Revista Da ESMAPE, Vol. 10, #21 (2005)

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ESCOLA SUPERIOR DA

MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO
Rua Imperador Pedro II, n.o 221 Santo Antnio Recife - PE. CEP.: 50010-240
Site: http://www.esmape.com.br

Sem ttulo-6 1 29/8/2006, 20:16


ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO ESMAPE
Cursos oficializados pelo Tribunal de Justia do Estado de Pernambuco,
conforme Resoluo n o 24/87, constante da Ata da 5 a sesso de 23/03/87.
Rua Imperador Pedro II, n.o 221, Santo Antnio Recife PE. CEP.: 50010-240
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DIRETORIA

Des. JOS FERNANDES DE LEMOS - Diretor Geral

Juiz SILVIO ROMERO BELTRO - Supervisor

Juz ALEXANDRE FREIRE PIMENTEL - Coordenador dos Cursos Extenso,


Ps-Graduao, Preparao e Aperfeioamento de Magistrados

Juiz JOS ANDR MACHADO BARBOSA PINTO - Coordenador do Curso


de Preparao Magistratura

Juiz CARLOS FREDERICO GONALVES DE MORAES


Juiz SAULO FABIANNE DE MELO FERREIRA - Coordenadores de
Comunicao Social

Juza FERNANDA MOURA DE CARVALHO - Coordenadora de Prtica


Jurdica Criminal em Servio e em Sala de Aula

Juiz JOS ANDR MACHADO BARBOSA PINTO


Juiz ADEILDO NUNES - Coordenadores de Eventos Cientficos e Culturais e
da Assessoria Jurdica Virtual

Juiz ANTNIO CARLOS ALVES DA SILVA - Coordenador de


Aperfeioamento de Servidores

Des. JOS ANTNIO MACDO MALTA - Presidente do Tribunal de Justia


do Estado de Pernambuco

Sem ttulo-6 2 29/8/2006, 20:16


ISSN 1415-112X

ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA


DE P ERNAMBUCO

REVISTA DA ESMAPE

Volume 10 Nmero 21
janeiro/junho 2005

Recife Semestral

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 001-640 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 3 29/8/2006, 20:16


Copyright by ESMAPE

COMISSO EDITORIAL

Presidente: Juiz Carlos Frederico Gonalves de Moraes

Membros: Juiz Alexandre Freire Pimentel Juza Ana Paula Costa de Almeida
Juiz Andr Vicente Pires Rosa Juza Blanche Maymone Pontes Matos
Juza Fernanda Moura de Carvalho Juiz Lcio Grassi de Gouveia

Coordenao Tcnica e Editorial: Bel. Joseane Ramos Duarte Soares


(Bibliotecria CRB-4/1006)

Reviso: Ana Maria Csar

Editorao eletrnica: Joselma Firmino

A REVISTA DA ESMAPE divulga assuntos de interesse jurdico-pedaggico. Os


artigos so de responsabilidade dos respectivos autores, sendo resguardada a
pluralidade de pensamento. Os conceitos emitidos no expressam, necessaria-
mente, a opinio da Comisso Editorial.
A Revista da ESMAPE cumpre a Lei no 1.825 de 20/12/1907 (Depsito Legal)
sendo enviada para a Biblioteca Nacional.

DIREITOS RESERVADOS ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE PERNAMBUCOE S M A P E

Tiragem: 1200 exemplares


Solicita-se permuta/exchange disued/on demande change

[email protected] [email protected]
[email protected] www.esmape.com.br

Revista da ESMAPE / Escola Superior da Magistratura de Pernambuco


Ano 1, n.1 (1996- ). Recife :
ESMAPE, 1996
v. Semestral

1. Direito-Peridico. I. Escola Superior da Magistratura de


Pernambuco

CDD 340.05

Impresso no Brasil Printed in Brazil 2005

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Corpo Docente
Cursos de Preparao Magistratura
Equipe de Professores

1 PERODO

Direito Constitucional I
Professor Andr Rgis de Carvalho
Juiz Estadual Andr Vicente Pires Rosa

Direito Administrativo I
Procurador Estadual Joo Armando Costa Menezes
Conselheiro subst. Tribunal de Contas Marcos Antnio Rios da Nbrega

Direito Civil I
Juiz Estadual Jorge Amrico Pereira de Lira

Direito Penal I
Delegado Estadual Jos Durval de Lemos Lins Filho
Promotora de Justia Joana Cavalcanti de Lima

Direito Processual Civil I


Professor Doutor Srgio Torres Teixeira
Professor Doutor Lcio Grassi de Gouveia
Juza Iasmina Rocha

Direito Processual Penal I


Promotora de Justia Patrcia Carneiro Tavares
Advogado Joo Olmpio Valena de Mendona

Direito Tributrio I
Professor Doutor Hlio Silvio Ourem Campos
Advogado Aristteles Queiroz Cmara

Sem ttulo-6 5 29/8/2006, 20:16


Direito Empresarial I
Advogado Eduardo Montenegro Serur

Administrao Judicaria
Juza Wilka Pinto Vilela
Desembargador Ricardo de Oliveira Paes Barreto

Responsabilidade Civil
Professora Larissa Maria Leal

Responsabilidade Civil
Professora Doutora Fabola Santos Albuquerque

2 PERODO

Direito Processual Penal II


Juiz Estadual Carlos Alberto Berriel Pessanha
Juiz Estadual Honrio Gomes do Rego Filho

Direito Processual Civil II


Juiz Estadual Fbio Eugnio Dantas de Oliveira Lima
Professor Doutor Alexandre Freire Pimentel

Direito Civil II
Professora Larissa Maria Leal
Advogado Hebron Costa Cruz de Oliveira

Direito Penal II
Promotora de Justia Joana Cavalcanti de Lima
Juiz Estadual Laiete Jatob Neto

Direito Empresarial II
Juiz Estadual Silvio Romero Beltro

Direito Tributrio II
Juiz Estadual Jos Viana Ulisses Filho

Sem ttulo-6 6 29/8/2006, 20:16


Direito Administrativo II
Professor Eduardo Muniz Machado Cavalcanti
Procuradora Estadual Carine Delgado Cala Reis

Direito Constitucional II
Professora Sabrina Arajo Feitosa Fernandes Rocha
Procurador Estadual Andr de Albuquerque Garcia

Tcnica de Elaborao de Decises Cveis


Juiz Estadual Jos Andr Machado Barbosa Pinto
Juza Estadual Ctia Luciene Laranjeira de S Sampaio

3 PERODO

Direito da Criana e do Adolescente


Juiz Estadual Humberto Costa Vasconcelos Jnior
Juiz Estadual Luiz Carlos de Barros Figueiredo

Direito Eleitoral
Juiz Estadual Mauro Alencar de Barros

Direito Penal III


Procurador da Repblica Antnio Carlos de V. Coelho Barreto Campello

Direito Processual Civil III


Desembargador Ricardo de Oliveira Paes Barreto

Direito Processual Penal III


Juza Estadual Sandra de Arruda Beltro

Teoria Geral do Direito


Professor Emlio Paulo Pinheiro D Almeida
Professor Fabiano Melo Pssoa

Tcnica de Elaborao de Decises Penais


Juiz Estadual Teodomiro Noronha Cardozo

Sem ttulo-6 7 29/8/2006, 20:16


Direito Civil III
Juiz Estadual Alberto Flvio Barros Patriota
Desembargador Leopoldo de Arruda Raposo

Medicina Legal
Mdico Legista Clvis Csar de Mendoza

Direito do Consumidor
Procuradora Rosana Grimberg

Cursos de Ps-Graduao
Direito Civil e Processo Civil

Prof. Dr. Alexandre Freire Pimentel


Prof. Dr. Joo Ferreira Braga
Prof. Ps-Dr. Joo Maurcio Adeodato
Prof. Esp. Paulo Dias Alcntara
Prof. Msc. Ricardo de Oliveira Paes Barreto
Prof. Ivo Dantas
Prof. Dr. Lcio Grassi
Prof. Msc. Slvio Romero Beltro
Prof. Dr. Hlio Slvio Ourem
Prof. Dr. Delosmar Mendona
Prof. Esp. Francisco Rodrigues
Prof. Artur Stamford

Direito Constitucional, Administrativo e Tributrio

Prof. Msc. Andr Vicente Pires Rosa


Prof. Msc. Dr. Marcos Antnio Rios da Nobrega
Prof. Msc. Francisco Alves
Prof. Msc. Dr. Fernando Arajo
Prof. Esp. Paulo Alcntara
Prof. Msc. Dr. Raymundo Juliano Feitosa
Prof. Ps-Doutor Joo Maurcio Adeodato

Sem ttulo-6 8 29/8/2006, 20:16


Prof. Walber de Moura Agra
Prof. Dr. Adonis da Costa e Silva
Prof. Msc. Jos Lopes Filho
Prof. Msc. Jackson Borges de Arajo
Prof. Esp. Oswaldo Morais
Prof. Msc. Jos Viana Ulisses Filho
Min. Jos Delgado
Prof. Dr. Hlio Ourem Campos
Prof. Msc. Ivo Dantas
Prof. Msc. Artur Stamford

Direito Penal e Processo Penal

Profa. Dra. Virgnia Colares


Prof. Msc. Dr. Ricardo de Brito
Prof. Dr. Claudio Brando
Prof. Msc. Paulo Csar Maia Porto
Prof. Mcs. Flvio Fontes
Prof. Ps-Doutor Joo Maurcio Adeodato
Prof. Dr. Cezar Roberto Bittencourt
Prof. Esp. Paulo Alcntara
Prof. Dr. Roque de Brito Alves
Profa. rica Lopes
Prof. Msc Dr. Joo Olmpio Mendona
Prof. Mcs, Dr. Carlos Alberto Berriel Pessanha
Prof. Ps-Doutor Joo Maurcio Adeodato
Prof. Des. Nildo Nery

Direito Privado (Civil e Empresarial)

Prof. Esp. Jorge Amrico Pereira de Lira


Prof. Ps-Doutor Joo Maurcio Adeodato
Profa. Msc. Larissa Leal
Profa. Dra. Fabola Santos
Prof. Dr. Geraldo Neves
Prof. Dr. Sady Torres
Prof. Msc. Ruy Trezena Patu Junior

Sem ttulo-6 9 29/8/2006, 20:16


Prof. Msc. Eduardo Serur
Prof. Dr. Paulo Lbo
Prof. Msc. Slvio Romero Beltro
Prof. Msc. Slvio Neves Baptista
Prof. Msc. Ivanildo Figueiredo
Prof. Esp. Paulo Alcntara

MBA Administrao Judiciria

Profa. Maria Marly Oliveira


Prof. Msc. Ricardo de Oliveira Paes Barreto
Profa. Msc. Zlia Mendona
Prof. Msc. Slvio Romero Beltro
Prof. Dr. Almir Menelau
Prof. Msc. Joaquim Bezerra
Prof. Isaac Seabra
Prof. Msc. Bento Albuquerque
Prof. Dr. Alexandre Freire Pimentel
Profa. Msc. Suzana Sampaio
Prof. Msc. Carlos Maurcio
Prof. Msc. Otto Benar
Prof. Msc. Hermenegildo Pdua

Sem ttulo-6 10 29/8/2006, 20:16


S umrio
Nossa capa .................................. 17

T eoria

PA RC E R I A S P B L I C O - P R I VA DA S : P R I N C I PA I S
ASPECTOS
Ana Ceclia Moura Campos ....................................................... 21

BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO


ESTADUAL
Andr de Albuquerque Garcia ....................................................... 33

ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA NOVA LEI DE


FALNCIAS
Andresa Maria dos Santos .............................................................. 65

A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO


M E S M O S E XO E A N E C E S S I DA D E D E S UA
REGULAMENTAO NORMATIVA
Blanche Maymone Pontes Matos ............................................ 73

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE
PREVENO DO ILCITO: A SENTENA INIBITRIA
E AS VIAS ADEQUADAS DE IMPUGNAO
Bruno Angelim Figuera ............................................................... 101

APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR


NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB)
Celso Augusto Coccaro Filho ........................................................ 129

HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA


Cludio Brando .......................................................................... 139

AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE


CONSTITUCIONAL
Fabiana Carla Canuto Souto Maior Lemos .................................. 159

O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL


E SUAS REPERCUSSES NA TEORIA CLSSICA DA
RELAO JURDICA OBRIGACIONAL
Fabola Santos Albuquerque ......................................................... 181

O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO


Hailton Gonalves da Silva .......................................................... 197

QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS


Hlio Silvio Ourem Campos ......................................................... 221

UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS


ELETRNICOS DE CONSUMO E A RESPONSABILIZAO
DO FORNECEDOR POR VCIOS DO PRODUTO:
PL 4906/01-OAB, Cdigo de Defesa do Consumidor e um
pouco de direito comparado
Itamar Dias Noronha Filho .......................................................... 237

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez
possam dar futuro risonho ao agronegcio!
Jayme Vita Roso ........................................................................... 265

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO
RECURSAL PRVIO DA ESFERA ADMINISTRATIVA
Jos Carlos Arruda Dantas ........................................................... 281

A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA


NOVA LEI DE FALNCIA
Karla Virgnia Bezerra Carib ..................................................... 299

SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES


OCORRIDAS COM O ADVENTO DO NOVO CDIGO CIVIL
Katyanna Alencar Muniz ............................................................ 319

DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA:


ASPECTOS GERAIS E PROCESSUAIS DO INSTITUTO
Leonardo Lumack do Monte Barretto .......................................... 349

CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A


VERDADE NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO
Lcio Grassi de Gouveia e Iasmina Rocha .................................. 371

DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA


APLICAO QUANTO UTILIZAO DE PROVAS
ILCITAS NO PROCESSO PENAL
Rebeca Mignac de Barros Rodrigues ............................................ 407

LEI 11.106/2005: Novas modificaes ao Cdigo Penal Brasileiro


Renato Marco ............................................................................. 435

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL
COM AUXLIO DA SOCIOLOGIA LUHMANNIANA
Roberta Virgnia de Souza e Silva ................................................ 469

A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW


Um Estudo Comparado em Face do Civil Law
Rosngela Arajo Viana de Lira .................................................. 487

O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA
Uma viso do princpio observado sobre a estrutura do conceito
de culpabilidade
Sabrina Arajo Feitoza Fernandes Rocha ................................... 515

A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA
MANDAMENTAL
Simone Duque de Miranda ...................................................... 541

VERDADE E PRAGMATISMO:
O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD RORTY
Teodomiro Noronha Cardozo ........................................................ 567

P rtica

SENTENA CVEL. Ao coletiva de indenizao.


Condomnio do Conjunto Residencial Enseada do Serrambi
Clicrio Bezerra e Silva ................................................................ 585

SENTENA CVEL E COMERCIAL Marca grfica


Jorge Amrico Pereira de Lira ....................................................... 609

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE
Nilson Guerra Nery ....................................................................... 615

S E N T E N A C R I M I NA L . A R Q U I VA M E N T O D E
INQURITO POLICIAL. POSSE DE ARMA DE
FOGO. ATIPICIDADE TEMPORRIA
Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim .................................... 631

Sem ttulo-6 15 29/8/2006, 20:16


Sem ttulo-6 16 29/8/2006, 20:16
Sem ttulo-8 21 29/8/2006, 20:23
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PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 21

PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS:
PRINCIPAIS ASPECTOS

Ana Ceclia Moura Campos


Advogada. Ex-aluna da Escola Superior da
Magistratura de Pernambuco - ESMAPE

SUMRIO
1 INTRODUO; 2 NATUREZA JURDICA DO INSTITUTO, CONCEITO
E OBJETIVOS; 3 MODALIDADES; 4 CARACTERSTICAS E DIRETRIZES;
5 CLUSULAS ESSENCIAIS E NO ESSENCIAIS E VEDAES; 6 SOCI-
EDADE DE PROPSITOS ESPECFICOS ; 7 PROCEDIMENTO
LICITATRIO; 8 REFERNCIAS

1 INTRODUO

As parcerias pblico-privadas foram introduzidas no


nosso ordenamento atravs da Lei 11079/2004, de 30/12/
2004, que institui as normas gerais do assunto, baseada na
competncia prevista no artigo 22, XXII da nossa Constitui-
o Federal (competncia da Unio para legislar sobre normas
gerais).
Trata-se de uma lei federal aplicvel Unio, Estados,
Distrito Federal e Municpios, bem como s entidades da ad-
ministrao indireta, sendo estendidas tambm a fundos es-
peciais (o que retrata uma impropriedade tcnica, porque os
fundos no so entidades integrantes do aparelhamento ad-
ministrativo, no tm personalidade jurdica e sempre inte-
gram a estrutura de alguma das pessoas governamentais) e s

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22 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

outras entidades controladas direta ou indiretamente pelos


entes federativos. Esta competncia vem disposta no artigo 1
e seu pargrafo nico da Lei 11079/04, mera repetio do
artigo 1 da Lei 8666/93 Lei de Licitaes.
Alm das normas gerais, a Lei 11079/04 tambm esta-
beleceu algumas normas especficas direcionadas apenas
Unio Federal como as dispostas nos artigos 14 ao 22. Neste
campo de incidncia, os demais entes federativos podem edi-
tar sua prpria legislao, exercendo a competncia suplemen-
tar prevista na Constituio.
A parceria pblico-privada no novidade no direito
aliengena. Pases como Portugal, Inglaterra e Irlanda vm
implementando essa forma de associao com sucesso.

2 NATUREZA JURDICA DO INSTITUTO, CON-


CEITO E OBJETIVOS

A Lei 11079/04 no definiu nem o contrato de conces-


so especial, nem a parceria pblico-privada. Apenas, limitou-
se a estabelecer, em seu artigo 2, que parceria pblico-priva-
da o contrato administrativo de concesso, na modalidade
patrocinada ou administrativa.
A ementa da lei refere-se contratao de parceria pbli-
co-privada, mas o artigo 2 qualifica a parceria como contrato
administrativo de concesso. A expresso contrato de parce-
ria tecnicamente imprpria, uma vez que h total contradi-
o nos termos: os institutos contrato (na sua forma tpica) e
parceria so incompatveis. O que caracteriza a parceria a coo-
perao mtua, tcnica e financeira, com objetivos comuns,
convergentes e sem fins lucrativos, ao passo que, nos contratos,
tem-se divergncia de interesses. Nos termos da lei, portanto, o
parceiro seria uma concessionria que visa o lucro.
A teor do disposto na lei supramencionada, o ilustre
administrativista Jos dos Santos Carvalho Filho conceitua o
contrato de parceria pblico-privada como o acordo firma-

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PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 23

do entre a Administrao e pessoa do setor privado com o


objetivo de implantao ou gesto de servios pblicos, com
eventual execuo de obras ou fornecimentos de bens, medi-
ante financiamento dos riscos e dos ganhos entre os pactuan-
tes.1
A natureza jurdica de contrato administrativo de con-
cesso de servio pblico, assim dispe a prpria lei (art. 2).
A lei faz referncia delegao comum, regulada pela Lei 8987/
95, assim h que se considerar a delegao em apreo como
uma concesso especial, para diferenci-la daquela outra mo-
dalidade.
Como contrato administrativo que , incide sobre ele
o princpio da desigualdade das partes e as clusulas
exorbitantes peculiares a todos eles.
As parcerias pblico-privadas surgiram como uma alter-
nativa falta de recursos pblicos para investimentos em obras
de infra-estrutura, como a construo de rodovias, portos e
ferrovias.
Devem servir como forma de angariar investimentos do
particular e de conseguir uma gesto eficiente por parte dos
mesmos na prestao de servios pblicos.
O particular o financiador e prestador do servio p-
blico mas, no caso de prejuzo, o Poder Pblico divide-o com
o particular. A responsabilidade solidria, ou seja, riscos e
ganhos so compartilhados entre as partes.

3 MODALIDADES

A concesso especial de servios pblicos se apresenta


sob duas modalidades: a concesso patrocinada e a concesso
administrativa.

1
CARVALHO FILHO, Jos dos Santos.Manual Manual de Direito Adminis-
trativo
trativo. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2005. p. 326.

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24 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

A concesso patrocinada a concesso no conceito da


Lei 8997/95 e caracteriza-se pelo fato do concessionrio ter
duas formas de remunerao, ou seja, duas fontes de recursos:
o pagamento de tarifas pelos usurios e outra oriunda de
contraprestao pecuniria devida pelo poder concedente ao
particular contratado (recurso pblico da Administrao).
o que dispe o pargrafo 1 do artigo 2 da Lei 11079/04.
A concesso administrativa aquela concesso comum,
contudo, o usurio do servio a prpria Administrao. Te-
mos o particular prestando servio para a Administrao de
forma direta ou indireta, nos termos do artigo 2, pargrafo 2.
A lei mencionada acima faz distino no que pertine
disciplina suplementar a ser adotada conforme a modalidade
de concesso.
As concesses patrocinadas sujeitam-se aplicao sub-
sidiria da Lei n 8987/95(lei geral das concesses).
Quanto s concesses administrativas, aplicam-se su-
pletivamente alguns dispositivos das Leis n 8987/95 e
9074/95.

O objeto da concesso patrocinada a concesso de


servios pblicos ou de obras pblicas, cabendo aos usu-
rios pagar ao concessionrio a respectiva tarifa pelo uso do
servio.
Na concesso administrativa, o objeto a prestao de
servios, sendo a Administrao Pblica a usuria direta ou in-
direta. A respeito, ressalta-se o comentrio do j citado Jos dos
Santos Carvalho Filho: Nota-se, pois, que o sistema pretende admi-
tir a contratao de variada gama de servios pblicos de natureza
administrativa, nica hiptese em que se pode entender o fato de ser a
Administrao usuria direta ou indireta desses mesmos servios. 2

2
Op. cit. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Jris, 2005. p.328z

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PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 25

Embora possua alguma semelhana com o contrato de


servios comum (previsto na Lei 8666/93), o contrato de con-
cesso administrativa tem suas peculiaridades. Naquele, o par-
ticular contratado limita-se a prestar o servio e a Administra-
o deve pagar o respectivo preo em dinheiro; no contrato
de concesso administrativa, entretanto, o concessionrio pres-
ta o servio, mas lhe exigido que invista na atividade, obri-
gando-se a Administrao a uma contraprestao pecuniria
que no precisa ser, necessariamente, em dinheiro, como reza
o artigo 6 da Lei 11079/04.

4 CARACTERSTICAS E DIRETRIZES

Os contratos de concesso especial sob o regime de


parceria pblico-privada apresentam trs caractersticas bsi-
cas que os diferenciam dos demais contratos administrativos.
A primeira consiste no financiamento do setor priva-
do. O Poder Pblico no disponibilizar integralmente recur-
sos financeiros para os empreendimentos pblicos que con-
tratar, cabendo ao parceiro privado a incumbncia de fazer
investimentos no setor objeto da concesso, seja atravs de
recursos prprios ou no.
Outra caracterstica o compartilhamento dos riscos,
consistente na solidariedade entre o poder concedente e o
parceiro privado nos casos de eventuais prejuzos.
Caracterstica marcante da concesso especial a
pluralidade compensatria, pois, em tal sistema, admiti-
da contraprestao pecuniria de diversas espcies, alm do
pagamento em pecnia, que a forma comum de paga-
mento.
A concesso especial sob regime de parceria deve levar
em conta algumas diretrizes, verdadeiras linhas a serem segui-
das pela Administrao ao elaborar seus projetos para tais es-
pcies de ajuste.

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26 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

As diretrizes esto previstas no artigo 4 da Lei 11079/


04. Algumas delas, de to bvias, no mereciam referncia
expressa na lei.
Vejamos as principais:
Deve a Administrao levar em considerao a
indelegabilidade de funes exclusivas do Estado, como, por
exemplo, a funo legiferante. H atividades que no podem
ser delegadas s pessoas do setor privado, impondo-se que se-
jam sempre executadas por entes dotados de poder de imp-
rio (jus imperii).
A lei tambm traz como diretriz a repartio objetiva
dos riscos, que, inclusive, constitui uma das caractersticas das
parcerias pblico-privadas. Funciona como frmula para no
afastar eventuais parceiros que temeriam se os riscos fossem
seus apenas.
Outra diretriz a responsabilidade fiscal que incide an-
tes e durante a execuo da concesso especial. Seu xito, con-
tudo, depende da fiscalizao por parte dos rgos pblicos.
Por fim, temos a sustentabilidade financeira, que con-
siste na necessidade de ser previamente verificada a relao cus-
to-benefcio do empreendimento projetado.

5 CLUSULAS ESSENCIAIS, NO ESSENCIAIS E


VEDAES

Clusulas essenciais so as indispensveis para o contrato


sob pena de nulidade do mesmo. Tm intrnseca relao com a
validade do pacto concessional. Esto dispostas no artigo 23
da Lei 8987/95, bem como no artigo 5 da Lei 11079/04, que
so as denominadas clusulas essenciais adicionais. So elas:
I o prazo de vigncia do contrato, compatvel com a
amortizao dos investimentos realizados, no inferior a 5 (cin-
co), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo even-
tual prorrogao;

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 21-32 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 26 29/8/2006, 20:16


PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 27

II as penalidades aplicveis Administrao Pblica e


ao parceiro privado em caso de inadimplemento contratual,
fixadas sempre de forma proporcional gravidade da falta co-
metida, e s obrigaes assumidas;
III a repartio de riscos entre as partes, inclusive os
referentes a caso fortuito, fora maior, fato do prncipe e lea
econmica extraordinria;
IV as formas de remunerao e de atualizao dos
valores contratuais;
V os mecanismos para a preservao da atualidade da
prestao dos servios;
VI os fatos que caracterizem a inadimplncia pecu-
niria do parceiro pblico, os modos e o prazo de regulari-
zao e, quando houver, a forma de acionamento da garan-
tia;
VII os critrios objetivos de avaliao do desempe-
nho do parceiro privado;
VIII a prestao, pelo parceiro privado, de garantias
de execuo suficientes e compatveis com os nus e riscos
envolvidos, observados os limites dos 3 e 5 do art. 56 da
Lei n 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere s
concesses patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18
da Lei n 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;
IX o compartilhamento com a Administrao Pbli-
ca de ganhos econmicos efetivos do parceiro privado decor-
rentes da reduo do risco de crdito dos financiamentos uti-
lizados pelo parceiro privado;
X a realizao de vistoria dos bens reversveis, poden-
do o parceiro pblico reter os pagamentos ao parceiro priva-
do, no valor necessrio para reparar as irregularidades eventual-
mente detectadas.
Alm das clusulas obrigatrias, a lei tambm possibili-
ta a incluso de outras clusulas, as denominadas no essen-
ciais, ou seja, aquelas cuja ausncia no acarreta a nulidade da

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28 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

concesso. Portanto, so facultativas. Esto previstas no arti-


go 5, pargrafo 2, incisos I, II e III.
H situaes previstas na lei que constituem verdadei-
ras vedaes aplicveis s parcerias pblico-privadas, represen-
tando os pressupostos negativos do contrato. Se tais vedaes
no forem observadas, o contrato de concesso especial deve-
r ser anulado por vcio de ilegalidade. As vedaes dizem res-
peito ao valor, ao tempo/prazo e ao objeto do pacto
concessional e esto elencadas no pargrafo 4 do artigo 2 da
Lei 11079/04.
Como bem observa Leandro Sarai:
Para comear a lei veda que os contratos de PPP: a) tenham
valor inferior a 20 milhes de reais; b) cujo prazo seja inferior a cinco
anos; e c) tenham como objeto o simples fornecimento de equipamen-
tos ou de mo-de-obra, ou a simples execuo de obra pblica. 3

6 SOCIEDADE DE PROPSITOS ESPECFICOS

A Lei 11079/04 criou um instrumento que d possibi-


lidade de se colocar em separado a pessoa jurdica interessada
na parceria, de um lado, e a pessoa jurdica incumbida da
execuo do objeto do contrato, de outro, permitindo uma
melhor forma de controle do poder concedente sobre as ativi-
dades, desempenho e contas do parceiro privado.
Curioso que o vencedor da licitao, antes mesmo de
celebrar o contrato, deve constituir tal sociedade. Descumprida
esta obrigao, o poder concedente no poder celebrar o con-
trato com a sociedade primitiva, cabendo Administrao
convocar o participante que ficou na ordem de classificao
imediatamente inferior.

3
SARAI, Leandro. Breve anlise da Lei n 11079/04 Parcerias Pblico-
Privadas PPP. Jus Vigilantibus
Vigilantibus, Vitria. 18 mar. 2005. Disponvel
em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/14509> Acesso em: 5
abr. 2005.

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PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 29

A Lei 11079/04, em seu artigo 9, pargrafo 2, permi-


te que a sociedade de propsito especfico assuma a forma de
companhia aberta, sob o modelo de sociedade annima. A
mesma lei veda que a Administrao Pblica seja titular da
maioria do capital votante, conseqentemente, no poder
adotar a forma de sociedade de economia mista ou de empre-
sa pblica em que o Poder Pblico seja detentor da maioria
do capital com direito a voto. Entretanto, admissvel a aqui-
sio da maioria do capital votante por instituio financeira
controlada pelo Poder Pblico, como reza o artigo 9, par-
grafo 5.

7 PROCEDIMENTO LICITATRIO

A Lei 11079/04 contemplou algumas normas especfi-


cas para os contratos de concesso especial, contudo, tais nor-
mas no excluem a aplicao das normas gerais sobre o certa-
me licitatrio previstas na Lei 8666/93.
A modalidade de licitao a ser utilizada a concorrn-
cia (artigo 10 da lei supra), que, como se sabe, a modalida-
de prevista para contratos de grande vulto e que, por tal moti-
vo, exige maior rigor no processo seletivo.
A lei das parcerias pblico-privadas imps a presena
de certas condies para a instaurao do processo licitatrio.
Vejamos:
I autorizao da autoridade competente, fundamenta-
da em estudo tcnico que demonstre:
a) a convenincia e a oportunidade da contratao,
mediante identificao das razes que justifiquem a opo pela
forma de parceria pblico-privada;
b) que as despesas criadas ou aumentadas no afetaro
as metas de resultados fiscais previstas no Anexo referido no
1 do art. 4 da Lei Complementar n 101, de 4 de maio de
2000, devendo seus efeitos financeiros, nos perodos seguin-

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30 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

tes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou


pela reduo permanente de despesa; e
c) quando for o caso, conforme as normas editadas na
forma do art. 25 desta Lei, a observncia dos limites e condi-
es decorrentes da aplicao dos arts. 29, 30 e 32 da Lei
Complementar n 101, de 4 de maio de 2000, pelas obriga-
es contradas pela Administrao Pblica relativas ao obje-
to do contrato;
II elaborao de estimativa do impacto oramentrio-
financeiro nos exerccios em que deva vigorar o contrato de
parceria pblico-privada;
III declarao do ordenador da despesa de que as obri-
gaes contradas pela Administrao Pblica no decorrer do
contrato so compatveis com a lei de diretrizes oramentrias
e esto previstas na lei oramentria anual;
IV estimativa do fluxo de recursos pblicos suficientes
para o cumprimento, durante a vigncia do contrato e por
exerccio financeiro, das obrigaes contradas pela Adminis-
trao Pblica;
V seu objeto estar previsto no plano plurianual em vi-
gor no mbito onde o contrato ser celebrado;
VI submisso da minuta de edital e de contrato con-
sulta pblica, mediante publicao na imprensa oficial, em
jornais de grande circulao e por meio eletrnico, que dever
informar a justificativa para a contratao, a identificao do
objeto, o prazo de durao do contrato, seu valor estimado,
fixando-se prazo mnimo de 30 (trinta) dias para recebimento
de sugestes, cujo termo dar-se- pelo menos 7 (sete) dias an-
tes da data prevista para a publicao do edital; e
VII licena ambiental prvia ou expedio das diretrizes
para o licenciamento ambiental do empreendimento, na forma
do regulamento, sempre que o objeto do contrato exigir.
A lei ainda traz algumas peculiaridades em relao ao
edital previstas em seu artigo 11.

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PARCERIAS PBLICO-PRIVADAS: PRINCIPAIS ASPECTOS 31

Como grande novidade surge a possibilidade de ado-


o da arbitragem para a resoluo de eventuais conflitos de-
correntes da execuo do contrato. o que preceitua o artigo
11, III.
Quanto ao procedimento, a lei tambm apresenta al-
guns aspectos singulares como a possibilidade de prvia aferi-
o da qualidade tcnica das propostas apresentadas, sendo
desclassificados os interessados que no obtiverem pontuao
mnima.
Permite ainda a adoo do regime de inverso das fases
de habilitao e julgamento, com este sendo precedente que-
la, o que tambm ocorre na modalidade de prego. Tal siste-
ma condizente com o princpio da razoabilidade, uma vez
que, no se perde tempo examinando documentos de habili-
tao, para, no fim, ser escolhido apenas um vencedor.
Aps a divulgao do resultado final, sendo devidamente
homologado, o objeto do contrato ser adjudicado ao vence-
dor do certame.
Mostrados os principais aspectos da lei das parcerias
pblico-privadas, espera-se que sejam fomentadas as discus-
ses a respeito como forma de possibilitar a sua aplicao e
constante aprimoramento.

8 REFERNCIAS

CARVALHO FILHO, Jos dos Santos. Manual de Direito


Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2005.

RAPOSO, Pedro Cmara. Anotaes preliminares Lei n


11.079/2004. Parceria pblico-privada. Jus Navigandi,
Teresina, a. 9, n. 555, 13 jan. 2005. Disponvel em: <http://
www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6169>. Acesso em:
11 abr. 2005.

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32 ANA CECLIA MOURA CAMPOS

SARAI, Leandro. Breve anlise da Lei n 11079/04 Parceri-


as Pblico-Privadas PPP. Jus Vigilantibus, Vitria. 18 mar.
2005. Disponvel em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/
ver/14509>. Acesso em: 5 abr. 2005.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 21-32 jan./jun. 2005

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 33

BREVES COMENTRIOS ACERCA DA


CONSTITUIO ESTADUAL

Andr de Albuquerque Garcia


Especialista em Direito Processual Civil.
Professor de Direito Constitucional da
Escola Superior da Magistratura de
Pernambuco-ESMAPE e da Universidade
Salgado de Oliveira (UNIVERSO). Procu-
rador do Estado de Pernambuco. Secret-
rio Geral da Procuradoria Geral do Estado

SUMRIO
1 INTRODUO. 2 DA FORMA FEDERATIVA DE ESTADO. 3 DOS LIMITES
CAPACIDADE DE AUTO-ORGANIZAO DOS ESTADOS-MEMBROS. 4 DA
CONSTITUIO DO ESTADO DE PERNAMBUCO. 4.1 Do Poder Legislativo.
4.1.1 Das Comisses Parlamentares de Inqurito. 4.1.2 Do Processo Legislativo.
4.1.3 Do Regime de Imunidades dos Parlamentares Estaduais. 4.1.4 Dos Subs-
dios dos Parlamentares Estaduais. 4.2 Da Responsabilidade do Governador. 4.3
Do Tribunal de Contas do Estado. 4.4 Do Poder Judicirio. 5 DA DEFESA DA
CONSTITUIO ESTADUAL. 5.1 Da Via de Exceo. 6 DA INTERVENO
DO ESTADO NO MUNICPIO. 7 CONCLUSES. 8 REFERNCIAS

1 INTRODUO

Em que pese a aparente desimportncia do tema1 prin-

1
Na esteira da linha de pensamento de Srgio Ferrari, as constituies
estaduais h muito perderam o embate com a histrica tendncia
centralizadora do estado federal brasileiro, sendo a elas atribudo um
papel secundrio, por vezes irrelevante, no contexto federativo, no
passando, como afirma o citado autor, de meras leis orgnicas das
unidades da federao.

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34 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

cipalmente no que respeita tendncia centralizadora histo-


ricamente vivenciada no modelo federal brasileiro, nos esta-
dos federais h uma espcie de Poder Constituinte derivado
que no se confunde com aquele responsvel pela reforma do
texto constitucional originrio, mas se fundamenta na capaci-
dade deferida aos seus integrantes para criarem as suas pr-
prias Cartas Polticas. Trata-se do Poder Constituinte Deriva-
do Decorrente, condicionado s normas expressamente defi-
nidas pela Constituio Federal.

decorrente esse poder exercido pelas unidades federa-


tivas, porque ele deriva do Poder Constituinte Originrio,
consagrando a autonomia dos Estados-membros da Federa-
o com a possibilidade de organizao por meio de Consti-
tuies prprias.

2 DA FORMA FEDERATIVA DE ESTADO

O exerccio do denominado Poder Constituinte Deri-


vado Decorrente resulta da revelao de caracterstica bsica e
inalienvel para configurao da forma federativa de estado, a saber,
a autonomia poltico-administrativa de seus Estados-membros.

Sob o ponto de vista formal, a forma federativa de Esta-


do revela toda a sua complexidade ao ser descrita como uma
ordem jurdica global o Estado sob o ponto de vista estrita-
mente formal confundido com seu prprio ordenamento
jurdico composta de ordens jurdicas parciais, uma delas
central conhecida como Unio e as demais perifricas, conhe-
cidas, especificamente no modelo brasileiro, como Estados-
membros, o Distrito Federal e os Municpios.

Trata-se de tarefa gigantesca, a cargo da Constituio do


Estado Federal, a busca de mecanismos de convivncia har-

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 35

mnica entre ordens jurdicas distintas e autnomas. Auto-


nomia, repita-se, resultante da descentralizao poltica tpica
da forma federativa de Estado.

Essa descentralizao poltico-administrativa pode ser


entendida atravs das caractersticas identificadas pela doutri-
na mais autorizada que so: capacidade de auto-organizao
dos Estados-membros por meio de cartas polticas prprias;
capacidade de auto-administrao por meio de autoridades
prprias; capacidade de auferir rendas prprias; participao
dos Estados-membros na formao da vontade nacional; re-
partio constitucional de competncias definida na Carta do
Estado Federal.

Todas as mencionadas caractersticas2 demonstram que


o trao essencial da Federao privilegia seus formadores origi-
nrios, os quais renunciaram em dado momento histrico
soberania em favor da indissolubilidade do vnculo e da cria-
o de uma nova pessoa poltica batizada de Unio.

A participao do Estado-membro na formao da von-


tade nacional encontra explicao no modelo originrio nor-
te-americano. A chamada bicameralidade do tipo federativo
surgiu justamente com o propsito de acomodao dos re-
presentantes dos antigos Estados independentes que forma-
ram, logo aps a sangrenta guerra de independncia no fim do
sculo XVIII, uma Confederao integrada por treze ex-col-
nias inglesas.

A autonomia dos componentes do Estado Federal,


como visto anteriormente, revela-se tambm atravs do poder

2
Em verdade, o repertrio apresentado no constitui definitivo padro in-
contestvel, dadas as peculiaridades das diversas federaes conhecidas.

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de auto-organizao, ou seja, diante da possibilidade de edi-


o das prprias leis fundamentais das ordens jurdicas par-
ciais juntamente com seu ordenamento jurdico.

Importa ainda destacar que, apesar da necessidade de


manuteno da supremacia constitucional federal, falsa a pre-
missa de existncia de hierarquia entre os entes que compem
o estado federal. Devemos, portanto, para melhor entender-
mos essa forma de organizao do exerccio do Poder Poltico,
analis-la sob o ponto de vista de sua proposta histrica.3

Seguindo o modelo norte-americano, pode-se concluir


que o Estado Federal constitui uma forma complexa de orga-
nizao do Estado que se prope a preservar um mnimo de
autonomia para os entes polticos que a integram. Para tanto,
a norma fundamental deve disciplinar de forma harmnica e
coerente a convivncia de ordens jurdicas distintas e,
irredutivelmente, autnomas.

Para atingir esse difcil objetivo utiliza-se a carta federal


de tcnicas voltadas ao disciplinamento dos limites de atua-
o administrativa, fiscal e legislativa dos seus entes federados,
o que comumente conhecemos como repartio de compe-
tncias.

justamente na definio dos limites de atuao de


cada um dos entes federados e na necessidade de preservao

3
A origem da federao remonta ao modelo norte-americano, no qual as
antigas treze colnias que aps a guerra de independncia formaram
uma espcie de confederao, preservando a soberania individualmen-
te, optaram aps longo processo de discusso por uma nova forma de
organizao resultante da renncia soberania individual em favor da
federao, preservando-se, entretanto, determinadas prerrogativas sob
o ponto de vista poltico-institucional que resultou no surgimento do que
hoje se conhece como autonomia poltica.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 37

de sua autonomia, que reside a principal questo relacionada


ao Estado Federal. Como conseqncia dessa caracterstica
bsica da forma federativa de Estado, afirma-se, sem medo de
errar, que inexiste hierarquia entre os componentes do estado
federal.

Como relata Zeno Veloso: A sobreposio de trs ordens


jurdicas diferentes, de quatro governos distintos da Unio, dos Esta-
dos, do Distrito Federal, dos Municpios no gera problemas, contra-
dies e conflitos, se houver respeito de cada uma dessas entidades ao
respectivo crculo possvel de atuao, decorrente da faixa de compe-
tncia especfica que foi estabelecida no Texto Fundamental.4

Em outro trecho arremata: Insistimos em chamar a aten-


o de que no h uma hierarquia entre as leis emanadas da Unio,
dos Estados-membros e dos Municpios, sendo falso o entendimento de
que a lei federal prevalece, em qualquer caso, sobre a lei estadual e
esta sobre a lei municipal. Tudo se resume numa questo de competn-
cia, de atuao dentro da respectiva rbita de atribuies.5

Destarte, estamos com Duguit, grande mestre do direito


pblico, ao assinalar a necessidade de preservao dos limites
de atuao de cada um dos entes federados e, conseqente-
mente, a impossibilidade de alterao das competncias atri-
budas pela norma fundamental a cada um deles, salvo com
anuncia recproca.6
4
VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalida-
de
de. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.331.
5
Op.cit., p. 352.
6
Sem aprofundarmos a polmica acerca da condio do municpio, consi-
deramos a federao essencialmente com sua face bidimencional. No
obstante a redao do artigo 1 da CRFB/88, o municpio no integra a
federao, no participando da formao da vontade nacional. Consi-
deramos, inclusive, a possibilidade de supresso da autonomia munici-
pal atravs de emenda constitucional, uma vez que a referida caracters-
tica no se enquadra na chamada forma federativa de estado.

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38 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

Nunca demais lembrar a necessidade de observncia da


chamada compatibilidade vertical, tanto da constituio esta-
dual quanto, obviamente, do seu ordenamento jurdico, este,
particularmente, subordinado duplamente carta federal como
tambm prpria lei fundamental do Estado-membro.

bom que se diga que desrespeitados os limites de atua-


o referidos pelo mestre paraense ou, o que pode ser mais
grave, violada a autonomia poltica do ente federado, sujeita-se
o ato violador ao exerccio da jurisdio constitucional voltada
preservao da forma federativa de estado, ncleo imodificvel
escolhido pelo Poder Constituinte Originrio. A jurisdio
constitucional de controle da constitucionalidade corresponde
a mecanismo aplicvel a toda e qualquer violao aos parmetros
organizacionais estabelecidos, inclusive extrapolao de limi-
tes promovida pela Unio em detrimento das competncias
prprias dos demais entes federados.

3 DOS LIMITES CAPACIDADE DE AUTO-ORGA-


NIZAO DOS ESTADOS-MEMBROS

Como se sabe a capacidade de auto-organizao encon-


tra limites nos parmetros estabelecidos pela Carta Federal.

Tais limites podem ser identificados por se revelarem


explicitamente no texto constitucional da federao, como
de fato ocorre com os princpios constitucionais sensveis relacio-
nados no artigo 34, VII, da Carta em vigor. Ainda podem ser
destacadas como limites capacidade de auto-organizao as
chamadas clusulas ptreas, ncleo imune a modificaes ao
texto constitucional que deve ser observado pelos Estados-
membros no exerccio do poder constituinte decorrente.
Como no poderia deixar de ser, a forma federativa de
Estado impe como parmetro essencial para uniformizao

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 39

do exerccio do poder poltico a observncia da necessria


simetria entre institutos bsicos do Estado Federal que de-
vem ser compulsoriamente observados pelas ordens jurdicas
parciais, como, por exemplo, a organizao monocrtica do
Poder Executivo e as regras relativas ao processo de criao das
espcies normativas primrias.

Em verdade, a simetria constitui um princpio herme-


nutico, uma etapa preliminar de interpretao de Cartas Cons-
titucionais que optaram pela forma federativa de Estado.

Reporta-se como necessria nessa espcie de organiza-


o do exerccio do Poder poltico a existncia de parmetros
harmnicos de organizao em todas as esferas de Poder, sob
pena de comprometimento da unidade, harmonia e
indissolubilidade do vnculo federativo.

De fato, existem normas constitucionais que devem ser


obrigatoriamente reproduzidas pelo constituinte decorrente,
so as chamadas normas de preordenao na feliz expresso de
Raul Machado Horta.7 Como exemplos temos os artigos 27,
7
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2002. p.333. Expe o renomado constitucionalista: As normas constitucionais
federais, que, transpondo o objetivo primrio de organizar a federao, vo
alcanar o ordenamento estadual, com maior ou menor intensidade, demonstram
a existncia de uma forma especial de normas na Constituio Federal, que
denominamos de normas centrais. As normas centrais podem exteriorizar-se nos
princpios estabelecidos nesta Constituio, em equivalente denominao na
Constituio de 1946, e, ainda, nos princpios constitucionais da Constitui-
o de 1988, que retomou a linguagem da reforma de 1926, ou os seguin-
tes princpios, na redao da Constituio de 1946, num caso e no outro,
mediante enumerao exaustiva. As normas centrais abrangem as normas de
competncia deferidas aos Estados e as normas de preordenao, estas ltimas
quando a Constituio Federal dispuser no seu texto sobre o Poder do Estado,
titular de Poder ou instituio estadual. Princpios desta Constituio, Princpi-
os constitucionais, Normas de competncia e normas de preordenao
limitam e condicionam o poder de organizao do Estado e configuram as
diferentes modalidades de normas centrais da Constituio Federal.

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40 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

28, 75, 93, 125, 127, 132, 134, 144, e outros escolhidos
pelo Constituinte Originrio como parmetros organizacionais
inafastveis para as ordens jurdicas parciais.

Alguns autores ainda mencionam os chamados princpi-


os constitucionais estabelecidos, parmetros no enumerados, al-
guns deles decorrentes dos princpios constitucionais expres-
sos. O prprio Supremo Tribunal Federal tem decidido que
as normas da CRFB/88, relativas ao processo legislativo, de-
vem ser respeitadas pelo constituinte dos Estados-membros,
especialmente as questes relativas reserva de iniciativa.

Mais uma vez afirma o mestre Zeno Veloso: mansa e


pacfica a jurisprudncia do Supremo Tribunal de que as matrias
reservadas constitucionalmente ao Chefe do Poder Executivo, quanto
a projetos de leis, aplicam-se, igualmente, s emendas constitucionais.
Em concluso: inconstitucional a emenda constitucional que tenha
por objeto assunto cujo processo legislativo s poderia ser deflagrado,
exclusivamente, pelo Chefe do Poder Executivo.8

4 DA CONSTITUIO DO ESTADO DE PERNAM-


BUCO

O Estado de Pernambuco, no exerccio de sua autono-


mia constitucional e do Poder Constituinte Derivado Decor-
rente, convocado atravs da norma constitucional de eficcia
exaurida, disposta no artigo 11 do ADCT, auto-organizou-se
por meio da Constituio de 5 de outubro de 1989. O texto
constitucional pernambucano, atento s limitaes constitu-
cionais federais, observou os chamados princpios constitucio-
nais sensveis, os princpios constitucionais estabelecidos e a
simetria constitucional caracterstica dos Estados Federais.

8
Op. Cit., p. 340.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 41

A Carta Constitucional pernambucana foi dividida em


oito ttulos, seguindo basicamente a ordem de apresentao
dos ttulos da Constituio do Estado Federal e contando ao
fim com algumas normas constitucionais de natureza transi-
tria, a maioria delas de eficcia exaurida.

Consagrou a Carta pernambucana o critrio da


residualidade na repartio horizontal de competncias, a qual
ao Estado atribuiu a atuao legislativa e material remanescen-
te, que explcita ou implicitamente no tenham sido vedadas
pela Carta Republicana.

Os captulos referentes organizao dos Poderes cons-


titudos reproduziram fartamente as normas dispostas na Car-
ta Federal com discretas diferenas de redao acompanhadas
das devidas adaptaes esfera estadual de Poder.

Em algumas situaes, ao optar pela simples reprodu-


o de dispositivos da Carta Federal, o constituinte estadual
cometeu alguns erros que resultaram na incompatibilidade
vertical de alguns artigos da Constituio do Estado. Assim,
por exemplo, ao atribuir prerrogativas tpicas do Chefe de
Estado ao Governador, uma vez que a imunidade priso
cautelar implicaria usurpao de competncia legislativa atri-
buda constitucionalmente Unio.9

4.1 Do Poder Legislativo

O Poder Legislativo estadual organizado de forma


unicameral, possuindo a Assemblia Legislativa comisses par-
lamentares permanentes, organizadas em razo da matria e
previstas no regimento interno da Casa, e comisses tempor-

9
No particular, a impossibilidade de sujeio priso cautelar.

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42 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

rias, e.g., as Comisses Parlamentares de Inqurito, previstas


no artigo 28, 3 e 4, da Carta estadual.

4.1.1 Das Comisses Parlamentares de Inqurito

A Constituio estadual organiza o legislativo pernam-


bucano internamente nos mesmos moldes estabelecidos pela
CRFB na organizao das Casas do Congresso Nacional.10

Nesse aspecto o artigo 28, mais precisamente, os 3


e 4, atribuem s CPIs, comisses temporrias responsveis
pela conduo dos chamados inquritos parlamentares, po-
deres de investigao prprios das autoridades judiciais.

Destacamos, portanto, duas questes relevantes, a primei-


ra delas relacionada com os limites de atuao e a segunda, com
os poderes de investigao prprios das autoridades judiciais.11

Nesse aspecto as questes levantadas seriam resumidas

10
Exige a Carta estadual para instalao de CPIs no mbito da Assemblia
Legislativa requerimento de, pelo menos, um tero dos membros da
Casa, confirmando a condio de comisso temporria ao fixar prazo
certo para concluso do inqurito parlamentar.
11
No caso especfico, verifica-se uma impropriedade de redao tendo em
vista o fato de que, no sistema processual brasileiro, a autoridade judi-
cial raramente realiza diligncias de carter investigatrio. Cabe em
verdade determinar o verdadeiro significado do dispositivo constitucio-
nal em tela, cabendo s Comisses Parlamentares de Inqurito os pode-
res de investigao prprios do Poder Legislativo, uma vez que cabe a
esse Poder o exerccio de funo tpica de carter fiscalizador. Sendo
prprio do parlamento fiscalizar, obviamente, prprio do rgo
legislativo investigar. A doutrina ainda noticia que a leitura do dispositi-
vo constitucional comporta o entendimento de que cabe s CPIs os
chamados poderes de instruo prprios das autoridades judiciais limi-
tados pelas chamadas clusulas de reserva jurisdicional, a saber, dis-
posies inseridas no texto constitucional que remetem exclusivamente
autoridade judicial a competncia para determinao da medida.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 43

da seguinte forma: o que pode a CPI investigar ? Quais os


poderes que a CPI dispe para investigar ?

Relata Alexandre de Moraes:

Assim, em face da impreciso legislativa h a necessi-


dade de definio de dois pontos bsicos na atuao
das Comisses Parlamentares de Inqurito: amplitude
de seu campo de atuao e limites de seu poder
investigatrio.12

Portanto, em resposta s indagaes, caberia s Comis-


ses Parlamentares de Inqurito das Assemblias Legislativas
investigar todas as questes de interesse pblico no exato li-
mite das atribuies constitucionais do Poder Legislativo esta-
dual, ou seja, no exerccio da fiscalizao poltico-administra-
tiva e financeiro-oramentria dos Poderes constitudos do Es-
tado-membro.

Inicialmente importante de plano salientar que o Su-


premo Tribunal Federal, no que tange aos poderes de investi-
gao das CPIs criadas no mbito do Congresso Nacional,
reconhece s referidas comisses temporrias a competncia
para, por autoridade prpria, decretar a quebra dos sigilos
bancrio, fiscal e telefnico no particular, acesso a dados ou
registros telefnicos.

Ainda no que respeita aos chamados poderes de inves-


tigao, trata-se de ponto verdadeiramente polmico, pois
perfeitamente possvel estabelecer a ilao acerca da impossi-
bilidade de restrio a direitos fundamentais ou mesmo da

12
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional
Constitucional.. 13. ed. So
Paulo: Atlas, 2003. p. 383.

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44 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

efetivao de medidas prprias das autoridades judiciais s


Comisses Parlamentares dos Estados-membros, uma vez que
a Constituio Federal somente faz referncia a comisses do
Congresso Nacional e de suas Casas.

O argumento acima esposado padece de substncia dian-


te da prpria essncia da forma federativa de Estado, que com-
porta, como visto anteriormente, a convivncia de ordens ju-
rdicas autnomas.

Portanto, o princpio federativo autoriza o entendimen-


to no sentido de se permitir s unidades federadas dotadas
de autonomia o disciplinamento de funo tpica dos
legislativos estaduais, obviamente, dentro de parmetros
limitadores impostos pela Carta Federal.

Trazemos colao acrdo proferido pelo Tribunal


Regional Federal da 5a Regio que refora o posicionamento
relatado no sentido da extenso dos poderes de investigao
tradicionalmente atribudos s comisses criadas no mbito
do Congresso Nacional em favor das CPIs estaduais, a saber:

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E CONSTI-


TUCIONAL. APELAO EM MANDADO
DE SEGURANA. COMISSO PARLAMEN-
TAR DE INQURITO DA ASSEMBLIA
LEGISLATIVA DO ESTADO DE PERNAM-
BUCO. CPI DOS COMBUSTVEIS. SOLICI-
TAO DE QUEBRA DE SIGILO BANC-
RIO PELA CPI DIRETAMENTE AO BANCO
CENTRAL DO BRASIL. NO ACATAMEN-
TO DO REQUERIMENTO, PELA INSTITUI-
O FINANCEIRA. NEGATIVA FUNDADA
NA NECESSIDADE DE DETERMINAO

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 45

JUDICIAL. ENCERRAMENTO DAS ATIVI-


DADES DA CPI. CARNCIA DA AO
MANDAMENTAL EM FACE DA FALTA DE
INTERESSE PROCESSUAL SUPERVENIEN-
TE. NO CONFIGURAO. DISCUSSO
QUE REFLETE NA REGULARIDADE DAS
PROVAS COLIGIDAS PELA COMISSO PAR-
LAMENTAR DE INQURITO ESTADUAL
COM ESPEQUE NA SUA AUTORIDADE
PARA DETERMINAR A QUEBRA DE SIGI-
LO BANCRIO. PERSISTNCIA DO INTE-
RESSE. NO ACOLHIMENTO DA PRELIMI-
NAR. DESCARACTERIZAO DO SIGILO
BANCRIO COMO DIREITO FUNDAMEN-
TAL. PODERES DE INVESTIGAO DA CPI
PRPRIOS DAS AUTORIDADES JUDICIAIS.
INADMISSIBILIDADE DE DIFERENCIAO
OU GRADAO DE PODERES ENTRE AS
COMISSES PARLAMENTARES DE INQU-
RITO FEDERAIS, ESTADUAIS E MUNICI-
PAIS, QUANDO INSTITUDAS COM VISTAS
A INVESTIGAO DE ASSUNTOS RELATI-
VOS A INTERESSE PBLICO RELEVANTE
NOS LIMITES DE SUA COMPETNCIA,
ART. 58, 3, DA CF/88. ART. 28, 4, DA
CONSTITUIO DO ESTADO DE PER-
NAMBUCO. FEDERAO BRASILEIRA.
UNIO, ESTADOS, MUNICPIOS E DISTRI-
TO FEDERAL COMO UNIDADES DOTA-
DAS DE AUTONOMIA E DE CAPACIDADE
DE AUTO-ORGANIZAO, AUTONOR-
MATIZAO, AUTOGOVERNO E AUTO-
ADMINISTRAO. LEI N 4.595, DE
31.12.1964 (ATUALMENTE REVOGADA,

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46 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

MAS VIGENTE NO MOMENTO DA IMPE-


TRAO) E LEI COMPLEMENTAR N 105,
DE 10.01.2001. NECESSIDADE DE INTER-
PRETAO DA LEI CONFORMA COM A
CONSTITUIO FEDERAL. APELAO
EM MANDADO DE SEGURANA N 80286-
PE(2000.83.00.009250-2)1.
(Destaque inexistente no original)

Saliente-se ainda que as Comisses Estaduais no tm


competncia para investigar autoridades submetidas a foro pri-
vilegiado federal, como os casos do Governador do Estado e
dos Conselheiros do Tribunal de Contas. Decidiu, a propsi-
to, o Superior Tribunal de Justia que autoridade que possuir
foro privilegiado federal no estar sujeita ao poder de investi-
gao das CPIs estaduais.13

4.1.2 Do Processo Legislativo

Quanto ao processo legislativo, em especial, as espcies


normativas primrias previstas no artigo 16 da Constituio
estadual so as seguintes: emendas constitucionais; leis com-
plementares; leis ordinrias; leis delegadas; decretos legislativos
e resolues.

No h previso da possibilidade de edio de medidas


provisrias por parte do governador do Estado, muito embo-
ra seja possvel sua introduo atravs de emenda constitucio-
nal, uma vez que os princpios bsicos que regem o processo
legislativo fixados na Carta Federal so parmetros de obser-
vncia obrigatria para o constituinte estadual.

13
BRASIL.STJ.AGP 1611/RO. AGRAVO REGIMENTAL na petio 2001/
0191600-5. Relator Ministro Jos Delgado.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 47

No que respeita iniciativa prevista na Carta estadual


para apresentao de propostas de emendas constitucionais,
admite a Constituio de Pernambuco a iniciativa popular
atravs de proposta subscrita por, no mnimo, um por cento do
eleitorado estadual, distribudo, pelo menos, em um quinto dos um
quinto dos Municpios existentes no Estado, com no menos de trs
dcimos por cento dos eleitores de cada um deles.

As limitaes ao poder de reforma so semelhantes que-


las fixadas na Carta Federal, no particular, o legislador consti-
tuinte estadual elegantemente deixou de mencionar as limita-
es materiais expressas, evitando, assim, repetio enfadonha
e desnecessria.

A votao da proposta de emenda constitucional ser


feita em dois turnos de votao, sendo exigido quorum quali-
ficado de trs quintos dos membros da Assemblia Legislativa
em ambos os turnos de votao.

A sistemtica do processo legislativo ordinrio, que in-


clui as fases introdutria, constitutiva e complementar, se-
melhante prevista na Constituio Federal, sendo ainda dis-
ciplinados na Carta estadual o regime de urgncia para proje-
tos de iniciativa do Governador do Estado, o procedimento
de veto e a possibilidade de superao, bem como, o discipli-
namento da sano e as modalidades de aquiescncia do exe-
cutivo tcita e expressa.

4.1.3 Do Regime de Imunidades dos Parlamentares Es-


taduais

Interessante abordar mais uma vez a necessidade do re-


conhecimento das normas de pr-ordenao do direito cons-
titucional estadual, o que inevitavelmente levou o constituin-

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48 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

te estadual decorrente edio das chamadas normas de re-


produo obrigatria. Como exemplo, temos as normas rela-
tivas ao regime de imunidades dos parlamentares estaduais,
obrigatoriamente idntico ao previsto para os congressistas
por fora de dispositivo constitucional federal expresso (art.
27, 1). No particular, ainda no promoveu o constituinte
decorrente a atualizao da Carta Estadual, necessidade pre-
mente em face da recente promulgao da Emenda Constitu-
cional n 35/01 que modificou o regime de imunidades dos
congressistas.

Importa, no entanto, afirmar que a inrcia do constituin-


te estadual no afasta a incidncia do novel regime inaugura-
do com a emenda constitucional n 35/01, por se tratar de
uma norma central, conforme prescreve o multicitado artigo
27 a seguir transcrito:

Art. 27. O nmero de Deputados Assemblia


Legislativa corresponder ao triplo da representao do
Estado na Cmara dos Deputados e, atingido o nme-
ro de trinta e seis, ser acrescido de tantos quantos fo-
rem os Deputados Federais acima de doze.
1 Ser de quatro anos o mandato dos Deputados
Estaduais, aplicando-se-lhes as regras desta Constitui-
o sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades,
remunerao, perda de mandato, licena, impedimen-
tos e incorporao s Foras Armadas.

Assim sendo, a imunidade formal dos deputados esta-


duais limita-se impossibilidade de priso do parlamentar
estadual, ressalvada a hiptese de flagrante de crimes
inafianveis, caso especfico em que os autos devem ser reme-
tidos Assemblia Legislativa para que resolva sobre a priso
pelo voto da maioria dos seus membros.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 49

Quanto possibilidade de instaurao de processo pe-


nal, a licena prvia da Casa respectiva no mais necessria,
uma vez que a CRFB/88 passou a admitir o recebimento da
denncia contra parlamentar, prevendo, apenas, nos casos de
crimes cometidos aps a diplomao, a sustao do processo
instaurado, desde que por iniciativa de partido poltico com
representao na Casa, a maioria dos membros delibere no
sentido da suspenso enquanto durar o mandato. A sustao
do feito implicar a conseqente suspenso da prescrio.14

4.1.4 Dos Subsdios dos Parlamentares Estaduais

Ainda no que respeita ao Poder Legislativo, a Consti-


tuio Federal reproduzindo a Carta Federal, o artigo 12 da
Constituio Estadual estabelece a mesma previso limita o
subsdio dos deputados estaduais ao mximo de setenta e cin-
co por cento do subsdio previsto para os deputados federais
(art. 27, 2, da CRFB/88). Como se verifica na hiptese,
no h de fato uma vinculao como alguns chegam a afirmar,
pois, majorada a remunerao dos deputados federais, o au-
mento da remunerao dos similares estaduais depender,
dentre outros fatores, da observncia dos limites prudenciais
de comprometimento do oramento do prprio Poder
Legislativo e, obviamente, da deliberao executiva
consubstanciada atravs da sano do Chefe do Poder Execu-
tivo.

4.2 Da Responsabilidade do Governador

Outra questo interessante versa sobre a previso na


Carta estadual da criao de um Tribunal Especial para jul-
gar o Governador pela prtica de crime de responsabilidade.

14
CRFB/88, artigo 53, 2, 3 e 5.

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50 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

O referido tribunal, formado por sete deputados estaduais e


sete desembargadores do Tribunal de Justia, sob a presidn-
cia do desembargador-presidente do TJPE, foi concebido se-
guindo modelo de outros estados da federao, tendo sido
liminarmente suspensa a eficcia do modelo paulista (Adin
2.220-2-SP), idntico ao modelo pernambucano.

A referida disposio, insculpida no artigo 39, 1, II,


e 4, da Constituio do Estado, encontra bice na garantia
da vedao a tribunais de exceo (artigo 5, XXXVII, da
CRFB/88), tendo em vista que a composio da referida cor-
te excepcional seria determinada em momento posterior
prtica do ilcito poltico-administrativo. Perigosa a determi-
nao ex post facto da composio, eis que sujeita o processo a
influncias indesejveis decorrentes de momento poltico ins-
tvel.

As regras relativas vedao a tribunais de exceo so


complementadas pelo princpio do juiz natural (artigo 5,
XXXVII, da CRFB/88), ficando vedados, conseqentemente,
os juzos extraordinrios criados para processar e julgar casos
determinados, sendo mesmo irrelevante a existncia prvia do
tribunal caso sua composio somente seja determinada a
posteriori.

Com a evidente incompatibilidade vertical do tribu-


nal estadual criado pela Carta estadual pernambucana, en-
tendemos que, tendo em vista a organizao unicameral do
legislativo estadual, caber Assemblia Legislativa do Esta-
do o exerccio de duas atribuies claramente distintas, fun-
cionando tanto no papel de rgo responsvel pela admis-
so da acusao apresentada contra o chefe do executivo es-
tadual, como tribunal poltico que atuar aps o juzo posi-
tivo de admissibilidade.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 51

Caber prpria ALEPE a promoo com a devida ur-


gncia da atualizao do texto constitucional estadual,
compatibilizando-o deciso da Suprema Corte Federal.

Ainda sobre a seo relativa responsabilizao do


Governador, resta um breve comentrio acerca da impossibili-
dade de ampliao de prerrogativas que o Supremo Tribunal
Federal entende apenas atribuveis ao Chefe de Estado. As-
sim, por exemplo, no compatvel com a Constituio Fe-
deral em vigor a garantia frente a prises de carter cautelar
prevista pelo 3 do artigo 39 da Constituio do Estado, a
seguir transcrito:
Art. 39. (. . .)
(...)
3 Enquanto no sobrevier sentena condenatria,
nas infraes penais comuns, o Governador no estar
sujeito a priso.

Portanto, no obstante a previso constitucional em


relevo, poder o Governador do Estado ser submetido a res-
trio de sua liberdade individual de carter cautelar, origin-
ria de deciso emanada pelo Superior Tribunal de Justia, em
funo de sua prerrogativa de foro.15

4.3 Do Tribunal de Contas do Estado

Pecou o Constituinte Estadual no que respeita ao siste-


ma de controle externo da administrao pblica a cargo da
Assemblia Legislativa, auxiliada pelo Tribunal de Contas do
Estado (artigo 30, da Constituio do Estado). Foi
desperdiada a oportunidade de aperfeioamento do modelo
quando deixamos de criar uma corte de contas responsvel

15
CRFB/88, artigo 105, I, a

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52 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

especificamente pelo controle das administraes pblicas


municipais, liberando o TCE para direcionar seus esforos ao
controle da administrao estadual e dos demais Poderes do
Estado no exerccio de suas funes atpicas de carter finan-
ceiro-oramentrio.16

Nos mesmos moldes do Tribunal de Contas da Unio,


o TCE funciona como rgo autnomo responsvel pelo au-
xlio ao Poder Legislativo, estadual, e legislativos municipais,
no exerccio da fiscalizao financeiro-oramentria.17

Como se v, o TCE no faz parte da estrutura org-


nica do Poder Judicirio, estando sujeitas suas decises ao
crivo do rgo detentor do quase-monoplio da jurisdi-
o, tendo em vista os princpios processuais de natureza
constitucional da inafastabilidade e da unidade da jurisdi-
o estatal.18

Importante ressaltar que existem limites reviso das


decises do Tribunal de Contas, em verdade as mesmas limi-
taes impostas ao julgador quando da reviso dos atos admi-
nistrativos em geral, restringindo-se ao campo da competn-
cia, finalidade e forma das decises proferidas.

Quanto s contas do prprio Tribunal, a previso de


sujeio ao julgamento da Assemblia Legislativa, conforme

16
A CRFB/88 vedou apenas a criao de novos tribunais de contas por
parte dos municpios, sendo possvel, portanto, que seja institudo pelo
constituinte estadual um tribunal de contas responsvel pelo auxlio do
exerccio do controle externo das administraes municipais da respec-
tiva unidade federada.
17
O TCE composto de sete Conselheiros escolhidos segundo critrios
muito semelhantes aos previstos para provimento do cargo de Ministro
do TCU.
18
Art. 5, XXXV.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 53

previso constitucional expressa, foi declarada inconstitucional


pelo Supremo Tribunal Federal.19

4.4 Do Poder Judicirio

O Poder Judicirio est regulado no Captulo IV, do


Ttulo II, entre os artigos 44 a 66.

De acordo com o sistema fixado pela Carta Federal, ao


Poder Judicirio dos Estados cabe o exerccio residual da com-
petncia jurisdicional, ressalvadas as hipteses de competn-
cia expressas, previstas excepcionalmente.

Integram o Poder Judicirio: o Tribunal de Justia


do Estado, rgo de cpula e tribunal constitucional esta-
dual; os Tribunais do Jri; o Conselho da Justia Militar;
os Juzes de Direito e outros Juzos e Tribunais institudos
mediante lei.

Como se constata, no possui o Estado de Pernambuco


um Tribunal de Justia Militar, que poder ser criado quando
atingir a Polcia Militar efetivo superior a vinte mil integran-
tes, mediante proposta a ser encaminhada pelo Tribunal de
Justia do Estado.20

Mais uma vez assumem relevncia as normas centrais


fixadas pelo Constituinte Federal, no que respeita principal-

19
Art. 14, VII, da Constituio estadual. O referido artigo prev ainda
como atribuio da ALEPE o julgamento das contas do Tribunal de Justi-
a do Estado, do Governador e das contas do prprio Poder Legislativo.
No que se refere ao julgamento de suas prprias contas, o STF tambm
decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo da Carta estadual (ADIn
1779-PE).
20
CRFB/88, artigo 125, 3.

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54 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

mente s garantias institucionais (autonomia administrativa e


oramentria) e funcionais do Poder Judicirio.

5 DA DEFESA DA CONSTITUIO ESTADUAL

Faculta a Constituio Federal21 a instituio de repre-


sentao de inconstitucionalidade de leis e atos normativos
estaduais e municipais em face da Constituio estadual, pos-
sibilitando a existncia de um sistema local de exerccio da
jurisdio constitucional concentrada de competncia origi-
nria do Tribunal de Justia, que exercer o papel de guardio
da Constituio do Estado-membro.

Nesse aspecto no cabe Corte Constitucional esta-


dual utilizar como parmetro de controle a Constituio Fe-
deral, sob pena de usurpao de competncia originria atri-
buda ao Supremo Tribunal Federal.

No que respeita legitimao para agir, o constituinte


estadual elegeu o seguinte rol elencado no artigo 63:

Art. 63. Podem propor a ao direta de inconsti-


tucionalidade:
I - o Governador do Estado;
II - Mesa da Assemblia Legislativa;
III - o Procurador-Geral da Justia;
IV- os Prefeitos e as Mesas das Cmaras de Verea-
dores, ou entidade de classe de mbito municipal,
quando se tratar de lei ou ato normativo do respec-
tivo Municpio;
V - os Conselhos Regionais das profisses reconheci-
das, sediadas em Pernambuco;

21
Artigo 125, 2.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 55

VI - partido poltico com representao nas Cma-


ras Municipais, na Assemblia Legislativa ou no
Congresso Nacional;
VII - federao sindical ou entidade de classe de
mbito estadual.

Simetricamente, cabe ao Procurador-Geral de Justia o


papel de fiscal da lei no caso da incompatibilidade vertical
alm, claro, de legitimado para provocao da jurisdio
constitucional concentrada.

Ainda guardando parmetro simtrico com a Carta Fe-


deral, o Procurador-Geral do Estado e o representante legal
do Municpio fazem as vezes de curadores especiais da presun-
o de constitucionalidade, respectivamente das leis ou atos
normativos estaduais e municipais.

Complementando o sistema concentrado estadual, a


Constituio prev a figura da ao direta de inconstitucio-
nalidade por omisso, ao constitucional que, juntamente
com o mandado de injuno na via de exceo, tem por pro-
psito o combate omisso regulamentadora de dispositivos
constitucionais de aplicabilidade limitada.

Seguindo o mesmo modelo constitucional federal, a


ao direta de inconstitucionalidade por omisso assume um
carter meramente declaratrio, fixador da omisso, destitu-
da de natureza constitutivo-condenatria, no servindo como
meio eficaz para compelir o rgo omisso ao exerccio de suas
atribuies constitucionais.

Aparentemente o modelo concentrado institudo pelo


constituinte estadual prev a participao da Assemblia
Legislativa e da Cmara Municipal respectiva com vistas a pro-

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56 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

mover a suspenso da eficcia da lei ou ato normativo, no


todo ou em parte, quando se tratar respectivamente de lei ou
ato normativo estadual ou municipal, nessa ltima hiptese,
quando configurada violao Lei Orgnica da comuna res-
pectiva.22

Portanto, diferentemente do modelo federal, o exerccio


dessa jurisdio excepcional contemplaria a atuao conjunta
do Poder Judicirio e do Poder Legislativo responsvel pela sus-
penso de eficcia da lei ou ato normativo, no possuindo a
deciso do Tribunal de Justia eficcia vinculante imediata.

Entendo, entretanto, que o papel a ser desempenhado


pelo Tribunal Constitucional estadual atribudo ao Tribunal
de Justia impe, em sede de controle concentrado de
constitucionalidade, a necessria fora vinculante de seus jul-
gados.

A tarefa de declarar a inconstitucionalidade de uma lei


ou ato normativo, independente de sua origem, privativa-
mente deferida ao Poder Judicirio.

Conceber a possibilidade de participao de outro Po-


der no exerccio de mister privativo de uma Corte Constituci-
onal, ainda que estadual, atenta contra a lgica do sistema de
controle abstrato brasileiro.

A participao da Assemblia Legislativa estadual, as-


sim como ocorre com o Senado no plano federal, justifica-se

22
Constituio estadual, artigo 63, 3: Declarada a inconstitucionalidade,
a deciso ser comunicada Assemblia Legislativa para promover a
suspenso da eficcia da lei, em parte ou no seu todo, quando se tratar
de afronta Constituio Estadual, ou Cmara Municipal, quando a
afronta for a Lei Orgnica respectiva.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 57

apenas em razo da necessidade de ampliao da eficcia sub-


jetiva da coisa julgada, o que prprio do sistema difuso, e
nos remete concluso de que o exerccio da competncia
prevista no artigo 14, inciso XXIII combinado com o 3 do
artigo 63 da Constituio estadual justifica-se apenas no m-
bito do sistema difuso de controle de constitucionalidade,
no qual a questo constitucional revela-se como simples inci-
dente processual, ou seja, questo prejudicial a ser objeto de
apreciao pelo juzo antes de proferida a deciso meritria.

Da deciso do Tribunal de Justia no exerccio do con-


trole concentrado de constitucionalidade no cabe qualquer
recurso para os tribunais de instncia excepcional, ressalvada
a hiptese em que haja a reproduo de dispositivo constitu-
cional federal. Nesse caso, ocorrendo a discusso concomitante
acerca da violao ao dispositivo da Constituio Federal,
cabvel a interposio de recurso extraordinrio junto ao Su-
premo Tribunal Federal.

Como se sabe, a aferio da compatibilidade vertical de


lei ou ato normativo municipal em face da Constituio Fe-
deral somente ser possvel pela via de exceo, ou, pela via
abstrata quando atendidos os pressupostos de manejo da ar-
gio de descumprimento de preceito fundamental, de com-
petncia do Supremo Tribunal Federal, nos termos da Lei n
9.882/99.

De constitucionalidade duvidosa a previso de espcie


de ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
municipal em face da Lei Orgnica respectiva,23tendo em vista
que no cabvel a aferio da compatibilidade vertical, tendo
por parmetro a Lei Orgnica como espcie de constituio

23
Constituio estadual, artigo 61, I, i.

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Sem ttulo-6 57 29/8/2006, 20:16


58 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

municipal, pois formalmente integra a mencionada espcie


normativa a legislao infraconstitucional estadual. O confli-
to instalado em face da Lei Orgnica conflito de legalidade,
no envolvendo qualquer juzo de constitucionalidade.

5.1 Da Via de Exceo

Por fim, em deferncia conhecida clusula de reserva


de plenrio prevista no artigo 97 da CRFB/88, o constituin-
te estadual estipulou a necessidade da observncia de quorum
diferenciado (maioria absoluta) por parte do Tribunal de Jus-
tia todas as vezes em que for necessria a declarao de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder P-
blico.

Observe-se que o referido quorum se aplica tanto ao


modelo concentrado quanto via de exceo, com o deta-
lhe de que na via difusa deve ser observado pelo Tribunal de
Justia o procedimento estatudo pelo Cdigo de Processo
Civil.24

Resumidamente, disciplina o Cdigo de Processo Ci-


vil o incidente de inconstitucionalidade exigindo que, ao ser
argida a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo pe-
rante rgo fracionrio, dever este apreciar a relevncia da
argio.

Considerada relevante, dever suspender o julgamento,


lavrando-se o respectivo acrdo, e remeter os autos para a
Corte Especial, rgo competente para julgar a questo cons-
titucional (Regimento Interno, art 22, I, p), podendo o re-
ferido rgo decidir pela aplicabilidade ou no da lei ou ato

24
CPC, arts. 480/482.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 59

normativo ao caso concreto em julgamento, observada a clu-


sula de reserva de plenrio.

No que respeita ao procedimento de declarao


incidental de inconstitucionalidade, estabelece o Regimento
Interno do Tribunal de Justia de Pernambuco (Resoluo n
84, de 24 de janeiro de 1996) que suscitada a arguio peran-
te a prpria Corte Especial, havendo quorum, esta dever jul-
gar a questo de imediato, conforme o disposto na legislao
processual civil.

Estar o rgo fracionrio dispensado de observar a ci-


so do julgamento quando a questo de direito (sobre a com-
patibilidade vertical da norma) j tiver sido apreciada pela
Corte Especial do TJPE ou pelo Pleno do Supremo Tribunal
Federal.

Exige ainda o Regimento que seja atingida a maioria de


dois teros dos desembargadores componentes da Corte Es-
pecial para que seja possvel o pronunciamento do menciona-
do rgo, repetindo, no entanto, o mesmo quorum exigido
para declarao de inconstitucionalidade, a saber:

Art. 138. Ser declarada a inconstitucionalidade


se nesse sentido votarem pelo menos dois teros
(2/3) dos desembargadores; no alcanado o
quorum, considerar-se- rejeitada a argio
(art.125, 2).
Pargrafo nico. No atingida a maioria necessria
declarao de inconstitucionalidade, e ausentes
desembargadores em nmero que possa influir no julga-
mento, este ser suspenso, para concluir-se na sesso se-
guinte, indicando-se na minuta os votos que ainda de-
vam ser colhidos.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 33-64 jan./jun. 2005

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60 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

Quanto exigncia da presena de dois teros para que


seja possvel a deliberao acerca da compatibilidade vertical
de leis e atos normativos, laborou em acerto o legislador
atpico regimental. Entretanto, ao se exigir quorum de 2/3
para a prpria deliberao, desconsiderou o Regimento a pre-
viso constitucional estadual que reproduziu a reserva de ple-
nrio correspondente maioria absoluta.

A vinculao das decises da Corte Especial sobre o


incidente de inconstitucionalidade recebeu do Regimento tra-
tamento especfico:

Art. 139. A deciso que declarar a inconstitucionalidade


ou rejeitar a argio, se for reiterada em mais de duas
sesses, ser de aplicao obrigatria para todos os r-
gos do Tribunal.

Vinculados estaro os rgos fracionrios do Tribunal


de Justia desde que tenha havido pronunciamentos reitera-
dos em mais de duas sesses da Corte Especial, tanto no que
respeita declarao de inconstitucionalidade, quanto no que
respeita rejeio da argio, tudo em nome da celeridade e
economia processuais.

6 DA INTERVENO DO ESTADO NO MUNI-


CPIO

Tendo sempre como norte as caractersticas bsicas da


federao, as quais nos remetem s concluses expostas em p-
ginas passadas, especialmente no que concerne inexistncia de
hierarquia entre os entes federados, a interveno consubstancia
medida excepcional de natureza jurdico-poltica de carter tem-
porrio e executada nos exatos limites delineados nas cartas
constitucionais do Estado Federal e dos Estados-membros.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 61

Justamente por se tratar de medida excepcional, a regra


a ser inapelavelmente observada a do respeito autonomia
dos Estados-membros da federao e, em menor dimenso,
dos municpios.

A Constituio do Estado estabelece as excees que


podero ensejar a decretao da interveno do Estado nos
municpios25. Dentre elas est prevista a possibilidade de pro-
vimento por parte do Tribunal de Justia da chamada repre-
sentao interventiva, que possui como nico legitimado o
Procurador-Geral da Justia.

Configura-se possvel o ajuizamento da representao


quando constatada a violao aos princpios constitucionais sens-
veis elencados nas alneas do inciso IV do artigo 91 da Consti-
tuio estadual.

Como visto anteriormente, a representao interventiva


decorre de provocao dirigida ao governador do Estado por
parte do Tribunal de Justia quando a Corte de Justia esta-
dual der provimento representao ajuizada pelo Chefe do
Ministrio Pblico do Estado.

De forma distinta ocorre com as demais espcies ensejadoras


de interveno, as quais podero resultar na edio do decreto
interventivo independentemente de provocao, bastando para
tanto que ocorra a violao aos princpios dispostos no rol
taxativo do artigo 91 da Carta Constitucional estadual.

O decreto editado pelo governador do Estado, devida-


mente motivado, deve ser submetido aprovao da Assem-
blia Legislativa dentro de vinte e quatro horas.

25
Artigo 91.

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62 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

A representao interventiva integra o sistema concen-


trado de controle de constitucionalidade, que, em sua dimen-
so jurdica, limita-se a suspender a execuo do ato impugna-
do por meio de decreto interventivo se essa medida bastar
para o restabelecimento da normalidade.

Em caso de ineficcia da providncia de carter jurdi-


co, deve-se partir para a implementao de medidas que resul-
taro na reduo temporria da autonomia poltica do Muni-
cpio, inclusive com a possibilidade de afastamento das auto-
ridades municipais e a conseqente nomeao de inter-
ventores.26

7 CONCLUSES

Como visto, a carta estadual em verdade funciona como


uma espcie de Lei Orgnica Estadual, sendo suas disposies
relevantes no que respeita definio de parmetros de orga-
nizao, e s.

A existncia de inmeras normas de reproduo diante


do nfimo espao de atuao do constituinte derivado decor-
rente torna, por exemplo, secundria a existncia de um siste-
ma estadual de manuteno da supremacia da carta estadual
por estar sujeito ao avassalador e inevitvel papel desempe-
nhado pelo Supremo Tribunal Federal como guardio da Carta
Republicana de repercusso direta e inquestionvel sobre as
leis fundamentais das ordens jurdicas parciais.

Obviamente, quando se atribui Carta Estadual a con-


dio de verdadeira lei orgnica, a assertiva reporta-se to-so-

26
No caso, novo decreto interventivo deve ser editado pelo governador do
Estado com vistas implementao de medidas de natureza poltica.

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BREVES COMENTRIOS ACERCA DA CONSTITUIO ESTADUAL 63

mente a sua utilidade e alcance diante da amplitude material


da Constituio do Estado Federal. J que respeita superio-
ridade formal e do seu carter fundante relativamente ao
ordenamento jurdico da ordem jurdica parcial perifrica, re-
conhecemos como vlido o entendimento. Tanto assim que
a Constituio do Estado Federal faculta aos Estados-mem-
bros a instituio de representao de inconstitucionalidade
de leis e atos normativos estaduais e municipais, de modo
que evidentemente estabelece um procedimento voltado
manuteno da superioridade da Carta Estadual sobre o
ordenamento jurdico estadual.

Inserida, repita-se, no contexto parcial do Estado-mem-


bro, inegvel sua superioridade.

Recomenda-se, portanto, em homenagem afirmao


da autonomia do Estado-membro, ao Constituinte estadual
que proceda necessria reviso do texto de nossa Carta Cons-
titucional como uma demonstrao de sua relevncia no con-
texto federal, de modo a lhe atribuir uma eficcia no somen-
te simblica, mas sobretudo social, transformando-a em um
vetor importante para a instrumentalizao do Estado na bus-
ca dos objetivos a que se destina no contexto federativo.

Por fim, apenas guisa de ilustrao, faremos referncia


a alguns dispositivos da Carta estadual que se destacam pelo
curiosidade da matria que noticiam, como por exemplo: a
proibio para se dar nome de pessoas vivas a qualquer locali-
dade, logradouro ou estabelecimento pblico, como tambm
de homenagens atravs de monumentos; e a proibio da rea-
lizao de concursos vestibulares para ingresso no ensino su-
perior ou para ingresso em cursos de qualquer nvel nos dias
de sbado, sendo estipulados ainda os limites de horrios para
realizao dos aludidos exames, das oito s dezoito horas.

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64 ANDR DE ALBUQUERQUE GARCIA

8 REFERNCIAS

CARRAZZA, Roque Antnio. Curso de Direito Constituci-


onal Tributrio. 16. ed. So Paulo: Malheiros, 2001.

CARVALHO, Kildare Gonalves. Direito Constitucional Di-


dtico. 7. ed. ver. amp. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

FERRARI, Srgio. Constituio Estadual e Federao. Rio


de Janeiro: Lmen Jris, 2003.

HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. ver.


amp. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos Materi-


ais e Formais da Interveno Federal no Brasil. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 1994.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. So


Paulo: Atlas, 2003.

VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitu-


cionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 33-64 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 64 29/8/2006, 20:16


ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA NOVA LEI DE FALNCIAS 65

ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA


NOVA LEI DE FALNCIAS

Andresa Maria dos Santos


Advogada. Ex-aluna da Escola Superior da
Magistratura de Pernambuco - ESMAPE

SUMRIO
1 INTRODUO; 2 ASPECTOS CRIMINAIS; 2.1 Da Prescrio; 2.2 Do
Procedimento em Juzo; 2.3 Da Competncia; 2.4 Da Ao Penal; 2.5 Do
Oferecimento da Denncia; 2.6 Da Sentena Falimentar; 3 CONSIDERA-
ES FINAIS; 4 REFERNCIAS.

1 INTRODUO

Depois de uma longa tramitao no Congresso Nacio-


nal, foi sancionada pelo Presidente da Repblica a Lei n.
11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que regula a recuperao
judicial, a extrajudicial e a falncia do empresrio e da socie-
dade empresria, intitulada por Nova Lei de Falncias.
Esta Nova Lei de Falncias ensejar a possibilidade de
reestruturao s empresas economicamente viveis que pas-
sem por dificuldades momentneas, mantendo os empregos e
os pagamentos aos credores. Ao acabar com a concordata e
criar as figuras da recuperao judicial e extrajudicial, a nova
lei aumenta a abrangncia e a flexibilidade nos processos de
recuperao de empresas, mediante o desenho de alternativas
para o enfrentamento das dificuldades econmicas e financei-
ras da empresa devedora.

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66 ANDRESA MARIA DOS SANTOS

Traz como divisa a reestruturao empresarial como meio


de proporcionar maiores possibilidades de satisfazer aos cre-
dores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar o crdito
e, em conseqncia, poupar o mercado dos reflexos perversos
da insuficincia dos agentes econmicos1.
Quanto sua vigncia, preleciona o seu artigo 201 que
a nova lei entrar em vigor em 120 (cento e vinte) dias aps
sua publicao, ou seja, em 09 de junho de 2005, no haven-
do aplicao do princpio da incidncia imediata determina-
da no art. 2. do CPP, contando-se o prazo de vacncia e de
vigncia nos termos do 1. do art. 8. da LC 95/98:

1. A contagem do prazo para entrada em vigor das


leis que estabeleam perodo de vacncia far-se- com a
incluso da data da publicao e do ltimo dia do
prazo, entrando em vigor no dia subseqente sua con-
sumao integral.

A matria penal e processual penal vem regulada no


Captulo VII e traz grandes repercusses.
Posto isso, passa-se anlise de algumas alteraes no
que concerne seara criminal.

2 ASPECTOS CRIMINAIS

2.1 Da Prescrio

A prescrio dos crimes falimentares passa a obedecer


regulamentao contida no Cdigo Penal. Sendo o termo a
quo do lapso prescricional a data da decretao da falncia2.

1
FAZZIO JNIOR, Waldo. Nova LLei ei de FFalncia
alncia e a R ecuperao
Recuperao
de Empresas
Empresas. 1. ed. So Paulo: Atlas, 2005. p. 18.
2
FAZZIO JNIOR, Waldo. Op. cit, p. 371.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 65-72 jan./jun. 2005

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ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA NOVA LEI DE FALNCIAS 67

Anteriormente era disposto o prazo de dois anos, as-


sim, em virtude da prejudicialidade (os prazos prescricionais
passaram a ser mais longos) tem-se que os crimes ocorridos
antes da sua vigncia sero regidos pela antiga legislao.
Visa a nova lei acabar com a impunidade que assolava
em virtude do exguo prazo prescricional anteriormente esta-
belecido.

2.2 Do Procedimento em Juzo

O artigo 200 da Lei n. 11.101/05 dispe que ficam


revogadas as disposies dos artigos 503 a 512 do Decreto-Lei
n. 3.689, de 03 de outubro de 1941, do Cdigo de Proces-
so Penal, que tratam do processo e do julgamento dos cri-
mes de falncia.
De logo, preciso anotar que, dentre os crimes previstos
na nova lei, apenas o crime do art. 178 punido com deteno,
de 1 a 2 anos, e multa. Todos os demais so punidos com reclu-
so, de 2 a 4 anos, e multa, exceo feita em relao aos crimes
dos arts. 168 e 176, para os quais o legislador estabeleceu pena de
recluso, de 3 a 6 anos, e multa, em relao ao primeiro, e de
recluso, de 1 a 4 anos, e multa, quanto ao ltimo.
Entretanto, pela nova lei, indistintamente, o procedi-
mento a ser aplicado aquele previsto para os crimes punidos
com deteno, tratando-se, pois, de procedimento especial.
No novo sistema o procedimento passa a ser o sumrio
(art. 531 e ss. CPP cf.art. 185 da Lei 11.101/05), mais restrito
que o anterior - o procedimento ordinrio. Assim, tendo em
vista a plena satisfao da garantia constitucional da ampla
defesa/contraditrio, os crimes ocorridos antes da sua vign-
cia sero regidos pelo procedimento ordinrio, sob pena de
cerceamento de defesa.
Ainda quanto ao procedimento, tinha-se que o ante-
rior era bifsico, dividido em duas fases: a fase do inqurito

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68 ANDRESA MARIA DOS SANTOS

judicial e a fase processual. Podia, ento, o prprio juiz da


falncia presidir as investigaes. Com a nova lei no mais
existe o inqurito judicial, pois dispe o art. 187, 2. , da
Lei 11.101/05, que o juiz sempre que vislumbrar indcios de
crime mandar cpia de tudo ao Ministrio Pblico. H, em
verdade, a separao das funes de acusar, defender e julgar,
que devem ser exercidas por diferentes pessoas.
Sem dvidas, com esta importante modificao ganhou
mais fora o Ministrio Pblico no desempenho de suas atri-
buies. Aps intimao da sentena que concede a recupera-
o judicial ou que decrete a falncia, cabe-lhe a promoo da
ao penal respectiva na hiptese de haver algum delito a ser
punido, ou a requisio da abertura de inqurito policial.

2.3 Da Competncia

Nos termos do artigo 183 da Nova Lei de Falncias:

Compete ao juiz criminal da jurisdio onde tenha


sido decretada a falncia, concedida a recuperao
judicial ou homologado o plano de recuperao
extrajudicial, conhecer da ao penal pelos crimes pre-
vistos nesta Lei.

Pela redao dada a esse dispositivo, no se pode deixar


de aplaudir o deslocamento da ao penal falimentar para sua
sede prpria, quer dizer, para o juzo criminal, eliminando a
cumulao de tarefas do juzo da falncia. Na realidade, ao
de falncia, execuo concursal e ao penal falimentar so
processos que, embora amarrados um ao outro pelo fenme-
no da falncia, tm escopos diversos3.
A nova lei retira do juzo universal da falncia, que

3
FAZZIO JNIOR, Waldo. Op. cit, p.. 371.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 65-72 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 68 29/8/2006, 20:16


ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA NOVA LEI DE FALNCIAS 69

de natureza extrapenal, a competncia para o processo e julga-


mento dos delitos falimentares.

2.4 Da Ao Penal
O artigo 503 do CPP dispe:

Nos crimes de falncia fraudulenta ou culposa, a ao


penal poder ser intentada por denncia do Ministrio
Pblico ou por queixa do liquidatrio ou de qualquer
credor habilitado por sentena passada em julgado.

No entanto, como j mencionado, esta previso, que


contempla as possibilidades de ao penal incondicionada,
por denncia de iniciativa do Ministrio Pblico, e ao pe-
nal privada, por queixa a ser oferecida pelo liquidatrio ou
qualquer credor habilitado por sentena passada em julgado,
ter aplicabilidade at a entrada em vigor da nova lei, visto ter
sido revogada por fora do art. 200, Lei n. 11.101/05.
Conforme o novo diploma, em se tratando de crime
falimentar, fica excluda a possibilidade de ao penal privada,
disposta no art. 184: Os crimes previstos nesta lei so de ao
penal pblica incondicionada.
Acaba por afastar qualquer interesse particular primrio
na persecuo penal. Contudo, existe, conseqentemente, a pos-
sibilidade de ao penal privada subsidiria da pblica na hipte-
se de absoluta inrcia do Parquet, cabendo a qualquer credor ha-
bilitado ou ao administrador judicial intentar a ao penal nos
moldes da regulamentao normativa, devendo obedecer s dis-
posies gerais do Cdigo de Processo Penal, quanto ao mais.

2.5 Do Oferecimento da Denncia

Estabelece a nova lei que a ao penal no poder ser


iniciada sem que exista prvia sentena de decretao da que-

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 65-72 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 69 29/8/2006, 20:16


70 ANDRESA MARIA DOS SANTOS

bra, e tambm agora, concedendo a recuperao judicial, ten-


do em vista o disposto no art. 187:

Intimado da sentena que decreta a falncia ou conce-


de a recuperao judicial, o Ministrio Pblico, verifi-
cando a ocorrncia de qualquer crime previsto nesta
Lei, promover imediatamente a competente ao pe-
nal ou, se entender necessrio, requisitar a abertura de
inqurito policial.

Assim, verificando o Ministrio Pblico a ocorrn-


cia de qualquer crime contido na lei, quando da inti-
mao da sentena que decreta a falncia ou concede a
recuperao judicial, promover de imediato a ao pe-
nal cabvel, podendo em determinadas hipteses haver a
dispensa de inqurito policial (caso do material pro-
batrio suficiente para o firme embasamento da denn-
cia).
O prazo para o oferecimento da denncia ser de 05
(cinco) dias estando o investigado preso, e de 15 (quinze) dias
se o investigado estiver solto art. 187, 1. , pouco impor-
tando a presena ou no do inqurito policial no procedi-
mento falimentar.
Entretanto, conforme preleciona a parte final do referi-
do artigo, em certos casos, quando o investigado estiver solto,
poder o Ministrio Pblico decidir, sem fiscalizao ou inge-
rncia alguma do judicirio, por esperar a exposio circuns-
tanciada referida no art. 186 da nova lei, devendo, em segui-
da, oferecer a denncia em 15 (quinze) dias.

2.6 Da Sentena Falimentar

A sentena que decreta a falncia, concede a recupera-


o judicial ou concede a recuperao extrajudicial, mudou

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ASPECTOS CRIMINAIS LUZ DA NOVA LEI DE FALNCIAS 71

sua natureza jurdica: agora condio objetiva de punibilidade.


Sem ela o fato no punvel4.
Corroborando, nos ensina Amador Paes de Almeida
que a nova legislao, como no poderia deixar de ser, pondo
em relevo a natureza econmica do crime falimentar, pressu-
pe a ocorrncia da liquidao judicial como condio de
punibilidade5.
Dessa forma, no existe fato punvel antes da sentena
que concede a recuperao judicial ou extrajudicial ou decre-
ta a falncia.

3 CONSIDERAES FINAIS

De certo, sem o total exaurimento da questo em tela,


percebe-se que no so muitas as alteraes introduzidas pela
nova lei de falncia seara criminal, mas de grande significncia.
Outras mudanas precisam ser feitas, contudo as realizadas
pretendem conduzir ao melhor aperfeioamento do instituto
da falncia e da recuperao judicial/extrajudicial, agora, se o
objetivo pretendido ser alcanado s o tempo responder.

4 REFERNCIAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falncia e Concordata.


16 ed. So Paulo: Saraiva, 2000.

COELHO, Fbio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 16.


ed. So Paulo: Saraiva, 2005.

4
GOMES, Luiz Flvio. Nova Lei de Falncias e suas Repercusses
Criminais
Criminais. Disponvel em: Pro Omnis: http://www.proomnis.com.br>. Aces-
so em: 01 abr. 2005.
5
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de FFalncia alncia e Concordata
Concordata. 18.
ed. So Paulo: Saraiva, 2000. p. 551.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 65-72 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 71 29/8/2006, 20:16


72 ANDRESA MARIA DOS SANTOS

FAZZIO JNIOR, Waldo. Nova Lei de Falncia e Recupera-


o de Empresas. 1. ed. So Paulo: Atlas, 2005.

GOMES, Luiz Flvio. Nova Lei de Falncias e suas Repercus-


ses Criminais. Disponvel em: < Pro Omnis: http://
www.proomnis.com.br>. Acesso em: 01 abr. 2005.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Cdigo de Processo Penal In-


terpretado. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2002.

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentrios Nova Lei de


Falncias. 1. ed. So Paulo: IOB Thomson, 2005.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Pro-


cesso Penal. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2001.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 65-72 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 72 29/8/2006, 20:16


A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 73

A POLMICA DA UNIO CIVIL


ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E
A NECESSIDADE DE SUA
REGULAMENTAO NORMATIVA

Blanche Maymone Pontes Matos


Juza de Direito.

SUMRIO
INTRODUO; 1 O CASAMENTO COMO O PRINCIPAL MEIO DE
ESTABELECIMENTO E PROTEO DA FAMLIA; 1.1 Os antecedentes
histricos e a lenta evoluo do instituto; 1.2 A variedade de conceitos
e a heterossexualidade como principal caracterstica; 1.3 Os novos
tipos de famlia; 2 O RELACIONAMENTO AFETIVO ESTVEL ENTRE
PESSOAS DO MESMO SEXO; 2.1 A gnese do homossexualismo.
Aspectos psicossociais; 2.2 A normatizao das unies estveis ho-
mossexuais no direito comparado; 2.3 A orientao sexual como direi-
t o d a p e r s o n a l i d a d e ; 3 A T E N TAT I VA D E R E G U L A M E N TA O
NORMATIVA DAS CONVIVNCIAS; HOMOAFETIVAS O PROJETO
DE LEI N 1.151/1995 E A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUIO
N 70/2003 EQUIPARAO ENTIDADE FAMILIAR?; 4 MAIS POL-
M I C A : O P L E I TO D O PA R Q U E T F E D E R A L : O B R I G ATO R I E D A D E
(ABRANGNCIA NACIONAL) DA CELEBRAO DO CASAMENTO CI-
VIL DE PESSOAS DO MESMO SEXO; 5 CONCLUSO; 6 REFE-
RNCIAS.

