proximidade radical, j mencionada acima, conferida pela prpria espacialidade onde se desenrolam as cenas em Deixa na Rgua. E, ento,
conhecendo os filmes e um pouco da trajetria do autor, nos parece que,
contrariamente ao direto, tal naturalidade e o transbordamento da vida
para o filme, do morro para a cidade, emerge da intensa relao anteriormente estabelecida por Domingos e sua equipe com seus amigos dos
morros onde filmou e com o universo ou multiverso das comunidades de
periferia do Rio de Janeiro. Etnografia, trabalho de cmera e encenao
aqui se combinando de forma singular.
Por fim, o cinema de Domingos que acreditamos, pode ir ainda mais
longe marcado por uma coerncia notvel e rara. E no propriamente
temtica, mas espao-social. Uma filmografia que compe uma obra
relacional tambm internamente, entre seus filmes, ancorada, pode-se
dizer, em estabelecer dilogo e cumplicidade com seus personagens
e, de quebra, destes com seus espectadores, cinema de aliado. Assim,
invertendo radicalmente a perspectiva estigmatizante tragicamente
concretizada a cada tiro que mata ou encarcera violentamente milhares
de jovens negros no pas, esse cinema contribui para alterar o olhar
(eternizado e cristalizado por essa TV canhestra que nos assombra cotidianamente) sobre os moradores e as comunidades pobres do Rio e de
todo o pas, invertendo o polo da falta, da escassez, da incapacidade, da
violncia, do estigma. Deixa na Rgua nos leva eficincia dos movimentos
estticos inventados e compartilhados intensamente das periferias, dos
movimentos do cabelo, do estilo, de uma vida intensamente elaborada do
ponto de vista dos corpos simbolicamente investidos, de sua performance
e do estar junto. E, com a obra de Emlio, junto tambm do cinema.
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Leonardo Amaral
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Paula Kimo
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por Kadu, mas do sonho de uma comunidade por vir, uma comunidade
que se constri tijolo por tijolo.
Depois, o tempo do conflito, da disputa, no apenas o conflito entre
civis e militares que vemos em cena do Estado contra o povo pobre e
humilde, nas palavras de Kadu mas tambm da disputa por visibilidade,
da disputa pelo olhar do espectador por vir, aquele que teceria um fio de
esperana ante a solido da luta cotidiana dos sem-casa.
Por fim, o tempo mesmo do fim, o tempo da morte onde as imagens
no so visveis, tampouco a esperana. Nesse tempo no mais escutamos Kadu, apenas sentimos o impacto de seu assassinato anunciado
por uma cartela preta, apenas sabemos que ele era devoto de So Jorge
e So Miguel e trabalhava numa kombi de nome Jandira. Na cartela final,
o filme apresenta mais uma misso ao se dedicar memria de Kadu. A
partir de ento, Kadu nunca mais abandonaria nossa memria. Para o
filme, uma inesperada e desoladora misso: o luto da luta. Para ns, o
entendimento de que essas imagens surgem no mundo para intervir no
presente e cumprir uma urgente e inadivel misso.
Companheiro Kadu, presente!
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Junho no plural
Vincius de Andrade
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Nota-se tambm a recusa em lanar um olhar de cima das mobilizaes ou circunscrev-las em demasiado, bem como a de abord-las
como se tivessem iniciado como um trovo em cu aparentemente sereno,1 A recusa que nos parece mais singular, no entanto, est ligada ao
uso do som direto. Podemos escutar ao longo do filme as vozes, gritos
e palavras advindos das ruas, tal como foram captadas em meio aos
embates, o que constitui uma diferena marcante em relao maioria
dos longas-metragens sobre as manifestaes. Os acontecimentos de
rua no so aqui apresentados sob a forma de videoclips trilha rockroll,
teor de energia exacerbado, montagem acelerada , tratamento que retira
a possibilidade de pensamento sobre os conflitos a partir de sua prpria
observao e faz das ruas um lugar alijado de razo.
Trata-se, em Vozerio, de uma narrativa organizada por uma montagem
hbil o suficiente para manter-se aberta complexidade dos acontecimentos e vibrando, em alguma medida, com a pluralidade das vozes.
Essa organizao pode ser percebida em pelo menos trs gestos, sendo
o primeiro deles (ligado prpria trajetria do documentarista Vladimir
Seixas) o de acercar os problemas do Rio de Janeiro pelas margens: as
manifestaes de Junho e as pautas que nela surgiram no so mostradas
sem que antes passemos pelas injustias vividas por indgenas e moradores
de periferia e a violncia policial nas manifestaes assim vista luz do
estado de exceo permanente a que essas populaes so submetidas.
tambm destacado um segundo gesto, o de elaborao de cenas
em que outras produes so filmadas em seu processo de realizao.