INTRODUO

patente, nos ltimos anos, a multiplicao de instru-


mentos jurdicos com a finalidade de tutelar a comunho de

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 73-99 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 73 29/8/2006, 20:16


74 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

vida entre duas pessoas do mesmo sexo, sobretudo nos pases


europeus, onde tal evoluo no s promoveu, na grande
maioria deles, o enquadramento normativo deste tipo de unio
atravs de institutos juridicamente distintos do casamento,
mas tambm legitimou, numa minoria, a abertura prpria
instituio do matrimnio civil a homossexuais.
No nosso pas, o polmico assunto de que ora se trata
j foi deveras debatido quando da apresentao, em 1995, do
Projeto de Lei n 1.151/95, de autoria da ento Deputada
Marta Suplicy. Quedou-se um pouco adormecido- no
obstante a Proposta de Emenda Constituio n 70/2003
(que pouco foi analisada) e as vrias manifestaes dos seus
adeptos - e, agora, volta com fora total baila, mormente
pela ateno dispensada pela mdia televisiva (a novela global
das 20 horas mostra a unio de duas mulheres, inclusive
abordando a intrigante questo da adoo) e, mais recen-
temente, no meio jurdico, com o ingresso, no ms de janeiro
de 2005, pela Procuradoria da Repblica, de uma ao civil
pblica, com pedido de liminar, objetivando obrigar os
Estados, o Distrito Federal e a Unio a celebrarem o casamento
civil de pessoas do mesmo sexo.
Trataremos exatamente, neste estudo, de promover mais
um questionamento crtico - e por certo no exaustivo - acerca
do polmico tema da unio civil entre homossexuais e da
necessidade de sua regulamentao legislativa. Para tal faz-se
necessrio relembrar em poucas linhas o conceito dogmtico
de casamento e de famlia e a evoluo da definio deste
ltimo instituto com o advento da Constituio de 1988;
destacar a crescente aceitao da homossexualidade pelas so-
ciedades modernas e a normatizao daquelas unies no
contexto internacional; ressaltar a livre expresso da sexualidade
como direito da personalidade, decorrente do princpio da
dignidade humana; tecer algumas consideraes acerca das
propostas de alteraes no s normativas, mas da prpria

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noo social e jurdica de casamento e de famlia, sob a tica


do ordenamento jurdico ptrio; e demonstrar que, apesar da
tentativa de equiparao, h diferenas fundamentais entre as
instituies do casamento e unio (ou pareceria) civil entre
pessoas do mesmo sexo. Ao final, esboaremos, em sede
conclusiva, nossa opinio, despida de qualquer valorao ou
preconceitos, mas como produto do estudo ora realizado, o
qual procurou fundar-se nos aspectos sociais e jurdicos da
unio civil entre pessoas do mesmo sexo.
A importncia do tema exsurge da indubitvel novel
realidade social mundial - em termos de aceitao e do
desenvolvimento de meios de tutela jurdica, uma vez que o
homossexualismo, por si s, no nenhuma novidade -, da
complexidade da sua compreenso e da dificuldade de alguns
pases, entre eles o Brasil, quanto ao reconhecimento e regulao
da convivncia afetiva entre pessoas do mesmo sexo, no
obstante, repetimos, no plano internacional j haverem
merecido por muitos a tutela adequada.

1 O CASAMENTO COMO O PRINCIPAL MEIO DE


ESTABELECIMENTO E PROTEO DA FAMLIA

1.1 Os antecedentes histricos e a lenta evoluo do


instituto

O matrimnio uma das instituies mais antigas do


mundo, advinda dos costumes de cunho moral e, no mais das
vezes, religioso, e sua origem remonta, pelo que se sabe,
unio pela fora, nos tempos pr-histricos, onde o homem
subjugava e capturava a mulher. Nas antigas civilizaes, o
casamento servia a interesses econmicos e sociais (fator que
ainda permanece em alguns povos, at hoje em dia) e despertou
maior interesse como modo de oficializao da unio entre

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homens e mulheres, atravs de rituais diversos, a partir do


perodo de dominao do Imprio Romano, onde era dividido
em trs espcies: a confarretio (casamento dos cidados romanos,
correspondente ao matrimnio religioso), a coemptio
(matrimnio dos plebeus) e o usus (equivalente a um usucapio,
posto que a mulher era adquirida pela posse), evoluindo
posteriormente at o casamento livre. Na Idade Mdia, a Igreja
se apossa da regulamentao e celebrao do casamento, at
que o Estado passa a regular o instituto civil sem interferncia
da autoridade eclesistica. No Brasil, a regulamentao do
casamento catlico se deu em 1861, sendo certo que a Carta
Magna de 1988, em seu artigo 226, pargrafo segundo, disps
que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da
legislao especfica.

1.2 A variedade de conceitos e a heterossexualidade


como principal caracterstica

O conceito de casamento varia bastante conforme a


realidade temporal, espacial, cultural e social e, aqui entre ns,
a sua elaborao constitui num desafio para os doutrinadores,
elaborando-o, estes, de acordo com a concepo que tenham
do instituto.

O primeiro conceito de que se tem notcia o de


Modestino, sob a influncia do Direito Romano, o qual definiu
nuptiae sunt conjunctio maris et feminae consortium omnis vitae,
divini et humani juris communicatio (casamento a conjuno
do homem e da mulher, que se associam para toda a vida, a
comunho do direito divino e do direito humano). (ALVES,
1998, p. 282). O conceito traz a caracterstica da perpetuidade
e a referncia divindade do direito.

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Ainda sob a gide do Direito Romano, o casamento foi


conceituado como uma relao jurdica caracterizada pela vida
em comunho e pela afeio entre os cnjuges, conceito este
que foi adotado pelo Direito Cannico.

A partir da chegada do cristianismo, o matrimnio passa


a representar a unio do homem e da mulher sob as bnos
de Deus.

No direito ptrio, os conceitos variam de acordo com a


concepo que se tenha acerca da natureza jurdica do
casamento se instituio ou contrato (havendo, ainda, a teoria
mista).

Para Clvis Bevilqua, adepto da teoria contratualista,


o casamento um contrato bilateral e solene, pelo qual um
homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legitimando
por ele suas relaes sexuais; estabelecendo a mais estreita
comunho de vida e de interesse, e comprometendo-se a criar
e educar a prole que de ambos nascer. (DINIZ, 2000, p. 34).
Observa-se que j no mais perdura entre ns o carter
perptuo e indissolvel do casamento, demonstrada, ento, a
mutabilidade de seu conceito.

Elaborando um conceito at agora mais atual, tendo


em mira a conjuno dos artigos 1.511, 1.513, 1.565 e 1.566
e, ainda, do artigo 226, pargrafo 1, da Constituio de 1988,
Maria Helena Diniz, encampando a teoria institucionalista,
define o casamento como sendo o vnculo jurdico entre o
homem e a mulher que visa o auxlio mtuo, material e
espiritual, de modo que haja uma integrao fisiopsquica e a
constituio de uma famlia legtima. (DINIZ, 2000, p. 33).

De fato, neste ltimo conceito vislumbram-se os efeitos


jurdicos do matrimnio (constituio da famlia legtima e

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atribuio aos cnjuges de uma srie de direitos e obrigaes


recprocas), o seu aspecto social (manifestao pblica da
vontade conjunta e a formalidade da cerimnia) e moral (a
comunho plena de vida, no s no sentido patrimonial, como
tambm no espiritual). Mais ainda: dele se extrai que a
heterossexualidade permanece, em nosso ordenamento
jurdico, como caracterstica fundamental do casamento,
pressuposto, inclusive, de sua prpria existncia.
Assim, temos que, apesar da evoluo do instituto, os
seus requisitos essenciais permanecem os mesmos, quais sejam:
a diferena de sexo, o consentimento inequvoco e espontneo
dos nubentes e a celebrao na forma da lei.

1.3 Os novos tipos de famlia

Os dispositivos legais e constitucional supra-referidos


revelam tambm o interesse pblico atinente organizao da
vida familiar e que o casamento continua como o principal
meio de constituio e proteo jurdica da famlia. Principal,
mas no nico, porquanto, mesmo diante da resistncia dos
que cultuam o dogma matrimonial, o direito de famlia um
ramo permevel e adaptvel s mutaes sociais, e, atento a
esta caracterstica, o constituinte de 88, num passo frente
em relao s constituies anteriores, que reconheciam como
famlia unicamente a originada do matrimnio civil, introduziu
outras entidades familiares no direito brasileiro, como a
formada pela unio estvel entre um homem e uma mulher e
a decorrente das relaes entre um dos genitores e seus filhos
(famlia monoparental), ex vi dos pargrafos 3 e 4 do artigo
226 da Constituio Federal.
Entretanto, no tratou o legislador constituinte de regula-
mentar os relacionamentos afetivos estveis dos homossexuais,
deixando de incluir essas relaes no rol das entidades familiares,
apesar de tais relacionamentos j existirem, mesmo que na maior

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parte das vezes na clandestinidade, e de ser extremamente


necessria sua recepo pela ordem jurdica nacional, no s
para evitar a insegurana jurdica, como tambm em respeito
ao princpio basilar da dignidade da pessoa humana. A
regulamentao normativa ser possvel? J foi dito alhures da
existncia de propostas de mudana legislativa e alterao
constitucional para permitir a unio civil ou parceria civil
entre casais homossexuais. Alcanaro elas xito? Fora do
mbito legislativo, possvel admitir-se como pleiteia o
representante do parquet federal - o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, quando este , como dogma at hoje indestrutvel,
unio heterossexual? Estas indagaes sero analisadas a seguir,
no sem antes destacar sintaticamente os aspectos psicossociais
do homossexualismo e o recente desenvolvimento normativo
no plano internacional, no que pertine no s aceitao e
regulamentao, como tambm elevao da orientao sexual
ao patamar de direito da personalidade.

2 O RELACIONAMENTO AFETIVO ESTVEL EN-


TRE PESSOAS DO MESMO SEXO

2.1 A gnese do homossexualismo. Aspectos psicossociais

Pesquisas cientficas concluram que a homossexualidade


no caracterstica exclusiva do ser humano, mas tambm
ocorre entre os animais.

Em relao espcie humana, a notcia que se tem em


todos os escritos doutrinrios a de que existem vestgios da
prtica do homossexualismo entre muitos povos selvagens e
tambm nas antigas civilizaes egpcia, romana, assria e grega.
Nestes ltimos, tomou uma maior feio, uma vez que, alm
da religio e da atividade blica, atriburam-lhe, os gregos,
caractersticas intelectuais e artsticas. Era proibido, no entanto,

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externar o comportamento homossexual, que era um privilgio


da nobreza.

Com o surgimento do cristianismo e o dogma da


concepo do filho de Deus sem pecado, o sexo passou a ser
admitido unicamente para fins de procriao, passando a igreja
catlica a arraigar a posio do homossexualismo como uma
prtica pervertida, a transgredir a ordem natural, sendo
considerado, ainda hoje, prtica criminosa nos pases islmicos.

Durante o perodo do Renascimento, vrios artistas


cultivaram paixes homossexuais, mesmo com a forte oposio
da Igreja. E a prtica vem acompanhando as mudanas
histricas e sociais, sendo certo que, de uns trinta anos para
c decerto em virtude da maior abertura sexual e das
conquistas alcanadas no sentido de erradicar qualquer forma
de discriminao os movimentos em favor da liberdade de
orientao sexual tm proliferado a olhos vistos .

Psicologicamente, a homossexualidade no tida como uma


opo pessoal consciente, que pode ser alterada de acordo com as
circunstncias e nem uma doena hereditria, e sim fruto de um
determinismo psquico primitivo, advindo das relaes com os
pais desde a concepo at os 3 ou 4 anos de idade, quando ento
se forma o ncleo da identidade sexual na personalidade.

A cincia, por sua vez, j no v o homossexualismo


como uma doena ou perverso sexual, deixando de constar
como doena mental no Cdigo Internacional das Doenas
CID, passando ao captulo Dos Sintomas Decorrentes de
Circunstncias Psicossociais. No mais, recentes pesquisas
norte-americanas mostram a influncia da gentica no
desenvolvimento do homossexualismo.
De outra parte, a sociedade brasileira ainda
considerada heterossexual, pois formada por 10% (dez por

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cento) de homossexuais. Mesmo constituindo eles uma


minoria, devem merecer a tutela jurdica, cabendo ao Estado
no apenas impedir a discriminao, mas tambm criar
mecanismos que promovam a aceitao da diversidade e a
normatizao das unies homoafetivas (criao neologista
de Maria Berenice Dias), como de fato est acontecendo em
vrios pases do mundo.

2.2 A normatizao das unies estveis homossexuais


no direito comparado

No plano do direito comparado e no momento


presente, a tutela jurdica das unies estveis de pessoas do
mesmo sexo faz-se atravs de formas distintas, mais ou menos
oficializadas, consoante a ordem jurdica interna dos pases.
Assim que a legislao neerlandesa em vigor desde 1
de abril de 2001 a Lei de 21 de dezembro de 2000
modificou o Livro I do Cdigo Civil, dispondo sobre a
abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo (Staatsblad
van het Koninkrijk der Nederladen, 2001, n 9) foi a primeira
a permitir essa forma de comunho no heterossexual. Na
Holanda, os casais homossexuais podem, inclusive, adotar.
Seguiu, posteriormente, tal exemplo, a Blgica cujo ordena-
mento jurdico, em 2003, passou a permitir o casamento
de pessoas do mesmo sexo (cohabitation lgale, sem permitir,
no entanto, a adoo); a ustria (Lebensgemeinschaft); a Frana
(pacte civil de solidarit, dispondo sobre direitos e deveres
recprocos entre casais, homo ou heterossexuais, no
vinculados ao casamento); e os pases nrdicos (Dinamarca,
Pases Baixos e Finlndia), atravs das chamadas unies
registradas (registered partnerships).

No Canad, os Tribunais de Ontrio, da British


Columbia e do Qubec obrigaram a celebrao do casamento

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dos homossexuais. Perto do final do ano de 2004, o Tribunal


Supremo daquele pas declarou constitucional os casamentos
entre pessoas do mesmo sexo.

Em maio de 2004 os Estados Unidos passam a celebrar


o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, a
vitria de George W. Bush nas eleies presidenciais,
comprometendo-se ele, inclusive, a fazer incluir na Cons-
tituio Americana que defina o casamento, a nvel federal,
como a unio entre pessoas de sexos diferentes, traz tona a
polmica e o futuro incerto acerca da normatizao jurdica.

O governo espanhol aprovou, no final de 2004, um


projeto de lei que legaliza o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, o qual dever ser encaminhado para apreciao da
Assemblia Nacional. Segundo o projeto, casais homossexuais
podero adotar crianas e recebero todos os benefcios
desfrutados pelos heterossexuais, como o direito herana e
penso. A sociedade espanhola encontra-se bastante dividida
e em alguns pontos, como a adoo de crianas, totalmente
contrria ao projeto do Governo. E o Conselho do Poder
Judicirio da Espanha emitiu parecer em janeiro de 2005,
alertando para que, no entender de seus pares, existem srias
dvidas acerca da constitucionalidade do projeto, assinalando,
por outro lado, que os direitos dos casais homossexuais
deveriam ser tutelados por outras figuras que no o
matrimnio.

Na Alemanha, desde o ano de 2000, foi aprovada a lei


que admite o registro oficial da unio homossexual. Entre-
tanto, a lei traz algumas limitaes, sendo a mais importante
delas o veto adoo.

Em Portugal, desde 2001 reconhecida a unio de


facto entre pessoas do mesmo sexo (Lei n 7/2001, de 11 de

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maio), atribuindo direitos mas tambm vrias limitaes


importantes como: a impossibilidade de registro (importante
meio de prova da relao de fato); no dispe sobre o direito
de herana; o direito adoo continua consignado apenas
para as unies de fato entre pessoas de sexo diferente; a
inexistncia de patrimnio comum, pelo que as dvidas so
de responsabilidade exclusiva de quem as contraiu; no h
possibilidade de adoo do apelido e; no permite a escolha
do regime de bens.

A Argentina tornou-se, em 13 de dezembro de 2002, a


primeira cidade da Amrica Latina a legalizar a unio civil entre
homossexuais, sem, no entanto, admitir o casamento.
Apesar das diferenas existentes na regulamentao das
unies homossexuais no mbito de cada pas, registramos que
na esmagadora maioria deles, como no caso das unies
registradas dos pases nrdicos, ela produz efeitos jurdicos
similares aos do casamento. Atualmente, apenas os pases
baixos comportam mesmo a abertura do casamento civil a
casais homossexuais. De uma forma ou de outra, assegura-se a
no-discriminao e promove-se a extenso de direitos
conferidos anteriormente apenas aos heterossexuais, onde o
principal o da livre orientao sexual, inserido no contexto
internacional como decorrente do princpio da dignidade
humana e, como tal, um direito personalssimo.

2.3 A orientao sexual como direito da personalidade

No Brasil, todo o movimento poltico-jurdico na busca


incessante dos direitos referentes livre orientao sexual insere-
se no contexto internacional acima e coaduna-se com o
princpio constitucional basilar da dignidade da pessoa
humana, donde emanam todos os outros princpios/direitos
constitucionais, inclusive os da personalidade, definida pela

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Psicologia como a organizao mental total de um ser humano


em qualquer estgio do seu desenvolvimento, abrangendo-lhe
todos os aspectos de carter, temperamento, habilidade,
moralidade e atitudes.
Nesta tica, a orientao sexual (ou opo, como se
referem alguns), direito da personalidade, porquanto atributo
inerente e inegvel pessoa humana e, como tal, no deve
servir de via expressa de discriminao, nem permanecer
margem do Direito, merecendo deste a tutela adequada, em
respeito ao princpio da dignidade humana e a um dos seus
prolongamentos, qual seja, o da igualdade. Nesse passo,
importante lembrar entendimento j sedimentado na
doutrina e jurisprudncia - que a igualdade no expressa uma
obrigao absoluta em todas as situaes, nem probe
diferenciaes de tratamento, desde que no arbitrrias.

3 A TENTATIVA DE REGULAMENTAO NOR-


MATIVA DAS CONVIVNCIAS HOMOA-
FETIVAS O PROJETO DE LEI N 1.151/1995 E
A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUIO
N 70/2003 EQUIPARAO ENTIDADE FA-
MILIAR?

Diante do quadro de mobilidade internacional no


sentido de regulao da relao de convivncia afetiva entre
pessoas do mesmo sexo, no pde, o legislador brasileiro,
permanecer inerte, pelo que foram apresentadas duas pro-
posies em relao matria: o Projeto de Lei n 1.151/95,
de autoria da ento Deputada Marta Suplicy e a Proposta de
Emenda Constituio n 70/2003, de autoria do Senador
Srgio Cabral.
Exporemos resumidamente, a seguir, alguns pontos de
ambas as proposies, que entendemos mais relevantes para o
objeto do tema, mais especificamente a questo de se a unio

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estvel entre pessoas de sexo diferente constitui ou no


casamento ou outra forma de entidade familiar. O nosso
posicionamento ser demonstrado durante a exposio e
tambm nas linhas conclusivas.

Pela redao primitiva do Projeto de Lei n 1.151/95,


pretendia ele instituir a unio civil entre pessoas do mesmo
sexo. O objetivo surgia claramente nas entrelinhas e era o de
conferir quase todos os direitos inerentes ao casamento
heterossexual, apesar de sua autora advertir, nas justificativas,
que a figura da unio civil entre pessoas do mesmo sexo no
se confunde nem com o instituto do casamento,
regulamentado pelo Cdigo Civil brasileiro, nem com a unio
estvel, prevista no pargrafo 3 do art.226 da Constituio
Federal. mais uma relao entre particulares que, por sua
relevncia e especificidade, merece a proteo do Estado e do
Direito. Logo aps, nas mesmas justificativas, aduz: Est
entendido, portanto, que todas as previses aplicveis aos casais
casados tambm devem ser direito das parcerias homossexuais
permanentes.

De outra parte, o Relator, Deputado Roberto Jefferson,


entendendo que a denominao unio levava idia de
casamento, procurou esclarecer o tema, para que no
houvesse distores, substituindo a expresso unio civil
por parceria civil registrada, segundo ele mais concordante
com os objetivos do projeto original. Assim, segundo o
Relator, o projeto baseia-se na efetiva garantia da dignidade
da pessoa humana, no se tratando da instituio nem de
casamento e nem de unio estvel entre pessoas do mesmo
sexo, nem muito menos de direito de famlia, sendo seus
objetivos claramente de ordem econmica, visando garantia
dos direitos herana, aos benefcios previdencirios,
composio de renda para aquisio de financiamento para
casa prpria e declarao conjunta de imposto de renda,

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dentre outros direitos patrimoniais. Possibilita um plano de


sade conjunto e, ainda, a preferncia do parceiro no
exerccio da curatela. Trata, tambm, da impenhorabilidade
do imvel prprio e comum dos parceiros. Dispe, ainda,
o projeto (com o substitutivo oferecido pelo Relator), sobre a
proibio da adoo, a tutela ou guarda de crianas ou
adolescente pelos parceiros, mesmo que sejam filhos de um
deles.

O Projeto de Lei n 1.151/95 foi apresentado em


26.10.1995, encontra-se tramitando em regime ordinrio e,
desde 31.05.2001, quando foi retirado de pauta em face de
acordo entre os lderes, pronto para discusso1 .

Por outro lado, a Proposta de Emenda Constituio


n 70, de 02.09.2003, pretende estender aos casais homos-
sexuais os mesmos direitos outorgados unio estvel entre
casais heterossexuais, excluda a converso em casamento, que,
segundo o texto, continua sendo prerrogativa da unio entre
homem e mulher. Objetiva, ento, a proposta, modificar a
redao do pargrafo 3 do artigo 226 da Carta Federal de
1988 para instituir, ao lado da famlia constituda pelo
casamento, pela unio estvel e a monoparental, tambm
aquela formada pelos casais homossexuais.

Encontra-se a PEC n 70/2003 na Comisso de


Constituio, Justia e Cidadania, desde 12.05.2004, quando
foi aprovado o requerimento da Senadora Serys Slhessanrenko,
de audincia pblica para instruir a matria.

De nossa parte, entendemos que o Projeto de Lei n


1.151/95 marca, sem sombra de dvida, no nosso pas, um
avano legislativo na tentativa de disciplinar as relaes homos-

1
disponvel em: http://www2.camara.gov.br/proposicoes

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sexuais, apesar de o seu texto trazer algumas impropriedades


tcnicas e disposies que colidem com o seu decantado
propsito apenas o de autorizar a elaborao de um contrato
escrito e registrvel contendo apenas deveres, direitos e
obrigaes de ordem patrimonial . Afastaram-se as expresses
famlia e casamento, mas prevem tambm efeitos no-
patrimoniais ao registro da parceria - que implicitamente
revelam a existncia de uma relao afetiva entre os parceiros.

Isto se observa nas passagens acerca de coabitao,


fidelidade (art. 7) apesar de o Relator assim no cogitar - e,
ainda, na clusula de prioridade da curatela de um dos
parceiros em caso de incapacidade superveniente do outro.
Outra disposio que nos parece remeter instituio familiar
o artigo 9 do referido projeto, o qual estabelece a impenho-
rabilidade do imvel prprio e comum dos contratantes, nos
termos da Lei n 8.009/90. A referida lei trata da impe-
nhorabilidade do bem de famlia como imvel residencial
prprio do casal, ou da entidade familiar..., mas ainda assim,
segundo o eminente Relator, no se cria nenhuma entidade
familiar para efeitos de proteo do Estado.

H indubitavelmente alguns equvocos no projeto de


lei supramencionado, no s no aspecto do tecnicismo legal
(alguns no objetivamos tratar aqui), mas tambm e principal-
mente quando se prope a emoldurar as relaes jurdicas
dos homossexuais apenas como obrigacionais, entrando em
choque, inclusive, com a Proposta de Emenda Constitucional
n 70/2003, a qual pretende equiparar as unies homossexuais
entidade familiar.

Posiciona-se tambm, o projeto, na contra-mo da


jurisprudncia, que j deu vrios sinais de reconhecimento da
unio estvel homossexual como entidade familiar. Destacamos
uma curiosa e recente deciso: o Tribunal Superior Eleitoral,

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ao julgar o RESPE n 24564, na data de 01.10.2004, cujo


relator foi o eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes,
proibiu a candidatura de uma deputada estadual paraense
Prefeitura do Municpio de Viseu, no nordeste do Par, ao
argumento ftico de ela ter uma suposta unio homoafetiva
com a ento atual Prefeita da cidade. O fundamento jurdico
foi o de que a candidatura viola a proibio constante do art.
14, pargrafo 7, da Constituio Federal, que cuida dos casos
de inelegibilidade reflexa e territorial. Eis o acrdo, in verbis:

DECISO: AO DE DESCUMPRIMENTO
DE PRECEITO FUNDAMENTAL INTER-
VENO DE TERCEIRO REQUERIMEN-
TO IMPROPRIEDADE. 1. Eis as informaes
prestadas pela Assessoria: A Conferncia Nacional
dos Bispos do Brasil CNBB requer a inter-
veno no processo em referncia, como amicus
curiae, conforme preconiza o 1 do artigo 6
da Lei 9.882/1999, e a juntada de procurao.
Pede vista pelo prazo de cinco dias. 2. O pedido
no se enquadra no texto legal evocado pela
requerente. Seria dado versar sobre a aplicao,
por analogia, da Lei n 9.868/99, que disciplina
tambm processo objetivo ao direta de
inconstitucionalidade e ao declaratria de
constitucionalidade. Todavia, a admisso de
terceiros no implica o reconhecimento de direito
subjetivo a tanto. Fica a critrio do relator, caso
entenda oportuno. Eis a inteligncia do artigo
7, 2, da Lei n 9.868/99, sob pena de tumulto
processual. Tanto assim que o ato do relator,
situado no campo da prtica de ofcio, no
suscetvel de impugnao na via recursal. 3.
Indefiro o pedido. 4. Publique-se. Braslia, 24

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A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 89

de junho de 2004. Ministro MARCO AU-


RLIO. Relator.2

No adentraremos, aqui, na questo tcnica de se caberia


restringir o direito elegibilidade de quem no figura nas
hipteses legais por interpretao analgica (a maioria da
doutrina se posiciona contrariamente). Interessa-nos, no
momento, o fato de que, pelo dispositivo constitucional
fundante da deciso supra-referida, pelo menos para fins
eleitorais, a relao homossexual foi equiparada relao
conjugal ou de parentesco, coadunando-se no com o Projeto
de Lei n 1.151/95, mas com a Proposta de Emenda Cons-
titucional n 70/2003.

Urge que os nossos legisladores harmonizem os textos


normativos pertinentes matria. Nada adianta transplantar,
para o ordenamento jurdico ptrio, noes de institutos
jurdicos utilizados em outros sistemas, sem qualquer anlise
dos seus efeitos prticos na nossa ordem jurdica, sob pena de
criar, como se est criando, uma confuso interpretativa do
que seja casamento, unio estvel e unio homoafetiva, o
que contribuir nefastamente para o enfraquecimento de tais
relaes.

Posicionamo-nos no sentido de que o rol de entidades


familiares constante do artigo 226 da Constituio Federal
no taxativo, uma vez que, como j dissemos, o direito de
famlia tem como caracterstica a permeabilidade e adapta-
bilidade ao dinamismo social. O pensamento amplamente
majoritrio o de que o grau de afetividade demonstrado
pela unio das pessoas o sinal indicativo da existncia ou
no de entidade familiar, sendo certo que um tio (a) e sobrinho

2
deciso disponvel em <http://www.tse.gov.br/servicos/jurisprudencia>.

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90 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

(a), um av () e um (a) neto (a), dois ou mais irmos podem,


partindo daquele indicativo (afetividade) formar uma entidade
familiar. Assim tambm vislumbramos sem qualquer
valorao pessoal - quanto unio entre dois homens ou duas
mulheres, devendo, pois, seus relacionamentos afetivos estveis
serem incorporados ao rol constitucional.
Pertinente, nesse passo, aquela indagao formulada
alhures: reconhecendo que a unio homoafetiva estvel equi-
parvel entidade familiar, tal levaria inarredavelmente a admitir-
se o casamento entre os homossexuais? No devemos adiantar
nossa posio antes de expor a nova polmica instituda com o
pleito do representante ministerial federal que pretende obrigar
a celebrao do casamento civil de pessoas do mesmo sexo.

4 MAIS POLMICA: O PLEITO DO PARQUET FE-


DERAL: OBRIGATORIEDADE DA CELEBRA-
O DO CASAMENTO CIVIL DE PESSOAS DO
MESMO SEXO

Como j foi dito, a Procuradoria da Repblica ajuizou


recentemente (janeiro/2005) uma ao civil pblica, com
pedido de liminar, cujo objetivo principal obrigar os Estados,
o Distrito Federal e a Unio a celebrarem o casamento civil de
homossexuais e a deciso, acaso acatado o pedido, ter validade
em todo o pas. Entre outros argumentos do representante
ministerial , destaco os fundamentais:
a) a desnecessidade de alterao no quadro normativo e
da conseqente interveno do Legislativo, pois a medida
deflui do ordenamento jurdico;

b) a cidadania e a dignidade da pessoa humana, ao lado


do pluralismo poltico, constituem objetivos fundamentais
da Repblica, sendo que o ser humano homossexual cidado
com os mesmos direitos e merecedor da mesma dignidade;

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A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 91

c) todos so iguais perante a lei, sem distino de


qualquer natureza. So inviolveis a intimidade, a vida privada,
a honra, e a imagem das pessoas, e a discriminao pela negativa
ao casamento homossexual implica violao vida privada,
cerceando, ainda que indiretamente, com forte desestmulo,
a liberdade de escolha do parceiro sexual;

d) a lei civil no suficientemente clara em proibir o


casamento das pessoas do mesmo sexo e a proibio fica mais
por conta do pensamento arraigado na cultura geral da
populao e da comunidade jurdica em particular, to
tradicionalista quanto preconceituosa.

A ao em tela foi ajuizada perante o Juzo Federal da


Subseo Judiciria de Guaratinguet, Estado de So Paulo.
O juiz processante recebeu a ao, porm negou a liminar
pleiteada, argumentando, em sntese apertada, que a questo,
por ser bastante polmica e trazer srias conseqncias de
ordem moral e jurdica e nas relaes sociais, no enseja
tratamento de forma precria.

De fato, entendemos que assiste razo ao magistrado.


O tema decididamente no daqueles que impem celeridade
da deciso. Exige, sim, a questo, debate pblico e consenso
social. E os argumentos utilizados pelo ilustre representante
do parquet federal, no nosso sentir, no autorizam o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Vejamos:

a) No obstante tomarmos posio pela possibilidade


legal de reconhecimento da unio homoafetiva como uma
entidade familiar, isto no leva ao entendimento de que, luz
da legislao vigente, seja admissvel o casamento entre
homossexuais. Da leitura conjunta dos artigos 1.511, 1.514
(O casamento se realiza no momento em que o homem e a
mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer

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92 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

vnculo conjugal (...).), 1.517 (O homem e a mulher com


dezesseis anos podem casar, (...). e 1.565 (Pelo casamento,
homem e mulher assumem mutuamente a condio de
consortes, companheiros e responsveis pelos encargos da
famlia.) s se extrai a interpretao, para ns correta, de que
a heterossexualidade caracterstica fundamental deste
instituto jurdico, em harmonia com o disposto no pargrafo
3 do artigo 226 da Lei Maior, o qual reconhece expressamente
a unio estvel apenas entre homem e mulher e a facilitao
de sua converso em casamento. Destarte, obviamente, s pode
ser convertida em casamento, a unio estvel, por possuir esta
ltima o carter de diversidade de sexo. Pelos motivos expostos,
data venia, entendemos ser imprescindvel a interveno do
legislador o qual expressa (ou devia expressar) a vontade social,
para, se for o caso, legitimar, como casamento mesmo, a unio
entre pessoas do mesmo sexo. No nosso sentir, no cabe ao
Judicirio qualquer deciso nesta direo, sob pena de
ingerncia nas atribuies do Poder Legislativo.

b) correto que o princpio da dignidade humana o


pilar da nossa ordem constitucional e no precisamos repetir
que dele decorrem vrios outros direitos da pessoa, inclusive
a plena cidadania e a orientao sexual. Tambm certo que a
nossa sociedade democrtica e pluralista e que todos merecem
os mesmos direitos e dignidade, independentemente das
escolhas, orientaes ou valores pessoais. Mas isto no significa,
ao nosso ver, que a sociedade no tenha uma determinada
concepo das instituies protegidas e reguladas por isso
mesmo - pela lei. E a concepo atual de casamento ainda
possui razes culturais, religiosas e antropolgica. Um exemplo
disso que no se permite a bigamia (que, inclusive, crime),
nem a poligamia.
c) a Constituio no ampara o matrimnio dos
homossexuais. O que ela permite, pelo princpio da igualdade

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A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 93

- da no-discriminao de qualquer natureza a extenso


aos casais homossexuais dos direitos e deveres do casamento,
apoiando a regulamentao de um novo modelo de convivncia
entre eles, seja chamado de unio homoafetiva, seja de
parceria civil ou qualquer outra designao. Dizer isto no
significa, de forma alguma, estmulo discriminao ou
desestmulo liberdade de escolha do parceiro sexual.
Estamos apenas nos posicionando no sentido de que o
casamento uma instituio que tem por essncia a diversidade
de sexos. aplicao da expresso h muito conhecida: justia
tratar de forma igual aos iguais e de forma desigual aos
desiguais. Discriminao tratar de forma distinta (com
efeitos negativos) pessoas que so iguais, sem que exista uma
razo objetiva, razovel. No o caso da no permisso de
casar algum com outrem do mesmo sexo, da mesma forma
como no se permite que um homem casado case com outra
mulher, ou com sua irm...O simples fato de algum querer
casar com outra pessoa no significa que possa simplesmente
faz-lo, sob o argumento de discriminao. Os homossexuais
tm o direito de se amarem, de ter sua vida privada, de escolher
seu parceiro sexual e viverem juntos, constituir famlia, como
todos tm, mas isto no quer dizer que se lhe dem o direito
de contrair matrimnio. Ressaltamos, por oportuno, o
pensamento de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao
analisar a Constituio Portuguesa:

(...) Seguramente que basta o princpio do Estado


de direito democrtico e o princpio da liberdade
e autonomia pessoal que lhe vai naturalmente
associado para garantir o direito individual de
cada pessoa a estabelecer vida em comum com
qualquer parceiro da sua escolha. Mas uma coisa
a sua proteco ao nvel da liberdade e da
autonomia individual, outra coisa o seu

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94 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

reconhecimento e garantia especfica a ttulo de


direito constituio de famlia ou de celebrao
de casamento.(CANOTILHO, MOREIRA,
1993, p. 221).

d) Como j foi dito acima, apesar de expressamente


no proibir o matrimnio entre pessoas do mesmo sexo, nos
termos da nossa lei civil e da interpretao harmnica dos
seus dispositivos, o casamento contrado por pessoas do
mesmo sexo juridicamente inexistente. Pelo projeto de lei e
da proposta de emenda Constituio j discutidos,
depreende-se que a nossa sociedade no reconhece a unio
homoafetiva como casamento.

O matrimnio apresenta-se em nosso sistema jurdico


como um instituto marcado pela caracterstica da heteros-
sexualidade como essencial e esta concepo tico-jurdica pode-
se entender at como tradicionalista, mas no , no nosso
entendimento, preconceituosa. Certamente, a instituio
passou por vrias mudanas ao longo da histria e algumas de
suas caractersticas, como, por exemplo, a indissolubilidade,
foram questionadas e abandonadas pela sociedade. Mas a
diversidade de sexos nunca foi questionada at hoje, pelo
motivo de tratar-se de uma caracterstica nuclear do casamento,
sua prpria identificao cultural.

O modernismo importante, na medida em que


possamos compreender o que tem levado outras culturas a
admitir o matrimnio entre pessoas do mesmo sexo, como
tambm a poligamia. No entanto, o tradicionalismo respon-
svel tambm se faz necessrio, para no importarmos
conceitos que no se coadunam com nossa cultura. Significa
dizer que a compreenso acerca da admisso do matrimnio
homossexual em outros (poucos) pases no leva neces-

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A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 95

sariamente a admitir tal modalidade em nosso ordenamento


jurdico.

Note-se, ainda, que nos pases que admitiram o


casamento (mesmo, e no unio estvel homossexual ou
parceria civil) Holanda e Blgica sempre na vanguarda
dos direitos humanos, mantm algumas limitaes em matria
de filiao e adoo. Este subtema atrelado ao da regulamen-
tao da unio homoafetiva - o mais difcil de ser analisado,
devido suma importncia de suas conseqncias sociais e
jurdicas. Como bem afirmou a Assistente Social Lucinete S.
Santos:

A adoo de crianas e adolescentes, como toda e


qualquer prtica social, reflete crenas, os valores e
os padres de comportamento construdos
historicamente. H, portanto, uma cultura de adoo
no Brasil, cujos limites e preconceitos devemos
conhecer, para que possamos atuar sobre ela,
reformulando prticas equivocadas. 3

verdadeiro que por muito tempo o foco da adoo


era apenas atingir os interesses dos casais que no podiam ter
filhos e pretendiam adotar. Atualmente, entretanto, a prpria
sociedade vem evoluindo e o que tem prioridade o interesse
da criana ou adolescente. Por isso o tamanho da respon-
sabilidade da discusso a respeito da possibilidade de casais
homossexuais poderem ou no adot-los.

De logo afirmamos que a admisso da adoo a casais


homossexuais prescinde, no nosso entender, da regulamen-
tao da sua unio ou parceria civil, mas necessita do reco-
nhecimento daquela relao como uma entidade familiar.

3
Por uma nova cultura de adoo, publicado no 1 Guia de Adoo de
Crianas e Adolescentes do Brasil.

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96 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

No h, nos requisitos para a adoo previstos no


Estatuto da Criana e do Adolescente (diferentemente do
casamento) nenhum impedimento adoo por casais homos-
sexuais, podendo, inclusive, uma pessoa solteira adotar.

Coerente com o nosso posicionamento anterior, no


sentido de que a unio afetiva estvel de pessoas do mesmo
sexo deve ser reconhecida como entidade familiar, ao lado do
casamento, da unio estvel e da famlia monoparental,
poderamos de logo afirmar que somos a favor de uma mudana
legislativa para incluir o direito dos casais homossexuais de
adotar crianas e adolescentes. Sem embargo, entendemos que
tal alterao legislativa, por ser genrica, no deve ser produto
de experincias precipitadas numa rea to melindrosa como
o direito de famlia. Deve, sim, surgir de um estudo srio,
tranqilo e cuidadoso das vrias e importantes questes
implicadas, no qual opinies emocionadas dem lugar a
fundamentos racionais. Enquanto isso, cabe ao Judicirio (a
sim, porque no est em jogo a identidade de uma instituio,
apenas a incluso de mais sujeitos nela) reconhecer ou no nas
famlias formadas por casais homossexuais, o ambiente
familiar favorvel adoo, atravs de parecer resultante de
estudos psicossociais, caso a caso.

5 CONCLUSO

Ao trmino de nossa exposio passamos a compactar


algumas posies adotadas em torno do tema proposto.

a) o casamento uma instituio cuja essncia a


diversidade de sexos, sendo este um dado social, tico, religio-
so, jurdico e antropolgico. Negar a admisso da celebrao
do casamento de casais homossexuais no discrimin-los e
sim reconhecer aquela caracterstica nuclear do instituto.

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A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 97

b) no se deve impor ausncia de admisso do


casamento dos homossexuais a discriminao, a insegurana,
a instabilidade e a infidelidade to comuns nas relaes homos-
sexuais na atualidade, pois tal depende to-somente da har-
monia e auxlio mtuo entre eles (assim como no casamento).
Ademais, o reconhecimento dos seus direitos no passa
necessariamente pela celebrao de casamento, e sim pela
regulamentao de suas relaes.

c) o fato de nossa sociedade ser democrtica e pluralista


no significa que no tenha concepes formadas acerca das
instituies reguladas e protegidas pelo direito e o casamento
uma delas. Tanto assim que no se admite a bigamia, nem
a poligamia, s para citar alguns exemplos.

d) o reconhecimento legal das relaes homoafetivas


como modelo de convivncia more uxorio a fim de evitar ou
minimizar a discriminao fundada na orientao sexual
so objetivos, em sua essncia legtimos, das propostas
legislativas ora analisadas, apesar de algumas impropriedades
tcnicas, havendo convenincia em regular esta realidade,
na medida que vem adquirindo maior aceitao da
sociedade. No entanto, o que no admitimos que a
soluo mais adequada seja procurada por fora da via
legislativa, com a obrigatoriedade de celebrar casamento
entre pessoas do mesmo sexo, pelo simples motivo de que
assim estaramos procedendo a uma verdadeira transfor-
mao da instituio matrimonial atravs de uma simples
deciso judicial, o que no possvel. Trata-se de uma
matria sobre a qual gravitam muitas incertezas, no sendo
prudente que, atravs do Judicirio, se modifique profun-
damente uma instituio secular, sem respaldo de um amplo
consenso poltico e social.

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98 BLANCHE MAYMONE PONTES MATOS

Apropriada a observao de Savigny:

H que se andar com cuidado quando aplicamos o


bisturi em nossas instituies jurdicas, porque muito
facilmente poderemos atacar em carne viva e
contrair, desta sorte, a mais grave responsabilidade
a quem estar por vir.4

6 REFERNCIAS

ALVES, Jos Carlos Moreira. Direito Romano. 6.ed. Rio de


Janeiro. Forense, 1998. v. II, p. 282.

ARECHEDERRA, Luis. El matrimonio es heterosexual.


Disponvel em: <http://www.unav.es/civil/nosindebate/
mharechederra.doc>. Acesso em 12.02.2004.

BRANDO, Dbora Vanessa Cas. Crticas ao projeto de lei n


1.151/95 que institui a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo.
Disponvel em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em
10.02.2004.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. 3.ed.


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Editora, 1993. p. 221.

CHIARINI JNIOR, Enas Castilho. A unio homoafetiva


sob o enfoque dos direitos humanos. Disponvel em: <http:/
/www.jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/1799>. Acesso em
10.02.2004.

4
Citado por Rafael Navarro no peridico El Mundo em 28.12.2004. Dispo-
nvel em: <http://www.unav.es/civil/nosindebate/mhnavarrovalls.doc>

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 73-99 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 98 29/8/2006, 20:16


A POLMICA DA UNIO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E... 99

CORREIA, Jadson Dias. Unio civil entre pessoas do mesmo


sexo (Projeto de Lei 1.151/95). Jus navigandi, Teresina, a.1,
n. 10, abr. 1997.

DIAS, Maria Berenice. Unio homossexual: aspectos sociais e


jurdicos. mbito Jurdico, ago/2001. Disponvel em: http:/
/www.ambito-juridico.com.br/aj/dfam0003.htm. Acesso em
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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.


15.ed. So Paulo. Saraiva, 2000. v. V, p. 33.

LEITE, Gisele. O novo direito de famlia. Disponvel em:


<http://www.serrano.neves.com.br/cgd/011301/
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PRADERA, Javier. La discriminacin sexual y el derecho.


Disponvel em: <http://www.unav.es/civil/nosindebate/
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NERY, Daniel Christianini. Unio homoeleitoral e os


inelegveis. Disponvel em: http://www.revistaautor.com.br/
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TALAVERA, Glauber Moreno. O casamento de pessoas do


mesmo sexo. Disponvel em: <http://www.apriori.com.br/
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VALLS, Rafael Navarro. Regulacin de Matrimonios Gays:


um dictamen polemico. Disponvel em: <http://
www.unav.es/civil/nosindebate/mhnavarrovalls.doc>. Acesso
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Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 73-99 jan./jun. 2005

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100 BRUNO ANGELIM FIGUERA

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 101

ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES


NA TUTELA DE PREVENO DO
ILCITO: A SENTENA INIBITRIA E
AS VIAS ADEQUADAS DE
IMPUGNAO

Bruno Angelim Figuera


Advogado. Especialista em Direito Proces-
sual Civil pela Universidade Catlica de
Pernambuco UNICAP. Servidor do Tri-
bunal de Justia do Estado de Pernambuco.
Foi professor substituto de Direito Proces-
sual Civil I na Escola Superior da Magistra-
tura de Pernambuco ESMAPE e profes-
sor titular de Direito Processual Civil II.

SUMRIO
1 CONSIDERAES INICIAIS A RESPEITO DAS FORMAS DE IMPUGNAO
DAS DECISES JUDICIAIS: MEDIDAS RECURSAIS, INCIDENTAIS, AES AU-
TNOMAS, REEXAME NECESSRIO ETC.; 2 SENTENA, DECISO
INTERLOCUTRIA E O DESPACHO NO ORDENAMENTO PROCESSUAL:
CONTRADIES E REVISES CONCEITUAIS NECESSRIAS; 3 SENTENA
INIBITRIA: NATUREZA MANDAMENTAL E EXECUTIVA LATO SENSU, EFIC-
CIA TEMPORAL E INCIDNCIA DA COISA JULGADA; 4 ASPECTOS
RECURSAIS DA TUTELA INIBITRIA: A DECISO HBRIDA DE CONTEDO
ESPECFICO E O RECURSO DE APELAO; 5 A INEXISTNCIA DO EFEITO
SUSPENSIVO NA APELAO CONTRA SENTENA DE CARTER INIBIT-
RIO; 6 ATOS DECISRIOS POSTERIORES SENTENA INIBITRIA: HIP-
TESES DE CABIMENTO DO AGRAVO NA FORMA RETIDA OU POR INSTRU-
MENTO; 7 REFERNCIAS.

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102 BRUNO ANGELIM FIGUERA

1 CONSIDERAES INICIAIS A RESPEITO DAS FOR-


MAS DE IMPUGNAO DAS DECISES JUDICIAIS:
MEDIDAS RECURSAIS, INCIDENTAIS, AES AU-
TNOMAS, REEXAME NECESSRIO ETC.

Os conflitos de interesses submetidos apreciao


judicial so, na maioria das vezes, quase que perpetuados devido
vastido de meios impugnativos existentes no sistema
processual que atropelam a segurana e a efetividade do
atendimento jurisdicional. A incidncia dessa pena de carter
perptuo ao processo tem como principais motivadores os
prprios litigantes que constantemente manejam desregrada e
desonestamente uma variedade de ferramentas recursais ou de
meios autnomos de impugnao.
De outro lado, esses meios de impugnao das decises
judiciais possibilitam a rediscusso da lide e a proteo do
direito substancial resguardada por uma tutela jurisdicional
til, adequada e tempestiva. por meio deles que os interes-
sados continuam defendendo seus interesses, questionando a
forma e/ou contedo da deciso judicial para obterem a
reforma ou a nulidade do pronunciamento judicial.
com o propsito de assegurar a justia das decises
que a lei, na medida do possvel, prev a realizao de dois ou
mais exames sucessivos, ao passo que, de outra parte, a fim de
evitar o sacrifcio da segurana da tutela jurisdicional, impe
limites em relao ao nmero das revises possveis (Barbosa
Moreira, 2002, p.113-114)1 .
A necessidade de atacar as decises judiciais advm,
basicamente, de duas razes. A primeira delas corresponde a
uma exigncia psicolgica do ser humano, refletida em sua
natural e compreensvel inconformidade com os julgamentos
1
MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. O novo processo civil brasilei-
ro: exposio sistemtica do procedimento
procedimento. Ed. ver. e atual.Rio
de Janeiro: Forense, 2002.

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 103

desfavorveis, objetivando atender insatisfao inata ao gnero


humano.
O outro motivo decorre do velho jargo: errar
humano, demonstrando que, apesar da capacidade exigida
para o cargo, as decises judiciais so proferidas por criaturas
humanas e, portanto, falveis, suscetveis de erros e injunes.
O erro, seja de forma ou de contedo, integrante do
pronunciamento judicial, possibilita que a parte possa
impugn-lo com o intuito de obter o reexame para reforma
ou nulidade.
Questionando a previso de inmeros instrumentos de
impugnao e sublinhando a necessidade da rpida soluo
dos litgios, afirma Jorge2 (2003, p.2) que: Se certo que ao
Estado incumbe solucionar os conflitos a ele levados, no menos
certo que a demora nessa soluo extremamente danosa. Quanto
mais rpida for a entrega da tutela jurisdicional, com maior
tranqilidade viver a sociedade.
H, portanto, uma dupla necessidade da sociedade,
conducente, de um lado, rpida composio dos pleitos
judiciais, celeridade processual, e, de outra parte, ao anseio
garantia da soluo adequada ao direito e justia (Ferreira,
1998) 3 .
Ressalte-se, porm, que todos os meios de impugnao
de atos judiciais tm em comum a finalidade de obter a reviso
do ato guerreado, seja conseguindo a sua nulidade, a reforma
do seu contedo, ou ainda, em alguns casos, o seu
aprimoramento complementao ou aclaramento (embargos
de declarao).
Todavia, os recursos, ao contrrio das outras vias de
impugnao das decises judiciais, obtm a sua finalidade

2
JORGE, Flvio Cheim. Teoria geral dos recursos cveis
cveis. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
3
FERREIRA, Pinto. Curso de direito processual civil
civil. So Paulo:
Saraiva, 1998.

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104 BRUNO ANGELIM FIGUERA

dentro da mesma relao processual em que se encontra a


deciso judicial que se quer atacar, alm do que tem natureza
voluntria, pois decorre da disposio dos interessados que
podero ou no provocar o reexame da deciso insatisfatria,
sob pena de sofrerem o nus da precluso eventualmente
operada (Marinoni e Arenhart, 2001)4 .
O exerccio do direito de impugnao pode ser realizado
de dois modos diferentes. Comumente, h o prosseguimento
do processo e o deslocamento do mbito de julgamento
(competncia) para um rgo de reexame hierarquicamente
superior ao que proferiu a deciso e, por exceo, para o mesmo
rgo do qual emanou a deciso atacada. Na linguagem
expressiva de Barbosa Moreira (apud Ferreira, 1998): bifurca-
se o procedimento, mas o processo permanece uno.
A via recursal a principal forma utilizada para impugnar
as decises judiciais. A ttulo excepcional, em hipteses
taxativamente previstas, o ordenamento jurdico admite a
impugnao das decises por outros meios que no se
concentram na mesma relao processual devido necessidade
de instaurao de outro processo capaz de viabilizar a
impugnao desejada. So as chamadas aes autnomas de
impugnao.
A palavra recurso, etimologicamente, origina-se do latim
recursus e diz respeito ao ato de algum retornar ao lugar de
onde saiu. Trata-se, porm, no s de um direito subjetivo
(direito de recorrer), mas, tambm, de um nus processual na
medida em que a no utilizao poder causar prejuzos
processuais irreparveis. uma extenso ou renovao do
direito de ao ou de defesa instrumentalizado por um ato
voluntrio daquele que efetivamente sofreu um prejuzo
advindo da deciso judicial.

4
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Srgio Cruz. Manual do pro
pro--
cesso de conhecimento
conhecimento: a tutela jurisdicional atravs do processo
de conhecimento. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 105

Na mesma linha de raciocnio, Jorge (1999, p. 47)5


esclarece: [...] o recurso uma forma de renovar o exerccio do direito
de ao em uma fase seguinte do procedimento. Caracteriza-se, pois,
como uma extenso do direito de ao e de defesa em grau, de regra,
hierarquicamente superior. 6
Em alguns casos, o interesse pblico relevante torna
obrigatria a reapreciao da causa julgada. o que ocorre
nas hipteses previstas do art. 475, CPC, por fora do qual
impe, como condio de sua eficcia, que determinadas
sentenas sejam reexaminadas de ofcio pelo rgo superior
(duplo grau de jurisdio obrigatrio ou necessrio).
As demais formas de impugnao de deciso judicial
so geralmente chamadas de sucedneos recursais e se
apresentam como aes prprias voltadas a desconstituir o
ato judicial praticado em outro processo (aes impugnativas
autnomas a exemplo do mandado de segurana, da ao
rescisria, embargo de terceiro, medida cautelar inominada
etc) ou como medidas incidentes na mesma relao processual
(pedido de reconsiderao criao da praxis forense direcionada
contra pronunciamento interlocutrio, sem suspender ou
interromper o prazo do recurso legal; correio parcial medida
administrativa adotada em regimentos e leis locais de
organizao judiciria dirigida contra situaes de error in
procedendo (despachos irrecorrveis) e reexame necessrio
exigncia ou condio ltima de eficcia das sentenas
proferidas nas situaes do art. 475, CPC).
Ao lado dos recursos e sucedneos, existem outras
medidas que no so nem uma coisa nem outra. Na verdade,

5
JORGE, Flvio Cheim. Apelao cvel: teoria e admissibilidade
admissibilidade.
So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
6
Defensores deste mesmo entendimento: Ugo Rocco, Liebman, Carnelutti,
Jos Frederico Marques, Nelson Nery Jnior, Antnio Carlos Marcato,
Barbosa Moreira, Humberto Theodoro Jnior, Vicente Greco Filho e
Nelson Luiz Pinto.

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106 BRUNO ANGELIM FIGUERA

so incidentes tpicos dos processos nos tribunais


(uniformizao de jurisprudncia art. 476, CPC, declarao
de inconstitucionalidade art. 480, CPC, avocao de causas
e reclamao perante o STF).
Registre-se que no direito brasileiro, com o trnsito em
julgado, todas as vias recursais so obstadas, restando apenas
ao interessado a via da ao rescisria, da ao declaratria de
inexistncia (querella nullitatis) ou da ao anulatria.
No tocante aos pronunciamentos judiciais sujeitos
impugnao via recurso, o sistema processual brasileiro adotou
o princpio da correspondncia dos recursos, ou seja, para
cada espcie de deciso haver um recurso determinado e
previsto em lei. No entanto, somente os atos do juiz de
contedo decisrio so passveis de recurso.
O legislador atual, diante das dificuldades constantes
do sistema recursal do CPC de 1939, optou conscientemente
em sistematizar os atos judiciais praticados pelo juiz, facilitando
a identificao correta do recurso cabvel contra a deciso
proferida.
Insta observar, porm, que apesar do CPC especificar
na seo III (Captulo I do Ttulo V) os atos praticados pelo
juiz, estes dizem respeito unicamente aos pronunciamentos
judiciais (despacho, deciso interlocutria e sentena), equvoco
passvel de correo frente existncia de outros atos judiciais
que no se encartam em nenhuma das trs categorias prescritas
nessa seo. Alm disso, ato judicial expresso significativa
de um gnero, de que pronunciamentos so espcies.
Tem-se, assim, por disposio legal dos artigos 162 e 163
do Cdigo de Processo Civil, os pronunciamentos judiciais
que podero ser despachos, decises interlocutrias, sentenas
e acrdos. o que dispem os arts. 162 e 163 do CPC:

Art. 162. Os atos do juiz consistiro em sentenas,


decises interlocutrias e despachos.

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 107

1 Sentena o ato pelo qual o juiz pe termo ao


processo, decidindo ou no o mrito da causa.
2 Deciso interlocutria o ato pelo qual o juiz,
no curso do processo, resolve questo incidente.
3 So despachos todos os demais atos do juiz
praticados no processo, de ofcio ou a requerimento
da parte, a cujo respeito a lei no estabelece outra
forma.

Art. 163. Recebe a denominao de acrdo o


julgamento proferido pelos tribunais.

Apesar de aparentemente bem delimitada a


distino dos pronunciamentos judiciais no CPC, em
diversas circunstncias a situao se mostra de difcil
soluo, comprometendo a definio estabelecida pelo
legislador e a escolha das vias de impugnao, como se
ver adiante.

2 SENTENA, DECISO INTERLOCUTRIA E O


DESPACHO NO ORDENAMENTO PROCES-
SUAL: CONTRADIES E REVISES CONCEI-
TUAIS NECESSRIAS.

O estatuto processual civil vigente apresenta conceitos


contraditrios em relao sentena pelo fato de delinear
uma regra genrica prescrita no 1 do art. 162, CPC, que
define sentena como o ato pelo qual o juiz pe termo ao
processo, decidindo ou no o mrito da causa, e ao mesmo
tempo indica, em dispositivos especficos, que a sentena
tambm ato processual que encerra um litgio autnomo
sem interferir no andamento do processo. Estabelece a base
do conceito genrico para em seguida serem evidenciados

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108 BRUNO ANGELIM FIGUERA

casos em que essa regra afastada, revelando outra concepo


(Bellinetti, 1994, p.130)7 .
H, portanto, dispositivos normativos que expem
conceito diverso, qual seja, o de que a sentena ato que
decide um litgio autnomo, independentemente do
encerramento ou no do processo.
Os casos mais evidentes esto no art. 325 (sentena na
declarao incidente),361 (sentena para exibio de
documento por terceiro), 395 (sentena de incidente de
falsidade), 713 (sentena que julga a preferncia entre vrias
penhoras na execuo contra devedor solvente), 719 e 719
(sentena de constituio de usufruto de imvel ou empresa),
755 e 758 (sentena declaratria de insolvncia), alm de
outros.
Adotando duas perspectivas conceituais de sentena civil,
Bellinetti (1994, p.145) estabelece com propriedade que:

a) No aspecto material h a perspectiva de sentena


como o ato que estabelece (declarando declarao
pura ou constituio ou criando) a norma que ir
regrar o caso concreto, ao lado de um conceito mais
amplo, colocando-se a sentena como o ato que se
manifesta sobre o estabelecimento dessa norma,
estabelecendo-a ou negando-se a faz-lo.

b) No aspecto formal h a perspectiva de sentena


como o ato que encerra o processo, independente
de julgar-lhe o mrito, ao lado daquele que entende
sentena como o ato que julga o mrito do processo

7
BELLINETTI, Luiz Fernando.. Sentena Cvel: perspectivas
conceituais no ordenamento jurdico brasileiro
brasileiro. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 1994.(Coleo Estudos de Direito de Processo
Enrico Tullio Liebman, v. 29).

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 109

(resolve um litgio autnomo), funcionando


subsidiariamente o conceito atinente a ato emitido
sob determinada forma.

Analisando a questo crtica do aspecto formal da


sentena cvel, o autor demonstra que os conceitos formais
somente convivem no ordenamento porque este possui
estrutura para suportar contradies. Todavia, o direito vigente,
como um sistema orientado pela lgica tradicional,
evidentemente no pode suportar essa contradio. Por isso,
apresenta como possibilidade de um conceito formal justo a
adoo da conceituao de sentena apenas como ato que
decide um litgio autnomo, vinculando a noo de sentena
a de jurisdio.8
O nosso diploma processual, deixando de lado esses
questionamentos, preferiu definir sentena como o ato pelo
qual o juiz pe termo ao processo, decidindo ou no o mrito
da causa (art. 162, 1). Importante, assim, luz do conceito
estabelecido no prprio Cdigo, que a deciso seja capaz de
extinguir o processo e toda a fase procedimental desenvolvida.
Fora convir, porm, que a partir de uma anlise rigorosa
no se pode afirmar que efetivamente a sentena extingue o
processo, pois, de fato e juridicamente, nem a relao processual
nem o procedimento se encerram com a sentena.
Como salienta Frederico Marques9 (apud Jorge, 2003):
a relao processual, na realidade, somente se encerra e se finda
quando ocorre a coisa julgada formal, isto , quando o pronunciamento

8
[...] o vocbulo sentena vem do latim sentire, e teria derivado de
sentiendo, gerndio desse verbo latino, originado a expresso
sententia no Direito Romano. Quer dizer, a sentena deveria repre-
sentar o sentimento do juiz quando da apreciao da pretenso levada a
ela atravs do processo (JORGE, Flvio Cheim. Teoria geral dos
recursos cveis.
cveis Rio de Janeiro: Forense, 2003).
9
MARQUES, Jos Frederico. Manual de Direito PProcessual
rocessual Civil. v.
III, p. 23.

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110 BRUNO ANGELIM FIGUERA

torna-se irrecorrvel. Num sentido mais tcnico, pode-se dizer


que o processo somente ser extinto com o trnsito em
julgado, que se d, com a passagem da sentena da condio
de mutvel para imutvel.
A sentena, ento, deve ser entendida como pronun-
ciamento que tem a aptido de propiciar o trnsito em julgado,
quando no exista contra ela a interposio de recursos.
Existindo recurso, o processo continua a existir, s que em
outro grau de jurisdio com um novo procedimento (Jorge,
2003, p. 28).
Destarte, o conceito de sentena no reflete a extino
de uma relao processual, mas apenas a eliminao do
procedimento de primeiro grau de jurisdio, com a ressalva
dos casos dos arts. 463, 471, 904, alm de outros do CPC e
das sentenas provenientes das aes mandamentais, executivas
lato sensu e inibitrias que, por sua vez, no encerram o
procedimento a quo, devido a possibilidade do julgador
praticar atos decisrios posteriores a esta deciso.
Para os demais casos ou aes judiciais no mencionados
no pargrafo acima, apenas quando houver decurso do prazo
sem a interposio do recurso cabvel, a sim a sentena ter
causado, como conseqncia (efeito), a extino do processo
e, por conseqncia, do procedimento.
J Wambier 10 (2000, p.79) defende que no o colocar
fim ao processo (efeito da sentena) o que caracteriza
essencialmente a sentena, mas o seu contedo especfico:

portanto, o contedo do ato sentencial que o distingue


dos demais pronunciamentos judiciais e no o efeito
que gera, pois o gera exata e precisamente porque
sentena, porque tem contedo de sentena. Os contedos

10
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro brasileiro.
So Paulo: Revista dos Tribunais, 3. ed. rev., atual e ampl. do livro O
novo regime do agravo, 2000. (Recursos no Processo Civil; 2).

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 111

especficos das sentenas (art. 267 e 269 do Cdigo de


Processo Civil) so, assim, o critrio que as distingue
das decises interlocutrias.

No obstante a interessante colocao da autora acima,


a definio mais apropriada em termos gerais, apesar das
ressalvas, a apresentada no pargrafo anterior, haja vista a
existncia das chamadas decises interlocutrias de contedo meritrio
que detm o mesmo ncleo disposto nos arts. 267 e 269 do
CPC. Todavia, bastante coerente e bem aceito por alguns
doutrinadores o argumento apresentando por ela.
As decises interlocutrias, diferentemente da sentena,
no apresentam tanta dificuldade na delimitao do seu
contedo, pois decorre de uma caracterstica comum presente
nas interlocutrias de um modo geral, qual seja, a natureza
decisria. So simples pronunciamentos judiciais de natureza
decisria proferidos incidentalmente no processo e que no
se enquadram, teoricamente, nos arts. 267 e 269 do CPC.
Tratando sobre este ponto, a mesma autora afirma que (p.79):

O mesmo no se pode dizer, entretanto, no que tange


s prprias decises interlocutrias. No o contedo
especfico que elas apresentam o que as distingue dos
demais pronunciamentos judiciais, mas a natureza
deste contedo, que tem de ser decisria. Assim,
no importa sobre o que verse qualquer deciso,
desde que no seja encartvel nos arts. 267 e 269 do
Cdigo de Processo Civil, ser uma deciso
interlocutria que no ter, portanto, como efeito, o
de pr fim ao procedimento de primeiro grau ou ao
processo.

Para o Cdigo de Processo Civil, as decises interlo-


cutrias so aquelas que, no curso do processo, resolvem

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112 BRUNO ANGELIM FIGUERA

questo incidente. Apresentando uma melhor compreenso a


respeito do que vem a ser uma questo, Jorge (2003, p.30)
explicita que:

Sendo o processo acentuadamente marcado pela


concatenao de atos processuais visando o fim
ltimo da prestao da tutela jurisdicional, natural
o surgimento de uma gama enorme de questes, de
variadas naturezas e formas, no desenvolvimento
dessa relao processual at que venha ao final a
ser proferida a sentena.

Para Francesco Carnelutti 11 (apud Jorge, 2003), a noo


de questo se revela com as seguintes caractersticas:

quando uma afirmao compreendida na razo (da


pretenso ou da discusso) possa engendrar dvidas,
e, portanto, tenha de ser verificada, converte-se numa
questo. A questo pode-se definir, pois, como um ponto
duvidoso, de fato ou de direito, e sua noo correlativa
da afirmao.

Com isso, torna-se fcil, em princpio, compreender o


dispositivo legal, no sentido de que toda e qualquer deciso
que resolver questes incidentalmente no processo, seja qual
for a sua natureza ou espcie, ser considerada deciso interlo-
cutria.
Discordando dos termos estabelecidos no art. 162, 2
do CPC, Wambier (2000, p. 85) defende que:

Na verdade, as decises interlocutrias podem ser


proferidas:

11
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito PProcessual
rocessual Civil
Civil. v. II,
p.39.

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 113

a) de ofcio;
b) com o fito de resolver questes;
c) para atender pedidos.

Logo, quanto s letras a e c, no se pode falar,


propriamente, em questes.

As questes que desafiam pronunciamentos interlo-


cutrios antecedem a questo fundamental ou bsica do
processo, que o mrito da causa, e, por isso, prepara o
processo para receber a sentena final.
Apesar da caracterstica comum contedo decisrio
presente em ambos os pronunciamentos judiciais, a sentena,
ao contrrio da deciso interlocutria, localiza-se como ltimo
ato do processo, teoricamente, enquanto que as interlocutrias
so proferidas no curso do processo diferencial estabelecido
pelo ordenamento processual brasileiro.
Entretanto, a prtica revela casos quase que insolucio-
nveis para o operador jurdico que utiliza, como ponto de
partida, as definies expostas pelos dispositivos processuais
vigentes. So exemplos disso a extino de lides ou processos
incidentais (reconveno, oposio, ao declaratria
incidental, pedido de exibio de documentos ou coisa em
poder de terceiro, argio de falsidade documental, habilita-
o, etc), o indeferimento da petio inicial de um dos
litigantes, a excluso de litisconsortes da relao processual
etc. Na primeira situao, existir mais de uma ao, mais de
um processo e um nico procedimento, uma nica base
procedimental.
Diante desses casos especficos apresentados, o processo
no poder ser considerado como extinto, na medida em que
o procedimento onde ele se desenvolve ainda existe e tem
curso com a ao principal. Haver, portanto, uma deciso
interlocutria de contedo meritrio e no uma sentena como
inicialmente poderia se pensar.

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114 BRUNO ANGELIM FIGUERA

Em se tratando de matria recursal, vale considerar que,


na hiptese da deciso sentencial conter em seus captulos
pronunciamentos prprios de deciso interlocutria, o recurso
cabvel ser unicamente o de apelao, pelas seguintes razes
apresentadas por Dinamarco12 (2002, p.115):

Como ato formalmente nico que , a sentena


comporta um recurso s, no-obstante sua diviso
em captulos mais ou menos autnomos e
quaisquer que sejam os variados contedos de cada
um desses captulos. (...) Assim, ser, ainda quando
a sentena contenha algum pronunciamento que
ordinariamente viria em uma deciso interlo-
cutria, como a concesso de uma tutela antecipada.
Esse captulo estando integrado no corpo unitrio
de uma sentena, no se destaca dos demais em
razo de seu contedo, para receber um tratamento
diferente, no tocante ao recurso cabvel; caber
sempre e somente o recurso de apelao, porque o
contedo de cada captulo no exerce influncia
alguma na determinao do recurso adequado ao
caso.

Ao contrrio das decises interlocutrias, os despachos


no buscam resolver questes surgidas no curso do processo,
por isso, no tm contedo decisrio, apenas possibilitam o
andamento do processo e a movimentao procedimental,
sendo instrumentos indispensveis a efetivao do impulso
oficial e a prestao da tutela jurisdicional.
por conta dessa caracterstica falta de contedo decisrio
que o despacho judicial se encontra isento da necessidade

12
DINAMARCO, Cndido Rangel. Captulos de Sentena
Sentena. So Paulo.
Malheiros, 2002.

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Sem ttulo-6 114 29/8/2006, 20:17


ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 115

de fundamentao (art. 165 do CPC e art. 93, IX, da CF/88),


bem como da incidncia da precluso pro judicato, podendo a
parte a qualquer momento pedir a reconsiderao do
pronunciamento em vista do no cabimento de qualquer
modalidade recursal (art. 504, CPC).
Egas Moniz de Arago13 (apud Wambier, 2000, p.87)
elege como critrio apto a separar estas duas categorias de
pronunciamentos judiciais a circunstncia de se tratar, ou no,
de pronunciamento capaz de gerar prejuzo.
Cumpre destacar, porm, que no se deve arrolar como
dado identificador dos despachos o fato de no causarem
prejuzo s partes, bem como no correto afirmar ser o
despacho um ato especfico ligado ao impulso processual, vez
que as decises interlocutrias esto muitas vezes correlacio-
nadas com o prprio andamento do processo e a possibilidade
de prejuzo decorrente do pronunciamento judicial constitui
apenas requisito de admissibilidade dos recursos concernente
ao interesse em recorrer.
Sobre o assunto, Flvio Cheim (2003, p.37-38) esclarece:

Em segundo, o fato de causar ou no prejuzo no


se relaciona com a natureza do pronunciamento.
No porque, v. g., uma sentena homologatria
no causa prejuzo s partes, que ela deixa de ser
sentena e passa a ser considerada despacho. Causar
ou no prejuzo no est ligado concepo de
deciso, mas sim com a possibilidade da utilizao
dos recursos.

Com efeito, o critrio mais correto para se estabelecer


uma distino entre os despachos e os demais pronuncia-

13
ARAGO, Egas Moniz de. Comentrios ao CPC
CPC. 3.ed.Rio de Janei-
ro: Forense, 1979.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

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116 BRUNO ANGELIM FIGUERA

mentos judiciais concentram-se na atividade intelectiva do juiz


na resoluo das questes. Os despachos, portanto, no exigem
do juiz esta atividade mental, decorrem da pura aplicao da
lei, sem considervel avaliao de escolha.
Saliente-se, por fim, a posio defendida por Rita
Gianesini14 (apud Jorge, 2003) na qual afirma ser o despacho
liminar que determina a citao do ru um ato de contedo
decisrio, portanto, passvel de impugnao recursal. Para ela,
esse pronunciamento judicial no pode ser considerado como
mero impulso processual, posto que quando o juiz determina a
citao do ru est simultaneamente admitindo como apta a
petio inicial e declarando presentes as condies da ao e os
pressupostos processuais, atos, portanto, de contedo decisrio.15

3 SENTENA INIBITRIA: NATUREZA MANDA-


MENTAL E EXECUTIVA LATO SENSU, EFIC-
CIA TEMPORAL E INCIDNCIA DA COISA
JULGADA

A classificao tradicional das sentenas decorre de um


conhecimento restrito sobre as eficcias emanadas desse
pronunciamento. A doutrina clssica apresenta apenas trs
espcies de sentenas proferidas no processo de conhecimento:
sentena declaratria propriamente dita, condenatria e
constitutiva.
Como se sabe, toda sentena possui contedo decla-
ratrio e, naturalmente, uma diversidade de contedos que
corresponde a uma variedade de eficcias. Esta multiplicidade
14
GIANESINI, Rita. Da Recorribilidade do Cite-se. In: Aspectos PPol-ol-
micos e Atuais dos Recursos Cveis e outras formas de
impugnao s decises judiciais, p. 938.
15
Em acrdo do STJ, cujo relator foi o Ministro Slvio de Figueiredo
Teixeira, ficou assentado que a citao no ato decisrio (REsp. 9.031
MG (91-000455-0) DJ de 30.03.92). Teresa Arruda Alvim Wambier
(2000, p. 82) segue esse entendimento.

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 117

de eficcias, por sua vez, no representa dificuldade alguma


para identificao da natureza principal do provimento judicial,
pois o que ir determinar sua natureza a eficcia prepon-
derante, ou seja, a eficcia mais visvel do pronunciamento
judicial. Esse modo de pensar advm da contribuio cientfica
do insigne jurista Pontes de Miranda.
O prprio jurista foi o que melhor desenvolveu o con-
ceito de sentena mandamental e executiva lato sensu dentro
de uma classificao quinria das sentenas.
A sentena mandamental seria aquela que objetiva, por
meio de uma ordem para fazer ou no fazer algo, que alguma
pessoa fsica ou jurdica, incluindo o Estado, atenda, imedia-
tamente, ao que o juiz manda.
da essncia da ao mandamental que a sentena de
procedncia contenha uma ordem para que se expea um
mandado e no apenas uma condenao. A execuo se mostra
desnecessria e inadequada para esta espcie de sentena, pois,
a satisfao do direito tutelado pela sentena mandamental se
d no prprio processo em que foi proferida.
A eficcia mandamental, contudo, no se reduz apenas
no simples fato de o juiz mandar e no simplesmente condenar.
O carter mandamental reside na juno da declarao da
conduta devida com a utilizao de medidas coercitivas de
carter processual ou penal (fora coercitiva) para forar o ru
a cumprir o comando judicial (Spadoni 16 , 2002, p. 102).
Todavia, mesmo com a utilizao de todos os meios
coercitivos, o cumprimento da deciso judicial depende,
exclusivamente, da vontade do ru que poder ou no adotar
o comportamento ilcito vetado. Essa discricionariedade no
se aplica aos provimentos executivos lato sensu.

16
SPADONI, Joaquim Felipe. Ao Inibitria: a ao preventiva pre pre--
vista no art. 461 do CPC
CPC. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
(Coleo Estudos de Direito Processual Enrico Tullio Liebman; 49)

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118 BRUNO ANGELIM FIGUERA

Mencionando a coero como caracterstica essencial


da sentena mandamental, o mesmo autor afirma (2002, p.
102): por esse aspecto que acreditamos que a sentena
mandamental se caracteriza, fundamentalmente, pela imposio ao
ru de uma obrigao processual consistente no dever de cumprir
imediatamente o comando jurisdicional.
Ao lado das mandamentais encontram-se as sentenas
executivas lato sensu que alm de estabelecerem uma sano ao
ru disponibilizam meios para torn-la efetiva no plano prtico,
independentemente de ulterior processo de execuo. Apesar
da semelhana e afinidade com os pronunciamentos
mandamentais, a executiva lato sensu possibilita a adoo de
atos de sub-rogao do adimplemento meios sub-rogatrios
satisfativos do direito do autor na mesma relao jurdica
processual instaurada pela ao originria.
H, necessariamente, tanto nas sentenas mandamentais
quanto na executiva lato sensu, atividade jurisdicional posterior
sentena de mrito, tendente a satisfazer o direito substancial
tutelado. Por conta disso, h uma verdadeira exceo regra
do art. 463 e 162, 1, do CPC, pois enquanto no satisfeita
a pretenso do autor, a relao jurdica processual e o ofcio
jurisdicional no estaro encerrados. O que se encerra a fase
de conhecimento em vistas de uma nova fase: a executiva.
Aprofundando o assunto, Spadoni (2002, p. 105)
chama a ateno para as seguintes questes:

Percebe-se que a caracterstica marcante do


provimento que acolhe um pedido mandamental
ou executivo lato sensu a de que ele no encerra o
processo. Mesmo aps transitada em julgada a
sentena de procedncia, existe atividade juris-
dicional do juiz de 1 grau, atuao esta tendente a
efetivar a ordem oriunda de sua deciso, seja
impondo e modificando medidas coercitivas, seja
determinando as medidas sub-rogatrias necessrias

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 119

obteno do resultado prtico equivalente ao


adimplemento.

Em se tratando de sentena inibitria, essa congrega


tanto o provimento mandamental quanto o executivo lato
sensu para proteo e satisfao do direito balizado na ao
inibitria e, por conseqncia, o emprego de medidas
coercitivas (eficcia mandamental) e/ou meio sub-rogatrios
(eficcia executiva), independentemente de um futuro processo
de execuo. H, destarte, uma dupla eficcia contida nessas
sentenas de carter preventivo.
Como se v, a utilizao de meios coercitivos derivados
exclusivamente de sentena mandamental poder no atingir
a finalidade que se destina, qual seja: o cumprimento
satisfatrio e efetivo da deciso. Assim, faz-se necessrio que a
sentena inibitria tenha essa dupla eficcia, sob pena de se
tornar ineficaz e intempestiva.
Outro ponto importante diz respeito eficcia temporal
da sentena inibitria. Ao sentenciar, o magistrado estabelece
um comando necessariamente voltado para o futuro, vez que
apresenta o direito que reger a relao jurdica no tocante
aos atos que podero ocorrer aps a prolao da sentena.
Portanto, enquanto se mostrar necessria, a eficcia da sentena
se manter para proteger adequadamente e em toda a sua
extenso temporal o direito tutelado (Spadoni, 2002, p. 122).
Em sentido semelhante, Arenhart17 (2000, p.229)
explicita: A ordem emanada de uma ao como esta vigorar ad
aeternum, ao menos enquanto perdurarem existentes os motivos que
ensejaram tal deciso judicial[...]
Da mesma forma que a eficcia da sentena da ao
alimentos vigora enquanto existir a obrigao alimentcia, a

17
ARENHART, Srgio Cruz. A tutela inibitria da vida privada
privada. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. (Coleo Temas Atuais de Direito
Processual Civil; v. 2)

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120 BRUNO ANGELIM FIGUERA

eficcia mandamental e executiva da sentena inibitria


permanecer pelo perodo em que se mostrarem necessrias
para adequada tutela do direito declarado na deciso, ou seja,
enquanto existir a obrigao da conduta devida pelo ru.
Quanto coisa julgada, saliente-se que o contedo
decisrio que se torna imutvel e indiscutvel, com a ressalva
de que, em se tratando de relao jurdica continuativa, a disci-
plina estabelecida na sentena poder ser modificada e ajustada
nova situao ftica ou jurdica, mesmo quando j transitada
em julgado.
A previso normativa est contida no art. 471, inciso I,
do CPC e no representa uma exceo coisa julgada, in verbis:

Art. 471. Nenhum juiz decidir novamente as questes


j decididas, relativas mesma lide, salvo:
I se, tratando-se de relao jurdica continuativa,
sobreveio modificao no estado de fato ou de
direito; caso em que poder a parte pedir a reviso
do que foi estatudo na sentena;

Arenhart18 (2003, p.337), considerando esse carter de


fungibilidade inserto no provimento inibitrio, pondera:

tpico da tutela inibitria seu carter fungvel.


Assim como acontece com a deciso inibitria
antecipada (j estudada), tambm a tutela final
inibitria reveste-se dessa condio, podendo ser
adaptada s circunstncias do caso concreto, ainda
que o pedido da parte autora tenha sido outro, sem
que, com isso, haja ofensa ao princpio da demanda
(art. 460 do CPC).

18
ARENHART, Srgio Cruz. Perfis da tutela inibitria coletiva
coletiva. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

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ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 121

4 ASPECTOS RECURSAIS DA TUTELA INIBIT-


RIA: A DECISO HBRIDA DE CONTEDO ES-
PECFICO E O RECURSO DE APELAO

Como conseqncia das questes apresentadas no item


1.1 surge o seguinte questionamento: a deciso que acolhe o
pedido do autor na ao inibitria teria a natureza de sentena
ou deciso interlocutria, j que no pe termo ao processo
nem encerra o procedimento em primeiro grau de jurisdio?
Apesar do desacerto estabelecido no art. 162, 1 e
2 do CPC, a deciso que julga procedente o pleito do autor
da ao inibitria no pode ser caracterizada como deciso
interlocutria nem muito menos sentencial, pelo simples fato
de no finalizar o processo e o procedimento de primeiro grau.
Qual seria, ento, a natureza desse pronunciamento?
Seguindo a linha de raciocnio de Teresa Arruda Alvim
Wambier, no h como negar que se trata de deciso hbrida de
contedo especfico prevista no art. 269, inc. I, do Cdigo de
Processo Civil, e, portanto, passvel de desafiar o recurso de
apelao, na forma do que dispe o art. 513 do CPC. Hbrida
por conta da sua dupla eficcia (mandamental e executiva lato
sensu) que ultrapassa a fase de conhecimento sem encerrar a
relao processual e o procedimento de 1 grau e especfica
pelo seu carter inibitrio, preventivo do ilcito (art. 5, XXXV
da CF/88).
Dessa forma, a sentena que julga procedente o pedido
inibitrio apenas encerra a fase de conhecimento do processo,
ou seja, o procedimento destinado ao conhecimento e
declarao do direito apresentado pelo autor da ao, sendo
deciso definitiva, passvel de incidncia da coisa julgada
material. Na fase executiva que se inicia no juzo de primeiro
grau, inadmite-se discusso a respeito da procedncia do
pedido pelo fato da ocorrncia da precluso (Spadoni, 2002,
p.214).

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122 BRUNO ANGELIM FIGUERA

5 A INEXISTNCIA DO EFEITO SUSPENSIVO NA


APELAO CONTRA SENTENA DE CAR-
TER INIBITRIO

A apelao considerada por alguns autores como o


recurso-tipo devido ao seu amplo contedo que permite
ampla atividade cognitiva pelo rgo ad quem. tida como o
recurso por excelncia que ataca deciso prolatada pelo juiz
de primeiro grau que concede ou nega a tutela do direito
material solicitada pelo autor da ao, alm de estabelecer regras
gerais para todo o sistema recursal.
Em regra, o recurso de apelao recebido nos efeitos
devolutivo e suspensivo (art. 520 do CPC), devendo o julgador
expressamente declarar com quais efeitos o recebe (art. 518 do
CPC). No entanto, em se tratando de apelao contra sentena
inibitria positiva, quais os efeitos que incidiriam sobre esse recurso?
No resta dvida que, em virtude do seu carter preventivo
e de sua ndole satisfativa, a sentena de procedncia que julga ao
inibitria precisa ser imediatamente executada, sob pena de se tornar
ineficaz, inadequada e intempestiva. Impedir que a sentena de
carter proibitrio gere de imediato seus efeitos preventivos,
destinados a evitar a concretizao de um ato ilcito, significa favorecer
a sua violao irremedivel e sua transformao em mero equivalente
pecunirio, afrontando a prpria natureza do instituto e,
principalmente, o art. 5, inc. XXXV da Carta Magna.
A inexistncia de efeito suspensivo na apelao a regra
aplicvel por idnticas razes ao disposto no art. 520, inc. IV,
do CPC (sentena do processo cautelar), art. 58, inc. V, da lei
8.245/91 (sentena de despejo executiva lato sensu), art. 12,
pargrafo nico, da Lei 1.533/51 (sentena mandamental)19 e

19
STJ, 1. Turma, RMS 2.019-8/CE, rel. Min. Milton Luiz Pereira, DJU 23.05.1994,
p. 12.550: Sentena de natureza mandamental, antes de transitada em
julgado, pode ser cumprida provisria e imediatamente via simples notifica-
o por ofcios, independentemente de cauo ou de carta de sentena.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 122 29/8/2006, 20:17


ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 123

art. 14 da Lei 7.347/85 (sentena da ao civil pblica). Esses


so alguns casos anlogos que do suporte atribuio apenas
do efeito devolutivo apelao que ataca sentena inibitria
(Spadoni, 2002, p.215).
De outra parte, poderia o magistrado a fim de evitar
leso grave e de difcil reparao atribuir efeito suspensivo
apelao? Em tese, seria possvel.
No entanto, por se tratar de tutela que visa prevenir a
ocorrncia do ilcito, no h como conceber dano irreparvel
exclusivamente em relao a uma das partes. Em casos como
estes, cabe ao magistrado ponderar os princpios da
probabilidade e da proporcionalidade e examinar qual dos
dois interesses discutidos na lide deve sofrer o prejuzo
irreparvel (Arenhart, 2003, p. 335-336).
Considerando que a tutela inibitria depende da
velocidade processual para efetivao do provimento judicial
solicitado, no h como olvidar que a concesso da tutela
antecipada liminarmente ou com a prolao da sentena um
excelente meio para assegurar a inviolabilidade do direito
material ameaado, pois alm de ser possvel a execuo
provisria do decisum, o recurso de apelao ser recebido apenas
no efeito devolutivo conforme dispe o art. 520, inc. VII, do
CPC, acrescentado pela Lei n. 10.352/2001.

6 ATOS DECISRIOS POSTERIORES SENTEN-


A INIBITRIA: HIPTESES DE CABIMENTO
DO AGRAVO NA FORMA RETIDA OU POR INS-
TRUMENTO

Prescreve o 4 do art. 523 do Cdigo de Processo


Civil brasileiro:

4 Ser retido o agravo das decises proferidas na


audincia de instruo e julgamento e das

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Sem ttulo-6 123 29/8/2006, 20:17


124 BRUNO ANGELIM FIGUERA

posteriores sentena, salvo nos casos de dano de


difcil e de incerta reparao, nos de inadmisso de
apelao e nos relativos aos efeitos em que a apelao
recebida.

Da inteligncia do artigo, v-se que, com exceo das


hipteses elencadas no prprio texto legal, as decises tomadas
aps a prolao da sentena desafiam o recurso de agravo na
sua forma retida, sendo necessria a sua reiterao em preliminar
da apelao (art. 523, 1, CPC), sob pena de no ser
conhecido pelo juzo ad quem.
A primeira vista parece de fcil aplicao a disposio
normativa acima, entretanto, existem situaes especficas que
ensejam tratamento diversificado, como o caso dos atos
decisrios proferidos aps a sentena proveniente de ao
inibitria.
possvel que a sentena inibitria no estabelea pena
pecuniria ou que, inicialmente, a multa no surta os efeitos
preventivos desejados, sendo necessria sua majorao. Abre-
se, ento, oportunidade para o magistrado fixar, ex officio ou
aps provocao da parte, o valor das astreintes, ou mesmo
major-las. Tais atos possuem nitidamente contedo decisrio
e se encaixam no conceito estabelecido no art. 162, 2., do
CPC (deciso interlocutria), desafiando, a priori, o recurso
de agravo retido conforme o disposto no 4 do art. 523 do
CPC.
Todavia, quando se trata de aes de contedo
mandamental e/ou executivo lato sensu, como o caso da ao
inibitria, a regra do 4. do art. 523 do CPC no pode ser
aplicada risca por ser muitas vezes inadequada. Em certos
casos, exige-se do juiz a tomada de deciso para efetivao do
comando judicial, mesmo aps o trnsito em julgado da
sentena inibitria, o que torna absolutamente invivel a
interposio do agravo retido.

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Sem ttulo-6 124 29/8/2006, 20:17


ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 125

Com efeito, a lei no pode impor incondicionalmente


uma determinada forma ao ato jurdico processual, de tal
modo que inviabilize o atingimento de seu objetivo. A forma
deve auxiliar seu escopo, e no torn-la invivel (Spadoni,
2002, p. 217).
Existindo urgncia ou possibilidade de dano de difcil ou
incerta reparao, impe-se que o agravo seja por instrumento
na forma preconizada pelo art. 524 do CPC, por ser o meio
mais adequado e til.
Por outro lado, ausente essas hipteses e desde que no
interposta a apelao, perfeitamente vivel o cabimento do agravo
retido como dispe o art. 523, 4 do CPC. Caso os autos j
estejam no rgo superior e a deciso tiver sido tomada nos
autos formados pela carta de sentena, o agravo, necessariamente,
dever ser por instrumento, vez que o veculo que possibilita a
apreciao do agravo retido j se encontra no juzo ad quem.
Defendendo idia diversa, Tucci 20 (2003, p. 114) afirma
com propriedade que:
se o agravo retido tiver sido interposto aps a apresentao da
apelao ou das contra-razes, dever ele ser examinado e julgado
independentemente de qualquer requerimento dirigido ao tribunal (art.
523, 1.), porquanto a persistncia do interesse em recorrer deve ser
a presumida.
Vale ressaltar a hiptese de interposio de agravo retido
sem posterior recurso de apelao contra a sentena. Nesse
caso, a falta de reiterao no circunstncia apta a obstar o
conhecimento do recurso, ainda mais em face do que dispe
o art. 523, 4., do CPC.
Na prtica, quase sempre o agravante pretende suspender
imediatamente a eficcia do ato mandamental ou executivo

20
TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Lineamentos da nova reforma do
CPC: Lei 10.352, de 26.12.2001, Lei 10.358, de
27.12.2001, LLei
ei 10.444, de 07.05.2002
07.05.2002. 2. ed. rev., atual. e
ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

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126 BRUNO ANGELIM FIGUERA

determinado pelo juiz de primeiro grau ou obter a eficcia


absoluta e imediata destes atos nos casos em que o juiz concede
efeito suspensivo apelao do agravante com base no art. 558,
CPC. Para ambos os casos, o recurso adequado ser o agravo
de instrumento, caso contrrio, a parte que interpuser agravo
retido contra deciso que pode lhe causar prejuzo imediato
ser considerada carecedora de interesse recursal.
Cabe salientar que a norma prescrita no art. 523 do
CPC no se aplica aos casos aqui discutidos, vez que o
julgamento da apelao tem carter prejudicial ao julgamento
do agravo e por essa razo o agravo retido no poder ser
conhecido preliminarmente.

7 REFERNCIAS

ARAJO, Francisco Fernandes. Recursos cveis no direito


brasileiro: com inovaes da lei n 10.352 de 26.12.01, em
vigor desde 27.03.02. Campinas: Edicamp, 2002.

ARENHART, Srgio Cruz. A tutela inibitria da vida privada.


So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. (Coleo Temas Atuais
de Direito Processual Civil; v. 2)

_______. Perfis da tutela inibitria coletiva. So Paulo:


Revista dos Tribunais, 2003. (Coleo Temas Atuais de Direito
Processual Civil; 6)

BELLINETTI, Luiz Fernando. Sentena Cvel: perspectivas


conceituais no ordenamento jurdico brasileiro. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 1994. (Coleo Estudos de Direito de
Processo Enrico Tullio Liebman, v. 29).

DINAMARCO, Cndido Rangel. Captulos de Sentena. So


Paulo: Malheiros, 2002.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 126 29/8/2006, 20:17


ASPECTOS RECURSAIS PRESENTES NA TUTELA DE PREVENO... 127

FERREIRA, Pinto. Curso de direito processual civil. So


Paulo: Saraiva, 1998.

JORGE, Flvio Cheim. Apelao cvel: teoria e


admissibilidade. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

_______. Teoria geral dos recursos cveis. Rio de Janeiro:


Forense, 2003.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Srgio Cruz.


Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional
atravs do processo de conhecimento. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001.

________. Tutela Inibitria: individual e coletiva. 3. ed. rev.,


atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. O novo processo civil


brasileiro: exposio sistemtica do procedimento. Ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

NERY JNIOR, Nelson. Princpios fundamentais: teoria


geral dos recursos. 4. ed. rev. e ampl. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997. (Recursos no Processo Civil, 1).

PINTO, Nelson Luiz. Manual dos Recursos Cveis. 3. ed. ampl.


e atual. de acordo com as Leis 10.352/2001, 10.358/2001 e
10.444/2002. So Paulo: Malheiros, 2003.

POZZA, Pedro Luiz. As novas regras dos recursos no processo


civil e outras alteraes: Leis n os 10.352 e 10.358, de 2001, e
10.444, de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

SPADONI, Joaquim Felipe. Ao Inibitria: a ao preventiva

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 127 29/8/2006, 20:17


128 BRUNO ANGELIM FIGUERA

prevista no art. 461 do CPC. So Paulo: Revista dos Tribunais,


2002. (Coleo Estudos De Direito Processual Enrico Tullio
Liebman; 49)

TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Lineamentos da nova reforma


do CPC: Lei 10.352, de 26.12.2001, Lei 10.358, de
27.12.2001, Lei 10.444, de 07.05.2002. 2. ed. rev., atual. e
ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC


brasileiro. In: ________. O novo regime do agravo. 3. ed.
rev., atual e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
(Recursos no Processo Civil, 2).

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 101-128 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 128 29/8/2006, 20:17


APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR NA ORDEM... 129

APONTAMENTOS SOBRE O
PROCESSO DISCIPLINAR
NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO
BRASIL (OAB)

Celso Augusto Coccaro Filho


Juiz relator do Tribunal de tica IV do
Conselho Seccional da OAB de So Paulo
e Professor do Complexo Jurdico Damsio
de Jesus e da Faculdade de Direito Prof.
Damsio de Jesus (FDDJ)

As questes relativas ao processo destinado apurao


de infraes e aplicao de sanes disciplinares aos advogados,
a princpio de rara incidncia nos Exames de Ordem, tm se
tornado freqentes.
No ltimo Exame (124.) realizado pelo Conselho
Seccional de So Paulo, 5 entre 10 questes abordaram a
matria, o que recomenda o delineamento dos seguintes
apontamentos:
1. O processo disciplinar objeto do Estatuto da OAB
(Lei n. 8.906/94), do Cdigo de tica e Disciplina, do
Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e a OAB, de
Provimentos do Conselho Federal e dos Conselhos Seccionais
e dos Regimentos Internos dos Tribunais de tica.
O candidato ao Exame de Ordem no deve restringir
seu estudo ao Estatuto, induzido pela idia de que aquele
diploma concentra normas principais ou gerais, de forma
suficiente e exauriente. Questes procedimentais relevantes
so tratadas pelo Cdigo de tica; o Regulamento Geral se

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 129 29/8/2006, 20:17


130 CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO

aprofunda nas notificaes e nos recursos, pouco abordados


nos outros diplomas.
2. Prev o Estatuto, no art. 68, a aplicao subsidiria
ao processo disciplinar das normas da legislao processual
penal.
As normas relativas a procedimentos administrativos e
da legislao processual civil, nessa ordem, so subsidiariamente
aplicadas aos demais processos previstos no Estatuto, isto ,
aqueles que no se destinam apurao e aplicao de sanes
disciplinares, tais quais pedidos de inscrio suplementar,
cancelamento de inscrio, licenciamento do advogado,
relativos a eleies e inmeros outros.
Exemplo recorrente da integrao normativa a
inspirao suscitada pela mutatio libelli do art. 384 do Cdigo
de Processo Penal.
Ao analisar a representao e a defesa prvia, o relator
poder propor o seu arquivamento (art. 73, 2., do Estatuto
e art. 51, 2., do Cdigo de tica) ou a instaurao do proce-
dimento (art. 52, 2., do Cdigo de tica). Nesse momento,
aponta o dispositivo legal que permite a subsuno e que dever
gizar a instruo processual, em deciso que o Cdigo de tica
chama de despacho saneador.
As representaes, porm, so usualmente formuladas
por leigos, sem qualquer apuro tcnico; as defesas, diante de
imputao imprecisa, tendem ao laconismo, oposio
genrica ou desqualificao ofensiva da parte representante.
Diante desse quadro, que ainda no lhe permite viso
precisa dos fatos, o advogado assessor procede capitulao
da conduta.
A instruo costuma descortinar outro panorama, s
vezes, mais grave, outras dando ensejo concluso de
inexistncia de infrao.
Estar o julgamento adstrito capitulao consignada
no despacho que redundou na instaurao do processo?
O Conselho Federal no entende dessa maneira: Assim,

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 130 29/8/2006, 20:17


APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR NA ORDEM... 131

possvel, durante a instruo processual, ou at mesmo na


fase recursal, ocorrer novo enquadramento jurdico da conduta
infracional do representado, aplicando-se pena diversa daquela
inicialmente prevista, desde que os fatos sejam os mesmos
(Ementa n. 102/2003/SCA, Recurso n. 0089/2003/SCA/
SP, DJ de 2.10.2003, p. 516). O representado se defende do
fato que lhe imputado, e no da capitulao jurdica que lhe
atribuda. (Ementa n. 014/2004/SCA, Recurso n. 0270/
2003/SCA/PR, DJ de 1..4.2004, p. 409).
Observado o contraditrio, concedida ao representado
a possibilidade de se opor aos fatos que lhe so imputados, o
julgamento no se restringe infrao capitulada na promoo
que antecede a instaurao.
Tendo conhecimento, porm, de fato hbil a constituir
violao disciplinar, verificado no curso do processo, em torno
do qual no se constituiu a controvrsia, restar ao advogado
relator a promoo de representao ex officio, que poder dar
ensejo instruo de outro processo disciplinar, vedado o
julgamento naqueles autos, por inquestionvel leso ao due
process of law.
3. Os prazos processuais so, invariavelmente, de 15
dias: apresentao de defesa, manifestaes nos autos,
interposio de recursos. O prazo para apresentao de defesa
prvia poder ser prorrogado, a juzo do relator, quando
exposto motivo relevante (coleta de elementos, desarquiva-
mento de autos processuais etc.).
4. Sob a tica do princpio da ao, o processo disciplinar
acusatrio ou inquisitivo?
Prepondera a instrumentalidade. A instaurao do
processo disciplinar decorre de representao, ou de ato de
ofcio, praticado pelo Presidente do Conselho Seccional ou
do Tribunal de tica. A representao no exige rigor algum,
nem de forma, nem de contedo. No h necessidade de
advogado. Qualquer pessoa, munida de fundamentos razoveis,
poder formul-la verbalmente, hiptese em que funcionrios

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 131 29/8/2006, 20:17


132 CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO

do Tribunal de tica, do Conselho Seccional ou das Subsees


devero tom-la a termo.
Evita-se que entraves formais sirvam a interesses
mesquinhos da Corporao.
A representao no pode, porm, ser annima (art. 51
do Cdigo de tica), o que gera a assuno de responsabilidade
daquele que a apresenta e restringe a utilizao temerria ou
abusiva.
Retornando, porm, indagao: o processo acusa-
trio ou inquisitivo?
Nos processos disciplinares, corriqueira a escassez de
manifestaes da parte representante, usualmente restritas
prpria representao. Elaborada esta, afasta-se o seu autor,
alheio a seu desenlace, da realizao de provas ou da impug-
nao das razes de defesa.
Muitas vezes, a parte representante se arrepende; passada
a exasperao, esfriados os nimos, chega a retirar a queixa;
outras vezes, consegue a reduo no valor de honorrios ou
favores semelhantes.
Ocorre que o interesse na apurao dos fatos e aplicao
de sanes disciplinares pblico, indisponvel. Extravasa o
interesse da classe; so indubitveis os benefcios coletivos da
punio do advogado infrator, que deve prestar, afinal, servio
pblico, gizado pela funo social (art. 2., 1., do Estatuto).
O procedimento precisa ser impulsionado, dessa forma,
pelo rgo encarregado da aplicao da pena (que, cabe
recordar, pode at representar de ofcio).
Da a incidncia do princpio do impulso oficial; cabe
aos advogados que atuam nos processos disciplinares,
designados genericamente relatores, suprir a ausncia dos
atos que deveriam, a rigor, ser praticados pela parte represen-
tante, neles interessada. Tais relatores, alm de assumir o
impulso processual, tm inmeras funes: emitem o parecer
preliminar (art. 51, 2. e 5., do Cdigo de tica);
determinam as notificaes (art. 52); presidem a instruo (art.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 132 29/8/2006, 20:17


APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR NA ORDEM... 133

73 do Estatuto); determinam diligncias variadas (art. 52,


2., do Cdigo de tica) e, enfim, julgam (art. 56 do Estatuto).
A pliade de funes, aliada necessidade de impelir o
processo, hbil para gerar a concluso de que os tais relatores,
ligados psiquicamente ao dever de investigar para punir, so
parciais e de que o processo inquisitivo.
A prtica, porm, revela-se outra: o relator que julga
no o mesmo que preside a instruo (denominado, nos
Tribunais de tica do Conselho Seccional de So Paulo,
instrutor); outro, tambm, aquele que profere o parecer
preliminar instaurao ou arquivamento (denominado
assessor da Presidncia).
Logo, no se estabelece a temida vinculao psquica,
que conspira com a parcialidade.
Ademais, o contraditrio, raramente observado nos
processos inquisitivos, meticulosamente preservado, em todas
as etapas processuais, com a nomeao obrigatria de defensor
dativo parte representada, quando no encontrada, ou,
quando encontrada e notificada, for revel (art. 73, 4., do
Estatuto).
Exemplo no observado no Judicirio, a sustentao
oral das razes de defesa apresentada aps o voto do relator
(art. 53, 3., do Cdigo de tica) e no constitui mera
retrica, eis que assume saudvel carter antitico.
A irrestrita garantia de contraditrio e a publicidade de
todos os atos (guardando-se o sigilo, como ser adiante
exposto) propiciam a paridade processual e permitem incluir
o processo disciplinar entre aqueles de natureza acusatria.
5. A competncia para aplicao das sanes
disciplinares cabe ao Tribunal de tica e Disciplina do
Conselho Seccional em cuja base territorial tenha ocorrido a infrao
(art. 70 do Estatuto).
O critrio que norteava a lei anterior era outro: a
competncia era atribuda ao Conselho Seccional da inscrio
principal do advogado.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

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134 CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO

H excees: a) as infraes cometidas perante o


Conselho Federal (usurpao de suas funes, por exemplo),
so por ele julgadas; b) tambm cabe ao Conselho Federal o
julgamento das infraes praticadas pelos seus membros e pelos
Presidentes dos Conselhos Seccionais (art. 51, 3., do Cdigo
de tica), por prerrogativa de funo; c) compete ao Tribunal
de tica e Disciplina do Conselho Seccional, onde o acusado
tenha a inscrio principal, o processamento e a aplicao da
pena de suspenso preventiva (art. 70, 3., do Estatuto). Nessa
hiptese, o processo disciplinar instaurado na seqncia (a
suspenso preventiva tem o carter de medida cautelar
preparatria) ser tambm julgado pelo Tribunal de tica do
Conselho da inscrio principal, excepcionando-se a regra de
competncia territorial.
6. O processo disciplinar deve tramitar em sigilo, at o
seu trmino (art. 72, 2., do Estatuto).
A preservao da imagem e nome dos envolvidos
positiva; a mera existncia de processo disciplinar, no
definitivamente julgado, pode submeter o acusado a
constrangimentos indevidos e a descrdito profissional, no
arredados pela absolvio. O sigilo tambm inibe intuitos
emulatrios e pode submeter o advogado que o rompe a
sanes disciplinares, que sero apuradas em outro processo.
Aps o julgamento definitivo, cessa o segredo.
O cumprimento de algumas penas, alis, como a
suspenso do exerccio das atividades profissionais e a excluso,
pressupe ampla publicidade, que lhes possibilita a execuo
e cumprimento (comunicao aos Tribunais da pena de
suspenso aplicada a advogado, por exemplo).
At mesmo as notificaes do representado, quando
feitas por edital, devem observar o sigilo. Estipula o art. 137-
A, 3., do Regulamento Geral do Estatuto que delas no
pode constar qualquer referncia de que se trate de matria
disciplinar, constando apenas o nome completo do advogado,
o seu nmero de inscrio e a observao de que ele dever

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Sem ttulo-6 134 29/8/2006, 20:17


APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR NA ORDEM... 135

comparecer sede do Conselho Seccional ou da Subseo


para tratar de assunto do seu interesse.
O Estatuto excepciona as partes envolvidas
(representante e representado) e seus defensores, como no
poderia deixar de ser. Tambm ressalva a autoridade judiciria
competente, a ela possibilitando o acesso s informaes do
processo.
Quem a tal autoridade judiciria competente? Poder
a parte representante, a ttulo de exemplo, apresentar cpias
das peas do processo disciplinar numa ao cvel movida em
face do advogado representado? O juiz daquele feito pode ser
tido como a autoridade judiciria contemplada na exceo
legal?
O Conselho Federal abordou a matria e a definiu com
acuidade, no Proc. n. 2.015/99/SCA/MS, DJ de 26.11.1999,
p. 400, s. 1:

Exibio em juzo de peas do processo disciplinar.


Violao do sigilo. Autoridade judiciria competente.
A hiptese de violao ao sigilo profissional ampla,
pois incide sobre toda divulgao de fatos, documentos
ou informaes obtidas em decorrncia do exerccio
da advocacia, quer sejam concernentes pessoa do
cliente ou de qualquer outra pessoa. E por autoridade
judiciria competente deve-se compreender o juzo cvel
ou criminal instado a decidir ao judicial que
verse sobre a conduta do advogado ou um mandado
de segurana que vise invalidar sano imposta
atravs de processo disciplinar. Mas usar peas de
um processo disciplinar para produzir alegaes nos
autos de uma ao cvel de cobrana, sem qualquer
liame com os fatos tratados no processo disciplinar,
no se enquadra na hiptese do art. 72, 2.,
porquanto aquele no seja juzo competente para
apreciar tais questes.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 135 29/8/2006, 20:17


136 CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO

Logo, autoridade competente aquela que dever


atuar em processo no qual a conduta do advogado tenha
relevncia, como causa de pedir, ou coincida com outra
definida como crime, no processo penal, ou ainda cujo objeto
o prprio processo disciplinar (mandados de segurana,
declaratrias de nulidade, aes constitutivas negativas).
J considerou o Conselho Federal, sob outra tica, que
a quebra de sigilo do processo disciplinar no leva nulidade
dos seus atos, tendo como conseqncia a infrao disciplinar
dos responsveis (Proc. n. 0040/2003/SCA, DJ de 16.7.2003,
p. 47, s. 1).
7. Quais os recursos cabveis?
Os recursos no so nominados, com exceo dos
embargos de declarao; ostentam, to-somente, a designao
genrica que exalta sua finalidade.
No h previso de recursos contra decises
interlocutrias. So recorrveis apenas as decises terminativas,
de mrito ou no.
Os recursos tm efeito devolutivo e suspensivo, exceto
aquele interposto contra a deciso que aplica a suspenso
preventiva (art. 77 do Estatuto; as demais hipteses nele
mencionadas no dizem respeito ao processo disciplinar).
O prazo para interposio uniforme: 15 dias, inclusive
para os embargos de declarao.
A modalidade por ltimo referida no prevista no
Estatuto ou no Cdigo de tica, mas no Regulamento Geral
(art. 138), e destina-se a sanar omisses e lacunas, alm de
corrigir contradies. A deciso que os admite ou rejeita
irrecorrvel.
Das decises proferidas pelos Tribunais de tica,
unnimes ou no, cabe recurso ao Conselho Seccional (art.
76 do Estatuto), que ser julgado pelo plenrio ou rgo
especial equivalente (art. 144 do Regulamento Geral).
Das decises proferidas pelo Conselho Seccional
cabe recurso ao Conselho Federal, nas seguintes hipteses:

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APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DISCIPLINAR NA ORDEM... 137

a) quando no unnimes, tenham ou no alterado a deciso


de primeiro grau; b) quando unnimes, contrariarem o
Estatuto, o Regulamento Geral, o Cdigo de tica, os
Provimentos e deciso do Conselho Federal ou de outro
Conselho Seccional.
Tm legitimidade recursal tanto o representante quanto
os representados, desde que demonstrem o interesse
processual.
8. O Estatuto tambm prev a reviso dos processos
disciplinares (art. 73, 5.; no Cdigo de tica, art. 61),
quando a deciso condenatria (e apenas ela):
a) decorre de erro de julgamento (dois exemplos, da
casustica: H erro de julgamento quando o Conselho Federal,
pretendendo manter a deciso do Conselho Seccional, fixa
pena diversa e mais gravosa do que a penitncia estabelecida
em primeiro grau (Proc. n. 1.493/94/SC, DJ de 25.9.1995,
p. 31387); Julgamento proferido em processo disciplinar,
quando a prescrio da pretenso punitiva j se consumara,
considera-se eivado de falha, caracterizando erro de julgamento
e ensejando, portanto, pedido de reviso (Proc. n. 0188/
2003/SCA/DF, DJ de 16.7.2003, p. 48, s. 1);
b) calcada em falsa prova.
A figura anloga dos arts. 621 a 627 do Cdigo de
Processo Penal (que se aplica subsidiariamente ao processo
disciplinar, como j mencionado) permite extrair algumas
concluses: a) apenas detm legitimidade o advogado punido;
b) reviso no recurso; pressupe o trnsito em julgado da
deciso condenatria; c) pode ser parcial, com reduo da pena,
ou total, resultando na absolvio.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 129-137 jan./jun. 2005

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138 CLUDIO BRANDO

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 139

HOMICDIO DOLOSO NA
DOGMTICA COMPARADA

Cludio Brando
Doutor em Direito. Professor dos cursos
de graduao, mestrado e doutorado em
Direito da Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE

SUMRIO
1 SUJEITO ATIVO; 2 SUJEITO PASSIVO; 3 TIPO OBJETIVO; 3.1
Introduo; 3.2 Tipo objetivo; 3.2.1 Ncleo do tipo objetivo;
3.2.2 Complemento do tipo objetivo; 3.3 Realizao material
da conduta; 3.3.1 Conduta; 3.3.2 Resultado; 3.3.3 Nexo de
causalidade; 3.3.3.1 As concausas
concausas;; 3.3.3.2 Causalidade na
omisso; 4 TIPO SUBJETIVO; 5. CONSUMAO E TENTATIVA

1 SUJEITO ATIVO

O crime de homicdio pode ser praticado por qualquer


pessoa, porque o tipo penal no apresenta nenhum requisito
para a pertinncia subjetiva no plo ativo. Isto posto, quando
o tipo penal de homicdio deixa de limitar quem pode realiz-
lo, ele estabelece implicitamente que qualquer pessoa poder
matar algum. O homicdio , pois, um crime comum.
No ser, entretanto, sujeito ativo do homicdio aquele
que matar outrem, estiver agindo enganado por terceiro, ou
for vtima de uma coao moral irresistvel ou de uma coao
material irresistvel. Neste caso, quem age enganado ou coagido

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140 CLUDIO BRANDO

um instrumento da conduta de um terceiro, somente


respondendo pelo crime aquele que produziu o erro ou a
coao ( o caso da chamada autoria mediata)1 .

2 SUJEITO PASSIVO

O sujeito passivo do homicdio o titular do bem


jurdico: vida. a partir da descrio do tipo, que exige a
produo da morte de outrem (algum), que se infere que o
bem jurdico tutelado no homicdio a vida autnoma, isto
, a vida extra-uterina independente.
Deste modo, o sujeito passivo do homicdio um ser
humano, entendendo por tal todo ente que apresente signos
caractersticos de humanidade, sem distino de qualidades
ou acidentes2 .
O tipo no exige que o sujeito passivo tenha uma vida
vivel, isto , apta para prosseguir fora do claustro materno;
assim, existir o homicdio se no breve perodo de sua existncia
o neonato invivel tiver sua referida vida ceifada3 . Parafraseando
Fontn Balestra, carece de significado que a criatura apresente
ou no condies de viabilidade, tambm carece de significado
que a pessoa esteja irremediavelmente condenada a morrer, quer
pela natureza, quer pela lei, pois o Direito toma em conta a
existncia da vida no momento do ataque4 .
No pode ser sujeito passivo do homicdio aquele que
j no tem mais vida. Destarte, o atentado contra a vida de
um ser humano j morto ser crime impossvel, por
impropriedade absoluta do objeto (art. 17 do Cd. Penal).
1
NUEZ, Ricardo. Manual de Derecho PPenal; enal; parte especial
especial..
Crdoba: Editorial Crdoba, 1988.p.46.
2
BALESTRA, Carlos Fontn.. Derecho PPenal,
enal, parte especial. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, 1998. p. 27-28.
3
MAGGIORE, Guiseppe.. Derecho PPenalenal
enal. Bogot:Temis, 2000. v. IV,
p. 276-277.
4
BALESTRA, Carlos Fontn.. Derecho PPenal,
enal, parte especial
especial. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, 1998. p.28.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 140 29/8/2006, 20:17


HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 141

3 TIPO OBJETIVO

3.1 Introduo

O tipo do crime de homicdio tem a mais simples


descrio da Parte Especial, composta pelo verbo ncleo matar,
seguido do complemento algum. No obstante, essa descrio
simples d vazo a uma gama de desdobramentos sem
paradigma no Direito Penal. De fato, os institutos inseridos
na Parte Geral do Cdigo adquirem uma pertinncia nica ao
crime de homicdio, para regular as mais diversas situaes.
Assim, problemas relativos causalidade, ao erro, tentativa,
entre outros institutos, ganham especial relevncia em face da
descrio enxuta do tipo, a qual, por no ser rica em requisitos,
possibilita a pertinncia de todas as situaes onde um ser
humano provoque a morte de outro.

3.2 Tipo objetivo

3.2.1 Ncleo do tipo objetivo

Todo tipo penal descreve uma conduta proibida. Como


o verbo sempre se traduz em uma conduta, ele o ncleo do
tipo penal, sendo sua parte mais importante. No tipo em
anlise, o ncleo o verbo matar. A morte, por definio, a
cessao da vida, resulte aquela do encurtamento do perodo
de vida de uma pessoa s ou do apressamento do momento
da morte de um moribundo5 ; a reside a primeira dificuldade
na interpretao do tipo: que a morte no um instante,
mas a morte um processo. Dito processo representa a parada
das funes vitais do ser humano, v.g. a funo crdio-
circulatria, a funo cerebral, a funo respiratria como

5
DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentrios Conimbricenses ao C-
digo PPenal
enal
enal. Coimbra: Coimbra Editora. 1999. Tomo I, p. 16.

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142 CLUDIO BRANDO

processo que , o fato mais comum que tais funes no


parem a um s tempo, mas em perodos temporais distintos.
Todavia, fundamental para a aplicao do Direito a
determinao de um critrio para a verificao da morte. Este
critrio extrado da interpretao sistemtica das normas
jurdicas, e traduzido na parada irreversvel da funo
cerebral ou enceflica, ainda que as demais funes estejam se
realizando. Destarte, ainda que a funo cardaca esteja operante
(por exemplo, o corao do indivduo esteja batendo), se houver
a parada irreversvel da funo cerebral, o ser estar juridi-
camente morto.
O critrio da morte enceflica de indubitvel
pertinncia para a soluo de complexos problemas, como
o caso do antema proposto por Fabrizio Ramacci: Caso Tcio
produza leses tais em Caio, de modo que sua vida seja
mantida somente pelo uso de aparelhos e, posteriormente,
Semprnio desligue os referidos aparelhos que sustentavam a
vida de Caio, a quem deve ser imputada a morte de Caio?6
Foi com o advento da Lei de remoes de rgos, tecidos
e parte do corpo humano para fins de transplante e tratamento
(Lei 9434, de 04/02/97), que o critrio da parada irreversvel
da funo cerebral foi consubstanciado no ordenamento
jurdico. por uma verdadeira interpretao sistemtica que se
chegou a esse critrio. De fato, conjugou-se a citada lei com o
disposto no Cdigo Penal que, enfatize-se, em nenhum artigo
estabelece o momento da morte para a determinao de
quando se chega ao fim da vida de uma pessoa humana.
O art. 3o. da Lei 9434 dispe:
A retirada post mortem de tecidos, rgos ou partes
do corpo humano destinados a transplantes ou
tratamento dever ser precedida de diagnstico
de morte enceflica, constatada e registrada por

6
RAMACCI, Fabrizio. I Delitto di Omicidio
Omicidio. Torino : Giappichelli.
1997. p.40.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 142 29/8/2006, 20:17


HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 143

dois mdicos no participantes das equipes de


remoo e transplante, mediante a utilizao de
critrios clnicos e tecnolgicos definidos por
resoluo do Conselho Federal de Medicina.

Com efeito. sabido que somente vlido o transplante


de certos rgos humanos se algumas funes vitais estiverem
operantes. Assim, se o critrio da determinao da morte fosse
o da cessao de todas as funes vitais, os transplantes no
poderiam ser realizados licitamente, j que os profissionais
que os fizessem incorreriam no delito de homicdio. Para
possibilitar ditos procedimentos, a determinao jurdica do
momento da morte foi vinculada cessao irreversvel da
funo cerebral ou enceflica. Como o Direito um sistema,
um conjunto orgnico de normas que mutuamente se
informam, a definio dada na citada lei de transplantes, de
morte enceflica ou cerebral, constitui-se em verdadeiro critrio
legal que tornou determinado em que momento o processo
da morte deve ser verificado como existente perante o Direito;
este momento , enfatize-se, a parada irreversvel da funo
cerebral ou enceflica, isto , a morte enceflica.
Assim, determinadas situaes no podem ser punidas
pelo Direito Penal. Se, por exemplo, algum desliga os
aparelhos e mecanismos que mantm operantes algumas
funes vitais de um indivduo, que j teve a parada irreversvel
da funo cerebral (v.g. desligar o respirador e os aparelhos
que realizam a funo excretora), inexiste qualquer crime, pois
a morte se deu, para o Direito, com a dita cessao da atividade
enceflica.

3.2.2 Complemento do tipo objetivo

O verbo matar adquire um sentido mais restrito quando


associado ao seu necessrio complemento: algum. Assim,
somente se pode ter o homicdio se houver a morte de uma

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 143 29/8/2006, 20:17


144 CLUDIO BRANDO

pessoa humana, rectius, se houver a morte de algum. Por


conseguinte, pela associao do verbo com seu complemento,
infere-se que o tipo de homicdio exige a produo da morte
de uma pessoa humana, o que se traduz em um evento
perceptvel no mundo real, pelos rgos do sentido (viso,
audio, etc.). Como sabido, todo evento real e perceptvel
chamado penalmente de resultado, por conseguinte, o tipo de
homicdio exige um resultado em sua descrio: a dita
produo real e perceptvel da morte de algum. Sem esse
resultado, o tipo no se completa. pelo exposto acima que
o homicdio classificado como crime material, o qual aquele
que exige como requisito de sua definio legal a produo de
um resultado, que modifica o mundo exterior.
A definio natural de pessoa humana advm do
nascimento de um ser com vida, atravs do parto de uma mulher.
Essa definio inclui na categoria de ser humano todos os
nascidos, independente de forma ou de aparncia, incluindo-
se, pois, na tutela do Direito Penal, o nascituro com forma
monstruosa ou deficiente, j que no se pode conceber, no
estgio atual da nossa cultura, a soluo dada em pocas pretritas
para esses nascituros7, que os excluam da tutela penal.
A evoluo cientfica, todavia, mostrou que possvel a
criao de um ser humano por mtodos no naturais, que
excluem a realizao do ato sexual. Decerto, esse o caso da
clonagem. Em que pese a clonagem humana ser proibida em
muitos ordenamentos, necessrio enfrentar a questo da tutela
do ser resultante desse processo, posto que, alm de ser factvel

7
A soluo do Direito Romano para o monstrum era no consider-lo
como pessoa. Todavia, imperioso esclarecer que o Direito Romano
distinguia o ostentum do monstrum. O primeiro aquele que
manifesta sua origem humana, podendo ser sujeito passivo do
homicdio; o segundo aquele que no tem nada de humano, no
sendo punida a provocao de sua morte. Cf. ALTAVILLA, Enrico.
Tratatto di Diritto P enale
enale. Delitti contro la PPersona
ersona
ersona.
Milano:Vallardi, 1921. v. X, p. 12-13.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 144 29/8/2006, 20:17


HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 145

a possibilidade de sua realizao ilcita, possvel ainda que


ela seja autorizada por algum ordenamento jurdico.
O ser resultante do processo de clonagem tem as mesmas
funes vitais daqueles que nasceram pelo meio ordinrio de
concepo humana: o ato sexual. Isto se d porque o ser que
resulta da clonagem tem patrimnio gentico compatvel com
o de todo ser humano. Deste modo, o ser resultante da
clonagem tambm se inclui na conceituao da ser humano e,
por conseqncia, sua vida tambm est tutelada pelo tipo
penal de homicdio.
Como o homicdio tutela a vida extra-uterina, no existe
a pertinncia com o tipo penal em tela, naqueles atentados
contra a vida intra-uterina, pois nesta ltima no existe pessoa,
mas sim o feto. Por conseguinte, o crime praticado em face do
feto ser o de aborto, no o de homicdio.
Neste nterim, imperioso traar o termo no qual a
vida humana comea, isto , imperioso traar o limite entre
o feto e a pessoa, porque o atentado contra o primeiro ser
aborto e contra o segundo, homicdio. Como j afirmou
Muoz Conde, no estamos aqui diante de um problema
cientfico que se possa resolver com critrios puramente
biolgicos, mas sim ante um problema jurdico, o qual deve
ser resolvido com critrios puramente jurdicos a partir dos
dados biolgicos8 .
O direito brasileiro elegeu como critrio para estabelecer
o comeo da vida humana o incio do parto. Deste modo no
se exige, no nosso ordenamento, a total expulso do ser do
claustro materno, para que se determine o incio da vida. A
vida comea, ressalte-se, com o incio do trabalho de parto,
que de regra provado pelo rompimento do saco amnitico,
tambm denominado de bolsa amnitica.

8
MUOZ, Francisco Conde. Derecho PPenal,enal, parte especial
especial.
Valencia:Tirant lo Blanch, 1999. p.31.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 145 29/8/2006, 20:17


146 CLUDIO BRANDO

O critrio do incio do parto para a determinao do


incio da vida foi dado pelo prprio Cdigo Penal. Foi no crime
de infanticdio (art. 123), o qual incrimina a produo da morte
do filho pela sua me, que age sob a influncia de um estado de
perturbao psquica o estado puerperal que se utilizou a
expresso: durante o parto ou logo aps. Assim, por ser o infanticdio
um crime que se d contra uma pessoa, e no contra um feto, e
por ele poder se realizar durante o parto, conclui-se que a tutela
da vida se inicia com o comeo do trabalho de parto9 .

3.3 Realizao material da conduta

Parafraseando a antiga lio de Antolisei, o fato material


do homicdio implica trs elementos: uma conduta humana,
um resultado e o nexo de causalidade entre uma e outra10 .

3.3.1 Conduta

A conduta de matar pode assumir as mais diversas


formas, porque a lei no indica a modalidade que essa deve
assumir, limitando-se a requisitar que haja causado a morte de

9
Sebastian Soler, ao tratar do Direito Penal argentino, o qual tem as normas
referentes aos crimes de homicdio e infanticdio substancialmente
compatveis com as do atual sistema brasileiro, chega a essa mesma
concluso. In verbis: Para decidir esta cuestin, la propia ley penal suministra
un cierto criterio (...), en el cual se atena la figura del homicidio cometido
durante el nacimiento, cuando el hecho se comete para ocultar deshonra. Es
manifiesto que no mediando esa causa, o el estado emocional a que el
mismo inciso se refiere, en la cual se funda la figura privilegiada, queda
subsistente el delito generico sin atenuacin; ello es un homicidio.SOLER,
S.. Derecho PPenal
enal Argentino
Argentino. Buenos Aires:TEA, 2000. v. III, p.12. A
mesma soluo tambm aceita por Manzini, na Itlia. In verbis: Lucciosone
del feto durante il parto, quando il feto stesso sia nato vivo, costituisce
comune omicidio. MANZINI, Vicenzo. Tratatto di Diritto PPenale. enale. Torino:
Unione Tipogrfico-Editrice Torinense, 1951. v. 8, p.9.
10
ANTOLISE, Francesco. Manuale di Diritto PPenale, enale, parte speciale
I. Milano: Guiffr, 1953. p.38

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 146 29/8/2006, 20:17


HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 147

uma pessoa11 . Destarte, o homicdio um crime de forma


livre, que poder ser realizado por diversos meios. Quanto
sua natureza, os meios se classificam em diretos e indiretos.
Por meios diretos se entendem aqueles que so
substancialmente idneos para produzir a morte de algum.
So exemplos de meios direitos: armas brancas, armas de fogo,
venenos, estrangulamento, submerso, incndio, gases
asfixiantes, corrente eltrica, atropelamento por meio de um
veculo. Irreprochvel a lio de Bento de Faria, o qual anota
que, no meio direto, o agente se utiliza dos meios no corpo
da vtima12 .
Por meios indiretos se entendem aqueles que no agem
imediatamente, mas sim atravs de outras causas postas em
movimento pela atividade do agente, como, por exemplo,
aular um animal bravio contra a vtima, fazer algum trabalhar
em um lugar infectado13 . Bento de Faria anota que, nos meios
indiretos, existe a incapacidade de resistncia do agente queles
meios produtores da letalidade14 .
Os meios morais, os quais so aqueles que atuam no
psiquismo do agente, enquadram-se como espcie dos meios
indiretos, porque no agem diretamente sobre o corpo da
vtima. Ditos meios geralmente se associam, a uma causa
preexistente, para causar a morte. Assim, se Tcio, com dolo
de matar Mvio, que sofre de uma grave doena cardaca, conta-
lhe a falsa notcia da morte de seu filho, e o cardiopata vem a
morrer, em conseqncia da violenta descarga de adrenalina
que se d em face da emoo sofrida, h, neste caso, um crime
cometido atravs de um meio moral.

11
Idem. Ibidem. p.38.
12
FARIA, Bento de. Cdigo PPenal enal Brasileiro Comentado
Comentado. Rio de
Janeiro: Record, 1959. v. IV, p.11.
13
MAGGIORE, Guiseppe. Derecho PPenal enal
enal. Bogot:Temis, 2000. v. IV,
p.279.
14
FARIA, Bento de. Cdigo PPenal enal Brasileiro Comentado
Comentado. Rio de
Janeiro: Record, 1959. v. IV, p.11.

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148 CLUDIO BRANDO

3.3.2 Resultado

Conforme j mencionado, o tipo penal de homicdio,


na sua descrio, exige um resultado: a morte de algum. Por
isso Maggiore afirma que o homicdio se trata de um delito
tipicamente material, por quanto existe uma perfeita
coincidncia entre o resultado jurdico (anulao do direito
vida) e o resultado material (morte) 15 . Como existe a
coincidncia entre esses dois resultados, o evento requerido
no tipo perceptvel pelos sentidos no mundo real, j que
modifica o mundo exterior. Sem o resultado morte, o crime
no se consuma, visto que no se realizam todos os elementos
de sua definio legal, podendo haver a incidncia da figura da
tentativa, explicada infra.

3.3.3 Nexo de causalidade

Para que o tipo penal do homicdio seja imputado a


uma pessoa necessria e imprescindvel a verificao da relao
de causalidade entre a conduta do ser humano e o resultado
morte de algum. Deste modo, somente responder pelo tipo
o sujeito que, com sua conduta ou com a sua omisso relevante,
ps uma condio indispensvel para a produo do resultado,
sem a qual o mesmo no teria ocorrido.
Assim, a verificao da causalidade ser feita por um
processo hipottico de eliminao mental: se, eliminando-se
hipoteticamente a conduta do agente, excluir-se tambm o
resultado morte, diremos que a conduta do agente foi uma
condio indispensvel para a ocorrncia do resultado, sendo
o dito resultado imputado ao agente. Esse processo de
eliminao mental chamado de frmula da conditio sine qua
non. Conclui-se, portanto, que o nexo de causalidade se verifica

15
MAGGIORE, Guiseppe. Derecho PPenal
enal
enal. Bogot:Temis,2000. v. IV,
p.278.

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 149

quando o agente, com sua ao ou omisso, tenha dado


existncia a um antecedente sem o qual a morte no se teria
verificado (conditio sine qua non)16 .
Um exemplo esclarecer a questo: Paulo, querendo
morrer, ingere grande quantidade de calmantes, deitando aps
a ingesto com grande sonolncia; todavia, antes de tomar a
medicao, Paulo solicitara a Caio que, assim que ele estivesse
em estado de torpor pela referida ingesto da medicao,
cravasse uma faca em seu peito. Caio procedeu conforme fora
ajustado e Paulo veio a falecer.
Neste caso, se Caio no tivesse cravado a faca no peito de
Paulo, ele no teria morrido, logo o resultado morte ser
imputado a Caio. O interessante nesse caso, o que decorrncia
direta da relao de causalidade, que Caio responder pelo
tipo de homicdio e no pelo crime do art. 122 (Induzimento,
instigao ou auxlio ao suicdio). Explica-se: Caio realizou ato
de execuo do homicdio, sendo imputada a ele a produo
da morte de Paulo. Somente haveria suicdio, por bvio, se o
prprio Paulo realizasse os atos de execuo de sua morte. Deste
modo, Caio somente responderia pelo tipo do art. 122, isto :
induzir, instigar ou auxiliar algum a se suicidar, se no tivesse
praticado nenhum ato de execuo do homicdio.
De regra, a causalidade dispensa digresses tericas,
sendo de fcil verificao, pois a experincia j d o
conhecimento necessrio para avaliar (1o.) que condutas so
ou no hbeis para produzir a morte de uma pessoa e (2o.)
qual o impacto desta conduta hbil para a produo da morte
no caso concreto. Assim, por exemplo, a qualquer pessoa
fcil perceber que um tiro de revlver hbil para produzir a
morte de algum, do mesmo modo que de fcil percepo
que um tiro dado no corao letal, j um tiro desferido no
p, de regra, no o . Por isto, normalmente, o nexo de
causalidade no se apresenta como um problema difcil.

16
Idem. Ibidem, p.280.

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150 CLUDIO BRANDO

Contudo, possvel que entre a ao letal e o resultado


morte possa decorrer um grande lapso de tempo, como, por
exemplo, no caso da vtima que entra em coma aps a ao
letal, s vindo a falecer anos depois. Neste caso, pela frmula
da conditio sine qua non, obvio que se pode imputar o resultado
morte quele que praticou a ao letal. Todavia, no
admissvel esperar indefinidamente para se concluir um proces-
so criminal, assim, se o resultado morte ocorrer at o termo
do processo, responder o agente por homicdio consumado;
em caso contrrio, por tentativa de homicdio. Neste caso se
enquadra aquele que, sendo portador do vrus da AIDS,
dolosamente pratica ato capaz de transmitir a molstia. Em
que pese a AIDS ser letal e incurvel, provvel que a morte
somente se verifique muito tempo depois do agente t-la
contrado. Assim, aquele que transmite dolosamente a referida
AIDS responder por tentativa de homicdio, salvo se a morte
da vtima se se verificar antes do trmino do processo, pois,
neste caso, responder o agente por homicdio consumado.
Situaes particulares acerca da causalidade no crime
de homicdio merecem ser estudadas. So elas: (a) as concausas;
(b) a causalidade na omisso; (c) a ausncia de causalidade
pela no imputao objetiva do resultado. As duas primeiras
situaes sero estudadas neste tpico, a terceira, por se
enquadrar sobretudo nos crimes culposos, ser estudada em
tpico autnomo.

3.3.3.1 As concausas

Concausa o termo utilizado para a designao da


confluncia de mais de uma causa para a produo do
resultado. o nexo de causalidade o instituto que torna
possvel a identificao do autor do resultado quando um
determinado fato associa-se com a conduta de algum, para
provocar o resultado morte de um ser humano, isto , quando
existe uma concausa.

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 151

As concausas so classificadas em preexistentes,


concomitantes e supervenientes. sempre bom lembrar que
essa classificao existe em funo de um referencial: a conduta
determinada de um agente.
Por concausa preexistente se entende aquela que
temporalmente anterior atividade do agente, mas que, aliada
sua conduta, concorre para a produo do resultado morte.
Destarte, se Caio, com animus de matar Mvio, desfere-lhe um
tiro que atinge o antebrao, e este ltimo vem a morrer no
por conta do tiro, mas pela dificuldade de cicatrizao em
face de ser portador de hemofilia, houve a confluncia de mais
de uma causa para o resultado, ou seja, houve o fenmeno
das concausas. No caso, como a doena (hemofilia) precede
temporalmente a conduta de Caio, por ser anterior quela, a
concausa classifica-se de preexistente.
Por consausa concomitante se entende aquela que se d
ao mesmo tempo em que se realiza a conduta do agente,
concorrendo para a produo do resultado morte. Desse
modo, se Caio desfere uma facada em Mvio, com dolo de
mat-lo, no momento em que ele est tendo um enfarto do
miocrdio, de modo que o problema cardaco seja poten-
cializado, acelerando a morte de Mvio, houve igualmente o
fenmeno da concausa. Cuida a hiptese de uma concausa
concomitante, porque verificada ao mesmo tempo em que
se realizou a conduta do agente.
Por concausa superveniente se entende aquela que ocorre
em um momento posterior atividade do agente: assim, se
Caio desfere um tiro de revlver em Mvio, com a inteno
de mat-lo, mas no produz a sua morte, por conta do socorro
prestado vtima por um terceiro, que a coloca em seu veculo
para lev-la ao hospital. Todavia, se o veculo que presta o
socorro colidir com um caminho descontrolado, provocando
a morte de todos os ocupantes do veculo, haver uma con-
causa. A coliso, por conseguinte, ser uma concausa superve-
niente, j que ocorreu posteriormente conduta do agente.

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152 CLUDIO BRANDO

As concausas preexistentes e concomitantes, que se


aliam conduta do agente para provocar o resultado, no
afetam a responsabilidade penal. Assim, o agente que, com
sua conduta, der causa a morte de algum, responder por
homicdio, ainda que a causa posta pelo referido agente tenha
se aliado com uma concausa preexistente ou concomitante.
As concausas supervenientes, que se aliam conduta
do agente, entretanto, tm soluo diversa. Se ela for hbil
para produzir por si s a morte de algum, isto , se a concausa,
no caso, tiver um potencial de letalidade tal, que torne
desnecessria a conduta do agente para a produo da morte,
este resultado no ser imputado ao agente. No exemplo de
concausa superveniente dado acima, a morte foi provocada
pela coliso do caminho com o veculo, e no pelo tiro de
Caio. Todavia, se Caio no tivesse desferido o tiro, a vtima
no estaria no carro sendo socorrida, em outras palavras, pela
frmula da conditio sine qua non acima explicada, se excluirmos
hipoteticamente a conduta de Caio, excluiremos tambm o
resultado morte. Assim, a conduta de Caio tambm causa
do resultado. Todavia, a produo da morte adveio da
concausa superveniente, a qual no foi produzida pela conduta
de Caio (coliso do caminho). Para solucionar essa questo o
Direito assim dispe: como a concausa superveniente hbil
para produzir por si s o resultado, exclui-se a atribuio do
resultado morte, devendo o agente responder to somente
pelos atos anteriores (art. 13 1), isto , pela tentativa de
homicdio.

3.3.3.2 Causalidade na omisso

O crime de homicdio normalmente praticado por


uma atividade positiva do agente, isto , por uma comisso.
Isto se d porque a norma que est inserida no tipo do artigo
121 uma norma de natureza proibitiva, a qual d origem aos
crimes comissivos ou crimes de ao.

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 153

No se pode deixar de mencionar, entretanto, que o


homicdio tambm pode se realizar, excepcionalmente, atravs
de uma omisso. Tais casos esto vinculados a trs hipteses
taxativas: (1) o dever legal de impedir o resultado, (2) o dever
contratual de impedir o resultado, (3) a criao, por parte do
agente, do risco da ocorrncia do resultado. Nestes casos, o
Direito impe ao agente o dever de impedir a produo do
resultado de dano, isto , a ocorrncia da morte; em outras
palavras, deve o agente garantir a no ocorrncia do resultado,
enquadra-se ele na chamada posio do garantidor.
Haver o homicdio imputado a um agente, portanto,
quando se verificarem os casos de omisso de impedimento
do evento da parte do titular da posio de garantia. essa a
razo pela qual se constitui a obrigao jurdica de agir para
impedi-lo17 .

4 TIPO SUBJETIVO

No crime de homicdio o elemento subjetivo tem


especial importncia, porque ele o meio atravs do qual se
diferenciam o homicdio doloso, o homicdio culposo e a
leso corporal seguida de morte (homicdio preterintencional).
Conforme leciona Altavilla, o elemento subjetivo diferencia
o homicdio voluntrio do preterintencional e do culposo
que tem idnticos elementos objetivos: temos, na verdade,
trs casos nos quais realizada uma causa eficiente da morte e
causa-se a prpria morte, mas no primeiro, efeito letal era
querido, no segundo, era querido um dano integridade fsica
que no era a morte, e no terceiro, a morte causada com a
prpria imprudncia ou negligncia18 . Portanto, para que

17
RAMACCI, Fabrizio.. I Delitto di Omicidio
Omicidio. Torino: Giappichelli,
1997. p.32.
18
ALTAVILLA, Enrico. Tratatto di Diritto PPenale
enale
enale. Delitti contro la
Persona
ersona. Milano:Vallardi., 1921. v. X, p.11.

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154 CLUDIO BRANDO

exista a incidncia do homicdio doloso necessria uma


anlise cuidadosa de seu elemento subjetivo, o qual possibilita
a sua individualizao frente s demais espcies.
O elemento subjetivo do crime de homicdio o dolo
de matar (animus necandi), que vontade livre e consciente de
produzir a morte de algum.
A descrio tpica do homicdio, entretanto, fornece
explicitamente apenas elementos objetivos (matar algum). Os
elementos subjetivos, os quais se referem conduta interna
do agente, isto , vontade e conscincia, encontram-se
implcitos no tipo.
Com a teoria finalista da ao se reconheceu que toda
ao dirigida a um fim, logo, a vontade dirigida a um fim
(o dolo) um elemento da ao. Como o verbo ncleo tpico
uma ao que se complementa com o conceito subseqente:
algum, a vontade livre e consciente dirigida ao fim de matar
algum estar presente no tipo, por ser elemento daquela
ao.
Da se conclui que no somente no homicdio, mas
em qualquer tipo penal doloso, que existe sempre um
elemento subjetivo implcito, traduzido na vontade livre e
consciente de realizar os elementos objetivos do tipo: o
dolo.
Embora no previsto de forma explcita nos tipos penais,
o dolo sempre integra o tipo penal. Tal afirmao no somente
uma constatao dogmtica, mas uma verdadeira interpre-
tao sistemtica da parte geral e da parte especial do Cdigo
Penal. Com efeito, no art. 20 do Cdigo, ao se normatizar o
erro quanto ao elemento constitutivo do tipo penal, afirmou-
se que ele exclui o dolo. Logo, se o erro de tipo exclui o dolo
porque o dolo integra o tipo.
Assim, no tipo de homicdio, o dolo de matar ou animus
necandi exige a conscincia e vontade dirigida a esse fim.
necessrio, pois, que o agente saiba e queira retirar a vida de
uma pessoa humana.

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 155

A forma normal de dolo no homicdio o dolo acima


referido. Entretanto a experincia jurdica mostra que ela no
suficiente para o Direito Penal, porque no abrange aquelas
situaes subjetivas nas quais o agente no quer o resultado,
mas adota uma postura de indiferena ante a sua produo,
assumindo o risco de produzi-lo. Por isso, ao lado da forma
normal de dolo, que ter vontade dirigida ao fim de produzir
o resultado, chamada de dolo direto, existe a forma excepcional
de dolo, chamada de dolo eventual, onde o agente no querer,
mas assume o risco de produzi-lo. O homicdio doloso pode
ser praticado tanto pela forma normal de dolo, o direto, quanto
pela sua forma excepcional, que o dolo eventual.
O erro quanto pessoa no afetar pertinncia da
conduta do agente com o dolo exigido pelo tipo. Isto se d
porque, no dito erro, o agente dirige, em qualquer caso, sua
vontade para matar um ser humano. Se Caio, querendo matar
Paulo, atinge Mvio, ao invs de Paulo, responder por
homicdio consumado, caso Mvio venha a falecer. Isto se d
porque suficiente para a configurao do dolo do referido
homicdio a vontade livre e consciente de matar pessoa hu-
mana, sendo desnecessria a determinao de que pessoa
humana ir ser morta. Em boa hora, a nova parte geral do
Cdigo (Lei 7209/84) disps norma expressa nesse sentido,
no art. 20 3.
Caso o agente, alm de atingir a pessoa pretendida,
atingir tambm outrem, a soluo depender do elemento
subjetivo do agente. Em primeiro lugar, caso o agente no
queira os dois resultados, existir o concurso formal,
aplicando-se a regra do art. 70, primeira parte, do Cdigo
Penal. Assim, se Tcio quer matar Mvio, e, para tanto, desfere-
lhe um tiro, que transpassa Mvio e atinge um transeunte,
Caio, provocando a morte dos dois, aplicar-se- a regra do
concurso formal, porque mediante uma s ao do agente
produziu-se mais de um resultado de morte. Dita regra
estabelece que o agente somente responder pela pena de

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156 CLUDIO BRANDO

um s dos crimes, com uma causa de aumento que vai de


um sexto at a metade.
Se, ao contrrio da soluo anterior, o agente quiser os
diversos resultados, somam-se as pena. Assim, se Tcio deseja
matar Mvio e Caio, desferindo um tiro no primeiro, que o
trespassa e atinge tambm o segundo, matando ambos, somar-
se-o as penas. Isto se d porque, quando o agente dirige sua
vontade para mais de um resultado, e os realiza mediante uma
s ao ou omisso, cada resultado ser um designo autnomo do
agente, e a soma das penas, nesta hiptese, determinada pelo
prprio Cdigo Penal (art. 70, segunda parte).
Por fim, deve-se ressaltar que, se o agente no tem a
conscincia que sua ao letal atinge uma pessoa humana, no
poder ele responder por homicdio doloso. Aplica-se, neste
caso, a regra do erro de tipo (art. 20 do Cd. Penal). Isto se d
porque o erro de tipo no outra coisa que a negao do
enquadramento da representao que o dolo requer19 , assim
dever haver o desconhecimento de uma circunstncia que
represente um elemento descrito no tipo legal (chamado de
elemento essencial); no homicdio, esse erro se dar quando o
sujeito desconhece que mata uma pessoa humana ou, ainda,
erra quanto ao meio utilizado em sua conduta, supondo-o
no letal.
Ser irrelevante, portanto, o erro sobre a causalidade.
O exemplo que se encontra em Figueiredo Dias, luz do
Direito ptrio, ser esclarecedor, no sentido de reafirmar a
punibilidade do agente: A, com dolo homicida, d um tiro
em B e, erroneamente convencido que o matou, enterra-o para
ocultar o crime; B vem a falecer por asfixia20 .

19
JESCHECK, Hans-Heirich. Lehrbuch des Strafrechts
Strafrechts. Berlin:Dunker
u. Humblot, 1988. p.275.
20
DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentrios Conimbricenses ao
Cdigo PPenal
enal
enal. Coimbra:Coimbra Editora, 1999. Tomo I, p..17.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

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HOMICDIO DOLOSO NA DOGMTICA COMPARADA 157

5 CONSUMAO E TENTATIVA

O crime de homicdio se consuma com a ocorrncia


do resultado morte, j que o crime material e esse dito
resultado integra o tipo. Caso a morte no ocorra por
circunstncias alheias vontade do agente, haver a tentativa,
se este ltimo j tiver iniciado a execuo do crime.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 139-157 jan./jun. 2005

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158 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 159

AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO


DEBATE CONSTITUCIONAL

Fabiana Carla Canuto Souto Maior Lemos


Bacharel em Direito. Auxiliar Judicirio do
Tribunal de Justia de Pernambuco.
Conciliadora de Justia perante o II Juizado
Especial do Cordeiro desde abril de 2004.
Ps-graduanda em Direito Constitucional,
Administrativo e Tributrio pela Faculdade
Maurcio de Nassau

SUMRIO
INTRODUO. 1 ORIGEM DO INSTITUTO. 1.1 Da forte presena do
amicus curiae no direito norte-americano. 1.2. Lei 9.868/99: passaporte de
ingresso formal do instituto no Brasil. 2 DA APLICAO DA FIGURA DO
AMICUS CURIAE. 2.1 Do cabimento. 2.2 Dos requisitos. 3 DEMAIS
ASPECTOS PECULIARES. 3.1 Da natureza jurdica. 3.2 Das questes
processuais mais relevantes. 4 CONCLUSO. 5 REFERNCIAS.

INTRODUO

O presente estudo tem por objetivo abordar a figura


do amicus curiae, novel instituto no direito brasileiro no qual
a doutrina tem se debruado ultimamente com bastante
freqncia e a sociedade como um todo tem demonstrado
interesse em conhecer e utilizar.
A importncia do tema repousa no fato de que tal
instituto traz consigo a caracterstica peculiar de necessidade
de elastecimento do crculo de intrpretes da Constituio,
pensamento j divulgado por Peter Haberle, para abranger,

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

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160 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

alm das autoridades pblicas e partes formais nos processos


de controle de constitucionalidade, os cidados e grupos sociais
que vivenciam a realidade constitucional revelando-se, por
conseguinte, importante evoluo no sentido de aperfeioar a
democracia participativa.
No que pertine metodologia optamos, ante o escasso
quantitativo de obras publicadas que estejam voltadas especifi-
camente para o tema, trabalhar mais com jurisprudncias e
artigos divulgados pela internet, merecedores de aplausos por
esclarecerem de forma magnfica todos os aspectos necessrios
ao bom desenvolvimento e elucidao das filigranas que
permeiam esse instituto.
O primeiro captulo traz consigo o nascimento do amicus
curiae no direito norte-americano que, praticamente um sculo
depois, cultiva esse instituto como verdadeira forma de
democratizao dos debates em torno de questes processuais.
Em seguida vislumbramos o ingresso formal do instituto no
Brasil atravs da Lei 9868/99, no olvidando dividir com o
leitor alguns casos curiosos.
A seguir abordamos, no segundo captulo, as hipteses
de cabimento, cuidando em demonstrar que no se res-
tringem s aes diretas de inconstitucionalidade, muito em-
bora gerado juntamente com estas atravs da Lei 9868/99.
Alm disso, so relacionados os requisitos essenciais com o
objetivo primordial de esclarecer a perfeita aplicabilidade do
instituto.
Por fim analisamos, no terceiro captulo, alguns aspec-
tos peculiares que, alm de importantes, figuram como
questionamentos constantes a exemplo da natureza jurdica
que, muito embora demonstre certo embate na doutrina,
revela-se tranqila na jurisprudncia e em diversas questes
processuais que devem certamente ter consigo o adjetivo de
interessantes.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 160 29/8/2006, 20:17


AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 161

1 ORIGEM DO INSTITUTO

1.1 Da forte presena do amicus curiae no direito nor-


te-americano

O instituto do amicus curiae foi utilizado pela 1 vez nos


Estados Unidos no caso Muller vs Oregan, no ano de 1908,
por intermdio do advogado Louis D. Brandeis que produziu
um memorial-manifestao que trazia Corte Americana
informaes importantes acerca do caso que passou a ser
denominado de Brandeis-Brief, levando assim seu sobrenome.
(SILVA, 2005).
O termo amicus curiae vem do latim e significa amigo
da corte, ou seja, aquele que no parte do processo, mas
traz para a Corte ou Tribunal informaes importantes acerca
de determinada matria com o objetivo de pluralizar o debate
constitucional de forma que sejam trazidos, pelas partes
interessadas, todos os elementos informativos possveis e
necessrios adoo de uma deciso, a mais apropriada
possvel.
Com isso o amicus curiae abraa a idia de Peter Haberle
no sentido em que fomenta a idia de sociedade aberta de
intrpretes da Constituio, ou seja, o crculo de intrpretes
da Lei Fundamental deve abarcar no somente as partes formais
e autoridades pblicas nos processos de controle de
constitucionalidade, mas sim todo e qualquer cidado ou
grupo social que esteja inserido na realidade constitucional
de um pas (SILVA, 2005).
Atualmente instituto de larga utilizao e de extrema
importncia no direito norte-americano, envolvendo clebres
casos sendo, talvez, um dos mais significativos deles o que diz
respeito a um cidado que fora condenado, sem assistncia de
advogado, e do qual resultaria no direito fundamental do
acusado em ser assistido por advogado.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 161 29/8/2006, 20:17


162 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

O caso revela a saga de Clarence Earl Gideon perante a


justia norte-americana, condenado a 5 anos de priso, sem
ter tido a assistncia de um advogado, pelo crime de invaso
de domiclio com intuito de roubar que, perante aquele pas,
considerado crime de gravidade, mas no sujeito pena de
morte. Gideon recorreu da sentena requerendo lhe fosse dado
o direito de, por ser juridicamente pobre, ter um advogado
fornecido pelo Estado. A Corte da Flrida entendeu no lhe
caber tal pleito tendo em vista que, naquele Estado, apenas os
acusados de crimes sujeitos pena capital poderiam ter dita
assistncia. Inconformado, o prprio Gideon preparou um
recurso interposto perante a Suprema Corte dos Estados
Unidos, insistindo que a condenao de um ru sem advogado
era um atentado Constituio e Declarao de Direitos. A
Suprema Corte, alm de ter admitido 122 intervenientes na
condio de amicus curiae (entre Estados Federados e
Entidades), tambm anulou o julgamento de Gideon,
nomeando-lhe um famoso advogado chamado Abe Fortas.
Desse fato resultaram um livro1 de autoria de Anthony
Lewis e um filme dirigido por Robert Collins, demonstrando
assim que o caso Clarence Gideon um exemplo de obstinao,
de sensibilidade da Justia e da importncia da figura do amicus
curiae para a realizao do prprio direito (SOUZA, 2002).
Hodiernamente merece destaque, tambm nos tribunais
norte-americanos, o julgamento da Suprema Corte do caso
que envolveu a Universidade de Michigan em 2003 e contou
com o apoio de mais de 150 amicus curiae, envolvendo desde
ONGs, empresas pblicas e privadas at as mais conceituadas
Universidades e organizaes de direitos civis, inclusive as de
veteranos das Foras Armadas. Na deciso apertadssima, 5
votos a favor contra 4 contrrios, os Juzes da Suprema Corte
dos Estados Unidos concluram que a Universidade de

1
Gideons Trumpet

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 162 29/8/2006, 20:17


AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 163

Michigan poderia levar em considerao a raa dos candidatos


de minorias tnicas no processo de admisso ao curso de ps-
graduao da sua Escola de Direito (SILVA, 2005).
No poderamos deixar de mencionar o processo
denominado Florida Election Case n 00.94,9 oriundo da
disputa judicial em que se transformou a penltima eleio
presidencial dos Estados Unidos, na qual George Bush saiu
vitorioso. Nele foram oferecidos memoriais de 9 amici, dentre
eles o Estado do Alabama, o Centro de Estudos da New York
University, a Assemblia Legislativa da Flrida, a American Bar
Association e diversas pessoas fsicas (BUENO FILHO, 2002).
Por fim, essencial enaltecermos que, para o direito norte
americano, a utilizao do amicus curiae traz consigo a
possibilidade da Corte Suprema converter um processo de
carter essencialmente subjetivo, que o controle de
constitucionalidade, em um processo objetivo, haja vista contar
com a participao das mais diversas pessoas e entidades
inseridas na sociedade norte-americana que trazem para a Corte
seu ponto de vista e opinies com o objetivo de auxiliar no
posicionamento e tomada de decises.

1.2 Lei 9.868/99: passaporte de ingresso formal do ins-


tituto no Brasil

No Brasil o amicus curiae foi introduzido formalmente


com a edio da Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999,
que dispe acerca do processo e julgamento da ao direta de
inconstitucionalidade e da ao declaratria de constitucio-
nalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Destaca-se da
Exposio de Motivos do Projeto de Lei n 2960, referente
j citada legislao, a forte influncia advinda do direito
processual constitucional norte-americano.
Ressaltamos que o uso da expresso formalmente foi
intencional, tendo em vista que essa se referia apenas ao

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164 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

ingresso legislativa do instituto no ordenamento jurdico


ptrio, pois, mesmo antes da edio da aludida lei, o STF
permitiu, por unanimidade de votos, a manifestao a ttulo
de amicus curiae quando do julgamento de Agravo Regimental
em sede de ADIN n 748-4, concordando que um memorial,
preparado por um colaborador informal, permanecesse juntado
por linha ao processo. Vejamos a deciso:

AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALI-
DADE INTERVENO ASSISTENCIAL
IMPOSSIBILIDADE ATO JUDICIAL QUE
DETERMINA A JUNTADA, POR LINHA, DE
PEAS DOCUMENTAIS DESPACHO DE
MERO EXPEDIENTE IRRECORRIBI-
LIDADE AGRAVO REGIMENTAL NO
CONHECIDO.
O processo de controle normativo abstrato
instaurado perante o Supremo Tribunal Federal
no admite a interveno assistencial de terceiros.
Precedentes.
Simples juntada, por linha, de peas documen-
tais apresentadas por rgo estatal que, sem
integrar a relao processual, agiu, em sede de
ao direta de inconstitucionalidade, como
colaborador informal da Corte (amicus curiae):
situao que no configura, tecnicamente,
hiptese de interveno ad coadjuvantum.
Os despachos de mero expediente como
aqueles que ordenam juntada, por linha, de
simples memorial descritivo , por no se
revestirem de qualquer contedo decisrio,
no so passveis de impugnao mediante
agravo regimental (STF, ADI 748 AgR/RS,
1994).

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 165

Ademais vale ressaltar que, muito embora inovadora


no campo de controle abstrato de constitucionalidade que
fez instaurar processo de natureza marcadamente objetiva, a
disciplina legal pertinente ao ingresso do amicus curiae j se
achava contemplada, desde 1976, no art. 31 da Lei n 6.385,
de 07/12/76, que permite a interveno da Comisso de
Valores Imobilirios (CVM) em processos judiciais de carter
meramente subjetivos, nos quais se discutiam questes de
direito societrio, sujeitas, no plano administrativo,
competncia dessa entidade autrquica federal (STF, ADI
2130-3 SC, 2001).
Tambm no Brasil visualizamos casos clebres que
merecem ser destacados.
Podemos apontar os requerimentos de amicus curiae que
diversas entidades de Movimento Negro formularam, e foram
aceitas nessa condio, em sede das aes propostas com o
objetivo de declarar a inconstitucionalidade das leis estaduais
que adotaram reserva de vagas para negros na UERJ Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro e na UENF Univer-
sidade do Norte Fluminense, ambas localizadas no Estado do
Rio de Janeiro. A manifestao apresentada perante o STF,
que guarda semelhana com o caso da Universidade de
Michigan, perseguia uma redefinio dos conceitos jurdicos
em face das modificaes da realidade, objetivando, assim, a
defesa da constitucionalidade das leis estaduais que adotaram
reserva de vagas para negros (SILVA, 2005).
Essa discusso acerca das cotas raciais tem, inegavel-
mente, o mrito de estar frente do Pas na discusso judicial,
favorecendo a utilizao das aes afirmativas, tendo por
condo alinhar o panorama jurdico brasileiro, nessa seara,
com o da Suprema Corte Americana.
Como segundo exemplo, desta feita no que pertine s
relaes de consumo, mencionamos a ADIN n 2591-9,
ajuizada no ano de 2001 pela CONSIF Confederao

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166 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

Nacional do Sistema Financeiro com o intuito de suspender,


liminarmente, a aplicao do Cdigo de Defesa do Consumidor
nas relaes de natureza bancria, financeira, de crdito e
securitria. O Procon ingressou no feito como amicus curiae
na qualidade de entidade interessada e representativa de
consumidores pela importncia do assunto que poderia trazer
consigo eventuais prejuzos, sem mencionar os retrocessos nas
conquistas e avanos obtidos nesse segmento de consumo.
Da mesma forma o Partido dos Trabalhadores peticionou
pleiteando seu ingresso na qualidade de amicus curiae dessa
mesma ADIN.
Uma outra experincia exemplar, seno das mais
importantes em relao utilizao desse instituto no Brasil,
ocorreu no julgamento do habeas corpus HC n 82.424/
RS perante o STF, que tinha como enfoque principal a
questo do racismo e anti-semitismo. No caso Siegfried
Ellwanger, muito embora absolvido em 1 grau, foi condenado
a 2 anos de recluso com sursis de 4 anos como incurso no
art. 20 da Lei 7716/892 por ter, na qualidade de escritor3 e
scio da empresa Reviso Editora Ltda, editado, distribudo
e vendido ao pblico obras anti-semitas de sua autoria e da
autoria de autores nacionais e estrangeiros, que abordam e
sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatrias,
procurando incitar e induzir a discriminao racial, semeando
em seus leitores sentimentos de dio, desprezo e preconceito
contra o povo de origem judaica.
Os Ministros do STF decidiram, por maioria de sete
votos a trs, negar o remdio constitucional impetrado
incorporando, assim, os argumentos trazidos baila no parecer
2
O art. 20 da Lei 7.716/89 assim preceitua: Praticar, induzir ou incitar a
discriminao ou preconceito de raa, cor, etnia, religio ou procedn-
cia nacional:
Pena recluso, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa.
3
de autoria de Siegfried Ellwanger o livro Holocausto Judeu ou Ale-
mo? Nos bastidores da mentira do sculo.

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 167

admitido como amicus curiae elaborado pelo professor


Celso Lafer, da Faculdade de Direito da Universidade de So
Paulo USP (STF, HC 82424, 1994).
Consideramos esse caso uma trilha a ser seguida para
futuros julgamentos que envolvam racismo no Brasil, e por
que no no mundo, com base nos fundamentos dos votos
dos Ministros que superaram o conceito biolgico de raa,
para dar lugar ao pertencimento tnico-racial trazido pela
antropologia, sociologia e demais ramos das Cincias
Sociais.
Entendemos que a tendncia de que a adoo do
instituto ora em comento seja universalizar-se. A exemplo
temos o julgamento do ex-presidente da Iugoslvia, Slobodan
Milosevic, realizado no Tribunal Penal Internacional na sesso
de 30 de agosto de 2001. Nessa oportunidade o juiz ad hoc
Richard May, responsvel por julg-lo, designou um advogado
oficioso para o ru, na condio de amicus curiae, com a
incumbncia de interrogar testemunhas, fazer protestos ou
advertir magistrados quanto aos eventuais direitos do ex-
presidente da Iugoslvia. Tal designao tinha por escopo
ver desempenhado o papel de amigo da corte em prol do
direito ou da justia e no de advogado dativo (SOUZA,
2004).

2 DA APLICAO DA FIGURA DO AMICUS


CURIAE

A admisso de manifestao de entidades ou rgos


representativos traz consigo a possibilidade de ampliar o debate
quanto s teses que orientaro a Corte Constitucional em
determinadas decises. Resta saber em quais processos isso
poder ocorrer e o que necessrio para que uma pessoa
ingresse na qualidade de amicus curiae, enfoque principal do
presente captulo.

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2.1 Do cabimento

A Lei 9868/99 estabelece, em seu art. 7, 2, que o


relator, considerando a relevncia da matria e a represen-
tatividade dos postulantes, poder, por despacho irrecorrvel,
admitir a manifestao de outros rgos ou entidades.
Exordialmente extrai-se que o instituto do amicus curiae
caber, primordialmente, no processo da Ao Direta de
Inconstitucionalidade. E aqui, frise-se, incide plenamente a
lei em debate tambm no que se refere s representaes por
inconstitucionalidades estaduais, conforme justifica o
eminente Ministro Gilmar Mendes sendo, via de conseqncia,
perfeitamente possvel dito instituto figurar nas aes diretas
de inconstitucionalidades estaduais (BINENBOJM, 2004).
Relativamente Ao Declaratria de Constituciona-
lidade, nada dispe, especificamente, a mesma lei o que
poderia nos levar, de forma precipitada, a propagar a
inadmissibilidade do instituto nesse tipo de ao. Ocorre,
todavia, que entendemos ser bastante sensata a posio
doutrinria, motivo pelo qual nos filiamos mesma, de que
no h qualquer justificativa para a desigualdade de tratamento
entre essa ao e a de inconstitucionalidade. Entendemos,
inclusive, que exatamente nesses casos, em que ainda h
necessidade de afastar dvidas acerca de dispositivos que j
so considerados constitucionais por meio de ao declaratria,
justifica-se, mais ainda, a possibilidade de pluralizao do
debate constitucional.
Pelo exposto no nos resta outra posio seno entender
pela possibilidade de admisso de amicus curiae, tambm, nas
aes declaratrias de constitucionalidade lembrando, em
tempo, que o procedimento dessas bastante similar ao das
aes de inconstitucionalidade, o que refora a aplicao
analgica j sugerida. (BUENO FILHO, 2002).
Por outro lado, mostra-se evidente a possibilidade de

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 169

atuao do amicus curiae, tambm, nos Juizados Especiais


Federais, nos pedidos de uniformizao de interpretao de
lei federal sempre que houver divergncias entre decises que
envolvam questes de direito material proferidas por Turmas
Recursais na interpretao da lei. De acordo com o que
estabelece o 7 do art. 14 da Lei 10.259/20014 , eventuais
interessados, ainda que no sejam partes no processo, podero
se manifestar plenamente, configurando, assim, mais uma
hiptese de admissibilidade do instituto (SOUZA, 2002).
Finalmente, a lei no dispe acerca da possibilidade
de admisso de mais de um amicus para cada parte, o que
nos leva a concluir que, em no havendo proibio, a pre-
sena permitida (BUENO FILHO, 2002). Entendimento
esse reforado pelos diversos casos j elencados no presente
estudo.

2.2 Dos requisitos

De promio observa-se que a deciso acerca da admisso


ou no do rgo ou entidade postulante de competncia
exclusiva do relator que, considerando a relevncia da matria
e a representatividade dos postulantes, poder admitir a
manifestao de outros rgos ou entidades no cabendo,
dessa deciso positiva, a interposio de recursos. Assim h de
ser analisado o binmio relevncia da matria-representativi-
dade, levando-se em considerao os efeitos dessa deciso nos
setores diretamente afetados e na sociedade como um todo,
alm de observar se o rgo ou entidade postulante congrega,
entre seus afiliados, poro significativa, qualitativa e
quantitativamente dos membros dos grupos sociais afetados,
ambos requisitos que passam agora a ser abordados.

4
A referida lei dispe sobre a instituio dos Juizados Especiais Cveis e
Criminais no mbito da Justia Federal.

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170 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

a) representatividade: presume-se que todos os legiti-


mados para propositura da ao direta de controle gozam da
representatividade necessria para atuar como amicus curiae.
Assim, se j no fizerem parte do processo, os elencados no
art. 103 da CF estaro sempre qualificadas para tal, bastando
ao Tribunal que verifique a questo do interesse jurdico.
Afastada tal hiptese, ho de existir sempre outras
entidades de notria representatividade que sero admitidas
ao processo dependendo do tema discutido. o caso das
associaes de magistrados, de advogados, de outros
profissionais liberais etc, quando o ato normativo em questo
cinje-se atividade por estas entidades desenvolvidas.
Oportuno ressaltar que essa representatividade no
haver de ser nacional j que a lei no traz consigo tal requisito.
b) relevncia da matria: quis o legislador que o
interessado demonstrasse a relao de relevncia entre a matria
discutida e a atividade perseguida pela instituio. Assim h
que se afigurar o interesse jurdico no desfecho da causa a
favor ou contra uma das partes, frisando-se, no entanto, a
inexistncia de regras precisas sobre os critrios a serem
observados, cabendo to somente ao relator analisar e concluir
se presente ou no a relevncia da matria.
Essa falta de regulamentao no ocorre na Suprema
Corte Norte-Americana que dispe acerca da participao de
terceiros nos processos que esto submetidos ao seu julgamento
atravs da Rule 37, constante do seu regimento interno, a qual
contm as seguintes disposies precisas sobre a admissibilidade
do amicus curiae e condies de seu exerccio, entituladas de
Brief for an Amicus Curiae, que consideramos interessantes e
que poderiam ser utilizadas no Brasil, com as devidas
adaptaes:
1. O reconhecimento pela Corte da importncia
do instituto, uma vez que o amicus curiae deve
trazer matria relevante (relevant matter), ainda

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 171

no agitada pelas partes (not already brought to its


attention by the parties). Esse dispositivo alerta para
a necessidade em que a matria de fato seja
relevante e indita para que no sobrecarregue a
Corte;
2. O amicus curiae deve trazer por escrito o
assentimento das partes em litgio. Caso isto lhe
seja negado ter de juntar, com seu pedido, os
motivos da negao para a corte apreciar. Mesmo
que o pedido se trate apenas de sustentao oral,
essencial esse consentimento das partes;
3. O Solicitor General (Solicitador Geral, assistente
do procurador-geral) no necessita de consenti-
mento das partes para intervir em nome da Unio.
O mesmo tratamento dispensado a outros
representantes de rgos, quando legalmente
autorizados;
4. O arrazoado no pode ultrapassar cinco
pginas; e
5. Em sendo o caso, o amicus necessita de
procurao e efetuar o preparo, salvo, se a
entidade for considerada isenta (SOUZA, 2002).

3 DEMAIS ASPECTOS RELEVANTES

3.1 Da natureza jurdica

por demais consabido que o processo de controle


abstrato da constitucionalidade tem a caracterstica da
objetividade j que no envolve situaes jurdicas de carter
individual, restringindo-se, portanto, guarda da Constituio.
Como conseqncia imediata temos a vedao genrica
inter veno de terceiros em feitos de tal natureza
(BINENBOJM, 2004).

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172 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

Muito embora a Lei 9868/99 tenha seguido esse


entendimento ao estabelecer em seu art. 7 a impossibilidade
de interveno de terceiros nos processos de controle direito
da constitucionalidade, e o regimento interno do STF traga
consigo a proibio de assistncia, o 2 do mesmo artigo
mitigou o sentido absoluto dessa vedao.
Com isso a doutrina entra em choque ao tentar
estabelecer qual seria a natureza jurdica do amicus curiae que,
se de um lado entende como sendo uma forma qualificada de
assistncia, doutra banda fica externado o entendimento de
que se trata de um terceiro especial ou de natureza excepcional
que no se confunde com a assistncia ou qualquer outra forma
de interveno de terceiros prevista no Cdigo de Processo
Civil (BUENO FILHO, 2002; BINENBOJM, 2004).
Esse ltimo entendimento nos parece mais sensato,
motivo pelo qual o adotamos, com respaldo em manifestaes
recentes e uniformes do STJ e STF, a saber:

AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALI-
DADE. INTERVENO PROCESSUAL DO
AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI N
9.868/99 (ART. 7, 2). SIGNIFICADO
POLTICO-JURDICO DA ADMISSO DO
AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE
CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE
CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE
ADMISSO DEFERIDO.
No estatuto que rege o sistema de controle
normativo abstrato de constitucionalidade, o
ordenamento positivo brasileiro processualizou
a figura do amicus curiae (Lei n/ 9868/99, art.
7, 2), permitindo que terceiros desde que
investidos de representatividade adequada
possam ser admitidos na relao processual, para

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 173

efeito de manifestao sobre a questo de direito


subjacente prpria controvrsia constitucional.
A admisso de terceiro, na condio de amicus
curiae, no processo objetivo de controle
normativo abstrato, qualifica-se como fator de
legitimao social das decises da Suprema Corte,
enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza,
em obsquio ao postulado democrtico, a
abertura do processo de fiscalizao concentrada
de constitucionalidade [...] (STF, ADIn 2.130-
SC, 2001)

Essa adjetivao de terceiro especial dispensada ao


amicus curiae traz consigo uma srie de prerrogativas processuais
que sero aprofundadas no item seguinte.

3.2 Das questes processuais mais relevantes

Na qualidade de terceiro especial, o amicus curiae


carrega consigo uma srie de prerrogativas processuais.
A primeira delas a de apresentar manifestao escrita
sobre as questes de seu interesse. Ao contrrio do memorial
entregue nos gabinetes dos magistrados pelo colaborador
informal, prtica rotineiramente utilizada anteriormente, essa
manifestao escrita do amicus curiae consta formalmente dos
autos, no podendo ser ignorada pelo Tribunal.
Tambm para o amicus curiae mostra-se necessrio ao
postulante se fazer representar por profissional habilitado para
o exerccio da advocacia. Justifica-se tal assertiva tendo em vista
que a lei no prev qualquer exceo nesse sentido, o que
corrobora a necessidade de o jus postulandi ser exercido por
causdico. Alm disso, tal exigncia poderia ser considerada
at mesmo bvia j que a matria em anlise exigir a utilizao
de argumentos tcnicos.

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174 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

No que pertine ao momento propcio para o ingresso


do amicus curiae no processo, a doutrina unssona em afirmar
que tal poder se dar a qualquer tempo, desde que antes do
julgamento da ao, muito embora existam posicionamentos
menos formalistas, elencados em excelente trabalho de
Binenbojm, que entendam ser permitido ao Tribunal ouvir as
razes dos amici curiae, ainda que apenas via sustentao oral,
durante a sesso de julgamento (BUENO FILHO, 2002;
BINENBOJM, 2004).
Entendemos essencial deixar evidente a distino entre
o momento processual para a postulao do amicus curiae com
o objetivo de ingressar nos autos, ao qual nos referimos, do
prazo processual que o mesmo dispe para protocolizar sua
manifestao escrita aps j ter sido admitido na qualidade de
amicus curiae por deciso do relator. Nesse caso estabelece o
2 do art. 7 da Lei da ADIN que o prazo para apresentao
dessa manifestao escrita o mesmo previsto no art. 6
pargrafo nico da mesma lei, qual seja, 30 dias.
No que pertine possibilidade de sustentao oral, o
Supremo Tribunal Federal reviu seu entendimento anterior
passando a admiti-la pelos advogados de amici curiae
regularmente habilitados nos autos, conforme se extrai do
louvvel voto do Ministro Celso de Mello na ADIN 2777-8/
SP, verbis:
[...] entendo que a atuao processual do amicus
curiae no deve limitar-se mera apresentao de
memoriais ou prestao eventual de informaes
que lhe venham a ser solicitadas.
Essa viso do problema que restringisse a exten-
so dos poderes processuais do colaborador do
Tribunal culminaria por fazer prevalecer, na
matria, uma incompreensvel perspectiva
reducionista, que no pode (nem deve) ser aceita
por esta Corte, sob pena de total frustrao dos

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 175

altos objetivos polticos, sociais e jurdicos visados


pelo legislador na positivao da clusula que,
agora, admite o formal ingresso do amicus curiae
no processo de fiscalizao concentrada de
constitucionalidade.
Cumpre permitir, desse modo, ao amicus curiae,
em extenso maior, o exerccio de determinados
poderes processuais, como aquele consistente no
direito de proceder sustentao oral das razes
que justificaram a sua admisso formal na causa
(STF, ADIn 2.777-8, 2003, grifo nosso).

Analisadas as possibilidades de manifestao, seja por


escrito ou sustentao oral, resta esclarecer da legitimidade do
amicus curiae em manejar recursos.
Pela redao do art. 7, 2 da Lei de ADIN, resta patente
que a deciso positiva que admitiu o ingresso do amicus curiae
irrecorrvel ex lege. Todavia h que se cogitar da possibilidade
de impugnao dessas decises desde que causem certo prejuzo
ao processo como um todo, a exemplo daqueles casos em
que admitido um nmero excessivo de amici. Nesse caso,
alguns doutrinadores entendem pela possibilidade de
impugnao da deciso do relator, muito embora de natureza
positiva (DEL PR, 2004).
Ainda sob a tica do artigo ora elencado, resta evidente
a possibilidade do amicus curiae recorrer daquela deciso que
indeferiu o seu ingresso na ADIN, isso porque, de acordo
com o texto legal, irrecorrvel somente a deciso que admitir
o amicus curiae o que, conseqentemente, nos leva a crer que,
por excluso, perfeitamente cabvel recurso contra deciso
denegatria, ou negativa, de ingresso do amicus curiae no
processo.
Finalmente, a doutrina sinaliza tambm positivamente
para a possibilidade do amicus curiae manejar agravo regimental

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176 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

contra decises interlocutrias do relator, assim como


embargos de declarao contra os acrdos cautelares e de
mrito e recurso especial e extraordinrio em sede de controle
abstrato estadual (BINENBOJM, 2004).

4 CONCLUSO

A Lei n 9.868/99, pelo que foi abordado no presente


estudo, propiciou com a utilizao do amicus curiae uma
abertura no processo de interpretao constitucional,
conferindo ao processo objetivo de controle abstrato de
constitucionalidade um sentido pluralista.
Resta patente que com a admisso do referido instituto
foi permitido que grupos sociais participem ativamente das
decises do Supremo Tribunal Federal que afetam seus
interesses, beneficiando-se, em contrapartida, do conhecimento
das posies daqueles que vivenciam a realidade constitucional
e sofrem a incidncia da lei objeto do controle. Assim o cidado
comum, desde que comprovada a representatividade e relevn-
cia do tema, transporta-se para a posio de intrprete da
Constituio e das leis, abandonando a sua inrcia habitual
de simples destinatrio das normas em temas que lhe so
extremamente importantes.
Paralelamente, o amicus curiae amplia o direito de defesa
e refora o princpio do contraditrio, haja vista a permisso
de ingresso de entidade representativa, no qualificada
constitucionalmente, munida do poder de manifestar-se com
intuito de obter uma deciso com fora erga omnes, favorvel a
sua tese, o que se mostrava at ento impossvel.
Entendemos, portanto, que louvvel instituto pode vir
a ser forte instrumento na luta dos grupos sociais para a
incorporao, no mundo do direito, das pessoas que lhe
representam, assim como forma de ter sua identidade
reconhecida, vez que toda sua fundamentao repousa na

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AMICUS CURIAE: PLURALIZAO DO DEBATE CONSTITUCIONAL 177

garantia do princpio democrtico de participao social, e


do reconhecimento da diversidade dentro da sociedade e de
seus reflexos na produo jurdico/doutrinria, que no pode
ser limitada s informaes prestadas pelo Ministrio Pblico
e pelos rgos ou autoridades de onde se originou a lei ou ato
normativo impugnado.
Por fim, cabe sociedade contribuir para que a Suprema
Corte confirme, cada vez mais, a importncia da utilizao do
amicus curiae, possibilitando, assim, um futuro alargamento
do juzo de admissibilidade, tendo sempre a cautela de que
tal pretenso, em influir no debate constitucional, seja
antecedida de uma anlise cautelosa por parte do interessado
com vistas a coibir o uso inadequado do instituto, mirando
finalidades secundrias tais como a procrastinao da deciso,
o que significaria trazer abaixo todo o caminho at agora
conquistado.

5 REFERNCIAS

BINENBOJM, Gustavo. A dimenso do amicus curiae no


processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes
processuais e aplicabilidade no mbito estadual. Disponvel
em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 fev.
2005.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acrdo em Ao Direta


de Inconstitucionalidade n. 2.130-3-SC. Relator: Ministro
Celso Melo. Braslia, DF, 02 fev. 2001. Informativo STF 215.
Disponvel em: <http://www.femperj.org.br/juris/cons/stf/
cons90.htm>. Acesso em: 28 fev. 2005.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Acrdo


em Agravo Regimental em Ao Direta de Inconstitu-

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 159-179 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 177 29/8/2006, 20:17


178 FABIANA CARLA CANUTO SOUTO MAIOR LEMOS

cionalidade n. 748-RS. Agravante: Governador do Estado do


Rio Grande do Sul. Agravada: Assemblia Legislativa do Estado
do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Celso de Mello.
Deciso unnime. Braslia, DF, 18 nov. 1994. Disponvel em:
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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 181

O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL E SUAS
REPERCUSSES NA TEORIA
CLSSICA DA RELAO JURDICA
OBRIGACIONAL

Fabola Santos Albuquerque


Professora Adjunta do Departamento de
Teoria Geral do Direito e Direito Privado
do Centro de Cincias Jurdicas da Uni-
versidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Professora vinculada ao Programa de Ps-
Graduao do Centro de Cincias Jurdi-
cas da UFPE

SUMRIO
1 CONSIDERAES INICIAIS. 2 A RELAO JURDICA OBRIGACIONAL
SOB O PRISMA DA HORIZONTALIDADE. 3 A PREMISSA DO CONTRATO
BILATERAL. 4 A DIMENSO PRINCIPIOLGICA DO ADIMPLEMENTO SUBS-
TANCIAL. 5 O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NAS LEGIS-
LAES CIVIL E CONSUMERISTA. 6 O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
SOB O ENFOQUE JURISPRUDENCIAL. 7 CONCLUSES.

1 CONSIDERAES INICIAIS

Para melhor compreenso do instituto do adimple-


mento substancial interessante uma breve incurso pela teoria
clssica do inadimplemento.
As partes de uma relao jurdica obrigacional so
representadas pelo credor e pelo devedor. Aquele com o direito

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182 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

de exigir o cumprimento da obrigao e este com o dever de


prest-la em favor daquele. A lgica natural que haja o
cumprimento/ adimplemento da obrigao, com a devida
satisfao do interesse do credor, finalidade ltima da relao
obrigacional. Em sentido oposto h a hiptese do inadimple-
mento, ou seja, o devedor no cumpriu o seu dever de prestar,
quer de forma absoluta ou relativa (mora).
Nesse contexto clssico, se identificam duas situaes,
quais sejam: o adimplemento ou o inadimplemento
(absoluto ou relativo) do devedor. Inexiste meio termo entre
as duas. No obstante esta compreenso polarizada da
relao obrigacional tenha se perpetuado no tempo, ressalte-
se, por outro lado, a crescente efervescncia de novos
paradigmas imiscuindo-se teoria geral do direito
obrigacional, fazendo jus ao reconhecido aspecto dinmico
que lhe move.
Aspectos como o da constitucionalizao do direito civil,
da incidncia dos princpios sociais da boa-f objetiva, da
funo social e da equivalncia material nas relaes jurdicas
negociais, e das aplicaes das teorias da impreviso e da leso
dos contratos conduzem, forosamente, a uma nova compre-
enso da relao jurdica obrigacional, adequada daquela
subsumida aos postulados clssicos.
Esses novos influxos tambm contriburam para a
passagem da configurao vertical para a horizontal da relao
jurdica obrigacional, ou seja, o que antes se entendia como
superioridade do direito do credor frente ao devedor foi
relativizado e com isto passa-se a um modelo centrado na
coordenao de interesses das partes. Dessa forma no mais
e somente o interesse do credor que deve ser satisfeito, mas o
interesse do devedor tambm precisa ser levado em conside-
rao. V-se, portanto, que o paradigma clssico e polarizado
do adimplemento/ inadimplemento da relao sofre seus
primeiros abalos.

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 183

2 A RELAO JURDICA OBRIGACIONAL SOB


O PRISMA DA HORIZONTALIDADE

Quando se afirma que a relao obrigacional pautada


na coordenao ou na horizontalidade dos interesses das
partes atenua a regra do adimplemento/ inadimplemento
no sentido de evidenciar a insero de outros elementos que
passam a ser considerados e, por conseguinte, impondo uma
investigao mais acurada do porqu do inadimplemento
do devedor.
A regra do tudo ou nada apreciada sob outra perspec-
tiva. Alie-se a isto o gradativo reconhecimento que a obrigao
necessita ser vista em sua plenitude, como um processo em
que todas as fases encontram-se interligadas.
Com base nos ensinamentos de Clvis V. do Couto e
Silva, a relao jurdica obrigacional composta tanto por
elementos tidos como principais, com tambm, por aces-
srios.

A relao obrigacional pode ser entendida em sentido


amplo ou em sentido estrito. Lato sensu abrange todos
os direitos, inclusive os formativos, pretenses e
aes, deveres (principais e secundrios dependentes
e independentes), obrigaes, excees, e ainda
posies jurdicas. Stricto sensu dever-se- defini-la
tomando em considerao os elementos que
compem o crdito e o dbito[...].
A inovao, que permitiu tratar a relao jurdica como
uma totalidade, realmente orgnica, veio do conceito
do vnculo como uma ordem de cooperao,
formadora de uma unidade que no se esgota na soma
dos elementos que a compem.
Dentro dessa ordem de cooperao, credor e devedor
no ocupam mais posies antagnicas, dialticas e

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184 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

polmicas. Transformando o status em que se


encontravam, tradicionalmente, devedor e credor,
abriu-se espao ao tratamento da relao obrigacional
como um todo.
Se o conjunto no fosse algo de orgnico, diverso
dos elementos ou das partes que o formam, o
desaparecimento de um desses direitos ou deveres,
embora pudesse no modificar o sentido de vnculo,
de algum modo alteraria a sua estrutura.1

Este enfoque da relao jurdica obrigacional traz subja-


cente a importncia nuclear do princpio da boa-f objetiva e,
por via de conseqncia, demonstra a interveno do estado-
juiz mitigando, positivamente, os contedos dos princpios
clssicos da autonomia da vontade e da obrigatoriedade.
na senda do princpio da boa-f, bem como, no da
equivalncia material ou justia contratual, que a hiptese
polarizada do adimplemento/inadimplemento rende-se a uma
interpretao mais flexvel. Entre aqueles dois plos da relao
observa-se a interposio de outros institutos, a exemplo da
violao positiva do contrato e do adimplemento substancial
do contrato, os quais exigem perquirir objetivamente as causas
do inadimplemento do devedor.
Como antes dito, a anlise versar sobre o instituto do
adimplemento substancial e suas repercusses na relao
jurdica obrigacional. Para tanto, exigem-se duas premissas
essenciais, as quais sero tratadas separadamente, a saber: a
existncia de um contrato bilateral e a compreenso da relao
jurdica obrigacional como processo, lastreado pelos princpios
sociais, acima referidos.

1
Cf. A obrigao como processo. So Paulo: Jos Bushatsky, 1976.
p. 08-9.

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 185

3 A PREMISSA DO CONTRATO BILATERAL

Todo contrato bilateral traz nsita a clusula resolutiva,


expressa ou tcita, cuja materializao se verifica mediante o
inadimplemento de uma das partes. A resoluo ocorre por
conta da ruptura do sinalagma ou da quebra da base do negcio
jurdico. O CC/2002, ao se reportar extino do contrato,
contempla trs hipteses de resoluo: pelo inadimplemento,
pela exceo de contrato no cumprido e por onerosidade
excessiva.2 Em consonncia com as premissas acima indicadas,
valer-nos-emos apenas da primeira e da ltima hiptese
respectivamente.

A resoluo do contrato nem sempre se apresenta como


a soluo mais adequada, justa e desejada pelas partes. Com
base nisto que h uma preocupao crescente da doutrina e
da jurisprudncia de minorar aquele efeito drstico, aplicando,
para tanto, outros institutos capazes de dribl-lo.
O instituto do adimplemento substancial vem a calhar
nesse desiderato, pois alm de evitar a resoluo e seus efeitos,
confere ao credor a garantia da satisfao do seu interesse.
A fim de evitar subjetivismo, ao contrrio atribuir
objetivismo, na aplicao do adimplemento substancial o
parmetro, comumente utilizado, o do inadimplemento
fundamental. Quer dizer, de acordo com este critrio mister
apreciar se o inadimplemento ou no fundamental. Dessarte,
entre o adimplemento e o inadimplemento h de se verificar a
existncia ou no de um inadimplemento fundamental. Por
conseguinte, a aplicao do instituto do adimplemento
substancial tem por escopo aferir se o inadimplemento ou
no fundamental. Mas em que consiste um inadimplemento
fundamental?

2
CC/2002 arts. 474 a 480.

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186 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

A propsito, vejam-se as contribuies de Anelise


Becker:

O inadimplemento fundamental quando o


essencial da prestao no foi cumprido, pelo que
no foram atendidos os interesses do credor,
facultando-se-lhe a resoluo do negcio. Neste caso,
esta legtima porque ele se estar protegendo da
possibilidade de adimplindo integralmente, ver-se
privado da contraprestao, o que comprometeria a
economia do contrato e ensejaria o enriquecimento
ilcito do devedor inadimplemente.3

Ainda sobre a caracterizao do inadimplemento


fundamental, ressaltam-se as colaboraes de Vera Maria Jacob
de Fradera.

Para que se tenha uma compreenso exata do


conceito de inadimplemento fundamental, preciso
examin-lo vinculado a duas outras expresses, quais
sejam: prejuzo substancial e imprevisibilidade,
critrios utilizados quando se aplica o mencionado
conceito.[...]
Ocorrendo inadimplemento, ele ser fundamental
se disser respeito a uma obrigao fundamental do
contrato, e acarretar ao prejudicado , seja ele o
comprador ou o vendedor, um prejuzo
substancial[...]
A caracterizao de um dano como substancial ou
no, depender do juiz e da interpretao do caso

3
Cf. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em
perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito
UFRGS
UFRGS,, Porto Alegre, 9(1): 60-77,p. 61, nov. 1993.

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 187

concreto, mas ligado s expectativas da parte


prejudicada, levando em considerao no os
sentimentos da parte, sim os termos do contrato.4

A autora, para fundamentar sua opinio, se vale da


Conveno de Viena na lei internacional sobre vendas, que
estabelece:

Art. 25 A quebra do contrato para uma das partes


fundamental se dela resulta um prejuzo para a
outra parte a ponto de priv-la daquilo que podia
esperar do contrato, a menos que a parte
inadimplente no pudesse prever, e uma pessoa
razovel, da mesma espcie e nas mesmas
circunstncias, no tivesse podido prever tal
resultado.

Ainda sobre o tema, vejam as consideraes de Orlando


Gomes:

A resoluo como um remdio concedido


parte prejudicada com o inadimplemento
para romper o vnculo contratual. [...] A re-
soluo por inadimplemento prpria dos
contratos sinalagmticos; s se justifica quan-
do o no cumprimento tem importncia con-
sidervel. 5

4
Cf. O conceito de inadimplemento fundamental do contrato no artigo 25
da lei internacional sobre vendas, da Conveno de Viena de 1980.
Revista Direito, Estado e Sociedade, n.09. Disponvel em:
< www.puc_rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/online>.
5
GOMES,Orlando. Contratos
Contratos. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
p. 171

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188 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

Como se infere, s mediante a ocorrncia do inadimple-


mento fundamental que se rende ensejo ao direito de reso-
luo. Sem sombra de dvidas, o inadimplemento funda-
mental diz respeito a um conceito aberto, dotado de vagueza
semntica que exige do intrprete um trabalho hermenutico,
de modo, a ponderar / balancear os interesses no caso concreto.
Consoante os novos paradigmas do direito das
obrigaes, a resoluo s deve ser aplicada quando restar
configurado o inadimplemento fundamental; do contrrio, a
manuteno da clusula resolutiva alm de demonstrar apego
teoria clssica do inadimplemento colidente com a
orientao principiolgica da boa-f objetiva e do equilbrio
material. Dimenses que j integram a segunda premissa,
alhures mencionada, do adimplemento substancial.

4 A DIMENSO PRINCIPIOLGICA DO ADIM-


PLEMENTO SUBSTANCIAL

Os efeitos oriundos da resoluo dos contratos, em


grande medida, colidem com a aplicao dos princpios da
boa-f objetiva e da equivalncia material. Na maioria das vezes,
a resoluo no traz uma deciso justa s partes envolvidas,
da a incompatibilidade com a aplicao dos princpios. Estes
encerram mandatos de otimizao e como tal perquirem que
algo seja realizado na maior medida possvel. 6 Nestes termos,
as solues lastreadas nos princpios sociais contm padres
tico-jurdicos, conseqentemente, os efeitos do inadimple-
mento so atenuados e em contrapartida fortalecida a tese
da relao pautada na coordenao dos interesses das partes.
A tese do adimplemento substancial encontra funda-
mento nessa perquirio de linearidade da relao obrigacional.

6
ALEXY,Robert. Teoria de los derechos fundamentales
fundamentales. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 86.

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 189

A teoria clssica do inadimplemento precisa ser contextualizada


e amoldada aos influxos principiolgicos, de sorte a considerar
todos as vertentes (principais e acessrias) que componham a
relao obrigacional, visando alcanar uma interpretao justa
e equilibrada s partes.
Aps todas as consideraes, resta evidenciado que a
tese do adimplemento substancial se contrape ao chamado
inadimplemento fundamental. Digamos que ela est a meio
caminho do adimplemento e do inadimplemento. Se de um
lado, no houve o cumprimento conforme o esperado, por
outro, no se pode desconsiderar, por completo, o que foi
feito em favor de uma das partes.
Depreende-se que a tese do adimplemento substancial
tem um cariz extremamente prtico e serve de instrumental
para coibir abusos, a exemplo da extino que nem sempre
o destino querido pelas partes, pois, em regra, o interesse
consiste na manuteno do contrato, desde que pautado em
bases equilibrada e justa.

Comeou-se a cogitar, ento, da gravidade do


incumprimento para efeitos de outorga da
resoluo, como forma de proteger a contraparte.
E a noo de adimplemento substancial surgiu
da inverso do ponto de vista do julgador que,
de apreciar a gravidade a partir da inexecuo,
passou a considerar a execuo, a fim de determi-
nar se ela satisfazia em substncia a totalidade
das obrigaes estipuladas, apesar de sua imper-
feio. 7

Seguindo essa linha de raciocnio, temos que o


adimplemento substancial revela-se quando o essencial da

7
Anelise Becker. Op. cit, p. 63.

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190 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

prestao foi cumprido, apesar da falta de exatido no


adimplemento.
A propsito, tm-se algumas contribuies doutrinrias
sobre o tema.

O adimplemento substancial um adimplemento


to prximo ao resultado final, que, tendo-se em
vista a conduta das partes, exclui-se o direito de
resoluo.[...]
No se permite a resoluo, com a perda do que foi
realizado pelo devedor, mas atribui-se um direito de
indenizao ao credor. 8

No adimplemento substancial o essencial da


prestao foi cumprido, sendo substancialmente
satisfeito o interesse do credor que, ao pedir a
resoluo em virtude de incumprimento que no
interfere no proveito que tira da prestao, no
exerce interesse considerado digno de tutela jurdica
para o drstico efeito resolutrio.9

Por fim , a colaborao de Anelise Becker.

possvel concluir que se fazem necessrias trs


circunstncias para que determinado adimplemento
possa ser considerado como substancial. A primeira
delas a proximidade entre o efetivamente realizado
e aquilo que estava previsto no contrato. A segunda,

8
SILVA,Clvis V. do Couto e. O princpio da boa-f no Direito brasileiro e
portugus. In : FRADERA, Vera Jacob de (org.).O O Direito PPrivado
rivado
brasileiro na viso de Clvis do Couto e Silva. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997. p. 45 e 55.
9
TEIXEIRA, Slvio de Figueiredo (org.). Comentrios ao Novo Cdi-
go Civil
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. V, Tomo 1, p. 112.

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 191

que a prestao imperfeita satisfaa os interesses


do credor. A terceira (questionvel se considerar-se
o adimplemento substancial apenas sob uma tica
objetivista) refere-se ao esforo, diligncia do devedor
em adimplir integralmente.10

Fica evidenciado que a aplicao do adimplemento


substancial requer do julgador a apreciao do caso concreto
levando em considerao alguns parmetros tidos por
imprescindveis, so eles: a insignificncia do inadimplemento,
a satisfao do interesse do credor e a diligncia por parte do
devedor. Quer dizer, a verificao do inadimplemento deve
ser observado em consonncia com os princpios da boa-f
objetiva e da equivalncia material.

5 O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTAN-


CIAL NAS LEGISLAES CIVIL E CONSU-
MERISTA

No plano legal, em nenhum dos dois diplomas h


qualquer referncia expressa ao instituto do adimplemento
substancial. Pelo contrrio, o que se verifica, principalmente,
no CC/2002, a manuteno da condio resolutiva em
decorrncia do inadimplemento.11
A outra hiptese de resoluo decorrente da quebra da
base do negcio jurdico em virtude de acontecimentos
extraordinrios e imprevisveis uma inovao, mas sem perder

10
Op. cit., p. 63.
11
CC/2002 arts. 475, 478 e 479.
De qualquer maneira, a alternatividade prevista importa numa forma de
atenuar a resoluo. A crtica recai na ordem como foi tratada. Quer
dizer, a codificao civil passa a impresso que a resoluo deve ser a
primeira opo e a modificao a segunda. Enquanto a ordem correta
a inversa, a exemplo do CDC (art.6,V)

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192 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

de vista os dois elementos norteadores da teoria da impreviso.


Neste aspecto o CDC mais arejado que o CC/2002, pois
basta a ocorrncia de fatos supervenientes para ensejar a
modificao ou a reviso das clusulas contratuais.
Ressalte-se que as codificaes civil e consumerista detm
natureza principiolgica, o que favorece a harmonizao entre
os dois diplomas, pois possuem base legal comum na Cons-
tituio.

6 O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL SOB O EN-


FOQUE JURISPRUDENCIAL.

SEGURO INADIMPLEMENTO DA SEGU-


RADA - FALTA DE PAGAMENTO DA LTIMA
PRESTAO - ADIMPLEMENTO SUBSTAN-
CIAL RESOLUO A Companhia Segura-
dora no pode dar por extinto o contrato de
seguro, por falta de pagamento da ltima presta-
o do prmio, por trs razes: a) sempre recebeu
as prestaes com atraso, o que estava, alis,
previsto no contrato, sendo inadmissvel que
apenas rejeite a prestao quando ocorra o
sinistro; b) a seguradora cumpriu substancialmen-
te com a sua obrigao, no sendo a sua falta
suficiente para extinguir o contrato; c) a resoluo
do contrato deve ser requerida em juzo, quando
ser possvel avaliar a importncia do inadimple-
mento, suficiente para a extino do negcio.
Recurso conhecido e provido. REL. Ministro
Ruy Rosado de Aguiar. julgado:11-12-1995 REsp
0076362/95-MT 4 Turma - DJU-01.04.1996
pg. 09917 Acrdo Nmero: 25285
Processo: 0274773-9 Apelao (Cv) Cvel
Ano: 1999 -Comarca: Belo Horizonte/Siscon

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 193

Origem: Tribunal de Alada do Estado de Minas


Gerais rgo Julgador: Stima Cmara Cvel
Relator: Juiz Antnio Carlos Cruvinel Data
Julgamento: 04/03/1999 Deciso: Unnime

EMENTA: CONTRATO DE SEGURO -


PARCELAS DO PRMIO EM ATRASO -
CLUSULA QUE AUTORIZA A SEGU-
RADORA A RECUSAR O PAGAMENTO DA
INDENIZAO PREVISTA NA APLICE E
PLEITEADA PELO SEGURADO - NULIDADE
DA CLUSULA - ART. 1.450 do C. CIVIL E
ART. 5I, CAPUT E 1 DO CDC. O atraso no
pagamento de parcelas do prmio autoriza o
segurador a cobr-las com juros da mora, con-
forme dispe o art. 1450 do C. Civil. No
faculta, porm, a unilateral resciso do contrato
ou a suspenso de sua eficcia, pelo segurador,
quanto ao direito do segurado ao ressarcimento
garantido pela aplice. nula de pleno direito a
clusula que, por falta de pagamento de parcelas
do prmio, autoriza a resciso unilateral do
contrato ou a suspenso da sua eficcia quanto
ao direito do segurado ao ressarcimento previsto
na aplice. Tal clusula abusiva, visto que deixa
o segurado em desvantagem exagerada e rompe,
assim, o equilbrio contratual em benefcio da
seguradora (CDC, art. 51, caput, e 1, inciso
II). Deciso: NEGAR PROVIMENTO.

Acrdo Nmero: 22532 -Processo: 0271573-7


Apelao (Cv) Cvel -Ano: 1999 Comarca: Alfena
-Origem: Tribunal de Alada do Estado de Minas
Gerais -rgo Julgador: Terceira Cmara Cvel -

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194 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

Relator: Juiz Duarte de Paula. Data Julgamento:


10/02/1999 -Dados Publicados: RJTAMG 74/
244 Deciso: Unnime

Ementa: SEGURO - INADIMPLEMENTO -


MORTE DO SEGURADO - INDENIZAO
DEVIDA - CONTRATO DE ADESO -
CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR -
DEVIDA A INDENIZAO DECORRENTE
DE SINISTRO, MESMO NO CASO DE
ESTAR O SEGURADO EM ATRASO COM
A PRESTAO DO PRMIO, POIS SEGUN-
DO PREVISO LEGAL DA MATRIA CABE
APENAS O PAGAMENTO DE ENCARGOS
DECORRENTES DA MORA E NO A
RESOLUO CONTRATUAL PELO INA-
DIMPLEMENTO DO SEGURADO. INTER-
PRETAM-SE RESTRITIVAMENTE EM
RELAO COMPANHIA SEGURADORA,
E BENEFICAMENTE AO SEGURADO, AS
CLUSULAS CONSTANTES DE CONTRA-
TO DE ADESO, MORMENTE PORQUE
NO MOMENTO DA CELEBRAO A
PARTE ADERENTE A MAIS FRACA E NO
DISPE, MUITAS VEZES, DE INTELECO
SUFICIENTE PARA COMPREENDER O
SENTIDO E AS CONSEQNCIAS DA
ESTIPULAO CONTRATUAL. Publicao:
Fonte: RJTAMG - N: 74 - PG: 244 - Ano: 1999
Deciso: NEGAR PROVIMENTO AO AGRAVO
RETIDO E APELAO.

PROMESSA DE COMPRA E VENDA.


OUTORGA DE ESCRITURA. PAGAMENTO

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 181-196 jan./jun. 2005

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O INSTITUTO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUAS REPERCUSSES... 195

DO PREO. APLICAO DO PRINCPIO


DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO
CONTRATO Tendo a parte demandante, quan-
do do ajuizamento da ao, cumprido com a sua
obrigao prxima do resultado final, ao que,
por derradeiro, acabou in totum adimplido no
tramitar da ao, impem-se, na justa soluo do
caso em concreto, o acolhimento da pretenso.
Apelo provido. (Apelao Cvel n 70003498169
19 Cmara Cvel Tramanda Rel. Des.
Guinther Spode Julgada em 07-04-02)

Aps a apreciao de todos os acrdos, chama-se


ateno para o fato de no ter havido, por parte dos julga-
dores, nenhuma ciso entre os contratos civis e de consumo,
em particular para a aplicao dos princpios sociais. Alie-se
ainda o fato que alguns julgados so anteriores ao Novo
Cdigo Civil, demonstrando o papel transformador da
jurisprudncia.
Paulo Lbo tambm chama ateno para esse fenmeno
de aproximao entre as legislaes civil e consumeirista. A
respeito disto vejam-se as consideraes do autor:

Os princpios sociais adotados aproximam, muito


mais do que se imaginava, os dois cdigos. A
tendncia, portanto, o desaparecimento progres-
sivo da distino dos regimes jurdicos dos contratos
comuns e dos contratos de consumo, ao menos no
que concerne a seus princpios e fundamentos
bsicos.12

12
Cf. princpios sociais dos contratos no Cdigo de Defesa do Consumi-
dor e no novo Cdigo Civil. Revista de Direito do Consumidor
Consumidor,, n.
42, abr./jun. 2002, p. 190.