Diante do j mencionado desafio de filmar as revoltas de Junho, Vozerio
d nfase ideia de mediao e assume o imperativo de visar o modo
como esses acontecimentos vem sendo visados o que ficar evidente,
afinal, na quantidade de entrevistas feitas com fotgrafos, cinegrafistas
e montadores. Embora padecendo, por vezes, da busca por abarcar uma
ampla variedade de questes, a exemplo da incluso dos registros das
entrevistas feitas pelos cineastas Carlos Pronzato e Slvio Tendler para
seus respectivos documentrios.
Essa operao se relaciona terceiro procedimento importante
com a efetiva incorporao de imagens produzidas por outros fotgrafos,
cinegrafistas e cineastas. Consciente da impossibilidade de realizar, nos
tempos atuais, um filme engajado sem a utilizao de imagens produzidas
por outrem, o filme adota a fotografia coletiva e imagens de diferentes
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Carla Maia
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E nada do que foi ouvido pode ser repetido com as mesmas palavras
Ewerton Belico
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A impureza da forma
Marcelo Miranda
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entendimento de que at nisso eles seriam favorecidos na hora de decidirem por abortar numa sociedade patriarcal e machista).
O que se inicia numa intriga possvel vai se desfazendo a cada imagem
e a cada udio desconectado. As disjunes no so apenas da ordem
imagem-som, mas tambm som-som ou imagem-imagem. Uma msica
de Kurt Weill e Bertolt Brecht cantada em alemo e legendada em
portugus, mas a letra no original da cano, e sim um hino ao proletariado. Uma cartela de filme mudo ocupa a tela com texto em ingls, mas
a traduo outra. Uma mulher volta para casa (num condomnio do
Capo Redondo, distrito de So Paulo), abre a porta e o corte de montagem
nos leva a uma cena de um curta-metragem de Charlie Chaplin (One A.M,
1916) em que Carlitos tenta entrar em casa bbado. Quando ele finalmente
consegue (depois das gags rotineiras), a montagem retorna mulher que
entra, agora sendo vista do lado de dentro, a fechar a porta da cozinha.
O longussimo plano que se segue, tal como a Chantal Akerman de
Jeanne Dielman, deixa que o corpo da atriz Talita Talissa circule pelo espao
e se relacione consigo mesmo e com os objetos. Um close repentino,
depois de vrios minutos de plano fixo, oblitera a iluso de documentrio. H uma cmera ali, um olhar, e esse olhar tem propsitos para
alm de apenas mostrar o que se passa diante da lente. um olhar de e
para o fragmento. A voz de Talita ouvida em off, num depoimento sobre
a frustrao com o servio de atendente de telemarketing. A descrio
de seu dia a dia e os constantes obstculos enfrentados fazem a mente
retomar s trapalhadas de Carlitos completamente inbil para conseguir
entrar em casa. De uma imagem concreta vinda do imaginrio cinematogrfico e de vis cmico-satrico do homem dificultoso em ocupar o
espao que lhe pertence no-imagem do discurso de Talissa como
algum cortando um dobrado para conseguir pagar o aluguel no fim do
ms (enquanto, na imagem, v-se a moa dentro da casa que ela tanto
batalha para manter), tem-se a conexo imprevisvel, que define o tipo
de procedimento de Filme de Aborto no trato com o material que articula.
Por que voc lembrou dessa histria?, ouve-se Lincoln, a interpelar
Talissa sobre o relato de uma colega de trabalho que, grvida de sete
meses, suicidara-se. Na imagem, a me lava os cabelos da filha debaixo
do chuveiro. Ela responde: Sei l, voc fica a fazendo pergunta, eu fico
achando que voc quer ouvir alguma coisa de impacto. A interveno da
entrevistada (real ou ficcional, no importa) diretamente na realizao do
filme no se difere das demais intervenes que Filme de Aborto possui
em cada minuto de seus pouco mais de 60. O off de Talissa que se dirige
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Cmara de espelhos
Carla Italiano
Julia Fagioli
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Wellington Canado
Praticamente tudo que as sociedades modernas, extensivamente urbanas, constroem, produzem e consomem vem do
solo. Minerais, petrleo, madeira e gua viabilizam a complexa
tectnica do mundo ocidental ferramentas, objetos, mquinas,
veculos, edifcios e cidades so feitos de metais, plsticos,
betume, compensados e outros sintticos.
Para que esta simples pgina exista muitas rvores foram
necessrias e um volume brutal de solventes, resinas, leos e
pigmentos orgnicos e inorgnicos foram mobilizados para fixar
as palavras no papel.
Propulsionados por combustveis fsseis e baterias alcalinas,
com nossos corpos invadidos por titnio, silicone, microchips e
nanorobs, continuamos, revelia dos delrios tecnocientficos
e aceleracionistas, dependentes de outros seres que nascem
do cho, crescem nos campos, vivem nos rios e oceanos para
sobreviver enquanto espcie.
Se convencionamos em algum momento chamar tudo isso
de Natureza, foi em grande medida para que pudssemos manter
a distncia crtica necessria para subjug-la aos desgnios
humanos, e uma vez desanimado o mundo, redesenh-lo como um
grande repositrio de recursos naturais e provedor inesgotvel
e benevolente de matrias-primas. A voracidade capital dessa
economia extrativista que no cessa de comoditizar, foi capaz
de fazer da urbanizao matriz espacial constitutiva da modernidade um artefato planetrio sem precedentes, um bioma
antropognico1 que reconfigura material e extensivamente
1 ELLIS, Erle C.; RAMANKUTTY, N. Putting people in the map: anthropogenic
biomes of the World. Frontiers in ecology and the Environment. 2008.
6(8):439447. Disponvel em: <http://ecotope.org/people/ellis/papers/
ellis_2008.pdf>
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3 TAVARES, Paulo. Nonhuman Rights. Los Angeles: Creative Ecologies, 2015, p.553 disponvel
em: <https://creativeecologies.ucsc.edu/wp-content/uploads/sites/196/2015/10/TavaresNHR_Forensis.pdf>
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Ana Carvalho
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PROGRAMAO
ENDEREOS
CINE HUMBERTO MAURO | Avenida Afonso Pena |1.537 | Centro
Cine104 | Praa Ruy Barbosa | 104 | Centro
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ndice de filmes
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Abigail, 69
A Cidade Onde Envelheo, 69
A Destruio de Bernardet, 101
Ama-San, 91
Ano Branco, 52
As Mina na Batalha, 70
Av Marangatu, 70
Av Yvy Vera | A Terra do Povo do Raio, 102
Blue, 51
Brothers of the Night, 91
Cmara de Espelhos, 71
Cantos em um encontro de pajs
Tikmuun-Maxakali, 102
Castanha, 55
Cinema Novo, 71
Curupira, 92
Deixa na Rgua, 72
Deseos, 56
DHPG Mon Amour, 48
"Eu vim de muito longe", 104
Eu volto ao Lado deles, 72
Filme de Aborto, 73
Grin, 73
Heaven, 58
I Dance with God, 93
Imagens do Estado Novo 193745, 103
Ingrid, 57
Jardim Nova Bahia, 107
Jollies, 48
Kbela, 74
Kiedy ten wiatr ustanie | When Will
this Wind Stop, 97
Kombit, 93
Kongxeka: O Dilvio Maxakali, 74
La Balada del Oppenheimer Park, 94
La Visin de los Vencidos, 53
Los Leones, 58
Martrio, 23
Mazraet Al Abkaar | The Cow Farm, 94
Modern, 55
Na Misso, com Kadu, 75
Naomi Campbel, 52
Naufragios, 54
Nefandus, 54
No Skin Off My Ass, 49
Nunca Noite no Mapa, 76
Obra Autorizada, 75
O Novo Monumento, 53
Para Onde Foram as Andorinhas?, 76
Paris is Burning, 49
Portrait of Jason, 47
Preldio de Uma Morte Anunciada, 50
Runa, 77
Sem Ttulo # 3 : E para que Poetas em
Tempo de Pobreza?, 77
Srgio e Simone, 51
She has a Beard, 47
Super Orquestra Arcoverdense de
Ritmos Americanos, 78
Taego wa, 78
Tarum, 107
Then, then, then, 95
Tongues Untied, 50
Trans*lucidx, 56
Tukuyninchiq Tutanchiq, 95
U Kn Patax | Na Minha Aldeia, 101
Ujirei | Re-ramagem, 103
Virgindade, 57