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196 FABOLA SANTOS ALBUQUERQUE

7 CONCLUSES

A aplicao do instituto do adimplemento substancial


enseja uma interpretao diferenciada da relao jurdica
obrigacional, em particular em sede de inadimplemento. A
situao polarizada entre o adimplemento e o inadimplemento
sofre limitaes positivas de contedo com a incidncia dos
princpios sociais da boa-f objetiva e da equivalncia material.
O efeito da condio resolutiva, por ocasio do
inadimplemento da obrigao, no condiz com o cariz princi-
piolgico que hodiernamente norteia as relaes contratuais,
pois em grande medida, no traz a justeza e nem sempre o
destino querido pelas partes.
A relao jurdica obrigacional deve ser compreendida
na dimenso de uma relao de coordenao de interesses.
Dessarte, o inadimplemento da parte precisar ser perquirido
objetivamente a fim de evitar abusos, pois a resoluo afasta a
possibilidade de manuteno do contrato e, por conseguinte,
da incidncia dos princpios sociais.
Assim, mister uma revisitao aos paradigmas clssicos
da teoria do inadimplemento, de sorte a permitir uma
compreenso contextualizada e amoldada aos influxos princi-
piolgicos, de maneira a garantir uma interpretao justa e
equilibrada da relao. Desse modo, enfatiza-se que a resolu-
o somente cabvel na hiptese de inadimplemento funda-
mental, pois do contrrio, deve-se aplicar a tese do adimple-
mento substancial e assegurar a interpretao com base nos
princpios da boa-f objetiva e da equivalncia material.
Ressalta-se, por fim, a relevante contribuio da jurispru-
dncia nesse papel transformador do Direito, mediante o
compromisso de interpretao da legislao civil com base na
Constituio e nos princpios.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 197

O JULGAMENTO ANTECIPADO
PARCIAL DO MRITO

Hailton Gonalves da Silva


Juiz de Direito do Estado de Pernambuco e
Ps-Graduado em Direito Processual pela
Universidade Potiguar em convnio com o
Centro de Ensino, Consultoria e Pesquisa.

SUMRIO
1 INTRODUO. 2 O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRI-
TO. 2.1 A Origem da Previso. 2.2 A Localizao Topogrfica do Disposi-
tivo. 2.3 Incontrovrsia e Antecipao. 2.4 Hipteses de Aplicao e Mo-
mento Procedimental. 2.5 Tipo de Deciso e Coisa Julgada. 2.6 Efetivao
e Recurso. 3 CONCLUSO.4 REFERNCIAS

1 INTRODUO

O julgamento antecipado da parte incontroversa


assunto bastante palpitante, tendo em vista envolver diversas
outras questes jurdicas, inclusive, questes que afetam
fortemente o social, como a efetividade do processo.
Um Judicirio burocrtico e excessivamente litrgico
dificulta sobremodo a efetividade do processo.
Costuma-se afirmar que o Judicirio uma das institui-
es mais conservadoras e lentas no que diz respeito a mudan-
as, todavia, os diversos ramos da cincia jurdica vm passando
por mudanas e tais mudanas tm afetado o Poder Judicirio
e todos os profissionais do direito.

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198 HAILTON GONALVES DA SILVA

Estamos vivendo numa poca em que se objetiva a


manuteno da convivncia social, a paz pblica. Em que se
busca a revalorizao do ser humano. Em que se almeja,
tambm, qualidade de vida.
H certa evoluo na comunicao por conta, inclusive,
de uma supervalorizao da informao.
Ou seja, os valores esto mudando. Alis, em filosofia
se diz que valor diz respeito no indiferena do ser, ao dever
ser. Ora, as necessidades esto mudando.
Desta forma, no se pode perder de vista a necessidade
que o Direito Processual, atravs da produo de novas legis-
laes, seja dotado de mecanismos para facilitar a tramitao
processual no tocante a tempo utilizado e qualidade, custo e
benefcio.
Ainda, recentemente, a AMB - Associao dos Magis-
trados Brasileiros apresentou ao Congresso Nacional
propostas de mudanas na legislao infraconstitucional com
o objetivo de agilizar a prestao jurisdicional, na esperana
de que a Reforma do Judicirio no seja apenas cosmtica,
mas efetiva.
O processo deve promover a pacificao social, ou seja,
a justia e a paz precisam se beijar, na expresso de certo cancio-
neiro veterotestamentrio,1 e para tal desiderato ser preciso
no se abrir mo da luta pela efetividade processual.
Pois bem, inegvel que com a recente reforma do
Cdigo de Processo Civil, proporcionada pela Lei n 10.444/
2002, avanou-se um pouco mais no que diz respeito tutela
antecipatria, pois esta passou a no ser apenas fruto de uma
cognio sumria; podendo o juiz utilizar, desde ento, a
cognio exauriente ao analisar a incontrovrsia porventura
existente em pedido ou parcela de pedido da demanda, ex vi
do 6, do art. 273.

1
Salmo dos filhos de Core. Bblia Sagrada: Sl 85.10.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 199

Nesta linha de raciocnio, coloca-se a seguinte questo:


concebvel a parte ficar esperando ver realizado o seu direito
quando este no dependa mais de demonstrao em juzo,
em nome do dogma processual da unidade do julgamento?
Continuar permitindo tal situao significaria penalizar a parte
duas vezes: pelo indesfrute do bem de vida e pela longa espera
at que conseguisse o provimento final.
Com a tcnica de julgamento parcial do mrito, deu-se
um grande passo para se romper com o dogma da unidade do
julgamento, facilitando, assim, a prestao jurisdicional quanto
celeridade, eficcia e efetividade, cujo tempo razovel do
processo est hoje erigido categoria de direito fundamental
pela Emenda Constitucional n 45.

2 O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO


MRITO

2.1 A Origem da Previso

Estatui o Pergaminho Processual Civil (art. 273, 6):


A tutela antecipada tambm poder ser concedida quando um ou
mais pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.

O dispositivo em comento tem sua inspirao no livro


Tutela antecipatria, julgamento antecipado da lide e execuo
imediata da sentena, publicado pela Editora Revista dos
Tribunais, da lavra do professor da Universidade do Paran
Luiz Guilherme Marinoni, que foi influenciado, por sua vez,
pelo direito italiano.

Urge relembrar o que j ensinava o referido mestre


(MARINONI, 2000b, p. 142):
Antes da introduo da tutela antecipatria no
Cdigo de Processo Civil no era possvel a ciso

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200 HAILTON GONALVES DA SILVA

do julgamento dos pedidos cumulados, ou o


julgamento antecipado de parcela do pedido,
prevalecendo o princpio chiovendiano della unit
della decisione.
Este princpio, elaborado h muito, no se concilia
com a atual leitura de outros princpios igualmente
formulados por Chiovenda, especialmente com o
princpio de que o processo no pode prejudicar o
autor que tem razo.
Se um dos pedidos apresentados pelo autor est ma-
duro para o julgamento, seja porque diz respeito
apenas a matria de direito, seja porque independe
de instruo dilatria, a necessidade, cada vez mais
premente, de uma prestao jurisdicional clere e
efetiva justifica a quebra do velho princpio da unit
e unicit della decisione.
A tutela antecipatria, neste caso, estar antecipando
o momento do julgamento do pedido. A tutela no
fundada em cognio sumria, mas sim em
cognio exauriente, produzindo coisa julgada
material. No se trata, obviamente, de condenao
parcial ou de coisa julgada parcial, conceitos que
vm sendo elaborados pela doutrina italiana mais
moderna a partir de idias hauridas em Carnelutti,
mas que dizem respeito a outras situaes, como a
da condanna generica.
Note-se que, se possvel a tutela antecipatria, com
base em probabilidade, do direito postulado pelo
autor (por exemplo, tutela antecipatria fundada na
tcnica monitria), no h explicao razovel para
no se admitir a realizao imediata de um dos
direitos postulados pelo autor no caso em que ele
no mais controvertido.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 201

Como se observa, o legislador bebeu exatamente da


boa fonte ora descrita.
Rogria Dotti Doria, por seu turno, tambm tem uma
obra intitulada A tutela antecipada em relao parte incontroversa
da demanda, em que aborda o assunto, no obstante ter sido
editada antes da Lei n 10.444/2002.

2.2 A Localizao Topogrfica do Dispositivo

A tcnica do julgamento antecipado da parte


incontroversa est mais para a modalidade de julgamento
conforme o estado do processo (arts. 329 a 331 do CPC), como
observa Didier Jr. (2003a, p. 236).
Foroso concordar com o referido autor, pois essa
teria sido a melhor localizao topogrfica para o dispositivo
em apreo.
Imaginando a localizao do julgamento da parte
incontroversa no captulo atinente ao julgamento conforme o
estado do processo, ele traa o seguinte roteiro (DIDIER JR,
2003a, p. 236/237):

Aps cumpridas as providncias preliminares (arts.


323 a 327), ou no havendo necessidade delas, o
magistrado examinar o processo para que tome
uma dessas decises: a) extingue-o sem julgamento
do mrito (art. 267, c/c o art. 329 do CPC); b)
extingue-o com a resoluo do mrito, em razo
de autocomposio total (art. 269, II, III e V, c/c o
art. 329 do CPC); c) extingue-o com julgamento
do mrito pela verificao da ocorrncia da
decadncia ou prescrio (art. 269, IV, c/c o art.
329 do CPC); d) julga antecipadamente a causa
(art. 330 do CPC); e) resolve parcialmente o mrito,
seja em razo de autocomposio parcial, seja

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202 HAILTON GONALVES DA SILVA

porque possvel o julgamento antecipado parcial


(art. 273, 6); f) marca audincia preliminar de
conciliao (art. 331 do CPC); g) no sendo o caso
de audincia preliminar, determina imediatamente
a realizao da audincia de instruo e julgamento,
proferindo o chamado despacho saneador,
ordenando o processo para a fase probatria (art.
331, 2, do CPC).

Deve-se ter em mente, contudo, que o dispositivo


relativamente ao julgamento da parte incontroversa est
localizado no artigo concernente antecipao dos efeitos
da tutela, e como tal deve ser tratado, dependendo, in-
clusive, para sua realizao, que haja pedido da parte,
provocao esta desnecessria quando se trata de julgamento
antecipado da lide, por exemplo. Ou seja, nessa linha de
raciocnio, o legislador criou nova modalidade de tutela
antecipada, cujo rol antes se restringia s hipteses previstas
no art. 273, I e II.

2.3 Incontrovrsia e Antecipao

Os elementos da ao, que Leonardo Jos Carneiro da


Cunha prefere chamar elementos da demanda, por entender que
a ao consiste nesse direito ou poder de provocar o provimento
jurisdicional, a demanda exsurge como o ato por meio do qual o
provimento pleiteado (2003, p.110), so: as partes, a causa de
pedir e o pedido.
Tais elementos so de conhecimento basilar do direito,
todavia, v-se necessrio traar algumas consideraes aqui a
respeito do petitum.
O pedido do autor chamado de objeto da ao
(SANTOS, 1999, p. 163), constituindo o mrito ou a
pretenso.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 202 29/8/2006, 20:17


O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 203

O pedido formulado pela parte autora ou demandante,


em decorrncia do princpio da demanda (CPC, arts. 2 e
262), quanto a um bem de vida pretendido.
O pedido imediato e mediato.
O pedido imediato consiste na providncia jurisdicional
solicitada quanto a uma declarao, (des)constituio,
condenao, ou mesmo, uma providncia executiva, cautelar,
mandamental ou preventiva.
O pedido mediato diz respeito ao bem que a parte
autora quer alcanar, seja material ou imaterial. o que se
pretende efetivamente ganhar no final da demanda.

Por que falar desses conceitos introdutrios e at


propeduticos? A fim de se pensar a respeito da cumulao de
pedidos e do pedido decomponvel.
Mais uma vez, convm mencionar Cunha (2003, p. 112)
que, com base em Jos Carlos Barbosa Moreira e Jos Rogrio
Cruz e Tucci, sintetizou muito bem a matria:

Do mesmo modo, havendo mais de um pedido


imediato e/ou mais de um pedido mediato, exsurgir
igualmente uma cumulao objetiva de demandas.
[...].
Quanto cumulao objetiva, poder ser superveniente
ou na hiptese de ser intentada ao declaratria
incidental, oposio, reconveno ou no caso de
ser formulado um pedido contraposto na contestao,
tal como ocorre nas chamadas aes dplices. Em
tais hipteses, haver mais de uma demanda num
nico processo.
Ainda no que respeita cumulao objetiva, poder
ser simples, quando o acolhimento de um pedido
no depende do acolhimento ou da rejeio do
outro, ou ser sucessiva, caso em que o acolhimento

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

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204 HAILTON GONALVES DA SILVA

de um pedido depende do acolhimento do outro, a


exemplo do que ocorre com a investigao de
paternidade e a petio de herana. No ocioso
lembrar haver casos de cumulao objetiva em que
o autor formula dois ou mais pedidos, para obter
apenas um deles. o que sucede nas hipteses de
cumulao alternativa (CPC, art. 288) e de cumulao
eventual (CPC, art. 289).
As hipteses de cumulao simples e de cumulao
sucessiva so denominadas de casos de cumulao prpria,
justamente porque, nelas, o que se pretende o
acolhimento conjunto de mais de um pedido, ao passo
que as hipteses de cumulao alternativa e de
cumulao eventual so chamadas de casos de cumulao
imprpria, exatamente porque, nelas, o que se postula
apenas o acolhimento de um dos pedidos formulados.

Feitas tais observaes e pela dico do 6 do art. 273


do CPC, a concluso que se aplicar este dispositivo apenas
aos casos de cumulao prpria, porque neles se objetiva o
acolhimento conjunto de mais de um pedido na demanda.
Todavia, ser possvel, tambm, nos casos em que o objeto da
demanda seja decomponvel, ou seja, muito embora haja um
s pedido, seja possvel a separao dos elementos constitutivos
do mesmo.
Superada a questo, permite-se mencionar o outro lado
da moeda, a contestao.
O ordenamento ptrio, salvo excees legalmente
previstas, probe a contestao genrica. Vejamos:

Art. 302. Cabe tambm ao ru manifestar-se


precisamente sobre os fatos narrados na petio
inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos no
impugnados, salvo:

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 204 29/8/2006, 20:17


O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 205

I se no for admissvel, a seu respeito, a confisso;


II se a petio inicial no estiver acompanhada
do instrumento pblico que a lei considerar da
substncia do ato;
III se estiverem em contradio com a defesa,
considerada em seu conjunto.

o princpio da eventualidade, cabendo ao ru


contestar especificamente, na oportunidade legal, todos os
fatos alegados pela parte autora, sob pena de serem tidos
por verdadeiros.
As excees esto descritas nos incisos, no carecendo
de maiores comentrios, enquanto o pargrafo nico do
mesmo dispositivo excepciona, tambm, da presuno de
veracidade, o advogado dativo, o curador especial e o rgo
do Ministrio Pblico, caso no contestem especificamente
todos os pedidos formulados.
para se concordar com DORIA (2000, p. 70), para
quem,
O nus da impugnao especfica justifica-se na
medida em que as partes devem colaborar com a
prestao da tutela jurisdicional. Contestando
precisamente todos os fatos alegados pelo autor - ou
deixando de apresentar contestao em relao a
alguns deles - o ru auxilia o magistrado a fixar os
limites da controvrsia. Ao rgo julgador fica muito
mais fcil a apreciao da causa a partir do momento
em que se delimita exatamente a lide.
Por outro lado, a precisa fixao do objeto da contro-
vrsia fundamental para uma maior agilizao do
processo. A inexistncia de discusso entre as partes
a respeito de um fato ou de uma parte do pedido
pode (e deve) levar antecipao da tutela. No h
motivo para que o autor tenha de aguardar o fim do

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

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206 HAILTON GONALVES DA SILVA

processo para obter a satisfao de um direito j


reconhecido pelo ru, por exemplo.

Urge observar, outrossim, que a contestao com


respostas evasivas no torna os fatos controvertidos, e ainda
pode ser considerada como deslealdade processual por estar
gerando prejuzo celeridade processual e ao direito do autor.
Por outro lado, na nossa legislao de ritos, a confisso,
a revelia e a no contestao, em relao a direitos indisponveis,
no produzem resultados desfavorveis ao demandado.
Feitas estas observaes, se a parte r, ao contestar a
petio inicial, silenciar quanto a algum ponto ou pedido,
tal pedido ou ponto passar a ser incontroverso; mas se
contestar especificamente determinado ponto, este passar a
ostentar o status de questo, ou seja, passar a ser um ponto
controvertido, devendo ser instrudo e julgado aps a
instruo probatria.
Ademais, se no houver contestao, acontecer a revelia
e, conseqentemente, incontrovrsia acerca de todos os fatos
narrados pela parte autora na exordial.
Assim, s no haver incontrovrsia nos casos ora
citados, nas hipteses pictoricamente estampadas nas molduras
dos arts. 302 e 320 do Cdigo Adjetivo.
evidncia, a confisso quanto a um ou mais fatos
tambm levar desnecessidade de produo de provas quanto
aos fatos confessados, nos termos do art. 334, II, do Cdigo
de Processo Civil.
Ora, a incontrovrsia gera no magistrado um juzo de
certeza. E esta certeza muito mais que um juzo de cognio
sumria, como nos casos da antecipao dos efeitos da tutela
relativamente aos incisos I e II, do art. 273.
Aqui reside uma diferena entre a antecipao prevista
no 6 do art. 273 com a antecipao prevista nos incisos I e
II do mesmo artigo. Enquanto o julgamento antecipado da

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Sem ttulo-6 206 29/8/2006, 20:17


O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 207

parte incontroversa produz coisa julgada material, tendo em


vista ser de cognio exauriente, a antecipao dos efeitos da
tutela, de cognio sumria, pode ser revogada a qualquer
tempo antes da sentena.
Didier Jr. (2003a, p. 237) faz uma observao interes-
sante a respeito da incontrovrsia:

A controvrsia das partes pode dar-se no plano do


direito e/ou no plano dos fatos, o que tambm
acontece, por suposto, com a incontrovrsia. A
incontrovrsia ora examinada no aquela a que se
refere o art. 334, III, do CPC, que diz respeito apenas
aos fatos e tem por efeito jurdico a dispensa da
prova. Trata-se, aqui, de incontrovrsia quanto ao
objeto do processo - conseqncias jurdicas deseja-
das pelo demandante [...].

Em funo do dito, pergunta-se: que tutela antecipada


esta prevista no art. 273, 6?
Certamente no se trata de julgamento antecipado da
lide (art. 330), pois tal instituto utilizado, conforme j visto,
para resolver toda a questo vexametosa posta em juzo atravs
da petio inicial, e no parte da demanda, j que o nosso
sistema no permite, em casos assim, a existncia de duas
sentenas.
Na verdade, enquanto a localizao do 6 for no art.
273 do Codex Processual Civil, no obstante as opinies
contrrias, pela semelhana que tem com o julgamento
antecipado da lide, e at mesmo, pelos exemplos prticos que
se tem sobre o fracionamento do julgamento em nossos
Fruns, a novidade continuar sendo outra modalidade de
antecipao dos efeitos da tutela.

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208 HAILTON GONALVES DA SILVA

2.4 Hipteses de Aplicao e Momento Procedimental

A antecipao dos efeitos da tutela prevista no 6, do


art. 273, do Cdigo de Processo Civil, conforme j mencio-
nado alhures, no baseada em juzo de probabilidade, ou
seja, no exige a verossimilhana atravs de prova inequvoca,
como nas hipteses descritas nos incisos I e II, do art. 273.
Aqui, o magistrado analisar mais que uma verossimilhana,
o seu juzo estar alicerado num exame de certeza.
Tampouco, para a aplicao do dispositivo no haver
necessidade de se perquirir a respeito de perigo de dano irrepa-
rvel ou de difcil reparao, nem de risco de irreversibilidade.
Para a aplicao, tambm, no necessria a presena
de manifesto propsito protelatrio do demandado.
O que ser preciso para a aplicao do julgamento
antecipado parcial do mrito?
Eis a resposta, extrada de outro texto de Didier Jr.
(2003b, p. 73):

Os nicos requisitos para sua aplicao so: a) a


incontrovrsia de um pedido formulado, ou de
parcela dele; b) a desnecessidade de realizao de
prova em audincia para determinado pedido, ou
parcela dele.

Deve-se acrescer a estes requisitos, outro, a necessidade


de haver um requerimento expresso por parte do interessado
no provimento antecipatrio.
Marinoni (2002) relaciona algumas hipteses de
aplicao do julgamento antecipado parcial do mrito:
a) quando no houver contestao e quando houver
reconhecimento jurdico (parcial) do pedido.
Pela disciplina do art. 319 do CPC, salvo as hipteses
do art. 320, se o ru no contestar a demanda, os fatos

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Sem ttulo-6 208 29/8/2006, 20:17


O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 209

articulados pelo autor sero tidos por verdadeiros. Tal


presuno, no entanto, relativa, sob pena da revelia se tornar
um mecanismo de prejuzo processual.
Nem sempre com a revelia o ru estar admitindo os
fatos afirmados pela parte autora. Caber ao juiz analisar. Pode
ser o caso de haver cumulao de pedidos, em que um ou
mais destes pedidos estejam acobertados pela exceo do art.
320 ou ento, que no obstante a contumcia, haja necessidade
de dilao probatria.
Nada obsta que tendo havido requerimento expresso,
o juiz julgue e defira antecipadamente pedido que entender
incontroverso na situao ora descrita.
claro que se os efeitos da revelia atingirem toda a
demanda, no ser preciso uma deciso antecipatria dos
efeitos da tutela quanto parte incontroversa mas, sim, ao
julgamento antecipado da lide.
Todavia, caso o demandado no conteste alguns dos
fatos narrados na petio inicial, com base no art. 302 do
CPC, ser possvel, processualmente, que tais fatos sejam tidos
como verdadeiros, com julgamento imediato, caso requerido,
posto que incontroversos, prosseguindo o processo com a
instruo e julgamento da parte contestada.
Este tipo de situao no se confunde com a deciso
prevista no art. 269, II, do CPC, porque para esta necessrio
que o reconhecimento seja total, a fim de que ocorra a extino
do feito com exame meritrio.
foroso reafirmar que a no-contestao, nos termos
previstos no art. 302, no leva automaticamente concesso
da tutela antecipada, o juiz precisar analisar se tais fatos no
contestados conduzem aos efeitos jurdicos afirmados pelo
autor. O art. 302, alm do caput, formado por trs incisos
que precisam ser observados.
Com referncia confisso, ela faz prova contra o
confitente, assemelhando-se com a no-contestao de

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210 HAILTON GONALVES DA SILVA

determinado pedido, dispensando o autor de provar o fato e


impedindo o juiz de buscar outro convencimento.
b) em parcela do pedido ou de um dos pedidos cu-
mulados.
Estando um dos pedidos cumulados (ou parcela do
pedido) pronto para o julgamento, no havendo necessidade
da produo de outras provas, no h necessidade de fazer
esperar o autor que tenha razo, julga-se, antecipando os efeitos
da tutela requerida na pea prefacial.
o caso citado pela doutrina a respeito do autor que
possui provas que acompanham a petio inicial quanto ao
registro de certa marca em seu nome, mas que est sendo usada
pelo ru em embalagens, mas precisa de prova pericial para
demonstrar suas perdas e danos. Nada obsta a deciso anteci-
pada quanto parte cabalmente demonstrada em juzo.
Ou ento, o caso clssico de uma ao de cobrana, em
que o ru, citado, admite dever valor inferior ao cobrado pelo
autor. Possvel ser julgar antecipadamente o quantum no
controvertido, prosseguindo-se o feito com referncia
diferena.
No caso, o prprio pedido foi objeto de ciso, o que
perfeitamente possvel, quando o objeto do processo puder
ser decomposto.
Ao lado dessas hipteses, Pimenta (2003, p. 162/163),
cita mais duas:
a) quando o pedido estiver fundamentado em norma
invalidada pelo STF em processo de fiscalizao abstrata, ou
em Smula dos Tribunais Superiores;
b) quando o fundamento do pedido for entendimento
jurisprudencial reiterado dos Tribunais Superiores.
Com a previso agora da smula vinculante, acrescenta-
ramos outra hiptese, ou seja, pedido com fulcro em deciso
sumulada pelo Supremo Tribunal Federal com autoridade
vinculante.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 211

No tocante ao momento procedimental para a


antecipao descrita no 6, do art. 273, no h um momento
fixo, tudo depender do tipo de demanda e do que acontea
no lveo processual.
Todavia, em regra, no acontecer antes da contestao,
em vista da necessidade de se verificar a incontrovrsia,
semelhana da antecipao de um modo geral, que no deve
ser concedida antes da instaurao do contraditrio (inaudita
altera pars).
Acreditamos, todavia, que, excepcionalmente, se houver
risco em decorrncia do decurso do tempo para a resposta do
ru, de perecimento do direito do autor, estando determi-
nado pedido j devidamente comprovado nos autos, nada
obsta o seu julgamento antecipado.
A questo que se coloca : ser possvel a verificao
pelo juiz de ponto incontroverso sem que tenha acontecido a
contestao? Em nosso modesto entender sim, no obstante
ser de difcil ocorrncia na prtica forense.
Imaginemos que o autor formulou vrios pedidos, um
dos quais fundamentado em fato notrio. Ora, a regra clara:
no h necessidade de sua demonstrao, independendo, pois,
de prova (art. 334, do CPC).
Dito isto, eis um bom roteiro no que diz respeito ao
momento certo para o julgamento antecipado parcial do
mrito (PIMENTA, 2003, p.164):

Se a causa comportar julgamento antecipado (CPC,


art. 330), a antecipao poder ser deferida logo aps
a resposta do ru, na fase das providncias
preliminares. Se o processo comportar a designao
de audincia de conciliao, este ser o momento
ideal para o juiz proferir o provimento antecipa-
trio, porque neste ato ter a oportunidade de fixar
os pontos controvertidos, identificando, pois, se

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212 HAILTON GONALVES DA SILVA

existe incontrovrsia sobre os fatos alegados, ou


sobre o pedido.
Caso a demanda verse sobre direito indisponvel,
no admitindo a conciliao, o juiz poder antecipar
a tutela na audincia de instruo e julgamento,
oportunidade em que os pontos controversos sero
delimitados (art. 451).
possvel, ainda, que a incontrovrsia resulte de
confisso obtida no depoimento pessoal da parte.
Se este fato vier a ocorrer, poder o juiz antecipar os
efeitos da tutela aps a realizao da audincia de
instruo.2
Em se tratando de procedimento sumrio, o provi-
mento antecipatrio, quando cabvel, dever ser
deferido na audincia de conciliao, oportunidade
em que o juiz avaliar os pontos controvertidos a
serem objeto de instruo em nova audincia (art.
278, 2).

E se o magistrado no conceder o julgamento anteci-


pado parcial do mrito requerido pela parte? Esta dever
agravar, podendo o relator conceder o provimento negado pelo
juzo de primeiro grau.

2.5 Tipo de Deciso e Coisa Julgada

DRIA (2000, p. 98), citando Kazuo Watanabe, ensina


que, no plano vertical, a cognio pode ser superficial, sumria
e exauriente.3 Sendo que, apenas no tocante cognio exau-
riente, que se observam os requisitos para a produo de

2
Nesta situao, diz o autor, se o processo comportar a produo de
prova pericial, que demanda um razovel perodo de tempo.
3
Ver WATANABE, Kazuo. Da cognio no processo civil.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 213

coisa julgada material, pois se analisa a demanda em toda a


sua profundidade.
Partindo-se desta premissa de que a lide foi examinada
em toda a sua profundidade, no h que se falar em restrio
garantia da ampla defesa.
Todavia, bastante discutvel a produo de coisa julgada
material em antecipao dos efeitos da tutela, tanto no Brasil
como em outros pases.
DIDIER JR. (2003a, p. 238/239), dando uma viso
desmistificada do instituto, ensina:

Para que determinado pronunciamento judicial esteja


apto a ficar imune pela coisa julgada, ter ele de
preencher quatro requisitos: a) provimento h de
ser jurisdicional (a coisa julgada caracterstica
exclusiva dessa espcie de ato estatal); b) o
provimento h que versar sobre o mrito da causa
(objeto litigioso), pouco importa se o mrito tem
natureza material (regra) ou processual (rescisria
ou embargos execuo, p. ex.), bem como se o
provimento sentena, acrdo ou deciso
interlocutria; c) mrito este analisado em cognio
exauriente;
d) tenha havido a precluso mxima (coisa julgada
formal), seja pelo esgotamento das vias recursais,
seja pelo no-uso delas.
[...].
No se deve estranhar o fato de uma deciso inter-
locutria estar lastrada em cognio exauriente,
muito menos o fato de estar ela propensa coisa
julgada [...]. Nem a cognio exauriente
caracterstica exclusiva das sentenas, nem apenas
elas podem fazer coisa julgada basta que se
exemplifique com a bvia possibilidade de um

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214 HAILTON GONALVES DA SILVA

acrdo ou uma deciso monocrtica de relator (art.


557 do CPC) fazerem coisa julgada.

No outro o entendimento de MARINONI (2000b,


p. 147), mesmo antes da reforma de 2002:

a tutela de cognio exauriente, ao contrrio da tutela


de cognio sumria, tem aptido para produzir
coisa julgada material.
A tutela antecipatria, no caso de julgamento
antecipado de um dos pedidos cumulados, antecipa
o momento (compreendido este momento como o
final do processo) do julgamento do pedido.
Antecipa-se o momento do julgamento, mas no se
julga com base em probabilidade ou cognio
sumria. O juiz somente pode julgar antecipadamente
um dos pedidos cumulados quando a questo de
mrito for unicamente de direito, ou, sendo de
direito e de fato, no houver necessidade de produzir
prova alm da documental.

Sendo de cognio exauriente, no h que se falar,


tampouco, na possibilidade do juiz a qualquer tempo revogar
a deciso, como acontece na antecipatria com fulcro nos
incisos I e II do art. 273, ex vi do 4.
No que concerne, portanto, ao tipo de deciso, trata-se
de deciso interlocutria, at mesmo pela localizao do 6,
mas mesmo assim, no deixa de ser um bom comeo para se
quebrar o dogma da unidade da deciso no Brasil.

2.6 Efetivao e Recurso

A efetivao/execuo em relao a decises fulcradas


no 6 do art. 273 acontecer da mesma forma que nas

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 215

decises antecipatrias esteadas nos incisos I e II do mesmo


artigo.
Neste particular, convm atentar para os ensinamentos
de CUNHA (2003, p. 125/126):

Enquanto impugnada por agravo, a deciso, embora


fundada em cognio exauriente, no ser, ainda,
definitiva. Logo, a execuo encetada pela parte
beneficiada com a deciso ser provisria.
No havendo recurso, no sendo este cabvel ou
esgotados todos os recursos possveis, sobrevir o
trnsito em julgado, com a produo dos efeitos da
coisa julgada material. A partir da, a execuo
proposta ser definitiva, e no mais provisria, no
se aplicando as restries do art. 588, II, do CPC,
de sorte que passa a ser possvel o levantamento de
direito ou a transferncia de domnio, inde-
pendentemente do oferecimento de cauo idnea.
Na verdade, instaura-se uma execuo sem ttulo
permitida. que o processo de execuo depende
de um ttulo executivo, em razo do princpio da
nulla executio sine titulo. Acontece que a deciso
fundada no 6 do art. 273 do CPC, embora resolva
parcialmente o mrito, no pode ser identificada
como uma sentena, mas sim como uma deciso
interlocutria, no se inserindo, portanto, no elenco
dos ttulos executivos previstos nos arts. 584 e 585
do CPC. Ento, em contraste ao princpio da nulla
executio sine titulo surge um novo princpio chamado
de princpio da execuo sem ttulo permitida,
viabilizando o ajuizamento da ao de execuo sem
lastro num ttulo taxativamente previsto, em nmeros
clausus, na lei processual [...].

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216 HAILTON GONALVES DA SILVA

Um exemplo clssico de execuo fundada em deciso


interlocutria a execuo de alimentos provisrios. 4
Na prtica, sugere-se (DIDIER JR. 2003a, p. 242):

Deve ser extrada uma carta de deciso, autuan-


do-a em apartado, semelhana do que ocorre com
a execuo incompleta (arts. 589 e 590 do CPC),
cujo regramento deve ser aplicado por analogia.

Confirmando o dito, a aplicao do 6 acontecer na


primeira instncia atravs de deciso interlocutria (art. 162,
2, do CPC). Logo, o recurso cabvel ser o agravo.
H entendimento, com base nos artigos 523, 4 e
527, II, do CPC, que necessrio que o recorrente demonstre
urgncia para se valer do agravo de instrumento. Em assim
sendo, caso o julgamento antecipado parcial do mrito acontea
em decorrncia de autocomposio, ficar difcil para a parte
recorrer, pois existe fato extintivo do direito de recorrer
(DIDIER JR. 2003a, p. 239).
Nas causas de competncia originria ou remessa neces-
sria, caso o relator conceda ou no conceda o provimento
parcial do mrito, o recurso cabvel ser dirigido ao colegiado
a que o mesmo pertena, competente para julgar a causa.
PIMENTA (2003, p. 166) faz uma obser vao
interessante:

A antecipao de tutela na hiptese em epgrafe pode


subsistir mesmo aps a extino do processo. Tudo
vai depender do motivo do trmino do processo. Se
a causa da extino atingir as condies da ao, ou
os pressupostos processuais, o provimento anteci-

4
MEDINA, Jos Miguel Garcia. Execuo civil: princpios fundamen-
tais
tais. So Paulo: RT, 2002. Recomenda-se a leitura deste livro.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 217

patrio ser extinto com a sentena. Ningum pode,


por exemplo, continuar a desfrutar de um direito
reconhecido em provimento antecipatrio se vier a
ser reconhecido como parte ilegtima. Idntico
entendimento se aplica s demais causas de extino
previstas no art. 267.
Do outro lado, quando a pretenso for julgada
improcedente, nada impedir que o provimento
antecipatrio continue a produzir efeitos, porque o
julgamento atingir a parte do pedido que no tiver
sido objeto da antecipao.

Por seu turno, MARINONI (2003, p. 227) admite que


a tutela antecipatria do art. 273, 6, do CPC, possa ser
revogada por ocasio da sentena, permitindo que se creia
pensar assim em decorrncia da opo da poltica legislativa
em querer negar a produo de coisa julgada material para
deciso antecipatria, embora fundada em cognio
exauriente.
So afirmaes que precisam de uma maior clareza.
Caber jurisprudncia pacificar alguns entendimentos,
ainda controvertidos sobre o 6 do art. 273 do Cdigo de
Processo Civil, na medida em que o dispositivo for sendo aplicado.

3 CONCLUSO

preciso modificar conceitos, para que se adapte o


direito processual aos novos valores substanciais da sociedade.
Faz-se necessrio, portanto, deixar a viso medieval de
que cabe ao Judicirio apenas ditar as leis e encarar a jurisdio
como instrumento para a efetividade do direito.
Pela primeira vez, de forma mais incisiva e transparente,
os magistrados brasileiros tentam influir na produo legislativa
do Congresso, objetivando modificar a legislao de ritos,

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218 HAILTON GONALVES DA SILVA

tornando mais cleres os processos e eficazes os provimentos.


Esta deveria ser a preocupao e a luta de todos os profissionais
do direito.
A aludida iniciativa muito importante e necessria,
pois o maior obstculo do julgador o tempo do processo,
por ser a demora na prestao jurisdicional fonte de descrdito
da populao no Poder Judicirio.
O instituto da antecipao dos efeitos da tutela veio,
para de forma efetiva e rpida, socorrer a parte requerente,
pois a tutela tardia, mesmo procedente, s vezes, para nada
mais serve.
Infelizmente, pouco tem sido utilizado o julgamento
antecipado parcial do mrito. Qual a razo? O medo do novo
e o extremado apego s formas litrgicas do processo j
sedimentadas pelo passar dos anos.

4 REFERNCIAS

ALMEIDA, Joo Ferreira de (Tradutor). A bblia sagrada:


Deuteronmio 19.2-6. 2. imp. Rio de Janeiro: Imprensa
Bblica Brasileira, 1987.

CUNHA, Leonardo Jos Carneiro da. O 6 do art. 273 do


CPC: tutela antecipada parcial ou julgamento antecipado
parcial da lide? Revista Dialtica de Direito Processual, So
Paulo, n. 1, abr., p. 109-126, 2003.

DIDIER JR., Fredie. Inovaes na antecipao dos efeitos da


tutela e a resoluo parcial do mrito. Revista de Processo,
So Paulo, a. 28, n. 110, abr./jun., p. 225-251, 2003.

__________. A nova reforma processual. 2 ed. So Paulo:


Saraiva, 2003.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 218 29/8/2006, 20:17


O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MRITO 219

DINAMARCO, Cndido Rangel. A reforma do processo civil.


3. ed. So Paulo: Malheiros, 1996.
__________. A instrumentalidade do processo. 9. ed. So
Paulo: Malheiros, 2001.

__________. Fundamentos do processo civil moderno. 4.


ed. So Paulo: Malheiros, 2001. Tomo II.

DORIA, Rogria Dotti. A tutela antecipada em relao


parte incontroversa da demanda. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. (Coleo Temas Atuais de Direito Processual
Civil, 1).

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitria (individual e


coletiva). So Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

__________. A antecipao da tutela. 6. ed. So Paulo:


Revista dos Tribunais, 2000.

___________. Tutela antecipatria, julgamento antecipado


e execuo imediata da sentena. 4 ed. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.

___________. Tutela especfica. 2. ed. So Paulo: Revista


dos Tribunais, 2001.

___________. Tutela inibitria (individual e coletiva). 3.


ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

___________. Tutela antecipatria e julgamento antecipado:


parte incontroversa da demanda. 5. ed. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003.

PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Antecipao dos efeitos da

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 219 29/8/2006, 20:17


220 HAILTON GONALVES DA SILVA

tutela: inovaes da lei n 10.444/2002. Revista Dialtica de


Direito Processual, So Paulo, n. 1, abr., p. 160-170, 2003.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito


processual civil. 21. ed. So Paulo: Saraiva, 1999. v. 1.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 197-220 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 220 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 221

QUESTO DE REPERCUSSO
GERAL. PROPOSTAS

Hlio Silvio Ourem Campos


Juiz Federal. Juiz da Turma Nacional de
Uniformizao em Braslia; Juiz da Turma
Recursal dos Juizados Especiais Federais da
Seo Judiciria do Estado de Pernambuco;
Professor da Escola Superior da Magistra-
tura do Estado de Pernambuco e da Uni-
versidade Catlica de Pernambuco (adjun-
to); Doutorado pela Faculdade Clssica de
Direito de Lisboa; Doutor pela Universida-
de Federal de Pernambuco; Mestre pela Uni-
versidade Federal de Pernambuco e pela Fa-
culdade Clssica de Direito de Lisboa (equi-
valncia); Ex-Procurador do Estado de
Pernambuco e do Municpio do Recife.

O texto a seguir foi escrito entre Portugal e Brasil e


um pouco antes da promulgao e da publicao da
Emenda Constitucional n 45/2004 (Reforma do Poder
Judicirio). Espero, contudo, que se mantenha atual, in-
clusive porque ser a atividade prtica que dar vida efetiva
a esta previso recentemente inserida no Texto Constitu-
cional Brasileiro.

Este um dos temas mais repetidos no mbito da Re-


forma do Poder Judicirio brasileiro, que j est completando
10 (dez) anos de tramitao no Poder Legislativo nacional.

No estgio atual, j remanescem dvidas a respeito do

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 221 29/8/2006, 20:17


222 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

desfecho satisfatrio sobre essa Reforma Constitucional,


inclusive porque existem indcios de que muitos beneficiam-
se da morosidade judiciria que impera no Pas. o
chamado desvio tico, conforme a definio do Ministro e
Presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurlio
de Mello.

Sem a agilidade necessria, e com um crescimento no-


tvel de novas demandas, esto os Tribunais sendo abarrotados
de processos.

Provavelmente, isto ocorra menos por fora do Texto


Constitucional, e muito mais em razo do regime jurdico
infraconstitucional mutante e pela manuteno de dispositivos
processuais antiquados e desadequados para a realidade em
que se vive.

Refiro-me legislao processual com o excesso na


combinao de recursos em uma mesma causa, e com um
processo de execuo arrastado.

Logo, o debate em torno dos cdigos processuais (civil,


penal, etc.) algo central a qualquer discusso sria e ponderada
sobre o crescimento da contenciosidade brasileira.

Por outro lado, quando se fala em reforma judiciria


preciso imaginar que so vrias as ticas em que ela poder ser
visualizada. H um ponto de vista dos advogados, outro dos
magistrados de 1 instncia, outro dos juzes dos tribunais
intermedirios, e mais um outro dos ministros dos tribunais
superiores. Sem falar no Ministrio Pblico, rgo que
conquistou prerrogativas bem amplas no Texto Constitucional
de outubro de 1988.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 222 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 223

Isto, no mnimo.

O risco que a reforma venha a ser feita sem considerar


a multilateralidade de interesses, pois contemplar a todos
muito difcil.

Dentro desse ambiente, independentemente dessa


reforma geral, mini reformas vm sendo feitas. s vezes, por
intermdio de emendas constitucionais; em outras, atravs do
filtro jurisprudencial.

Quanto ltima maneira, cito, por exemplo, a Smula


n 256, do Egrgio Superior Tribunal de Justia, que firma a
impossibilidade da utilizao de protocolo integrado - que
permite parte a interposio do recurso no rgo inferior,
que o remete para a instncia superior -, em relao aos recursos
destinados a este Tribunal Superior.

Em suma, em agosto de 2001, o Superior Tribunal de


Justia consolidou o entendimento de que o sistema de
protocolo integrado no se aplica aos recursos a ele dirigidos.

Assim, obstculos processuais vo sendo criados de


modo a promover a conteno da remessa dos recursos.

Dentro da mesma linha, vem-se, no Brasil, ampliando


os poderes dos rgos singulares componentes dos rgos
colegiados. Refiro-me ampliao dos poderes do juiz
relator, diante do chamado agravo interno, um tipo de
recurso apresentado contra decises tomadas no prprio
Tribunal.

sob esse esprito que merece ser feita a anlise da


denominada questo de repercusso geral.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 223 29/8/2006, 20:17


224 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

Trata-se de mais um instituto proveniente da inflao


normativa e do excesso de contenciosidade de uma sociedade
que procura descortinar os seus direitos perante um Poder
Judicirio que sente dificuldades de responder a esta vazo.

Para este instituto, pode-se buscar justificativas tericas


e prticas.

Devo comear pelas prticas, que so mais diretas e fceis


de ser entendidas.

H um aumento descomunal de jurisdicionados,


inclusive a considerar pessoas que buscam sair do pejo da
excluso social. Isto provoca um tipo diferente de inflao: a
de processos. Em uma sociedade de consumo, com o aumento
populacional, com a mobilizao das pessoas para as grandes
cidades, tudo isto termina constituindo uma varivel que
surpreende o Poder Judicirio dotado de uma antiga estrutura.
Assim, pretendendo evitar uma anlise quase impossvel,
tal a quantidade de processos, comea-se a filtr-los.

Nesta atitude defensiva, procura-se incentivar argu-


mentos simpticos a favor das iniciativas para que se pretende
conduzir. Afirma-se que o juzo sobre o pressuposto de admis-
sibilidade recursal da repercusso, no apenas no traria prejuzos
para os jurisdicionados, como, bem ao contrrio, traria
evidentes benefcios.

Estar-se-ia valorizando as decises das instncias inferiores


e permitindo um maior e melhor desempenho por parte das
instncias superiores.

O problema, ento, concentrar-se-ia na flexibilidade


sobre o que venha a ser repercusso geral, sobre como identificar

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 224 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 225

as causas marcadas pelo maior relevo social, econmico,


institucional ou jurdico.

Sendo, aparentemente, um conceito vago, indetermi-


nado, haveria um mbito de discricionariedade. Para alguns,
indesejvel.

Neste momento, costuma-se buscar o auxlio do direito


comparado para verificar como vem sendo equacionado o
problema.

o que fao a seguir.

No direito alemo, encontram-se as causas de significao


fundamental, que comportam o recurso de reviso, o
equivalente aos recursos especial e extraordinrio brasileiros.

Na literatura germnica1 , parece que os indicativos da


relevncia mais apontados seriam:

1. quando houvesse uma construo encoberta do direito, ou


seja, quando o Tribunal Superior discordasse da deciso recorrida;
2. quando se tratasse de uma interpretao difcil do direito
e muito debatida;
3. quando houvesse um largo espectro subjetivo de
abrangncia;
4. quando a deciso recorrida fosse to injusta ao ponto
de exigir uma construo praeter ou contra legem;
5. quando houvesse a necessidade de correo da lei,
pelo legislador;

1
WEYREUTHER, Feliz. Revisionzulassung und ichtzulassunbeschwerde. In :
Der Rechtssprechung der obersten Bundesgerichte (Admis-
so e inadmisso do recurso de reviso na jurisprudncia
dos TTribunais
ribunais Superiores). Munique : ed. Becksche, 1971. n. 52 e
seguintes, p. 24 e ss.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 225 29/8/2006, 20:17


226 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

6. quando a questo fosse muito discutida na jurispru-


dncia e na literatura;
7. quando o Estado fosse parte;
8. quando tivesse uma significao geral;
9. quando a questo houvesse sido pobremente decidida,
demandando ainda esclarecimentos;
10. quando em favor da unidade da interpretao do
direito. Assim, seriam evitadas as questes isoladas e aquelas
sobre as quais no mais comporta discusso.

Respeitosamente, creio que aquilo que foi chamado de


indicativos positivos vo pouco alm do sentimento de
subjetividade que o senso comum vem apontando, ainda mais
quando se toma em conta a situao brasileira, onde o Estado
(Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios) o principal
ator no avassalador volume de processos.

Entendo, contudo, que um dos chamados indicativos


merece uma mais intensa reflexo. Refiro-me ao que propugna
evitar causas isoladas e sobre as quais a jurisprudncia j foi pacificada.

Dito de outro modo, no estgio atual do direito


brasileiro, ao menos no que se refere s causas de jurisprudncia
assente, o Poder Pblico, independentemente de mudanas
legislativas, poderia tomar a iniciativa; e deixar de recorrer.

No o faz.

Ainda socorrendo-me do direito comparado, sigo na


anlise do direito norte-americano.

Nos Estados Unidos da Amrica do Norte, costuma-se


apontar, como paradigma neste assunto, a Rule 19 of the Supreme
Court of the United States.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 226 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 227

Seriam estes os referenciais para que uma questo se


demonstre digna de ser submetida Suprema Corte (writ of
certiorari), reconhecendo-se que se trata de um ato poltico2 :

1. quando a Corte estadual decidir sobre questo subs-


tancial antes da determinao da Suprema Corte (Regra 19);
2. quando a Corte estadual provavelmente houver
decidido em desconformidade com as decises da Suprema
Corte (Regra 19);
3. quando uma Corte decidir em conflito com a deciso
de uma outra Corte;
4. quando, pela importncia da questo federal, deveria
ser decidida pela Suprema Corte, mas no o foi;
5. quando for identificado erro procedimental cometido
pela Corte inferior;
6. quando a causa disser respeito ao Poder Judicirio,
Federao, Separao dos Poderes, Segurana Nacional e
assuntos do exterior, a liberdades civis e processo criminal, ao
devido processo legal e isonomia; enfim, s normas de direito
federal relativas aos direitos fundamentais.

Na Argentina, foi a Lei n 23.774, de 05 de abril de


1990, que tratou deste assunto, admitindo a repercusso social
como pressuposto de admissibilidade, objetivo do seu recurso
extraordinrio.

Neste Pas, a denominao aplicada a da gravidade


institucional.

Alterado pela lei supra, o art. 280, do Cdigo de


Processo Civil e Comercial argentino, registra: A Corte, segundo

2
Vide www.ourem.cjb.net, nos sites selecionados sobre o direito norte-
americano.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 227 29/8/2006, 20:17


228 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

sua discricionariedade sadia, e com base na invocao desta norma,


poder no admitir o recurso extraordinrio, por falta de leso suficiente
ao direito federal ou quando as questes existentes forem sem substncia
ou caream de transcendncia.

Como possvel observar, noes como discricionarie-


dade sadia e transcendncia so abertas e vagas, permitindo,
efetivamente, um juzo poltico.

Tambm o direito brasileiro precedente comportou um


instituto que, se no for anlogo questo de repercusso geral,
muito dele aproxima-se.

Refiro-me antiga relevncia da questo federal, que


parece haver sido contaminada e antipatizada pela proximidade
mantida com o regime ditatorial militar.

Na colheita da jurisprudncia da poca, formada junto


ao Supremo Tribunal Federal, podem ser retiradas algumas
concluses, a saber:

Eram casos de relevncia da questo federal:

1. quando se aplicava a lei revogada, ignorando o direito


vigente, e gerando a incerteza jurdica;
2. quando se violava a coisa julgada;
3. quando se discutia princpios constitucionais, como
a irretroatividade, tal como ocorreu com a Lei n 6.899/81
(correo monetria);
4. quando se discutia finanas pblicas, tal como o
instituto do precatrio, ou o termo inicial da prescrio em
matria tributria;
5. quando se discutia matria de ndole processual a ser
reproduzida em outros casos, etc.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 228 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 229

Veja-se, pela anlise do direito comparado colhido


apenas exemplificativamente, que as relevncias podem ser de
inmeros tipos: social, econmico-social, jurdica, etc.

Logo, a adoo do instituto da questo de repercusso


geral mais uma matria de convenincia e de oportunidade
do que uma exigncia tcnica, no cabendo o argumento que
escamoteia diferenci-la da antiga questo relevante3 , apon-
tando esta ltima como subjetiva, e a primeira como algo
objetivo e impassvel de juzo discricionrio.

De fato, afirmar-se que se tudo importante nada


verdadeiramente o ser, um ponto de vista respeitvel. Mas
no se trata disto.

Realmente, todas as matrias que chegam at ao Poder


Judicirio no apenas so importantes ou relevantes, como j o
encontram com um certo ou razovel atraso. Afinal, o conflito
no surge no momento em que se d a distribuio do Feito no
setor prprio. Ele vem de antes, s vezes de muito antes.

Por este prisma, o Poder Judicirio fadado a estar sem-


pre atrasado. A questo que o atraso est ultrapassando a
barreira do bom senso, existindo causas de 10, 20 ou mais
anos.
3
A instituio da argio de relevncia da questo federal foi, na verdade,
introduzida, pela primeira vez no Brasil, por Emenda ao Regimento Inter-
no do Supremo Tribunal Federal, em 1965, inspirada pelo ento Minis-
tro Victor Nunes Leal. Provavelmente, a origem mais imediata da ques-
to relevante foi o writ of certiorari, da Suprema Corte dos Estados
Unidos da Amrica do Norte, buscando limitar a jurisdio do Supremo
Tribunal Federal s questes importantes para a Federao. Tambm foi
ele quem introduziu, no direito nacional, como membro da Comisso
de Jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, a experincia das Smulas,
fundadas na doutrina do stare decisis e nos restatements of laws, do
direito anglo-americano.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

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230 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

Logo, o tema verdadeiro o de se encontrar a soluo


possvel, que pode no ser a soluo tima, diante da carga de
trabalho, extraindo o melhor proveito para a sociedade.

Afinal, do modo como o Poder Judicirio brasileiro


vem funcionando, caminha-se a passos largos para a invia-
bilidade.

Resolver esse problema principal, possivelmente, mas


no necessariamente, poder trazer um acrscimo de qualidade,
ao menos nos Tribunais que encimam a ordem jurdica
brasileira.

, inclusive, necessrio estabelecer qual a exata finalidade


destes Tribunais4 . Se eles tm por finalidade ltima fazer justia
no caso concreto, ou se lhes basta uniformizar o direito (cons-
titucional ou lei federal), de modo a fortalecer a unidade
federativa.

Poder-se-ia dizer que a fora de um acrdo unnime de


um Supremo Tribunal Federal ou de um Superior Tribunal
de Justia traria consigo uma qualidade imanente de justia.

Pessoalmente, creio que no. Alis, no me parece


equivocado dizer que um acrdo por maioria, provavelmente,
possa conter este atributo com um maior ndice de segurana.

Explico o porqu, e acredito que me farei entender


sobretudo por aqueles que trabalham junto aos Tribunais.

4
Disse NELSON NERY JNIOR sobre o recurso especial: so meios
excepcionais de impugnao das decises judiciais, no se prestando
correo de injustias e se destinam uniformizao do entendimen-
to da lei federal. Extrado da Teoria Geral dos R ecursos. 3.ed. So
Recursos.
Paulo : Revista dos Tribunais, 1996. p. 246.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

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QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 231

Com a palavra o relator, diz o Presidente. O relator


fornece o seu voto, e, em seguida, passada a palavra para os
demais pares. Quando nenhum deles se pronuncia, possvel
que sequer esteja-se prestando a ateno necessria para a causa.

Bem ao contrrio, quando se instaura o debate.

Quanto mais intensa for a discusso, mais aquela causa


ser analisada, sopesada em seus vrios ngulos.

Estendo isto ao campo tributrio. Nada a dizer sobre a


matria pode significar que por ela no se interesse, ou se no
a conhea de maneira a participar da discusso. Em uma hip-
tese ou em outra, no foi cumprido o devido processo legal
em sua integridade.

Mas no ser possvel penetrar no foro interno de cada


juiz.

Enfim, no se imagine que a multiplicao de instncias


signifique um veculo necessrio de justia.

De fato, a questo de repercusso geral termina funcionan-


do como um instituto que, ao mesmo tempo em que procura
viabilizar o desempenho do Tribunal, termina no lhe retirando
qualquer parcela de poder, sequer exigindo a sua ampliao
em nmero de membros.

Logo, no reduz poder, e talvez o confira ainda mais,


pois, muitas vezes, participar da simples escolha dos seus
integrantes a deciso de se pronunciar ou no sobre uma
demanda.

No se trata, portanto, de discutir apenas se esta tcnica

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 231 29/8/2006, 20:17


232 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

de administrao da justia implica negativa de acesso ao Poder


Judicirio, violando a ubiqidade ou a inafastabilidade da
jurisdio; ou se h um dever social dos Tribunais Superiores
de examinar toda e qualquer questo, nem mesmo se seria
incompatvel com um Tribunal de cpula a anlise de questes
midas, e que s interessariam ao ambiente das partes.

No s isto. A questo se, diante do volume


avassalador de demandas, esta uma das melhores alternativas
a ser aplicada.

A resposta poltica, mas precisa existir logo.

Alguma soluo minimizadora do impacto provocado


pelo nmero de processos precisa ser posta em prtica, tal a
escala de conflitos caracterizadores das sociedades contem-
porneas.

Diante do que foi exposto, vo, mais adiante, duas


Propostas de Emendas Constitucionais sobre a questo de
repercusso geral, acompanhadas das suas respectivas justificativas.

Basicamente, pretendem:

a) introduzir para o recurso especial (uniformizao da


interpretao da lei federal) aquilo que, em Proposta
de Emenda Constitucional j se afigura para o recurso
extraordinrio (uniformizao da interpretao da
Constituio Federal); ou seja, que a questo de
repercusso geral atinja a ambos;
b) alterar a exigncia do qurum qualificado de dois
teros, para o pronunciamento sobre este impor-
tante requisito de admissibilidade, em favor da
maioria simples.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 232 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 233

Emenda n Comisso de Constituio e Justia.

Acrescente-se, onde couber, o seguinte 2 ao atual


art. 105, da Constituio Federal. Em conseqncia, o atual
pargrafo nico transformado em 1:

Art. 105. (...)


1. (...)
2. No recurso especial, o recorrente dever demonstrar a
repercusso geral das questes federais discutidas no caso, nos termos
da lei, a fim de que o Tribunal examine a admisso do recurso.

Justificao

A presente Emenda tem o objetivo de estender a chamada


argio de relevncia, que a Proposta de Emenda Constitucional em
pauta pretende estabelecer como pr-requisito para o conhecimento do
recurso extraordinrio, tambm para o recurso especial.

Com efeito, da mesma forma que o Supremo Tribunal Federal


est hoje congestionado pela enorme quantidade de recursos
extraordinrios que so protocolados, o Superior Tribunal de Justia
tambm se encontra assoberbado com uma infinidade de recursos
especiais, impondo acmulo de processos e morosidade na prestao
jurisdicional.

Dessa forma, estamos propondo a extenso da chamada


argio de relevncia, mediante a qual o recorrente deve demonstrar
a repercusso geral da questo discutida no processo como requisito
para que o Tribunal conhea e julgue o recurso apresentado.

Tal adoo de fundamental importncia para que os processos


tramitem com rapidez e seja prestado aos jurisdicionados um melhor
servio pelo Poder Judicirio.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 233 29/8/2006, 20:17


234 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

Ante o exposto, solicitamos o apoio dos nobres colegas para a


aprovao da presente Emenda PEC n 29/2000.

Emenda n - Comisso de Constituio e Justia.

D-se a seguinte redao ao 4, do art. 102, que a


Proposta de Emenda Constitucional n 29, de 2000, acrescenta
Constituio Federal pelo seu art. 12:

Art. 12. (...)


Art. 102. (...)
4. No recurso extraordinrio, o recorrente dever demonstrar
a repercusso geral das questes constitucionais discutidas no caso, nos
termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admisso do recurso.

Justificao

A nova redao que estamos propondo para o 4, do art.


102, que o art. 12, da PEC n 29, de 2000, acrescenta Constituio
Federal, tem o objetivo de suprimir a expresso final somente podendo
recus-lo pela manifestao de dois teros de seus membros contida no
referido dispositivo.

Ocorre que tal expresso trar o efeito prtico de limitar, em


muito, o instituto da argio de relevncia que se est pretendendo
instituir, o que poder comprometer a prpria eficcia do preceptivo.
Agindo assim, o legislador estar, nas palavras da sabedoria popular,
dando com uma mo e retirando com a outra.

Ademais, o trecho que pretendemos suprimir traz, no seu bojo,


uma contradio de ordem formal, porquanto para se recusar o recurso
extraordinrio so necessrios os votos de dois teros dos membros do
Supremo Tribunal Federal, enquanto que a deciso sobre o mrito do
recurso, uma vez aceito, poder ser tomada por maioria simples.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 234 29/8/2006, 20:17


QUESTO DE REPERCUSSO GERAL. PROPOSTAS 235

Ante o exposto, solicitamos o apoio dos nobres colegas para a


aprovao da presente Emenda.

Em suma, at aqui, a questo de repercusso geral, dentro


do esprito que se pretendeu demonstrar, deveria ser aplicada
ao recurso especial (Superior Tribunal de Justia) e ao recurso
extraordinrio (Supremo Tribunal Federal).

Acontece que o Tribunal Superior do Trabalho,


buscando a mesma fundamentao, pretende v-lo acolhido
tambm na seara do Recurso de Revista.

Portanto, mais um Tribunal Superior pretendendo


possuir o instituto. Seria a aplicao do critrio da transcen-
dncia na rea trabalhista.

Para isto, sublinha-se o fato de que, tambm ele, um


Tribunal Superior, podendo lhe ser estendida a idia vetora
da Suprema Corte norte-americana e do antigo sistema da
argio de relevncia nacional.

Aqui, fala-se em transcendncia jurdica, poltica, social,


econmica, e em como funcionaria a seleo das causas, de
modo a uniformizar a aplicao destes distintos critrios.

Sim, porque tambm na aplicao do novo incidente


processual poderia haver disformidades violadoras do princpio
constitucional da isonomia. Aqui, prope-se que os embargos,
um outro recurso, poderiam exercer esta tarefa, fixando-se as
hipteses concretas e os conceitos palpveis do que sejam causas
jurdica, poltica, social ou economicamente transcendentes.

Ocorre que chega a existir Proposta no sentido de


investir a Justia trabalhista deste estratagema, atravs da

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 235 29/8/2006, 20:17


236 HLIO SILVIO OUREM CAMPOS

simples modificao da Consolidao das Leis do Tra-


balho - CLT.

Eis a Proposta de alterao do texto infraconstitucional:

Art. 896-A (...)


(...)
2. O Tribunal, ao apreciar recurso oposto contra deciso
que contrarie a sua jurisprudncia relativa questo transcendente,
salvo o caso de intempestividade, dar prazo para que a parte recorrente
supra o no-preenchimento de pressuposto extrnseco do recurso.
3. O Tribunal no conhecer de recurso fundado em aspecto
processual da causa, salvo com apoio em disposio constitucional
direta e literalmente violada, quando o tema de fundo estiver pacificado
em sua jurisprudncia no sentido da deciso proferida pelo tribunal
inferior.

Ainda em socorro desta iniciativa, aponta-se o princpio


da instrumentalidade das formas.

Contudo, parece que o caminho da Emenda Constitu-


cional tambm o mais cogitado para o Tribunal Superior
especializado, ficando o recurso de revista ao lado dos recursos
extraordinrio e especial.

esperar para ver.5

5
Vide Bibliografia em www.ourem.cjb.net

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 221-236 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 236 29/8/2006, 20:17


UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 237

UMA PEQUENA TEORIA ACERCA


DOS CONTRATOS ELETRNICOS DE
CONSUMO E A RESPONSABILIZAO
DO FORNECEDOR POR VCIOS DO
PRODUTO: PL 4906/01-OAB,
Cdigo de Defesa do Consumidor e um
pouco de direito comparado

Itamar Dias Noronha Filho


Ex-monitor das cadeiras de Introduo ao Estudo
do Direito I e Introduo ao Estudo do Direito
II; Graduando da Universidade Federal de
Pernambuco - 9 Perodo; Pesquisador Bolsista
do PIBIC/CNPq; Ex-estagirio do MPPE

SUMRIO
1 INTRODUO: 1.1 Justificativa; 1.2 Delimitao do abordado; 2
CONTRATO ELETRNICO OU VIA INTERNET: CONCEITUAO; 3 OS VCIOS
DO PRODUTO NA ESTRUTURA DO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR;
4 DIREITO COMPARADO: BRASIL E ESPANHA; 5 O PROJETO DE LEI 4906/
01 E SUA INSUFICINCIA NA REGULAMENTAO DA DEFESA DO
CONSUMIDOR: 5.1 O novo paradigma da confiana; 5.2 Os artigos referentes
temtica e a deficincia da regulao; 6 CONCLUSO; 7 REFERNCIAS.

1 INTRODUO

1.1 Justificativa

A elaborao deste artigo partiu de minha experincia


como pesquisador-bolsista de Iniciao Cientfica PIBIC/

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 237-263 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 237 29/8/2006, 20:17


238 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

CNPq, entre os anos de 2003/2004, sendo orientado


pelo Prof. Dr. Francisco Queiroz Bezerra Cavalcanti. O
projeto desenvolvido teve como ttulo central A
Internet sob a tica Jurdica: reflexos do aprimoramento
tecnolgico nos diversos ramos do Direito. Como
subtema do projeto, procurei meditar acerca da
responsabilidade do fornecedor pelos vcios nos produtos
adquiridos por meio eletrnico. Intitulei-o como A
Responsabilidade Civil do fornecedor e do comerciante
e limites desta responsabilizao, decorrente dos vcios
nos produtos adquiridos atravs da contratao por meio
eletrnico.

1.2 Delimitao do abordado

De acordo com Rita Peixoto Ferreira Blum1 , o surgi-


mento da Internet se deu em 1969, nos Estados Unidos
da Amrica. Inicialmente, utilizava-se essa tecnologia para
interligar laboratrios de pesquisa, ou seja, com fins
eminentemente acadmicos e cientficos. Foi a partir do
ano de 1987 que se liberou o uso comercial da Internet.
No Brasil, foi no ano de 1989, mais especificamente no
ms de maio, que surgiu o primeiro provedor2 comercial
que oferecia acesso para uso no acadmico; e, em 1994,
a Embratel lanou um servio de Internet comercial.
Portanto, a partir do fim do sculo passado que podemos
falar de um novo meio para realizao do comrcio, qual
seja, a Internet. Surge o denominado e-commerce, ou comr-
cio na Internet.
Com base no brocardo ubi societas, ibi ius, aceito pela

1
BLUM, Rita Peixoto Ferreira.. Direito do Consumidor na Internet
Internet.
So Paulo: Quartier Latin, 2002. p. 30-32.
2
Provedor a empresa que estabelece ligao entre o usurio e a Internet.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 237-263 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 238 29/8/2006, 20:17


UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 239

quase totalidade da doutrina3 , infere-se que o direito tende a


acompanhar as transformaes na sociedade. Sendo assim, a
propagao da Internet, ao oferecer um novo ambiente para
as relaes comerciais, no s entre empresas, mas tambm
entre empresa e consumidor (por conseguinte, relaes de
consumo), passa a exigir uma regulamentao jurdica.
sobre este assunto que iremos tratar: a regulao das
relaes de consumo na Internet. No obstante, o presente
tema por demais amplo, j que no se pode olvidar que
estamos tratando de um ramo inteiro da cincia jurdica, o
Direito do Consumidor, apenas com a particularidade do novo
meio de estabelecimento das relaes jurdicas (a rede
telemtica4 ). Faz-se necessrio, deste modo, uma delimitao,
sob pena de nos perdermos na abordagem.

3
Atualmente, com o avano dos estudos de Teoria Geral do Direito, que
passa a estabelecer, por exemplo, o relacionamento do Direito com os
demais campos do conhecimento (Economia, Teoria do Estado, Histria,
Antropologia, Sociologia etc.), surgem alguns posicionamentos que pas-
sam a confrontar com tal mxima latina, aceita por longos sculos. A ttulo
de exemplo, temos a posio do professor Juan Ramn Capella, acadmi-
co da Universidad Autnoma de Barcelona, em seu livro Fruto Proibido:
uma aproximao histrico-terica ao estudo do Direito e do Estado,
publicado, no Brasil, em 2002. O referido autor critica a ideologia jurdi-
ca dominante, que afirma ser inconcebvel (um horror, nas palavras do
autor) o vazio do direito nas relaes sociais. Tenta demonstrar, recor-
rendo Teoria do Estado, Histria, Antropologia etc. que no se pode
identificar a sociedade humana com a sociedade organizada politica-
mente, pois na primeira forma de constituio da sociedade no existia o
direito, nem o estado. Conclui que hoje se pode mostrar com provas que
o velho adgio latino ubi societas, ibi ius redondamente falso.
4
O conceito est assentado na obra do professor e magistrado Alexandre
Freire Pimentel, intitulada O Direito Ciberntico: um enfoque
terico e lgico -aplicativo
lgico-aplicativo
-aplicativo. Rio de Janeiro : Renovar, 2000. p. 44-
45. Segundo o autor, na rede telemtica muitas mquinas inteligentes
podem ser conectadas, de maneira a usufrurem informaes, comparti-
lhando recursos. Com o fim da Guerra Fria, a rede telemtica, que veio
receber o nome de Internet, teve seu acesso disponibilizado para o
pblico em geral.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 237-263 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 239 29/8/2006, 20:17


240 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

No presente artigo, iremos pincelar acerca de um dos


pontos estudados na pesquisa (PIBIC/CNPq), qual seja, a
(in)suficincia dos meios normativos ptrios que tratam da
problemtica dos vcios dos produtos na contratao Via
Internet. Isto porque acreditamos que esta seja uma temtica
ainda carente e que necessita ser explorada. De acordo com as
palavras da nobre doutrinadora Cludia Lima Marques, se o
comrcio eletrnico hoje realizado mais entre empresrios
(Business-to-Business ou B2B), a tendncia que a contratao
eletrnica entre fornecedores e consumidores tambm cresa
no Brasil. No Brasil, a previso anual para o comrcio eletrnico
com consumidores que este movimente 1,2 bilhes de
reais5 . No se pode, assim, abster-se de enfrentar o tema.
Obviamente que antes iremos fazer um apanhado dos diversos
questionamentos existentes na doutrina sobre esse novo meio
de celebrao de contratos (conceituao, princpios aplicveis
etc.). Ademais, desenvolveremos um rpido estudo comparado
entre a nossa legislao e a legislao espanhola, sempre
centradas nesta temtica. Comecemos.

2 CONTRATO ELETRNICO OU VIA INTERNET:


CONCEITUAO

O primeiro passo que devemos seguir, ao tratar de uma


questo to atual, buscar o conceito do objeto de anlise.
Isso se justifica porque, em face da atualidade do problema, a
doutrina ainda no se sedimentou no plano das conceituaes.
Erica Brandini Barbagalo6 define como contratos eletrnicos
5
MARQUES, Cludia Lima. Confiana no comrcio eletrnico e a
proteo do consumidor: (um estudo dos negcios jurdicos
de consumo no comrcio eletrnico.
eletrnico So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 51-52.
6
BARBAGALO, Erica Brandini. Contratos eletrnicos: contratos
formados por meio de redes de computadores peculiarida-
des jurdicas da formao do vnculo
vnculo. So Paulo: Saraiva, 2001.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 237-263 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 240 29/8/2006, 20:17


UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 241

os acordos entre duas ou mais pessoas para, entre si,


constiturem, modificarem ou extinguirem um vnculo
jurdico, de natureza patrimonial, expressando suas respectivas
declaraes de vontade por computadores interligados entre
si. J a autora Ana Paula Cambogi Carvalho7 no explana
uma definio em sua obra, mas podemos inferir que a mesma,
ao considerar que o ncleo da definio de contrato o
acordo das declaraes de vontade das partes contratantes, e
que a concluso contratual toma forma na Internet por meio
de declaraes de vontade produzidas e/ou transmitidas
eletronicamente, definiria como contrato eletrnico um
acordo das declaraes de vontade produzidas e/ou transmitidas
eletronicamente.
A doutrina estrangeira, em parte, procura encarar o
contrato eletrnico como inserto no gnero contratao
distncia. Esta, inclusive, a posio da Diretiva 97/7/
CE do Parlamento Europeu e do Conselho da Unio
Europia 8 . Representando este segmento doutrinrio,
temos Antonia Paniza Fullana9 , que afirma: Los contratos
celebrados a travs de los nuevos mdios de comunicacin a
distancia, como el telefono, el fax, el telex, etc. han hecho crujir
las estructuras clsicas com el planteamiento de nuevos problemas
imposibles de imaginar en pocas anteriores. Y si esto ha ocurrido
con las tcnicas de comunicacin mencionadas, la problemtica
se ha multiplicado con la introduccin y difusin del ordenador,
que ahora nos permite acceder a Internet y celebrar a travs de

7
CARVALHO, Ana Paula Cambogi. Contratos Via Internet Internet. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2001.
8
A referida Diretiva Europia, em seu artigo segundo, conceitua o contrato
distncia como um contrato onde se utiliza uma ou mais tcnicas de
comunicao distncia. No mesmo artigo, remete ao anexo I da Diretiva,
onde se encontra alguns exemplos do que sejam tcnicas de comunica-
o distncia, entre eles, o correio eletrnico.
9
FULLANA, Antonia Paniza. Contrataccon a distancia y defensa de
los consumidores
consumidores. Granada: Editorial Comares, 2003.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 237-263 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 241 29/8/2006, 20:17


242 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

la red mltiples contratos. Ainda podemos extrair uma definio


da autora para os contratos eletrnicos: Consiste em realizar
transacciones comerciales com base em el tratamiento y
transmisin electrnica de datos, includos texto, imgenes y
vdeo.
Impecvel a conceituao de Ronaldo Alves de Andra-
de , a qual transcrevemos: Na nossa proposio, contrato
10

por meio eletrnico o negcio jurdico celebrado mediante


a transferncia de informaes entre computadores e cujo
instrumento pode ser decalcado em mdia eletrnica. Dessa
forma, entram nessa categoria os contratos celebrados via
correio eletrnico, Internet, Intranet, EDI (Eletronic Date
Interchange) ou qualquer outro meio eletrnico, desde que
permita a representao fsica do negcio em qualquer mdia
eletrnica, como CD, disquete, fita de udio ou vdeo.
Com base neste conceito e nos demais ensinamentos
do autor, advertimos que, ao falar de contratos eletrnicos,
no se est tratando de nova tipologia contratual, diversa dos
vinte e trs tipos contratuais disciplinados no novo Cdigo
Civil. O que existe, apenas, um novo ambiente para celebrar
contratos. Cludia Lima Marques, inclusive, remetendo-se aos
ensinamentos do jurista Ricardo Lorenzetti, destaca os elemen-
tos especficos deste fenmeno novo de contratao: 1) a
distncia entre fornecedor e consumidor (j frisado supra, com
base nos escritos de Antnia Paniza Fullana); 2) a simultanei-
dade ou atemporalidade da oferta e da aceitao, assim como
da contratao em si; 3) a desterritorialidade da contratao,
realizada em territrio virtual; 4) a materialidade da execuo
distncia e a objetividade ou autonomia das duas vontades
exteriorizadas, seja perante uma mquina, um fax, um telefone
ou qualquer outro meio virtual11 . Podemos perceber que

10
ANDRADE, Ronaldo Alves de.. Contrato eletrnico no novo Cdi-
go Civil e no Cdigo do Consumidor
Consumidor. So Paulo: Manole, 2004.
11
MARQUES, Cludia Lima. Confiana no comrcio
comrcio... p. 58.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 243

esses caracteres no qualificam um novo tipo contratual, mas


apenas um inovador mecanismo para celebrao de negcios
jurdicos. Em outras palavras, no estamos frente a um contrato
atpico, como o o contrato de publicidade (que, inclusive,
tambm trar inmeros questionamentos quando se tratar de
publicidade na Internet), de hospedagem, de cesso de clientela,
joint venture, entre outros12 . Estamos, sim, frente a um novo
meio de se celebrar um contrato, instrumentado em mdia
eletrnica.
Remetendo-se doutrina estrangeira, Ronaldo Andrade
expe a opinio de Serge Guinchard, Michele Harichaux e
Renaud de Tourdonnet, segundo a qual qualquer tipo de
contrato pode ser concludo por intermdio de rede de compu-
tadores, desde que seja efetuado com respeito s normas legais
aplicadas ao contrato. Conclui que o regime jurdico do
contrato eletrnico ser o do contrato nele representado,
podendo ser uma compra e venda, uma aplicao financeira
ou uma movimentao de conta corrente.
Sobre este ltimo trecho, uma ressalva pode ser feita:
no obstante concordarmos com a conceituao do autor,
dissentimos em parte quanto ao regime jurdico aplicvel nos
contratos celebrados por Internet, pois, como defenderemos
mais frente, o regime jurdico de um contrato de compra e
venda entre fornecedor e consumidor, atravs de meio eletr-
nico (em particular, a Internet), no pode estar integralmente
regido pelos Cdigo de Defesa do Consumidor e Cdigo
Civil. A prpria Cludia Lima Marques reconhece a insuficin-
cia da regulao do CDC nestes tipos contratuais (falaremos
disto, tambm, mais frente). Acreditamos ser necessrio um
sistema jurdico mais acurado, pois h algumas peculiaridades

12
A respeito dos contratos atpicos no novo Cdigo Civil, ler o traba-
lho de SANCHES,Jos Alexandre Ferreira. Os contratos atpicos
e sua disciplina no Cdigo Civil de 2002. Disponvel em :
< www.jusnavigandi.com.br >

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244 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

nesse acordo de vontades que devem ser analisadas e


regulamentadas pelo legislador (o legislador at que tenta
prescrever alguns aspectos da contratao eletrnica nos PL
4.906/01 e PL 1.589/99, mas de forma insatisfatria). Mais
adiante esclareceremos melhor nossa posio, ao dispor acerca
da regulao dos vcios nos produtos e suas implicaes nos
contratos eletrnicos de consumo.

3 OS VCIOS DO PRODUTO NA ESTRUTURA DO


CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O diploma legal de proteo ao consumidor, Lei n


8.078, teve sua promulgao no dia 11 de setembro de 1990.
Estrutura-se, basicamente, em seis Ttulos: Dos Direitos do Con-
sumidor; Das Infraes Penais; Da Defesa do Consumidor em
Juzo; Do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor; Da
Conveno Coletiva de Consumo; Disposies Finais. Destes,
o mais extenso o Ttulo Primeiro, composto por 60 (sessenta)
artigos. E neste que se encontra a Seo III, inserta no Captulo
IV, intitulada Da Responsabilidade por Vcio do Produto e
do Servio. Desde j, para que evitemos equvocos, devemos
aludir Seo II do mesmo Captulo, que se intitula Da
Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Servio. Ainda
que as duas Sees tratem da mesma temtica, qual seja, a
Responsabilidade Civil do Fornecedor, o fundamento de
responsabilizao no o mesmo. A prpria tcnica legislativa
demonstrou isto, ao disciplin-las em diferentes sees,
significando que pretendia diferenci-las e impor-lhes regimes
prprios. Sobre esse tema, as observaes de Joo Batista de
Almeida13 so de grande valia: Com efeito, no se confunde a
responsabilidade pelo fato (arts. 12 e 14) com a responsabilidade

13
ALMEIDA, Joo Batista de. A proteo jurdica do Consumidor
Consumidor. 2.
ed. Saraiva: So Paulo, 1999.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 245

por vcio do produto e do servio. Enquanto na primeira h a


potencialidade danosa, na segunda esta inexiste, verificando-se
apenas anomalias que afetam a funcionalidade do produto e do
servio. Estes, na primeira, so afetados por defeitos que trazem
risco sade e segurana do consumidor; na segunda, so
observados apenas vcios de qualidade e quantidade, afetando
o funcionamento ou valor da coisa. Dito de outra forma: ao
responsabilizar-se um fornecedor pelo fato do produto, faz-se
meno a falhas no sistema de produo que culminam na
entrada de produtos no mercado que causam leses sade e
segurana dos consumidores; nasce, portanto, a responsabilidade
de reparar danos por fato do produto quando o mesmo
apresenta um defeito que possa atingir a integridade fsico-
psquica do consumidor. J ao se criar um mecanismo de
responsabilizao do Fornecedor por vcio do produto, no se
aduz a nenhuma potencialidade danosa do produto, mas sim-
plesmente a anomalias que afetam a funcionalidade do pro-
duto, no dizer de Joo Batista de Almeida. Tais anomalias podem
ser, segundo os artigos 18 e 19 do CDC, inadequaes para o
uso esperado, impropriedades, diminuio da quantidade ou
disparidade nas informaes.
Com o fito de aclarar a diferena entre os dois regimes
de responsabilidade institudos no sistema ptrio, nos
Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor, da editora Revista
dos Tribunais14 , afirma-se que Os vcios no CDC, segundo a
melhor doutrina, so os vcios por inadequao (art. 18 e ss.)
e os vcios por insegurana (art. 12 e ss.). Esta feliz observao
condensa, em poucas palavras, o que expusemos acima.
Feita a ressalva e lembrando que pretendemos tratar da
Responsabilidade por Vcio do Produto nos Contratos

14
MARQUES, Cludia Lima; BENJAMIN, Antnio Herman V.; MIRAGEM,
Bruno. Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor -
arts. 1. a 74 aspectos materiais
materiais. So Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2003.

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246 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

Eletrnicos de Consumo, iremos, agora, ainda que de forma


sinttica, estabelecer uma comparao entre o regime dos vcios
redibitrios do Cdigo Civil e o regime dos vcios do produto
do Cdigo de Defesa do Consumidor, j que no podemos
examinar a (in)suficincia da regulao dos contratos eletrnicos
de consumo com base unicamente no diploma consumeirista,
pois tal regulamentao no se resume quele microssistema.
Conforme os ensinamentos de Cludia Lima Marques15 , a
doutrina contempornea pretende instituir uma coordenao entre as
normas dos vrios micro-sistemas de um ordenamento jurdico (e no
contrap-las), invalidando - ou, pelo menos, mitigando - as velhas
concepes hermenuticas de antinomias e incompatibilidades
normativas. o ordenamento, mais do que nunca, visto como
um sistema que busca a coerncia derivada ou restaurada,
conforme expresso de Sauphanor, ou o que Erik Jayme chama
de dilogo das fontes, autores esses aludidos por nossa maior
doutrinadora em matria de Direito do Consumidor.

4 DIREITO COMPARADO: BRASIL E ESPANHA

No ano de 2003 tive a oportunidade de estudar por


cinco meses na Universidad de Salamanca (Espaa), atravs de
intercmbio acadmico firmado com a Universidade Federal
de Pernambuco. No ensejo, cursei uma disciplina oferecida
na Facultad de Ciencias Sociales, denominada Sociologa Del
Consumo e Investigacin de Mercados, ministrada pelo Prof. Dr.
Pedro L. Iriso Napal. Ao adentrar neste ramo da sociologia,
buscando, nas palavras do professor Napal, hacer un analisis
de la estructura social (relaciones de poder) a partir del
comportamiento de los individuos en consumo, dei-me conta

15
Para uma melhor compreenso do exposto, vide o captulo introdutrio
Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor
do Comentrios Consumidor,
intitulado Dilogo entre o Cdigo de Defesa do Consumidor e o Novo
Cdigo Civil: o Dilogo das Fontes. op. cit.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 247

da complexidade do fenmeno e da importncia do Direito


como fator de regulao e reequilbrio de tais relaes. Ao
final do curso, o professor Napal sugeriu um trabalho sobre
alguns dos temas estudados no curso. Como sabia que no
havia apenas alunos do curso de Sociologia na disciplina,
props o Mestre que os que fossem de outra rea buscassem
relacionar a questo do consumo com o respectivo campo de
conhecimento. Da partiu minha idia de fazer um pequeno
estudo comparado da legislao espanhola sobre as relaes
fornecedor x consumidor e a nossa legislao ptria, focando dois
aspectos: os direitos bsicos na legislao consumeirista e as
clusulas abusivas. Intitulei o trabalho como Un estudo de
derecho comparado legislacin de consumo en Brasil y
Espana.
Pretendo comparar, neste ponto, apenas os direitos
bsicos do consumidor estabelecidos nas legislaes espanhola
e brasileira, sob pena de desvirtuar o nosso objeto de estudo.
A idia de confrontar os dois ordenamentos no presente artigo
demonstrar, ainda que setorialmente, a superioridade da nossa legislao
consumeirista frente inmeras das legislaes europias e, assim, atentar
para a necessidade de manter essa qualidade legislativa, atravs de
uma satisfatria regulamentao do comrcio eletrnico (contratos de
consumo por Internet) e, mais especificamente, a questo dos vcios
dos produtos e conseqente responsabilizao pelos mesmos.
Espanha: certo que a Comunidade Europia passou
por uma grandiosa evoluo em matria de defesa do
consumidor, desde o Tratado Fundacional da CEE, de 25 de
maro de 1957, que possua apenas referncias indiretas
proteo do consumidor, at chegar nas Diretivas, que com-
plementam e direcionam as polticas nacionais dos Estados-
Membros da UE, que passam a enfocar uma proteo efetiva
dos consumidores. Como membro da UE, a Espanha, nos
dizeres de Maria Jos Reyes Lpez, no fue impermeable a los
aconteceres que tenan como sujeto a los consumidores. Primero por

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248 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

concienciacin propia. Trs el ingreso em la Comunidad Econmica


Europea, por resultar obligada a la armonizacin de legislaciones com
repercusin en esta matria16 . Portanto, ao dia 19 de junho de
1984 foi aprovada a Lei 26/1984, conhecida como la Ley
General para la Defensa de los Consumidores y Ususarios. Pouco
antes, j se tinha um comando principiolgico na Constituio
espanhola de 1978: o artigo 51, chamado pela doutrina espa-
nhola de princpio pr-consumidor, e que j enumerava
direitos gerais dos consumidores: direito segurana, sade,
legtimos interesses econmicos, informao, educao e
representao. Tal princpio esmiuado no artigo 2 da Ley
General para Proteccin Del Consumidor y Usurio, nos seguintes
termos (obs.: acrescentamos, entre parntesis, alguns comen-
trios da doutrina espanhola acerca do artigo que passamos a
transcrever17 ): 1. Son derechos bsicos de los consumidores y
usuarios: a) La proteccin contra los riesgos que puedan
afectar su salud o seguridad (lo que se protege es al consumidor
frente al riesgo que pueda afectar a su salud o seguridad, o
sea, es una proteccin preventiva, para evitar el dao); b) La
proteccin de sus legtimos intereses econmicos y sociales (es
un derecho puesto para evitar el desequilibrio que se produce
cuando las partes no estn en una posicin de igualdad
sirve, sobretodo, para los diversos momentos de la contratacin,
que veremos despus); c) La indemnizacin o reparacin de
los daos y perjuicios sufridos (la aparicin de nuevos
productos, de la masificacin, de nuevas formas de distribucin,
grandes operadores econmicos etc. hizo con que el legislador
se preocupase con este aspecto, principalmente, en la
contratacin. Es importante percibir que, con este principio,
el consumidor est dispensado de probar la culpa del productor,

16
LPEZ, Maria Jos Reyes. Derecho de Consumo
Consumo. Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999.
17
MARN LPEZ, Juan Jos; MARN LPEZ, Manuel Jess. Cdigo so-
bre Consumo y Comercio. Pamplona a: Editorial Aranzadi, 1998.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 249

slo necesita probar que el dao se ha originado de la accin/


omisin de ello). d) La informacin correcta sobre los diferentes
productos o servicios y la educacin y divulgacin, para
facilitar el conocimiento sobre su adecuado uso, consumo o
disfrute (estos son derechos instrumentales necesarios para la
efectividad de los dems derechos del artculo 2. El derecho a
la informacin comprende una informacin especfica sobre
el producto, bien o servicio, mediante la imposicin de
obligaciones para hacer saber la calidad, cantidad, precio,
aditivos, componentes, fechas etc.; y comprende tambin una
informacin genrica de indicacin al consumidor de los sitios
de recepcin de quejas. Ya el derecho de educacin busca la
concienciacin del consumidor desde el origen de su decisin
de consumo, o sea, que hacer para prevenir riesgos, que la
decisin de consumir sea responsable y voluntaria etc.); e) La
audiencia o consulta, la participacin en el procedimiento de
elaboracin de las disposiciones generales que les afectan
directamente y la representacin de sus intereses, todo ello a
travs de las asociaciones, agrupaciones o confederaciones de
consumidores y usuarios legalmente constituidas (Las
asociaciones de consumidores son una pieza clave para la
correcta implantacin de un sistema de derecho de consumo.
A travs de ellas los consumidores van a tener acceso a la
elaboracin de las normas que les afectan y despus a ejercitar
por ellas las acciones que les asisten). f) La proteccin jurdica,
administrativa y tcnica en las situaciones de inferioridad,
subordinacin o indefensin (en verdad, este no es derecho
bsico, pero el fundamento de la propia Ley, debiendo estar
en el prembulo). 2. Los derechos de los consumidores y usuarios
sern validos prioritariamente cuando guarden relacin directa
con productos o servicios de uso o consumo comn, ordinario
y generalizado (son los productos de primera necesidad,
enumerados en otras normas contenidas en la propia Ley y en
el anexo RD 287/91, que, por ser productos de uso comn,

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250 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

necesitan de mayor cobertura). 3. La renuncia previa de los


derechos que esta Ley reconoce a los consumidores y usuarios
en la adquisicin y utilizacin de bienes o servicios es nula
(este prrafo es importante porque demuestra la relevancia de
los derechos de los consumidores que, al contrario de la regla
general en derecho civil, no permite renunciar los derechos
previstos en la Ley).
Brasil: No Brasil, a defesa do consumidor comea com
normas de proteo indireta como exemplos temos o Decreto
22.626, de 07 de abril de 1933, que buscava reprimir a usura,
e pela Constituio de 1934, que dispunha acerca da proteo
da economia popular. Mais frente, surgem rgos adminis-
trativos de proteo ao consumidor, como o Conselho Nacio-
nal de Defesa do Consumidor, criado em 1985, pelo Decreto
91.469. O grande triunfo se deu com a elaborao da Consti-
tuio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, que
estabelece trs dispositivos: artigo 5, inciso XXXII (O Estado
promover, na forma da lei, a defesa do consumidor); artigo
170, caput e inciso V, que prescreve sobre a interveno do
Estado na economia para proteo do consumidor; e o artigo
48 do ADCT, que ordena a edio do Cdigo de Defesa do
Consumidor (promulgado em 11 de Setembro de 1990).
no art. 6 do Cdigo de Defesa do Consumidor que
encontramos a previso dos direitos bsicos, j que, ao
contrrio da Constituio Espanhola, nossa Carta Magna nada
prev acerca do tema. Passamos a transcrever o referido artigo,
j estabelecendo uma anlise comparativa com o art. 2 da Lei
espanhola: Art. 6. So direitos bsicos do consumidor: I a
proteo da vida, sade e segurana contra os riscos provocados
por prticas no fornecimento de produtos e servios
considerados perigosos ou nocivos (perceba que a idia de
tutela a mesma do art. 2, n 1, alnea /a/ da Lei espanhola
o que chamamos aqui de fato do produto e do servio,
ou seja, a proteo contra os defeitos falhas na segurana); II

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 251

a educao e divulgao sobre o consumo adequado dos


produtos e servios, asseguradas a liberdade de escolha e a
igualdade nas contrataes (este inciso corresponde ao art. 2,
n 1, alnea /d/ da Lei espanhola Podemos notar uma signifi-
cativa diferena nos dois dispositivos, j que o nosso Cdigo
separa os direitos educao, materializado na liberdade de
escolha, e informao, materializado no princpio da trans-
parncia incisos II e III, o que no faz o legislador espanhol.
Entende a doutrina espanhola que o legislador buscou reuni-
los num mesmo dispositivo por se tratarem de direitos
instrumentais, ou seja, necessrios para efetividade dos demais
direitos bsicos. No acreditamos ser uma boa tcnica, pois,
apesar de terem a mesma essncia, possuem escopos diversos18 );
III - a informao adequada e clara sobre os diferentes produtos
e servios, com especificao correta de quantidade, caracte-
rsticas, composio, qualidade e preo, bem como sobre os
riscos que apresentem (j expusemos a nossa opinio ao
comentarmos o inciso anterior); IV - a proteo contra a publi-
cidade enganosa e abusiva, mtodos comerciais coercitivos ou
desleais, bem como contra prticas e clusulas abusivas ou
impostas no fornecimento de produtos e servios (o legislador
espanhol no pe esta proteo entre os direitos bsicos, no
obstante fazer uma Lei Geral sobre Publicidade Ley General
de Publicidad, n34/1988, onde trata das formas de publicidade
ilcita. de se estranhar um artigo que trate de direitos bsicos
do consumidor no incluir expressamente a proteo contra
a publicidade enganosa e as clusulas abusivas, j que estes so
temas centrais do atual Direito do Consumidor, sobretudo
hoje, com o avano dos contratos de adeso (que impem

18
Para maiores esclarecimentos acerca da diferena entre educao x
informao vide MARQUES, Cludia Lima; BENJAMIN, Antnio Herman
V.; MIRAGEM, Bruno. Comentrios ao Cdigo de Defesa do
Consumidor - arts. 1. a 74 aspectos materiais
materiais. So Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. p. 147-150.

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252 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

toda forma de abuso aos consumidores); V - modificao das


clusulas contratuais que estabeleam prestaes
desproporcionais ou sua reviso em razo de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (aqui
encontramos a famosa previso, como direito bsico, da prote-
o contra a onerosidade excessiva, que tambm no encon-
tra correspondncia na Lei espanhola o art 2, n 1, alnea /
f/ da Lei espanhola, no obstante ser bem intencionado, no
pode equiparar-se a esta previso da nossa legislao ptria);
VI - a efetiva preveno e reparao de danos patrimoniais e
morais, individuais, coletivos e difusos (corresponde alnea
/c/, do art. 2, n 1 da Lei espanhola, embora a amplitude de
nossa previso seja maior); VII - o acesso aos rgos judicirios
e administrativos com vistas preveno ou reparao de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos,
assegurada a proteo jurdica, administrativa e tcnica aos
necessitados (correspondente: alnea /f/, do art. 2, n 1 da
Lei espanhola); VIII - a facilitao da defesa de seus direitos,
inclusive com a inverso do nus da prova, a seu favor, no
processo civil, quando, a critrio do juiz, for verossmil a
alegao ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinrias de experincias (encontramos este princpio no
direito espanhol, embora no esteja posto como direito bsico
do consumidor. Acredito ser de relevncia mpar esta previso
processual entre os direitos bsicos, j que patente a hipos-
suficincia tcnica do consumidor, sobretudo do no-profis-
sional. Isto exige, em alguns aspectos, uma sistemtica proces-
sual pouco diferenciada da sistemtica tradicional, evitando
injustias neste tipo de relao jurdica); IX vetado; X a
adequada e eficaz prestao dos servios pblicos em geral ( a
previso de uma tutela do consumidor na rea administrativa,
de prestao dos servios pblicos. Tambm no encontramos
previso similar na Lei espanhola como um direito bsico do
consumidor).

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 253

Pelo exposto, podemos observar a superioridade de


nossa legislao frente espanhola, pelo menos no que atina
aos direitos bsicos do consumidor. E dizemos, sem medo de
errar, que o nosso Cdigo de Defesa do Consumidor diploma
que est entre os mais avanados do mundo. por tal motivo
que voltamos a bater na mesma tecla: devemos manter essa
qualidade legislativa na tutela do consumidor tambm nas
relaes de consumo via Internet, atravs da edio de mo-
dificaes no prprio CDC, ou de um microssistema que trate
satisfatoriamente do comrcio eletrnico. Comentaremos
acerca do tema no prximo ponto.

5 O PROJETO DE LEI 4906/01 E SUA INSUFICIN-


CIA NA REGULAMENTAO DA DEFESA DO
CONSUMIDOR

Neste penltimo ponto, pretendemos demonstrar a


insuficiente regulao da defesa do consumidor na contratao
eletrnica, mais detidamente dos negcios jurdicos celebrados
no mbito interno do nosso pas, j que o que queremos
atacar o atual Projeto de Lei 4906/01, o qual trata, basica-
mente, das relaes jurdicas firmadas no territrio nacional.
Desde j, tomamos a liberdade de nos utilizarmos do
argumento de autoridade da eminente jurista Cludia Lima
Marques, j to citada neste artigo, ao falar: A maioria da
doutrina brasileira concorda que necessria uma melhor e
mais especfica regulamentao legislativa do comrcio
eletrnico. Como os projetos at agora existentes tm se
concentrado em modificaes do Cdigo Civil e na criao
de leis especiais, pressupondo sempre a aplicao do Cdigo
de Defesa do Consumidor para os negcios jurdicos de con-
sumo no comrcio eletrnico, ouso sugerir algumas modifi-
caes especficas neste texto legal, com base nas reflexes aqui
elencadas e nos ensinamentos do Direito comparado. Observa-

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254 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

se que a mesma posiciona-se pela insuficincia da mera


pressuposio de aplicao do CDC aos contratos eletrnicos
de consumo, tendo em vista as inmeras peculiaridades que
podemos encontrar neste meio de contratao, particularidades
estas que o diploma consumeirista pode no ser capaz de regular
satisfatoriamente. Concordamos de forma plena com o
sustentado pela autora.
Ao nos posicionarmos de conformidade com o entendi-
mento acima, buscaremos, no subitem 6.2, explanar a
inconveniente regulao de alguns pargrafos e/ou incisos dos
artigos do CDC referentes aos vcios dos produtos e conse-
qente responsabilizao, quando aplicados aos contratos
eletrnicos. Por conseguinte, demonstrada estar a deficincia
do PL 4906/01 neste mesmo aspecto.

5.1 O novo paradigma da confiana

Antes de adentrarmos no plano estritamente legalista


dos vcios do produto no CDC frente aos contratos eletrnicos
e ao Projeto de Lei que procura regul-lo (PL 4906/01), que,
como dissemos, avaliaremos no item 6.2, achamos imperativo
fazer alguns apontamentos acerca do chamado novo paradigma
do princpio da confiana, ponto central para que se possa
adaptar a atual disciplina do Direito do Consumidor ao
comrcio eletrnico, consubstanciado nas contrataes a
distncia (das quais j falamos em todo o artigo).
Desde j, ressaltamos que tal paradigma foi trazido da
doutrina estrangeira por Cludia Lima Marques19 , a qual
procurou adaptar ao nosso direito do consumidor no decorrer
de sua obra sobre o comrcio eletrnico.
Em primeiro lugar, para que entendamos o que significa

19
MARQUES, Cludia Lima. Confiana no Comrcio
Comrcio...Op. Cit., p.
31-50 (captulo introdutrio).

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 255

essa busca por uma nova moldura ao princpio da confiana,


com o fito de atender s exigncias dos novos meios de
celebrar contratos, devemos relembrar a importncia deste
princpio no Direito, sobretudo quando trata de relaes
negociais.
O saudoso Orlando Gomes20 , ao tratar dos princpios
fundamentais do regime contratual, faz meno ao princpio
da boa-f (j mencionado neste artigo). Segundo o Mestre,
este princpio possui mais de um significado. E em um dos
significados encontramos inserto o princpio da confiana: Ao
princpio da boa-f empresta-se, ainda, outro significado. Para
traduzir o interesse social de segurana das relaes jurdicas
diz-se, como est expresso no Cdigo Civil alemo, que as
partes devem agir com lealdade e confiana recprocas. Numa
palavra, devem proceder com boa-f. A confiana, como
integrante da boa-f (diga-se boa-f objetiva nomenclatura
ainda no utilizada pelo Mestre ao final da dcada de 70), j
expusemos ao item 2.2 do presente artigo. Em verdade,
sustentamos, naquele item (com base nos ensinamentos da
doutrina mais atual) ser o princpio da confiana, no regime
do CDC, decorrncia da boa-f objetiva, no propriamente
integrante do mesmo. Dissensos parte, o que queremos frisar,
ao transcrever as nobres palavras do professor Orlando Gomes,
que desde a doutrina clssica do direito privado brasileiro (e
estrangeiro v.g Cdigo Civil alemo, mencionado pelo autor)
j se falava da confiana como fundamental para as relaes
contratuais.
Aprofundando no tema, observamos o ensinamento
do Socilogo do Direito Niklas Luhman, citado por Cludia
Lima Marques, ao entender que no proteger da confiana e
das expectativas legtimas dos indivduos que o Direito

20
GOMES, Orlando. Contratos. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
p. 45/48.

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256 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

encontra legitimidade. Portanto, sendo basilar do Direito


como um todo e, particularmente, das relaes contratuais
em geral, obviamente que o princpio da confiana tem que
estar, tambm, presente nos contratos de consumo. Isso
porque a relao contratual de consumo caracterizada pelo
desequilbrio entre as partes, exigindo uma especial tutela para
reequilibr-las. E justamente atravs da instituio, pelo
CDC, do princpio da proteo da confiana do consumidor,
mais abrangente que o simples agir com confiana recproca21
(de que fala Orlando Gomes), que encontramos o ponto de
partida para o reequilbrio das partes e, por decorrncia, para
o fomento dessa relao contratual.
O que se v, nos dias atuais, um novo ambiente de
comrcio: a Internet. Como dissemos anteriormente, o
comrcio eletrnico (entre eles, o realizado via Internet) possui
caracteres gritantemente diversos do comrcio realizado pela
forma tradicional: a distncia entre fornecedor e consumidor;
a simultaneidade ou atemporalidade da contratao em si; a
desterritorialidade etc. por esse motivo que defende Cludia
Lima Marques um novo paradigma da confiana, que possa
(atravs de exigncias como, por exemplo, mais informao e
transparncia, mais cooperao quanto possibilidade de
arrependimento e reflexo, mais segurana nas formas de
pagamento etc.) adaptar o atual Direito do Consumidor ao
novo modo de comrcio.