Vozerio, 79
Wake (Subic), 96
When Two Worlds Collide, 96
You yi nian | Another Year, 97
ndice de diretores
Aiano Bemfica, 75
Alipio Cuila, 95
Aloysio Raulino, 107
Andr Lage, 58
Anibal Garisto, 93
Aniela Astrid Gabryel, 97
Ali Sheikh Khudr, 94
Bruce La Bruce, 49
Bruno Vasconcelos, 102
Camila Jos Donoso, 52
Carl Michael George, 48
Carlos Adriano, 77
Carlos Motta, 53, 54, 56
Charles Bicalho, 74
Chico Lacerda, 57
Claudia Priscilla, 101
Cludia Varejo, 91
Daniel Schioler, 95
Davi Pretto, 55
Dea Ferraz, 71
Derek Jarman, 51
Desiderio Ochoa, 95
Deysi Teresa Llusco, 15
Dulcdio Gomes | Kaiowa, 70, 102
Edgar Correa Kanayk, 101
Edina Ximenez | Kaiowa, 70, 102
Eduardo Escorel, 103
Efigenia Encinas, 95
Eusebio Caba, 95
Emlio Domingos, 72
Eryk Rocha, 71
Ernesto de Carvalho, 23, 76
Gabraz, 77
Genito Gomes | Kaiowa, 70, 101
Guilherme Cury, 101
Grazie Pacheco, 70
Heidi Brandenburg Sierralta, 96
Henrique Borela, 78
Hooshang Mirzaee, 93
Iago Cordeiro Ribeiro, 75
Isael Maxakali, 73, 74
Isabel Penoni, 69
Jennie Livingston, 49
Jhonatan Gomes | Kaiowa, 70, 102
Jhonn Nara Gomes | Kaiowa, 70, 102
John Gianvito, 96
Joilson Brites | Kaiowa, 70, 102
Josemar Maxakali, 102
Juan Manuel Seplveda, 94
Kadu Freitas, 75
Leandro Cordeiro, 72
Lincoln Pricles, 73
Luiz Roque, 51, 53, 55, 58
Maick Hannder, 57
Marcela Borela, 78
Mari Corra, 76
Marlon Riggs, 50
Marlia Rocha, 69
Marilton Maxakali, 102
Mateo Sobode Chiqueno, 103
Mathew Orzel, 96
Miro Spinelli, 56
Norma Bahia Pontes, 47
Nicols Videla, 52
Patric Chiha, 91
Pedro F. Neto, 92
Pedro Maia de Brito, 75
Pedro Marques, 101
Rafael Frana, 50
Rita Moreira, 47
Sadie Benning, 48
Sarah Brites | Kaiowa, 70, 102
Sergio Oliveira, 78
Shengze Zhu, 97
Shirley Clarke, 47
Tita, 23
Valentina Homem, 69
Valmir Gonalves Cabreira | Kaiowa, 70, 102
Vincent Carelli, 23
Virginia de Medeiros, 51
Vladimir Seixas, 79
Yasmin Thayn, 74
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catlogo (organizao)
Glaura Cardoso Vale
Jnia Torres
Carla Italiano
arte
Paulo Maia
Ana C. Bahia
organizao | produo
associao filmes de quintal
Jnia Torres
Carla Italiano
Pedro Leal
Layla Braz
Luisa Lanna
Ewerton Belico
Frederico Sabino
Rassa Leo
site
Carla Italiano
Julia Fagioli
Roberto Cotta
Raquel Junqueira
Naty Tremblay (colaborao)
Carolina Canguu
Pedro Veras
Renata Otto
Frederico Sabino
bolsistas
Andr Victor
Cristiano Arajo
Eduarda Bona
Jlia Imbroisi
Marcos Martins
produo
Pedro Leal
colaborao
298
Roberto Romero
vinheta
traduo
lvaro Andrade
Ana Carolina Antunes
Carolina Canguu
Daniel Ferreira
Douglas Resende
Fbio Menezes
Flvia Camisasca
Frederico Sabino
Gabriela Figueiredo
Guilherme Marinho
Henrique Cosenza
Laura Torres
Las Ferreira
Lus Felipe Flores
Luis Valente
Luisa Lanna
Roberto Romero
Tanita Zeien
forumdoc.bh.2106
legendagem eletrnica
agradecimentos
Frames
cabine de projeo
Bernard Machado
Julio Cruz
festa de encerramento
Pedro Leal
101
assessoria de imprensa
sinal de fumaa
produo
Dayanne Nassa
Matheus Pereira
Mariah Soares
Vitor Miranda
estagiria
Gabriela Barbosa
equipe tcnica
Mercdio Alvinho Scarpelli
Milton Clio Rodrigues
Rufino Gomes Arajo
suporte administrativo
Roseli Pessoa Miranda
ISBN 978-85-63837-11-0
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apoio cultural
apoio
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ppggan
sexua
ox
t he b
t of
l i t y ou
apoio LOGstico
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realizao