21
Nos Comentrios ao Cdigo de Defesa do Consumidor (An-
tnio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem e Cludia Lima Marques)
encontramos os dois aspectos que compem o princpio da proteo da
confiana do consumidor: a proteo da confiana no vnculo contratual
(atravs de normas que asseguram o equilbrio das obrigaes e deve-
res de cada parte equilbrio contratual) e a proteo da confiana na
prestao contratual (pelas normas que garantem ao consumidor a ade-
quao do produto ou servio adquiridos, alm da segurana dos mes-
mos). p. 119.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 257

5.2 Os artigos referentes temtica e a deficincia da


regulao

O Projeto de Lei 4906/01 (apensados os PL 1483/99


e PL 1589/99), elaborado pela OAB/SP, e que trata da
Regulamentao do Comrcio Eletrnico, dispe, em seu art.
30: Aplicam-se ao comrcio eletrnico as normas de defesa e proteo
do consumidor vigentes no pas. Desde j, podemos inferir que o
Projeto prope a aplicao integral do Cdigo de Defesa do
Consumidor aos contratos eletrnicos. Esta concluso se
torna ainda mais assente quando observamos que o texto
original desse artigo foi modificado, durante a tramitao no
legislativo, retirando-se a expresso no que no conflitar com
esta lei, procurando, portanto, assegurar a plena vigncia do
Cdigo de Defesa do Consumidor.
Ora, j que o referido Projeto pugna por essa plenitude,
temos, tambm, de concluir pela plena aplicao do regime
de responsabilizao dos fornecedores por vcios do produto
(que j vimos estar situado no Ttulo I, Captulo IV, Seo III
arts. 18 e ss.), pois o mesmo parte do diploma consumei-
rista.
De posse dessas premissas, resta-nos interrogar: 1) um
novo paradigma da confiana no exigiria a incluso de novos
artigos ou pargrafos (referentes responsabilidade por vcios
dos produtos) no Cdigo de Defesa do Consumidor, a fim de
adaptar-se ao comrcio eletrnico? 2) H possibilidade de
aplicao plena de tais artigos (arts. 18 e ss.), ou seria o caso de
manter-se algumas ressalvas dos dispositivos do CDC aos
contratos eletrnicos de consumo?
Acreditamos que o primeiro questionamento merece
resposta afirmativa. E no difcil fundamentarmos nosso
posicionamento. Em primeiro lugar, devemos atentar para a
diferena que pode existir entre os objetos de uma contratao
eletrnica. O contrato virtual pode se dar para aquisio de

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258 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

produtos materiais e imateriais. Dito de outra forma: tanto


podemos celebrar, por Internet, a compra de eletrodomsticos,
eletro-eletrnicos, livros impressos etc., como podemos
adquirir softwares, jogos, livros no impressos (ditos virtuais),
msicas etc. Esta ltima forma de aquisio faz parte dos
chamados contratos informticos, que exigem, por parte
do fornecedor, prestao de bens imateriais. O fenmeno,
chamado por Cludia Lima Marques22 de desmaterializao
do objeto do contrato no comrcio eletrnico, passa a exigir,
a meu ver, alguns ajustes no Cdigo de Defesa do Consumidor.
O art. 18 do diploma, ao falar da responsabilidade
solidria do fornecedor por vcios de qualidade e quantidade,
d algumas idias do que seriam tais vcios: os que tornem
imprprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes
diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade,
com as indicaes constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem
ou mensagem publicitria.... Ora, est claro que estas vagas
menes so insuficientes para identificar as desconformidades
de um objeto desmaterializado. A ttulo exemplificativo cita-
mos produto bem atual, de utilidade no mundo jurdico: ao
adquirirmos um software que se prope a facilitar as pesquisas
de jurisprudncias, a fim de otimizar o trabalho do jurista,
como se pode dizer, de posse apenas das menes que faz o
art. 18, que h uma falha no produto esperado? No vemos
como. Acreditamos que uma complementao do artigo, com
um pargrafo (ou at mesmo um art. 18-A), que passasse a
tratar destas falhas na legtima expectativa do consumidor para
os produtos imateriais (por ex., artigo que mencionasse acerca
do problema das atualizaes das informaes e dados do
software como possvel vcio de qualidade por inadequao)
seria o mais sensato.

22
MARQUES, Cludia Lima. Confiana no comrcio
comrcio... Op. Cit.,p. 68
e ss.

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UMA PEQUENA TEORIA ACERCA DOS CONTRATOS ... 259

Em segundo lugar, ao tratarmos dos contratos no-


informticos (chamados por Cludia Lima Marques de
contratos eletrnicos stricto sensu, pois que servem para
adquirir bens materiais, aqueles que obtemos numa celebrao
contratual por meio tradicional eletrodomsticos, eletro-
eletrnicos, livros impressos etc.), podemos dizer que o 1
do art. 18 no razovel, por exemplo, ao conceder o prazo
de 30 dias para que o fornecedor sane o vcio do produto
adquirido. Isso porque, quase sempre, o contrato eletrnico
se d entre partes localizadas em regies distantes do pas (j
que comum um esclarecido consumidor da regio NE
comprar em lojas virtuais da regio SE, por possuir maior
variedade no produto almejado, e uma diferena de preo
razovel). Ora, obviamente que essa distncia j um fator de
demora na entrega do produto. Por isso, ao se conceder, ainda,
um prazo de mais 30 dias para o fornecedor sanar o vcio, no
se estaria tutelando o hipossuficiente. O ideal seria reduzir o
prazo pela metade para os contratos eletrnicos ou, at
mesmo, suprimi-lo, j facultando ao consumidor optar por
um dos trs incisos insertos do mesmo pargrafo (substituio
do produto, restituio imediata da quantia paga ou
abatimento do preo).
No que atina ao segundo questionamento, pensamos
que no possvel aplicar integralmente o nosso Cdigo de
Defesa do Consumidor em matria de responsabilizao do
fornecedor por vcios nos produtos adquiridos por meio
eletrnico. Ora, tal concluso decorrncia do que acabamos
de expor acima, quanto necessidade de incluses e supresses
no diploma consumeirista, para adapt-lo nova realidade da
contratao eletrnica.
Por conseguinte, a norma do art. 30 do PL 4906/01,
que pressupe a integral aplicao do CDC ao comrcio
eletrnico necessita ser ressalvado, como o era na redao
original.

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260 ITAMAR DIAS NORONHA FILHO

Outro caminho, em nosso pensar, seria acrescer artigos


sobre proteo do consumidor no prprio PL 4906/01, j
que tal ambiente de contratao extremamente diverso do
tradicional (como j vimos nos pontos anteriores), deixando
o CDC aplicvel no que no conflitasse com tal lei especial.

6 CONCLUSO

Ao discorrermos acerca da temtica dos contratos


eletrnicos de consumo, podemos concluir pela insuficincia
da regulamentao estabelecida no Projeto de Lei 4.906/01 e
no Cdigo de Defesa do Consumidor, no s no que atina ao
regime de responsabilizao por vcios nos produtos, mas em
inmeros outros pontos que o Projeto regula ou deveria regular.
Tal carncia, inclusive, levou Cludia Lima Marques23 a propor
a incluso de novos artigos ou pargrafos aos j existentes no
CDC (arts. 49 bis, 42 bis e 43 bis, alm da complementao
do art. 33), com o intuito de adaptar trs temas do Direito
do Consumidor ao comrcio eletrnico: dever de informao,
de acesso e de perenizao do contrato e da possibilidade de
identificao de erros na contratao; direito de arrependi-
mento, com novos prazos mais largos, e com vinculao entre
o pagamento e o dbito de consumo; maior cuidado com os
dados coletados no meio eletrnico.
Por fim, devemos louvar as inmeras iniciativas de projetos
de lei que regulem a defesa do consumidor no meio eletrnico,
demonstrando a preocupao dos nossos legisladores e especialistas
em adequar o Direito nova realidade, acompanhando as
modificaes sociais: PL 3545/2004; PL 3432/2004; PL 473/
2003; PL 1451/2003; PL 306/2003, entre outros24 .

23
Con-
Para maiores informaes acerca das propostas da autora, vide Con-
fiana no Comrcio
Comrcio.... p. 289-300.
24
Vide site <http://www.camara-e.net/PLs/listar.asp?cat=10>, a fim de
obter informaes sobre os projetos de lei mencionados, alm de outros.

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264 JAYME VITA ROSO

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 265-279 jan./jun. 2005

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 265

CDA, WA, CDCA, LCA e CRA:


as novas siglas que talvez
possam dar futuro risonho ao agronegcio!

Jayme Vita Roso


Advogado
(ver www.vitaroso.com.br)

Pressionado pelos bancos, que encontram fundamen-


tos slidos nas recomendaes do Banco Mundial1 e no Acor-
do de Basilia II, para mostrar eficincia, expeditamente, o
Governo Federal, atravs de medida provisria, regulamentou
o Certificado de Depsito Agropecurio, o Warrant
Agropecurio, o Certificado de Direitos Creditrios do
Agronegcio, a Letra de Crdito do Agronegcio e o Certifi-
cado de Recebveis do Agronegcio, convertida na Lei n
11.076, de 30/12/042 .

1. A meu entender, como profissional da rea jurdica,


o CDA e o WA podem ser considerados como ttulos

1
O Banco Mundial, em recentssima publicao, enfatiza que o acesso ao
crdito indispensvel para a produtividade e o crescimento econmi-
co, sobretudo se destinado a negcios com melhores oportunidades de
xito. Os ganhos macroeconmicos so grandes, alm de propiciar a
diminuio da pobreza (Banco Mundial, The International Finance
Corporation e Oxford University Press, Doing Bussines in 2005, A
Removing Obstacles to Growth, Getting Crediti, p.41-48, Washing-
ton, 2005).
2
Publicada no D.O.U. de 31/12/04, pgs. 1 / 4.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 265-279 jan./jun. 2005

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266 JAYME VITA ROSO

cambiariformes, tendo, todavia, algumas peculiaridades, cria-


das pela era paperless, pois, tambm, podero ser escriturais
ou eletrnicos, enquanto permanecerem registrados em siste-
ma de registro e de liquidao financeira. Tirando o pecado
gramatical, produto da ignorncia da lngua portuguesa, ou
seu desprezo pelos legisladores, bvio que os registros se
fazem em sistema de registro, para os efeitos de publicidade e
para valerem contra impugnaes ou reivindicaes de tercei-
ros.

De outro lado, louvvel que o legislador tenha con-


ceituado as figuras do depositrio, do depositante e da entida-
de registradora autorizada, fato novo em outros diplomas le-
gais, nos quais a lupa de Sherlock necessria (a CVM pr-
diga em insinuar, aos intrpretes das suas normas, que bus-
quem cabalistas para entender a legislao que edita).

Outra faceta positiva: embora pecando pela inconsis-


tncia o conhecimento legislativo, uma vez que, ao reportar
ao CDA e ao WA, no lugar de dizer, no artigo 5, que os
ttulos devero ter certos requisitos, diz informaes.
pecado grave, pois, em se tratando de ttulos cambiariformes,
os requisitos para sua constituio so da essncia deles. Mas,
mesmo sendo lenientes, digamos que, alm de bem definir os
requisitos (art. 5 ), com aprumo e clareza, na Seo II (arts.
6/20), aborda a emisso dos ttulos, o seu registro e a circula-
o deles.

Ressaltam-me, nestes breves comentrios, de relevncia,


que h, formalmente, declarao do depositante que o pro-
duto de sua propriedade e est livre e desembaraado de
quaisquer nus (art. 6, 1, I). Como o texto diz que
vinculativa essa declarao, inclusive civil e criminalmente,
acrescento, donde comea-se a ingressar na era de que o con-

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 267

tedo da declarao, feita por maior de idade e no livre exerc-


cio de suas faculdades, vlida, enforceable, como gostam
de dizer os mauricinhos da advocacia.

Os CDA e os WA, seguindo a tradio do direito


cartular, admitem as suas emisses em, pelo menos, duas vias,
devidamente numeradas em seqncia. Isso permitir a circu-
lao dos ttulos, dando-lhes at o carter de meio de paga-
mento.

Com propriedade foi redigida a norma do artigo 11,


que define as responsabilidades do depositrio do produto:
na guarda, na conservao, na mantena da qualidade e na da
quantidade. No bastam s essas providncias, cabendo-lhe
ainda: entreg-lo ao credor na quantidade e qualidade con-
signadas no CDA e no WA.

Embora o legislador tenha sido precavido, no me sa-


tisfaz que ele tenha provisionado a possibilidade de quem
emitir CDA e WA, em desacordo com as disposies legais,
ser processado por infringir o art. 178 do Cdigo Penal. Ao
longo dos anos, poucas vezes, verdade, tm ocorrido fraudes
na qualidade ou no tipo ou na descrio do produto, por
faltar dispositivo que obrigue a prvia certificao do produ-
to. Isso poderia ter sido previsto com a certificao do produ-
to, previamente elaborada e completada, atravs de laudo, por
empresa especializada, o que no novidade, nos ltimos 50
anos, e a custo baixo. Seria um tipo de seguro prvio e espec-
fico : menos campo de margem aos estelionatrios.

Da circulao, pode-se ainda examinar um aspecto ino-


vador: o registro eletrnico (art. 17, nico), tido esse regis-
tro como ativo financeiro, sujeito ao sistema de liquidao de
ativos autorizado pelo Banco Central do Brasil.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 265-279 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 267 29/8/2006, 20:17


268 JAYME VITA ROSO

Da mesma forma, a retirada do produto implicar pro-


cedimentos mandamentais, inclusive, e sobretudo, o credor
do CDA providenciar a baixa do registro eletrnico do CDA
e requerer instituio custodiante o endosso na crtula e a
sua entrega (art. 21). H regras rgidas para isso ocorrer, deven-
do, por serem ordenatrias, observadas, para que a transmis-
so de propriedade do produto no seja maculada, pois, as-
sim que feita, extingue-se o mandato que foi conferido, quan-
do se emitiu o CDA, mandato esse irrevogvel para transferir
ao endossatrio a propriedade (art. 6, 1, II).

Todo o processo decorrido para a emisso de CDA e


WA deve ser amparado por seguro obrigatrio, nos moldes
do art. 6, 6, da Lei n 9973/2000, numa gama variada de
ocorrncias e, cristalinamente, numa demonstrao inequvo-
ca da falncia moral dos rgos pblicos, determina : Art.
22. Pargrafo nico. No caso de armazns pblicos, o seguro
obrigatrio de que trata o caput deste artigo tambm conter
clusula contra roubo e furto . Ao invs de normatizar esse
vexame, o Executivo deveria ter proposto a extino ou a
privatizao dos armazns pblicos, pelo menos. E os admi-
nistradores deles, se tivessem vergonha ou pudor, renunciado,
pois o governo e os legislativos sugerem que os armazns p-
blicos so propensos ou tm fortes tendncias a propiciar o
roubo ou furto dos produtos sob sua guarda.

2. O regime jurdico dos CDCA, LCA e CRA est


disposto, organicamente, nos artigos 23 a 27 da lei em co-
mento.

Enquanto o CDCA e a LCA mantm afinidade, pelo


fato de terem disposies comuns que se lhes aplicam, o CRA
foi constitudo como um tipo de crdito, pela natureza, ten-
dente a representar modalidade especial por ser destinado

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 265-279 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 268 29/8/2006, 20:17


CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 269

securitizao de direitos creditrios oriundos do agronegcio,


com exclusividade (arts. 36 e 37). Essa exclusividade abrange
os outros dois, num leque amplo, que merece este destaque :
no art. 23, nico, elencam-se : Os ttulos de crdito de que
trata este artigo so vinculados a direitos creditrios originri-
os de negcios realizados entre produtores rurais ou suas coo-
perativas, e terceiros, inclusive financiamentos ou emprsti-
mos, realizados com a produo, beneficiamento ou industri-
alizao de produtos ou insumos agropecurios ou de mqui-
nas e implementos utilizados na atividade agropecuria.

Com o destaque de que a redao deficiente, inclu-


sive porque busca um intil preciosismo, a probidade inte-
lectual obriga a interpret-la como exclusiva e privativa de
negcios agropecurios, que podem ser exclusiva e privativa-
mente realizados entre produtores rurais ou cooperativas.
Dizendo, por adio, e terceiros, em vez de com tercei-
ros, a malignidade pode conduzir que se emitam os CDCA,
LCA e CRA, com bares vinculados a polticos. abissal a
diferena de se dizer e em lugar de com, mesmo porque,
na gramtica da lngua portuguesa, que estudei, conjuno
no preposio.

No ano de 1969, foi promulgada a Resoluo n 63


pelo Banco Central do Brasil, destinada a financiar o ativo
fixo e o capital de giro das empresas, mediante o repasse de
fundos advindos de bancos estrangeiros, funcionando os ban-
cos locais como repassadores. Houve tanta bandalheira, feita
sob a gide dela, que se desmoralizou. Bem talha dizer-se ter
sido aquela Instruo o veculo do endividamento do Brasil,
atravs do sistema bancrio, ressaltando-se que, durante anos
a fio, apresentou, nos seus balanos, posies artificiais dos
negcios e inverdicas informaes desses negcios e os fiscais
do Banco Central do Brasil engoliram as fraudes.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 265-279 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 269 29/8/2006, 20:17


270 JAYME VITA ROSO

Os CDCA e as LCA tm a mesma natureza jurdica,


com pequenas distines, como procurarei esclarecer.

Enquanto os CDCA s podem ser emitidos por coo-


perativas de produtores rurais e de outras pessoas jurdicas
que exeram a atividade de comercializao, beneficiamento
ou industrializao de produtos e insumos agropecurios ou
de mquinas e implementos utilizados na produo
agropecuria, as LCA, exclusivamente, s podem nascer e en-
trar no mundo jurdico se emitidas por instituies financei-
ras pblicas ou privadas (arts. 24, nico e 26, nico, res-
pectivamente).

Tm os CDCA e as LCA seis disposies comuns, que


se lhes incidem ou aplicam sem restries ou particulares. Pa-
rece-me no pertinente a faculdade contida no artigo 35, pro-
piciando serem criados sob a forma escritural, criando o me-
canismo do seu registro em sistemas de registro e de liquida-
o financeiros de ativos autorizados pelo Banco Central do
Brasil, sendo a entidade registradora responsvel pela transfe-
rncia da titularidade e pela cadeia de endossos (art. 35).

Quando se legisla, a grosso, como aconteceu, a redao


da Seo IV, que mira equalizar disposies comuns para os
CDCA e as LCA, deveria ser mais esclarecedora, como acaba-
mos de ver, quanto emisso e registro, no os envolvendo
com outras modalidades de negcio e de garantia e, em ne-
nhuma hiptese, colocando no limbo os artigos 1.452, caput
e 1.453 do Cdigo Civil de 2002. Facultar s partes que fa-
am pactos parte, seja para justificar as emisses cartulares,
seja para outros (vagamente, como se diz no artigo 31), seja
para instituir garantias e garantias (artigos 52 e 33), um risco
muito grande. Certamente, os personagens que se envolvero
nesses negcios sero precavidos, sendo caso a caso bem exa-

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 271

minados, porque, para os bancos, os riscos sero potencia-


lizados e, para as empresas, as fraudes podem ser bem engen-
dradas. Rigorosa auditoria jurdica deveria acompanhar ne-
gcios in fieri ou acabados, para efeitos de balanos sobretu-
do e de aferio do grau de eficincia da administrao nos
controles.

3. Dentro da cadeia de negcios e de modalidades de


gerao cartular, ingressamos nos CRA, que, como os ante-
riores (CDCA e LCA), so ttulos nominativos, de livre ne-
gociao, representativos de promessa de pagamento em di-
nheiro e constituem ttulos executivos extrajudiciais. o
que dispe o artigo 37. No seu pargrafo nico, todavia,
adverte que o CRA de emisso exclusiva das companhias
securitizadoras de direitos creditrios do agronegcio, nos
termos do pargrafo nico desta Lei. Infeliz a redao, por-
que o mencionado pargrafo nada tem a ver com o tipo de
companhia de securitizao de direitos creditrios do
agronegcio, que est definido como se forma e que finali-
dade tem, no artigo 38.

A lei alargou, exageradamente, a atuao das compa-


nhias que operam os CRA, propiciando-lhes operar com fi-
nanciamento como instituies financeiras, sem fiscalizao
do Banco Central do Brasil. um alerta, porque estas lti-
mas so investidas de poderes para atuar no mercado de capi-
tais, embora o artigo 43 faculte: o CDCA, a LCA e CRA
podero ser distribudos publicamente e negociados em Bol-
sas de Valores e Futuro e em mercados de balco organizados,
autorizados a funcionar pela Comisso de Valores Mobiliri-
os. Pode ocorrer que, fora desses dois balizamentos, se re-
crie, outra vez, o famigerado mercado de agiotagem privada,
que desgraou em muito a economia do agronegcio em pas-
sado no longnquo.

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272 JAYME VITA ROSO

4. Coerente com a forma ou critrio de normatizar os


ttulos, antes abordei que a Lei n 11.076/04 harmonizara as
disposies comuns do CDCA e da LCA, nos artigos 28 a
35, e ela o fez aqueles com o CRA, nos artigos 41/44.

A reduo tabula rasa dos denominadores comuns


entre os trs eficiente e obedece mesma sistematizao
alocativa, quanto s disposies comuns ao CDCA e LCA,
e encerram, na Seo IV, as comuns aos trs ttulos CDCA,
LCA e CRA (Seo VI). Questiono unicamente que, nessa
lei, as disposies entre Captulos, Sees e Subsees pode-
riam ter tido o cuidado de obedecer ao critrio de coerncia
seqencial, uma vez que temos tudo tecido da forma no pr-
tica, para exame e, sobretudo, na aplicao operacional.

Antes de ingressar nos critrios das disposies comuns


aos trs ttulos, ressalto a persistncia do legislador ptrio, no
seu lavor, a remisso do intrprete a outras normas - por sorte,
ainda em vigor - para o entendimento ou esclarecimento de
um determinado conceito, ou termo, ou situao jurgena.

Pontualizando:

a) no artigo 4, I, ao buscar definir o termo deposit-


rio, faz uma confuso redacional, obrigando a uma parada
obrigatria, neste exame. Convenhamos no ser um primor
de redao, bem como confuso, o que nele consta : I- depo-
sitrio: pessoa jurdica apta a exercer as atividades de guarda e
conservao dos produtos especificados no 1 do art. 1
desta Lei, de terceiros e, no caso de cooperativas, de terceiros
e de associados, sem prejuzo do disposto nos arts. 82 e 83 da
Lei n 5764, de 16 de dezembro de 1971.

b) Adiante, no art. 5, III, nas informaes, do que

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 273

deve constar no CDA e no WA, diz : meno de que o dep-


sito do produto sujeita-se Lei n.9973, de 29 de maio de
2000, a esta Lei e, no caso de cooperativas, Lei n 5764, de
16 de dezembro de 1971.

c) J na Subseo II, Das Companhias Securitizadoras


de Direitos Creditrios do Agronegcio e do Regime
Fiducirio, nos artigos 39 e 41, reporta-se aos artigos 9 a 16
e 18 a 20 da Lei n 9514, de 20 de novembro de 1997 e, no
pargrafo nico do art.43, Lei n. 6385, de 7 de dezembro
de 1976, o que lhe dispuser.

O que ressumbra de gravssimo a preguia legislativa


de redigir uma norma, referindo-se, genericamente, como diz,
e teima em se reportar ao disposto, pois no mostra a neces-
sria seriedade de quem o faz. Primeiro, complica o entendi-
mento da que examinada; segundo, num pas, como o nos-
so, em que se legisla despudoradamente, referir-se ao disposto
noutra lei, sem dizer em que artigo, manifestao de falta de
probidade ou desconhecimento de como se procede a feitura
de um texto legal (pelo menos, na redao).

Findas essas consideraes, verdadeiro brado contra a


precria redao das leis brasileiras, retorno s disposies
comuns ao CDCA, LCA e ao CRA.

Todos podem ser objeto de cesso fiduciria em garan-


tia de direitos creditrios do agronegcio (art. 41); todos po-
dem ter clusula expressa de variao do seu valor nominal,
de que seja a mesma dos direitos creditrios a ela vinculados
(art. 42); podem ser distribudos e negociados em Bolsas de
Valores e de Mercadorias e Futuros e tambm em mercados
de balco, estes ltimos autorizados a funcionar pela CVM
(art. 43) e todos devem conter endossos completos, dispen-

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274 JAYME VITA ROSO

sado o protesto cambial para assegurar direito de regresso contra


endossantes e avalistas (art. 44).

A redao do caput do art. 44 acrescentou novidades,


mostrando que de ter saudade de quem redigiu a Lei n
2044/1908, sobre letras de cmbio e notas promissrias.
Sobre conhecer a lngua portuguesa e a tcnica de redigir leis
concisas e coerentes, seu redator conhecia direito cambial.
Aqui, no artigo 44, o legislador contemporneo manda apli-
car ao CDCA, LCA e ao CRA, no que for aplicvel (sic),
as normas de direito cambial e faz as modificaes acima, alte-
rando-as. Por isso, desde o incio, os CDCA, as LCA e os
CRA chamei de ttulos cambiariformes, expresso carinhosa
do inigualvel e j esquecido Pontes de Miranda, para as du-
plicatas mercantis e de servios.

5. A mitologia grega criou a figura do labirinto, sendo


famoso o da Ilha de Creta. Passados anos, o substantivo labi-
rinto passou, figurativamente, a ser sinnimo de beco sem
sada, ou lugar ou situao onde a sada difcil de ser encon-
trada. Alou outras sedes, passando investigao freudiana,
como cogito.

No que o Captulo III, o derradeiro da Lei n 11.076/


04, cuidando das Disposies Transitrias e Finais, empana o
esforo empregado na sua disputa poltica, para que ela viesse
ao mundo. um labirinto, que poderia ter sido evitado na
sua construo, se os legisladores fossem mais aplicados ao
seu lavor, afinal, trabalham pouco, fazem muito rudo e ga-
nham demais pela qualidade de seus produtos.

A parte final contm dez artigos apenas, mas o suficien-


te para produzir mil e uma dvidas, criar incertezas, postergar
a sua aplicao para as dvidas e as incertezas a serem dirimi-

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 275

das, qui, entendidas, antes de executados os ditames da lei


em documentos prprios e antes das instituies financeiras
comearem a operacionalizar com esses ttulos : dar-lhes, como
apoio ao agronegcio, a sua introduo no mercado.

(I) No art. 45, postergando a adaptao s normas pre-


vistas no art. 2 da Lei n 9973/00 aos armazns gerais que
no atendam aos requisitos mnimos (por que no os mxi-
mos?), ou os que no podem faz-lo, tero dois anos para
cumprir o que foi determinado pelo Ministrio da Agricultu-
ra, Pecuria e Abastecimento e, a partir de ento, se atende-
rem os requisitos do art. 2 da Lei n 9.973/00, esses arma-
zns gerais emitiro CDA e WA. Ora, quem deixar de aten-
der, ou no quiser, ou no puder cumprir o que lhe foi deter-
minado, como ficaro, se j emitiram CDA e WA? E, ao invs
dessa lenincia nacional, por que o legislador no obrigou aos
que, ainda, no conseguiram a certificao, se a Lei n 9973/
00 tem quase cinco anos e eles no a cumpriram, atende aos
requisitos, ao revs de dar-lhes a clssica colher de ch?

(II) Ainda vigente o centenrio Decreto n 1102/1903,


os armazns gerais no podero emitir Conhecimentos de
Depsitos e Warrants de produtos agropecurios, seus deriva-
dos, subprodutos e resduos econmicos (art. 1, 1, da Lei
n 11.076/04), devendo observar-se, todavia, o art. 55, II, da
Lei em exame, ou seja, eles podero emitir ditos documentos,
a partir de 365 dias da publicao dessa lei, ou seja, podem
comear a faz-lo no dia 1 de janeiro de 2006. Precisava tudo
isso, com remisso a artigos e a permisso posterior?

(III) Ao mudar a redao do caput do art. 82, da Lei n


5764/71, a novel legislao amplia a noo de cooperativa, a
clssica, para conceder-lhe a possibilidade de, se se dedicar a
vendas em comum (sic), registrar-se como armazm geral e,

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276 JAYME VITA ROSO

mais ainda, caso queira ir alm, trabalhando nas atividades


elencadas pela Lei n 9973/00, a qual tambm opera subseqen-
temente, enquanto armazm geral, com a emisso de Conheci-
mento de Depsito, Warrant, CDA e WA. Se cooperativa,
dever operar somente com produtos de seus associados, quer
mantenha seus armazns, prprios ou no. No se lhes inibe a
emisso de outros ttulos, privativa de suas atividades regulares.

(IV) Em a alnea acima (I), o legislador autoriza os arma-


zns que no obtiveram a certificao obrigatria do art. 2 ,
da Lei n 9973/00, a emitir ttulos CDA e WA, por dois
anos. No art. 48, modificada a prpria Lei n 9973/00,
dando-se nova redao ao 3, art. 6, para permitir que o
depositrio e o depositante podero definir, de comum acor-
do, a constituio de garantias, as quais devero estar registradas
no contrato de depsito ou no Certificado de Depsito -
CDA. Com isso, remete-nos necessidade de cuidar, com
aprumo, das conseqncias, porque segundo o art. 5, XIV,
requisito formal do CDA: ... qualificao da garantia ofereci-
da pelo depositrio, quando for o caso.

No art. 48, ao mudar o 3, do art. 6, da Lei n 9973/


00, sugerem-se garantias (no plural) e no art. 5, XIV, desta
novel lei, sugere-se garantia (no singular). A forma no plural
constrange as partes, quando negociarem? Parece-me que sim.

Alm disso, no modificando s o art. 6, no 3,


mas, acrescentando o 7, para dizer que isso no se aplica s
cooperativas, na constituio das garantias, para com os asso-
ciados, o legislador no pode levar as cooperativas insolvn-
cia (v.g., Cotia, no recente passado), quando operava sem ga-
rantia, com os associados?

(V) Ao alterar o art. 2, da Lei n 8427/92, no 1,


inciso II e no 3, embora a inteno parea louvvel, mos-

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 277

trando calva a influncia decisiva do Ministrio da Agricul-


tura, como corolrio do que fez em todo o texto, investe na
interveno do Poder Pblico no mercado, uma vez que pres-
creve: II- no mximo, a diferena entre o preo de exerccio
em contratos de opes de venda de produtos agropecurios
lanados pelo Poder Executivo ou pelo setor privado e o valor
de mercado desses produtos, para concluir: 3. A subven-
o a que se refere este artigo ser concedida, mediante a ob-
servncia das condies, critrios, limites e normas estabelecidas
no mbito do Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abasteci-
mento, de acordo com as disponibilidades oramentrias e
financeiras existentes para a finalidade. interveno direta
do Governo no mercado, que entendo necessria e salutar.

Esse 3, se estivssemos no regime da Constituio de


69, entenderamos como norma de impulso econmico, pelo
Governo, que, diante da importncia que representa o
agronegcio, inclusive, poder usar ou provisionar verbas or-
amentrias ou disponibilidades financeiras para manter pre-
os, embora isso no esteja na lei, ou para enfrentar situaes
adversas no mercado do agronegcio. um caminho que
parece adequado, uma vez que as receitas de exportao decor-
rentes do agronegcio so substanciais e decisivas para o con-
junto da Poltica Econmica e equilibra os preos de produ-
tos essenciais alimentao, sem provocar possveis aumentos
na inflao.

(VI) Como no poderia estar ausente, a Cdula de Pro-


duto Rural (CPR) foi lembrada e, o que louvvel, inserida
no sistema que essa lei instituiu, para adapt-la aos novos pro-
cedimentos.

Da sua normatizao, consolidada na Lei n 8929, de


22 de agosto de 1994, ao artigo 19 foram acrescidos os 3

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278 JAYME VITA ROSO

e 4, com o escopo de esclarecer que a CPR registrada no


sistema de ativos do Banco Central do Brasil ter caractersti-
cas assemelhadas s anteriores, assim sintetizadas : a) a CPR
ser cartular, antes do registro e aps a baixa; escritural ou
eletrnica quando registradas em sistema de registro e de li-
quidao financeira; b) quando eletrnica, os negcios ocorri-
dos com ela no sero transcritos no verso dos ttulos e c)
quem (entidade) a registrar responsvel pela manuteno da
cadeia de negcios ocorridos, na entidade que a registrou
(idem, ao que consta nos artigos 19 e 20, 35, I e seu nico,
desta Lei n 11.276/04).

(VII) Enquanto que o art. 52 regulamenta a Taxa de


Fiscalizao (instituda pela Lei n 7940/89), esperando a so-
ciedade que o fato de ser paga acontecer com diligncia, seri-
edade e eficcia; no art. 53, inova, quando ao modificar os
arts. 22, nico e 38, da Lei n 9514, de 20 de novembro de
1997, permite que pessoa fsica contrate, antes s privativa da
jurdica, que operasse no Sistema Financeiro, inclusive, sobre
bens enfituticos e a realizao de atos de transferncia, cons-
tituio, modificao ou renncia de direitos reais ou im-
veis, por instrumento particular, com efeito de escritura p-
blica, ou por ela mesma. Aqui, outra vez, recordo. Se o
Governo cobra imposto de fiscalizao e no o faz, em caso de
quebra ou interveno ou liquidao de qualquer ente vincu-
lado ao Sistema Financeiro, pode ser responsabilizado (negli-
gncia, m-f ou dolo).

(VIII) Salutar, sob qualquer tica, essa instituciona-


lizao de instrumentos legais que permitem impulsionar os
agronegcios no Brasil, sobretudo porque poder haver mai-
or canalizao de recursos privados para esta rea, no se es-
quecendo da existncia e da importncia da agricultura famili-
ar, to carente de recursos financeiros e apoio tcnico.

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CDA, WA, CDCA, LCA e CRA: as novas siglas que talvez possam dar futuro... 279

Augura-se que o futuro mostre que os agentes econ-


micos e os financeiros se unam e utilizem estes novos instru-
mentos para o bem, unicamente. E que exista vigilncia por
parte dos fornecedores de recursos (sobretudo interna) e que
o Governo, que ganha para fiscalizar, no crie ou apresente
escusas, se algum evento ocorrer por infringncia legal e resul-
tem danos a quem quer que seja, se ele foi culpado (como
ente).

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280 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

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A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 281

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO
DEPSITO RECURSAL PRVIO DA
ESFERA ADMINISTRATIVA

Jos Carlos Arruda Dantas


Procurador do Estado de Pernambuco.
Professor da Escola Superior da Magis-
tratura ESMAPE. Advogado. Especialista
em Direito Processual Civil pela Faculdade
de Direito do Recife UFPE.
Autor dos artigos: Controle de Constitucio-
nalidade de Leis: aspectos doutrinrios (Revista
da ESMAPE n. 07); Habeas Corpus na Justia
do Trabalho (Revista CONSULEX);
A(des)necessidade da firma reconhecida no
instrumento procuratrio ad judicia (Revista
da ESMAPE n. 08) e Tutela cautelar e tutela
antecipatria: elementos de distino (Revista
da ESMAPE n. 09.

SUMRIO
1 INTRODUO. 2 DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO TRIBUT-
RIO. 3 DO DEPSITO RECURSAL. 4 DA AMPLA DEFESA E DO CONTRA-
DITRIO. 5 DO DUPLO GRAU DE JURISDIO. 6 DA JURISPRUDN-
CIA. 7 CONCLUSES. 8 REFERNCIAS

1 INTRODUO

Escolhemos como objeto deste artigo o exame acerca


da constitucionalidade do depsito recursal prvio nos recursos
administrativos. E, como se sabe, inmeras normas condi-

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282 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

cionam o exame do recurso administrativo comprovao da


efetivao do prvio depsito recursal.

Essa prtica no nova entre ns e a cada inovao


legislativa que passa a exigi-la ressuscita o debate. Recentemente,
atravs da Lei Estadual n. 11.903/00, o Estado de Pernam-
buco passou a exigir o depsito prvio de 20% (vinte por
cento) do valor da quantia que se discute como requisito de
admissibilidade recursal.

H vozes, notadamente do meio empresarial, que se


opem obrigatoriedade do mencionado depsito, alegando,
na esfera judicial, em sntese, que tal imposio viola os
princpios constitucionais da ampla defesa e do contraditrio.

Assim, no trato do tema, inicialmente, examinaremos


os conceitos fundamentais relacionados ao tema, para, em
seguida, analisarmos os princpios constitucionais diretamente
vinculados, mais precisamente, ao princpio constitucional da
ampla defesa, do contraditrio e do duplo grau, procurando
fixar seus alcances quer seja na esfera administrativa quer seja
na judicial.

E, como se demonstrar, a exigncia dessa cauo na


esfera administrativa, para fins de interposio de recurso, no
viola ditos princpios. ao revs, prestigia os da proporcio-
nalidade e da capacidade contributiva, da igualdade das partes,
alm do contido no art. 151, incisos II e III do CTN.

Tal exignci revela-se verdadeiro pressuposto objetivo


de admissibilidade recursal. Assim a falta do prvio depsito
impede que o rgo julgador administrativo conhea do
recurso, porventura interposto.

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A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 283

2 DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO TRIBU-


TRIO

Atualmente, em nosso ordenamento jurdico, o


contencioso administrativo, notadamente o tributrio, pode
ser exercido por autoridades administrativas ou judiciais ou,
ainda, simultaneamente, em ambas as esferas. o que se
denomina de sistema de jurisdio una, com a existncia de
Tribunais Administrativos, desprovidos de funo jurisdicional.
No exercem, pois, tais Tribunais atividade judicante, como
tambm no tm o poder de proferirem decises imutveis,
pois, esto e estaro sempre suas decises sujeitas ao exame e
ao julgamento por parte dos rgos jurisdicionais.

Entretanto, no sistema constitucional anterior, regido


pela Carta de 1967, com a redao dada pela Emenda n 01,
de 1969, e, mais precisamente, pela Emenda n 07/77, no se
aplicava no Brasil o sistema de jurisdio una. Havia a previso,
atrelada sua regulamentao lei complementar, de um con-
tencioso administrativo (art. 111 da CF de 1967); bem como,
permitia-se o condicionamento do ingresso em juzo ao exauri-
mento prvio das vias administrativas. Contudo, impunha-se
a no exigncia de garantia de instncia, nem a ultrapassagem
do prazo mximo de 180 (cento e oitenta) dias para a deciso
sobre o pedido (4 do art. 153 da CF de 1967).

Embora no tenha sido editada dita lei complementar,


a previso constitucional de dualidade de jurisdio (adminis-
trativa e judicial) existia na prtica. Este modelo de contencioso
administrativo se assemelhava ao existente na Frana, onde
havia uma indiscutvel dualidade de jurisdio.

Outrossim, vale lembrar que a deciso de primeira


instncia administrativa substituiria a deciso de primeira

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284 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

instncia judicial. No havendo mais a possibilidade de se


retornar fase probatria ou, ainda, de trazer novos fatos que
pudessem exercer influncia na deciso a ser proferida pelo
Tribunal1 , o Poder Judicirio apenas participava do julgamento
em instncia recursal.

3 DO DEPSITO RECURSAL

Inmeras leis infraconstitucionais prevem, como


condio de recorribilidade das decises administrativas, o
depsito prvio do valor da causa, da condenao ou da quantia
que se discute.

Essa exigncia prvia e obrigatria de realizao do


depsito recursal, comumente encontrada nas normas referentes
aos procedimentos administrativos, evidencia-se como verda-
deiro pressuposto objetivo de admissibilidade recursal.

Como se sabe os pressupostos processuais recursais se


subdividem em objetivos e subjetivos. Estes, referem-se pessoa
que est recorrendo. Aqueles, referem-se ao recurso em si
mesmo considerado, e se subdividem em gerais, que seriam a
recorribilidade do ato decisrio, a tempestividade, a singula-
ridade recursal e a adequao; e especficos, correspondentes
ao processo e procedimento de cada espcie recursal.

Cumpre destacar que a aludida exigncia somente se


aplica s pessoas jurdicas. H uma total excluso das pessoas
naturais dessa exigncia, o que no altera em nada sua natureza,
quer seja ela constitucional ou inconstitucional.

1
CASTRO, Alexandre Barros. Procedimento Administrativo TTribu-
ribu-
trio.. So Paulo: Atlas, 1996. p. 89.
trio

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Sem ttulo-6 284 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 285

A principal assertiva acerca da inconstitucionalidade


dessa exigncia repousa na alegao de que se estaria violando
os princpios constitucionais da ampla defesa e do con-
traditrio.

Assim, para que possamos esposar ou espancar qualquer


das correntes existentes mister se faz que teamos alguns
comentos acerca desses princpios, para posteriormente nos
posicionarmos.

4 DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITRIO

O direito constitucional ampla defesa e ao contra-


ditrio tem por escopo oferecer aos litigantes, seja em processo
judicial ou administrativo, o direito reao contra atos
desfavorveis, momento esse em que a parte interessada exerce
o direito ampla defesa, cujo conceito abrange o princpio
do contraditrio2 .

A observncia da ampla defesa ocorre quando dada


ou facultada a oportunidade parte interessada de ser ouvida
e a produzir provas, no seu sentido mais amplo, com vista a
demonstrar a sua razo no litgio.

Nesse sentir, destacamos o pensar de Ada Pellegrini


Grinover3 , ... a Constituio Federal no mais limita o con-
traditrio e a ampla defesa aos processos administrativos
(punitivos) em que haja acusados, mas estende as garantias a
todos os processos administrativos, punitivos e no punitivos,
ainda que neles no haja acusados, mas simplesmente litigantes.

2
CRETELLA JNIOR,Jos. Comentrios Constituio de 1988.
3.ed. Rio de Janeiro:: Forense Universitria, 1992. v. I, p. 533.
3
Do direito de defesa em inqurito administrativo
administrativo, p. 84-85.

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286 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer,


surja um conflito de interesses. No preciso que o conflito
seja qualificado pela pretenso resistida, pois neste caso surgiro
a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partcipes do
processo administrativo se anteponham face a face, numa
posio contraposta.

Na verdade, o princpio da ampla defesa assegura aos


litigantes a livre produo das provas, a cincia dos atos
processuais, o direito de vista dos autos, de modo que, sendo
impedido de exercer a sua defesa no processo ter, em seu
favor, o reconhecimento da nulidade de tais atos, face ao
desrespeito previso constitucional.

Segundo o magistrio de Nelson Nery Jnior: Por


contraditrio deve entender, de um lado, a necessidade de
dar-se conhecimento da existncia da ao e de todos os atos
do processo s partes; e de outro, a possibilidade de as partes
reagirem aos atos que lhe sejam favorveis. Os contendores
tm direito de deduzir suas pretenses e defesas, realizarem as
provas que requereram para demonstrar a existncia de seu
direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no
processo em todos os seus termos4 .

Em sntese, podemos dizer que contraditrio significa


direito cincia e participao, participar conhecendo,
participar agindo. Assim, como demonstrado, sob o plio da
vigente Constituio, no viola os princpios da ampla defesa
e do contraditrio a exigncia do depsito prvio como
pressuposto de admissibilidade recursal, posto que, ter-se-ia,

4
NERY JNIOR, Nelson. Princpios de Processo Civil na Consti-
tuio FFederal.
ederal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 122-123.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 286 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 287

quando da instaurao o processo administrativo aberto


oportunidade de defesa ampla e participao ao administrado.

No entanto, no se pode aceitar que, diante da existncia


e previso constitucional do princpio da ampla defesa, o
litigante, no processo administrativo, no se submeta a deter-
minadas limitaes e condicionamentos de ordem processual.

Destaque-se que no processo administrativo estadual


(Lei n. 10.654/91 e alteraes posteriores), aps a lavratura
da Notificao de Lanamento, facultado ao notificado o
direito de apresentar defesa no prazo azado na legislao supra,
sem nenhuma limitao ou requisito de admissibilidade.
Evidencia-se, portanto, que inexiste qualquer empecilho ou
restrio ao exerccio da ampla defesa ou do contraditrio.

Em sede administrativa fiscal, no se faz necessria que


a plenitude de defesa se estenda s vias recursais.

Nas hipteses de cobrana de tributos, o contribuinte,


ao impugnar um lanamento tributrio, exerce o seu direito
de defesa perante a autoridade administrativa, podendo se
valer, caso no se conforme com a deciso da mesma, de recurso
junto ao respectivo Tribunal Administrativo Tributrio. Os
recursos administrativos vo buscar, no Direito Processual Civil,
a sua natureza jurdica e os seus pressupostos legais de
admissibilidade.

5 DO DUPLO GRAU DE JURISDIO

A noo de recurso, melhor delineada na Idade Mdia,


possui remotos antecedentes no direito romano, que j previa
a existncia de determinados instrumentos para o reexame de
decises judiciais. Os institutos denominados apellatio, restitutio

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 287 29/8/2006, 20:17


288 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

in integrum e querela nullitatis so os antepassados dos atuais


recursos e aes autnomas de impugnao.

O direito processual ptrio consagra, na Constituio,


cdigos e leis esparsas, um sistema de recursos (cveis,
administrativos, penais e trabalhistas). Todos estes recursos
esto vinculados ao princpio do duplo grau de jurisdio,
que possibilita parte sucumbente pedir o reexame da deciso
que lhe foi desfavorvel para outra instncia judicial ou
administrativa de categoria superior, em geral, mais habilitada
para empreender uma nova anlise da causa.

Expressivo nmero de processualistas ressalta o carter


psicolgico vinculado idia de recurso. A parte vencida no
primeiro grau no se contenta, na maioria dos casos, por fora
do inconformismo humano, com apenas uma apreciao da
causa. A isto acresce-se a possibilidade presente de decises
ilegais e injustas, seja em decorrncia de equivocada interpre-
tao/aplicao da lei, seja diante da circunstncia da autoridade
ter laborado sob a influncia de interesses escusos, ou em outras
hipteses semelhantes.

Da a possibilidade de reexame da matria por um rgo


hierarquicamente superior, composto, em tese, por juzes mais
experientes.

Contudo, assente o entendimento de que o duplo grau


de jurisdio pode ser limitado pela Administrao quando da
reviso de seus atos, haja vista no ter acento constitucional.

Com lastro nas lies de Wagner Giglio5 e Manoel A.

5
GIGLIO, Wagner. Direito PProcessual
rocessual do TTrabalho
rabalho
rabalho. 8.ed. So Pau-
lo: LTr , s.d. p. 359.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 288 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 289

Teixeira Filho6 , podemos afirmar que o texto constitucional


no estabelece a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdio7 ,
mas apenas garante a utilizao dos recursos prprios e adequa-
dos (inerentes) ampla defesa, nos casos e termos fixados pela
legislao ordinria.

A aceitao lgica do duplo grau de jurisdio no


algo absoluto e intangvel, ficando sua regulamentao e cabi-
mento para a lei ordinria, que pode, em determinados casos,
vet-los simplesmente.

Isso se d, porque a permanncia da discusso na via


administrativa uma faculdade, e no um direito, uma vez
que o interessado sempre ter livre acesso ao Poder Judi-
cirio.

Ademais, com a deciso da primeira instncia adminis-


trativa, o administrado j ter a posio da administrao em
relao a sua pretenso.

O que a Constituio assegura junto aos poderes


pblicos o direito de petio que no se confunde com o
exerccio recursal em mltiplas instncias administrativas de
conhecimento, no mais das vezes, com o mero desiderato de
obter efeito suspensivo em sua exigibilidade independente de
garantia, adiando o lanamento definitivo, contando com a
proverbial demora de julgamento em rgos assoberbados por
invencvel acmulo de processos.

6
TEIXEIRA FILHO, Manoel A. Sistema dos R Recursos
ecursos. 4. ed. So Paulo:
ecursos
LTr, s.d. p.. 46-47.
7
Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordi-
nrio n 210.243-1/DF.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 289 29/8/2006, 20:17


290 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

Nelson Nery Jnior, sobre a matria, ensina que:

A diferena sutil, reconheamos, mas de grande


importncia prtica. Com isto queremos dizer que, no haven-
do garantia constitucional do duplo grau, mas mera previso,
o legislador infraconstitucional pode limitar o direito de
recurso, dizendo, por exemplo, no caber apelao nas execu-
es fiscais de valor igual ou inferior a 50 ORTNs (art. 34 da
Lei n 6.830/80).

Estes artigos no so inconstitucionais justamente em


face da ausncia de garantia do duplo grau de jurisdio8 .

...

E no Brasil, a prpria Constituio Federal que d a


tnica, os contornos e os limites do duplo grau de jurisdio.
Assim, para que se efetive o binmio segurana justia, os
litgios no poderiam perpetuar-se no tempo, a pretexto de
conferirem maior segurana queles que esto em juzo
buscando a atividade jurisdicional substituidora de suas
vontades. O objetivo do duplo grau de jurisdio , portanto,
fazer adequao entre a realidade no contexto social de cada
pas e o direito segurana e justia das decises judiciais
que todos tm de acordo com a Constituio Federal. Essa
a razo por que a nossa Constituio no garante o duplo
grau de jurisdio ilimitadamente, como o fez a do Imprio,
de 1824, regra que no foi seguida pelas demais Constituies
brasileiras9 .

8
NERY JNIOR, Nelson. Op. Cit., p. 145.
9
NERY JNIOR, Nelson. Princpios FFundamentais
undamentais TTeoria
eoria Geral
dos Recursos. So Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997. p. 124.
Recursos.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 290 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 291

Em defesa dessa tese, destacam os doutos inmeras


normas em plena vigncia e aplicabilidade que limitam,
de alguma forma ou, se no, vedam o duplo grau de
jurisdio, a saber:

No cabe recurso de apelao nas execues fiscais de


valor igual ou inferior a 50 (cinqenta) Obrigaes Reajustveis
do Tesouro Nacional ORTN (art. 34 da Lei n. 6.830/80);

Das decises proferidas pelos juizados especiais criados


pela Lei n 9.099, de 26 de setembro de 1995, no cabe recurso
para o Tribunal de Justia e Superior Tribunal de Justia; dos
despachos de mero expediente no cabe recurso, consoante
dispe o art. 504 do Cdigo de Processo Civil; dentre outras
limitaes ao direito de recorrer existentes no nosso
ordenamento, sem ferir o inciso LV do art. 5 da Constituio
da Repblica de 1988.

O art. 8 da Lei n 8.542, de 23 de dezembro de 1992,


que alterou o art. 40 da Lei n 8.177, de 1 de maro de 1991,
que estabelece o depsito recursal para a admissibilidade dos
recursos no processo trabalhista, teve a sua eficcia mantida
pelo Supremo Tribunal Federal, ao indeferir pedido liminar
na Ao Direta de Inconstitucionalidade n 836-6, impetrada
pela Confederao Nacional da Indstria.

O art. 93 da Lei n 8.212, de 24 de julho de 1991, que


impe como requisito para o seguimento do recurso, de
processo originado por infrao de obrigao acessria
previdenciria, o depsito prvio de 100% do valor da multa
atualizada monetariamente. Mais uma vez, o Supremo Tribunal
Federal, ao julgar o pedido liminar na Ao Direta de Incons-
titucionalidade n 1.049-2, o indeferiu, mantendo a eficcia
desse dispositivo.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 291 29/8/2006, 20:17


292 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

No processo do trabalho temos o no menos comen-


tado art. 2, 4, da Lei n 5.584/70, que veda qualquer
recurso contra sentenas proferidas nos dissdios de alada (at
dois salrios mnimos), salvo se versar sobre matria constitu-
cional, com a finalidade de dinamizar as aes trabalhistas, o
que s no foi atingido a contento porque o valor de dois
salrios mnimos baixo e s atinge alguns feitos trabalhistas
(este valor, como se v, bem inferior queles limites criados
pelas Leis ns 6.825 e 6.830/80).

A obrigatoriedade, nas questes previdencirias, de


efetivao do depsito recursal da ordem de 30% (trinta por
cento) da exigncia fiscal est definida na deciso administrativa,
como requisito para interposio de recurso previsto nos
1 e 2, do artigo 126, da Lei n 8.213/91, introduzidos por
ocasio da reedio da Medida Provisria n 1608-11, de 05
de fevereiro de 1998. Dita Medida Provisria veio a ser substi-
tuda pela de n 1.973-61, de 04 de maio de 2000, onde perma-
neceu a exigncia compulsria do depsito no percentual
referido como condio de admissibilidade do recurso do
contribuinte na esfera administrativa.

Portanto, nos termos acima expostos, no h que se


falar em violao ao texto constitucional e ampla defesa quan-
do a legislao especfica estabelece como requisito de admis-
sibilidade do recurso administrativo a exigncia do depsito
prvio.

O que se afigura indispensvel destacar no presente


trabalho que, embora tenha a Constituio Federal assegu-
rado o contraditrio e a ampla defesa aos litigantes em processo
administrativo ou judicial, no se pode acatar o argumento
de que qualquer norma inferior que reclame o prvio depsito,
no todo ou em parte, dos valores impugnados, para que seja

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 292 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 293

possvel a interposio de recurso instncia decisria superior,


estar vulnerando, frontalmente, os citados princpios, explici-
tamente consignados em nosso ordenamento constitucional.

No se diga tambm que a exigncia do depsito prvio


atenta contra o princpio do devido processo legal (art. 5,
LIV, da CF), posto que ao contribuinte dada a oportunidade
de obter uma apreciao de sua situao, na esfera adminis-
trativa, podendo, ainda, pleitear a apreciao em tela, na esfera
do Poder Judicirio.

Por fim, cabe tecer alguns comentrios em torno da


exigncia do depsito prvio, nos recursos administrativos,
luz do contido no artigo 151, II e III, do Cdigo Tributrio
Nacional.

Ao teor desse artigo verificasse que somente se suspende


a exigibilidade do crdito tributrio quando o depsito for
integral e em dinheiro, conforme, inclusive, se encontra previsto
na Smula n 112, do Superior Tribunal de Justia.

Nesses casos, o depsito gera o efeito suspensivo, de


modo a impedir a execuo judicial. Por outro lado, este
depsito uma mera faculdade do contribuinte, que pode
efetu-lo ou no, seja nos autos da ao principal ou em ao
autnoma.

Assim, a prvia exigncia do depsito recursal home-


nageia o contido nos dispositivos supra. Por conseguinte,
incumbe a cada ente poltico estabelecer, nos termos do
previsto no Cdigo Tributrio Nacional, as condies, os
limites e as situaes em que podero ser oferecidos impugna-
es ou recursos.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 293 29/8/2006, 20:17


294 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

6 DA JURISPRUDNCIA

Os Tribunais ptrios divergiam a respeito da constitu-


cionalidade da imposio de depsito, como condio para a
admissibilidade de recurso, em diversas espcies de procedi-
mentos administrativos.

A imposio do prvio recolhimento de parte do crdito


tributrio, ainda em debate, para que o administrado,
na condio de contribuinte, possa exercer o direito da
ampla defesa, repudivel. Ao legislador infracons-
titucional no se admite criar restries ou dificuldades
na utilizao de direitos consagrados constitucio-
nalmente, promovendo pressuposto de admissibilidade
recursal administrativa, de ordem pecuniria10.

Enquanto alguns Tribunais no admitiam restries


chamada primeira instncia administrativa, outros entendiam
que a exigncia de depsito prvio no viola o direito ampla
defesa, uma vez que o princpio do duplo grau de jurisdio
no absoluto, comportando limitaes de ordem infracons-
titucional. A suspenso da exigibilidade do crdito tributrio,
em virtude de reclamaes e recursos administrativos, deve ser
exercida nos termos das leis e regulamentos administrativos.
O recurso administrativo uma faculdade do contribuinte,
sendo-lhes assegurada a via judicial, no se podendo atribuir
ao depsito prvio, o carter de taxa ou de confisco11 .

Contudo, esse embate ficou prejudicado, aps manifes-


tao do Supremo Tribunal Federal acerca da compatibilidade

10
TJRJ - Agravo de Instrumento n 2830/2000 (19072000) - 11 Cmara
Cvel - Relator: Des. Cludio de Mello Tavares J. em 08.06.2000.
11
TRF/3 REGIO - Apelao em Mandado de Segurana n 1999.61.12.002934-
8 - SP - Relatora: Des. Therezinha Cazerta J. em 09.02.2000.

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Sem ttulo-6 294 29/8/2006, 20:17


A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 295

das normas que versam sobre o depsito recursal na esfera


administrativa com o ordenamento constitucional vigente.

CONSTITUCIONAL. RECURSO ADMINIS-


TRATIVO. MULTA. DEPSITO PRVIO.
ART. 93 DA LEI N 8.212/91.

O Plenrio do Supremo Tribunal Federal, no julga-


mento do RE 210.246, decidiu pela constitucionalidade da
exigncia do depsito do valor da multa, como condio de
admissibilidade do recurso administrativo. Precedentes.
Recurso extraordinrio conhecido e provido.12

7 CONCLUSES

1. A Carta Poltica de 1988 adotou o sistema de


jurisdio una, espancando a dualidade existente na Cons-
tituio de 1967, com a redao dada pela Emenda n 01, de
1969, e, mais precisamente, pela Emenda n 07/77;

2. A ampla defesa e o contraditrio tm por escopo


oferecer aos litigantes, seja em processo judicial ou adminis-
trativo, o direito reao contra atos desfavorveis. Sua
observncia ocorre quando dada ou facultada a oportunidade
parte interessada de ser ouvida e a produzir provas, no seu
sentido mais amplo, com vista a demonstrar a sua razo no
litgio;

3. No viola os princpios da ampla defesa e do


contraditrio a exigncia do depsito prvio como pressuposto
de admissibilidade recursal;

12
1 Turma Recurso Extraordinrio 280941/MG Relator: Min. Ilmar
Galvo julgado em 03 de outubro de 2000 publicado no Dirio da
Justia da Unio em 09 de fevereiro de 2001.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 295 29/8/2006, 20:17


296 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

4. Nas hipteses de cobrana de tributos, o contri-


buinte, ao impugnar um lanamento tributrio, exerce o seu
direito de defesa perante a autoridade administrativa,
podendo se valer, caso no se conforme com a deciso da
mesma, de recurso junto ao respectivo Tribunal Adminis-
trativo Tributrio;

5. Em sede administrativa fiscal, no se faz necessria


que a plenitude de defesa se estenda s vias recursais;

6. O texto constitucional no estabelece a obrigatorie-


dade do duplo grau de jurisdio, apenas garante a utilizao
dos recursos prprios e adequados (inerentes) ampla defesa,
nos casos e termos fixados pela legislao ordinria;

7. A permanncia da discusso na via administrativa


uma faculdade, e no um direito, uma vez que o interessado
sempre ter livre acesso ao Poder Judicirio;

8. Com a deciso da primeira instncia administrativa,


o administrado j ter a posio da administrao em relao
a sua pretenso;

9. A Constituio assegurada junto aos poderes pblicos


o direito de petio que no se confunde com o exerccio
recursal em mltiplas instncias administrativas de conheci-
mento, no mais das vezes, com o mero desiderato de obter
efeito suspensivo em sua exigibilidade, independente de ga-
rantia, adiando o lanamento definitivo, contando com a
proverbial demora de julgamento em rgos assoberbados por
invencvel acmulo de processos;

10. No h que se falar em violao ao texto constitucio-


nal e ampla defesa quando a legislao especfica estabelece

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

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A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DEPSITO RECURSAL PRVIO... 297

como requisito de admissibilidade do recurso administrativo


a exigncia do depsito prvio;

11. No se diga tambm que a exigncia do depsito


prvio atenta contra o princpio do devido processo legal (art.
5, LIV, da CF), posto que ao contribuinte dada a oportu-
nidade de obter uma apreciao de sua situao, na esfera
administrativa, podendo, ainda, pleitear a apreciao em tela,
na esfera do Poder Judicirio;

12. O Plenrio do Supremo Tribunal Federal decidiu


pela constitucionalidade da exigncia do depsito do valor da
multa, como condio de admissibilidade do recurso adminis-
trativo.

8 REFERNCIAS

CASTRO, Alexandre Barros. Procedimento Administrativo


Tributrio. So Paulo: Atlas, 1996.

CRETELLA JNIOR, Jos. Comentrios Constituio de


1988. Rio de Janeiro, Forense, 1992.

GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho. So Paulo:


LTr, 1992.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Do Direito de Defesa em


Inqurito Administrativo. In: O PROCESSO EM EVOLU-
O. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

NERY JNIOR, Nelson. Princpios de Processo Civil na


Constituio Federal. So Paulo: Revistas dos Tribunais,
1996.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 297 29/8/2006, 20:17


298 JOS CARLOS ARRUDA DANTAS

__________. Princpios Fundamentais Teoria Geral dos


Recursos. So Paulo: Revistas dos Tribunais, 1997.

TEIXEIRA FILHO, Manoel Alves. Sistema de Recursos. So


Paulo: LTr, 1992.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 281-298 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 298 29/8/2006, 20:17


A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 299

A RECUPERAO JUDICIAL E
EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI DE
FALNCIA

Karla Virgnia Bezerra Carib


Estudante da Faculdade de Direito do
Recife (UFPE). No II Congresso Jurdico
de Estudantes de Direito, publicou o
trabalho intitulado O Conselho Tutelar
e sua Funo de Fiscalizar os Direitos da
Criana e do Adolescente

SUMRIO
1 INTRODUO
INTRODUO;; 2 DOS ASPECT ASPECTOSOS GERAIS A CERCA D
ACERCA DAA EX
EX--
TINTA
TINT A CONCORD
CONCORDA ATA ; 3 DO SURGIMENT
SURGIMENTO O DO INSTITUT
INSTITUTO O D A
DA
RECUPERAO EMPRESARIAL; 4 DA RECUPERAO EXTRAJUDI-
CIAL
CIAL; 4.1 Dos Crditos Atingidos; 4.2 Do Procedimento; 5 DA RECUPE-
RAO JUDICIAL
JUDICIAL; 5.1 Dos Meios de Recuperao Judicial- Planos; 5.2.
Dos Crditos Atingidos; 5.3 Do Comit de Recuperao e do Administrador
Judicial; 5.4 Da Assemblia Geral de Credores; 5.5 Do Procedimento; 6 DA
TRANSFORMAO D DAA RECUPERAO JUDICIAL EM FFALNCIA ALNCIA ;
7 CONSIDERAES FINAIS; 8 REFERNCIAS REFERNCIAS.

1 INTRODUO

Depois de 12 anos de tramitao, o projeto da nova Lei


de Falncias foi aprovado pelo Congresso Nacional,
sancionado e promulgado pelo Presidente da Repblica, dando
origem Lei n 11.101 de 09 de fevereiro de 2005. A nova lei
substituiu o Decreto-Lei n 7.661/45, que apesar de ter
durante muito tempo regulamentado e disciplinado a matria

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 299-318 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 299 29/8/2006, 20:17


300 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

falimentar, no mais estava atendendo s necessidades da


sociedade brasileira, em virtude principalmente das mudanas
ocorridas na economia e nas prticas empresarias em todo o
mundo no derradeiro sculo.

De uma anlise da nova Lei de Falncias, verifica-se que


seu objetivo maior permitir que as empresas que se encontrem
em dificuldades financeiras se recuperem, assegurando o
pagamento dos impostos e das dvidas e preservando os empre-
gos. Entre as principais mudanas trazidas pela nova legislao,
pode-se apontar o fim da concordata e a adoo do sistema de
Recuperao Judicial e Extrajudicial das empresas em crise
econmica, mecanismos que visam a recuper-las.

Segundo o relator da Lei de Falncias, deputado


Osvaldo Biolchi1 , o conceito de recuperao de empresa deve
ser compreendido no apenas como inovao legal e, sim, co-
mo uma evoluo na atual forma de tratamento do instituto
falimentar, que atualmente carece de credibilidade. Nesses
dias se impetra uma concordata ou uma falncia com muita
facilidade, observando-se um total abuso do instituto, pois
quase 80% das empresas que pedem concordata no se
recuperam mais e caminham, fatalmente, para a falncia.

Em boa hora, a atitude do legislador em buscar outros


meios que viabilizem a recuperao do empresrio e da socie-
dade empresria com dificuldades financeiras. O saneamento,
quando necessrio, doravante, dar-se- por meio da recuperao
judicial e extrajudicial. A importncia deste novo instituto
justifica o presente trabalho, que pretende, de forma sucinta,
mas suficiente, analisar esta inovao legal.

1
SANTANA. Maristela. O fim da concordata preventiva.
preventiva Disponvel
em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/rec01/03rec01.htm>.
Acesso em: 20 fev. 2005.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 299-318 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 300 29/8/2006, 20:17


A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 301

2 DOS ASPECTOS GERAIS ACERCA DA EXTIN-


TA CONCORDATA

A concordata, prevista no DL 7661/45, tinha como


objetivo resguardar o comerciante das conseqncias da faln-
cia, evitando a sua decretao, na concordata preventiva, ou
sustando os seus efeitos, na concordata suspensiva. No passava,
na realidade, de um favor legal consistente na remisso parcial
ou dilao do vencimento das obrigaes devidas pelo comer-
ciante2 .

Solicitada a proteo legal da concordata pela empresa


interessada, devia esta apresentar alguns documentos e se
submeter a um prazo para pagamento de seus dbitos (no
superior a 24 meses), tudo previsto no antigo decreto-lei. Se-
gundo o artigo 146 desse diploma legislativo, no mais em
vigor, os crditos atingidos pela concordata eram apenas os
quirografrios, ou seja, sem privilgio ou garantia real. Dbitos
trabalhistas e fiscais, assim como aqueles com garantias reais,
no eram protegidos pela concordata.

Uma vez relacionados os valores devidos aos credores


quirografrios, a empresa deveria requerer uma das modalida-
des de pagamento previstas no art. 156 do DL 7666/45,
obtendo um desconto de 50%, caso optasse pelo pagamento
vista.

Durante o processo de concordata, o devedor continuava


administrando a empresa sob a fiscalizao de um comissrio,
a quem competia apresentar relatrios e examinar documentos
para garantir o cumprimento legal da concordata, tendo uma

2
COELHO, Fbio Ulhoa. Manual de Direito Comercial.
Comercial 14. ed. So
Paulo: Saraiva, 2003. p. 380.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 299-318 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 301 29/8/2006, 20:17


302 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

funo meramente fiscalizadora e sem interferncia na


administrao da empresa devedora.

Mesmo ainda em vigor, a concordata vinha sendo objeto


de crticas por parte dos operadores do direito, vez que ela
estava sendo muitas vezes utilizada como meio de enriqueci-
mento do concordatrio, com prejuzos para os seus credores
e para o comrcio em geral. Alm disso, estatsticas revelaram
que cerca de 80% das empresas que pediram concordata no
conseguiram reverter a situao e acabaram falindo3 , o que
demonstra a falta de sucesso do instituto como meio de recupe-
rao judicial.

Alguns estudiosos do assunto j defendiam a necessidade


de um novo diploma legislativo, regulando de forma diversa a
recuperao da empresa, vindo a nova lei de falncias a atender,
neste aspecto, as perspectivas. O texto da nova lei substitui a
concordata pelos institutos da recuperao extrajudicial ou
judicial, que passaro a ser analisados.

3 DO SURGIMENTO DO INSTITUTO DA RECUPE-


RAO EMPRESARIAL

A Lei 11.101/2005 inova em matria de recuperao


judicial e extrajudicial, propondo uma nova forma de adminis-
trao e recuperao de empresas em crise econmico-finan-
ceira. Segundo o art. 47 daquele diploma legal, a recuperao
judicial tem por objetivo viabilizar a superao da situao de
crise econmico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manuteno da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores

3
PRTO. Alexandre.. Debate sobre o projeto de leilei. Disponvel em
<http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/rec01/02rec.01.htm>. Aces-
so em: 17 fev. 2005.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 303

e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservao


da empresa, sua funo social e o estmulo atividade
econmica.

De forma clara, Fbio Bartolozzi Autrauskas analisa o


esprito da nova Lei de Falncias, antes mesmo dela ser apro-
vada, ao dizer que a preocupao com o papel social que a
empresa exerce na sociedade a base que justifica todos os
esforos no sentido de dar empresa uma oportunidade de
recuperao quando esta se envolve numa situao de falta de
liquidez financeira. Essa premissa est acima, inclusive, dos
interesses imediatos dos credores4 .

A recuperao extrajudicial funciona como uma ten-


tativa do devedor equacionar suas dificuldades com os credores
sem uma interveno judicial mais significativa. J na recupe-
rao judicial, que pode ser adotada depois de frustrada a
recuperao extrajudicial, a interveno judicial decisiva. O
devedor dever apresentar um plano de recuperao que ser
negociado com os credores reunidos em assemblia.

Poder requerer recuperao judicial e extrajudicial o


devedor que, no momento do pedido, exera regularmente
suas atividades h mais de 2 (dois) anos e que atenda, cumula-
tivamente, aos requisitos previstos no art. 48 da nova lei.
Todas as sociedades empresrias e os empresrios indivi-
duais se sujeitaro recuperao judicial e extrajudicial. A
nova lei no alcana as empresas pblicas e as sociedades de
economia mista, que esto fora do direito falimentar e se
submetem a uma legislao especfica. Do mesmo modo, as

4
AUTRAUSKAS, Fbio Bartolozzi. Planejamento estratgico para
empresas concordatrias e em recuperao judicial
judicial. Dispon-
vel em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12139/tde-
15122003- 113121/- 9k>. Acesso em: 20 fev. 2005.

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304 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

instituies financeiras pblicas e privadas, cooperativas de


crdito, empresas de previdncia privada e operadoras de planos
de sade, sociedades seguradoras de capitalizao e consrcios.

4 DA RECUPERAO EXTRAJUDICIAL

De acordo com a nova disposio legal, o envolvimento


direto do Judicirio precedido de uma tentativa de
negociao informal entre devedor e credores, por meio de
uma proposta de recuperao apresentada pelo devedor a uma
assemblia de credores. o que a lei define como recuperao
extrajudicial.
Trata-se, basicamente, de negociar diretamente com os
credores novos prazos, juros e formas de pagamento, fora do
Poder Judicirio, sendo apenas homologado por este para
ganhar fora de sentena judicial e ser acatado pelos credores
minoritrios que discordarem do acordo. Observa-se que a
nova lei, ao incluir a recuperao extrajudicial, vem sacramentar
uma prtica que j existia, embora de modo informal5 .
Segundo Ricardo Matos Mascarenhas6 , na proposta
de alterao do regime falimentar nacional, com nfase parti-
cularmente ao que se refere proposta de recuperao extraju-
dicial da empresa, observam-se ntidas influncias tanto da
legislao francesa, que possui uma das mais atualizadas e avan-
adas concepes de recuperao extrajudicial, datada de 1985,
e que rompeu com o sistema tradicional de falncias na busca

5
LIMA, Alex Oliveira Rodrigues de. O Diploma Falimentar Brasilei-
ro
ro. Disponvel em <www.noticiasforenses.com.br/ artigos/nf189/
online/alex-lima4-189.htm - 11k>. Acesso em: 15 fev. 2005.
6
MASCARENHAS, Ricardo Matos Mascarenhas. Novidades no direi-
to falimentar brasileiro: a proposta de recuperao
extrajudicial das empresas. Disponvel em <www.unifacs.br/
revistajuridica/ edicao_dezembro2004/discente/disc03.doc->. Acesso
em: 10 fev. 2005.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 305

de assegurar primordialmente a sobrevida das empresas, assim


como, busca inspirao no modelo americano, tambm
conhecido como o Cdigo de Bancarrota de 1978 onde, em
seu captulo 11 (da Reorganizao), disciplina o procedimento
atravs do qual a empresa americana de mdio e grande porte
tem preferido postular em juzo, quando se encontra em
situao de insolvncia, a sua reorganizao financeira.

4.1 Dos Crditos Atingidos

Na recuperao extrajudicial, a empresa poder optar


pelos crditos a serem atingidos pelo plano, exceto os de
natureza tributria, derivados da legislao do trabalho ou
decorrentes de acidente de trabalho, assim como aqueles que
decorrem de propriedade fiduciria de bens mveis ou imveis,
de arrendador mercantil, de proprietrio ou promitente
vendedor de imvel cujos respectivos contratos contenham
clusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em
incorporaes imobilirias, de proprietrio em contrato de
venda com reserva de domnio, ou dos decorrentes de
adiantamento a contrato de cmbio.
Segundo o art. 161, 2 da lei, o plano, na recuperao
extrajudicial, no poder contemplar o pagamento antecipado
de dvidas nem tratamento desfavorvel aos credores que a ele
no estejam sujeitos.

4.2 Do Procedimento

De acordo com a Lei n 11.101/05, a apresentao de


proposta de plano de recuperao extrajudicial no mais
caracteriza ato de falncia, tal como ocorria na vigncia da
legislao anterior.
Realizado acordo com os credores, o devedor dever
pleitear a homologao do plano para que este produza seus

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efeitos jurdicos. Segundo determina a lei, em seu art. 61,


3, o devedor no poder requerer a homologao de plano
extrajudicial, se estiver pendente pedido de recuperao judi-
cial, se houver obtido tal recuperao ou se existir homologao
de outro plano de recuperao extrajudicial h menos de 2
(dois) anos.

Para requerer a homologao em juzo do plano de


recuperao extrajudicial, deve o devedor juntar a justificativa
e o documento que contenha os termos e condies do plano,
com as assinaturas dos credores que a ele aderiram, alm de
outros documentos previstos no art. 63, 6 da lei supraci-
tada. O plano pode abranger todos os credores de uma determi-
nada classe, desde que contenha a assinatura dos credores que
representem mais de 3/5 (trs quintos) de todos os crditos
de cada espcie.

Recebido o pedido de homologao do plano de recupe-


rao extrajudicial, ordenar o juiz a publicao de edital no
rgo oficial e em jornal de grande circulao nacional ou das
localidades da sede e das filiais do devedor, convocando todos
os credores do devedor para apresentao de suas impugnaes
ao plano de recuperao extrajudicial, devendo o devedor,
no prazo do edital, comprovar o envio de carta a todos os
credores sujeitos ao plano, domiciliados ou sediados no pas,
informando a distribuio do pedido, as condies do plano
e prazo para impugnao.

Contado da publicao do edital, os credores tero


prazo de 30 (trinta) dias para impugnarem o plano, juntando
a prova de seu crdito, tendo, posteriormente, o devedor o
prazo de 5 (cinco) dias para se manifestar sobre a impugnao
porventura existente. Decorridos estes prazos, os autos sero
conclusos imediatamente ao juiz para decidir, no prazo de 5
(cinco) dias, acerca do plano de recuperao extrajudicial.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 307

Nada obsta que, no homologado o plano pelo juiz, o


devedor, cumpridas as formalidades, apresente novo pedido
de homologao de plano de recuperao extrajudicial.
Na recuperao extrajudicial, o prazo de recuperao
da empresa no est estipulado em lei e depender do acordo
celebrado entre o devedor e os credores.

5 DA RECUPERAO JUDICIAL

A recuperao judicial, diferentemente da extrajudicial,


no tem incio com uma tentativa direta de acordo entre
devedor e credores. Aqui, o devedor apresenta ao Judicirio
um plano de recuperao que dever esclarecer a situao da
empresa e sua proposta para liquidar as dvidas.
Segundo Maristela SantAna7 , o plano reorganizatrio
previsto composto por duas partes distintas: a primeira con-
siste na apresentao das medidas de reorganizao econmica
e financeira da gesto empresarial; a segunda corresponde
apurao do passivo e seu pagamento.

5.1 Dos Meios de Recuperao Judicial - Planos

A Lei de Falncias estabelece um elenco de possibilidades


colocado disposio da empresa com dificuldade para a
elaborao do plano de recuperao judicial, sem prejuzos
de outros que possam ser criados.
Dispe o art. 50 da lei que Constituem meios de
recuperao judicial, observada a legislao pertinente a cada
caso, dentre outros: I concesso de prazos e condies espe-
ciais para pagamento das obrigaes vencidas ou vincendas;

7
SANTANA. Maristela. A recuperao extrajudicial e judicial. Dis-
ponvel em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/rec01/
04rec01.htm>. Acesso em: 10 fev. 2005.

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II ciso, incorporao, fuso ou transformao de sociedade,


constituio de subsidiria integral, ou cesso de cotas ou
aes, respeitados os direitos dos scios, nos termos da
legislao vigente; III alterao do controle societrio; IV
substituio total ou parcial dos administradores do devedor
ou modificao de seus rgos administrativos; V concesso
aos credores de direito de eleio em separado de adminis-
tradores e de poder de veto em relao s matrias que o plano
especificar; VI aumento de capital social; VII trespasse ou
arrendamento de estabelecimento, inclusive sociedade
constituda pelos prprios empregados; VIII reduo salarial,
compensao de horrios e reduo da jornada, mediante
acordo ou conveno coletiva; IX dao em pagamento ou
novao de dvidas do passivo, com ou sem constituio de
garantia prpria ou de terceiro; X constituio de sociedade
de credores; XI venda parcial dos bens; XII equalizao de
encargos financeiros relativos a dbitos de qualquer natureza,
tendo como termo inicial a data da distribuio do pedido de
recuperao judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de
crdito rural, sem prejuzo do disposto em legislao especfica;
XIII usufruto da empresa; XIV administrao compar-
tilhada; XV emisso de valores mobilirios; XVI consti-
tuio de sociedade de propsito especfico para adjudicar,
em pagamento dos crditos, os ativos do devedor.

5.2 Dos Crditos Atingidos

Esto sujeitos aos efeitos da recuperao judicial todos


os crditos anteriores ao pedido, ainda que no vencidos,
conforme art. 49 da lei.
O 3 deste mesmo artigo, porm, estabelece algumas
espcies de crditos que no podem ser abrangidos pelo plano
de recuperao judicial. Assim, tratando-se de credor titular
da posio de proprietrio fiducirio de bens mveis ou im-

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 309

veis, de arrendador mercantil, de proprietrio ou promitente


vendedor de imvel cujos respectivos contratos contenham
clusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em
incorporaes imobilirias, ou de proprietrio em contrato
de venda com reserva de domnio, seu crdito no se submeter
aos efeitos da recuperao judicial e prevalecero os direitos
de propriedade sobre a coisa e as condies contratuais, obser-
vada a legislao respectiva, no se permitindo, contudo,
durante o prazo de suspenso a que se refere o 4o do art. 6o
da lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor
dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

5.3 Do Comit de Credores e do Administrador Judicial

A nova lei prev a figura do administrador judicial,


que substituir a pessoa do comissrio, o qual, na extinta
concordata, era nomeado pelo juiz como agente auxiliar da
justia na fiscalizao do comportamento do devedor, entre
outras atribuies. Alm do administrador, na elaborao e
conduo do plano de recuperao judicial, est prevista
tambm a colaborao de um Comit de Credores, cuja
instalao no obrigatria.
Estando em termos a petio inicial de recuperao
judicial, com o cumprimento de todas as exigncias legais, o
juiz deferir o processamento da recuperao e, no mesmo
ato, nomear o administrador judicial, que dever ser
profissional idneo, preferencialmente advogado, economista,
administrador de empresas, contador, ou pessoa jurdica
especializada.

Ao administrador judicial compete, sob a fiscalizao


do juiz e do Comit, alm de muitos outros deveres: enviar
correspondncia aos credores, comunicando a data do pedido
de recuperao judicial, a natureza, o valor e a classificao

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310 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

dada ao crdito; dar extratos dos livros do devedor, que


merecero f de ofcio, a fim de servirem de fundamento nas
habilitaes e impugnaes de crditos; consolidar o quadro-
geral de credores nos termos do art. 18; requerer ao juiz con-
vocao da assemblia-geral de credores nos casos previstos na
lei ou quando entender necessria sua ouvida para a tomada
de decises; fiscalizar as atividades do devedor e o cumprimento
do plano de recuperao judicial; requerer a falncia no caso
de descumprimento de obrigao assumida no plano de
recuperao; apresentar ao juiz, para juntada aos autos,
relatrio mensal das atividades do devedor, entre outros.

O administrador judicial exercer atividade remunerada,


sendo o valor e a forma de pagamento desta remunerao
fixados pelo juiz, observados a capacidade de pagamento do
devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores
praticados no mercado para o desempenho de atividades
semelhantes. Determina a lei, contudo, que o total pago ao
administrador judicial no exceder 5% (cinco por cento) do
valor devido aos credores submetidos recuperao judicial
ou do valor de venda dos bens na falncia. Cabe ressaltar,
ainda, que no ter direito remunerao o administrador
que tiver suas contas desaprovadas.

Constitui novidade na recuperao judicial a figura do


Comit de Credores. Justifica o relator da lei, Osvaldo
Biolchi8 , que depois de muitas discusses sobre a viabilidade
e necessidade ou no dessa comisso de credores para acom-
panhar o processo de recuperao da empresa, entendemos
que sua previso no texto legal poder ser de grande valia para
o xito das de mdio e grande porte.

8
Apud SANTANA, Maristela. Mecanismos para recuperar a em-
presa. Disponvel em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp-Fal/rec01/
presa
05rec01.htm>. Acesso em: 17 fev 2005.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 311

Observa-se a no obrigatoriedade na instalao do


comit de credores que poder ser constitudo por deliberao
de qualquer das classes de credores na assemblia-geral e ter a
seguinte composio: 1 (um) representante indicado pela classe
de credores trabalhistas, com 2 (dois) suplentes; 1 (um)
representante indicado pela classe de credores com direitos
reais de garantia ou privilgios especiais, com 2 (dois) suplentes;
1 (um) representante indicado pela classe de credores
quirografrios e com privilgios gerais, com 2 (dois) suplentes.
No havendo Comit de Credores, caber ao administrador
judicial ou, na incompatibilidade deste, ao juiz exercer suas
atribuies.

Segundo o art. 27 da Lei de Falncia, o Comit de Cre-


dores ter vrias atribuies, podendo-se citar, como exemplo,
a fiscalizao das atividades e o exame das contas do admi-
nistrador judicial e a fiscalizao da administrao das ativi-
dades do devedor, apresentando, a cada 30 (trinta) dias,
relatrio de sua situao.

Importa ressaltar que, tanto o administrador judicial,


como os membros do Comit de Credores, respondero pelos
prejuzos causados massa falida, ao devedor ou aos credores
por dolo ou culpa, devendo o dissidente em deliberao do
Comit consignar sua discordncia em ata para eximir-se da
responsabilidade.

Como se observa, na regulamentao do novo Ins-


tituto da Recuperao Judicial, o legislador previu uma par-
ticipao ativa dos credores da empresa em dificuldades que,
sendo grandes interessados na obteno da recuperao,
podero participar das principais fases do processo, seja
fiscalizando, opinando ou zelando pelo bom andamento da
recuperao.

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312 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

5.4 Da Assemblia Geral de Credores

Tambm inova a nova Lei de Falncia ao prever a cons-


tituio de uma Assemblia Geral de Credores com atribuies
que lhe so prprias. Segundo Celso Marcelo de Oliveira9 , a
criao da Assemblia Geral de Credores uma importante
novidade que nos aproxima de padro internacional, uma vez
que a experincia de outros pases relativa aprovao de um
plano de recuperao recomenda que essa deciso seja de uma
assemblia de credores - os clientes, os credores de crditos
trabalhistas, os fornecedores, os bancos.
A assemblia-geral de credores ter por atribuies
deliberar sobre qualquer matria que possa afetar os interesses
dos credores, tais como aprovao, rejeio ou modificao
do plano de recuperao judicial apresentado pelo devedor e
pela constituio do Comit de Credores.

A assemblia-geral de credores ser convocada pelo juiz,


por edital publicado no rgo oficial e em jornais de grande
circulao nas localidades da sede e filiais, com antecedncia
mnima de 15 (quinze) dias, podendo os credores, que repre-
sentem no mnimo 25% (vinte e cinco por cento) do valor
total dos crditos de uma determinada classe, requerer ao juiz
a convocao de assemblia-geral.

Determina o art. 39 da lei que tero direito a voto na


assemblia-geral as pessoas arroladas no quadro-geral de
credores ou, na sua falta, na relao de credores apresentada
pelo administrador judicial. O voto do credor ser proporcional
ao valor de seu crdito, ressalvado, nas deliberaes sobre o
plano de recuperao judicial, os titulares de crditos derivados

9
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Novo direito falimentar brasileiro. Dis-
ponvel em <www.academus.pro.br/site/ p_detalhe_artigo.asp?codigo=775
- 45k>. Acesso em: 08 fev. 2005.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 313

da legislao do trabalho ou decorrentes de acidentes de


trabalho.

A assemblia-geral ser composta pelas seguintes classes


de credores: titulares de crditos derivados da legislao do
trabalho, que votam com o total de seu crdito, independente-
mente do valor ou titulares de crditos decorrentes de acidentes
de trabalho; titulares de crditos com garantia real, que votam
nesta classe at o limite do bem gravado; titulares de crditos
quirografrios, com privilgio especial, com privilgio geral
ou subordinados.
Estabelece a lei (art. 42) que se considerar aprovada a
proposta que obtiver votos favorveis de credores que repre-
sentem mais da metade do valor total dos crditos presentes
assemblia-geral, exceto nas deliberaes sobre o plano de
recuperao judicial, em que todas as trs classes de credores
expostas no pargrafo anterior devero aprovar a proposta.

5.5 Do Procedimento

O processo de Recuperao Judicial exige mais formali-


dades, alm de ser realizado sob o controle da justia. O deve-
dor que preencha todos os requisitos estabelecidos no art. 48
da lei poder requerer recuperao judicial.
O pedido dever ser feito atravs de uma petio inicial,
instruda com diversas informaes e documentos exigidos na
Lei de Falncia, como por exemplo a exposio das causas
concretas da situao patrimonial do devedor e das razes da
crise econmico-financeira e as demonstraes contbeis
relativas aos 3 (trs) ltimos exerccios sociais.

Estando em termos toda a documentao, o juiz deferir


o processamento da recuperao judicial e, no mesmo ato: I
nomear o administrador judicial; II determinar a dispensa

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da apresentao de certides negativas para que o devedor


exera suas atividades, exceto para contratao com o Poder
Pblico ou para recebimento de benefcios ou incentivos
fiscais ou creditcios; III ordenar a suspenso da prescrio
e de todas as aes ou execues contra o devedor, perma-
necendo os respectivos autos no juzo onde se processam,
ressalvadas as aes que demandam quantia ilquida, as
trabalhistas e as fiscais; IV determinar ao devedor a apre-
sentao de contas demonstrativas mensais enquanto perdurar
a recuperao judicial, sob pena de destituio de seus
administradores; V ordenar a intimao do Ministrio
Pblico e a comunicao por carta s Fazendas Pblicas
Federal e de todos os Estados e Municpios em que o devedor
tiver estabelecimento.

Da publicao da deciso que deferir o processamento


da recuperao judicial, o devedor apresentar, no prazo
improrrogvel de 60 (sessenta) dias, o plano de recuperao, o
qual dever cumprir tambm alguns requisitos impostos na
lei. O juiz ordenar a publicao de edital contendo aviso aos
credores sobre o recebimento do plano de recuperao e
fixando o prazo para a manifestao de eventuais objees.

Qualquer credor poder manifestar ao juiz sua objeo


ao plano de recuperao judicial no prazo de 30 (trinta) dias
contado da publicao da relao de credores. Caso, na data
desta publicao, no tenha sido publicado o edital do aviso,
contar-se-, da publicao deste, o prazo para as objees.

Ocorrendo objeo de qualquer credor ao plano de


recuperao judicial, o juiz convocar a assemblia-geral de
credores para deliberar sobre o plano de recuperao, que
poder ser alterado, desde que haja expressa concordncia do
devedor e em termos que no impliquem diminuio dos
direitos exclusivamente dos credores ausentes.

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No havendo objees ao plano ou sendo ele aprovado


pela assemblia, e cumpridas as exigncias legais, o juiz conce-
der a recuperao judicial do devedor. At que se cumpram
todas as obrigaes previstas no plano que se vencerem at 2
(dois) anos depois da concesso da recuperao judicial, o
devedor permanecer em recuperao judicial. Cumpridas as
obrigaes vencidas no prazo, o juiz decretar por sentena o
encerramento da recuperao judicial.

Durante o procedimento de recuperao judicial, o


devedor ou seus administradores, em regra, sero mantidos
na conduo da atividade empresarial, sob fiscalizao do
Comit, se houver, e do administrador judicial.

Havendo necessidade do afastamento do devedor, o juiz


convocar a assemblia-geral de credores para deliberar sobre
o nome do gestor judicial que assumir a administrao das
atividades do devedor, aplicando-se-lhe, no que couber, todas
as normas sobre deveres, impedimentos e remunerao do
administrador judicial.
Durante todo o procedimento de recuperao judicial,
em todos os atos, contratos e documentos firmados pelo de-
vedor dever ser acrescida, aps o nome empresarial, a
expresso em Recuperao Judicial.

6 DA TRANSFORMAO DA RECUPERAO JU-


DICIAL EM FALNCIA

Durante o processo de Recuperao Judicial poder ser


decretada a falncia, em algumas situaes previstas na lei. O
juiz decretar a falncia: por deliberao da assemblia-geral
de credores, pelos votos dos credores que representem mais
da metade do valor total dos crditos presentes assemblia-
geral; pela no apresentao, pelo devedor, do plano de

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316 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

recuperao no prazo improrrogvel de 60 (sessenta) dias da


publicao da deciso que deferir o processamento da recupe-
rao judicial; quando houver sido rejeitado o plano de recu-
perao pela assemblia geral de credores; por descumprimento
de qualquer obrigao assumida no plano de recuperao.
A lei estabelece, ainda, que o inadimplemento de outras
obrigaes do devedor, no sujeitas recuperao judicial, pode
ensejar a decretao da falncia. o caso daquele que pratica
atos de falncia ou sem relevante razo de direito, no paga,
no vencimento, obrigao lquida materializada em ttulo ou
ttulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o
equivalente a 40 (quarenta) salrios-mnimos na data do pedido
de falncia.
Na convolao da recuperao em falncia, os atos de
administrao, endividamento, onerao ou alienao prati-
cados durante a recuperao judicial presumem-se vlidos,
desde que realizados na forma da lei.

7 CONSIDERAES FINAIS

Por tudo que foi analisado, pode-se concluir que o novo


instituto da recuperao da empresa, como previsto na Lei de
Falncia, perfeitamente capaz de reestruturar as empresas com
dificuldade econmico-financeira, garantindo sua sobrevivncia
por mais tempo e reduzindo significativamente o nmero de
falncias no Brasil.
O processo de recuperao, realizando de maneira
flexvel os direitos dos credores, substitui a concordata para
dar maior flego aos empreendimentos empresariais, visto que
80% das empresas que pediram concordata no conseguiram
reverter a situao e acabaram falindo. de ressaltar tambm
que no Brasil h uma grande indstria de concordatas que vai
deixar de existir.

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A RECUPERAO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL NA NOVA LEI ... 317

Deve-se esperar muitas dificuldades interpretativas, na


seara do direito, para se adaptar nova legislao falimentar,
principalmente no que tange aplicao do novo processo da
recuperao de empresas. A mudana dever ser processada
muito lentamente, com o cuidado de se respeitar as determi-
naes legais, para no desvirtuar o instituto, e garantir os
interesses, no s dos credores e do devedor, mas princi-
palmente da empresa, dos seus empregados e clientes e da
sociedade em geral.
preciso ser otimista e olhar com bons olhos essa lei
que representa uma grande inovao na legislao brasileira, e
acreditar que muitas mudanas ocorrero no processo fali-
mentar, garantindo um maior nmero de recuperaes, como
do interesse de todos.

8 REFERNCIAS

AUTRAUSKAS, Fbio Bartolozzi. Planejamento estratgico


para empresas concordatrias e em recuperao judicial.
Disponvel em <www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/
12139/tde- 15122003- 113121/- 9k>. Acesso em: 20 fev. 2005.

COELHO, Fbio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14.


ed. So Paulo: Saraiva, 2003.

LIMA, Alex Oliveira Rodrigues de. O Diploma Falimentar


Brasileiro. Disponvel em <www.noticiasforenses.com.br/ artigos/
nf189/online/alex-lima4-189.htm - 11k>. Acesso em: 15 fev. 2005.

MASCARENHAS, Ricardo Matos Mascarenhas. Novidades


no direito falimentar brasileiro: a proposta de recuperao
extrajudicial das empresas. Disponvel em <www.unifacs.br/
revistajuridica/ edicao_dezembro2004/discente/disc03.doc-
>. Acesso em: 10 fev. 2005.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 299-318 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 317 29/8/2006, 20:17


318 KARLA VIRGNIA BEZERRA CARIB

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Novo direito falimentar


brasileiro. Disponvel em <www.academus.pro.br/site/
p_detalhe_artigo.asp?codigo=775 - 45k>. Acesso em: 08 fev.
2005.

PRTO, Alexandre. Debate sobre o projeto de lei. Disponvel


em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/rec01/
02rec.01.htm>. Acesso em: 20 fev. 2005.

SANTANA, Maristela. Mecanismos para recuperar a empresa.


Disponvel em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp-Fal/
rec01/05rec01.htm>. Acesso em: 17 fev. 2005.

__________. O fim da concordata preventiva. Disponvel


em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/rec01/
03rec01.htm>. Acesso em: 17 fev. 2005.

___________. A recuperao extrajudicial e judicial.


Disponvel em <http://www.vps.com.br/egi-bin/asp/Fal/
rec01/04rec01.htm>. Acesso em: 10 fev. 2005.

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 319

SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS


ALTERAES OCORRIDAS COM O
ADVENTO DO NOVO CDIGO CIVIL

Katyanna Alencar Muniz


Bacharel em Direito. Aluna do Curso de
Preparao Magistratura da Escola Supe-
rior da Magistratura de Pernambuco
ESMAPE.

SUMRIO
INTRODUO
INTRODUO.. 1 SOCIED SOCIEDADEADE POR QUO QUOT TAS DE RESPONSABILI-
D ADE LIMIT AD
LIMITAD
ADA A NO DECRET
DECRETO O 3.708/19 E NO CDIGO COMER COMER--
CIAL. 1.1 Histrico. 1.2 Aspectos gerais e constituio. 1.3 Scios e suas
responsabilidades. 1.4 Nome Social. 1.5 Quotas e administrao da Sociedade
Limitada. 1.6 Poderes da maioria nas alteraes contratuais e direito de recesso. 1.7
Dissoluo, Liquidao e Extino. 2 A SOCIED SOCIEDADE ADE LIMIT
LIMITADAD
ADAA NO
CDIGO CIVIL VIGENTE. 2.1 Aspectos gerais. 2.2 Contrato Social. 2.3
Das quotas e da administrao da Sociedade Limitada. 2.4 Nome empresarial. 2.5
Do Conselho Fiscal. 2.6 Dos scios e suas deliberaes. 2.6.1 Assemblia. 2.6.2
Direito de retirada. 2.7 Dissoluo da Sociedade Limitada. 2.7.1 Dissoluo
parcial da Sociedade Limitada. 3 MODIFICAES E INOVAES OCOR-
RID AS COM O AD
RIDAS VENT
ADVENT
VENTO O DO CDIGO CIVIL CIVIL. 3.1 Comparaes e
inovaes. 4 CONSIDERAES FINAIS. 5. REFERNCIAS.

INTRODUO

O trabalho visa a examinar os principais aspectos


modificados na Sociedade Limitada com a entrada em vigor
do novo Cdigo Civil, Lei n 10.406 de 2002. Inicialmente
ser feito um estudo detalhado de como se regia esse tipo

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320 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

societrio sob a gide do Decreto n 3.708 de 1919 e do


Cdigo Comercial. Posteriormente vamos discorrer sobre a
Sociedade Limitada j disciplinada pelo Cdigo Civil vigente.
E por fim, a partir do confronto entre as legislaes, podemos
observar as principais alteraes ocorridas.

A escolha do presente tema teve como causa a relevncia


desse tipo societrio no Brasil, segundo dados fornecidos pela
Junta Comercial, de 100% das sociedades que se constituem
no Brasil, mais de 90% esto sob a regncia da limitada. Os
outros 10% so compostos essencialmente pela sociedade
annima, e de forma inexpressiva, pelos demais tipos arcaicos
e de pouca importncia. E isso se explica pelo fato de que, nas
sociedades em nome coletivo e em comandita simples, existem
scios que arriscam seu patrimnio pessoal para, em carter
subsidirio, saldar as dividas da empresa, at quanto for
necessrio, e a denominada responsabilidade ilimitada.

1 SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILI-


DADE LIMITADA NO DECRETO 3.708/19 E NO
CDIGO COMERCIAL

1.1 Histrico

A Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada


surgiu da necessidade de atender aos comerciantes mdios,
que desejavam um tipo de sociedade sem os inconvenientes
da responsabilidade ilimitada dos scios, caracterstico das
Sociedades em Nome Coletivo, e sem as dificuldades de consti-
tuio e alto valor de capital das Sociedades Annimas.

No Brasil a Sociedade por Quotas de Responsabilidade


Limitada foi introduzida por influncia do direito portugus

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 321

e alemo, em 1918, quando Dr. Lus Joaquim Osrio apresentou


Cmara dos Deputados o Projeto n 287, que pouco tempo depois
se convalidaria no Decreto n 3.708, de 10 de janeiro de 1919.

Como se v, ao contrrio do que aconteceu com os


demais tipos de sociedades mercantis, que se formaram na
prtica, sendo posteriormente reguladas por leis, a Sociedade
por Quota de Responsabilidade Limitada foi introduzida por
deciso do legislador.

Aps a primeira guerra mundial, esse tipo de sociedade


teve um imenso desenvolvimento em todas as partes do mun-
do, dada a sua fcil constituio e aos benefcios da limitao
da responsabilidade dos scios.

1.2 Aspectos gerais e Constituio

A Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada


a sociedade formada por duas ou mais pessoas com um obje-
tivo comum, assumindo todas, de maneira subsidiria,
responsabilidade solidria pelo total do Capital Social.

As principais caractersticas desse tipo societrio ser


uma sociedade de pessoas, cuja responsabilidade dos scios
limitada ao capital constante da ltima alterao contratual
alm da flexibilidade existente na sua formulao.

As Sociedades por Quotas instrumentam-se sob as


mesmas regras impostas para a formao do instrumento de
contrato das sociedades comerciais, podendo ser constitudas
atravs de escritura pblica ou particular. Assim, o instrumento
de contrato deve trazer as condies em que se formaram,
mencionando notadamente: Ios nomes dos quotistas, com
os seus sinais de identidade; II a indicao de que ser por

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322 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

quotas de responsabilidade limitada, e que a responsabilidade


de seus scios ser limitada importncia do capital social; III
o objeto que ter e a sede; IV o prazo de determinado ou
indeterminado; V a razo social ou denominao adotada; VI
scios que se investem na qualidade de gerentes, competindo-
lhes a administrao e representao da sociedade e o uso da
firma; VII total do capital institudo e as cotas que se atribuem
a cada scio; VIIImodo de distribuio de lucros e suporte de
prejuzos. Importa lembrar que a ausncia de qualquer destes
elementos nulifica a constituio da sociedade.

Outro assunto que suscitou muitas discusses quanto


possibilidade ou no da constituio desse tipo societrio,
por contrato entre cnjuges, tendo inclusive se manifestado a
favor da nulidade o Supremo Tribunal Federal no Rec. Extr.
n 4.687. Entretanto, com o advento da Lei n 4121/62 e
com a emancipao da mulher casada passou a se admitir a
sociedade limitada entre o marido e a mulher, desde que no
constitua instrumento de fraude.

Vejamos o posicionamento do ilustre ministro Nu-


nes Leal: A Lei n 4.121 instituiu o patrimnio
separado da mulher ou do marido, ainda que o
regime matrimonial seja de comunho, nada mais
impede que a mulher se associe ao marido, para o
exerccio da atividade empresarial constituda sob a
forma de sociedade por quotas1 .

1.3 Os scios e suas responsabilidades

A Sociedade por Quotas uma sociedade de pessoas e


em princpio, para ser scio, necessrio ser maior e capaz. A
1
Curso de direito comercial.
REQUIO, Rubens.Curso comercial 23 ed. So Paulo:
Saraiva, 1998. p. 413.

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 323

lei brasileira tambm limita a participao de estrangeiro a


depender do objeto a ser explorado, como ocorre com
empresas das reas de telecomunicao e jornalismo.

Nas Sociedades Limitadas, no houve previso de prazo


para a reconstituio do nmero mnimo de scios, em regra se
inicia um processo de dissoluo tendente extino da pessoa
jurdica. Observe-se que alm da sociedade existe a empresa e
da o interesse de sua preservao, neste perodo anmalo, sem
ferir o princpio da legalidade. Assim, os contratos costumam
incluir uma clusula estipulando que, reduzida a sociedade a
apenas um scio, possa, dentro de um prazo, reconstituir o
nmero de scios exigidos por lei.

O Departamento Nacional do Registro de Comrcio,


atravs do Ofcio Circular n 17/79, determinou que ao Con-
trato Social pode constar clusula segundo a qual, reduzida a
um nico scio, a sociedade no entrar em liquidao ime-
diatamente.

Defende o ilustre mestre FRAN MARTINS que


havendo ou no clusula contratual, quando o n-
mero de scios for reduzido a apenas um poder ser
reconstitudo o nmero mnimo no prazo de um
ano, a contar da data da constatao da existncia
de uns nicos scios, aplicando-se a regra da letra
d do art.206 da lei das sociedades annimas2 .

O scio quotista o titular da quota, ou seja, frao de


valor em que se divide o Capital Social, ele integra um contrato
plurilateral, concorrendo ao lado dos demais quotistas para a
consecuo de um escopo social comum.
2
MARTINS, Fran.. Curso de direito comercial
comercial. 27 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. p. 210 .

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324 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

Quanto possibilidade de scio menor de idade


participar de Sociedade Limitada, a doutrina divergia. O
professor Joo Eunpio Borges e o professor Villemor do
Amaral defendiam essa possibilidade. Defendia posio diversa
o professor Egberto Teixeira e Rubens Requio. No obstante
to vlidos argumentos contrrios, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu pela possibilidade dessa participao.

Posteriormentes o Departamento de Registro de Comr-


cio (DRNC), atravs do ofcio circular de n 22, determinou:

Tendo em vista que a jurisprudncia fonte de lei,


e como as decises do STF a tornam exigvel aos
casos anlogos, entende o DNRC que as juntas
comerciais devem aceitar e definir os contratos
sociais onde figurem menores impberes, desde que
as suas quotas estejam integralizadas e no constem
nos contratos sociais atribuies aos menores,
relativas gerncia e administrao 3 .

Em regra a solidariedade inexiste na Sociedade por


Quotas, apenas em um caso a lei estabelece a solidariedade
entre os quotizas que na falncia, sendo esta ltima uma
condio do exerccio da solidariedade.

Nas Sociedades de Quotas com prazo determinado o


scio poder se retirar com o advento do termo contratual, j
nas sociedades de prazo indeterminado, tem o scio o direito
de se retirar a qualquer instante apurando seus haveres. H
tambm possibilidade de o scio se retirar da sociedade, seja
ela de prazo determinado ou indeterminado, quando o scio
diverge da maioria quanto alterao do contrato social.
3
REQUIO, Rubens. Curso de direito comercial
comercial. 23 ed. So Paulo:
Saraiva, 1998. v. I, p .428.

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 325

A responsabilidade do scio somente se torna ilimitada


quando resultar de ato infrator de lei ou do contrato social,
no podendo ser penhorados os bens dos scios, em razo de
dvida fiscal, apenas em infrao lei ou ao contrato.

1.4 Nome Social

As Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limita-


da podem usar de uma firma ou razo social. Ou podem adotar
uma denominao. A firma composta pelo nome completo,
ou abreviado de um, alguns ou todos os scios acrescidos do
aditamento e companhia limitada, j a denominao ser de
livre escolha dos que a constituem. Na denominao tambm
deve ser utilizada a palavra limitada por extenso ou abreviada-
mente.

A omisso desta declarao, na firma ou na denomi-


nao, tem por conseqncia a transformao dos scios
gerentes ou dos que faam uso da firma, em solidrios e ilimita-
damente responsveis por todas as obrigaes contradas pela
sociedade.

vedado s Sociedades por Quotas de Responsabilidade


Limitada o uso da palavra companhia anteriormente a sua
denominao, pois sinnimo de sociedade annima. Se assim
proceder, ser irregular sua denominao no podendo efetivar
registro.

1.5 As Quotas e a administrao da Sociedade Limitada

As quotas so as partes de cada scio no capital da


sociedade, podendo cada scio possuir quotas de valor diverso
das dos outros scios. Entretanto, cada quota uma unidade
pela qual responde o scio que a subscreveu ou adquiriu.No

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326 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

existem quotas sem valor nominal, o valor das quotas ser


fixado no prprio contrato social. Tambm no h forma
especial para representar as quotas, podendo a prova ser feita
atravs de vias do contrato social.

As quotas podem ser possudas por mais de uma pessoa,


estes designaro entre si aquele que os representar, na falta de
designao qualquer deles ter a representao comum. O
quotista deve integralizar suas cotas nos prazos e nas condies
convencionados. A falta de integralizao d sociedade a
faculdade de optar entre cobrar amigavelmente, propor ao
de execuo, ou excluir o scio inadimplente. Em caso de
excluso do scio inadimplente, podero os demais scios
distribuir para si prprios as ditas quotas, transferi-las a
terceiros, ou simplesmente anul-las.

Quanto cesso de quotas, o contrato social deve disci-


plinar especificando se as cotas so transferveis ou intrans-
ferveis e, ainda, se transferveis, se a transferibilidade livre
ou condicionada. Se a intransferibilidade for adotada, sempre
que um scio a solicitar, dever promover a sociedade
apurao dos haveres.

A cesso de quotas matria muito controvertida entre


os doutrinadores. Villemor Amaral entende que a cesso de
quotas depende do consentimento da sociedade, enquanto
Eunpio Borges situa-se na tese oposta ao afirmar que, no
silncio do contrato, as quotas so livremente transferveis.

Em relao ao pagamento das quotas atravs de bens


em vez de dinheiro, h muita divergncia entre os doutrina-
dores a respeito da exigncia de escritura pblica para constitui-
o. Autores como Carvalho de Mendona defendem tal
exigncia, baseados na regra do artigo 134, II, do Cdigo Civil

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 327

de 1916. J os doutrinadores mais modernos, baseados na Lei


n 8.934/94, defendem a no exigncia de escritura pblica,
pois consideram a certido expedida pelas Juntas Comerciais
como documento hbil para a transcrio.

Sociedade por Quotas-Responsabilidade limitada.


Aplicao supletiva da Lei das Sociedades An-
nimas. Cabimento em relao do contrato, naquilo
que silenciou, podendo dispor a respeito, e no em
relao lei que a rege artigo 18 do decreto federal
n 3.708, de 1919(...). A Lei das Sociedades Annimas
supletiva, no da lei das sociedades por quotas,
mas do contrato dessas sociedades (TJSP, JTJ,146/
188)4 .

Na parte referente administrao da sociedade, somente


pode ser integrada por scios. Ao scio-gerente cabe o uso da
firma, se houver omisso contratual todos os scios podero
usar. A escolha do scio-gerente pode ser feita de diversas
formas, inicialmente o prprio contrato social pode designar
os scios-gerentes, a escolha tambm pode ser feita atravs da
assemblia dos quotistas.

Os scios-gerentes so aqueles a quem cabe a administrao


da sociedade, os seus poderes sero de regra fixados no contrato
social, no silncio contratual os gerentes tero poderes amplos de
gesto, excetuados, por fora de aplicao supletiva da Lei das
Sociedades Annimas, os de alienar os bens do ativo permanente,
constituir nus reais e garantir obrigaes de terceiros.
A responsabilidade do scio-gerente que aja segundo as
normas do contrato e da lei est imune responsabilidade,
entretanto esta passa a ser ilimitada e solidria quando o scio-
4
DORIA, Dylson. Curso de direito comercial . 14. ed. So Paulo :
Saraiva, 2000 . p. 105.

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gerente atua ilegalmente, ou seja, a sua responsabilidade deflui


da ilegalidade ou fraude que o scio praticar na gerncia. Sua
responsabilidade pessoal e ilimitada emerge dos fatos, quando
resultarem de sua violao lei ou ao contrato, causando sua
imputabilidade civil e penal.

Quanto aos terceiros de boa-f, a posio do STF que


as limitaes contratuais dos scios-gerentes no so oponveis
aos terceiros obrigando a sociedade.

1.6 Poderes da maioria nas alteraes contratuais e direi-


to de recesso

Nas Sociedades por Quotas a maioria calculada em


funo do nmero de quotas e no do nmero de scios. O
contrato social poder estipular a maioria necessria para as
deliberaes comuns e especiais, nas modificaes que
importem na alterao das clusulas mais importantes do
contrato, comum se exigir uma maioria especial.

Quando houver omisso contratual prevalece para toda


e qualquer deliberao a maioria simples do capital, podendo
o scio ou scios que possuam a maioria do capital social
promover a dissoluo da Sociedade Limitada.

Nas Sociedades por Quotas o direito de retirada ou de


recesso somente se torna possvel com alterao contratual,
assim os scios divergentes tm o direito de se desvincularem
da sociedade, recebendo o valor de suas quotas.

O Decreto n 3.708/19 no fixou procedimento nem


prazo para o exerccio do direito de recesso, cabendo ao con-
trato social regulamentar. Na ausncia desta, a Lei das
Sociedades Annimas dever ser aplicada, fixando o prazo de

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 329

30 dias para o efetivo exerccio do direito de recesso a contar


do efetivo conhecimento pelo scio da referida alterao
contratual motivadora.

O reembolso do quotista observar o ltimo balano


aprovado. O balano se faz atravs da diviso do patrimnio
lquido contbil da sociedade pelo nmero de quotas, apu-
rando-se o valor de cada quota. O produto do valor de cada
quota pelo nmero de quotas do scio dissidente indicar o
montante do reembolso.

1.7 Dissoluo, Liquidao e Extino

Da mesma forma que as sociedades se constituem e


funcionam, tambm podem se extinguir. Ocorrendo uma das
causas de dissoluo, as sociedades cessam de funcionar,
passando fase de liquidao e extino. A moderna doutrina
tem se orientado no sentido de evitar a dissoluo sempre
que possvel, pois a empresa um organismo produtivo, que
gera empregos, paga impostos, contribui enfim para a econo-
mia nacional.

A dissoluo pode ser dividida em trs tipos bsicos:


dissoluo de pleno direito, dissoluo judicial e dissoluo
consensual ou voluntria. A dissoluo consensual aquela
que se opera pela vontade dos scios, de comum acordo o
distrato, consoante o que reza o art. 337 do Cdigo Co-
mercial.

A dissoluo de pleno direito somente ocorre em duas


hipteses: expirao do prazo ajustado para sua durao e pela
morte de um dos scios, no havendo conveno em contrrio
a respeito dos sobreviventes. Com relao expirao do prazo
contratual, uma vez expirado, a sociedade reputa-se dissolvida

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330 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

pleno iure. H possibilidade de prorrogao do prazo, que


dever ser efetivada antes do trmino do prazo contratual
previsto.

Ocorrida uma das causas de dissoluo, a sociedade cessa


de funcionar e passa liquidao. Esta consiste basicamente
na apurao do ativo e no pagamento do passivo. A liquidao
dever ser procedida pelo liquidante, que ser escolhido pelo
contrato social ou na forma prevista pelo art. 334 do Cdigo
Comercial.

Feita a liquidao, inicia-se a partilha, feita proporcional-


mente quota de capital de cada scio, se de outra forma no
foi pactuado no contrato social. Com a partilha dos lucros
entre os scios, chega-se fase final do processo de extino
da sociedade, s ento desaparecendo a pessoa jurdica com o
arquivamento do ato de dissoluo.

2 A SOCIEDADE LIMITADA NO CDIGO CIVIL


VIGENTE

2.1 Aspectos Gerais

A sociedade limitada se caracteriza pela diviso do seu


capital social em fraes denominadas quotas, essas quotas
no necessitam ter valor igual. Na formao da sociedade,
importante a definio do momento em que o capital
prometido deva ser entregue, se vista ou a prazo. Tambm
devem tratar da distribuio do capital entre eles, definir a
quota do capital com que cada scio se compromete.

Como sabido, a regra do direito societrio a irrespon-


sabilidade dos scios pelas obrigaes sociais. Uma das
excees a essa regra relaciona-se tutela dos credores que no

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 319-348 jan./jun. 2005

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 331

dispem de meios negociais para a preservao de seus


interesses. So eles o credor fiscal Cdigo Tributrio Nacional
(CTN), (CTN, art.135,III), a seguridade social (Lei n 8.620/
93, art.13), o empregado, e o titular de direito extracontratual
indenizao.

Execuo Fiscal. Bens particulares de scio de socie-


dade por quota de responsabilidade limitada. No
se exige a inscrio do nome do scio-gerente, ou
responsvel para que contra ele se exera a ao
fiscal. Mas s se admite a responsabilizao do scio-
gerente, ou responsvel para que contra ele se exera
a ao fiscal. Mas s se admite a responsabilizao
do scio-gerente ou responsvel; principalmente se
agiu com excesso de poderes ou infrao lei,
contrato social ou estatutos (artigo 135, III, do CTN).
Orientao da corte (RTJ, 116/418; tambm: JSTJ,
23/141)5 .

Nas sanes s irregularidades praticadas na Sociedade


Limitada, a responsabilizao do scio no depende de prvio
exaurimento do patrimnio social, mas na responsabilizao
decorrente de falta de integralizao. Enquanto houver patrimnio
social o patrimnio do scio no poder ser alcanado.

Pelo Novo Cdigo Civil, as Sociedades Limitadas podem


ter a regncia supletiva da Sociedade Simples, quando so
denominadas de sociedades de vnculo instvel, ou da
Sociedade Annima, denominada de limitadas de vnculo
estvel. Havendo clusula estabelecendo a regncia supletiva
pelas normas das annimas, aplica-se a Lei das Annimas (LSA),
5
COELHO, Fbio Ulhoa. A sociedade limitada no novo cdigo
civil. So Paulo : Saraiva, 2003. p. 15 .

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 319-348 jan./jun. 2005

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332 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

caso contrrio, havendo omisso ou previso legal, as omisses


sero supridas pelas normas referentes s Sociedades Simples.
A aplicao s Sociedades Limitadas da Lei das Socie-
dades Annimas, nos assuntos no regulados pelo captulo
prprio do Cdigo Civil e quando prevista no contrato est
sujeita a uma condio: a contratualidade da matria.

Em assunto disciplinado pelo captulo do Cdigo


Civil especfico desse tipo societrio, vigora a
disposio nele contida; na constituio e dissoluo
total, observa-se sempre o Cdigo Civil; nos demais
casos, se a matria passvel de negociao entre os
scios, aplica-se supletivamente a disciplina do
cdigo civil respeitante a sociedade simples, ou, se
assim desejado pelos scios de modo expresso, a
Lei das Sociedades por Aes; no sendo a matria
suscetvel de negociao, pode-se aplicar analo-
gicamente a Lei das Sociedades por Aes na
superao da lacuna6 .

As principais diferenas entre os dois subtipos societrios


dizem respeito dissoluo parcial, ao desempate, destinao
do resultado e vinculao a atos estranhos ao objeto social.
As sociedades ditas de vnculo instvel podem ser parcialmente
dissolvidas nas hipteses de morte, liquidao de quotas a
pedido de credor scio, retirada imotivada, retirada motivada,
ou expulso do scio. J as sociedades com vnculo estvel s
podem ser parcialmente dissolvidas nas hipteses de retirada
motivada ou expulso do scio.

Nas limitadas instveis o desempate feito, inicialmente,


segundo o critrio da quantidade de scios, enquanto que,

6
Idem,. p. 21-22 .

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 333

nas limitadas com vnculo societrio estvel, prevalecer sempre


a quantidade de aes de cada scio. Em relao destinao
do resultado, nas limitadas com vnculo instvel, a maioria
dos scios delibera sobre a destinao do resultado, podendo
livremente decidir pelo reinvestimento da totalidade dos lucros
gerados. J as limitadas com vnculo societrio estvel devem
prever, no contrato social, o dividendo obrigatrio a ser distri-
budo entre os scios.

Na matria referente aos atos estranhos ao objeto social,


a sociedade com vnculo instvel, por se submeter ao art.1.015
do Cdigo Civil, no se vincula aos atos praticados em seu
nome pelo administrador quando se tratar de operao eviden-
temente estranha aos negcios da sociedade, j a sociedade
com vnculo estvel no se submete ao referido artigo, vincu-
lando-se a todos os atos praticados em seu nome por seus
administradores, ainda que estranhos ao objeto social.

2.2 Contrato Social

Para ser vlido o contrato social da Sociedade Limitada,


deve-se atender aos requisitos gerais de validade de qualquer
ato jurdico. Alm desses, deve preencher ainda mais dois
requisitos especficos, a contribuio dos scios e a distribuio
dos resultados.

So clusulas essenciais exigidas pela junta para arquiva-


mento do contrato social das Sociedades Limitadas: 1 tipo
de sociedade empresria adotado; 2 declarao precisa e deta-
lhada do objeto; 3 capital social, forma e prazo de integra-
lizao; a quota de cada scio; 4 a extenso da responsa-
bilidade dos scios; 5 nome e qualificao dos scios; 6
nome e qualificao dos administradores, a menos que conste
de ato separado; 7 nome da sociedade empresria; 8

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334 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

localizao da sede e filiais; 9 durao que poder ser deter-


minada ou indeterminada; 10 fim do exerccio social, se
no coincidente com o ano civil; 11 a participao de cada
scio nos lucros e nas perdas; 12 o nome empresarial; 13
a sede e o foro e; 14 e o visto de um advogado.

2.3 Das quotas e da administrao da Sociedade Limitada

Como sabido, as Sociedades Limitadas podem estar


sujeitas disciplina supletiva do regime da Sociedade Simples,
e conseqentemente sujeitas s regras deste tipo societrio, entre
elas a regra do art. 1.026 que autoriza o credor do scio a requerer
a liquidao da quota do devedor. J o credor de scio integrante
de Sociedade Limitada com vnculo estvel tem a sua disposio
apenas a alternativa da penhora das quotas sociais.

Em relao ao condomnio de quota, estipula que os


direitos s podero ser exercidos pelo condmino represen-
tante, e que caso a quota seja indivisa, os condminos respon-
dem solidariamente at a total integralizao. O art. 1.057 do
dispositivo legal em vigor estabelece a possibilidade de cesso
total ou parcial de quotas independentemente de autorizao
dos demais a quem seja scio, ou a terceiros se no houver
oposio de um quarto do capital social.

Reza o artigo 1.058 do Cdigo Civil que no integra-


lizada a quota de scio remisso, os outros scios podem, sem
prejuzo do disposto no art. 1.004 e seu pargrafo nico, tom-
la para si ou transferi-la a terceiros, excluindo o primitivo titular
e devolvendo-lhe o que houver pago, deduzidos os juros de
mora, as prestaes estabelecidas no contrato mais as despesas.

A Sociedade Limitada normalmente administrada por


um ou mais scios, designados no contrato social ou em ato

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 335

apartado. Caso o contrato permita, a sociedade pode ser


administrada por pessoa no scia. A diretoria um rgo
cuja atribuio interna administrar a empresa e, externa-
mente, manifestar a vontade da pessoa jurdica. Os adminis-
tradores so escolhidos sempre pela maioria societria qualifi-
cada, variando o quorum de deliberao segundo o instrumento
de designao (contrato social ou ato apartado) e o status do
administrador (scio ou no).

Na incumbncia de administrar bens e interesses alheios,


os membros administradores tm dever de diligncia e lealdade
para com a sociedade. Para cumprir seu dever o administrador
deve observar, na conduo dos negcios sociais, os preceitos
da tecnologia da administrao de empresas, fazendo o que esse
conhecimento recomenda. Para cumprir o dever de lealdade, o
diretor no pode valer-se de informaes a que teve acesso em
razo do posto que ocupa, no pode tambm utilizar-se de
recursos humanos e materiais da empresa para propsitos
particulares e no pode finalmente concorrer com a sociedade.

Em caso de administrador incurso em ato de m admi-


nistrao que no seja scio majoritrio, provavelmente ser
destitudo e responder ao de indenizao proposta pela
sociedade, mas se o prprio scio majoritrio praticou m
administrao, os prejuzos decorrentes desta podero ser
demandados pelo scio minoritrio, na condio de substituto
processual da sociedade.

O administrador s pessoalmente responsvel pelas


obrigaes tributrias da Sociedade Limitada quando oriundas
de atos praticados com excesso de poderes ou infrao legal,
contrato social ou estatutos. Assim sendo o fisco no pode
exigir do administrador as dvidas da pessoa jurdica, quando
incorridas ilicitudes ou irregularidades na gesto pessoal.

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336 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

Sociedade Comercial Responsabilidade


Tributria Responsabilizao dos scios por dvi-
das fiscais assumidas pela sociedade Inadmis-
sibilidade Necessria comprovao de que o
dirigente agiu com excesso de poderes ou infrao
de lei, contrato social ou estatuto Inteligncia
do art. 135, III, do CTN. Os scios de sociedade
comercial no respondem, solidariamente, com
seus bens pessoais por dvidas fiscais assumidas
pela sociedade, eis que, a responsabilidade
tributria imposta ao scio-gerente, administrador,
diretor ou equivalente s se caracteriza quando
h dissoluo irregular da sociedade, se agem com
excesso de mandato ou em comprovada violao
do contrato social, do estatuto ou da lei, nos
termos do art 135, do CTN (...) (STJ, RJ, 79/
193)7 .

2.4 Nome empresarial

A primeira alterao introduzida pelo novo Cdigo


Civil foi a imposio da obrigatoriedade da indicao do objeto
social na denominao. A segunda alterao foi a introduo
da permisso expressa de inserir na denominao da Sociedade
Limitada o nome social de um ou mais scios. A incluso do
nome dos scios na denominao da Sociedade Limitada no
transforma aquela em firma social.

Na parte referente alienabilidade do nome empresarial,


o novo Cdigo Civil taxativo no sentido de que o nome
empresarial no pode ser objeto de alienao. Prev, no entanto,
que o adquirente do estabelecimento, por ato entre vivos, pode,

7
Idem, p. 59 .

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 337

se o contrato social permitir, usar o nome do alienante,


precedido de seu prprio, com a qualificao de seu sucessor.

2.5 Do Conselho Fiscal

O Cdigo Civil em vigor, buscando melhor instrumen-


talizar o direito de fiscalizao pelos scios, facultou aos scios
no contrato social a instituio de um conselho fiscal. Este ser
composto de, no mnimo, trs membros efetivos e seus suplentes,
que podero ser eleitos em assemblia ordinria ou em reunio
dos scios quando estabelecida no contrato social, e com mandato
at o ano seguinte. Os scios minoritrios que representem pelo
menos 20% do capital social tm o direito de eleger, em separado,
um membro e um suplente do conselho fiscal.

As principais funes do Conselho Fiscal so: 1 - exa-


minar os livros, documentos, estado da caixa e carteira da
sociedade; 2 - solicitar dos administradores ou liquidantes as
informaes necessrias ou teis ao desempenho de suas
funes; 3 - registrar, em livro prprio, os pareceres que exarar;
4 - apresentar assemblia ordinria pareceres sobre os negcios
e operaes sociais, baseados no balano patrimonial e no de
resultados; 5 - denunciar aos scios os erros, fraudes ou crimes
que descobrirem sugerindo providncias; 6 - convocar
assemblia ordinria dos scios se os administradores retar-
darem por mais de trinta dias; 7 - convocar assemblia dos
scios sempre que verificados motivos graves e urgentes.

2.6 Dos scios e suas deliberaes

Na Sociedade Limitada, para a tomada de decises, cada


scio interfere de modo proporcional contribuio dada ao
negcio, obedecendo regra da proporcionalidade prevista
no artigo 486 do Cdigo Comercial.

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338 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

Entre os scios de uma Sociedade Limitada, no deve


prevalecer o interesse do maior nmero deles; ao contrrio,
quem est se arriscando mais que os outros deve por isso ter
assegurada a participao nas decises da empresa proporcional
ao risco sofrido.

So quatro as hipteses de alteraes contratuais com o


advento do novo diploma legal, a saber: 1 - designao de
administrador no scio; 2 - destituio de administrador
scio; 3 - expulso extrajudicial de minoritrio; 4 - as demais
alteraes.

As deliberaes dos scios atinentes estratgia geral


dos negcios da sociedade no dependem de forma especial.
H, entretanto, deliberaes que devem atender a determinadas
formalidades preceituadas na prpria lei.

Os scios da limitada deliberam em reunio ou em


assemblia. A sociedade constituda de at 10 scios pode
adotar uma ou outra, enquanto aquela que tiver nmero de
scios superior a dez est obrigada realizao de assemblia.
A diferena entre reunio e assemblia reside no fato de que a
reunio dispensa maiores rituais e a assemblia cercada de
formalidades.

2.6.1 Assemblia

Sempre que a lei ou o contrato social prever, os adminis-


tradores convocam assemblia geral. Tambm so competentes
para a convocao da assemblia, o titular ou titulares de mais
de 20% do capital social alm do Conselho Fiscal, nas
hipteses de presena de motivos graves e se aps o trmino
do exerccio social, os administradores no fizerem a devida
convocao.

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 339

Os anncios de convocao da assemblia dos scios


devero ser publicados no Dirio Oficial do Estado da sede
da sociedade e em, pelo menos, um jornal de grande circulao.
Sero trs as inseres de cada anncio, a primeira deve
anteceder em oito dias e a segunda em cinco dias a realizao
da assemblia.

O Cdigo Civil exige nmero mnimo de scios para a


validade dos trabalhos assembleares, o denominado quorum
de instalao de trs quartos do capital social em primeira
convocao e em segunda, com qualquer nmero.

Na assemblia os trabalhos sero dirigidos por uma


mesa, composta por presidente e secretrio, os quais devem
ser escolhidos entre os scios presentes. No existindo nmero
de scios suficientes, a eleio poder recair sobre profissionais
contratados.

Quanto ao quorum de deliberaes, a lei estipula


valores diferentes para vrios assuntos, seno vejamos: 1 - a
unanimidade exigida para a designao de administrador
no scio, se o capital no est totalmente integralizado; 2 -
para aprovao de alterao do contrato social, incorporao,
fuso, dissoluo, ou cesso de liquidao o quorum exigido
de trs quartos do capital social; 3 - Esto sujeitos ao
quorum de dois teros a destituio de administrador scio
e a designao de administrador no scio; 4 - Exige o
quorum da maioria absoluta a designao de administrador
scio feita em ato separado, a destituio de administrador,
a remunerao dos administradores e a impetrao de
concordata; 5 - e por fim a maioria simples se d nos demais
casos.

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340 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

2.6.2 Direito de retirada

O scio que pretenda se retirar de uma sociedade poder


faz-lo de duas maneiras diferentes: 1 alienar sua participao
societria para outro scio ou para terceiro; 2 exercer o
direito de retirada.

O novo Cdigo Civil regula o direito de retirada levando


em considerao se a sociedade contratada por tempo deter-
minado ou indeterminado. Nas sociedades convencionadas
por tempo indeterminado, qualquer scio poder se retirar
da sociedade mediante notificao aos demais scios, com a
antecedncia mnima de sessenta dias. J nas sociedades
contratadas por tempo determinado, o direito de retirada do
scio fica subordinado comprovao da existncia de justa
causa.

O direito de recesso poder ser exercido no s pelos


scios que discordarem das deliberaes expressamente na
assemblia como tambm por aqueles que se abstiveram de
votar, alm dos ausentes.

2.7 Dissoluo da Sociedade Limitada

So causas de dissoluo de pleno direito das Sociedades


Limitadas: 1 - o vencimento do prazo de durao, salvo se
vencido este e sem oposio de scio, no entrar a sociedade
em liquidao, caso em que se prorrogar por prazo indeter-
minado; 2 - o consenso dos scios, nas sociedades por prazo
determinado exige-se o consenso unnime dos scios para a
dissoluo da sociedade antes do decurso do prazo. J nas
sociedades pactuadas por prazo indeterminado, basta a vontade
da maioria absoluta dos scios; 3 - A falta de pluralidade de
scios no reconstituda no prazo de cento e oitenta dias; 4 -

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 341

A extino, na forma da lei, de autorizao para funcionar.


Para as sociedades de funcionamento sujeitas autorizao do
governo, como bancos e seguradoras, a extino da autorizao
pode causar a dissoluo.

O art. 1.034 do Cdigo Civil disciplina as causas de


dissoluo judicial da Sociedade Limitada, a saber: a anulao
de sua constituio, a verificao de sua inexeqibilidade, alm
da falncia.

2.8.1 Dissoluo parcial da Sociedade Limitada

So causas de dissoluo parcial das limitadas: 1 - retirada


do scio quando houver discordncia em relao ao valor a ser
pago ao scio que se retira, ajuizando-se ao judicial de dissoluo
parcial para ser promovida a apurao dos haveres do retirante; 2
- exerccio do direito de recesso, nas hipteses de modificao do
contrato social, fuso de sociedade, incorporao de outra ou
dela por outra para os scios dissidentes; 3 - expulso de scio
(so duas as hipteses de excluso de scio: a primeira ocorre
quando a maioria dos scios entender que um ou mais scios
esto pondo em risco a continuidade da empresa e a segunda
hiptese a excluso de scio remisso). 4 - falecimento de scio
(neste caso caber a seus sucessores e aos scios remanescentes
decidir se a sociedade prosseguir ou no). 5 - liquidao de quota
a pedido de credor de scio e falncia de scio.

3 MODIFICAES E INOVAES OCORRIDAS


COM O ADVENTO DO CODIGO CIVIL

3.1 Comparaes e inovaes

Enquanto o artigo n 18 do Decreto 3.708/19 determi-


nava a observao das disposies da Lei das Sociedades

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342 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

Annimas no que no fosse regulado no contrato social e que


fosse aplicvel s Sociedades por Quotas de Responsabilidade
Limitada, o novo Cdigo Civil determinou que, nos casos de
omisses contratuais, a Sociedade Limitada reger-se- pelas
normas da Sociedade Simples. A regncia supletiva das Socie-
dades Limitadas pelas normas da Sociedade Annima s
poder ocorrer atravs de prvia e expressa determinao no
contrato social.

O Novo Cdigo Civil criou dois subtipos societrios


para a Sociedade Limitada, a Sociedade Limitada sujeita a
regncia supletiva da Sociedade Simples, tambm denominada
limitada com vnculo societrio instvel, e a Sociedade Limitada
sujeita a regncia supletiva da Sociedade Annima, tambm
chamada de limitada com vnculo estvel.

A lei das Sociedades Annimas no mais supletiva da


vontade dos scios, mas sim da disciplina legal. A diferena
substancial porque, tendo sido eleita pelo contrato social como
norma de regncia supletiva a LSA, se houver nele uma clusula
contrria ao previsto nessa lei, a disposio de vontade ser
ilegal e invlida. Quando a LSA, no passado, era apenas regra
supletiva da vontade dos scios, claro que esta se sobrepunha
quela. Como agora norma supletiva da lei, a vontade dos
scios passa a submeter-se a ela.

Importa observar que a lei das limitadas era bastante


sucinta, deixando grande parte das relaes internas e externas
sem disciplinamento, por esse motivo, enquanto vigorou a lei
das limitadas, esse tipo societrio se regia, nas matrias atinentes
constituio e dissoluo, pelo cdigo comercial; nas demais
matrias, se omisso o contrato social, pela lei das Sociedades
Annimas.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 319-348 jan./jun. 2005

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 343

O Decreto n 3.708/19 determinava o lanamento do


contrato no registro de comrcio, porm no estipulava prazo
para tal. J o cdigo de Reale determinou a inscrio do
contrato social no Registro Civil das Pessoas Jurdicas,
determinando o prazo de 30 dias contados da constituio da
sociedade. Outra modificao realizada foi a exigncia de que
qualquer modificao no contrato social deve ser averbada
impondo assim maiores exigncias.

Uma inovao que podemos vislumbrar com o advento


deste cdigo, diz respeito profissionalizao da administrao
da Sociedade Limitada pois, no regime anterior, apenas quem
tivesse a qualidade de scio podia administrar a sociedade. A
condio formal para a profissionalizao da Sociedade
Limitada a previso de nomeao de administradores no
scios. Enquanto no integralizado o capital, exige-se a unani-
midade dos scios para a eleio de administrador no scio,
se j integralizado, basta a convergncia da maioria qualificada
deles.

Com o Cdigo de Reale, a matria referente alterao


de contrato social tornou-se mais complexa, pois o cdigo
destinguiu quatro hipteses de alterao contratual e em
relao a cada uma dessas hipteses estipulou um quorum de
aprovao. Podemos resumir a comparao supra da seguinte
forma: at a entrada em vigor do novo diploma legal, era muito
simples a disciplina das deliberaes dos scios da limitada, a
vontade do scio titular de mais da metade do capital era
suficiente para qualquer deliberao e a nica formalidade
exigvel era a alterao contratual arquivada na Junta Comercial.
Quando importasse mudana do ato constitutivo da sociedade,
se no houvesse alterao de clusula contratual, a alterao
podia revestir-se inclusive da forma oral. Com o advento do
novo estatuto passou-se a exigir quorum de deliberao

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344 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

diferente para vrios assuntos de interesse da sociedade:


unanimidade, 3/4, 2/3, maioria absoluta e maioria simples.

O Cdigo Civil assegurou aos scios minoritrios que


representem pelo menos um quinto do capital social, o direito
de eleger, separadamente, um dos membros do conselho fiscal
e o respectivo suplente.

Quanto ao nome empresarial, o novo cdigo civil


manteve a alternatividade da Sociedade Limitada, que pode
usar tanto a firma social como a denominao. No entanto, o
novo cdigo tornou obrigatria a determinao do objeto
das sociedades que usam de denominao, o que no decreto
anterior que regulava a matria era facultativa.

Na parte referente aos rgos sociais, o novo cdigo definiu


e determinou a forma destes pelo nmero de scios que a
sociedade possui. As sociedades que possuam quantidade de
scios em nmero igual ou inferior a 09(nove) estaro inseridas
nas Sociedades Simples, dispensando a assemblia. Por outro
lado, as sociedades que possuam quantidade de scios igual ou
superior a 10(dez) estaro sujeitas ao rito das sociedades por
aes, passando a possuir regramento de assemblia por
determinao legal. Quanto ao conselho fiscal, que no era sequer
previsto no Decreto n 3.708/19, o Cdigo Civil facultou s
Sociedades Limitadas a criao do conselho fiscal.

Na parte referente dissoluo de sociedade, tendo por


causa a falta de pluralidade de scios, o novo Cdigo Civil j
estipula o prazo dentro do qual a sociedade deve se restabelecer,
que de cento e oitenta dias. Se no se refizer a pluralidade, a
sociedade ser dissolvida. O antigo diploma no regulamentava
a matria, apenas como era regida pela forma contratual, se
entendia que a sociedade deveria se extinguir se no houvesse

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 319-348 jan./jun. 2005

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SOCIEDADE LIMITADA: PRINCIPAIS ALTERAES OCORRIDAS... 345

pelo menos dois scios. Como forma de preservao da


empresa, algumas delas passaram a estipular no contrato que,
se a sociedade fosse reduzida a apenas um scio, pudesse, dentro
de certo prazo, se reconstituir sem entrar imediatamente em
processo de dissoluo. Alguns doutrinadores, inclusive,
defendiam a aplicao do art. 206 da LSA, que estabelece
prazo de um ano para que a sociedade possa se reconstituir,
mesmo que no houvesse clusula disciplinando a existncia
de apenas um scio.

4 CONSIDERAES FINAIS

Grandes foram as modificaes ocorridas no discipli-


namento das Sociedades Limitadas com o advento do novo
Cdigo Civil e a revogao do Cdigo Comercial e do Decreto
n 3.708/19 que disciplinava a matria.

Entre as mais significativas mudanas introduzidas


podemos citar a previso de dois diferentes regimes jurdicos
de regncia supletiva das Sociedades Limitadas. Uma mudana
tambm de vulto foi a elevao do quorum de deliberao,
com reflexos nas decises internas de poder entre os scios,
vindo a melhorar de certa maneira a situao dos scios
minoritrios.

A possibilidade de administrao por pessoa no scia


tambm representou uma mudana e permitiu a profissiona-
lizao da administrao das Sociedades Limitadas. A obriga-
toriedade da determinao do objeto na denominao de uma
limitada tambm representou importante modificao.

O novo cdigo tambm possibilitou a constituio de


sociedade entre marido e mulher desde que o regime jurdico
do casamento no seja o da comunho universal ou da sepa-

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rao obrigatria de bens. Hoje, qualquer que seja o regime


de bens, o empresrio casado pode alienar ou gravar de nus
reais imveis que pertenam empresa sem necessidade de
outorga conjugal.

O novo cdigo tambm imps maiores formalidades para


a constituio de uma Sociedade Limitada, prova disso a
exigncia da inscrio do administrador como empresrio na Junta
Comercial competente; a exigncia de que qualquer alterao do
contrato social seja prontamente averbada na Junta Comercial,
alm da exigncia de criao de assemblia para as sociedades que
tiverem mais de 10(dez) scios, tornando a Sociedade Limitada
quase como uma Sociedade Annima simplificada.

Concluo que as alteraes advindas do novo diploma


legal para o cotidiano das Sociedades Limitadas trouxeram
mudanas positivas em algumas matrias como na parte referente
aos scios e aos administradores e em outras matrias em nada
alterou o dispositivo revogado, deixando essas matrias carentes
de atualizao; e ainda em outras matrias, como na parte
referente constituio desse tipo societrio, o Cdigo Civil
foi muito exigente, deixando mais difcil a constituio da
limitada, o que foi uma mudana negativa, pois a criao desse
tipo societrio no mundo do direito foi para atender aos
comerciantes mdios e a imposio de tamanhas exigncias afasta
o comerciante mdio da limitada, para a qual foi criada.

5 REFERNCIAS

ABRO, Nelson. Sociedade por quotas de responsabilidade


limitada. 8. ed. So Paulo : Saraiva, 2000.

ALVIM, Arruda. Direito Comercial Coleo Estudos e


Pareceres. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 319-348 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 346 29/8/2006, 20:17


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Sem ttulo-6 347 29/8/2006, 20:17


348 KATYANNA ALENCAR MUNIZ

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Sem ttulo-6 348 29/8/2006, 20:17


DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 349

DESCONSIDERAO DA
PERSONALIDADE JURDICA:
ASPECTOS GERAIS E PROCESSUAIS
DO INSTITUTO

Leonardo Lumack do Monte Barretto


Advogado. Ex-pesquisador/bolsista do
Programa de Iniciao Cientfica PIBIC-
CNPq. Aluno da Escola Superior da
Magistratura do Estado de Pernambuco
ESMAPE

SUMRIO
1 INTRITO; 1.1 ORIGEM; 1.2 DA PERSONALIDADE JURDICA; 1.3
INTRITO
MANUTENO DA PERSONALIDADE JURDICA; 1.4 TEORIAS DA
DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA; 1.5 APLICAO; 2
DDAA LEGISLAO PER TINENTE ; 3 ASPECT
PERTINENTE OS PROCESSU
ASPECTOS PROCESSUAISAIS
DA DOUTRINA DA DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE
JURDICA ; 3.1 REGULAMENTO DA DECLARAO JUDICIAL DE
DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA; 3.2 APLICAO
PROCESSUAL DAS TEORIAS DA DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE
JURDICA; 3.3 MOMENTO DE APLICAO DA TEORIA; 3.4
DISCRICIONARIEDADE; 3.5 EFEITOS DA DECISO JUDICIAL EM MATRIA
DE DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA; 4 CONSIDE-
RAES FINAIS; 5 REFERNCIAS

1 INTRITO

O presente artigo no tem a pretenso de exaurir todos


os aspectos passveis de discusso acerca da teoria da descon-
siderao da personalidade jurdica (D.P.J.), haja vista as obras

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350 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

especficas e bastante detalhadas j publicadas sobre o tema.


Busca-se, em verdade, tratar de alguns aspectos tericos e
prticos da desconsiderao, em especial no que se refere ao
ngulo processual da temtica em pauta.

1.1 Origem

Constatou-se, a partir do sculo XIX, um expressivo


aumento na utilizao da pessoa jurdica como instrumento para
se atingir fins contrrios aos ditames legais. Conseqentemente, a
doutrina e a jurisprudncia passaram a se inquietar com tal situao
e incentivaram a busca por meios capazes de conter os desvios de
conduta ocorridos por meio da m utilizao da pessoa jurdica.
Dentro dessa preocupao gerada pela aplicao detur-
pada do instituto da pessoa jurdica que surgiu, como meio
idneo capaz de reprimir tais abusos, a teoria de desconside-
rao da personalidade jurdica (disregard doctrine ou
piercing the corporate veil penetrando o vu da corporao).
Na tentativa de evitar a prtica de determinados ilcitos por
particulares, que se aproveitavam do manto protetor da perso-
nalidade da sociedade, foi que nasceu a doutrina da
desconsiderao ou da superao da personalidade jurdica.
E foi no mbito da common law que a teoria da des-
considerao da personalidade jurdica pde se desenvolver.
De incio, em especial no direito norte-americano, a teoria era
visivelmente aplicada na atuao dos juzes por meio das
decises jurisprudenciais. O instituto, atualmente, largamente
utilizado pelos tribunais alemes, ingleses, americanos e
argentinos.

1.2 Da Personalidade Jurdica:

Dos estudos proferidos na seara do Direito Privado


(Civil e Empresarial), constata-se que uma determinada

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 351

sociedade adquire personalidade jurdica a partir da inscrio,


no registro prprio e na forma da lei, dos seus atos consti-
tutivos (artigos 45, 985 e 1150 todos do Cdigo Civil).
com o arquivamento dos seus atos constitutivos (contrato
social ou estatuto) na Junta Comercial e, no caso das sociedades
simples, com a inscrio do contrato social no Registro Civil
das Pessoas Jurdicas, que a sociedade empresria passa a
desfrutar da personalidade jurdica.
A partir do registro que se inicia a existncia legal da
sociedade, cessando esta aps a partilha do acervo remanescente
entre os scios, se houver, no caso de liquidao, judicial ou
extrajudicial.
Conclui-se, a partir dessas observaes, que a pessoa
jurdica fruto da vontade humana, j que sua constituio
proveniente de um conjunto de atos praticados pelo interes-
sado a fim de criar referidas entidades com finalidades diversas.
Detentora da personalidade jurdica, a sociedade capaz
de direitos e obrigaes, passando a ter existncia distinta da
de seus membros, e, por conseguinte, tal autonomia de perso-
nalidade jurdica entre o scio e a sociedade apresenta vrias
conseqncias. Destacam-se a seguir os seguintes efeitos da
personificao:

PATRIMNIO PRPRIO: A sociedade, com


personalidade jurdica, adquire autonomia patri-
monial. O patrimnio social no se confunde com
o dos scios. o patrimnio da sociedade, seja
qual for o tipo por ela adotado, que ir responder
pelas suas obrigaes.

NOME PRPRIO: Tendo existncia distinta da


de seus membros, a sociedade titular de um nome
prprio, diverso dos nomes de seus scios. sob
o nome social, que poder ser uma firma ou uma

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352 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

denominao, que a sociedade exercer direitos e


se vincular a obrigaes.

NACIONALIDADE PRPRIA: Com a perso-


nificao, a sociedade passa a possuir nacionalidade
prpria, independente da nacionalidade dos seus
integrantes.

DOMICLIO PRPRIO: A sociedade tem domi-


clio prprio, distinto do domiclio de seus scios.
O domiclio da sociedade chamado de sede social
e dever vir fixado nos seus atos constitutivos.1

Haja vista as sociedades apresentarem um acervo


patrimonial prprio, distinto do acervo particular de cada
um de seus scios, em determinadas situaes, a pessoa jurdica
da sociedade passou a ser utilizada como instrumento para a
prtica de abusos e fraude.
Vimos que, em decorrncia do arquivamento do
contrato social no registro pblico de empresas mercantis, a
sociedade empresria adquire personalidade jurdica, respon-
dendo pelas obrigaes sociais com o seu prprio patrimnio.
A pessoa jurdica da sociedade no se confunde com a pessoa
fsica dos scios.
A personalidade jurdica, assim como a maioria dos
institutos jurdicos, se no todos, tem por escopo a licitude.
Desta forma, sempre que algum ou alguns dos scios se
utilizarem da autonomia patrimonial da pessoa jurdica para
acobertar prticas abusivas e fraudulentas, a personalidade
jurdica poder ser momentaneamente desconsiderada.
E foi exatamente para impedir que a personalidade
jurdica seja um meio de garantir a impunidade de atos
1
CAMPINHO, Srgio. O direito de empresa luz do novo Cdi-
go Civil
Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 353

fraudulentos ou abusivos que se adotou, como pressuposto


da represso a certos tipos de ilcitos, a chamada doutrina da
desconsiderao da personalidade jurdica, tambm chamada
da superao e da penetrao, tendo por base afastar, momen-
taneamente, a autonomia patrimonial da sociedade, possibili-
tando que o scio fraudador seja responsvel direta e ilimitada-
mente por uma obrigao que seria, originariamente, da
sociedade.

1.3 MANUTENO DA PERSONALIDADE JUR-


DICA

A aplicao da doutrina da desconsiderao da perso-


nalidade jurdica reclama do julgador prudncia e vigilncia a
fim de no destruir o prprio instituto da pessoa jurdica.
A aplicao dessa doutrina demanda a existncia de
prova concreta da fraude ou abuso de direito cometido pelo
desvio de finalidade da pessoa jurdica. Em havendo apenas
indcios de abuso ou fraude, no se autoriza a aplicao do
instituto. Se no for comprovada a real inteno dos scios
ou administradores de se valerem da pessoa jurdica para
fraudar a lei, no h que se autorizar a desconsiderao da
personalidade jurdica, aplicando-se esta apenas quando for
realmente provada a prtica de fraudes ou abusos por meio da
utilizao da personalidade jurdica.
A disregard doctrine no tem por objetivo anular ou
desconstituir a personalidade jurdica; busca to-somente torn-
la episodicamente ineficaz em um determinado caso concreto
em virtude de seu uso ter sido desviado da sua legtima finalida-
de por parte de maus scios ou administradores, ou ter sido
utilizada com o objetivo de prejudicar credores ou terceiros,
ou para praticar fraude, sem que haja dissoluo da pessoa
jurdica. A personalidade jurdica permanece vlida para todos
os demais efeitos.

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354 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

Desconsiderao e despersonificao apresentam signi-


ficados diversos. Esta tem por finalidade anular a personalidade
jurdica, por lhe faltar condies de existncia (no caso de
dissoluo de sociedades, por exemplo). J aquela visa descon-
siderar, apenas no caso concreto, o instituto da pessoa jurdica.
Ressalta-se, ainda, que muitos confundem os casos de
responsabilidade pessoal dos scios e administradores com a
desconsiderao da personalidade jurdica. Aqueles, se agirem
mediante excesso de poderes ou praticando atos ilegais, po-
dero responder pelas dvidas societrias. Contudo, no se
trata de desconsiderao da personalidade jurdica, haja vista
no ocorrer uma manipulao da sociedade por parte dos
scios como escudo para a prtica de fraude. O que ocorre
uma atuao ilcita por parte deles que, conseqentemente,
sero responsabilizados na medida de sua culpabilidade.

1.4 Teorias da Desconsiderao da Personalidade Jur-


dica

H duas formulaes para a teoria da desconsiderao:


a maior, pela qual o juiz autorizado a ignorar a autonomia
patrimonial das pessoas jurdicas, como forma de coibir fraudes
e abusos praticados atravs dela; e a menor, em que o simples
prejuzo do credor j possibilita afastar a autonomia patri-
monial.2
Assim, pela teoria maior da desconsiderao, o juiz
poder deixar de aplicar as regras referentes separao patri-
monial entre a sociedade e os seus scios, ignorando, episodi-
camente, a existncia da pessoa jurdica, isto , desconsiderando
a pessoa jurdica em um determinado caso concreto sob
julgamento, permanecendo a mesma vlida para quaisquer
outros fins.
2
COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Comercial.
Comercial 5. ed. So
Paulo: Saraiva, 2003. v. 2.

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 355

Segundo Fbio Ulhoa Coelho, o pressuposto da teoria


menor, menos elaborada que a maior, simplesmente o
desatendimento de crdito titularizado perante a sociedade,
em razo da insolvabilidade ou falncia desta, ou seja, se a
sociedade no possui patrimnio, mas o scio solvente, tal
seria suficiente para responsabiliz-lo por obrigaes daquela.
Como foi visto, a aplicao da doutrina da desconsi-
derao da personalidade jurdica no objetiva anular a prpria
existncia de uma sociedade. Apenas no caso concreto, em
que a autonomia patrimonial foi utilizada com abuso ou
fraude, que a personalidade jurdica desconsiderada, ficando
suspensa momentaneamente.

1.5 Aplicao

Como j exposto, a teoria da desconsiderao da


personalidade jurdica aplica-se apenas sobre os entes dotados
de personalidade jurdica distinta da de seus membros,
objetivando responsabilizar seus scios ou administradores que
porventura tenham praticado atos abusivos ou fraudulentos
por intermdio do uso da pessoa jurdica. No se trata de
anular a pessoa jurdica, mas apenas desconsiderar sua persona-
lidade em um determinado caso concreto, permanecendo
vlida para todos os outros efeitos.
O primeiro requisito de viabilidade da aplicao da
doutrina da desconsiderao a inteno de usar, com fraude
ou abuso de direito, a pessoa jurdica, beneficiando-se da
separao patrimonial entre o scio e a sociedade.
Existe, ainda, um outro requisito de viabilidade (poucos
doutrinadores o mencionam) da aplicao da teoria da
desconsiderao da personalidade jurdica que a existncia
de responsabilidade limitada. Assim, aplica-se a teoria a apenas
dois tipos societrios, que so as sociedades annimas e as
sociedades por cotas de responsabilidade limitada, haja vista

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356 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

nos demais tipos societrios, que apresentam responsabilidade


limitada e ilimitada, os scios dirigentes serem sempre
responsabilizados ilimitadamente.
Por fim, no tocante s pessoas jurdicas de direito
pblico, so elas responsabilizadas civilmente por danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (em alguns
casos, responsabilidade objetiva), ressalvado o direito de
regresso contra os mesmos (responsabilidade subjetiva), no
se podendo falar em aplicao da teoria da desconsiderao
para esses entes.

2 DA LEGISLAO PERTINENTE

No Brasil, diferentemente do que acontece no direito


aliengena, onde se admite a desconsiderao da pessoa jurdica
da sociedade na jurisprudncia, para evitar abuso de direito
ou fraude em proveito de scio ou administrador, o princpio
vem definido na lei, diferentemente de outros sistemas.
No direito brasileiro, o primeiro dispositivo legal que merece
destaque no que se refere desconsiderao da personalidade jurdica
o Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu
artigo 28, que assim dispe: Art.28. O juiz poder desconsiderar
a personalidade jurdica da sociedade quando, em detrimento
do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder,
infrao da lei, fato ou ato ilcito ou violao dos estatutos ou
contrato social. A desconsiderao tambm ser efetivada quando
houver falncia, estado de insolvncia, encerramento ou
inatividade da pessoa jurdica provocados por m administrao.
(...) 5 Tambm poder ser desconsiderada a pessoa jurdica
sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstculo
ao ressarcimento de prejuzos causados aos consumidores.
Parte da doutrina critica o citado dispositivo no que se
refere ao excesso de poder, infrao da lei, fato ou ato ilcito
ou violao dos estatutos ou contrato social como fontes da

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 357

desconsiderao da personalidade jurdica, haja vista a


responsabilizao dos administradores e dos scios em geral,
nessas situaes, ser diretamente realizada, no havendo, pois,
necessidade de se desconsiderar a personalidade jurdica.
Contudo, pela anlise da lei, verifica-se como hipteses
fticas de aplicao da teoria: abuso de direito, excesso de
poder, infrao da lei, fato ou ato ilcito, ou violao dos
estatutos ou contrato social, falncia, estado de insolvncia,
encerramento ou inatividade da pessoa jurdica provocados
por m administrao.
Existe, ainda, a possibilidade de se decretar a descon-
siderao sempre que a personalidade for utilizada como
empecilho ao ressarcimento de prejuzos causados por fraude
ou abuso contra credores ou terceiros de boa-f.
Mas o que seria abuso de direito? Abusar de um direito
cometer um ato em conformidade com o texto legal, mas
excedendo os limites legais ou contratuais. O uso irregular do
direito causa um desvio de funo da norma.
Conforme afirmado por Fbio Ulhoa Coelho, seria
correto dizer que nosso sistema adota a teoria maior, sendo
necessrio desconsiderao a caracterizao da fraude ou abuso
de direito praticados atravs da personalidade jurdica, ou seja,
o sistema jurdico nacional exige que haja subjetivismo na
aplicao da desconsiderao da personalidade jurdica, sendo
necessrio se perguntar a respeito da vontade do agente em
causar dano e utilizar a pessoa jurdica para tanto, manipu-
lando-a de forma ardilosa e fraudulenta.3
Outro dispositivo presente no direito brasileiro que
tambm registra a teoria da desconsiderao o artigo 18 da
Lei 8.884/94 (Lei Antitruste). Assim est disposto o artigo
18: A personalidade jurdica do responsvel por infrao da
ordem econmica poder ser desconsiderada quando houver
3
COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Comercial.
Comercial 5. ed. So
Paulo: Saraiva, 2003. v. 2.

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358 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infrao da


lei, fato ou ato ilcito ou violao dos estatutos ou contrato
social. A desconsiderao tambm ser efetivada quando hou-
ver falncia, estado de insolvncia, encerramento ou inatividade
da pessoa jurdica provocados por m administrao.
Como se percebe, o referido dispositivo traz semelhante
idia quela presente no Cdigo de Defesa do Consumidor.
Pode-se encontrar, ainda, a teoria da desconsiderao
no artigo 4 da Lei 9.605/98, que dispe sobre a responsa-
bilidade por atividades lesivas ao meio ambiente. Segundo os
termos do dispositivo, poder ser desconsiderada a pessoa
jurdica sempre que sua personalidade for obstculo ao ressarci-
mento de prejuzos causados qualidade do meio ambiente.
Tal dispositivo permite que seja desconsiderada a personalidade
jurdica sempre que a mesma for utilizada como escudo para
evitar o ressarcimento de danos causados ao meio ambiente.
Por fim, o artigo 50 do Cdigo Civil de 2002 aplica a
desconsiderao da personalidade jurdica numa nica
hiptese, qual seja, a de abuso da personalidade jurdica, carac-
terizado pelo desvio de finalidade ou pela confuso patrimonial.
A requerimento da parte ou do Ministrio Pblico, quando
lhe couber intervir no processo, o juiz poder decidir que os
efeitos de certas e determinadas relaes de obrigao sejam
estendidos aos bens particulares dos administradores ou scios
da pessoa jurdica, nos casos em que ficar caracterizada a
deturpao desta.

3 ASPECTOS PROCESSUAIS DA DOUTRINA DA


DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JU-
RDICA

Poucos doutrinadores realizaram um trabalho espe-


cfico acerca da influncia que a desconsiderao da persona-
lidade jurdica exerce sobre o processo, haja vista ser esta uma

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 359

temtica de direito material. Porm, como ser visto adiante,


o instituto traz influncias sobre o direito processual. A
realidade processual e a realidade material do direito atuam
em conjunto e no separadamente.
Foi explicado que, no decorrer de um processo de
conhecimento, cautelar ou de execuo, se ficar comprovado
que um scio ou administrador de uma sociedade utilizou-se
desta para obter vantagem ilcita e se escondeu por trs de sua
personalidade jurdica como meio para evitar sua responsa-
bilizao, o magistrado poderia desconsiderar a personalidade
jurdica da sociedade e atingir a dos scios, passando estes a
serem parte integrante do plo passivo ao lado da pessoa
jurdica.
necessria, portanto, a conscincia de que o processo
tem a funo principal de servir como instrumento para a
aplicao do direito material, e que no representa um fim
em si mesmo. O seu objetivo servir como meio capaz de
estabilizar ou resolver situaes de conflito. O processo busca
a sentena e funciona como elo entre os opostos abstrato e
concreto da norma jurdica. O processo , portanto, um
instrumento de garantia do direito.
Assim, em princpio, pode-se afirmar que a desconsi-
derao da personalidade jurdica um tema que pertence ao
campo do direito material. Contudo, inegvel que o mesmo
gera reflexos importantes na seara do direito processual.

3.1 Regulamento da Declarao Judicial de Desconsi-


derao da Personalidade Jurdica

Apenas a ttulo de ilustrao, acrescentamos ao presente


artigo o Projeto de Lei 2.426/2003, do Dep. Ricardo Fiza,
que regulamenta o disposto no artigo 50 do Cdigo Civil
responsvel por disciplinar a declarao judicial de
desconsiderao da personalidade jurdica.

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360 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

Est disposto no referido projeto de lei que se a parte


se julgar prejudicada pela ocorrncia de desvio de finalidade
ou confuso patrimonial praticadas com abuso da persona-
lidade jurdica indicar, necessria e objetivamente, em reque-
rimento especfico, quais os atos abusivos praticados e os
administradores ou scios deles beneficiados, o mesmo
devendo fazer o Ministrio Pblico nos casos em que lhe
couber intervir na lide.
Antes de declarar que os efeitos de certas e determinadas
obrigaes sejam estendidos aos bens dos administradores ou
scios da pessoa jurdica, o juiz lhes facultar o prvio exerccio
do contraditrio, concedendo-lhes o prazo de quinze dias para
produo de suas defesas.
Sendo vrios os scios e ou os administradores acusados
de uso abusivo da personalidade jurdica, os autos permane-
cero em cartrio e o prazo de defesa para cada um deles contar-
se- independentemente da juntada do respectivo mandado
aos autos, a partir da respectiva citao se no figurava na lide
como parte e da intimao pessoal se j integrava a lide, sendo-
lhes assegurado o direito de obter cpia reprogrfica de todas
as peas e documentos dos autos ou das que solicitar, e juntar
novos documentos.
Nos casos em que constatar a existncia de fraude
execuo, o juiz no declarar a desconsiderao da persona-
lidade jurdica antes de declarar a ineficcia dos atos de alienao
e de serem executados os bens fraudulentamente alienados.
vedada a extenso dos efeitos de obrigaes da pessoa
jurdica aos bens particulares de scio e ou de administrador
que no tenha praticado ato abusivo da personalidade, mediante
desvio de finalidade ou confuso patrimonial, em detrimento
dos credores da pessoa jurdica ou em proveito prprio.
O art. 28 do Cdigo de Defesa do Consumidor, que
prev que o juiz poder desconsiderar a personalidade jurdica
da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 361

abuso de direito, excesso de poder, infrao da lei, fato ou ato


ilcito ou violao dos estatutos ou contrato social e quando
houver falncia, estado de insolvncia, encerramento ou
inatividade da pessoa jurdica provocados por m adminis-
trao, somente se aplica s relaes de consumo, obedecidos
os preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicao a quaisquer
outras relaes jurdicas.
O disposto no art. 18 da Lei 8.884/94 (Lei Antitruste),
que estabelece a possibilidade de desconsiderao da per-
sonalidade jurdica por infrao da ordem econmica, somente
se aplica s hipteses de infrao da ordem econmica,
obedecidos os preceitos dessa lei, sendo vedada a sua aplicao
a quaisquer outras relaes jurdicas.
O juiz somente pode declarar a desconsiderao da
personalidade jurdica nos casos expressamente previstos em
lei, sendo vedada a sua aplicao por analogia ou interpretao
extensiva.

3.2 Aplicao Processual das Teorias da Desconsiderao


da Personalidade Jurdica

Inicialmente, ao receber os autos do processo, o magis-


trado far uma anlise detalhada destes e, preenchidos os
requisitos legais, desconsiderar, para aquele caso concreto, a
personificao societria e decidir na espcie como se a pessoa
jurdica no existisse, imputando aos seus scios ou administra-
dores (ou a uma pessoa jurdica que tambm tenha se
beneficiado), as responsabilidades pertinentes. Em resumo, o
magistrado atribuir ao scio ou sociedade as condutas que
seriam atribudas, respectivamente, sociedade ou ao scio,
caso no fosse aplicada a teoria da desconsiderao.
Segundo a classificao de Fbio Ulhoa Coelho, para a
teoria maior, o pressuposto inafastvel da desconsiderao o
uso fraudulento ou abusivo da autonomia patrimonial da

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362 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

pessoa jurdica, nicas situaes em que a personalizao das


sociedades empresrias deve ser abstrada para fins de coibio
dos ilcitos por ela ocultados.
Nesse caso, o juiz s poder desconsiderar a perso-
nalidade jurdica por meio de ao cognitiva prpria, movida
pelo credor da sociedade contra os scios ou administradores.
A ao dever ser movida em face destes ltimos e no contra
a sociedade empresria, haja vista os atos de improbidade terem
se originado dos scios ou controladores da sociedade, sobre
quem recai a responsabilidade pelos prejuzos causados.
Demandar contra a sociedade, nesse caso, seria inadequado,
haja vista o autor buscar a responsabilizao dos scios ou
administradores, sendo a sociedade parte ilegtima para figurar
no plo passivo da lide, devendo o processo ser extinto (em
relao sociedade), sem julgamento do mrito. Dever, ainda,
o credor demonstrar a presena (provas concretas e no apenas
indcios) de fraude ou abuso.
Ainda com base na teoria maior, possvel a desconside-
rao ocorrer por simples despacho judicial no processo de
execuo de sentena, nos casos onde o credor verifica o uso
fraudulento ou abusivo da pessoa jurdica somente aps a
elaborao daquela. O objetivo obter ttulo executivo contra
o verdadeiro responsvel pela fraude (neste caso o credor ou
administrador e no a sociedade).
Assim, pode-se resumir as possveis situaes da seguinte
forma:

1 - Fraude ou abuso anterior propositura da ao pelo


credor ou terceiro prejudicado: a demanda deve ser ajuizada
contra o scio ou administrador mprobo, sendo a sociedade
considerada parte ilegtima.

2 Fraude ou abuso verificado apenas durante o trans-


correr da ao: em havendo fundado receio de frustrao do

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 363

direito que o autor questiona em juzo, em razo de fraude ou


abuso da autonomia patrimonial praticada pelo agente
fraudador, ele poder incluir no plo passivo da relao
processual, desde a propositura, aquele(s) sobre cuja conduta
incide o seu fundado receio. Nesse caso, o agente fraudador e
a sociedade so litisconsortes.

Desta forma, se no momento da propositura da ao o


autor no possuir razes para pedir a desconsiderao da perso-
nalidade jurdica, ela ser proposta apenas contra a pessoa
jurdica. Contudo, se for verificado no transcorrer do processo
de conhecimento ou de execuo, qualquer das hipteses que
autorizam a desconsiderao, poder o juiz, de ofcio, ou a
requerimento da parte, desconsiderar a pessoa jurdica, a fim
de que os scios ou administradores sejam considerados
responsveis. Haver, neste caso, a incluso no plo passivo
da ao de mais um indivduo, tudo em conformidade com o
artigo 592, II e 596 do Cdigo de Processo Civil.
Para os juzes que adotam a teoria menor da desconsi-
derao, como o desprezo da forma da pessoa jurdica, depende,
para eles, apenas da insolvabilidade desta, ou seja, de mera
insatisfao de crdito perante ela titularizado, a discusso dos
aspectos processuais , por evidente, mais simplista. Por des-
pacho no processo de execuo, esses juzes determinam a pe-
nhora de bens de scio ou administrador e considera os even-
tuais embargos de terceiro o local apropriado para apreciar a
defesa deste.4

3.3 Momento de Aplicao da Teoria

H quem entenda que a desconsiderao deveria ser


decretada somente na fase executria do processo para evitar a
4
COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Comercial.
Comercial 5. ed. So
Paulo: Saraiva, 2003. v. 2.

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364 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

carncia de ao, na hiptese de ser decretada na fase de


conhecimento.
No intuito de garantir bens suficientes para ressarcir os
seus prejuzos, caso vitorioso na ao perpetrada, o consumidor
poder, ainda, se utilizar de uma cautelar inominada com pedi-
do de bloqueio de bens do possvel devedor.
Segundo a doutrina, j na discusso em juzo, no seria
obrigatrio o pedido de declarao da desconsiderao da
personalidade jurdica. Consoante lio de Fbio Konder Com-
parato, certo que: provada a efetiva confuso patrimonial
entre a sociedade e o seu controlador, os tribunais poderiam,
excepcionalmente, fazer incidir sobre os bens deste a responsa-
bilidade pelas dvidas sociais.5
Ademais, muitos entendem que a aplicao da teoria
da desconsiderao da personalidade jurdica pode ser invocada
a qualquer tempo, como meio de defesa autnoma ou no,
desde que obedecidos os seus pr-requisitos processuais.

3.4 Discricionariedade

Est disposto no artigo 28 do Cdigo de Defesa do


Consumidor que o juiz poder desconsiderar a personalidade
jurdica da sociedade quando, em detrimento do consu-
midor.
Ao se fazer uma anlise inicial sobre este artigo, possvel
que o intrprete chegue concluso de que o juiz, haja vista a
presena do termo poder no texto legal, teria a possibilidade
de, por mera arbitrariedade, deixar de aplicar a desconsiderao
da personalidade jurdica.
Contudo, sabe-se que arbitrariedade no significa o
mesmo que discricionariedade. Mesmo que haja na lei uma

5
COMPARATO, Fbio Konder. O poder de controle na sociedade
annima
annima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 365

certa margem de liberdade de apreciao do juzo, isso no


significa que o mesmo poder deixar de atender a uma pretenso
legtima por puro arbtrio ou poder ilimitado.
Estando presentes todos os requisitos de admissibi-
lidade legalmente previstos para a aplicao de um deter-
minado instituto jurdico, no h que se falar em arbitrariedade
judicial. O julgador dever sempre observar a finalidade da
lei. No caso da desconsiderao da personalidade jurdica,
presentes os pressupostos de admissibilidade do instituto
previstos em lei, o magistrado estar autorizado a aplic-lo.
Algumas outras observaes de ordem legal so neces-
srias para o desenvolvimento deste tpico. Assim dispe o
artigo 131 do CPC: o juiz apreciar livremente a prova,
atendendo aos fatos e circunstncias constantes dos autos, ainda
que no alegados pelas partes; mas dever indicar na sentena,
os motivos que lhe formaram o convencimento. Tal disposi-
tivo se refere ao sistema da persuaso racional de apreciao
das provas, adotado pelo direito ptrio.
Em conformidade com esse sistema, o magistrado estar
autorizado a aplicar a teoria da desconsiderao da perso-
nalidade jurdica na hiptese de a pessoa jurdica que figurar
como legitimada passiva constituir um bice satisfao dos
direitos do consumidor.6
Destaca-se, ainda, o trabalho especfico sobre a temtica
em discusso elaborado por Elizabeth Cristina Campos
Martins de Freitas. Em sua obra, a autora relata que fato jur-
dico consiste em todo fato capaz de gerar direitos, transform-
los ou modific-los e extingui-los. Os fatos simples referem-se
aos fatos que no possuem tais caractersticas; porm, so
capazes de demonstrar a existncia dos fatos jurdicos.

6
FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Desconsiderao da
personalidade jurdica: anlise luz do cdigo de defesa do
consumidor e do novo cdigo civil
civil. So Paulo: Atlas, 2004.

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366 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

Os fatos e as circunstncias que o julgador pode consi-


derar, mesmo que as partes no tenham alegado nada sobre
eles, so os fatos simples. Afinal, os fatos jurdicos constituem
a causa de pedir que, como se sabe, um dos elementos
identificadores da ao.
Assim, entende-se que considerando o juiz o fato jur-
dico no alegado pela parte, ou melhor, atribuindo ao pedido
ajuizado pela parte uma outra causa de pedir, estar julgando
outra ao, violando frontalmente o princpio dispositivo.

3.5 Efeitos da Deciso Judicial em Matria de Desconsi-


derao da Personalidade Jurdica

A doutrina da desconsiderao da personalidade jurdica


atua desconstituindo os negcios efetuados por meio de fraude
ou abuso de direito relacionados ou praticados por uma socie-
dade (por seus scios ou administradores), preservando todos
os outros negcios realizados.
A deciso que aplica a teoria da desconsiderao da
personalidade jurdica, como foi destacado anteriormente,
declara apenas a ineficcia episdica da personalidade jurdica,
no afetando a sociedade em nenhum de seus outros atos e
negcios que estejam em concordncia com os ditames legais
e atos constitutivos societrios.
Tema tambm bastante discutido em matria de
desconsiderao da personalidade jurdica se refere
necessidade ou no de uma ao prpria capaz de autorizar a
aplicao do instituto. Alguns doutrinadores entendem que,
em busca de uma maior celeridade processual e conseqente
efetividade jurdica, em se demonstrando a existncia de fraude
ou abuso por parte de scios, administradores ou diretores
de uma sociedade, deveria o magistrado desconsiderar a
personalidade jurdica no prprio processo, por intermdio
de uma deciso interlocutria simples.

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 367

Tal se justificaria, pois, se o juiz determinasse a propo-


situra de uma ao cognitiva prpria para que se pudesse decidir
pela desconsiderao, estaria proporcionando mais tempo til
para a prtica de novos atos ilcitos, prejudicando, conseqen-
temente, o rpido andamento processual, o prprio princpio
da instrumentalidade e do processo e, por fim, o credor ou
terceiro de boa-f prejudicado pelo mau administrador.
de se destacar, por fim, que a deciso da desconsi-
derao da personalidade jurdica, assim como todos os
julgamentos dos rgos do Poder Judicirio, dever ser sempre
fundamentada. As decises judiciais que no trazem uma
fundamentao, mas apenas uma ordem a ser cumprida, so
nulas e inconstitucionais, haja vista estarem em completo desa-
cordo com o que dispe o artigo 93, inciso IX, da Consti-
tuio Federal.

4 CONSIDERAES FINAIS

A sociedade e as cincias (incluindo-se o direito) evoluem


paralelamente, buscando adaptar as necessidades de uma s
solues da outra.
Como corolrio dessa evoluo podemos destacar o
surgimento da teoria da desconsiderao da personalidade
jurdica, que despontou no apenas como meio capaz de coibir
o mau uso da pessoa jurdica, mas como um manto protetor
da prpria pessoa jurdica e da sociedade, buscando evitar os
abusos praticados contra as instituies e atentados boa-f
processual e negocial.
Hoje, no meio jurdico-empresarial, no mais se admite
a falta de tica, profissionalismo e impunidade. Tais atitudes
so repudiadas com veemncia por aqueles que atuam como
mentores do desenvolvimento socioeconmico das naes.
A desconsiderao da personalidade jurdica veio para
prevenir tais abusividades e garantir o desenvolvimento

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368 LEONARDO LUMACK DO MONTE BARRETTO

otimizado das organizaes, sem comprometer o instituto da


pessoa jurdica. Contudo, assim como todos os institutos
jurdicos, deve ser aplicada com parcimnia e cautela pelos
magistrados, evitando-se o seu mau uso e buscando atingir
seus objetivos de proteo dentro dos limites da lei e do
ordenamento jurdico.

5 REFERNCIAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falncia e Concordata.


11. ed. So Paulo: Saraiva, 1993.

BULGARELLI, Waldirio. Sociedades Comerciais: sociedades


civis e sociedades cooperativas, empresas e estabelecimento
comercial. 6. ed. So Paulo: Atlas, 1996.

CAMPINHO, Srgio. O direito de empresa luz do novo


Cdigo Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5.


ed. So Paulo: Saraiva, 2003. v. 2.

COMPARATO, Fbio Konder. O poder de controle na


sociedade annima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

DINAMARCO, Cndido Rangel. Fundamentos do processo


civil moderno. 4. ed. So Paulo: Malheiros, 2001. v.2.

FAZZIO JR., Waldo. Manual de Direito Comercial. 4. ed.


So Paulo: Atlas, 2004.

FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Descon-


siderao da personalidade jurdica: anlise luz do cdigo

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 349-369 jan./jun. 2005

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DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA: ASPECTOS... 369

de defesa do consumidor e do novo cdigo civil. So Paulo:


Atlas, 2004.

GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil. 16. ed.


So Paulo: Saraiva, 2003. v.3.

MARQUES, Cludia Lima. Contratos no Cdigo de Defesa


do Consumidor. So Paulo: Revista dos Tribunais, s.d.

MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro:


Forense, 2000.

NAHAS, Thereza Christina. Desconsiderao da pessoa


jurdica: reflexos civis e empresariais nas relaes de trabalho.
So Paulo: Atlas, 2004.

NERY JR., Nelson; NERY ANDRADE, Rosa Maria de.


Cdigo de Processo Civil comentado e legislao processual
civil extravagante em vigor. 6. ed. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

SILVA, Alexandre Couto. Aplicao da desconsiderao da


personalidade jurdica no direito brasileiro. So Paulo: LTr,
1999.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 349-369 jan./jun. 2005

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370 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 371

CONTEDO E ALCANCE DO DEVER


DE DIZER A VERDADE NO SISTEMA
PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

Lcio Grassi de Gouveia


Juiz Titular da 12 Vara Cvel do Recife,
Professor de Direito Processual Civil das ps-
graduaes da Universidade Federal de
Pernambuco -UFPE, Universidade Catlica
de Pernambuco UNICAP, Escola Superior
da Magistratura de Pernambuco ESMAPE,
Mackenzie, Faculdade Maurcio de Nassau,
Juspodium, Faculdade de Direito de Caruaru
- FADICA, entre outras em diversos Estados.
Doutorado em Direito pela Universidade de
Lisboa e Mestrado em Direito pela UFPE.
Coordenador do Centro de Estudos
Judicirios do Tribunal de Justia do Estado
de Pernambuco.

Iasmina Rocha
Juza de Direito em Pernambuco, ex- Juza de
Direito da Paraba, aprovada e nomeada no
concurso de Promotora de Justia da Paraba,
ex-professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte - UFRN, Professora da
Escola Superior da Magistratura de Pernam-
buco - ESMAPE, ps-graduanda em Direito
Processual Civil pela ESMAPE/Faculdade
Maurcio de NASSAU.

SUMRIO
1 INTRODUO; 2 DA TIPIFICAO DA INFRAO AO DEVER DE
DIZER A VERDADE; 3 CONCLUSO; 4 REFERNCIAS.

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372 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

1 INTRODUO

Tem sido pouco freqente a preocupao dos julgadores


brasileiros com o dever das partes de dizerem a verdade, previs-
to nos arts. 14, inc. I e 17, inc. II, do CPC. Tal constatao no
retira nossa motivao para que procuremos melhor entender
o instituto e, possivelmente, convenc-los de que possvel a
penalizao do litigante de m-f que mente ou omite a verdade.
Ressaltemos, de logo, algumas caractersticas do dever
de verdade no processo civil brasileiro:
a) o CPC consagra expressamente um prprio dever de
veracidade;
b) o livre querer das partes fica limitado pela imposio
do dever de veracidade (no alterar a verdade dos fatos que se
interpreta conjuntamente com a seguinte regra: expor os fatos
em juzo, conforme a verdade);
c) podemos, ainda, destacar que, alm do carter
preventivo e genrico do Wahrheitspflicht, visando a evitar a
mentira processual, tal dever possui carter fortemente sancio-
natrio, j que aquele que falta com a verdade no processo
dever ser condenado a pagar, em favor da parte contrria,
multa e/ou indenizao (essa no caso de existncia de dano).
Porm, se a verdade que admitimos possvel de ser trazida
para o processo pelas partes de natureza subjetiva, devemos
procurar indicar critrios seguros para identificar casos de
infrao a esse dever.

2 DA TIPIFICAO DA INFRAO AO DEVER


DE DIZER A VERDADE

Os dispositivos legais supramencionados dispem sobre


um dever de expor os fatos em juzo conforme a verdade (14,
I, CPC), afirmando reputar-se litigante de m-f aquele que
alterar a verdade dos fatos (17, II, CPC).

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 373

A partir do texto legal, podemos construir a seguinte


metalinguagem doutrinria fixadora de critrios identificadores
da prtica da referida ilicitude:
Primeiro critrio: as declaraes positivas1 das partes2
devem ser verdadeiras3, existindo somente um dever relativo
verdade subjetiva4 . Isso no quer dizer que a parte somente
1
Segundo STEIN-JONAS, as declaraes positivas das partes devem ser
verdadeiras, existindo apenas um dever de verdade subjectiva (cfr. Stein-
Jonas-Schoenke,, Kommentar, 17 cd., 1949, antes do 128, lII, 4;
Sauer, op. cit. id; Hans Weltzel, op. cit. p. 7 apud ALVIM, Arruda. Trata-
rocessual Civil. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribu-
do de Direito PProcessual
nais, 1996. v. 2, p. 398).
2
Admite ROSENBERG que so negadas s partes afirmaes e contesta-
es positivamente falsas, isto , os litigantes sabem conscientemente
que so falsas as afirmaes que fazem, mas intencionalmente as pro-
duzem, agindo portanto contra melhor saber e conscincia (cfr.
ROSENBERG, Die Bewislast apud CRESCI SOBRINHO, Elicio de. De-
ver de veracidade das partes no processo civil civil. Lisboa: Edies
Cosmos Livraria Arco-iris, s. d. p.126-127).
3
Afirma WELZEL que o sentido da regra o de crena subjetiva na verdade
(esse particular, quanto a ser a verdade subjetiva, h, segundo Welzel,
desde os primeiros tempos da Novela de 1933, convergncia de opini-
es - cfr. Hans Welzel, Die Wahrheispflicht im Zivilprozeb - O princpio
da verdade no direito processual, cit., p. 6 e 10 -, e, no que, no proces-
so, se esteja a exigir a verdade objetiva, sob pena de, inocorrente esta
ltima, incidir a parte na pecha de litigante de m-f, porque teria faltado
com o dever de dizer a verdade. O que se quer significar com isso que
a m-f revelar-se- quando ficar evidente que a parte sabia que sua
afirmao no correspondia verdade, como se percebe da anlise da
jurisprudncia ... Diz-se, com expressividade, que incide inexoravelmente
a regra quando a parte fica azul com o que ela mesma disse, ou seja,
a evidncia da mentira - cfr Baumbach/Lauterbach/Albers/Hartmann,
Zivilprozebordnung, 44 ed. cit., coms. ao 138 do CPC alemo p.
444-445 (apud ALVIM, Arruda. TTratado ratado
ratado..., p. 393).
4
Nesse sentido, ROSENBERG-SCHWAB-GOTTWALD, para quem as alega-
es das partes devem ser deduzidas conforme a verdade. A verdade de que
se trata de ndole subjetiva, sendo suficiente para a observncia do princpio
que a parte acredite naquilo que afirma (Rosenberg-Schwab-Gott wald, ZPR,
65, VIII, 4, 365) . Pelo princpio no se exige a alegao da verdade absoluta,
mas sim da veracidade dos fatos (cfr.. MnchKommZPO, II, Peters, 138, 2,
991 apud NERY JNIOR; NERY, Rosa. Cdigo de processo civil co co--
mentado.. 4. ed. rev. e ampl. So Paulo: RT, 1999, p. 418).
mentado

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374 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

deva apresentar afirmaes de cuja verdade tem seguro conhe-


cimento5, pois esse comumente lhe faltaria6. Dessa forma, o dever
de veracidade, em primeira linha, revela-se de forma negativa7:
nada afirmar cuja inveracidade8 a parte conhea positivamente9.
Inadmite, tal princpio, que o prprio perfil dos fatos
relatados ao juiz provoquem - em funo da narrao mais ou
menos habilidosa - uma impresso diversa da realidade. Pode
ocorrer que a narrao seja estruturada de forma a provocar
uma impresso diversa da realidade. nesse sentido que a
doutrina afirma que o litigante deve dar ao juiz uma viso, ou

5
Tal dever significa que as partes no devem declarar somente aquilo que
sabem ser inverdico, a mentira processual que se probe. A parte no
deve afirmar ou contradizer contra melhor saber (wider besseres Wissen
(ZEISS, Walter. El dolo procesal aporte a la precisacin terica de
una prohibicion del dolo en el proceso de cognicion civilistico, trad. Y
presentacin de Tomas A. Banzahaf. Buenos Aires: Ediciones Jurdicas
Europa-America, 1979. p. 38-39).
6
Nada impede, porm, que a parte alegue fatos sobre cuja veracidade no
esteja completamente esclarecida e em muitas situaes processuais ela
pode no conhecer positivamente a verdade (ZEISS, op. cit., p. 38-39).
7
Tambm se admite que a parte se manifeste por conjecturas. Ela precisa
ter uma certa margem de segurana da certeza subjetiva, da justeza das
alegaes fcticas. Os alemes, tal como Zeiss, referem-se Richtigkeit,
enquanto certeza subjetiva. Ele afirma que a parte deve, ento, como a
testemunha, dizer a verdade sem reticncia (omisso intencional) (ZEISS,
op. cit., p. 38-39).
8
Segundo Rosenberg/Schwab, em outra expresso, trata-se da proibio
de deixar de dizer a verdade, quando esta sabida (Rosenberg/Schwab,
Zivilprozebrecht, cit., 65, 3, p. 392, onde se diz que se trata de uma
proibio de fazer afirmaes contrrias a um outro melhor conheci-
mento - Verbot non behauptungen wider besseres Wissen, apud Arruda
Alvim, Tratado..., p. 393).
9
Cfr. WELTZEL, Die Wahrheitspflicht im Zivilprozess, 1935, p. 7; cfr. Stein-
Jonas-Schoenke, op. cit., antes do 128, III, 4, a: o que a lei exige
a verdade subjetiva. Exemplifica o autor com o caso do paciente que
acciona o dentista, por erro profissional culposo, pretendendo uma sa-
tisfao por danos; em rarssimos casos poder conhecer positivamente
tanto a culpa quanto o erro, e, na maioria das vezes, no processo, isso
ser deixado para a soluo dos peritos (apud CRESCI SOBRINHO, op.
cit., p. 72-73).

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 375

um quadro correto dos fatos (richtiges Bild) (cfr. W.


Bernhardt, ob ult. cit, 23, p. 139).
No se pode afirmar que a parte atua contra o dever de
veracidade quando agiu sem total certeza, talvez porque no a
pudesse ter. O que se pode impedir a afirmao aus der Luft
com mera esperana de prova10. A parte deve ter uma possibili-
dade de convencimento, segundo seu melhor saber e conscin-
cia, quanto aos fatos que expe.
Segundo critrio: a parte no deve contradizer as afirma-
es da parte contrria, cuja exatido no conhea positivamente.
Radica na proibio de contradizer11 - contra melhor saber (wider
besseres Wissen) -, e vale quando a parte desconhea positivamente
a certeza da afirmao oposta. Entendendo-a, porm, somente
por verossmil (wahrscheinlich) ou por possvel (moeglich), pode
ento contradizer12, forando o opositor prova13.
A parte pode contradizer afirmaes da contrria quando
acredita na possibilidade de que poderiam ser verdadeiras, mas
como tal, aprioristicamente.
Se a parte entender a afirmao da contrria como
verossmil ou somente possvel, poder contradizer, levando
naturalmente o opositor prova14.

10
Cfr. NIKISCH, Zivilprozessrecht, 2. ed., 1952, pp. 205 a 209 apud
CRESCI SOBRINHO, op. cit, p.126-127.
11
Para WALTER ZEISS (Zivilprozessrecht, 5 Aufl., 1982, PP 74 e 75) o dever
de veracidade ( 138,I, ZPO) vale: tanto para quem afirma quanto para
aquele que litiga (contradiz) os fatos(ZEISS, op. cit., p. 38-39).
12
Segundo ROSENBERG, se admitssemos que as partes tivessem de afir-
mar somente a verdade, se inclussemos no dever de veracidade o pos-
tulado positivo de que as partes devem afirmar o que conhecem como
verdico e to-somente discutir ou contestar o que conheam como
falso, negaramos o processo civil como o concebemos no CPC (cfr.
Rosenberg, Die Bewislast, cit., p. 65 apud CRESCI SOBRINHO, op. cit,
p.126-127).
13
Cfr. WELTZEL, Die Wahrheitspflicht im Zivilprozess, 1935, pp. 7,8,9
apud CRESCI SOBRINHO, op. cit., p. 73.
14
Cfr. HANS WELTZEL., op. cit., pp 8,9 apud CRESCI SOBRINHO, op. cit,
p.126-127.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 371-406 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 375 29/8/2006, 20:17


376 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

Se o litigante entende que pode ter pago uma dvida,


mas tem dvida a respeito, dever contestar a ao, admitindo
essa margem de dvida e no afirmar peremptoriamente que
pagou, quando sabe inexistir essa certeza. Se existe dvida
(subjetiva) no pode afirmar a certeza (subjetiva).
No dever levantar dvida a respeito de um fato alegado
pela outra parte, quando souber, perfeitamente, que inexiste
dvida alguma15.
Terceiro critrio: o dever de veracidade refere-se16 somen-
te s declaraes sobre circunstncias dos fatos17, no s argu-
mentaes jurdicas18. Porm, mesmo que se entenda que, de
um modo geral, a obrigao de lealdade diga respeito aos fatos,
dado que o direito deve ser conhecido do juiz (iura novit curia),
possvel cogitar-se, tambm, da deslealdade (mas no inveraci-
dade) quanto ao direito propriamente dito19.
Configurar-se-ia tal deslealdade quando o litigante,
ostensiva e deliberadamente, formulasse demandas que, do
ponto de vista jurdico, deixassem o juiz confuso, em face do
litigante, intencionalmente, pretender confundir o juiz,

15
Cfr. W. BERNHARDT, Das Zivilprozebrecht, cit., 23, p. 140 apud ARRUDA
ALVIM, Tratado
ratado...,p. 397.
16
No Direito alemo a doutrina restringe o dever de dizer a verdade,
exclusivamente, aos fatos, refugindo de tal rea os problemas relaciona-
dos com as conseqncias jurdicas. Dizem Rosenberg e Schwab
(Zivilprozebrecht, 10 ed., cit., 65, VIII, 1, P. 319) que o dever de veraci-
dade diz respeito apenas s circunstncias de fato e no diz com os
aspectos jurdicos (apud ARRUDA ALVIM, Tratado ratado..., p. 396).
17
GOLDSCHMIDT ensina-nos que a obrigao apenas diz respeito aos
Derecho Procesal Civil,
fatos e, no ao direito (Derecho Civil ed. 1936, p. 381
apud ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 396) .
18
Cfr. Bundesgerichtshof STS, Juristiche Rundschau. 1958. 106 cfr.
ROSENBERG, op. cit., p. 289; BAUMBACH-LAUTERBACH-ALBERS.. op.
cit., 138, 1. A apud CRESCI SOBRINHO, op. cit., p. 75.
19
ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 391, que destaca a posio contrria de
Baumbach/Lauterbach/Albers/Hartmann, Zivilprozebordnung, Munique,
1986, 44 ed., p. 445 e da generalidade dos juristas.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 371-406 jan./jun. 2005

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 377

dizendo-se, no direito alemo, que tais demandas deixariam o


juiz perplexo (perplexen Klagen)20.
O juiz conhece, necessariamente, o direito, e, portanto,
no fica vinculado s leis indicadas na inicial ou na contestao,
para rejeio do pedido, como ainda, no se reputa modificao
do pedido a alterao do fundamento legal.
Mas, se dizer a verdade um dever restrito aos fatos,
existe, no entanto, relativamente ao advogado, no propria-
mente o dever de sempre invocar o direito corretamente, mas,
pelo menos, impor-lhe a sua lei (art. 34, inciso VI, da Lei n
8.906, de 1994), o limite consistente no dever de no advogar
contra literal disposio de lei (igualmente disposto no art.
17, inciso I, 1 frase, do estatuto da OAB)21.
Observe-se, ainda, que a lei n 8.906/94 (Estatuto da
Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB) dispe
em seu art. 34, inc. XIV, constituir infrao deturpar o teor
de dispositivo de lei, de citao doutrinria ou de julgado,
bem como de depoimentos, documentos e alegaes da parte
contrria, para confundir o adversrio e iludir o juiz da causa.
Dessa maneira, pode-se falar em infrao do dever de
lealdade, mas no do dever de verdade, quando a parte, atravs
de seu advogado, altera propositalmente o direito (a parte extrai
do texto legal interpretao evidentemente e intencionalmente
distorcida), visando dificultar o entendimento do juiz.
Especialmente no direito brasileiro, diante da obrigato-
riedade da parte que alegar direito municipal, estadual,
estrangeiro ou consuetudinrio de provar-lhe o teor e a vigncia,
se assim o determinar o juiz, possvel que a parte indique lei

20
Cfr. PFIZER, in Zeitschrift fr deutschen Zivilprozebrecht, Revista de
Direito PProcessual
rocessual Civil - v. 21, p. 327 apud ARRUDA ALVIM, Tra-
tado
tado..., p. 391.
21
Idem, p. 396. Todavia, esta implicao, referente s ao advogado, refoge
do sentido e funo do ilcito atravs do qual se possa desconhecer o
disposto no art. 14, inciso I (Idem, p. 396).

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378 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

revogada ou mesmo altere o teor do texto legal, atuando de


forma a causar prejuzo quanto ao julgamento do processo.
Poderemos, assim, falar em deslealdade quanto questo de
direito, mas tal conduta no se enquadrar na alterao da
verdade dos fatos do art. 17, inc. II, do CPC; podendo ser
considerada como infrao aos incisos I e III do art. 17, do
CPC brasileiro, para efeito de penalizao.
Quarto critrio: ensina a doutrina alem que quando a
parte reconhecer a falsidade do fato alegado anteriormente,
deve manifestar o verdadeiro22. Entendemos, porm, que tal
arrependimento no ter eficcia no processo para impedir a
punio do improbus litigator, tendo em vista que o dever de
verdade j foi descumprido, causando evidentes prejuzos para
o processo e a administrao da justia. Somente se o arrepen-
dimento foi imediato, sem qualquer efeito processual, que
no caber penalizao.
Quinto critrio: admite a doutrina alem que a parte
no precisa apresentar fatos23 que possam proporcionar ao
opositor fundamentos para reconveno ou declarao de culpa
mtua24, ou que possam possibilitar ao ru fazer valer uma
exceo25.

22
Cfr. WARNEYER 1939. 37 / Warneyer, Sammlung zivilrechtlichen
Entscheidungen des Reichsgerichts; Rosenberg, op. cit., p.290; no alte-
rou Schwab (cfr. ROSENBERG-SCHWAB,, op. cit.. p. 321 apud CRESCI
SOBRINHO, op. cit., p. 75).
23
Segundo ROSENBERG-SCHWAB-GOTTWALD (ZPR, 65, VIII, 1, 364)
no se pode exigir da parte, em processo contraditrio, que faa afirma-
es que poderiam beneficiar a parte contrria e atuar em detrimento do
declarante (apud NERY JNIOR, NERY, Rosa. Cdigo de processo
civil comentado. 4. ed. rev. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais,
1999. p. 418).
24
Reichsgericht 156,269; BAUMBACH-LAUTERBACH-ALBERS,, op. cit., p.
138. 1. c, p. 315 Entscheidungen des Reichsgerichts in Zivisachen;
SCHOENKE-SCHROEDER-NIESE, op. cit., p. 45; NIKISCH, op. cit., p.
207 apud CRESCI SOBRINHO, op. cit., p. 75.
25
Cfr. ROSENBERG, op cit. pp. 290, 291 apud CRESCI SOBRINHO, op.
cit., p. 75.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 379

Nesse particular, ressalta-se a legitimidade da seleo de


fatos. Aceita-se que a parte no precisa proporcionar ao oposi-
tor os fundamentos para reconveno ou declarao de culpa
mtua, desde que seu relato no desfigure, em si mesmo, a
veracidade dos fatos em que se estriba.
Dessa forma, aquele que requer uma separao judicial
deve formular seu pedido imputando ao outro o ilcito ou os
ilcitos que entenda tenham ocorrido, mas no tem o dever,
igualmente, de se inculpar, isto , no tem o dever de descrever
tais fatos de forma que venha a facilitar reconveno do seu
oponente, ou exceo da outra parte.
Ao tratarmos do dever de completude indicaremos
limitaes a essa tese, at porque, como dissemos, jamais
poder resultar desfigurada em si mesmo a veracidade dos fatos
a serem apresentados ao juiz.
Sexto critrio: no pode a parte contradizer afirmaes
quando ela acredita na possibilidade de que poderiam ser
verdadeiras. No se permite a uma parte forar a outra prova
de uma afirmao cuja veracidade tem cincia, procedendo de
forma a causar dificuldades contrria.
Stimo critrio: afirma a doutrina alem que no se pode
ver como atividade contrria ao referido dever quando uma
parte apresenta fatos que lhe so desfavorveis, ou, estando
no plo passivo, no os contradiz26. Busca-se justificao no
fato de que, se o Wahrheitspflicht quer assegurar o Tribunal
contra o engano (Taeuschung) e a parte contrria contra um
prejuzo (bervorteilung), no tem lugar quando a parte alega
circunstncias que lhes so desfavorveis. Admite Rosenberg
as hipteses da parte confessar, renunciar (Verzicht) ou reco-
nhecer. Para ele, declaraes dessa espcie tm efeito, ainda
quando no sejam verdadeiras, ou no tenha existido o fato

26
Cfr. THOMAS-PUTZO, op. cit., com, ao 138, 2, d, bb, apud CRES-
CI SOBRINHO, op. cit, p.126-127.

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380 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

admitido, ou no exista a pretenso reconhecida, ou exista a


renunciada27.
Concordamos com Rosenberg no que diz respeito
renncia e ao reconhecimento da procedncia do pedido. Porm,
tendo em vista que no direito brasileiro a confisso mero meio
de prova, passvel de aferio pelo juiz diante das demais provas
trazidas aos autos (princpio do livre convencimento motivado),
entendemos estar a mesma sujeita ao dever de verdade.

No que concerne confisso, segundo Isabel


Alexandre, as solues de alguma doutrina alem
(favorvel submisso das regras sobre a confisso
ao 138 I ZPO) no parecem, tambm, poder ser
transpostas para o direito portugus, na medida em
que, como assinala o mesmo autor (cfr. pg. 545), a
confisso tem como efeito provar plenamente o facto
cuja realidade se afirma, o qual, uma vez provado,
realizar a eficcia que lhe prpria. Podendo este
facto na realidade no ter ocorrido e no sendo
admissvel, salva a impugnao prevista no art. 359
do C.C., a prova do facto contrrio ao que tiver
sido objecto da confisso, pode assim acontecer que
deva ser tido como juridicamente assente um facto
que na realidade no teve lugar e que produz efeitos
jurdicos que, se no fosse o acto da confisso, no
se produziriam (...)28.

27
Cfr. ROSENBERG, Lehrbuch, 9. ed., 1961, p. 291; THOMAS-PUTZO,
Zivilprozessordnung, 3. ed., 1968, 138. 2, d, bb, p. 198 com
decises: Reichsgericht 156. 269; Entscheidung des Reichsgerichts in
Strafsachen 72, 22; Oberlandesgericht Kassel, Hochsterichterliche
Rechtsprechung 1937, 1462 = Juristische Wochenschrift 1937, 2768;
cfr. NIKISH. Lehrbuch, 2. ed., 1952, p. 207, no mesmo sentido apud
CRESCI SOBRINHO, Op. Cit., p. 76.
28
ISABEL ALEXANDRE, Op. Cit., p. 98-99.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 381

Admite a jurista portuguesa que, na doutrina alem,


apesar da revogao da confisso judicial em caso de erro (
290 ZPO) parecer implicar a vinculao do tribunal a uma
confisso no verdadeira salvo, evidentemente, a prova pela
parte que revoga a confisso, de que ela no corresponde
verdade e foi provocada por erro h quem defenda, como
D. Olzen (Die Wahrheitspflicht der Parteien im Zivilprozess, ZZP
1985, pgs. 420-421), sua subordinao ao dever de veracidade
( 138 I ZPO). Para ela, em se considerando o 290 ZPO
uma norma excepcional, o dever de veracidade perderia seu
significado. Por outro lado, no seria absoluta a precedncia
do 290 ZPO em relao ao 138 I ZPO, fazendo com que
a maioria da doutrina admita que, quando a confisso
prejudicar terceiro, no seja violado o dever de veracidade.
No mesmo sentido: H. Welzel (Die Wahrheitspflicht..., op. cit.,
pg. 17)29.
Observe-se que Calamandrei contestou o dever de
veracidade por, segundo ele, contradizer o instituto da confis-
so. Elcio Sobrinho entende como compatveis. Blomeyer
doutrina que a confisso propositadamente falsa vincula aquele
que confessa, e portanto, no se verifica a proteo do 290,
I da ZPO. Rosenberg, porm, afasta a incidncia do dever
apenas para hipteses de reconhecimento, renncia ou
transao.
De volta ao direito brasileiro, devemos, pois, distinguir
o reconhecimento do pedido da confisso (mero meio de
prova). Aquele ato subjetivo da parte e nele no incidir o
dever de veracidade. Reconhecido o pedido e no verificadas
as hipteses que impeam o juiz de dar a sentena (lides teme-
rrias ou sobre pretenses ilcitas ou manifestamente infun-
dadas, com base na inexistncia ou falta de causa ou naquelas
em que ficar evidente a inteno das partes de atuarem com

29
Idem, p. 99.

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382 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

simulao processual; e no caso em que a vontade das partes


no puder conseguir o mesmo efeito pretendido no processo
fora dele30), o processo dever ser extinto com julgamento do
mrito.
No caso de confisso sobre a matria de fato, como meio
de prova que , incidir o dever de veracidade e o juiz dever
dar o valor que ela merecer, no produzindo qualquer efeito,
por exemplo, se contrariar os demais meios de prova contidos
nos autos. Assim, aquele que praticar falsa confisso ser pena-
lizado com as sanes inerentes litigncia de m-f.
Oitavo critrio: diz respeito existncia no direito brasi-
leiro de um dever de completude.
O dever de veracidade anda, nos direitos portugus e
alemo, ligado ao dever de plenitude (dever de as partes
alegarem todos os fatos de que tm conhecimento). A distino
entre o dever de dizer a verdade e o dever de dizer toda a
verdade (ou seja, o dever de plenitude) destituda de sentido,
no entender de Z. Stalev31 , em um processo civil dominado
pelo princpio da verdade objetiva32.
Comparando o 138 I ZPO e o art. 3 I da lei processual
civil blgara de 1952, entende o autor que, enquanto o
primeiro preceito concebe o dever de verdade luz do princpio
da verdade formal, o segundo insere-se no contexto do princpio
da verdade objetiva. Por esse fato, o dever de dizer a verdade
no direito alemo concebido em termos essencialmente
negativos (enquanto dever de no mentir quanto aos fatos
que se pretende alegar) e, talvez por isso, tenha sido necessrio
estabelecer um autnomo dever de plenitude33.

30
Observar o art. 129 do CPC: convencendo-se, pelas circunstncias da
causa, de que autor e ru se serviram do processo para praticar ato
simulado ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferir sentena que
obste aos objetivos das partes
31
ZHIVKO STALEV, Op. Cit., p. 403-404.
32
ISABEL ALEXANDRE, Op. Cit., p. 98.
33
Idem, p. 98.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 383

Ainda, devem ser narrados os fatos sem dubiedade e


lacunas, entendendo-se que, no conceito de dizer a verdade,
contm-se o subprincpio que poderamos denominar de
completude, ou ausncia de lacunosidade. o subprincpio,
denominado pela doutrina alem de Vollstndigkeit, que
significa que o relato no deve conter nem mentiras, nem
lacunas34. Ou seja, os esclarecimentos que a parte deve dar ao
juiz, a informao, a declarao de cincia dos fatos, contidos
na inicial, contestao, etc., devem ser completos (Die Parteien
mBen ihre Erklrungen vollstndig adgeben - a parte deve fornecer
suas declaraes completamente)35.
Conclui-se que a sonegao de alguns fatos pode
acarretar, exatamente, o contrrio daquilo que a lei obje-
tiva: o juiz deve ter um relato e um quadro exato e com-
pleto dos fatos ocorridos (relevantes para a pretenso e
para a defesa) 36.
Basicamente, o que se pode fixar que, se existe como
regra geral, no processo civil, disponibilidade quanto ao
direito dos litigantes e, por via de conseqncia, tambm
pertinente aos instrumentos processuais de que os mesmos
se servem, inexiste, absolutamente, disponibilidade quanto
verdade. Tangentemente a essa, tm os litigantes o dever,
salvo as estritas excees da lei, como j dissemos, de referi-
la totalmente37.

34
Cfr. W. BERNHARDT, Das Zivilprozebrecht, 23, 2, p. 141 apud ARRUDA
ALVIM, Tratado
ratado..., p. 399.
35
Cfr. V. BAUMBACH e outros, Zivilprozebrecht, 38. ed.., coms. ao 138,
I, 2, A, p. 336 apud ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 399.
36
ARRUDA ALVIM, Tratadoratado..., p. 399.
37
Cfr. STEIN-JONAS-SCHNKE, Kommentar zur Zivilprozebordnung, 19.
ed., cit., coms. ao 138, I apud ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 398.

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384 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

Assim, se as alegaes devem ser completas38, nem por


isso deixa de subsistir o princpio dispositivo. O princpio
dispositivo, todavia, tem que se acomodar dentro da exigncia
global do dever de veracidade. Isso implica que possvel
parte fazer uma triagem a respeito dos fatos, desde que disso
no resulte uma distoro mentirosa do quadro ftico apresen-
tado (cfr. Dr. Martin Krencker, Die Wahrheitspflicht der Partein
im deutschen und sterrreichischen Zivilprozebrecht - O princpio
da obrigao de veracidade das partes no direito processual
civil alemo e austraco, cit., 13, p. 65). Esse poder deve ser
energicamente exercitado contra a inverdade e a chicana (gegen
Unwahrhafttigkeit und Schikane; cfr. Dr. Martin Krencker, Die
Wahrheitspflicht der Partein im deutschen und sterrreichischen
Zivilprozebrecht - O princpio da obrigao de veracidade das
partes no direito processual civil alemo e austraco, op. cit.,
p. 66)39.
No desenvolvimento do processo, a representao do
desenvolvimento dos fatos pode ser alterada, seja com a falsi-
dade expressa, seja com a reticncia: e tanto uma como a outra
podem conduzir ao mesmo resultado, desviando o convenci-
mento do juiz40.

38
Segundo LENT, a parte no tem o dever de alegar todos os fatos, cujo
exame necessrio para faz-la conseguir a vitria segundo o direito
privado; um dever do gnero teria sentido, somente se se pretendesse
do particular um conhecimento do direito. No caso de as alegaes
serem lacunosas, o juiz deve sugerir o completamento, e o interessado
sucumbe no juzo se no acolhe o conselho; mas nenhuma violao de
um dever reconhecvel nessa hiptese. Nem se deve pensar que a parte
deva narrar de uma vez s todos os fatos de que tem conhecimento: se a
lei submete a limites a admissibilidade de sucessivas alegaes, isso
devido, principalmente, exigncia de tornar expedito o juzo (LENT.
Diritto processuale civile tedesco
tedesco, parte prima, Il procedimento di
cognizione. Trad. Edoardo F. Ricci. [s. l.] Morano Editore, 1962, p. 107).
39
KRENCKER apud ARRUDA ALVIM, Tratado ratado..., p. 401.
40
Cfr. LENT. Diritto processuale civile tedesco, parte prima, Il procedimento
di cognizione. Trad. Edoardo F. Ricci. [s. l.] Morano Editore, 1962. p. 107.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 371-406 jan./jun. 2005

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 385

Diante da previso expressa de um dever de verdade em


nosso processo civil, no podemos chegar concluso diversa
da que as partes tm que narrar os fatos por inteiro, assim
como conhecido por elas, no podendo limitar-se a alegar
os elementos favorveis; devem tornar pblicos tambm aque-
les elementos que possam derivar para si conseqncias nocivas.
Adverte Lent que a antiga distino entre fatos postos
como fundamento da demanda e fatos postos como funda-
mento das excees agora desprovida de qualquer relevo no
que concerne s alegaes das partes, pois estas devem narrar
o acontecimento com toda a completude possvel41.
Nessa linha, a infrao do dever de verdade compreende,
tambm, a omisso intencional a respeito de fato (que haveria
de ter sido objeto de considerao, e no o foi); essa , igualmen-
te, uma forma de alterao da verdade.
O dever de dizer a verdade tem um carter nitidamente
positivo, ou seja, no admite o silncio do litigante, ou, ainda,
que o litigante atue com evasivas42.
No direito portugus, o dever de plenitude encontra-se
consagrado no art. 456, n 2, al. b) do CPC, na parte em que
considera litigante de m-f aquele que tiver omitido fatos
relevantes para a deciso da causa.
Afirma Antnio Santos Abrantes Geraldes serem, no
direito portugus, em menor nmero as situaes em que a
conduta maliciosa emerge da omisso de fatos conhecidos pela
parte e que se mostram relevantes para a deciso43.
41
Idem, p. 107.
42
BAUMBACH-LAUTERBACH-ALBERS-HARTMANN, Zivilprozebrecht, 38.
ed., cit., coms. ao 138, I, C, P. 334, onde dizem que no com
evasivas que a parte dever explicar-se em juzo, na 44. ed., p. 444 apud
ARRUDA ALVIM, Tratado..., p. 398.
43
Admite o autor que, nas aes declarativas, aparentemente mais grave o
comportamento consistente na negao de um determinado fatualismo ale-
gado pela parte contrria ou na afirmao de ocorrncias que no so verda-
deiras do que a simples omisso de fatos ou de circunstncias GERALDES,
Antnio. Temas Judicirios
Judicirios, Coimbra: Almedina, 1998. v. 1, p. 325.

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Sem ttulo-6 385 29/8/2006, 20:17


386 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

semelhana do que ocorre no processo civil brasileiro,


a referida conduta encarada com alguma displicncia pela
contraparte e pelo prprio juiz ou tribunal, atribuindo a
omisso a uma estratgia processual legtima, entendimento
que, de algum modo, influenciado pelo prprio regime
relativo ao nus de alegao e de prova, que faz recair fundamen-
talmente sobre a parte que invoca o direito, o encargo de alegar
os fatos constitutivos do mesmo, do mesmo modo que incum-
be contraparte invocar os fatos que impedem, extinguem ou
modificam aquele direito.
Ressalta o processualista portugus que assim passam
normalmente despercebidas condutas de qualquer das partes
concretizadas atravs da alegao apenas dos fatos que favorecem
as respectivas teses, deixando contraparte o nus de contra-
alegao. Mais freqentes so, ainda, as situaes de meias
verdades, em que a parte, sem afirmar ou negar frontalmente
um fatualismo, limita-se a dar do mesmo a verso que lhe
convm. Sendo, embora, mais difcil o apuramento, em tais
circunstncias, dos pressupostos de que depende a verificao
da litigncia de m-f, o certo que no est afastada a punio
de tais comportamentos, desde que constituam manifestaes
dolosas ou reveladoras de grave desconsiderao pelo
apuramento da verdade material44.
No novo regime processual civil portugus, a verificao
do pressuposto legal da litigncia de m-f, na modalidade de
omisso de fatos relevantes, pode ser induzida pelo descum-
primento do dever de esclarecimento solicitado pelo juiz, ao
abrigo do art. 266., n. 2, do CPC portugus, designadamente
quando para isso sejam solicitadas, v. g. na audincia preliminar
ou no despacho de aperfeioamento (arts. 508. e 508.-A do
CPC portugus).

44
Idem, p. 326.

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Sem ttulo-6 386 29/8/2006, 20:17


CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 387

Quanto jurisprudncia portuguesa, podemos


vislumbrar alguns casos de infrao ao dever de completude:

omisso de factos relevantes para deciso do incidente


de apoio judicirio; age de m f, com dolo intenso,
violando o dever de probidade, o demandante que
acordou informalmente na cesso da posio
contratual por um dos co-arrendatrios e omitiu essa
situao no desenrolar da lide (Ac. do STJ, de 3-2-94,
in BMJ 434./539);

omisso e alterao de factos desfavorveis e sabidos


(Ac. da Rel. de Lisboa, de 23-2-95, in CJ, tomo I,
pg. 140);

actua com m f a entidade patronal que, usando


meias verdades, se limita a informar que o credor
do vencimento (executado) deixou de pertencer ao
seu quadro de pessoal, omitindo o facto de, como
trabalhador independente, continuar a ser, por si,
remunerado (Ac. da Rel. de vora, de 12-2-98, in
CJ, tomo I, pg. 273).

No direito brasileiro, se anteriormente havia previso


expressa de ser litigante de m-f aquele que omitisse
intencionalmente a verdade dos fatos (antigo inc. II do art.
17, CPC, em sua redao anterior), atualmente o mesmo inciso
considera litigante de m-f aquele que altera a verdade dos
fatos, no havendo mais referncia expressa penalizao pelo
no cumprimento do dever de verdade por omisso.
Se antes da reforma de 1980 havia certeza da existncia
do dever de completude no processo civil brasileiro, com a
nova redao do referido inciso surgiram dvidas na doutrina,
que certamente no nos contaminaram.

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Sem ttulo-6 387 29/8/2006, 20:17


388 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

Observe-se, porm, que, mesmo com a redao atual, a


parte no poder fazer triagem ou seleo de fatos, na medida
em que isso prejudique o prprio quadro ftico, tornando-o
inverdico. Ou seja, se a omisso de fatos for suscetvel de
alterar a compreenso da verdade dos fatos pelo juiz ou
tribunal, estaremos diante de uma hiptese de litigncia de
m-f por omisso, pelo que subsiste o dever de completude.
Assim, a alterao legislativa no foi suficiente para excluir
o dever de completude do direito processual civil brasileiro.
Passemos ento a delimit-lo.
O referido dever inclui no dizer coisas vagas. Se o
princpio dispositivo confere s partes o direito de procederem
a uma triagem dos fatos, por outro lado, dizer as coisas de
modo vago, intencionalmente, envolve o propsito de confun-
dir, e esse vedado pela lei45.
Entendem Rosenberg/Schwab que a circunstncia de
se admitir uma triagem dos fatos, como, exemplificativamente,
tratando-se de uma ao referente ao direito de famlia, em
que possvel que a parte no deseje - apesar do segredo de
justia - que determinados fatos venham a pblico (at para o
juiz e para os que, apesar do segredo de justia, tm conhe-
cimento do processo), leva a que se explique essa completude
com a significao que se segue. Para eles possvel, ento,
legitimamente, que a parte selecione determinados fatos e a
alguns desses no faa referncia, desde que no comprometa
a verdade, j que as partes, exatamente porque o assunto guarda
relao com a sua conduta, tm o dever de deduzir as objees
processuais e, nisso, no podem omitir, ou, no podem proce-
der a uma triagem em relao a essas, porque as objees dizem

45
Cfr. BAUMBACH/LAUTERBACH/ALBERS/HARTMANN p. 445;
ROSENBERG/SCHWAB, p. 394, aludem ao princpio a que designam de
Vollstndikeit (completude), que prximo do princpio da verdade; cfr.
Rosenberg/Schwab, p.391 apud ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 393-394.

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Sem ttulo-6 388 29/8/2006, 20:17


CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 389

respeito a requisitos de validade do processo, em que cessa o


poder de disponibilidade que possuem46.
A verdade no deve conter lacunas, na verdade no deve haver
reserva mental, sob pena de infringncia do art. 14, I, do CPC.
Nono critrio: quanto aos destinatrios, o dever de dizer
a verdade, prescrito no art. 14, inciso I, do CPC, refere-se
tanto s partes, uma em confronto com a outra, quanto aos
demais sujeitos do processo, entre si e em relao s partes
principais e, todos em especial, frente ao juiz, o qual, em ltima
anlise, quem resolver sobre os fatos trazidos a juzo47.
O dever de informar o juiz, dizendo a verdade,
dependente ou decorrente do princpio da lealdade proces-
sual. Os que escreveram, na Alemanha, logo aps a edio da
Novela de 1933, em que se veio estabelecer o dever de dizer a
verdade, acentuaram a figura do juiz como destinatrio do
dever de veracidade imposto s partes48.
Baumbach e outros observam que o dever de veracidade
um contrapeso ao princpio dispositivo, no sentido de que,
se as partes tm o direito de escolher os fatos que podem
trazer ao juiz, nem por isso podem faltar verdade49.
Veremos que o CPC brasileiro tambm consagra o dever
dos procuradores das partes de dizerem a verdade, apesar deles
no poderem ser punidos diretamente no processo, mas
somente atravs de ao autnoma.

46
Cfr. ROSENBERG/SCHWAB, p. 394 apud ARRUDA ALVIM, Tratado ratado...,
p. 394.
47
Cfr. W. BERNHARDT, Das Zivilpro zebrecht, 3. ed., cit., 3, p. 14, para
quem, por isso mesmo, tal obrigao se refere sowohl dem Gericht wie
dem Prozebgegner gegenber apud ARRUDA ALVIM, Tratado ratado..., p. 392.
48
WELZEL, p. 18 e BAUMBACH/LAUTERBACH/ALBERS/HARTMANN,
Zivilprozebordnung, 44. ed. cit., coms. ao 138 do CPC alemo, 1, p.
444 apud ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 392.
49
BAUMBACH/LAUTERBACH/ALBERS/HARTMANN, Zivilprozebordnung,
44. ed. cit., coms. ao 138 do CPC alemo, 1, p. 444 apud ARRUDA
ALVIM, Tratado
ratado..., p. 392-393.

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390 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

Dcimo critrio: se a parte no tiver certeza (subjetiva),


dever alegar com base nessa relativa incerteza50.
O dever de veracidade no pretende nem pode pretender
impedir que as partes apresentem ao Tribunal situaes
duvidosas51, para que esse sobre elas decida52.
Dcimo-primeiro critrio: o alterar a verdade dos fatos
implicar sempre conduta dolosa ou dotada, no mnimo, de
culpa grave, por parte do agente.
Observe-se que grande parte da doutrina vem entenden-
do que no poderia exigir, o legislador, que o juiz, em todos
os casos, investigasse o animus do agente. Em outras palavras,
sob pena da inefetividade processual, no poderia o juiz ou
tribunal perder-se em profundas investigaes para aferir se a
alterao da verdade foi intencional.
Dessa forma, a mentira ou inveracidade seria dedutvel,
muitas vezes, de critrios objetivos, que consistem na ausncia
absoluta de razoabilidade da justificativa daquele que tenha
mentido. O animus inferido da ausncia de justificao
aceitvel, objetivamente.
que a expresso alterar intencionalmente a verdade
dos fatos foi substituda por alterar a verdade dos fatos. Assim,
tanto o processo civil portugus como o brasileiro (no qual a
mentira ou inveracidade dedutvel de critrios objetivos)
admitem o descumprimento do dever de dizer a verdade por

50
Segundo THOMAS-PUTZO, afirmar um fato no significa necessaria-
mente apresent-lo como verdico, mas somente que seja levado em
conta no processo; discutir um fato no significa fazer valer a sua falsi-
dade, mas unicamente o seu carcter duvidoso, pedindo que seja aclara-
do, mediante prova (Thomas-Putzo, op. cit., com. ao 138, I. i, b apud
CRESCI SOBRINHO, op. cit, p.126-127).
51
Admite WELZEL que a parte no somente deva apresentar afirmaes de
cuja verdade tem seguro conhecimento, pois esse em muitos e muitos
casos lhe falta (cfr. Hans Weltzel., op. cit., pp 7,8 apud CRESCI SOBRI-
NHO, op. cit, p.126-127).
52
Cfr. HANS WELTZEL, op. cit., p. 6,7 e ss. apud CRESCI SOBRINHO, op.
cit, p.126-127.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 391

conduta no intencional da parte, ou seja, poder ocorrer com


aquele que for gravemente negligente, devendo ser sancionado
conforme previso legal.
Tal postura a mais adequada, posto que poder ocorrer
que a parte, por negligncia grave, faa triagem ou seleo
inadequada de fatos, tornando o quadro ftico inverdico.
Destaque-se, no direito brasileiro, a colocao do para-
digma do razovel para, nos casos em que o desconhecimento
de certos fatos se coloque como inadmissvel, repute-se, em
funo dessa realidade objetiva, o litigante como tendo agido
de m-f. Como vimos, prescinde-se, pois, nessa medida, da
perquirio intrnseca do animus, ou mais precisamente,
identifica-se o animus a partir de dados objetivos.
Entendemos, porm, que sempre poder o improbus
litigator, demonstrando que no agiu com dolo ou culpa grave,
eximir-se das sanes normalmente aplicadas referida conduta.
A deciso do juiz a respeito da infrao ao dever de verdade
sempre carregar consigo a necessidade de constatao da
existncia daqueles elementos subjetivos.
Dcimo-segundo critrio: o dever de verdade vale para
todos os processos (de conhecimento, execuo e cautelar) e
seus procedimentos.
Atingem tal princpio todas as alegaes que sejam feitas
durante o curso procedimental, como as que embasem
excees, objees, etc. ( o que a doutrina alem afirma com
a regra de que Treu und Glauben beherscht auch die Prozebfhrung,
ou seja, o verdadeiro e o confivel dominam, tambm, a
conduo do processo).53
Demonstrando que a litigncia de m-f pode dar-se em
determinado incidente processual, defendemos que, por

53
Tanto mais especialmente, o princpio atinge, v.g., uma exceo substancial se, de
forma inerente, consubstanciar essa uma mentira (BAUMBACH/LAUTERBACH/
ALBERS/HARTMANN, Zivilprozebordnung, 44. ed. cit., coms. ao 138 do
CPC alemo, 1, p. 444 apud ARRUDA ALVIM, Tratado ratado...,p. 397-398).

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392 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

exemplo, aquele que alegar ser pobre sem s-lo, para se


locupletar com os benefcios da gratuidade de justia no
processo civil, fato corriqueiro nos tribunais brasileiros, dever
ser penalizado como litigante de m-f, pois alterou a verdade
dos fatos para beneficiar-se do seu ato ilcito. H pena expressa
no 1, do art. 4, da lei n 1.060/50, ou seja, pagamento de
at o dcuplo das custas judiciais para aquele que no seja
pobre e requeira tais benefcios.
Dcimo-terceiro critrio: o dever de verdade incide sobre
fatos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos
do direito do autor e tambm sobre fatos essenciais, comple-
mentares e instrumentais.
Diz-se na doutrina italiana favorvel existncia do dever
de verdade que, se procurarmos discriminar sobre quais fatos
expostos (indicados; alegados) pelas partes incide o dever de
veracidade, verificaremos a incidncia do referido dever quando
as partes alegam fatos principais, relacionados com os seus
direitos disponveis, ficando excludo o estudo de outros fatos.
Em relao ao autor, este no deve alterar intencionalmente a
verdade dos fatos constitutivos do seu direito (veja-se Marchetti,
op. cit.. p 432). Quanto ao ru, no deve afirmar intencio-
nalmente fatos impeditivos, modificativos ou extintivos (do
direito do autor), contrrios verdade.
Na doutrina italiana, Cappelletti prope uma parte da
incidncia do dever de veracidade sobre: fatos constitutivos
(do direito ou contra direitos disponveis) voluntariamente
alegados pela parte, ou por quem se afirme titular de tais
direitos ou contra-direitos. Em outros termos, a parte livre
para alegar os fatos mas, se assim procede, no deve dolosa-
mente (...colpevole) aleg-los em contraste com o dever de
veracidade (como para a contra-parte a eventual alegao
negativa - contestao)54 .

54
CAPPELLETTI, La testimonianza..., p. 387 e ss.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 393

Para Carlos Aurlio Mota de Sousa, sobre os fatos


principais, relacionados a seus direitos disponveis: o autor
no deve alterar a verdade dos fatos constitutivos do seu direito
e o ru no deve afirmar fatos impeditivos, modificativos ou
extintivos do direito do autor, contrrios verdade55.
Kaethe Grossman afirma que o dever de veracidade
compreende no s a alegao dos fatos essenciais, mas tambm
a dos acidentais. Ressalta ser certo que a descoberta da verdade
no requer mais do que a informao exata sobre as cir-
cunstncias importantes para a deciso judicial. Mas a questo
de ser ou no ser o fato de importncia, cabe apreciao
exclusiva do juiz e, por isso, deve-se exigir das partes veracidade
incondicional em relao totalidade dos fatos alegados, sejam
essenciais ou acessrios. Em vista da insegurana sobre o futuro
desenvolvimento do processo, torna-se, alm disso, em muitos
casos, impossvel aferir definitivamente a importncia que tero
os fatos no curso do mesmo56.
Tal posicionamento tem a nossa concordncia. O mesmo
passvel de aplicao no direito brasileiro. O dever de vera-
cidade deve incidir sobre fatos essenciais e acidentais. Passemos
a justific-lo.
Segundo Teixeira de Sousa, os fatos podem ser principais
(compreendendo os essenciais e complementares ou concretiza-
dores) e instrumentais. Para ele, os fatos essenciais so aqueles
que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceo e
cuja falta determina a inviabilidade da ao ou da exceo. Os
fatos instrumentais, probatrios ou acessrios so aqueles que
indiciam os fatos essenciais e que podem ser utilizados para a
prova indiciria destes ltimos. Finalmente, os fatos comple-
mentares ou concretizadores so aqueles cuja falta no constitui

55
CARLOS AURLIO SOUZA, Poderes ticos do juiz... juiz..., p. 52.
56
KAETHE GROSSMANN. O dever de veracidade das partes litigantes no
processo civil (aspecto doutrinrio). Revista Forense
Forense, Rio de Janeiro,
n. 101, p. 481.

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394 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

motivo de inviabilidade da ao ou exceo, mas que


participam de uma causa de pedir ou de uma exceo complexa
e que, por isso, so indispensveis procedncia dessa ao
ou exceo57.
Para o mestre lusitano,
a cada um destes factos corresponde uma funo
distinta: - os factos essenciais realizam uma funo
constitutiva do direito invocado pelo autor ou da
excepo deduzida pelo ru: sem eles no se
encontra individualizado esse direito ou excepo,
pelo que a falta da sua alegao pelo autor determina
a ineptido da petio inicial por inexistncia de
causa de pedir (art. 193, n 2, al. a)); - os factos
complementares possibilitam, em conjugao com
os factos essenciais de que so complemento, a
procedncia da aco ou da excepo: sem eles a
aco ou a excepo no pode ser julgada procedente;
- por fim, os factos instrumentais destinam-se a ser
utilizados numa funo probatria dos factos
essenciais ou complementares. Importa acentuar que
esta classificao no assenta num critrio absoluto,
mas relativo: um mesmo facto pode ser essencial
em relao a um certo objeto e complementar ou
instrumental perante um outro objecto; por seu
turno, um facto sempre complementar ou
instrumental em relao a um certo facto essencial58.

Para Lebre de Freitas, deve-se proceder distino, nos


fatos instrumentais, entre os probatrios e os acessrios59.

57
SOUZA, Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Lis-
boa: Lex, 2. ed. 1997. p. 70.
58
Idem, p. 70.
59
Cfr. FREITAS, Lebre de. Introduo ao PProcesso
rocesso Civil, Conceito e
princpios gerais luz do Cdigo revisto
revisto. Coimbra, 1996. p. 136.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 395

Observamos assim que, se a parte falta com a verdade


quando perguntada a respeito do estado do veculo aps o
acidente, informao necessria para que o juiz possa formar
seu convencimento a respeito da velocidade na qual trafegava
o mesmo, poder ser penalizada por litigncia de m-f, mesmo
em se tratando de fato instrumental.
O mesmo se diga da prova do estado do muro, refor-
mado no dia seguinte, onde um veculo teria batido aps
atingir a vtima e mat-la. A elucidao do fato fundamental
para a descoberta da verdade e a recusa de informar o fato em
juzo poder causar srios prejuzos ao processo.
Dessa forma, cabe aplicao do posicionamento amplo
de Kaethe Grossman ao direito brasileiro, podendo ser punida
a parte quando alterar a verdade de fatos essenciais e acidentais,
ou, segundo a classificao de Teixeira de Sousa, de fatos
essenciais, complementares e instrumentais.
Dcimo-quarto critrio: no h que se falar em inverso
do nus da prova em virtude do descumprimento de dever de
verdade pelas partes.
A violao do dever de veracidade constitui, segundo
Welzel, um ato ilcito que, conseqentemente, no confere
qualquer direito processual, devendo o juiz reagir mentira
como se de um fato impossvel ou notoriamente inexistente
se tratasse60.
Porm, admite Isabel Alexandre que no deixa de ser
problemtica a relao existente entre o dever de veracidade e
as regras processuais que regulam a falta de impugnao dos
fatos articulados pela parte contrria (art. 490, n 2, do CPC
portugus), os efeitos da revelia (arts. 484, n 1 e 784, do
CPC portugus), a fora probatria da confisso (art. 358,
do Cdigo Civil portugus) e as regras de repartio do nus

60
Cfr. H. WELZEL, Die Wahrheitspflicht im Zivilprozess, 1935, p. 16 apud
ISABEL ALEXANDRE, op. cit., p. 98.

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396 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

da prova (arts. 342 e ss., do Cdigo Civil portugus)61. Para


ela, as respostas dadas a esses problemas no direito alemo e
portugus no tm sido idnticas.
Como assinala J. Lebre de Freitas62, face ao sistema
processual portugus, no possvel defender que o dever de
verdade altere as regras gerais de repartio do nus da prova
(invertendo-as, caso tenha sido violado por alguma das partes),
o efeito cominatrio da revelia ou da falta de impugnao
especificada (agora, depois da reforma, apenas a falta de im-
pugnao).
Ressalta Isabel Alexandre que no s o direito alemo
d nfase ao dever de verdade, prevendo, tambm, o direito
portugus, conseqncias para a recusa de colaborar na
descoberta da verdade. Assim adverte:

Sua recusa tinha, no CPC 1939 o efeito de serem


dados como provados os factos que se pretendiam
averiguar. Esta sano vinha, alis, prevista em vrios
preceitos do Cdigo de 1939: assim, se a parte no
comparecesse, a fim de prestar o depoimento de parte,
ou se se recusasse a depor (art. 574), se declarasse
no se lembrar de facto sobre o qual era interrogada
(art. 577, 2), ou se no juntasse o documento
requisitado (art. 553). Atualmente, a recusa da parte
em colaborar na descoberta da verdade tem uma
consequncia diversa, j que o facto que se pretende
averiguar no dado automaticamente como provado
contra ela: apenas se d ao tribunal a possibilidade
de, livremente, apreciar a recusa (arts. 519, n 2 e
529 CPC e 357, n 2 CC). Para alm disso, dispe
o art. 519, n 2, parte final, ao remeter para o

61
ISABEL ALEXANDRE, op. cit., p. 98.
62
FREITAS, J. Lebre de, A Confisso
Confisso..., p. 467, nota 12.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 397

preceituado no art. 344, n 2 CC, que se d a


inverso o nus da prova, quando a parte contrria
tiver culposamente tornado impossvel a prova ao
onerado63.

Observe-se que, no direito brasileiro, o dever de verdade


no tem influncia quanto ao nus da prova. Seu descum-
primento, caso ocasione abuso do direito de defesa ou intuito
protelatrio do ru, poder ocasionar a antecipao dos efeitos
da tutela, com fundamento no art. 273, inc. II, do CPC.
Dcimo-quinto critrio: h casos em que o dever de
verdade no se aplica. admitida a cessao do dever em certos
casos de conflito com outros deveres que bem podem surgir,
dada a multiplicidade de interesses e deveres contrastantes que
suscita a vida.
No direito alemo, admite Rosenberg que a praxis no
tem admitido o dever de veracidade para fatos que pudessem
atentar contra a honra da parte ou a pusessem em perigo de
um procedimento (Verfolgung) penal64.

63
ISABEL ALEXANDRE, Op. Cit., p. 84-85. Note-se porm que, como
observam ANTUNES VARELA J. MIGUEL BEZERRA SAMPAIO E NORA,
(...) sem prejuzo da livre apreciao da conduta da parte para efeitos
probatrios, a lei no abdica dos meios coercitivos que forem possveis
para obteno do meio probatrio visado.A parte recusa-se, por exem-
plo, a entregar voluntariamente a coisa (documento, animal, coisa m-
vel) que se encontra em seu poder; a recusa no impede que o tribunal,
pela fora se necessrio, procure apreender e utilizar o documento, o
animal ou a coisa, como elemento probatrio. Di-lo expressis verbis o
n 2 do art. 519, ainda em prossecuo do interesse no apuramento da
verdade (ISABEL ALEXANDRE, op. citp. 85).
64
Cfr. ROSENBERG, Lehrbuch, 9. ed., 1961, p. 291; THOMAS-PUTZO,
Zivilprozessordnung, 3. ed., 1968, 138. 2, d, bb, p. 198 com
decises: Reichsgericht 156. 269; Entscheidung des Reichsgerichts in
Strafsachen 72, 22; Oberlandesgericht Kassel, Hochsterichterliche
Rechtsprechung 1937, 1462 = Juristische Wochenschrift 1937, 2768;
cfr. NIKISH, Lehrbuch, 2. ed., 1952, p. 207, no mesmo sentido apud
CRESCI SOBRINHO, Op. Cit., p. 76.

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Afirma Kaethe Grossmann que, em tal concorrncia de


deveres, justo que se cumpra a obrigao de predominante
importncia, isto , a que vise interesses de maior alcance (o
direito alemo desenvolveu amplamente esse princpio de
proporcionalidade para todos os ramos do direito) .
Admite a autora que, na maioria dos casos, o primeiro
posto corresponder ao dever de veracidade em vista de seu
carter e finalidade pblicos, podendo rivalizar com ele so-
mente outros deveres estabelecidos no interesse comum.
Entende que
s vezes, o dever profissional de discrio entra em
conflito com o dever de veracidade e em tal caso a
soluo deve ser geralmente a favor do ltimo dever.
Mas no cabem regras de carter geral, pois trata-se
de questes delicadas em cada caso especial e que
devem ser resolvidas sob a influncia de importantes
circunstncias concretas65.

Para ela, a no observncia do dever de veracidade pode


justificar-se excepcionalmente, tanto por um conflito de
deveres, quanto por uma concorrncia de interesses, caso que
s ocorrer quando interesses de altssimo valor, como a vida,
a sade e a liberdade e, s vezes, tambm, a fortuna, forem
postos em perigo pela declarao verdica, encontrando-se a
parte em estado de necessidade66.
Dessa forma, a constatao se aplica no s ao direito
alemo mas tambm ao brasileiro: cessa o dever de veracidade
quando sua manifestao completa, clara e exata ponha em
perigo importantes interesses pblicos (Kaethe Grossmann

65
KAETHE GROSSMANN, O dever de veracidade das partes litigantes no
processo civil (aspecto doutrinrio). Revista Forense
Forense, Rio de Janeiro,
n. 101, p. 482.
66
Idem, p. 482.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 399

exemplifica, no direito alemo, com a impossibilidade de


revelao de segredos pblicos, especialmente militares)67.
A teoria da proporcionalidade vem encontrando res-
sonncia no processo civil brasileiro no que diz respeito ao
estudo da prova ilcita (posicionamento defendido em artigo
publicado na Revista Dialtica de Direito Processual n 7, p.
47-54) e da antecipao dos efeitos da tutela, nessa visando
justificar sua concesso em casos de notria irreversibilidade
dos efeitos fticos causados pelo provimento.
No direito portugus, a previso legal do art. 554, n 2,
CPC, deixa clara a inadmissibilidade do depoimento de parte
sobre fatos criminosos ou torpes, de que a parte seja argida.
Admite Isabel Alexandre haver fatos de que a parte pode
ser argida, embora no sejam criminosos: pense-se num
processo de contra-ordenao e, em geral, num processo que
tenha uma natureza sancionatria - o dever de veracidade
aparentemente no abrange tais factos68.
Para Isabel Alexandre,
no que se refere aos factos desonestos ou torpes,
o mnimo que se pode dizer que so dificilmente
determinveis: s-lo-, por exemplo, o facto do
adultrio? No exemplo de Baur, se A intenta uma
aco de divrcio, ter de mencionar o facto de j
ter, ele prprio, cometido adultrio? Tal como Baur,
tambm o STJ se mostra favorvel idia de que o
dever de veracidade no abrange factos criminosos
ou torpes, no seu acrdo de 14.11.1978 (BMJ 1978,
n 281, pg. 218), contrariando a orientao at ento

67
Idem, p. 482.
68
Pronuncia-se, nesse sentido, em relao aos fatos incriminatrios, parte
da doutrina alem: assim, A. BLOMEYER (Zivilprozessrecht, op. Cit., p.
143-144); F. BAUR (Les garanties fondamentales..., op. Cit., pg. 29);
Contra, R. STRNER (Die Aufklrungspflicht der Parteien des
Zivilprozesses, 1976, p. 174-192) (ISABEL ALEXANDRE, op. cit., p.95).

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400 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

seguida pelo mesmo tribunal, nos acrdos de


21.06.1968 (BMJ 1968, n 178, pg. 276) e de
01.02.1974 (BMJ 1974, n 234, pg. 246): assim,
nos termos do acrdo de 1978, a r que, num
processo de divrcio, nega adultrio (facto torpe) que
depois se vem a provar, no litigante de m f69.

Segundo J. Lebre de Freitas, o depoimento de parte sobre


fatos criminosos ou torpes no deve ser excludo quando constitui
causa de pedir na ao o prprio fato ilcito, causador dos danos
de que a vtima queira se ressarcir, ou quando, pelo contrrio, ele
constitui fato impeditivo da responsabilidade do demandado70.
69
ISABEL ALEXANDRE, Op. Cit., p. 95.
70
LEBRE DE FREITAS, A Confisso no Direito Probatrio, 1991, p. 156. No
entanto, segundo ISABEL ALEXANDRE, este entendimento dificilmente com-
patvel com o disposto nos arts. 359., n 1 e 364, al. b) CP, que prevem,
respectivamente, o crime de falso depoimento de parte e a atenuao ou
dispensa da pena, quando o facto tiver sido praticado para evitar que o
agente, o cnjuge, um adoptante ou adoptado, os parentes ou afins at ao
2 grau, ou a pessoa que com aquele viva em condies anlogas s dos
cnjuges se expusessem ao perigo de virem a ser sujeitos a pena ou a
medida de segurana. Destes preceitos retira-se que o dever de veracidade
na prestao do depoimento de parte, fora dos casos regulados no art.
554, n 2 CPC, no cede perante o perigo de auto-incriminao (embora
possa, por bvias razes de poltica criminal, determinar a atenuao ou
dispensa da pena. Segundo Isabel Alexandre, a soluo que, segundo se
julga, melhor se coaduna com os preceitos da lei processual civil e da lei
penal, a seguinte: excluso do dever de veracidade (no s no mbito do
depoimento de parte, mas tambm no da articulao de fatos e prestao de
informaes em geral) relativamente aos fatos criminosos ou torpes, de que
a parte seja arguida ; manuteno do dever de veracidade (mesmo no
tocante ao depoimento de parte) em relao aos fatos criminosos ou torpes
de que a parte no seja arguida, ressalvando embora a possibilidade de
recusa de colaborao da parte, se se verificarem as circunstncias a que se
refere o art. 519, n 3 CPC (recusa legtima de colaborao para a desco-
berta da verdade) . Para ela o recurso ao disposto no art. 519, n 3 permite,
alis, contornar a crtica de que a soluo legal pode ser alvo: a de que no
atribui parte um direito de no se incriminar, quando os fatos sobre os
quais se requer o depoimento possam ter relevncia criminal. Com efeito, a
parte pode sempre recusar-se a depor sobre esses fatos e, s se voluntari-

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 401

Observe-se que, no direito portugus, a recusa de


colaborao legtima se essa implicar violao da integridade
fsica ou moral das pessoas (art 519, n 3, al. a) do CPC), a
intromisso na vida privada ou familiar, no domiclio ou nas
telecomunicaes (art 519, n 3, al. b) do CPC) ou a violao de
segredo profissional, de funcionrio pblico ou de Estado (art
519, n 3, al. c) do CPC), podendo o tribunal proceder s
investigaes necessrias para verificar a legitimidade da escusa
com base em segredo profissional ou de funcionrio pblico (art
519, n 4, do CPC; arts. 135, n 1, e 136, n 2, do CPP) e, se
algum invocar segredo de Estado, o tribunal deve solicitar a sua
confirmao pelo Ministro da Justia (art 519, n 4, do CPC;
art 137, n 3, 1 parte, do CPP); se essa confirmao no for
prestada no prazo de 30 dias, o sujeito deve ser chamado a depor
(art 519, n 4, do CPC; art 137, n 3, 2 parte, do CPP).
Segundo o art 135, n 1, do CPP portugus, devem
escusar-se a depor sobre fatos abrangidos pelo segredo
profissional os ministros de religio ou confisso religiosa, os
advogados, os mdicos, os jornalistas, os membros de
instituies de crdito e as demais pessoas a quem a lei impuser
esse segredo. O art 136, n 1, do CPP portugus, estipula
que os funcionrios no podem ser inquiridos sobre fatos que
constituam segredo e de que tiverem conhecimento no
exerccio das suas funes. O segredo de Estado abrange,
nomeadamente, os fatos cuja revelao possa causar dano
segurana, interna ou externa, do Estado Portugus ou defesa
da ordem constitucional (art 137, n 2, do CPP portugus)71.

amente o fizer, est adstrita ao dever de veracidade. Fora dos casos acaba-
dos de referir, e mesmo que tal acarrete um prejuzo para o prprio, conti-
nua a impor-se o dever de veracidade, na medida em que, como assinala
Baur, o sentido do dever de dizer a verdade precisamente o de impedir os
depoimentos conscientemente falsos e incompletos(ISABEL ALEXANDRE,
op. cit., p. 95-97).
71
TEIXEIRA DE SOUSA. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed.
Lisboa: Lex, 1997. p. 322.

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402 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

No direito brasileiro, a lei processual civil abre excees


s partes nas hipteses do art. 347, do CPC, a saber: A parte
no obrigada a depor de fatos: I criminosos ou torpes, que
lhe forem imputados; II a cujo respeito, por estado ou
profisso, deva guardar sigilo.
Certamente, sobre tais fatos inexiste o dever de depor e
tambm o dever de dizer a verdade, j que no teria sentido
exigir-se a observao do dever de veracidade nessas hipteses
extremas, em que o depoente no precisa fazer prova contra si
mesmo.
Observe-se que o pargrafo nico do art. 347, do CPC,
limita sua aplicao, excetuando as aes de filiao, de
desquite e de anulao de casamento.
Dcimo-sexto critrio: O dever de veracidade incide
sobre o advogado.
No direito alemo, discute-se a incidncia do dever de
veracidade sobre os advogados. Posicionam-se favoravelmente
Rosenberg/Schwab (p. 392) e em sentido contrrio, de certa
forma, ao afirmar que o advogado no atingido pelo 138,
ZPO, Rudolf Bruns (p. 106)72.
H duas decises do Tribunal Constitucional Alemo
(dos anos de 1974 e de 1983) em sentidos diferentes. Na pri-
meira, decidiu-se que o advogado exerce uma funo de confian-
a da Justia (staatlich gebundenen Vertrauensberuf) ao passo
que, na segunda, entendeu-se ser invivel inserir a advocacia
nesse patamar, ou seja, foi negada ser, a advocacia, uma funo
relacionada com o Estado73.
J em 14 de fevereiro de 1973 havia deciso coincidente,
substancialmente, com essa de 1983. Essas decises interpreta-
ram o 1 da BRAO (Bundesrechtsanwaltsordnung - Lei federal
da disciplina dos Advogados de 1 de agosto de 1959) - v. cfr.

72
ARRUDA ALVIM, Tratado
ratado..., p. 395.
73
Idem, p. 395.

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CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 403

Gerhard Walter, Professional Ethics and Procedural Fairness -


Anwaltliche Ethik und Fairness im Prozess (tica Profissional e
lealdade no processo), cit., relatrio do Prof. Hans-Jrgens
Ahrens, n 2, pp. 107-10874.
No direito suo, a tendncia contempornea de impor
ao advogado a obrigao de dizer a verdade (cfr. Gerhard Walter,
Professional Ethics and Procedural Fairness - Anwaltliche Ethik und
Fairness im Prozess - tica Profissional e lealdade no processo,
Berna e Sttutgart, 1991, p. 31, n 3, letra a, do relatrio
geral apresentado ao XI Congresso Internacional, realizado pela
Associao Internacional de Direito Processual. V. ainda, na
mesma obra, o relatrio nacional do Prof. Oscar Vogel, n 3,
letras b e bb, p. 73; deste ltimo autor, Grundriss des
Zivilprozebrechts - Compndio de Direito Processual Civil,
1988, 2 ed., p. 129)75.
No direito brasileiro, o dever de verdade incide sobre o
advogado, j que o art. 14, inc. I, do CPC, inclui o referido
dever dentre os das partes e de todos aqueles que participam
do processo, inclusive o advogado.
Observe-se, ainda, que a lei n 8.906/94 dispe:

Art. 32. O advogado responsvel pelos atos que, no


exerccio profissional, praticar com dolo ou culpa.
Pargrafo nico. Em caso de lide temerria, o advogado
ser solidariamente responsvel com seu cliente, desde
que coligado com este para lesar a parte contrria, o que
ser apurado em ao prpria.

O que se veda a penalizao do advogado pelo juiz nos


autos do processo em que houve infrao do referido dever,
seja atravs de multa ou de indenizao. Poder a parte,

74
Idem, p. 395.
75
Idem, p. 395.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 371-406 jan./jun. 2005

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404 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

portanto, exigir do advogado aquilo que tenha pago em juzo


em funo do descumprimento do dever de veracidade do
mesmo, em ao autnoma.

3 CONCLUSO

Analisados, assim, os critrios que devem orientar o


aplicador do direito na interpretao da norma instituidora
do dever de verdade, restou evidenciada a fora que o mesmo
possui em nosso sistema jurdico, apesar da pouca aplicao
pelos julgadores de sanes contra os litigantes mentirosos.
Se visa o sistema processual que exista uma comunidade
harmnica de trabalho entre as partes e o juiz, no pode tolerar
que o julgador seja enganado pelos litigantes. E o juiz, quando
verificar a prtica de atos de litigncia de m-f, no deve
permanecer inerte, sem aplicar as devidas sanes, tratando o
processo como se fosse um jogo sem regras.

4 REFERNCIAS

ALEXANDRE, Isabel. Provas ilcitas em processo civil.


Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

ALVIM, Arruda. Tratado de Direito Processual Civil. 2. ed.


So Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. v. II

CAPPELLETTI, Mauro. La testimonianza della parte nel


sistema delloralit contributo alla teoria della utilizzazione
probatoria del sapere delle parti nel proceso civile, parte prima.
Milano: Giuffr, 1962.

CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Dever de veracidade das


partes no processo civil. Lisboa: Edies Cosmos Livraria
Arco-iris, 1992.

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Sem ttulo-6 404 29/8/2006, 20:17


CONTEDO E ALCANCE DO DEVER DE DIZER A VERDADE... 405

FREITAS, Jos Lebre de. Introduo ao Processo Civil -


Conceito e princpios gerais luz do Cdigo revisto. Coimbra:
Coimbra Editora, 1996.

GERALDES, Antnio Santos Abrantes. Temas Judicirios.


Coimbra:Almedina, 1998. v. I

GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.


Barcelona: Editoria Labor S.A., 1936.

GROSSMANN, Kaethe. O dever de veracidade das partes


litigantes no processo civil (aspecto doutrinrio). Revista
Forense, Rio de Janeiro, n. 101, p. 476-483.

JAUERNIG, Othmar. Direito Processual Civil, 25. ed. Trad.


de F. Silveira Ramos. Coimbra: Almedina, 2002.

LENT, Friedrich. Diritto processuale civile tedesco, parte


prima, Il procedimento di cognizione. Trad. Edoardo F. Ricci.
Morano Editore, 1962.

NERY JNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Cdigo de processo


civil comentado. 4. ed. rev. e ampl.. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999.

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo


civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997.

SOUZA, Carlos Aurlio Mota de. Poderes ticos do juiz (a


igualdade das partes e a represso ao abuso processual). Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. 296, p. 161-168, 1986.

STALEV, Zhivko. The role of layparticipants in litigation.


Papel e organizao de magistrados e advogados nas sociedades

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Sem ttulo-6 405 29/8/2006, 20:17


406 LCIO GRASSI DE GOUVEIA E IASMINA ROCHA

contemporneas. In: IX CONGRESSO MUNDIAL DE


DIREITO JUDICIRIO. Relatrios gerais. Coimbra-Lisboa:
Ed. A.M.Pessoa Vaz, v. 25-31, p. 221-259; VIII,1991.

ZEISS, Walter. El dolo procesal aporte a la precisacin terica


de una prohibicion del dolo en el proceso de cognicion
civilistico. Trad. Y presentacin de Tomas A. Banzahaf. Buenos
Aires: Ediciones Jurdicas Europa-America, 1979.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 371-406 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 406 29/8/2006, 20:17


DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 407

DO PRINCPIO DA
PROPORCIONALIDADE E SUA
APLICAO QUANTO
UTILIZAO DE PROVAS ILCITAS
NO PROCESSO PENAL

Rebeca Mignac de Barros Rodrigues


Pedagoga. Graduada em Pedagogia e Direi-
to. Ex-aluna da Escola Superior da Magis-
tratura do Estado de Pernambuco
ESMAPE. Especialista em Direito Proces-
sual Civil, Penal, Constitucional, Trabalhis-
ta e Tributrio. Tcnica Judiciria do Tribu-
nal de Justia de Pernambuco.

SUMRIO
1 EVOLUO HISTRICA DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE.
2 O PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SUA FEIO ATUAL.
2.1 Subprincpios. 3 POSSIBILIDADE DA UTILIZAO DE PROVAS
ILCITAS NO PROCESSO PENAL EM FACE DO PRINCPIO DA PROPOR-
CIONALIDADE. 4 REFERNCIAS

1 EVOLUO HISTRICA DO PRINCPIO DA


PROPORCIONALIDADE

A idia de proporcionalidade remonta aos tempos


antigos, confundindo-se com a prpria noo de direito. Desde
a poca de Talio, almejava-se alcanar o justo equilbrio entre
os interesses em conflito. A idia de justia no imaginrio
humano pressupe dar a cada um, proporcionalmente, o que
lhe devido.

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408 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

Foi na antiga Alemanha Federal, no perodo ps-II Guerra


Mundial, que se desenvolveu a chamada teoria da propor-
cionalidade (Verhaltnismassigkeitsprinzip). O termo proporcional
(verhaltnismassig) aparece, primeiramente, na rea do Direito
Administrativo, sendo empregado por Von Berg em 1802, ao
tratar da possibilidade de limitao da liberdade em razo do at
ento conhecido Direito de Polcia (hoje, Direito Administrativo),
referindo-se indenizao da vtima pelo prejuzo sofrido. Mas
com Wolzendorff que aparece a denominao Princpio da
Proporcionalidade, mais especificamente Princpio da Propor-
cionalidade entre os Meios e os Fins (Grundsatz der
Verhaltnismassigkeit) ao se referir proposio de validade geral
(allgemeingltigen Satz), que veda a fora policial ir alm do que for
necessrio e exigvel para a consecuo de sua finalidade.
Durante a primeira metade do sculo passado, o prin-
cpio da proporcionalidade continuava sendo empregado na
sua formulao originria, atinente apenas regulamentao
da atividade policial, destinado a evitar excessos na sua prtica.
Em 1955, Rupprecht V. Krauss distingue, em sua
monografia, diversos aspectos da proporcionalidade, sendo o
primeiro a empregar a expresso princpio da proporcionali-
dade em sentido estrito. At ento o princpio da proporciona-
lidade era concebido apenas no sentido de exigibilidade ou
adequao do ponto de vista administrativo.
No ano seguinte, Drig defende a tese da existncia de
um sistema de valores imanente Lei Fundamental alem,
cuja justificao ltima fornecida pela imposio de respeito
dignidade humana. Por seu intermdio, o princpio da
proporcionalidade inclui-se no plano constitucional para ser
observado em qualquer medida tomada pelo Estado.1

1
Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. O princpio da proporcionalidade
em direito constitucional e em direito privado no Brasil. Dispo-
nvel em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 21 nov. 2003.
16h10min, p. 12.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 409

A passagem do princpio da proporcionalidade do


campo administrativo para o constitucional deve-se, sobre-
tudo, ao Tribunal Constitucional da Alemanha
(Bundesverfassungsgericht). A Corte Suprema Alem passou a
referir-se, com freqncia, a expresses do tipo excessivo
(bermssig), inadequado (unangemessen), necessariamente
exigvel (erforderlich, unerlasslich, unbedingt notwendig),
proibio de excesso (bermassverbot), em clara associao
ao princpio da proporcionalidade. Mencionado tribunal
concebeu o princpio da proporcionalidade como resul-
tante, no fundo, da essncia dos prprios direitos funda-
mentais, inserindo-o, dessa maneira, na base do orde-
namento jurdico; e, mais adiante, estabeleceu que o prin-
cpio da proporcionalidade, enquanto regra condutora
abrangente de toda a atividade estatal decorrente do
princpio do Estado de direito, possui estrutura constitu-
cional.
O princpio da proporcionalidade atua com bastante
nfase e eficcia no direito alemo, principalmente no
direito constitucional e no direito processual penal. H
normas expressas na ordenana processual penal alem
(Strafprozebordnung - StPO), indicando a adoo do princpio
da proporcionalidade naquele sistema jurdico, como, por
exemplo, StPO. 112 I 2 e 120 I.
O tratamento dado pela doutrina alem ao princpio
da proporcionalidade se projetou para outros sistemas
jurdicos do resto do mundo.
Nelson Nery Jnior salienta que as principais decises
do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha sobre a
construo do referido princpio, em comparao com as
decises de nosso Supremo Tribunal Federal sobre a
ponderao de direitos igualmente protegidos pela Cons-
tituio Federal, indicam-nos verdadeira similitude entre a
teoria e a praxis dos dois tribunais, de modo a fazer com

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Sem ttulo-6 409 29/8/2006, 20:17


410 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

que seja vlida, aqui, a doutrina alem sobre o mencionado


princpio da proporcionalidade.2
A doutrina brasileira administrativista tambm recepcio-
nou o princpio da proporcionalidade. Maria Sylvia Zanella
di Pietro, observando os limites ao poder de polcia, afirma
no poder o seu exerccio, pelo Poder Pblico,
ir alm do necessrio para a satisfao do
interesse pblico que se visa proteger; a sua
finalidade no destruir os direitos indivi-
duais, mas, ao contrrio, assegurar o seu
exerccio, condicionando-os ao bem-estar
social; s poder reduzi-los quando em
conflito com interesses maiores da coletivi-
dade e na medida estritamente necessria
consecuo dos fins estatais.3

Discorrendo sobre os princpios constitucionais do


direito administrativo, Celso Antnio Bandeira de Mello
afirma que as competncias administrativas s podem ser
validamente exercidas na extenso e intensidade proporcionais
ao que seja realmente demandado para cumprimento da
finalidade de interesse pblico a que esto atreladas e acata o
princpio da proporcionalidade como uma faceta do princpio
da razoabilidade, derivados do art. 37 c/c arts. 5, II e 84, IV,
todos da CF/88.4
Na realidade, o princpio da proporcionalidade
transcende o campo do direito administrativo, podendo ser
considerado constitutivo e imanente a setores inteiros do

2
NERY JNIOR, Nelson. Princpios do processo civil na constitui-
o federal. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 155.
3
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilcitas interceptaes
telefnicas, ambientais e gravaes clandestinas. 3. ed. So
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 58.
4
Idem, ibidem, op. cit., p. 59.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 411

direito. No Direito Processual Penal, por exemplo, nossa rea


de interesse, exige-se dos juzes o respeito proporcionalidade
na aplicao de medidas coativas de acordo com o
ordenamento processual penal em vigor.

2 O PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE EM
SUA FEIO ATUAL

No contexto inserido pela base constitucional renovada


de 1988, a adoo do Estado Democrtico de Direito superou
a viso clssica dos direitos e garantias fundamentais enquanto
direitos e garantias individuais voltados exclusivamente contra
o Estado, o qual, perante tais direitos, teria o dever de to-
somente abster-se da prtica de atos que os ameaasse ou
violasse; concebendo, atualmente, os direitos fundamentais
como dotados de um aspecto prestacional, a exigir aes por
parte do estado para implement-los e tambm eficcia reflexa
ou eficcia perante terceiros (Drittwirkung), tornando referidos
direitos e garantias aptos a proteger seus titulares tambm
contra ameaas e violaes por parte de seus co-cidados,
individualmente considerados ou coletivamente organizados.5
A vivncia desse Estado Democrtico de Direito trouxe
baila conflitos entre princpios constitucionais, hierarquica-
mente iguais; com o mesmo valor e aos quais se deve igual
obedincia. Os princpios constitucionais, quer explcitos quer
implcitos, podem se contradizer. Estabelecido o conflito,
como deve proceder o operador do direito? Adotaria um
princpio preterindo o outro? Que soluo se mostra a mais
apropriada para a questo? exatamente aqui que recorremos
ao princpio da proporcionalidade, j chamado de princpio
dos princpios. Os princpios podem se contradizer sem que
isso faa qualquer deles perder a validade jurdica.

5
Cf. Klaus Stern apud GUERRA FILHO, Op. Cit., p. 2.

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412 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

Para resolver o grande dilema que vai ento


afligir os que operam com o Direito no mbito
do Estado Democrtico contemporneo,
representado pela atualidade de conflitos entre
princpios constitucionais, aos quais se deve
igual obedincia, por ser a mesma a posio
que ocupam na hierarquia normativa, que
se preconiza o recurso a um princpio dos
princpios, o princpio da proporcionalidade,
que determina a busca de uma soluo de
compromisso, na qual se respeita mais, em
determinada situao, um dos princpios em
conflito, procurando desrespeitar o mnimo
ao(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando minima-
mente com o respeito, isto , ferindo-lhe seu
ncleo essencial, onde se encontra entroni-
zado o valor da dignidade humana. 6

Em termos de princpios, trabalha-se com valores e no


com descries de situaes, fatos ou espcies, trabalhados
que so nas regras. Um princpio para ser princpio h de ser
geral e abstrato.
O conflito entre regras e o conflito entre princpios
possuem relevante diferena quanto forma de solucion-los.
Enquanto o conflito de regras resulta numa antinomia, cuja
soluo implica na perda de validade de uma das regras em
conflito, deixando-se de cumpri-la para cumprir a outra enten-
dida como correta, o critrio da soluo aplicada pelo princpio
da proporcionalidade resulta apenas em privilegiar um dos
princpios conflitantes, sem que isso implique no desrespeito
completo do outro. No ltimo caso, otimiza-se a medida em
que se acata um e desatende o outro.

6
Idem, ibidem, pp. 2-3.

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Sem ttulo-6 412 29/8/2006, 20:17


DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 413

O Princpio da Proporcionalidade , antes de tudo, uma


forma de concretizar direitos; um princpio de ponderao.
tambm conhecido por teoria do balanceamento ou da
preponderncia de interesses; o Grundsatz der Verhaltnismassigkeit
dos alemes, tambm chamado de mandamento da proibio
de excesso. Os valores constitucionalmente relevantes so postos
em confronto e um princpio ganha maior peso que o outro,
mas isto no significa que este se invalida ele continua vlido,
apenas com peso menor.
O princpio da proporcionalidade representa uma
garantia do indivduo contra os abusos praticados no exerccio
do poder; instrumento utilssimo a servio da efetividade
dos direitos fundamentais e, especialmente, da liberdade.7
O princpio da proporcionalidade princpio vivo,
elstico, prestante, que protege o cidado contra os excessos
do Estado e serve de escudo defesa dos direitos e liberdades
constitucionais. o que h de mais novo, abrangente e
relevante em toda a teoria do constitucionalismo contempo-
rneo.8
Avolio define, em breve sntese, a teoria da proporcio-
nalidade como uma construo doutrinria e jurisprudencial
que se coloca nos sistemas de inadmissibilidade da prova
obtida ilicitamente, permitindo, em face de uma vedao
probatria, que se proceda a uma escolha, no caso concreto,
entre os valores constitucionalmente relevantes postos em
confronto.9
Mas, de onde se deriva o princpio da proporcionalida-
de? Poder-se-ia apresentar como resposta o princpio

7
GIMENO,Vicente apud FERNANDES, Antonio Scarance. Processo pe-
nal constitucional. 3. ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 52.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional
constitucional. 11. ed. rev.,
atual. e ampl. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 394-395.
9
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato apud RABONEZE, Ricardo. Provas
obtidas por meios ilcitos.
ilcitos 2. ed. Porto Alegre: Sntese, 1999. p. 20.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 407-434 jan./jun. 2005

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414 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

estruturante do Estado de Direito. O princpio da dignidade


da pessoa humana atrelado ao princpio democrtico outra
resposta possvel. Guerra Filho adota o posicionamento que vincula
o princpio da proporcionalidade clusula do devido processo
legal, expresso na nossa constituio no art. 5, inciso LIV.
A vinculao entre o princpio da propor-
cionalidade e o processo vem sendo consi-
derada de tal ordem que, com grande auto-
ridade, entre ns, tanto em sede doutrinria
como jurisprudencial, comum ter-se o
princpio como incrustado naquele donde se
assentariam as diversas garantias processuais,
de ndole constitucional, a saber, o princpio
do devido processo legal.10

O princpio da proporcionalidade extrado de outros


princpios relacionados com a proteo dos direitos fundamen-
tais da liberdade, da justia, da personalidade, da integridade
fsica, , enfim, garantia especial, vez que exige que toda inter-
veno nos direitos fundamentais se d por necessidade, de
forma adequada e na justa medida. Na expresso de Suzana de
Toledo Barros, o princpio da proporcionalidade complementa
o princpio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito.11
Quanto essncia e destinao do princpio da pro-
porcionalidade, estas coincidem com a essncia e a destinao
mesma de uma Constituio que pretenda desempenhar o
papel que lhe est reservado na ordem jurdica de um Estado
de Direito Democrtico: preservar os direitos fundamentais12 .
Nesse sentido, o princpio da proporcionalidade funciona

10
GUERRA FILHO, op. cit, p. 6.
11
BARROS, Suzana de Toledo. O princpio da proporcionalidade e o
controle de constitucionalidade das leis restritivas de direi-
tos fundamentais
fundamentais. 2. ed. Braslia: Braslia Jurdica, 2000. p. 91-98.
12
GUERRA FILHO, Op. Cit. p. 06.

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Sem ttulo-6 414 29/8/2006, 20:17


DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 415

como verdadeiro princpio ordenador do direito. Quando dois


ou mais princpios constitucionais entrarem em conflito, o
critrio de soluo da proporcionalidade far o sopesamento,
decidindo qual deles ser privilegiado no caso concreto, sem
que isto signifique a eliminao dos demais, ordenando assim
o sistema jurdico.
O Princpio da Proporcionalidade um princpio
constitucional, embora no exista no texto constitucional
brasileiro disposies individuais expressas a seu respeito;
inerncia do prprio Estado Democrtico de Direito contem-
porneo no que concerne ao respeito simultneo dos interesses
individuais, coletivos e pblicos.
Como dissemos, no Brasil no h referncia expressa
ao princpio em tela na Constituio Federal, diferentemente
de diplomas como a Constituio Portuguesa de 1974, que
em seu art. 18, inciso II, declara que a lei s pode restringir
os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituio, devendo as restries limitar-se ao
necessrio para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos. J a Constituio Alem,
no art. 19, 2 parte, consagra o princpio segundo o qual os
direitos fundamentais jamais devem ser ofendidos em sua
essncia (Wesensgehaltsgarantie).13
Mesmo com a ausncia da previso brasileira, isso no
significa que no possamos reconhecer o princpio da
proporcionalidade em vigor no solo ptrio, pois a mesma
Constituio Federal Brasileira, no seu art. 5, 2 dispe,
que os direitos e garantias expressas nesta Constituio no

13
Exatamente dessa norma que autores como Lerche e Drig deduzem, a
contrario sensu, a consagrao do princpio da proporcionalidade
pelo direito constitucional, pois ela implica na aceitao de ofensa a
direito fundamental at um certo ponto, donde a necessidade de um
princpio para estabelecer o limite que no se deve ultrapassar. Idem,
ibidem, p. 15.

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416 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por


ela adotados, ou dos tratamentos internacionais em que a
Repblica Federativa do Brasil seja parte.
Bonavides insere o princpio da proporcionalidade como
direito positivo em nosso ordenamento constitucional.
Embora no haja sido ainda formulado como norma jurdica
global, flui do esprito que anima em toda sua extenso e
profundidade o 2 do art. 5 (...). Destaca ainda o autor
que o princpio da proporcionalidade hoje verdadeiro axioma
do Direito Constitucional, corolrio da constitucionalidade
e cnone do Estado de Direito.14

2.1 Subprincpios

A aplicao do princpio da proporcionalidade implica


restrio a direito fundamental, somente justificvel diante da
Constituio, em razo da necessidade, adequao e supremacia
do valor a ser protegido em confronto com aquele a ser restrin-
gido.
O estudo do princpio da proporcionalidade envolve
outros trs componentes que podemos chamar de subprin-
cpios ou princpios parciais (Teilgrundstze) do princpio da
proporcionalidade:
princpio da adequao ou idoneidade;
princpio da exigibilidade, mxima do meio
mais suave (Gebot des mildesten Mittels), indispensa-
bilidade (Erforderlichkeit), necessidade, interven-
o mnima, alternativa menos gravosa ou subsi-
diariedade;
princpio da proporcionalidade em sentido estri-
to, mxima do sopesamento ou prevalncia do valor
protegido na ponderao dos interesses em conflito.

14
BONAVIDES, Op. Cit., p. 396.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 417

Pelo princpio da adequao ou idoneidade, o meio


utilizado deve ser adequado ao fim colimado, isto , a medida
a ser tomada deve ser suficiente para atingir o fim desejado,
baseado no interesse pblico. Com o seu auxlio, pode-se
chegar a um resultado desejado. A restrio a direito funda-
mental s ser adequada se apta a realizar o fim pretendido.
H relao de meio e fim, no sendo tolerada restrio se o
meio utilizado no se mostrar idneo consecuo do
resultado almejado. preciso adequao do meio ao fim,
dentro do faticamente possvel.
Segundo o princpio da exigibilidade, tambm conhe-
cido por mxima do meio mais suave (Gebot des mildesten Mittels),
indispensabilidade (Erforderlichkeit), necessidade, interveno
mnima, alternativa menos gravosa ou subsidiariedade, deve-
se escolher o meio que importe em menor sacrifcio para os
direitos fundamentais. Alm de ser o meio mais adequado, o
meio escolhido deve ocasionar a menor restrio possvel.
Cuida-se em escolher a possibilidade menos gravosa entre as
existentes. Em outras palavras, significa inexistir outro meio
igualmente eficaz e menos danoso aos direitos fundamentais.
E, finalmente, pelo princpio da proporcionalidade em
sentido estrito, mxima do sopesamento ou prevalncia do
valor protegido na ponderao dos interesses em conflito, deve-
se escolher o meio que some o maior nmero de vantagens e
o menor nmero de desvantagens, ou seja, que leve em conta
o maior nmero de interesses em jogo. No basta que o meio
escolhido seja adequado e necessrio para determinado fim,
preciso que seja justificvel medida que o valor resguardado
prepondere sobre o valor protegido pelo direito a ser restrin-
gido. Deve predominar o valor de maior relevncia, estabelecida
uma correspondncia que seja juridicamente a melhor possvel
entre o fim almejado por uma disposio normativa e o meio
utilizado. Ainda que represente certo prejuzo para alguns, os
benefcios e as vantagens advindas para outros ho de superar
as desvantagens.

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418 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

O subprincpio da proporcionalidade em
sentido estrito convida o intrprete realiza-
o de autntica ponderao. Em um lado
da balana devem ser postos os interesses
protegidos com a medida, e no outro, os bens
jurdicos que sero restringidos ou sacri-
ficados por ela.15

Mas como delimitar essa adequao e exigibilidade num


sistema ptrio que veda expressamente a produo de provas
ilcitas, como se observa no texto constitucional do art. 5,
inciso LVI: Todos so iguais perante a lei, sem distino de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-
ros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida,
liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos
seguintes: (...) LVI so inadmissveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilcitos. ?
Raboneze16 afirma que deve haver um limite de aplica-
o da teoria da proporcionalidade, sob pena de infringir-se o
prprio princpio constitucional vedadrio de uso processual
das provas ilicitamente obtidas.
Reportando-se a Pierre Muller, leciona Paulo Bonavides
que quem fizer uso do princpio da proporcionalidade, defron-
ta-se ao mesmo passo com uma obrigao e uma interdio;
obrigao de fazer uso dos meios adequados e interdio quanto
ao uso de meios desproporcionados. E ressalta que em razo
desse duplo carter que este princpio tem o seu lugar no Direito,
regendo todas as esferas jurdicas e compelindo os rgos do
estado a adaptar em todas as suas atividades os meios que dis-
pem aos fins que buscam e aos efeitos de seus atos.17

15
SARMENTO, Daniel. A ponderao de interesses na constitui-
o federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 89.
16
RABONEZE, Op. Cit., p. 23.
17
BONAVIDES, Op. Cit., p. 361.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 419

Quando faltar qualquer dos subprincpios, sendo a


medida excessiva, injustificvel, inadequada ou desnecessria,
ocorrer inconstitucionalidade e no h que se falar em
aplicao do princpio da proporcionalidade.
A propsito, considerando o princpio da proporcio-
nalidade como princpio constitucional que , e, portanto,
princpio geral de direito, desrespeit-lo corresponde mais
grave das inconstitucionalidades, afinal a violao de um
princpio
a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalo do
princpio atingido, porque representa insur-
gncia contra todo o sistema, subverso de
seus valores fundamentais, contumlia
irremissvel a seu arcabouo lgico e corroso
de sua estrutura mestra.18

3 POSSIBILIDADE DA UTILIZAO DE PROVAS


ILCITAS NO PROCESSO PENAL EM FACE DO
PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE

A inadmissibilidade processual das provas ilcitas


predomina, atualmente, no ordenamento jurdico brasileiro,
mas o princpio da proporcionalidade vem atenuando a sua
rigidez. A teoria da proporcionalidade vem ganhando aceitao
ao passo que ameniza o art. 5, inciso LVI da CF, nos casos
em que a ofensa determinada vedao constitucional feita
para a proteo de valor maior, tambm amparado na Charta
Magna.
Pela proporcionalidade, nenhuma garantia constitu-
cional tem valor supremo e absoluto com fora de aniquilar

18
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Elementos de direito admi-
nistrativo. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 1992. p. 300.

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420 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

outra garantia de equivalente grau de importncia. Se a nossa


Charta Magna garante a proteo da intimidade e o sigilo das
comunicaes, tambm garante ao acusado o direito ao devido
processo legal e ampla defesa. Se a prova ilcita servir para
evitar uma condenao injusta, h de se flexibilizar as regras
dos incisos X e XII do art. 5 da CF/88.
Quando as medidas a serem adotadas implicarem
limitao de direitos fundamentais, devemos fazer o
sopesamento dos interesses e bens jurdicos que expres-
sam, solucionando de forma que maximize o respeito a
todos os envolvidos no conf lito, articulando um racio-
cnio de forma hbil, onde se possa almejar resultados
justos nas solues dos casos concretos. Recorre-se ao
princpio da proporcionalidade, como se faz na Alemanha
(Ve rh l t n i s m s s i g k e i t s p r i n z i p) o u a o p r i n c p i o d a
razoabilidade segundo concepo norte-americana
(reasonableness).
Mas quais os valores que podem ser postos para a
aplicao do princpio da proporcionalidade? No nosso
ordenamento jurdico, no possvel estabelecer, em tese, quais
os direitos, princpios ou valores que devam prevalecer em
detrimento de outros. De acordo com a doutrina moderna, a
convivncia das liberdades obriga a uma relativizao dos
direitos, buscando a melhor forma possvel de acomodar tais
liberdades. Assim, h de se entender que a problemtica das
provas ilcitas impede ao intrprete ver a proibio de seu uso
como absoluta, pois, como sabido, o processo algo
essencialmente dialtico, entrando, no mais das vezes, dois ou
mais interesses ou valores em conflito e, at mesmo, princpios
constitucionalmente assegurados.19 Os direitos e garantias
fundamentais no podem ser entendidos em sentido absoluto,
em face da natural restrio resultante do princpio de sua

19
Cf. MELLO, op. cit., p. 255.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 421

convivncia, que exige a interpretao harmnica e global das


liberdades constitucionais.20 Ressalte-se que o princpio da
proporcionalidade somente poder ser utilizado se tivermos
em mente que a garantia atinente inadmissibilidade das
provas ilcitas tem carter relativo.
Aplicando o princpio da proporcionalidade quanto s
provas ilcitas e possibilidade de sua utilizao no processo
penal, sempre em carter excepcional e em casos extremamente
graves, tem sido admitida a prova ilcita, baseando-se no equil-
brio entre valores contrastantes. Admitir uma prova ilcita para
um caso de extrema necessidade significa quebrar um princpio
geral para atender a uma finalidade excepcional justificvel.
No exerccio de aplicao do princpio, os interesses e valores
em anlise so sopesados, admitindo-se, em certos casos, a
prova obtida por meio ilcito. O julgador decide qual interesse
deve ser sacrificado e em que medida.
Admitimos a produo de prova obtida com violao
de norma constitucional em situaes excepcionais quando,
in casu, objetiva-se proteger valores mais relevantes do que
aqueles infrigidos na colheita da prova, valores estes tambm
protegidos constitucionalmente.
Antonio Scarance Fernandes21 traz dois exemplos pr-
ticos bastante esclarecedores sobre a aplicao do princpio
da proporcionalidade em sede processual penal.
Em determinado caso, para impedir fuga de presos
considerados de alta periculosidade do estabelecimento
penitencirio, a correspondncia destinada a tais presos
violada, descobrindo-se no s o plano de fuga como tambm
o plano de seqestrar um juiz de direito na escapada. Em
outra situao, o ru obtm uma prova ilcita mediante

20
GRINOVER, Ada Pellegrini ; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES
FILHO, Antonio Magalhes. As nulidades no processo penal
penal. 6.
ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 140.
21
FERNANDES, Antnio Scarance, op. cit., p. 86-87.

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422 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

interceptao telefnica no autorizada, sendo este o nico


meio de que dispe para provar a sua inocncia.
No primeiro exemplo, houve violao correspondn-
cia, o que vedado pela Constituio Federal no art. 5, inciso
XIII ( inviolvel o sigilo da correspondncia...), sem admitir
excees. A aplicao rigorosa da proibio constitucional
impediria o uso processual das provas da resultantes. Porm,
a proteo ao sigilo da correspondncia superada pela
necessidade de se ver preservada a segurana do presdio e a
vida do juiz de direito, sendo as provas obtidas no considera-
das ilcitas ante o princpio da proporcionalidade. Note-se que
o direito fundamental vida pesou mais que o direito
fundamental garantidor do sigilo de correspondncia, mas este
direito no eliminado, ele continua vlido, mas com um
peso menor por isso, no exemplo oferecido, os autores da
violao da correspondncia sero punidos pelo seu ato.
No segundo exemplo, aparece a conhecida prova ilcita
pro reo. inaceitvel que o ru seja condenado apenas porque
a demonstrao de sua inocncia depende de prova obtida
ilicitamente. A sua condenao, ds que inocente, acarretaria
prejuzo muito maior quando comparada com a aceitao
processual de prova obtida por meio ilcito. A inadmissibi-
lidade do art. 5, inciso LVI da CF cede terreno a outra
garantia constitucional, de carter prevalente, qual seja: a
garantia ao ru de ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes (art. 5, inciso LV, CF/88). A aplicao do
princpio da proporcionalidade em casos de prova ilcita pro
reo no encontra muitas dificuldades para a sua aceitao.
Quando h nos autos prova da inocncia do acusado, ainda
que obtida ilicitamente, no h por que conden-lo. Se
verdade a mxima in dubio pro reo, muito mais se justifica a
deciso a favor do acusado que inocente, embora referida
inocncia seja demonstrada por provas, de incio, no
admitidas processualmente. A aceitao das provas ilcitas

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 423

que favorecem o ru no deixa de ser uma faceta da aplicao


do princpio da proporcionalidade.
Considerando os subprincpios, o princpio da
proporcionalidade importa em constatar, caso a caso, se a
restrio imposta ao indivduo necessria, adequada e se acaso
se justifica pelo valor que protege. Nas palavras de Georg Ress,
o princpio da proporcionalidade torna possvel a justia do
caso concreto, rompendo com a rigidez das regras legislativas
abstratas.22 Suzana de Toledo Barros23 sugere um roteiro pr-
tico para a verificao da possibilidade de atuao do princpio
da proporcionalidade no caso concreto: o primeiro passo
consiste na constatao de que se trata de uma autntica
restrio; no segundo passo, verificam-se os requisitos de
admissibilidade constitucional da restrio; e, finalmente, faz-
se a comprovao de que a restrio atende ao princpio da
proporcionalidade, tudo atravs dos seguintes questiona-
mentos:
a) A medida restritiva adotada apta a atingir o fim
proposto?
b) Existe outra medida menos gravosa apta a lograr o
mesmo objetivo?
c) O sacrifcio imposto ao titular do direito fundamental
atingido est em uma relao proporcional com a importncia
do bem jurdico que se pretende salvaguardar?
A proibio das provas obtidas por meios ilcitos,
excepcionalmente, no ser observada sempre que estiver em
jogo um interesse de maior relevncia ou outro direito
fundamental com ele contrastante. preciso lembrar que no
existe propriamente conflito entre princpios e garantias
constitucionais, j que estes devem harmonizar-se de modo
que, em caso de aparente contraste, o mais importante

22
BONAVIDES, Op. Cit., p. 390.
23
BARROS, Suzana de Toledo, Op. Cit., p. 156-157.

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424 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

prevalea. Na admisso do princpio da proporcionalidade,


no existe propriamente um conflito entre garantias funda-
mentais. No caso de princpios constitucionais contrastantes,
o sistema faz atuar um mecanismo de harmonizao que submete
o princpio de menor relevncia ao de maior valor social.24
O aplicador da lei deve avaliar a situao do caso concreto
sob diversos aspectos, tais como: a gravidade do caso, a ndole
da relao jurdica controvertida, a dificuldade para o litigante
de demonstrar a veracidade de suas alegaes mediante proce-
dimentos perfeitamente ortodoxos, o vulto do dano causado
e outras circunstncias. 25
Mas a aplicao do princpio da proporcionalidade como
forma de amenizar a rigidez do texto constitucional e convalidar
a utilizao das provas obtidas por meios ilcitos no processo
penal no apresenta consenso na doutrina. H quem prima
pela literalidade da vedao constitucional em carter absoluto,
no aceitando as provas ilcitas em hiptese alguma. Outros
se mostram favorveis desde que as provas ilcitas colhidas
sirvam to-somente para favorecer o acusado a prova ilcita
pro reo (posio quase unnime na doutrina).
A discusso fica mais acirrada em casos de admisso da
prova ilcita pro societate. Pode a Justia Pblica utilizar-se de provas
obtidas por meios ilcitos em prol dos interesses da acusao?
Pode algum ser condenado com base nessas provas? Parcela
significativa da doutrina tem entendido que sim e, aos poucos, j
podemos vislumbrar entendimento jurisprudencial firmado pelos
tribunais nesse sentido ( HC 3.982 RJ, DJU, 26.02.1996).

24
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal.
penal 10. ed. rev. e atual.
So Paulo: Saraiva, 2003. p. 34.
25
MOREIRA, Jos Carlos Barbosa apud SOUZA, Alexandre Arajo de.
A inadmissibilidade, no processo penal, das provas obtidas
por meios ilcitos: uma garantia absoluta? Disponvel em:
<www.congressovirtualmprj.org.br>. Acesso em 05 fev. 2004.
22h45min, p. 2.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 425

Trazendo o raciocnio da paridade das armas no processo,


sob o manto do valor constitucional da igualdade das partes
processuais, e considerando que defesa permitido o uso de
provas ilcitas de acordo com os seus interesses, no encon-
tramos bice a no se aplicar o mesmo tratamento acusao.
O raciocnio no soa esdrxulo se examinarmos, por exemplo,
quo penosa a tarefa de obter meios de prova em relao a
fatos praticados por organizaes criminosas de alta periculo-
sidade, que recorrem a aparatos tecnolgicos de porte na
prtica dos seus diferenciados crimes. H, realmente, srias
dificuldades por parte do Estado para o desmantelamento
de referidas organizaes.
Tal modelo de criminalidade, estruturado em
slidas bases empresariais o que pressupe
organicidade e permanncia implica no
reconhecimento de uma bem urdida
pirmide funcional, do alto da qual os
executivos do crime comandam as aes
de seus asseclas menores e onde a prvia
diviso de atividades, em que cada agente
desempenha o seu papel, dificulta sobre-
maneira o trabalho da Justia que, dificil-
mente consegue atingir e punir os respon-
sveis diretos pelo crime, com claros reflexos
no crescimento da impunidade. Essa privi-
legiada classe de criminosos logra obter, em
face de sua maior capacidade delitiva,
superlativa proteo contra a produo de
provas de sua culpa. Sob tal aspecto, note-se
que a obteno de prova da gerncia desse
tipo de negcio dolorosa e isto porque
os asseclas inferiores, na maioria das vezes,
assumem a culpa e se calam em relao aos
seus protetores, cientes da penalidade

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426 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

imposta queles que falam demais: a pena


capital! 26

Na lio de Capez:
No caso de investigao de crime praticado
por quadrilha ou bando e por associao
criminosa, desde que haja prvia, funda-
mentada, e detalhada ordem escrita da
autoridade judicial competente, toda e
qualquer gravao e interceptao ambien-
tal que estiver acobertada pela autorizao
constituir prova vlida. No existindo a
prvia ordem judicial, a prova somente ser
admitida em hipteses excepcionais, pela
adoo do princpio da proporcionalidade
pro societate. Assim, ser aceita para fins de
evitar uma condenao injusta ou para
terminar com uma poderosa quadrilha de
narcotrfico ou voltada dilapidao dos
cofres pblicos. 27

Quando estivermos diante dos crimes de colarinho


branco, crimes envolvendo grandes sonegadores de impostos,
seqestradores profissionais, nefastos fraudadores do errio,
corruptos, organizaes criminosas e tantos outros que se
beneficiam da aplicao mecnica e indiscriminada das regras
sobre provas obtidas por meios ilcitos com a isolada invocao
do inciso LVI do artigo 5 da Constituio Federal, que
reflitamos se isso no nos conduz a injustias escabrosas, com
reflexos alm do territrio nacional. A prpria Constituio
Federal tratou com bastante severidade os crimes de trfico

26
CFFARO,Luiz Carlos apud SOUZA, op. cit., p. 4.
27
CAPEZ, op. cit., p. 250.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 427

ilcito de entorpecentes, terrorismo e crimes hediondos no


art. 5, inciso XLV.
A postura inflexvel de se desprezar, sempre, toda e
qualquer prova ilcita no razovel. Em alguns casos, o interesse
que se quer defender muito mais relevante do que a intimidade
que se deseja preservar.28 O que se postula a aplicao do
princpio da proporcionalidade, o princpio dos princpios,
seja em benefcio do ru, seja em benefcio da acusao,
salientando, no ltimo caso, a aplicao em hipteses de
excepcional gravidade e mediante circunstanciada motivao judicial.
Mencionar o que seriam hipteses de excepcional gravidade erro
que no se deve incorrer. Evidentemente, o magistrado sentir
quando estiver diante de uma delas, o que requer minuciosa anlise
sobre o caso concreto e um apurado bom senso, qualidades que
no podem faltar a um prolator de justia.
Defendendo a aplicao do princpio da proporciona-
lidade pro societate, Capez, em corrente minoritria, adverte
que o confronto que se estabelece no entre o direito ao
sigilo, de um lado, e o direito da acusao prova, do outro.
Trata-se de algo mais profundo. Quando da acusao, principal-
mente aquela promovida pelo Ministrio Pblico, objetiva-se
resguardar valores fundamentais para a coletividade, tutelados
que so pelas normas penais. Quando o conflito se estabelecer
entre a garantia, o sigilo e a necessidade de se tutelar a vida, o
patrimnio e a segurana (bens tambm protegidos por nossa
Constituio), o juiz, utilizando-se de seu alto poder de discri-
cionariedade, deve sopesar e avaliar os valores contrastantes
envolvidos. A prova, se imprescindvel, deve ser aceita e
admitida, a despeito de ilcita, por adoo ao princpio da
proporcionalidade, a qual deve ser empregada pro reo ou pro
societate.29 Ressalve-se apenas a prtica de tortura que, por

28
Idem, ibidem, passim.
29
Idem, ibidem, pp. 253-254.

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428 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

afrontar os direitos humanos, anteriores e superiores a quais-


quer legislaes, em hiptese alguma pode ser admitida, seja
para que fim for. Quanto proibio da tortura, nada se
flexibiliza; a palavra de ordem nunca.
O princpio da proporcionalidade pode ser aplicado
tambm quanto s provas ilcitas por derivao. Embora o
constituinte, no art. 5, LVI (tampouco h qualquer outra
norma na legislao infraconstitucional neste sentido), no
tenha disposto expressamente sobre as provas ilcitas derivadas,
por questo de finalidade da vedao constituio em tela,
deve-se admitir a contaminao da prova secundria pela ilici-
tude original. Alm disso, a doutrina majoritria e a jurispru-
dncia dos tribunais vm se posicionando contrariamente
admisso das provas ilcitas por derivao. Com a aceitao
da matriz norte-americana da teoria fruits of the poisonous tree,
tudo o que venha a ser obtido como conseqncia daquilo
que seja considerado ilcito est contaminado pela ilicitude e
ilcito da mesma maneira. a que entra o princpio da
proporcionalidade.
Pensemos em uma situao onde pessoas ligadas a
organizaes criminosas, ou at mesmo policiais, forjam uma
prova ilcita para assim impedir o sucesso da investigao em
andamento, de forma que, tudo o que venha a se obter como
conseqncia daquela, seja considerado ilcito.30 Em casos
dessa monta, somente a aplicao do princpio da proporcio-
nalidade pode amenizar o dogma das provas ilcitas por
derivao e convalid-las no processo. Tambm aqui, a observa-
o de todos os passos e subprincpios utilizados na ponde-
rao quanto s provas ilcitas se faz necessria.
O Ministro do STF Moreira Alves, quando do seu voto
no HC 69.912-0 RS (DJ, 26.11.1993), adotou o princpio
da proporcionalidade ao sustentar ser prefervel a admisso de

30
O exemplo de FERNANDES, Antnio Scarance, Op. Cit., p. 89.

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 429

provas ilcitas por derivao a garantir a impunidade de organi-


zaes criminosas.
Mas at mesmo a teoria norte-americana das provas
ilcitas por derivao comporta excees em seu pas de origem,
o que deve ser adaptado realidade jurdica brasileira. Nem
sempre o que d certo no estrangeiro garantia de ser bem
sucedido em solo nacional. Essa adaptao tarefa da doutrina
e da jurisprudncia ptrias. Os nossos tribunais j tm firmado
alguns temperamentos relativos questo, como se v nos
julgados do STJ HC 3.982/RJ e do STF - HC 75.497/SP e
no HC 75.892/RJ.
Quanto interceptao telefnica, quando da sua
regulamentao pela Lei n. 9.296/96, deixou o carter de
prova ilcita que tinha at ento. Entretanto, no que concerne
gravao, que feita pelo prprio interlocutor, esta no foi
abrangida pelo legislador infraconstitucional. Se a conversa
no era reservada, nem proibida a captao por meio de grava-
dor, ensina Capez, nenhum problema haver para aquela
prova.31 De outra sorte, se a conversao era reservada, sua
gravao, interceptao ou escuta constituir prova ilcita, por
ofensa ao direito intimidade (CF, art. 5, X), devendo ser
aceita ou no de acordo com a proporcionalidade dos valores
envolvidos na questo. Se a interceptao em sentido estrito,
a gravao clandestina e a escuta telefnica so feitas fora das
hipteses legais ou sem autorizao judicial, no sero admi-
tidas por representarem afronta ao direito privacidade. Porm,
podero ser aceitas em ateno ao princpio da proporcio-
nalidade.
Da mesma forma acontece no tocante aos dados. Por
uma leitura do art. 5, inciso XII, da Constituio Federal,
parecem ser os dados inviolveis em termos absolutos. Tal
interpretao, porm, assim como acontece com o sigilo das

31
CAPEZ, Op. Cit., p. 250.

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430 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

correspondncias, cede diante da necessidade de equilbrio


entre os bens protegidos constitucionalmente. luz do
princpio da proporcionalidade, o uso de dados (registros
constantes em um computador de uso pessoal, em um dirio
ou quaisquer anotaes pessoais e reservadas, por exemplo)
como provas justificaria a preservao de um outro valor
amparado constitucionalmente e, no caso, considerado de
maior relevncia.
No Cdigo de Processo Penal, quando o legislador
tipifica a inviolabilidade dos segredos no art. 153 do Cdigo
Penal, tambm h de se aplicar o princpio da proporciona-
lidade. Prescreve como crime Divulgar algum, sem justa
causa, contedo de documento particular ou de correspon-
dncia confidencial, de que destinatrio ou detentor, e cuja
divulgao possa produzir dano a outrem: Pena deteno,
de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. 1- Divulgar, sem justa
causa, informaes sigilosas ou reservadas, assim definidas em
lei, contidas ou no nos sistemas de informaes ou banco de
dados da Administrao Pblica: Pena deteno, de 1 (um)
a 4 (quatro) anos, e multa. Note-se que a divulgao do segredo
s admitida quando houver justa causa. A aferio dessa
justa causa envolve, sem dvida, a aplicao do princpio da
proporcionalidade; somente se justifica a divulgao do segredo
como prova quando, em determinado caso, houver necessidade
de se proteger um bem maior, desde que tambm amparado
constitucionalmente.
A crtica costumeira que se faz aplicao do princpio
da proporcionalidade reside no subjetivismo que pode existir
ao pr nas mos do juiz um poder absoluto de apreciao
sobre qual dos valores deve preponderar, fazendo surgir (para
os crticos) riscos quanto segurana nacional.
Eberhard Schmidt, um dos mais ferrenhos opositores
passagem do princpio da proporcionalidade do campo
administrativo para o constitucional, afirma que o emprego

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 431

do princpio da proporcionalidade representa quase sempre


uma deciso, em ltima anlise, difcil de fundamentar, que
corresponde unicamente ao desejo e vontade de quem toma
a deciso, e por isso no pode pleitear reconhecimento geral.
J Wolfram Zitscher adverte que, aplicando o princpio da
proporcionalidade, corre-se o risco de se ver o Direito dissol-
vido na justia do caso particular, enquanto Xavier Philippe
percebe uma ameaa alojada no uso da proporcionalidade,
consistente em provocar o advento de um governo de juzes,
quebrando o equilbrio fundamental dos poderes democrticos
ante o contedo fludo do princpio, possvel objeto de
extenses incontrolveis por seus detratores. 32
No resta dvidas que a aplicao do princpio da
proporcionalidade instrumento de ampliao concreta das
faculdades do juiz, mas se h de convir que o magistrado, ao
proferir deciso acolhendo o princpio da proporcionalidade,
deve motiv-la cuidadosamente e, em caso de acolher aludido
princpio em favor da acusao, admiti-lo somente em situaes
de excepcional gravidade ou de relevncia social. Situaes
onde a necessidade, a adequao e a preponderncia de certos
valores demonstrem ser a nica forma de colocar os pratos da
balana da Justia em nvel igual. A comparao diante do
conflito de princpios fundamentais para verificao qual deles
deva prevalecer procura evitar um mal maior como, por
exemplo, a condenao injusta ou a impunidade de perigosos
marginais.
Como o constituinte elevou o principio da inadmissibi-
lidade das provas obtidas por meios ilcitos categoria de nor-
ma constitucional, inserindo-o no captulo dos direitos indivi-
duais e coletivos, deu-lhe sentido material, e, mesmo norma
regulamentadora ou provimento jurisdicional ho de observar
que a vedao a predominncia. A aplicao do princpio da

32
BONAVIDES, op. cit., p. 390-393.

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432 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

proporcionalidade h de ser regra de excesso, sob risco de


que os magistrados venham a orientar-se to somente pelas
particularidades do caso concreto, perdendo de vista as
dimenses do fenmeno no plano geral.
A depender do caso concreto, acreditamos que quando
os princpios constitucionais entram em confronto, o princpio
da proporcionalidade pode ser utilizado pelo magistrado ao
analisar a prova obtida por meio ilcito. evidente que muito
depende do bom senso do magistrado na valorao e admisso
da prova ilcita. O magistrado, decidindo sobre os valores
constitucionais, far uma proporo e no uma excluso. Julgar
prestigiando o valor onde a vivncia social mais intensa, mas o
ncleo do valor que recebeu menor atribuio no se desfez,
continua vlido, mas no com tanta relevncia como o outro
que predominou no caso concreto. Proibe-se o excesso. Em nome
dessa proibio que tambm deve haver um limite na aplicao
do princpio da proporcionalidade, sob pena de infringir-se o
prprio princpio constitucional proibidor do uso processual
das provas obtidas por meios ilcitos. Nem tanto ao mar, nem
tanto terra, que in mdio est virtus. O equilbrio no momento da
aplicao das regras legais, das normas constitucionais e do
princpio da proporcionalidade, aliado ao bom senso, certamente
garantiro uma soluo mais justa e eficaz ao conflito.

4 REFERNCIAS

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilcitas


interceptaes telefnicas, ambientais e gravaes clandestinas.
3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

BARROS, Suzana de Toledo. O princpio da proporcio-


nalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas
de direitos fundamentais. 2. ed. Braslia: Braslia Jurdica,
2000.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 407-434 jan./jun. 2005

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DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA APLICAO... 433

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11.


ed. rev., atual. e ampl. So Paulo: Malheiros, 2001.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 10. ed. rev. e


atual. So Paulo: Saraiva, 2003.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal


constitucional. 3. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.

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proporcionalidade em direito constitucional e em direito privado
no Brasil. Disponvel em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso
em: 21 novembro 2003, 16h10min, p. 1-22.

GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio


Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhes. As nulidades
no processo penal. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,
1997.

MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Elementos de direito


administrativo. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 1992.

NERY JNIOR, Nelson. Princpios do processo civil na


constituio federal. 6. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais,
2000.

RABONEZE, Ricardo. Provas obtidas por meios ilcitos. 2.


ed. Porto Alegre: Sntese, 1999.

SARMENTO, Daniel. A ponderao de interesses na


constituio federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

SOUZA, Alexandre Arajo de. A inadmissibilidade, no

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434 REBECA MIGNAC DE BARROS RODRIGUES

processo penal, das provas obtidas por meios ilcitos: uma garantia
absoluta? Disponvel em: <www.congressovirtualmprj.org.br>.
Acesso em 05 fev. 2004, 22h45min. p. 1-11.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 407-434 jan./jun. 2005

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 435

LEI 11.106/2005: Novas modificaes


ao Cdigo Penal Brasileiro

Renato Marco
Membro do Ministrio Pblico do Estado de
So Paulo. Mestre em Direito Penal, Poltico e
Econmico; Professor de Direito Penal, Pro-
cesso e Execuo Penal (Graduao e Ps);
Scio-fundador e Presidente da AREJ Aca-
demia Rio-Pretense de Estudos Jurdicos, e ex-
Coordenador; do Ncleo de Direito Penal,
Processo Penal e Criminologia; Membro da
Association Internationale de Droit Pnal (AIDP);
Membro Associado do Instituto Brasileiro de
Cincias Criminais (IBCCrim); Membro do
Instituto de Cincias Penais (ICP); Membro
do Instituto Brasileiro de Execuo Penal
(IBEP); Membro do Instituto de Estudos de
Direito Penal e Processual Penal (IEDPP); Au-
tor dos livros: Lei de Execuo Penal Anotada
(Saraiva); Txicos Leis 6.368/1976 e 10.409/
2002 anotadas e interpretadas (Saraiva), e,
Curso de Execuo Penal (Saraiva).

SUMRIO
1 INTRODUO; 2 SOBRE AS MODIFICAES INTRODUZIDAS; 2.1 Art.
148 do Cdigo Penal; 2.1.1 Sobre o 1, inc. I; 2.1.1.1 Crime praticado contra
companheiro; 2.1.2 Sobre o 1, inc. IV: crime praticado contra menor de 18
(dezoito) anos; 2.1.3 Sobre o 1, inc. V: crime praticado para fins libidinosos; 2.2
Consideraes gerais; 2.3 Art. 215 do Cdigo Penal; 2.4 Art. 216 do Cdigo
Penal; 2.4.1 Sujeito passivo; 2.4.2 Pargrafo nico do art. 216 do Cdigo Penal;
2.5 Causas de aumento de pena; 2.5.1 Sobre o inciso I; 2.5.2 Sobre o inciso II;
2.5.2.1 Texto suprimido; 2.5.2.2 Texto acrescido; 2.5.2.3 Aumento de pena nas
hipteses do inciso II; 2.6 Captulo V - Do lenocnio e do trfico de pessoas; 2.7
Mediao para servir a lascvia de outrem; 2.8 Trfico internacional de pessoas;

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436 RENATO MARCO

2.9 Trfico interno de pessoas; 2.10. Irretroatividade da lei mais severa; 2.10.1.
Reflexo sobre as novas figuras tpicas; 2.10.2. Reflexo sobre a pena de multa cumulada;
3. DISPOSITIVOS REVOGADOS; 3.1. Sobre os incisos VII e VIII do art. 107; 3.2. Sobre
o art. 217; 3.3. Sobre o art. 219; 3.4. Sobre o art. 220; 3.5. Sobre os arts. 221 e 222; 3.6.
Sobre o inciso III do caput do art. 226; 3.7. Sobre o 3o do art. 231; 3.8. Sobre o art.
240; 4. CONSIDERAES FINAIS.

1 INTRODUO

Entrou em vigor no dia 29 de maro de 2005, data de


sua publicao, a Lei n 11.106, de 28 de maro de 2005, que
alterou o Cdigo Penal brasileiro em relao ao disposto nos
arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231, e acrescentou o art. 231-A.
Por fora do disposto no art. 3 da referida lei, o
Captulo V (Do lenocnio e do trfico de mulheres) do Ttulo
VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do
Cdigo Penal, passou a vigorar com o seguinte ttulo: Do
lenocnio e do trfico de pessoas.
Alm das modificaes acima indicadas, e em razo do
disposto em seu art. 5, o novo diploma legal revogou os incisos
VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o
inciso III do caput do art. 226, o 3o do art. 231 e o art. 240,
todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940
Cdigo Penal.
Em sentido amplo, as modificaes foram sensveis e as
novas regras reclamam, desde logo, apreciao reflexiva para
uma melhor compreenso de todos os temas abordados.

2 SOBRE AS MODIFICAES INTRODUZIDAS

Para uma melhor compreenso, passaremos a analisar


cada uma das modificaes introduzidas no Cdigo Penal, na exata
mesma ordem de disposio constante da Lei 11.106/2005, e
depois, em tpico distinto, cuidaremos de tecer consideraes
a respeito das regras revogadas, tudo conforme segue.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 437

2.1 Art. 148 do Cdigo Penal

No caput do 148 do Cdigo Penal esto descritas as


condutas que tipificam o seqestro e o crcere privado. Ao
narr-las o legislador assim disps: privar algum, de sua
liberdade, mediante seqestro ou crcere privado.
A pena prevista para as hipteses do caput de recluso,
de um a trs anos.
Na precisa viso de NLSON HUNGRIA: Entende ROMEIRO
(Dicionrio de direito penal), que o crcere privado um genus,
de que o seqestro uma species: O crime de crcere privado
pode tomar a forma de deteno ou de seqestro; d-se a
deteno quando a violncia exercida sobre a pessoa consiste
no impedimento ou obstculo de sair de um certo e deter-
minado lugar; no seqestro compreende-se o fato de conservar
a pessoa em lugar solitrio e ignorado, de modo que difcil seria
a vtima obter socorro de outro. Parece-nos, entretanto, mais
acertado dizer que o seqestro que o gnero e o crcere privado
a espcie, ou, por outras palavras, o seqestro (arbitrria privao
ou compresso da liberdade de movimento no espao) toma o
nome tradicional de crcere privado quando exercido in domo
privata ou em qualquer recinto fechado, no destinado priso
pblica. Tanto no seqestro quanto no crcere privado, detida
ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no crcere privado,
h a circunstncia de clausura ou encerramento. Abstrada esta
acidentalidade, no h que distinguir entre as duas modalidades
criminais, de modo que no se justificaria uma diferena de
tratamento penal.1
Evidencia-se como objeto jurdico da tutela penal a liberdade
individual, a liberdade de ir e vir, ficar, permanecer; a liberdade
de locomoo, em ltima anlise.

1
HUNGRIA, Nlson. Comentrios ao Cdigo PPenal enal, 3. ed., Rio de
enal
Janeiro, Revista Forense, 1955. v. VI p. 183/184.

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438 RENATO MARCO

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, assim como


qualquer pessoa est em condio de ser sujeito passivo.
O elemento subjetivo o dolo. Basta o dolo genrico para
a configurao, e no h forma culposa.
Admite-se a tentativa.
Conforme CELSO DELMANTO e outros: delito ma-
terial, que se consuma no momento em que ocorre a privao;
permanente, sendo possvel a priso em flagrante do agente,
enquanto durar a deteno ou reteno da vtima.2
Seus estabelecem figuras qualificadas, e as modi-
ficaes feitas pela nova lei esto dispostas no 1.

2.1.1 Sobre o 1, inc. I

O 1 estabelece formas qualificadas em que a pena


de recluso, de dois a cinco anos, e quanto pena nada mudou.
Em sua antiga redao o inc. I do 1 do art. 148 do
Cdigo Penal assim dispunha: Se a vtima ascendente, descen-
dente, cnjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos.
A nova redao tem o seguinte texto: Se a vtima
ascendente, descendente, cnjuge ou companheiro do agente
ou maior de 60 (sessenta) anos.
A proteo penal agora foi estendida ao companheiro do
agente.

2.1.1.1 Crime praticado contra companheiro

Entenda-se: companheiro ou companheira.


Aqui a redao ampliou o rol das formas qualificadas,
tendo em vista a necessidade de tratamento igualitrio entre
cnjuge e companheiro como decorrncia do novo perfil

2
DELMANTO, Celso, e outros. Cdigo PPenal
enal comentado
comentado, 6. ed. So
Paulo: Renovar. 2002. p. 318.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 439

jurdico-constitucional desta ltima situao reguladora de


relacionamentos, que no est amparada nas mesmas formali-
dades que protegem os cnjuges.
Antes da previso expressa no era possvel estender a
forma qualificada aos autores de tais crimes praticados contra
companheiros em razo de estar vedada em Direito Penal a
interpretao ampliativa do alcance da norma de maneira a
ensejar resultado gravoso ao ru.
O sistema de proteo encontrava-se falho, omisso, e
isso ao menos desde a Constituio Federal de 1988, tendo
em vista a nova disciplina indicada para o tratamento das rela-
es entre companheiros ou concubinos, conviventes em unio
estvel.
Questo interessante a ensejar debate nas instncias
judicirias refere-se possibilidade da forma qualificada esten-
der-se aos autores de crimes contra companheiro ou compa-
nheira em se tratando de relao homoafetiva.
Considerando que o ordenamento jurdico no d
proteo a tais relaes; que no h por parte do Estado qual-
quer reconhecimento expresso para efeito de salvaguarda de
direitos, o princpio da reserva legal impede que tais situaes
sejam reconhecidas para o efeito de permitir o elastrio da
norma agora prevista no inc. I, 1, do art. 148 do Cdigo
Penal. Eventual ampliao do conceito de companheiro no
sentido apontado ensejaria punio mais severa ao ru (ou
r), vedada em razo da ausncia de expressa cominao legal.
Incabvel falar, aqui, em aplicao de analogia, interpretao
extensiva etc.
Por outro lado, caso sobrevenha alguma lei regulando a
unio estvel entre pessoas do mesmo sexo, equiparando-as s
relaes estveis entre homem e mulher para efeito de
reconhecimento estatal e salvaguarda de direitos, a regra agora
em comento passar a ser aplicada em relao a tais situaes
hoje desprotegidas em face legislao penal vigente.

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440 RENATO MARCO

Anote-se, por oportuno, que para ter maior coerncia


sistmica preciso que o legislador, entre outras coisas, atualize
o art. 61, inc. II, e, do Cdigo Penal, que apenas se refere ao
ascendente, descendente, irmo ou cnjuge.

2.1.2 Sobre o 1, inc. IV: crime praticado contra me-


nor de 18 (dezoito) anos

A nova lei acrescentou ao 1 o inc. IV com a seguinte


redao: se o crime praticado contra menor de 18 (dezoito)
anos.
Em razo da nova disposio, tambm ser qualificado
o crime quando a vtima no contar com 18 (dezoito) anos
completos, e a pena ser de recluso, de dois a cinco anos.
Se a privao da liberdade ocorrer no dia do aniversrio,
a qualificadora no incidir, pois, em tal caso, a vtima no
poder ser considerada menor de dezoito anos.
A modificao bem vinda, pois, com ela, fica
estabelecida a harmonia no sistema de proteo ao menor de
18 (dezoito) anos, em coerncia com o disposto na segunda
figura do 1 do art. 159 do Cdigo Penal, onde est estabe-
lecido que o crime de extorso mediante seqestro ser qualificado
se o seqestrado for menor de dezoito anos.
Em relao a tal forma qualificada no crime do art.
159, ao seu tempo escreveu NLSON HUNGRIA: A circunstn-
cia de ser a vtima menor de 18 anos (isto , que ainda no
completou tal idade) tambm justifica a agravao especial,
porque torna mnima, quando no nenhuma, a possibilidade
de eximir-se ao seqestrado, ao mesmo tempo que infringida
a incolumidade especialmente assegurada criana e ao
adolescente.3

3
HUNGRIA, Nlson. Comentrios ao Cdigo PPenal.enal. 2. ed. Rio de
Janeiro: Revista Forense. 1958. v. VII p. 73.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 441

Considerando que o crime de seqestro ou crcere


privado de natureza permanente, em algumas situaes a
privao da liberdade poder iniciar quando a vtima for menor
de dezoito anos e terminar aps ela ter completado tal idade.
Ainda ser possvel, em outra situao, que a privao da
liberdade tenha se iniciado antes da nova lei e perdurado para
alm de seu ingresso no ordenamento.
Em ambas as hipteses a qualificadora incidir.
Analisando os efeitos do art. 4 do Cdigo Penal em
relao ao crime permanente, DAMSIO DE JESUS assim
leciona: Nele, em que o momento consumativo se alonga no
tempo sob a dependncia da vontade do sujeito ativo, se iniciado
sob a influncia de uma lei e prolongado sob outra, aplica-se
esta, mesmo que mais severa. O fundamento de tal soluo est
em que a cada instante da permanncia ocorre a inteno de o
agente continuar a prtica delituosa. Assim, irrelevante tenha
a conduta seu incio sob o imprio da lei antiga, ou esta no
incriminasse o fato, pois o dolo ocorre durante a eficcia da lei
nova: presente est a inteno de o agente infringir a nova norma
durante a vigncia de seu comando.4
A tentadora compreenso inversa levaria concluso
no seguinte sentido: se a privao da liberdade iniciar quando
a vtima ainda contar com menos de 18 (dezoito) anos, porm,
se estender para alm da data em que atingir tal idade, a
qualificadora estar afastada.
Se verificada a hiptese exatamente como acima aven-
tada; com o prolongamento da privao da liberdade o ru
estaria a se beneficiar, deixando de incidir em pena de dois a
cinco anos, acabando por ser agraciado com a adequao
tpica de sua conduta no preceito primrio, com pena
cominada entre um e trs anos, de recluso.

4
JESUS, Damsio E. de . Cdigo PPenal
enal anotado. 8 ed. So Paulo:
Saraiva, 1998. p. 15.

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442 RENATO MARCO

Aqui, a prolongao do sofrimento da vtima seria


benfica ao ru, o que no se pode admitir eticamente, tampouco
luz do disposto no art. 4 do Cdigo Penal, conforme anotado.
Na outra situao indicada, onde a privao da liberdade
do menor de dezoito anos teve incio antes da lei e se alongou
para depois de sua vigncia, a natureza permanente do crime
impede, por absoluto, o no-reconhecimento da qualificadora,
hiptese claramente incogitvel.

2.1.3 Sobre o 1, inc. V: crime praticado para fins


libidinosos

A ltima alterao feita no art.148 decorre do inciso


V, que tambm foi acrescido ao 1.
Pela nova previso, se o seqestro ou o crcere privado
for praticado para fins libidinosos, o crime tambm ser
qualificado e contar, obviamente, com pena mais elevada
(recluso, de dois a cinco anos).
Atos libidinosos so aqueles praticados com a finalidade
de satisfazer a lascvia, o prazer sexual.
Se o crime for cometido para o fim de manter relao
sexual (cpula vagnica) ou para a prtica de qualquer ato libidinoso
diverso da conjuno carnal (coito anal ou felao, por exemplo),
a forma qualificada estar presente.
Se alm da privao da liberdade, configuradora de
seqestro ou crcere privado, o ru (ou a r) efetivamente praticar
ato libidinoso diverso da conjuno carnal, contra a vontade
da vtima (art. 214 do CP), ocorrer concurso material de crimes
(art. 69 do CP). Tambm haver concurso material de crimes se
alm do seqestro ou crcere privado o agente submeter a vtima
relao sexual no consentida (art. 213 do CP).
Na hiptese do inc. V, por certo haver muita discusso
a respeito do posicionamento acima adotado, pois no sero
poucos os que entendero que o crime de seqestro ou crcere

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Sem ttulo-6 442 29/8/2006, 20:18


LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 443

privado dever ser considerado crime meio para a prtica do


crime fim atentado violento ao pudor ou estupro,
dependendo do caso.
A melhor exegese, entretanto, no autoriza tal
compreenso, inclusive porque tais crimes prescindem, para sua
configurao, das prticas tratadas no art. 148 do Cdigo Penal.

2.2 Consideraes gerais

Como visto, em relao ao art. 148 do Cdigo Penal


foram feitas alteraes que implicaram novas formas de
adequao tpica qualificada.
Em razo do princpio da anterioridade da lei penal;
da irretroatividade da lei penal mais severa, somente os crimes
praticados nos moldes descritos nas novas qualificadoras aps
a vigncia da lei que estaro sujeitos forma qualificada que
impe punio mais severa. No h qualquer possibilidade de
agravamento de pena em razo das novas disposies no que
tange aos fatos passados, consumados antes do ingresso das
novas disposies no universo jurdico.
De ver-se, entretanto, que o seqestro e o crcere pri-
vado so crimes permanentes, e mesmo que a inicial privao
da liberdade tenha ocorrido antes da vigncia da lei, ocorrendo,
por exemplo, priso em flagrante depois da data em que o
regramento novo passou a ser aplicvel, a tipificao se amoldar
forma qualificada em razo dos efeitos da permanncia,
conforme as observaes acima apontadas, pois em tais
situaes, enquanto durar a permanncia o crime estar em
seu processo consumativo.

2.3 Art. 215 do Cdigo Penal

Com o nomem criminis de posse sexual mediante fraude,


na redao antiga, o art. 215 do Cdigo Penal punia a conduta

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444 RENATO MARCO

de: Ter conjuno carnal com mulher honesta, mediante


fraude (coloquei o itlico).
Agora, conforme a Lei 11.106/2005, a redao do art.
215 passou a ser a seguinte: Ter conjuno carnal com mulher,
mediante fraude.
Conjuno carnal, para os termos da lei, quer dizer
cpula vagnica, relao sexual.
O crime em questo consuma-se com a efetiva conjuno
carnal e somente punido a ttulo de dolo, podendo ser
praticado mediante concurso de pessoas, com possibilidade
de verificao da forma tentada.
O objeto jurdico da tutela penal a liberdade sexual
da mulher.
Sujeito ativo do crime s pode ser o homem, e somente
a mulher honesta estava sujeita a ser vtima de tal ilcito penal,
o que agora foi corrigido, pois a partir da nova lei qualquer
mulher poder ser vtima, sujeito passivo, portanto.
A expresso mulher honesta constitua elemento nor-
mativo do tipo, e a exigncia de honestidade impunha trata-
mento de natureza nitidamente discriminatria.
A mudana agora introduzida ampliou a esfera de
alcance da norma penal incriminadora, pois, se antes da
mudana somente mulher que fosse considerada honesta
estava protegida em sua liberdade sexual pela norma em
comento, agora a proteo penal tem abrangncia indistinta e
no discriminatria em relao ao sexo feminino.
Merece aplauso o reparo legislativo, pois se a figura do
crime de estupro (art. 213 do CP) tambm visa proteo da
liberdade sexual da mulher, seja ela sexualmente honesta ou no
(prostituta pode ser vtima do crime de estupro, RT 700/
355), era sem sentido lgico deixar desprotegida penalmente,
para os fins do crime de posse sexual mediante fraude, a
liberdade sexual da mulher que optou por adotar conduta
sexual de contornos mais frouxos.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 445

A ausncia de honestidade sexual da mulher devassa no


pode constituir motivo para a ausncia de proteo penal, na
exata medida em que aquelas dotadas de menor recato tambm
podem ser submetidas ao de ter conjuno carnal,
mediante fraude.
A ausncia de honestidade sexual nunca constituiu
imunidade fraude que pode ser empregada para fins sexuais,
e no tico deixar sem proteo, como forma de punio
ou patrulhamento da liberdade, aquela que se colocou a
usar de seu erotismo de forma avolumada, com pouco ou
nenhum critrio.
A proteo agora plena e, de certa forma, confirma a
liberdade de cada um no sentido de poder conduzir sua vida
sexual como bem lhe aprouver.
Em termos prticos preciso anotar que inquritos
policiais arquivados no passado, exclusivamente em razo da
comprovada ausncia de honestidade da vtima, no podero
ser agora reabertos apenas em razo da mudana legislativa.
No h como se justificar a aplicao do art. 18 do Cdigo de
Processo Penal na hiptese em testilha, e eventual tentativa
nesse sentido ir configurar flagrante constrangimento ilegal,
sanvel pela via do habeas corpus.
Absolvies impostas em Primeira Instncia em razo
da comprovada ausncia de honestidade da vtima (antes da
nova lei) no podero ser modificadas em grau de recurso com
fundamento exclusivo na mudana legislativa.
Com efeito. A nova regra mais gravosa na medida em
que amplia o alcance da descrio tpica para situaes que
antes no estavam nos limites da tipificao, e os princpios
da anterioridade da lei5 e da irretroatividade da lei penal mais
severa6 impedem a aplicao do texto novo em relao aos

5
Art. 5, inc. XXXIX, da Constituio Federal; art. 1 do Cdigo Penal.
6
Art. 5, inc. LX, da Constituio Federal; art. 2, pargrafo nico, do
Cdigo Penal.

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446 RENATO MARCO

crimes j consumados no passado, sob a gide do antigo


regramento.

2.4 Art. 216 do Cdigo Penal

Encerrando o rol de proteo liberdade sexual quanto


aos crimes praticados mediante fraude, o art. 216 do Cdigo
Penal regula a figura do atentado ao pudor mediante fraude.
Enquanto o art. 215 do Cdigo Penal se refere prtica
de conjuno carnal, assim compreendida a relao sexual entre
homem e mulher, nos termos em que acabamos de expor no
tpico acima, o artigo sob anlise se refere prtica de qualquer
ato libidinoso diverso da conjuno carnal.
Na precisa e oportuna lio de NELSON HUNGRIA, ato
libidinoso todo aquele que se apresenta como desafogo
(completo ou incompleto) concupiscncia.7 E o mesmo
autor ainda ensinou: O ato libidinoso a que se refere o texto
legal, alm de gravitar na rbita da funo sexual, deve ser
manifestamente obsceno ou lesivo da pudiccia mdia. No
pode ser confundido com a simples inconvenincia, nem ser
reconhecido numa atitude ambgua.8
O que distingue o atentado fraudulento ao pudor (art.
216 do CP) do atentado violento ao pudor (art. 214 do CP)
o meio empregado para a prtica dos atos libidinosos.
A mudana na redao do art. 216 foi to severa e radical
quanto acertada.
Enquanto a forma fundamental punia como crime a
conduta de induzir mulher honesta, mediante fraude, a
praticar ou permitir que com ela se praticasse ato libidinoso
diverso da conjuno carnal, com a Lei 11.106/2005 a
tipificao bsica passou a ser muito mais ampla.

7
HUNGRIA, Nlson. Comentrios ao Cdigo PPenal. enal. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revista Forense, 1956. v. VIII p. 131.
8
HUNGRIA, Nlson, Ob., Cit., p. 133.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 447

Com a nova redao, constitui crime de atentado ao


pudor mediante fraude: Induzir algum, mediante fraude, a
praticar ou submeter-se prtica de ato libidinoso diverso da
conjuno carnal (coloquei o itlico).
Houve profunda alterao quanto possibilidade de
sujeio passiva.

2.4.1 Sujeito passivo

Antes, o crime do art. 216 do Cdigo Penal s podia


ser praticado contra mulher, e no bastava a condio de mulher
pura e simplesmente; no era toda e qualquer mulher que
podia ser vtima; era preciso tratar-se de mulher honesta.
Com a retirada do elemento normativo do tipo: mulher
honesta, e a incluso da expresso algum, a sujeio passiva
ficou ampliada consideravelmente, conforme j possvel antever.
No que pertine ao tema mulher honesta, remetemos o
leitor quilo que j foi expendido nas reflexes ligadas ao art.
215 do Cdigo Penal (item 2.3, supra), no que for pertinente.
Quanto ao mais, cumpre anotar que agora o homem
tambm pode ser vtima de crime de atentado ao pudor
mediante fraude. A expresso algum indeterminada quanto
ao sexo, permitindo que tanto o homem quanto a mulher,
seja ela honesta ou no, figurem como vtima.
E era assim que devia ser mesmo. No havia razo lgica
ou jurdica para as restries quanto possibilidade de sujeio
passiva no tocante ao crime em comento.
No se justificava a proteo jurdico-penal to-s mulher
honesta.
Homens e mulheres, indistintamente, podem ser vtima
do crime sob anlise.
A restrio mulher honesta tinha rano discrimi-
natrio, razo maior da mudana imposta em boa hora, seno
tardiamente.

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448 RENATO MARCO

Inclusive, por coerncia, era preciso alinhar o art. 216


do Cdigo Penal ao art. 214 do mesmo Codex, que no
contm restries quanto sujeio passiva, de maneira a
permitir que homens e mulheres sejam considerados vtimas
do crime de atentado violento ao pudor, nos termos de sua
regulamentao.
A lacuna est preenchida.
A discriminao condenvel foi banida e o sistema de
proteo foi aperfeioado.

2.4.2 Pargrafo nico do art. 216 do Cdigo Penal

Para ser coerente com as disposies contidas no caput


do art. 216, foi preciso mudar a redao de seu pargrafo
nico.
A antiga redao era nos seguintes termos: se a ofendida
menor de dezoito e maior de catorze anos.9
Ampliada a sujeio passiva, que agora no alcana
apenas vtima do sexo feminino, no era correto manter na
redao do pargrafo nico a expresso ofendida.
Se a regra no fosse modificada, iria proporcionar
odioso tratamento discriminatrio, com previso de pena
qualificada apenas quando a vtima fosse do sexo feminino,
excluindo a possibilidade de qualificadora quando o
ofendido fosse menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze)
anos de idade.
Substitudo o vocbulo ofendida por vtima, am-
pliou-se a forma qualificada para alcanar vtimas de ambos os
sexos, como deve ser.
A pena prevista para a forma qualificada foi mantida:
recluso, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

9
Pena recluso, de dois a quatro anos.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 449

2.5 Causas de aumento de pena

O art. 226 do Cdigo Penal est no Captulo IV do


Ttulo VI, onde esto as Disposies gerais, e estabelece
causas de aumento de pena para os crimes previstos nos cap-
tulos anteriores, assim entendidos aqueles que se encontram
no mesmo Ttulo VI (Dos crimes contra os costumes), a saber:
Captulo I (Dos crimes contra a liberdade sexual); Captulo II
(Da seduo e da corrupo de menores); Captulo III (Do
rapto), este, agora com todos os seus artigos revogados,
conforme o art. 5 da nova lei.
Suas disposies elencam agravantes especiais das quais
decorre cota fixa de aumento de pena.
O texto antigo era expresso nos seguintes termos: A
pena aumentada de quarta parte: I se o crime cometido
com o concurso de duas ou mais pessoas; II se o agente
ascendente, pai adotivo, padrasto, irmo, tutor ou curador,
preceptor ou empregador da vtima ou por qualquer outro
ttulo tem autoridade sobre ela; III - se o agente casado.
A nova redao est posta nos seguintes termos: A pena
aumentada: I de quarta parte, se o crime cometido com o
concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II de metade, se o
agente ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmo, cnjuge,
companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da
vtima ou por qualquer outro ttulo tem autoridade sobre ela.
Foi revogado o inciso III, conforme est expresso no
art. 5 da nova lei, e sobre tal matria trataremos em tpico
distinto.
Antes da mudana imposta com a Lei 11.106/2005, a
quota fixa de aumento de pena era comum a todas as
modalidades previstas (quarta parte), agora, o aumento ser
de quarta parte apenas na hiptese do inciso I, e de metade nas
situaes do inciso II.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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450 RENATO MARCO

2.5.1 Sobre o inciso I

No que tange ao inciso I, cumpre observar que no


houve mudana de redao no sentido de ampliar ou restringir
o alcance da norma. A mesma previso que antes justificava o
aumento de pena ainda persiste.
Ainda em relao ao inciso I importante destacar que
o dispositivo no se refere, indistintamente, a concurso de duas
ou mais pessoas para o crime, mas ao fato de ter sido o crime
cometido, isto , executado com pluralidade de agentes.10

2.5.2 Sobre o inciso II

Em relao ao inciso II, as mudanas foram considerveis


e buscaram uniformizar o tratamento jurdico-penal dentro de
uma acertada viso sistmica e atualizada do Direito.
No texto legal foram mantidas as seguintes causas de
aumento: se o agente ascendente, irmo (ou irm, entenda-
se), tutor, curador, preceptor ou empregador da vtima ou
por qualquer outro ttulo tem autoridade sobre ela.

2.5.2.1 Texto suprimido

Foi suprimida do texto a figura do pai adotivo.


Obviamente, com tal providncia no quis o legislador
beneficiar o pai adotivo que praticar os crimes a que se refere
o art. 226. E efetivamente no beneficiou.
que desde a edio do Estatuto da Criana e do
Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), e tambm
em razo do Novo Cdigo Civil (Lei 10.406, de 10 de janeiro
de 2002), no mais se justifica, juridicamente, a utilizao da

10
HUNGRIA, Nlson. Comentrios ao Cdigo PPenal. enal. 3. ed. Rio de
Janeiro: Revista Forense, 1956. v. VIII p. 247.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 451

expresso pai adotivo, isso em razo do tratamento jurdico


desde ento dispensado adoo, e notadamente em razo
dos efeitos que dela decorrem.
Em razo do novo tratamento jurdico dispensado
adoo, e dos efeitos que dela resultam, a figura do antigo
pai adotivo agora se enquadra na figura do ascendente, j
expressa na antiga redao do inciso II, que nesse ponto no
sofreu alterao.
Est mantida, pois, a proteo jurdico-penal, e agora
ajustada com a nova realidade jurdica na sempre necessria
viso sistmica.

2.5.2.2 Texto acrescido

Alm do que foi mantido e retirado do inciso II,


conforme analisamos acima, a mudana legislativa acrescentou
que a pena tambm ser aumentada de metade se o agente for:
madrasta, tio, cnjuge ou companheiro.
Como o texto antigo j previa como causa de aumento de
pena o fato do delito ter sido praticado por padrasto, visando
acabar com as discusses sobre a possibilidade de se estender ou
no a causa de aumento para a madrasta, autora de delito de igual
natureza, isso em razo de princpios como o da taxatividade, da
reserva legal etc., a Lei 11.106/2005 ajustou a redao do inciso
II de forma a no permitir a continuidade da discusso.
Alis, o reparo era mesmo necessrio tambm em razo
das demais mudanas institudas com a prpria Lei 11.106/
2005.
Se o agente for tio da vtima, a pena tambm ser
aumentada a partir da vigncia da nova lei. Entenda-se: tio
ou tia.
Tal compreenso no est proibida em razo da ausncia
de previso expressa. Diga-se o mesmo em relao ao compa-
nheiro ou companheira.

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452 RENATO MARCO

certo que o inciso refere-se apenas e to-somente ao


tio (no masculino) e ao companheiro (no masculino), e isso
poderia levar concluso no sentido de que o legislador quis
excluir da incidncia da causa de aumento de pena regulada
no inciso II do art. 226 a tia e a companheira, at porque em
relao ao padrasto cuidou de acrescentar a figura feminina
correspondente (madrasta), cautela no adotada em relao
aos outros dois (tio e companheiro).
Ocorre, entretanto, que buscando o esprito da lei, o
esprito das mudanas impostas, a concluso no pode ser
outra. O que se pretendeu, mesmo, foi a ampliao para o tio,
de sexo masculino ou feminino, e ao companheiro do sexo mas-
culino ou feminino.
Ainda que assim no se entenda, uma outra possibili-
dade de enquadramento da tia e da companheira ser possvel,
se identificada a hiptese estabelecida na parte final do inc. II.
Se por um lado at possvel dizer que o texto legal se
afigura imperfeito quanto ao seu alcance de proteo jurdico-
penal, e isso em razo da ausncia de expressa meno a tais figuras
(tia e companheira), certo que estamos diante de um tpico
caso de interpretao analgica, onde as clusulas especficas esto
seguidas de clusula genrica, e isso em razo da parte final do
inciso II onde se l: ... preceptor ou empregador da vtima ou por
qualquer outro ttulo tem autoridade sobre ela.
Sendo assim, se a agente for tia ou companheira, exer-
cendo, a qualquer ttulo, autoridade sobre a vtima, estar justificada
a causa de aumento (embora com outro fundamento).
Maior discusso, entretanto, ficar para a hiptese de
companheiro ou companheira, isso em razo da questionvel
autoridade que um possa exercer sobre o outro.
No que tange aos conviventes em relao homoafetiva,
reiteramos o que j ficou anotado por ocasio das observaes
ao art. 148 do Cdigo Penal (item 2.1.1.1. Crime praticado contra
companheiro), para onde remetemos o leitor.

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 453

Quanto figura do cnjuge, no h qualquer questio-


namento. A previso refere-se ao cnjuge do sexo masculino e
tambm ao cnjuge do sexo feminino.

2.5.2.3 Aumento de pena nas hipteses do inciso II

As causas descritas no inciso II agora ensejam aumento


de metade da pena (antes o aumento era de quarta parte).
No que pertine incidncia da nova regulamentao
sobre fatos j consumados antes de sua vigncia, preciso ter
em vista as disposies dos arts. 1 e 4 do Cdigo Penal, que
esto amparados no art. 5, incs. XXXIX e XL da Constituio
Federal.

2.6 Captulo V - Do lenocnio e do trfico de pessoas

Conforme o art. 3 da Lei 11.106/2005, o Captulo V


do Ttulo VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial
do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Cdigo
Penal, passou a vigorar com o seguinte ttulo: Do lenocnio e
do trfico de pessoas.
O ttulo passou de: Do lenocnio e do trfico de
mulheres para: Do lenocnio e do trfico de pessoas (coloquei
o itlico).
A mudana foi necessria em razo das modificaes
introduzidas nos arts. 227 e 231 do Cdigo Penal, conforme
veremos abaixo.

2.7 Mediao para servir a lascvia de outrem

Sob o nomem criminis de mediao para servir a lascvia


de outrem o art.227 do Cdigo Penal tipifica a conduta de
induzir algum a satisfazer a lascvia de outrem, estabelecendo
pena de recluso, de um a trs anos para a forma simples.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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454 RENATO MARCO

As formas qualificadas esto elencadas nos 1e 2.


Em conformidade com o disposto no 3, se o crime
cometido com o fim de lucro, aplica-se tambm multa.
A nova lei deu maior abrangncia ao 1 do art. 227,
que na redao antiga tinha o seguinte texto: Se a vtima
maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o
agente seu ascendente, descendente, marido, irmo, tutor ou
curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educao,
de tratamento ou de guarda (coloquei o itlico).
A nova redao est nos seguintes termos: Se a vtima
maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o
agente seu ascendente, descendente, cnjuge ou companheiro,
irmo, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para
fins de educao, de tratamento ou de guarda (coloquei o itlico).
Como se v, a expresso marido foi substituda por
cnjuge ou companheiro.
De melhor rigor tcnico e em sintonia com as regras
que integram o sistema jurdico vigente, a mudana merece
aplauso.
Enquanto a previso antiga se referia apenas ao marido,
cnjuge do sexo masculino, portanto, agora fala em cnjuge
ou companheiro. Leia-se: cnjuge do sexo masculino ou
feminino; companheiro ou companheira.
No que tange aos reflexos incidentes sobre os fatos prati-
cados sob a gide do regramento antigo, preciso destacar
que no houve qualquer abrandamento em relao ao marido
que cometeu tal crime, visto que a forma qualificada quanto a
este permaneceu intacta, somente com nova linguagem tcnica,
qual seja: cnjuge.
Por outro vrtice, se a conduta fora praticada antes da
nova lei por cnjuge do sexo feminino; por companheiro ou
companheira, no estar submetida ao novo tratamento penal.
Quanto a estes, somente a partir da vigncia da nova lei
que se submetero a seus efeitos penais severos.

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Sem ttulo-6 454 29/8/2006, 20:18


LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 455

Quanto ao mais, para evitar o enfaro da repetio,


remetemos o leitor ao que foi dito por ocasio das
consideraes ao art. 148 do Cdigo Penal (2.1.1.1. Crime
praticado contra companheiro), no que for pertinente.

2.8 Trfico internacional de pessoas

Outra mudana trazida pela Lei 11.106/2005 est no


art. 231 do Cdigo Penal, antes denominado crime de trfico
de mulheres.
Agora o nomem criminis passou a ser trfico internacional
de pessoas, e isso em razo da nova redao do art. 231 e tam-
bm para destacar sua diferena com o novo tipo penal trazido
com a lei nova, denominado trfico interno de pessoas,
expresso no art. 231-A, objeto de apreciao no tpico seguinte.
A redao antiga do art. 231 tinha o seguinte teor:
Promover ou facilitar a entrada, no territrio nacional, de
mulher que nele venha exercer a prostituio, ou a sada de
mulher que v exerc-la no estrangeiro (coloquei o itlico).
Para a forma fundamental a pena era de recluso, de
trs a oito anos.
Com a nova redao o sistema repressivo passou a punir
como crime de trfico internacional de pessoas as seguintes
condutas: Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no
territrio nacional, de pessoa que venha exercer a prostituio
ou a sada de pessoa para exerc-la no estrangeiro (coloquei o
itlico para destacar as mudanas).
Foi mantida a pena de recluso no mesmo patamar,
contudo, agora ela dever ser aplicada cumulativamente com
pena de multa. Antes da nova lei a imposio de pena de
multa s se verificava se o crime fosse cometido com o fim de
lucro, conforme a redao do 3 que acabou revogado. Para
o legislador, agora, tal crime sempre ser praticado com o fim
de lucro, concluso que no de todo desacertada.

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Sem ttulo-6 455 29/8/2006, 20:18


456 RENATO MARCO

A mudana introduzida no caput atualizou o tipo penal


com a realidade dos dias hodiernos.
O verbo intermediar, includo no caput, tem considervel
alcance e por certo proporcionar o enquadramento de muitas
condutas convergentes prtica do crime em questo, antes
de difcil conformao e ajustamento s hipteses tpicas.
Enquanto as condutas de promover ou facilitar tm alcance
mais restrito, a intermediao completa o rol das condutas tpicas
que normalmente esto ligadas s infraes de tal natureza e
permite no deixar a descoberto; fora da esfera de proteo
penal, razovel nmero de comportamentos que se ajustam
ao verbo.
Enquanto qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime
em questo, na antiga redao somente a mulher que poderia
ser sujeito passivo.
A nova redao deu ao crime uma redefinio e tambm
maior alcance, pois, com a retirada do monoplio do sexo
feminino em relao ao plo passivo, agora qualquer pessoa
poder nele figurar: homem ou mulher.
A restrio foi derrubada.
Sensvel realidade dos dias atuais e conhecendo as
prticas que envolvem a explorao sexual em sentido amplo,
o legislador reconheceu a necessidade de ampliar, e por isso
ampliou, a proteo penal tambm ao sexo masculino, pois
j no novidade a comercializao e explorao sexual do
homem, o que era quase inimaginvel no tempo em que se
redigiu o Cdigo Penal brasileiro.
Foram mantidas as redaes dos 1 2 e as penas
reclusivas exatamente como antes. Acrescentou-se apenas a pena
de multa, agora cumulativamente aplicada.
A revogao do 3, expressamente anotada no art. 5
da Lei 11.106/2005, deve-se seguinte mudana: a pena de
multa que antes era condicionada ao fim de lucro agora
obrigatoriamente cumulativa e est expressa nos precedentes.

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Sem ttulo-6 456 29/8/2006, 20:18


LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 457

Haveria, pois, flagrante impertinncia em imaginar


possvel a permanncia do 3 no ordenamento.

2.9 Trfico interno de pessoas

Alm da nova tipificao ampliada em relao ao art.


231, a Lei 11.106/2005 tambm criou novo tipo penal.
Para o aperfeioamento do sistema punitivo, alm de
punir o trfico internacional de pessoas agora com maior am-
plitude, o legislador cuidou de tipificar o crime de trfico
interno de pessoas, estabelecendo como crime previsto no art.
231-A do Cdigo Penal as condutas de: Promover, intermediar
ou facilitar, no territrio nacional, o recrutamento, o trans-
porte, a transferncia, o alojamento ou o acolhimento da pes-
soa que venha exercer a prostituio. A pena abstratamente
prevista de recluso, de 3 (trs) a 8 (oito) anos, e multa,
exatamente como a pena prevista para o art. 231, caput, e por
fora do disposto em seu pargrafo nico, ao crime de trfico
interno de pessoas tambm so aplicveis as regras dos 1 e
2 do art. 231.
O objeto jurdico da tutela penal a honra sexual; a lei
tambm visa proteger os bons costumes.
Qualquer pessoa poder figurar como sujeito ativo, in-
dependentemente do sexo, ocorrendo o mesmo em relao
ao sujeito passivo.
O elemento subjetivo do tipo o dolo. Basta o dolo gen-
rico.
A consumao ocorre com a prtica efetiva de pelo me-
nos uma das condutas descritas no tipo penal, sendo admissvel
a forma tentada (art. 14, II, co CP).
A figura do art. 231-A tipo alternativo, de conduta
variada.
Promover significa dar impulso, colocar em execuo (de qual-
quer forma); intermediar quer dizer servir de intermedirio ou

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458 RENATO MARCO

mediador; facilitar, aqui, tem o sentido de desembaraar, tornar


mais simples, dar maior agilidade.
Recrutamento a reunio; agrupamento ou alistamento
de pessoas. No preciso que o recrutamento envolva vrias
pessoas; basta uma para a configurao do ilcito.
Transporte o deslocamento de um lugar a outro. En-
quanto o agente estiver promovendo o transporte, o crime
ser de natureza permanente, assim considerado aquele cuja
conduta delituosa se mantm no tempo e no espao.
Transferncia significa mudana de um lugar a outro. H
uma sutil diferena entre esta conduta e a anterior (transporte).
Enquanto transporte tem o sentido de levar algum para local
em que se pratica a prostituio (para os fins do tipo legal), a
transferncia pressupe a mudana de um lugar onde se pratica
a prostituio para outro de igual destinao.
Alojamento local especfico destinado ao abrigo de
pessoas.
Acolhimento, para os termos do tipo penal, significa
receber algum em local no destinado ao alojamento. Aco-
lher dar amparo, guarida; dar refgio, proteo ou confor-
to fsico.
preciso que as prticas acima analisadas tenham por
alvo pessoa que venha a exercer a prostituio. Exercer a
prostituio prostituir-se; dedicar-se ao comrcio sexual;
satisfao voluntria da lascvia de outrem em troca de van-
tagem.
Para a adequao tpica preciso, ainda, que tais con-
dutas tenham ocorrido no territrio nacional, pois se uma
das prticas tocar territrio estrangeiro a figura penal ser a do
art. 231 (observados os parmetros da tipificao), e no a do
art. 231-A.
A pena abstratamente prevista afasta a possibilidade de
suspenso condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95),
e eventual condenao at 4 (quatro) anos no impedir a

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 459

substituio da privativa de liberdade por restritiva de direito,


desde que presentes os demais requisitos exigidos em lei. Se
fixada a privativa de liberdade at o limite acima indicado, seu
cumprimento poder iniciar-se no regime aberto, observadas
as disposies do art. 33 c.c. o art. 59, ambos do Cdigo
Penal.

2.10 Irretroatividade da lei mais severa

2.10.1 Reflexo sobre as novas figuras tpicas

As inovaes acrescidas ao 1 do art. 227 e ao caput


do art. 231, e bem assim a nova figura penal do art. 231-A,
obviamente no se aplicam aos casos consumados antes da
vigncia da Lei 11.106/2005.
Princpios de contornos constitucionais como o da
anterioridade da lei (princpio da legalidade ou reserva legal) e
da irretroatividade da lei penal mais severa (art. 5, incs. XXXIX
e XL, da CF), tambm previstos no art. 1 do Cdigo Penal,
impedem a retroao do alcance do texto novo para atingir
situaes consumadas ao tempo em que a regulamentao
normativa era outra, mais benfica.
De tal sorte, para os termos do novo art. 227 do Cdi-
go Penal, somente os crimes praticados por cnjuge do sexo
feminino; companheiro ou companheira, aps a vigncia da
nova regulamentao penal que se submetero forma qua-
lificada do 1.
Nessa mesma linha argumentativa, as inovaes dos arts.
231 e 231-A s incidiro sobre fatos praticados sob a gide da
nova ordem penal. Observe-se, contudo, que em relao
prtica do verbo transporte, previsto no art. 231-A, onde a
conduta de natureza permanente, poder ocorrer hiptese
em que ele venha a perdurar vrios dias. Sendo assim, se inici-
ado antes da vigncia da lei nova, o transporte se estender para

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460 RENATO MARCO

alm do incio da exigncia do texto novo, poder ocorrer


priso em flagrante, por exemplo, e regular processo com a
nova definio tpica.

2.10.2 Reflexo sobre a pena de multa cumulada

A experincia da vida contempornea, pautada pela febre


do enriquecimento, indica que muitas vezes a pena de multa pode-
r surtir efeitos econmicos e psicolgicos no ru, bem mais seve-
ros que a ameaa ou imposio de pena privativa de liberdade.
foroso reconhecer, entretanto, que para tal realida-
de seria necessrio um sistema de execuo mais eficaz do que
o determinado com a redefinio da pena de multa como
dvida de valor, nos termos da Lei 9.268/96.
Pelas mesmas razes expostas no item anterior, a pena
de multa agora cumulativamente imposta no obriga o aplicador
da lei em relao aos fatos passados, consumados antes da
vigncia do texto novo.
Para os casos consumados antes da Lei 11.106/2005, com
ou sem investigao ou processo de conhecimento iniciado
antes de 29 de maro de 2005 (data em que a lei entrou em
vigor), j no subsiste qualquer possibilidade de aplicao de
pena de multa, ainda que o crime tenha sido cometido com o
fim de lucro, e isso em razo da revogao expressa do 3 do
art. 231 (cf. art. 5 da nova lei).
Aqui foroso reconhecer que a pena de multa deixou
de existir para os casos passados. No h como se restabelecer
a vigncia do 3. A revogao expressa causa intransponvel
e obstativa de tal possibilidade.

3 Dispositivos revogados

Alm das modificaes anteriormente apontadas e


analisadas, e em razo do disposto em seu art. 5, a Lei 11.106/

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 461

2005 revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217,


219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o 3o
do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7
de dezembro de 1940 Cdigo Penal.
Passaremos, a seguir, anlise dos dispositivos revogados,
seguindo a mesma ordem de disposio acima indicada.

3.1 Sobre os incisos VII e VIII do art. 107

O art. 107 do Cdigo Penal estabelece de forma


exemplificativa algumas causas de extino da punibilidade,
no sendo demais lembrar que punibilidade a possibilidade
jurdica de o Estado impor a sano, conforme a objetiva
lio de Damsio de Jesus.11
Os incisos VII e VIII do art. 107 do Cdigo Penal
estabeleciam como causas de extino da punibilidade o
casamento da vtima com o agente e o casamento da vtima
com terceiro, respectivamente.
Conforme o texto revogado do inc. VII do art. 107 do
Cdigo Penal, a punibilidade seria extinta: pelo casamento
do agente com a vtima, nos crimes contra os costumes,
definidos nos Captulos I, II, e III do Ttulo VI da Parte
Especial deste Cdigo.
Nos termos do revogado inc. VIII do art. 107 do C-
digo Penal, tambm seria extinta a punibilidade: pelo casa-
mento da vtima com terceiro, nos crimes referidos no inciso
anterior, se cometidos sem violncia real ou grave ameaa e
desde que a ofendida no requeira o prosseguimento do
inqurito policial ou da ao penal no prazo de 60 (sessenta)
dias a contar da celebrao.
As disposies acima transcritas abrangiam os crimes
de estupro, atentado violento ao pudor; posse sexual mediante

11
Cdigo PPenal
enal anotado. 8. ed. So Paulo: Saraiva, s. d. p. 280.

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462 RENATO MARCO

fraude, atentado ao pudor mediante fraude, seduo, cor-


rupo de menores e rapto (arts. 213 a 221 do CP), sendo
imprescindvel observar as ressalvas legais que determinavam
limitaes ao alcance das regras.
Impunha-se a extino da punibilidade em razo da
reparao pelo casamento. Entendia-se que o matrimnio limpava
a honra da vtima manchada pelo crime, constituindo, em tese,
razo suficiente para a terminao dos questionamentos
judiciais acerca dos fatos.
Segundo parece ser o entendimento do legislador, o
novo tratamento penal apresentado com a Lei 11.106/2005
no permitia a continuidade dos dispositivos antigos.
Agora, o casamento no mais constitui causa de extino
da punibilidade, e bem por isso algumas vezes a vtima poder
unir-se em matrimnio com o ru, livre e espontaneamente;
formar famlia, e depois ver o cnjuge condenado pela prtica
da conduta precedente, ensejadora de procedimento na esfera
criminal.
Haver discrepncia de conseqncias, pois em se
tratando de crimes de ao penal privada a vtima poder optar
pelo no ajuizamento da ao; pela renncia ao direito de
queixa; pelo perdo; e ainda, aps o ajuizamento da queixa-
crime, provocar a extino da punibilidade pela perempo
(art. 60 do CPP), caso seja seu desejo, por exemplo, aps
casar-se com o ru.
De outro vrtice, em se tratando de crime de ao penal
pblica, tais institutos so inaplicveis, e sem a possibilidade
de extino da punibilidade em razo do casamento, poder
ocorrer a situao acima aventada, danosa estabilidade da
unio familiar.
O tempo dir se a mudana foi acertada, entretanto,
desde j possvel antever situaes onde haver srio problema
sociofamiliar que poderia ser evitado com a permanncia das
regras extirpadas do art. 107 do Cdigo Penal.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 463

3.2 Sobre o art. 217

O polmico crime de seduo estava previsto no art.


217 do Cdigo Penal e, segundo a redao tpica, assim se
aperfeioava o ilcito: seduzir mulher virgem, menor de de-
zoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjuno car-
nal, aproveitando-se de sua inexperincia ou justificvel con-
fiana.
Nos dias atuais o crime em questo era de difcil configu-
rao em razo da necessria conjugao das elementares que o
integravam. Era preciso que a vtima fosse virgem; menor de
dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime
cogitvel ser o de estupro); inexperiente e ingnua, ou que
depositasse justificvel confiana em seu sedutor.
De longa data a melhor doutrina reclamava a revogao
do tipo penal em comento. A jurisprudncia tambm demons-
trava a mesma tendncia.
No era difcil perceber que a previso legal no estava
ajustada aos dias atuais.
A perda da virgindade pela mulher, nas condies do
art. 217, j no precisava da proteo penal.
H mais. Qualquer proteo que se pretendesse estabe-
lecer sobre o objeto jurdico da tutela penal em questo (a
integridade ou virgindade da menor) prescindia de tipificao
conforme o art. 217, haja vista o teor das disposies contidas
nos arts. 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra vio-
lncia ou grave ameaa, e as regras dos arts. 215 e 216 que
cuidam das hipteses em que so empregados meios fraudu-
lentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta
proteo da moral sexual dos adolescentes de ambos os se-
xos, j que o tipo penal se refere a ... pessoa maior de catorze
e menor de dezoito anos....
Como se v, no havia justificao lgica ou jurdica
para a permanncia do crime de seduo no ordenamento

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464 RENATO MARCO

jurdico, e bem por isso a revogao do tipo penal bem


vinda.
Em relao ao antigo crime de seduo ocorreu abolitio
criminis, sendo aplicvel a regra do art. 2 do Cdigo Penal.

3.3 Sobre o art. 219

O art. 219 do Cdigo Penal cuidava do crime de rapto


violento ou mediante fraude.
Conforme a narrao tpica, configurava referido crime:
Raptar mulher honesta, mediante violncia, grave ameaa ou
fraude, para fim libidinoso. A pena era de recluso, de dois a
quatro anos.
A nova lei aboliu a expresso mulher honesta do
Cdigo Penal e tambm cuidou de acrescentar, entre outras
regras j analisadas, o inciso V ao 1 do art. 148, com a
seguinte redao: Se o crime praticado com fins libidinosos.
O art. 148 tipifica o crime de seqestro ou crcere
privado, contendo formas qualificadas no 1, sendo estas
punidas com recluso, de dois a cinco anos.
Em razo do disposto no inc. V, acrescentado ao 1 do
art. 148, deixou de ser necessria a previso contida no art. 219
do Cdigo Penal, visto que a conduta deste ltimo artigo passou
a ser tratada naqueles dispositivos (art. 148, 1, inc. V).
A partir da Lei 11.106/2005, privar algum (homem
ou mulher) de sua liberdade, para fins libidinosos, constitui
crime de seqestro ou crcere privado qualificado, e no rapto.

3.4 Sobre o art. 220

Com o nome de rapto consensual, o art. 220 do Cdigo


Penal estabelecia pena de deteno, de um a trs anos, se a raptada
fosse maior de catorze e menor de vinte e um anos, e o rapto
fosse praticado com seu consentimento (coloquei o itlico).

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LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 465

Em relao a tal ilcito ocorreu abolitio criminis (art. 2


do CP).
Muito embora alguns possam sustentar que referida
tipificao agora se encontra no inc. IV do 1 do art. 148,
acrescido com a Lei 11.106/2005, tal concluso no acertada,
pois nas hipteses de seqestro ou crcere privado o
consentimento vlido da vtima impede a tipificao.

3.5 Sobre os arts. 221 e 222

O art. 221 do Cdigo Penal trazia causas de diminuio


de pena aplicveis aos crimes dos arts. 219 e 220.
O art. 222, tambm se referindo aos arts. 219 e 220,
tratava do concurso de crimes envolvendo rapto.
Em razo da revogao dos arts. 219 e 220, no havia
qualquer razo justificadora para a permanncia dos dois artigos
subseqentes no ordenamento jurdico.
Todo o contedo do Captulo III (Do rapto) do Ttulo
VI (Dos crimes contra os costumes), arts. 219, 220, 221 e
222; foi revogado expressamente.

3.6 Sobre o inciso III do caput do art. 226

Em sua antiga redao o artigo 226, III, do Cdigo


Penal, determinava o aumento de quarta parte da pena, em
relao aos delitos a que est vinculado, se o agente era casado
ao tempo do ilcito.
A nova redao do art. 226 est nos seguintes termos:
A pena aumentada: I de quarta parte, se o crime
cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II
de metade, se o agente ascendente, padrasto ou madrasta,
tio, irmo, cnjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor
ou empregador da vtima ou por qualquer outro ttulo tem
autoridade sobre ela.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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466 RENATO MARCO

Foi revogado o inciso III, conforme est expresso no


art. 5 da nova lei.
A regra mais benfica alcana no s os fatos praticados
aps a vigncia da nova lei, mas tambm aqueles consumados
antes, e isso por fora do disposto no pargrafo nico do art.
2 do Cdigo Penal, verbis: A lei posterior, que de qualquer
modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda
que decididos por sentena condenatria transitada em
julgado.

3.7 Sobre o 3o do art. 231

Referindo-se ao que antes era denominado crime de


trfico de mulheres, e que agora passou a ser trfico interna-
cional de pessoas, o 3 do art. 231 do Cdigo Penal tinha
a seguinte redao: Se o crime cometido com o fim de
lucro, aplica-se tambm multa.
A revogao do 3 do art. 231 do Cdigo Penal,
expressamente anotada no art. 5 da Lei 11.106/2005, deve-
se seguinte mudana: a pena de multa que antes era
condicionada ao fim de lucro agora obrigatoriamente cumulativa
e est expressa nos 1 e 2 do mesmo artigo.
Haveria, pois, flagrante impertinncia e descompasso
em imaginar possvel a permanncia do 3 no ordenamento.
revogao era mesmo de rigor, diante da modificao
imposta.

3.8 Sobre o art. 240

O crime de adultrio estava previsto no art. 240 do


Cdigo Penal e tinha por objeto jurdico da tutela penal a
organizao jurdica da famlia e do casamento.12
12
DELMANTO, Celso, e outros. Cdigo PPenal
enal comentado
comentado, 6. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002. p. 505.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 466 29/8/2006, 20:18


LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAES AO CDIGO PENAL ... 467

Mesmo reconhecendo a importncia da proteo jur-


dica da famlia e do casamento, de se concluir que hoje no
mais se justifica a proteo penal outorgada pelo legislador de
1940.
No se trata de render homenagens ao adultrio. O que
foroso reconhecer que o casamento e a famlia encontram
outras formas de proteo no ordenamento jurdico, a exem-
plo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Cdigo Civil, que
determina o dever de fidelidade recproca entre os cnjuges.
Conforme assevera Claus Roxin13 , o direito penal de
natureza subsidiria. Ou seja: somente se podem punir as
leses de bens jurdicos e as contravenes contra fins de assis-
tncia social, se tal for indispensvel para a vida em comum
ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direi-
to pblico, o direito penal deve retirar-se.
O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da
poltica social, o que demonstra a natureza fragmentria ou
subsidiria da tutela penal. S deve interessar ao direito penal
e, portanto, ingressar no mbito de sua regulamentao, aqui-
lo que no for pertinente a outros ramos do direito.
As regras previstas na legislao civil so apropriadas e
suficientes, e sendo assim, a revogao do tipo penal em que
se encontra o crime de adultrio medida juridicamente sau-
dvel e condizente com a realidade jurdico-social em que vi-
vemos.

4 Consideraes finais

Conforme visto, as modificaes introduzidas no


Cdigo Penal foram significativas e tendentes atualiza-
o do sistema penal repressivo no que pertine aos deli-
tos alcanados.

13
Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 28.

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468 RENATO MARCO

Embora sujeita a crticas pontuais, fora convir que,


em sentido amplo, a nova lei contm mais acertos do que
erros, contrariando a sofrvel realidade da produo legislativa
no campo penal nos ltimos tempos, o que se espera seja o
primeiro passo na escolha de um novo caminho.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 435-468 jan./jun. 2005

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 469

TIPO PENAL ABERTO:


INTEGRAO DA NORMA PENAL
COM AUXLIO DA SOCIOLOGIA
LUHMANNIANA

Roberta Virgnia de Souza e Silva


Advogada, professora de Direito Processual
Penal da Faculdade Pernambucana FAPE,
mestranda em Direito pela Faculdade de
Direito do Recife UFPE.

SUMRIO
INTRODUO. 1 A FUNO DO DIREITO COMO GENERALIZAO DE
ESTRUTURAS DE EXPECTATIVAS. 2 PROCESSAMENTO DE DESAPONTA-
MENTOS. 3 INSTITUCIONALIZAO DE EXPECTATIVAS COMPORTA-
MENTAIS. 4 CONCLUSES. 5 REFERNCIAS

INTRODUO

Existem determinados tipos penais, denominados


abertos, cuja aplicao ao caso concreto leva o aplicador do
direito a recorrer prpria sociedade para determinar o sentido
e o alcance desta norma. Exemplo de tipo penal aberto, sobre
o qual iremos nos reportar, consiste no estabelecido no art.
13, 2 do Cdigo Penal, in verbis:

A omisso penalmente relevante quando o


omitente devia e podia agir para evitar o resultado.
O dever de agir incumbe a quem:

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 469-485 jan./jun. 2005

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470 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

a) tenha por lei obrigao de cuidado, proteo ou


vigilncia;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de
impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco
da ocorrncia do resultado. (grifamos)

O pr-falado artigo trata do dever objetivo de cuidado


ou risco permitido, ou seja, modos de informar o compor-
tamento devido e esperado pelo ordenamento jurdico, o que
consiste em uma expectativa normativa, utilizando a expresso
de Luhmann1 . A determinao do dever de cuidado mostra-
se mais vaga na alnea b, a qual trata da assuno da responsa-
bilidade de impedir o resultado por outra forma que no a
derivada da lei. Logo, necessariamente na sociedade que o
aplicador ir buscar se efetivamente houve a assuno da posio
de garante da no ocorrncia de um resultado lesivo. Surge,
ento, a necessidade de determinar de um modo objetivo este
dever, dito dever objetivo de cuidado.
Buscaremos analisar um critrio para determinao da
posio de garante prevista no CP, procurando integrar a norma
penal aberta com auxlio da sociologia luhmanniana. Indaga-se
no presente trabalho como determinar se um indivduo agiu
com culpa ou quando responsabiliz-lo por ter se omitido
quando podia e tinha o dever de agir para evitar o evento lesivo.

1 A FUNO DO DIREITO COMO GENERALIZA-


O DE ESTRUTURAS DE EXPECTATIVAS

Numa sociedade moderna duas caractersticas esto


presentes: a complexidade e a contingncia. A primeira ocorre
em razo da existncia de diversas possibilidades de realizao,
1
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983. p. 57.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 469-485 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 470 29/8/2006, 20:18


TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 471

implicando uma seleo forada entre essas diversas opes; a


segunda, contingncia, a ocorrncia de uma possibilidade
diferente da esperada, o que gera um perigo de desaponta-
mentos e necessidade de assumir riscos. Da se afirmar que
quanto maior a liberdade de comportamento maior a com-
plexidade das expectativas que os indivduos mantm uns em
relao aos outros2.
O trato social somente se mostra possvel atravs de
expectativas de expectativas ou reciprocidade das expectativas, ou
seja, um comportamento atravs do qual um indivduo
representa sobre a expectativa que o outro tem dele. Com a
complexidade e a reciprocidade de expectativas aumenta o
risco de erros3. Para que isto no ocorra, as simplificaes pre-
cisam preencher sua funo estruturalizante, ainda quando
ocorra o erro.
Os sistemas sociais se utilizam de um estilo de reduo,
atravs de uma reduo generalizante, ou induo, estabili-
zando expectativas objetivas, observando-se que as expectativas
podem ser verbalizadas na forma de dever ser, mas tambm
podem estar acopladas a determinaes qualitativas, delimita-
es da ao, regras de cuidado etc. Assim, as regras de cuidado
podem ser obtidas pelas normas jurdicas e consiste numa
reduo generalizante de expectativa, como a expectativa dos
pais em relao aos cuidados que a bab deve ter em relao a
seus filhos, o turista em relao ao guia turstico. Sem essa
expectativa no possvel falar em responsabilidade no caso
de negligncia ou omisso.
Existe, portanto, uma complexidade sustentvel frente
a desapontamento sustentvel que implica a aceitao de riscos.
Esses riscos permitidos so aceitos na medida em que
observadas determinadas regras os danos efetivos dificilmente
ocorram, permitindo o desenvolvimento da sociedade. A ttulo
2
Idem. Ibdem, p. 47.
3
Idem. Ibdem, p. 50.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 469-485 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 471 29/8/2006, 20:18


472 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

de exemplo, o trfego automobilstico implica desenvolver


uma atividade arriscada, mas observadas as normas tcnicas e
jurdicas de velocidade mxima permitida, obedincia ao
semforo etc, o risco efetivo de acidente por imprudncia no
ir se verificar e algum dano porventura advindo ser atribudo
ao acaso, posto que no fora frustrada uma expectativa.
A regra diminui a sobrecarga da conscincia que o
indivduo deve ter acerca das expectativas de terceiros, principal-
mente no contexto da complexidade e da contingncia. A
vigncia das normas se fundamenta na impossibilidade de
flexibilidade da estrutura normativa, de no assimilao das
regras ao comportamento divergente4.
Podemos divisar dois tipos de expectativas: as cognitivas
e as normativas. As primeiras so tambm denominadas pr-
normativas, se forem desapontadas sero adaptadas realidade,
havendo uma assimilao no campo ftico. Enquanto que as
expectativas normativas, se forem desapontadas, as expectativas
sero mantidas e a discrepncia ser atribuda ao ator, de modo
que no h uma assimilao, embora tambm se verifique no
campo ftico.
A estabilizao de estruturas que preestabelecem um
padro de comportamento como resposta ao comportamento
anterior permite o conhecimento de leis naturais ou o
estabelecimento de normas e, ainda, a disponibilidade de
mecanismos que processem os desapontamentos, como a
imposio de penas, mantendo a estrutura. Isso implica a
aceitao de riscos podendo-se optar por modificar a expecta-
tiva desapontada, adaptando-a realidade (expectativa cogniti-
va) ou manter a expectativa e protestar contra o comportamento
divergente (expectativa normativa). Essa diferenciao ,
portanto, definida em termos funcionais, buscando a soluo
de determinado problema (problemtica).

4
Idem. Ibdem. p. 53.

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Ainda que transgredida, a expectativa normativa


permanece, sendo a discrepncia atribuda ao ator; a expectativa
continua vigente, mesmo havendo desapontamento porque a
vigncia institucionalizada, independente da satisfao ftica
da norma.
Pode-se assimilar (expectativa cognitiva) ou no
(expectativa normativa), mas ambas preenchem a mesma
funo: reduzir o risco de desapontamentos. Esses desaponta-
mentos podem conduzir a formao de normas, pela normati-
zao a posteriori, uma vez que se tem a conscincia de no ser
possvel renunciar a essa expectativa5. Nem todos os desapon-
tamentos conduzem a normatizao: as expectativas cognitivas
devero ser normatizadas quando vitais segurana e
integrao social das expectativas.
O art. 13, 2, b permite normatizao de expectativas
frustradas, de desapontamentos, na medida em que determi-
nados comportamentos podem ser enquadrados como
omissivos ou culposos. A expectativa de um determinado
padro de comportamento, que se traduz no papel, ser
determinada por um terceiro, que exerce um papel determi-
nado, o de juiz, conforme veremos no item que trata da institu-
cionalizao.
Podemos apontar outras caractersticas que diferenciam
a norma do nvel pr-normativo de expectativas: a satisfao
da expectativa bvia de modo que a transgresso se torna
irrelevante ou tida como involuntria; inexiste um empenho
para conduzir o divergente ao comportamento esperado, sendo-
lhe atribudo um papel divergente, como um anormal e, sendo
exceo, no atinge a regra e se cria uma nova expectativa sobre
esse indivduo; ocorre uma individualizao da implementao
de normas, a qual no est vinculada a padres universais; essa
implementao ocorre sem uma delimitao temporal de suas

5
Idem. Ibdem. p. 59.

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474 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

conseqncias; no se exige a articulao de expectativas


constantes6.
A separao entre expectativas cognitivas e normativas
exige que o risco de desapontamentos seja transportado para o
interior das expectativas. Numa perspectiva cognitiva, isso
implica um recuo a situaes hipotticas sobre a realidade, o
que exige instrumentos que permitam a assimilao de desapon-
tamentos, como a normalizao em decorrncia da constante
repetio ou inevitabilidade de tais desapontamentos. Na
perspectiva normativa, implica uma projeo contraftica, como
a realizada pelo direito estatal, demonstrando a sustentao da
expectativa e, especificamente, a vigncia da norma.
Existe a possibilidade de assimilao de desapontamen-
tos na expectativa normativa, bem como a possibilidade de o
desapontamento na expectativa cognitiva no conduzir
adaptao. Na primeira hiptese, existe limite para a credibili-
dade interna em expectativas normativas constantemente
desapontadas: as placas de estacionamento proibido, cercadas
de carros estacionados, podem deixar de provocar expectativas
normativas, gerando apenas expectativas cognitivas, como
observar se h fiscalizao de trnsito no local. Ademais, existe
uma elasticidade na formulao de algumas normas que permite
procedimentos de adaptao, como o aperfeioamento da
legislao pela jurisprudncia (assimilao apcrifa) ou alteraes
legais do direito (assimilao legitimada)7.
As contradies acima referidas favorecem o equilbrio
institucional porque a expectativa original persiste, apenas pode
assimilar ou no, dependendo das circunstncias:

a prpria opo pelo estilo normativo ou cognitivo


das expectativas mutvel, e que, no correr do tempo,

6
Idem.Ibdem. p. 61.
7
Idem.Ibdem. p. 63.

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 475

a norma pode deslocar-se do estilo normativo para a


tolerncia do cognitivo (ou vice-versa). Mesmo assim
persiste a normatizao da expectativa no mais
normativa, que continua expectvel8.

A expectabilidade das expectativas dos outros uma


conquista da sociedade, do convvio humano, e a base para
a formao e manuteno de expectativas normativas, ainda
quando desapontadas.
Com base nessas diferenciaes nos processos reflexivos
de expectativa, Luhmann procura fundamentar o direito, no
na hierarquia das fontes do direito9.

A diferenciao funcional da sociedade moderna,


por sua vez, tornou evidente o fato de que s o direito
produz direito, sendo que a obedincia s normas
jurdicas advm do prprio processo de formao
dessa normatividade, do fato de esta se caracterizar
como uma comunicao social. Assim, se uma
expectativa normativa no se mantm generalizada,
no h que se falar em norma jurdica. bvio que
uma certa frustrao sempre haver, seno nem seria
possvel distinguir o dever-ser das normas jurdicas
10
do ser .

Naturalmente que existe a possibilidade de haver frustra-


es da expectativa normativa, do contrrio dever ser seria igual
ao ser. Mas existem mecanismos que buscam estabilizar as
expectativas, conforme veremos no tpico seguinte.
8
Idem.Ibdem. p. 65.
9
Idem.Ibdem. p. 66.
10
TORRES, Ana Paula Repols. A questo da obedincia s normas na
perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann
Luhmann. Dispo-
nvel em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 07 abr. 2005
s 11:00 horas.

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476 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

2 PROCESSAMENTO DE DESAPONTAMENTOS

Em face do desapontamento so necessrias estruturas


seletivas de expectativas que reduzam a contingncia e
complexidade das sociedades modernas, uma vez que aquele
pode anular o efeito redutor da expectativa estabilizada,
conduzindo ao imprevisvel.
Isso devido necessidade de expectativas contrafticas,
que se antecipam ao desapontamento (normativas), para
canalizar o processamento de desapontamentos, estabilizando
as estruturas da sociedade.

No basta definir determinadas normas, p. ex.


jurdicas, por meio da ameaa de sanes, mas
necessrio considerar que a experimentao
normativa s se constitui a partir da preciso de
possveis comportamentos no caso de desaponta-
mentos. preciso que seja determinvel se, e
quando, ser possvel manter as expectativas frente
a desapontamentos. Mesmo em caso de desapon-
tamentos a expectativa ainda deve poder ser
manifestada. Ela deve permanecer intacta enquanto
elemento da auto-imagem do desapontado e
enquanto base de seu comportamento subseqente
(...). Ela tem que encontrar, apesar de tudo, um lugar
e um sentido no mundo11.

O desconhecimento da norma gera uma proteo contra


questionamentos e ainda protege o desapontado da obrigao
de reagir. Ao contrrio, quando o comportamento desviado
se mostra de tal modo evidente, sendo impossvel ignor-lo, o

11
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983, p. 68.

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 477

desapontado precisa ter comportamentos alternativos que


expressem a continuidade da vigncia da expectativa desapon-
tada. Neste sentido, diante de um desapontamento de uma
expectativa normativa, como a que prev o dever de cuidado,
o direito possibilita ao desapontado recorrer ao penal,
imputando o fato a ttulo de culpa ou de omisso, sendo
imposta uma sano, a qual ir confirmar a norma e a expecta-
tiva. Assim, questiona-se o comportamento divergente, no a
vigncia da norma.
O desapontamento, contudo, deve ser exceo, pois a
vigncia da norma est relacionada ao carter excepcional do
desapontamento. A fim de superar o distanciamento entre a
expectativa normativa e o comportamento (o que diferencia
dever ser e ser) se utiliza a sano, comunicando que a expectativa
frustrada permanece sendo expectvel, possibilitando a
estabilizao contraftica.
Nos ordenamentos jurdicos modernos, a explicao do
comportamento divergente tem seus limites na cincia, e no
na magia ou na religio.
A institucionalizao ir selecionar as expectativas teis
em uma sociedade, elevando as expectativas cognitivas em
normativas. E esse processo de institucionalizao ser estudado
a seguir.

3 INSTITUCIONALIZAO DE EXPECTATIVAS
COMPORTAMENTAIS

Toda sociedade, conforme sua prpria complexidade,


precisa prever um volume suficiente de diversidade de
expectativas normativas, e possibilit-la estruturalmente, por
exemplo por meio da diferenciao de papis12.
Neste ponto, necessrio definirmos papel social, uma
vez que esse conceito pode conduzir a determinao do papel
12
Idem.Ibdem. p. 77.

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478 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

de garante da no ocorrncia de um resultado, especialmente


para efeitos do art. 13, 2, b, CP. As expectativas comporta-
mentais podem se referir a determinados papis. Papis so
13
feixes de expectativas, no dizer de Luhmann , o padro de
comportamento esperado (exigido, permitido ou proibido)
de pessoas que ocupam determinada posio social ou o
conjunto de maneiras de agir que caracteriza o comporta-
mento dos indivduos no exerccio de determinada funo
em determinada coletividade14, independente do conheci-
mento pessoal sobre o indivduo. Assim, o papel de guia gera
a expectativa de que este atue de modo a zelar pela segurana
do grupo de turistas; caso ocorra um acidente, o guia poder
ser responsabilizado criminalmente por omisso, uma vez que
assumiu a posio de garante, prevista no art. 13, 2, CP.
No caso do guia, a expectativa se baseia na institucionalizao
do papel, pois a expectativa compartilhada por terceiros, os
quais se orientam tambm pelo papel e no pelo indivduo
enquanto pessoa15 .

As expectativas garantidas juridicamente s se vem


frustradas por uma conduta objetivamente
imperfeita, sem ter em conta aspectos individuais.
Pois como essas expectativas (como todas) se diri-
gem a pessoas, vale dizer, a portadores de um papel,
o requisito mnimo de uma frustrao a violao
de um papel16.

De acordo com o grau de complexidade de cada cultura,


o papel pode estar mais ou menos generalizado, havendo sempre,
13
Idem. Ibdem, p. 101
14
LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral
Geral. So Paulo: Atlas, 1990. p. 102.
15
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983. p. 101.
16
JAKOBS, Gnther. Sociedade, Norma e PPessoa
essoa
essoa. Teoria de um Direito
Penal Funcional. So Paulo: Manole, 2003.

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 479

entretanto, uma possibilidade de variao. Quanto mais


17
complexa e varivel uma cultura, maiores as variaes dos papis .
Podemos divisar trs nveis de comportamento para cada
papel social: (1) comportamento exigido, essencial para o
desempenho do papel; (2) comportamento permitido, para o
qual no foram estabelecidas normas fixas e rgidas pelo grupo
ou sociedade; e (3) comportamento proibido, contra o qual
o grupo ou a sociedade reage atravs de sanes negativas, como
o fato de ser proibido depredar as instalaes, incentivar a
desordem ou se vestir inadequadamente18. O desempenho
adequado do papel ocorre quando o indivduo se amolda ao
19
comportamento exigido e procura se abster do proibido (j
que no se pode falar em total absteno do comportamento
proibido porque as expectativas podem ser frustradas).
Como garantes destacam-se os indivduos participantes
das organizaes constitutivas da sociedade e cujos deveres so
predeterminados atravs do papel que administram num
determinado segmento do fato social, de acordo com um
padro20. Assim, para se determinar a causalidade prevista no

17
LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral
Geral. So Paulo: Atlas, 1990. p. 100.
18
Aqui cumpri assinalar a importncia atribuda ao grupo para determina-
o do comportamento adequado, a exemplo do que as teorias
(criminolgicas) da subcultura delinqente afirmam: o crime resulta da
interiorizao e da obedincia a um cdigo moral ou cultural que torna
a delinquncia imperativa. (...) Ao obedecer s normas subculturais, o
delinquente mais no pretende do que corresponder expectativa dos
outros significantes que definem o seu meio cultural e funcionam como
grupo de referncia para efeito de status e de sucesso (DIAS, Jorge de
Figueiredo e Andrade, COSTA, MANUEL DA. Criminologia
Criminologia. O Ho Ho--
mem delinquente e a Sociedade Crimingena. Coimbra:
Coimbra, 1997. p. 291) (grifamos). Nestas teorias, parte-se do princ-
pio de que as culturas so delinqentes e no as pessoas porque as
subculturas compartilham valores que para a cultura dominante um
desvalor, como a pixao e a formao de galeras.
19
Idem. Ibdem, p. 101.
20
JAKOBS, Gnther. La Imputacin Objetiva em Derecho PPenal enal
enal. Co-
lmbia: Universidad Externado da Colmbia, 1996. p. 25.

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480 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

art. 13, 2, CP (relao entre a omisso e o resultado lesivo),


necessrio recorrer sociedade:21 socialmente adequado ante-
cede ao prprio direito; segundo o penalista Jakobs, com
ntida influncia de Luhmann, sua legitimao se obtm do
fato de que constitui uma parte da configurao social que
deve ser preservada.
Existe uma relao social que envolve aqueles que
esperam e aqueles que atuam conforme ou contrrio norma.
Mas, como as relaes so complexas, surge a necessidade da
participao de terceiros que desenvolvem um papel social
especfico. Devemos observar que nem sempre todos podem
esperar tudo concretamente e nem todos podem satisfazer
todas as expectativas. Surge, portanto, a necessidade de um
terceiro, o qual se destaca dos demais, tematizando um deter-
minado fato. Todas essas funes (ator, aquele que espera e
terceiro) so exercidas praticamente de modo simultneo.
O terceiro atua como o norte das expectativas e compor-
tamentos, como neutralizador de conflitos, a quem confiada
a instituio. Eles so invocados para exercer o papel de
espectador, so, portanto, provocados.
O mecanismo de institucionalizao surge na escolha
de sentidos, tema da ateno comum. Para atuar no sentido
proposto preciso supor uma definio aceita do fato, dirigida
a uma determinada direo (finalidade) e conduzir os partici-
pantes aos seus respectivos papis. A continuidade dessa parti-
cipao depende do consenso genrico. Nisso consiste a reduo
institucional a qual, embora reduza, no retira toda a complexi-
dade porque continua a existir outra possibilidade de com-
portamento. Conforme Luhmann, sua funo reside em uma
distribuio tangvel de encargos e riscos comportamentais,
que tornam provvel a manuteno de uma reduo social

21
JABOBS, Gnther. A Imputao objetiva no Direito PPenal
enal
enal. So Pau-
lo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 20.

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 481

vivenciada e que do chances previsivelmente melhores a certas


projees normativas22.
Esclarecedora a lio de Berthier, acerca do sentido:

La comunicacin es un sistema constitutivo de


sentido pues toda comunicacin conlleva la
posibilidad de enlazarse de manera selectiva con
otra comunicacin que le es congruente dentro
de un horizonte finito de probabilidades de
enlazamiento. Dicho de otra manera, toda
comunicacin producida por el sistema es actual
pero al mismo tiempo supone potencialidad pues
es capaz de desencadenar una segunda comu-
nicacin que no podr evadir la comunicacin
anterior. El sentido delimita las relaciones que son
permitidas dentro de la comunicacin, es un
vehculo implicado en la comunicacin para poder
orientarse. Como tal, no esta referido a ningn
tipo de elemento externo como pudiera ser la
conciencia aunque la conciencia enlaza sus
operaciones tambien de acuerdo a sentido. El
sentido slo es sentido para la comunicacin y es
lo que le permite realizar su autopoiesis. Es por
ello que siguiendo a Fritz Heider, Luhmann define
al sentido como un medio para el enlazamiento
de la comunicacin, esto es, a travs del sentido
una serie de elementos acoplados de manera
amplia (expectativas de comunicacin) logran
condensarse en formas, esto es, en comunica-
23
ciones .

22
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983. p. 81.
23
B ERTHIER , Antonio. La Sociologia de la Complejidad de Niklas
Luhmann
uhmann. Disponvel em: <http://www.conocimientoysociedad.com>.

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482 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

Atravs do reconhecimento de sentidos, as expectativas


comportamentais se tornam autnomas, tornando-se
referncia. Assim, um comportamento divergente no justifica
o abandono da expectativa; essa solidificao se fundamenta
na abstrao (como sntese de diversas expectativas), com
expresses contrafticas (normas) normalmente expectveis.
Uma expectativa correspondida quando o ator possui
conscincia de sua necessidade e espera que suas expectativas
no sejam frustradas. Exemplos disso a formao de filas
por ordem de chegada (expectativa cognitiva) e a observncia
do semforo (expectativa normativa).
Aquele que possui expectativas contrrias instituio
tem que contraditar as bases comportamentais j aceitas pelos
demais; precisa assumir uma liderana arriscada, no sentido
de no estar protegido por expectativas pr-estabilizadas,
gerando resistncias. So necessrios argumentos que desesta-
bilizem a instituio vigente, alm de, geralmente, terem que
fornecer uma proposta alternativa, capaz de manter em
harmonia o convvio social. Quando se generaliza esse mecanis-
mo seletivo, surgem os terceiros.
A estabilizao social de expectativas sobre expectativas
deve estar dirigida ao consenso de todos, do contrrio o con-
senso seria facilmente revogvel, no podendo ser estabilizado
no tempo24.
Pergunta-se: o que ser esperado normativamente do garante
previsto no art. 13, 2, CP. A resposta: o juiz, enquanto terceiro,
ir institucionalizar expectativas comportamentais, estabelecendo
os papis dos atores. Isto porque as partes envolvidas desenvolvem
suas expectativas e aes tendo por base a expectativa do terceiro
que desenvolve uma funo institucionalizante reflexiva, que se
refere ao prprio processo de institucionalizao.

24
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983. p. 84.

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 483

A reflexividade do processo de institucionalizao


possibilita que esse processo seja em si mesmo
diferenciado funcionalmente, acrescentando-lhe assim
capacidades em si incompatveis, ou seja, realizando
uma maior abstrao, uma maior preciso, uma maior
segurana motivacional em um nico ponto o papel
do juiz e a partir da transferindo-as a toda a estrutura
de expectativas25.

Deste modo, v-se que a determinao dos papis so


essenciais para a estabilizao das estruturas sociais. Contudo,
isto no implica que eles sejam invariveis, uma vez que a
complexidade gera a necessidade de suas modificaes.

4 CONCLUSES

O direito fundamenta sua imposio atravs de


expectativas que as pessoas atribuem umas s outras. Essas
expectativas de expectativas utilizam como fonte de estabi-
lizao da sociedade um determinado padro. E esse padro
pode ser obtido atravs da determinao de papis sociais, ou
seja, da institucionalizao (ou normatizao) de expectativas
cognitivas essenciais ao convvio social ou da sano.
Nas subculturas delinqentes, os indivduos obedecem
s normas subculturais tendo por base a expectativa do grupo
de referncia para obter prestgio social. Na cultura dominante
a referncia deve ser o papel do terceiro, ou melhor, a ex-
pectativa do juiz e no a subcultura delinqente.
O art. 13, 2, CP deixa clara a necessidade de se recorrer
funo institucionalizante exercida pelo papel do juiz, o qual
funciona como neutralizador de conflitos, buscando comu-
nicar que, mesmo com eventuais frustraes, a expectativa

25
Idem. Ibdem, p. 93.

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484 ROBERTA VIRGNIA DE SOUZA E SILVA

normativa permanece plausvel. Outro mecanismo para


comunicar a vigncia da norma a imposio de sano.
Contudo, no a imposio de sano por si s que minimiza
as frustraes, mas a conscincia de que o comportamento do
ator, de quem espera e do terceiro necessrio para a manu-
teno do prprio instituto que antecede ao direito estatal.
A contrafactualidade das normas significa a permanncia
das expectativas generalizadas em face de expectativas isoladas
contrrias s mesmas (e a observar o carter da excepcionalidade
do desapontamento), sendo que essas normas somente sero
modificadas se novas expectativas normativas se generalizarem
na comunicao social, seja atravs de uma assimilao apcrifa
ou de alteraes legais do direito.
As expectativas normativas contribuem com o aumento
das possibilidades de expectativas, essencial numa sociedade
moderna, marcada pela contingncia e complexidade, possibi-
litando a formao do direito estatal. Assim, a funo do
direito exercer sua eficincia seletiva, baseada na generalizao
de expectativas comportamentais normativas.

5 REFERNCIAS

BERTHIER, Antonio. La Sociologia de la Complejidad de Niklas


Luhmann. Disponvel em: <http://www.conocimientoysociedad.com>.
Acesso em: 7 de abril de 2005 s 11:30 horas.

DIAS, Jorge de Figueiredo e Andrade, Manuel da Costa.


Criminologia. O Homem delinquente e a Sociedade
Crimingena. Coimbra: Coimbra, 1997.

JAKOBS, Gnther. A Imputao Objetiva no Direito Penal.


So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 469-485 jan./jun. 2005

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TIPO PENAL ABERTO: INTEGRAO DA NORMA PENAL COM... 485

__________. Sociedade, Norma e Pessoa. Teoria de um


Direito Penal Funcional. So Paulo: Manole, 2003.

LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. So Paulo: Atlas,


1990.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 1983.

TORRES, Ana Paula Repols. A questo da obedincia s normas


na perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.
Disponvel em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em
07 abr. 2005 s 11:00 horas.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 469-485 jan./jun. 2005

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486 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 487-513 jan./jun. 2005

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 487

A ARGUMENTAO NO SISTEMA
DO COMMON LAW
Um Estudo Comparado em Face do
Civil Law

Rosngela Arajo Viana de Lira


Bacharela em Direito pela Universidade
Catlica de Pernambuco-UNICAP. Mestre
em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife e exerce o cargo de Professora Ad-
junta I na Universidade Catlica de
Pernambuco-UNICAP, onde ministra as
disciplinas: Hermenutica Jurdica e Teo-
ria Geral do Direito Civil.No ano de 1997/
1998 foi agraciada com Bolsa de Estudos
concedida pelo Governo Americano atra-
vs da Comisso Fullbright junto George
Washington University-(Universidade
George Washington) em Washington,DC,
Estados Unidos da Amrica. No mesmo
perodo, realizou estgio junto ao Federal
Judicial Center (Centro Judicirio Federal),
tambm em Washington,DC,USA. Nas
duas instituies realizou pesquisas sobre o
Sistema Jurdico Norte-Americano.

SUMRIO
1 INTRODUO; 2 HISTRIA DO INSTITUTO; 3 INEXATIDO DOS CON-
CEITOS; 4 DIFERENA ENTRE OS DOIS SISTEMAS; 5 APLICAO DO
RACIOCNIO JURDICO; 6 O RACIOCNIO PELOS PRECEDENTES; 7 O
COMMON LAW EM FACE DA LEI UM CASO AMERICANO; 8 CONCLU-
SO; 9 REFERNCIAS

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 487-513 jan./jun. 2005

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488 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

1 INTRODUO

O Direito Comparado considerado um Direito novo,


onde, no dizer de Caio Mrio, o estudioso desse ramo
contaminado pelo entusiasmo e pelo idealismo.1
que o Direito Comparado j se faz uma necessidade
no sentido de habilitar aqueles que trabalham com o Direito,
a exemplo de o advogado bem defender o seu cliente, o Juiz
ao se deparar diante de determinados casos, entre outros. Desta
forma, pode-se perceber a vital importncia que o reconhe-
cimento do aproveitamento da experincia alheia pode
contribuir para o desenvolvimento do direito nacional.
Em face da necessidade ora apontada, este artigo tem
por objetivo a abordagem do tema: A Argumentao no Sistema
do Common Law, almejando a realizao de um estudo compa-
rado entre os dois sistemas: Common Law e Civil Law.
Ao Common Law pode-se atribuir diversos significados
em dependncia da variedade de expresso que a este termo se
contrape.
No seu mbito mais vasto, Common Law, em contraposi-
o ao Civil Law, se refere ao inteiro corpo do sistema jurdico
da Inglaterra e daquela parte do mundo a que o direito ingls
alcana, a exemplo dos Estados Unidos, cujo sistema deriva
do direito ingls.2
O termo de direito anglo-americano ou de Common Law
anglo-americano so usados com significado equivalente
daquele indicado.
Civil Law, ao invs, est a indicar o Direito Romano,
seja no sentido do Direito Romano Clssico, ou seja, na forma

1
PEREIRA,Caio Mrio da Silva. Direito Comparado, Cincia Autnoma..
Revista da Faculdade de Direito da UFMG,
UFMG p.34.
2
ZWARENSTEYEN,Hendrik. O Processo do raciocnio Jurdico no Sistema
do Common Law. Revista Acadmica da FFaculdade
aculdade de Direito
do Recife
Recife, p.128.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 487-513 jan./jun. 2005

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 489

de Ius Commune da Europa Continental do sculo XVII, XVIII


e XIX, ou seja, aquele sistema jurdico em que na sua formao
o Direito Romano h contribudo fundamentalmente, e em
particular modo o direito italiano, francs, alemo e de outros
pases da Europa Continental e da Amrica Latina.
Quando contraposta ao Statute Law, Common Law
significa aquela parte do direito dos pases de Common Law,
que no contida como o direito escrito o , em um estatuto
- emanao legislativa particular -, mas, aquele direito no escrito
ou criado pelo juiz, e constitudo do complexo dos preceden-
tes jurisprudenciais das Courts of Records.
O Civil Law e o Common Law constituem os dois grandes
ramos do direito desenvolvido na civilizao ocidental. E, por-
tanto, se os dois termos vm em seus significados mais vastos
porque se encontram diante dos dois sistemas que ho dado
vida ao direito que governa o mundo.
Trataremos primeiramente de oferecer uma sntese
histrica sobre a origem e evoluo deste sistema. Comenta-
remos a respeito do seu conceito e diferenas, no nos olvidando
de esclarecer alguns aspectos sobre a aplicao do seu raciocnio
jurdico, atravs do sistema dos precedentes3 , enfocando alguns
exemplos de casos ocorridos nos Estados Unidos.
Caio Mrio j afirma que:
o aproveitamento da experincia alheia contribui
para o desenvolvimento do Direito Nacional atravs
de uma boa crtica, que saber escoimar o produto
importado daquilo que no adaptvel s condies
estranhas ao meio prprio e originrio.4

Por esta razo, o desejo de acrescentar uma pequena


parcela para este aproveitamento se constitui no objetivo deste
artigo.
3
Em ingls: Case Law.
4
PEREIRA,Caio Mrio da Silva . Op. Cit. p.39.

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490 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

2 HISTRIA DO INSTITUTO

O Common Law , de uma maneira peculiar, o resultado


da prpria histria.O seu desenvolvimento se manifesta
ininterrupto desde a conquista da Inglaterra em 1606.
Sabe-se que, de fato, Guilherme, O Conquistador, deci-
diu aparecer como o rei legtimo do trono ingls e continuar
a tradio do direito anglo-saxo. Somente o fato da conquista,
unido ao gnio de Guilherme em organizar uma administrao
eficiente, foram decisivos para o inteiro curso da evoluo
jurdica na Inglaterra, o que levou a uma afirmao de um
forte poder soberano no reino inteiro.
Atravs desta forte posio da coroa foi possvel cen-
tralizar a administrao da justia, realizando assim a unificao
do direito na Inglaterra muito antes que de um ambicioso e
similar objetivo como este pudesse acontecer na Frana, Itlia,
Alemanha ou em outro pas do continente europeu.
Em momento antigo, a Curia Regis emerge de um
complexo como um corpo judicirio separado com compe-
tncia dos negcios fiscais da coroa e da manuteno da paz
do reino, ou seja, da paz do rei. Exercitou, ento, ampla juris-
dio no reino e assim desenvolveu uma corte central e a
continuidade dela conservada at os dias presentes. Os seus
juzes foram os criadores do Common Law ingls.
Assim, o Common Law ingls se desenvolveu como uma
lei nica criada pelos juzes e com todas as peculiaridades carac-
tersticas de um direito que no foi determinado por um
prncipe, ou uma legislatura, ou um estudioso terico ou
prtico, mas por um grupo restrito de juzes, imersos em uma
longa e ininterrupta posio de grande importncia, os quais
eram possuidores de uma notvel independncia.
A rpida centralizao da administrao da justia foi
acompanhada da formao de uma classe forense igualmente
centralizada e organizada.
Percebe-se que havia uma tendncia dos prncipes da

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 491

Europa Continental se circundarem de conselheiros educados


pelo Direito Romano. Os reis Tudor e Stuart favoreceram o
ensinamento do Direito Romano e tentaram introduzir um
novo mtodo de administrao governamental da justia.
Em pases a exemplo da Alemanha, em que a justia era
de tal forma fracionada entre as inumerveis cortes locais, a tal
ponto que em nenhum local se podia desenvolver uma
profisso legal organizada, podia, desta forma, tal objetivo
alcanar sucesso.
Na Inglaterra, porm, a agresso do Direito Romano
resultou em uma resistncia por parte das profisses legais
fortemente organizadas que, atravs de sua aliana com o
partido do Parlamento, contribuiu amplamente com a queda
de Carlos I, com sua tendncia absolutista e seu esforo de
substituir a Corte do Common Law por uma nova corte de
juristas educados no Direito Romano. Todavia, o desenvol-
vimento do Common Law ingls no se deu somente pela
influncia do Direito Romano.
Seja no tempo antigo ou nos tempos modernos, os
juzes ingleses tm tido conscincia do Direito Romano e tm
dele feito amplo uso em suas atividades.
Os ensinamentos romansticos foram particularmente
relevantes entre aqueles membros da ordem judiciria que
pareciam dotados de uma mentalidade cientfica tal a alargarem
o seu conhecimento e a sistematizarem o direito em tratados
tericos.
O grande Bracton, a exemplo, conhecia a fundo o
trabalho de Azzone e grande parte do seu trabalho: De Landibus
Angliae manifesta um forte sabor romanstico. A influncia dos
ensinamentos romansticos foi de novo forte no perodo do
humanismo, no sculo XVIII, quando o Lorde Mansfield,
escocs de nascimento, foi a figura dominante na corte inglesa,
e novamente durante o sculo XIX, quando os pandectistas
alemes influenciaram boa parte da magistratura e do foro ingls.

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492 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

Nos dias atuais, o Direito Romano tambm ocupa o


seu lugar no curriculum das universidades inglesas. Todavia, a
sua influncia sobre o direito ingls foi diferente quando se
verifica as outras partes do continente europeu. Por outro lado,
em alguns setores do Direito Privado, o conceito do Direito
Romano foi reprimido, especialmente no Direito das Obriga-
es. O conceito de contrato, que estranho ao Common Law
clssico, de origem romanstica, de origem romanstica
tambm o conceito de negligncia, que foi introduzida pela
Law of Torts inglesa da metade do sculo XIX.
A idia de Civil Law influenciou tambm outra parte
do Direito Privado, como o Direito de Servido e o Direito
de Sociedade.
De particular peso so aqueles campos que foram
desenvolvidos fora da corte do Common Law e atravs de cortes
especiais formadas de civilians, como a exemplo do Direito
Matrimonial ou de sucesso causa mortis e testamentria. A
romanizao do direito no continente foi conseguida atravs
da substituio da forma procedimental do Direito Romano
ou Cannico, a forma procedimental do Direito Germnico
Medieval.
A formalidade cannica de procedimento foi ampla-
mente seguida naquela corte inglesa que desenvolveu o direito
de eqidade, mas no penetraram nunca naquela corte de
Common Law. Estas, todavia, abandonaram o antigo proce-
dimento que subordinava o xito de uma ao legal ao critrio
irracional de juzo, como o juzo atravs do juzo de Deus ou
do duelo. Contudo, o novo critrio do juzo substituiu o
mtodo aceito muito primeiramente que o procedimento do
Direito Romano e Cannico se firmasse nos pases do norte
da Europa Continental.Tratava-se da Introduo do Jri,
instituio que encontra sua origem inglesa na conquista
normanda.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 493

3 INEXATIDO DOS CONCEITOS

Ao tratarmos do sistema do Common Law, se faz


necessrio perceber algumas das questes com que se defronta
o advogado do sistema do Civil Law ao travar conhecimento
com o Common Law.
Para aqueles que se interessam por um estudo compa-
rativo, o Common Law revela um dinamismo como um
instrumento de justia social, um desafio no sentido de
aguamento da mentalidade analtica do jurista e a univer-
salidade de direitos que reflete a interdependncia dos pre-
ceitos legais, morais, polticos e econmicos da sociedade
na qual se opera.
costume referir-se ao sistema legal anglo-americano
como sendo um de direito no codificado, enquanto os
sistemas legais dos pases como Brasil e os da Europa Continen-
tal so usualmente referidos como os sistemas do direto escrito,
codificado. De fato, pode-se muitas vezes encontrar as seguintes
definies destes sistemas legais:
Sistema do Common Law Direito no escrito; sistema
predominante na Gr-Bretanha (com exceo da Esccia), nos
Estados Unidos (com exceo do Estado de Louisiana),
Canad (com exceo da provncia de Qubec), na Unio da
frica do Sul, Ceilo, Austrlia e Nova Zelndia.5
Sistema do Civil Law Direito escrito - direito codifi-
cado -; sistema predominante na Europa Continental, mais a
Esccia, Turquia, Japo, Amrica Latina, a provncia de
Qubec (Canad) e o Estado de Louisiana (EUA). 6
Como acontece comumente, as definies tendem a
simplificaes demasiadas que tendem a introduzir noes
falsas.

5
ZWARENSTEVYN,Hendrik . Op. Cit., p.128.
6
Ibid, idem.

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494 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

A utilidade da distino perde muito de seu significado


quando algum considera seu resultado final, as decises dos
tribunais com respeito aos problemas submetidos a julga-
mento. De fato, a distino se tornaria quase sem significado
quando se olhasse apenas o resultado final.
A distino perde muito de seu presumvel significado
quando algum toma conhecimento do fato de que muitas
leis nos pases do Common Law so codificadas. De modo que,
as decises nos tribunais destes pases no so apenas escritas,
mas at mesmo publicadas. Ademais, muitas matrias jurdicas
nos pases do Sistema do Civil Law so reguladas pelas repetidas
decises dos mais altos tribunais com respeito aos correspon-
dentes artigos do cdigo envolvido. Em outras palavras, a
jurisprudncia desempenha um importante papel, nos pases
do Common Law, como nos pases do Civil Law. Contudo, h
pequena discusso quanto existncia de uma diferena entre
os dois sistemas legais.
Na literatura dos ltimos setenta anos pode-se encontrar
um aprecivel nmero de opinies altamente variadas, de
renomados juristas, sugerindo que existe uma distino bem
significativa entre o Common Law e o sistema do Civil Law.
A mais significante distino encontrada no direito
dos contratos, especificamente na distino entre consideration
(no Common Law) e causa (no sistema do Civil Law). Entretanto,
num exame mais profundo, esta distino perde comumente
muito de seu significado, desde que, na maioria dos casos, a
causa em um contrato seria igualmente aceitvel como
consideration.
A mais significativa distino encontrada no direito
de propriedade, porque a propriedade que fez o Common
Law adquirir suas caractersticas tpicas. Se bem que, historica-
mente, o direito de propriedade no Common Law teve um
desenvolvimento diferente do sistema de Direito Civil, a
distino , de um ponto de vista prtico e atual, de pequeno

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 495

valor. Uma outra distino significativa encontrada na


ausncia de um Cdigo de Common Law, enquanto no sistema
de Direito Civil toda lei codificada. Pensamos que esta afir-
mao tambm no mais vlida em face da crescente codi-
ficao de inteiras reas do direito nos pases do Common Law.
Tratamos de mencionar alguns institutos: a Lei dos
Instrumentos Negociveis; a Lei de Vendas; a Lei das Socie-
dades Comerciais; a Lei dos Seguros; as Leis Antitrustes; e,
recentemente, o Cdigo Comercial Uniforme7 .

4 DIFERENA ENTRE OS DOIS SISTEMAS

Acreditamos que a maior diferena entre os dois sistemas


est no processo de raciocnio jurdico.
Como diz o Professor H. Zwarenstein, no processo de
achar o direito aplicvel.8 , ou seja, o trajeto que o juiz anglo-
americano percorre na determinao do resultado de um caso.
Na compreenso do processo do raciocnio jurdico
deve-se ter em mente que no Common Law, quando uma con-
trovrsia submetida corte para julgamento, o juiz no
decidir um princpio, mas o caso diante dele.
Isto significa que um juiz a qualquer tempo ter seus
olhos sobre o caso ante ele, e no ser desviado por princpios
e consideraes tericas com respeito a certos aspectos do
direito.
Enquanto os advogados do sistema de Direito Civil
normalmente tentaro achar na legislao especfica a soluo
para a controvrsia, o advogado comear por analisar os fatos
do caso.
Isto pode ser historicamente explicado pelo fato do que
ensinado nas universidades. Enquanto na Inglaterra o direito

7
J adotado em quase metade dos Estados Unidos da Amrica.
8
ZWARENSTEYN,Hendrik. Op.Cit., p. 130.

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496 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

desenvolveu-se em primeiro lugar nos tribunais; para o


advogado do Common Law os recursos eram os mais
importantes dos aspectos do direito. Na sua anlise dos fatos,
o advogado do Common Law tender a grandes detalhes, porque
isto ser a base de sua considerao do caso e, ulteriormente,
indicar se ganhar ou perder o caso de seu cliente.
Isto significa que os advogados no do ateno aos
escritos de outros tribunais.
Existem vrias fontes de consulta para um juiz ou
advogado, desde que os fatos tenham sido cuidadosamente
analisados, tais como: os peridicos legais; as anotaes em
especializados relatrios de direito tais como o American Law
Reports anotado; enciclopdias jurdicas tais como, Corpus Juris
Secundum e American Jurisprudence; tratados de grandes
autoridades9 tais como, Wigmore sobre a prova, Williston sobre
contratos; as chamadas Reafirmaes10 , que so uma
formulao do direito sobre um tpico especfico, elaborado
pelo Instituto Legal Americano; os Digestos relatando todos
os casos julgados e relacionados com a questo em julgamento;
o status do direito no Estado em particular, que por sua vez
pode envolver qualquer das seis precedentes fontes.

5 APLICAO DO RACIOCNIO JURDICO

A maneira como o processo de raciocnio aplicado


pode ser ilustrado com um caso que aconteceu no Estado de
Ohio, nos Estados Unidos. Poderemos, ento, ver como o
juiz no Common Law raciocina, mesmo quando se ocupa de
uma lei.
A seco 3101.01 do Cdigo Revisto de Ohio estabelece
especificamente:

9
O Instituto Legal Americano uma organizao de advogados e juzes
sem status oficial.
10
Em ingls: Restatements.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 497

Homens de dezoito anos, e mulheres de dezesseis, cujo


grau de parentesco no seja mais prximo do que
primos em segundo grau, e que no tenham marido
ou esposa viva, podem se unir em matrimnio.
O significado desta norma parece bem claro: apenas
casamento de pessoas no casadas, que sejam no mais do que
primos em segundo grau so permitidos; ou, para estabelecer
diferentemente: casamentos de primos em primeiro grau no
so permitidos no Estado de Ohio.
Mas, eis como o Tribunal aplicou a norma:
Um homem de Ohio, com 58 anos de idade, casou-se
com uma mulher de Massachusetts, de 51 anos de idade. A
cerimnia matrimonial foi realizada em uma Igreja Catlica
Romana em Massachusetts.11
Em verdade, as partes eram primos em primeiro grau.
Eles declararam este fato Igreja e s autoridades civis de
Massachusetts12 . Aps o casamento, o casal passou a viver em
Ohio. Desafortunadamente, aps um curto espao, o casa-
mento mostrou-se ser um insucesso, e a mulher voltou
Massachusetts. O homem, em vista disso, impetrou uma ao
tendente anulao do casamento, sugerindo que o casamento
fosse declarado nulo em virtude de pertinente proviso do
Cdigo de Ohio.
A Corte de Primeira Instncia, entretanto, no admitiu
a ao. Um recurso Corte de Apelao foi igualmente mal
sucedido.
Em vista disso, o caso foi levado Corte Suprema de
Ohio.

11
Nos Estados Unidos da Amrica os noivos obtm uma licena matrimo-
nial das autoridades civis, porm eles tm a escolha de ter a cerimnia
do casamento tanto diante de um magistrado civil, i.e., um juiz, ou diante
de um sacerdote. No h necessidade de realizarem-se duas cerimnias
matrimoniais, primeiro a civil e, subseqentemente, a cerimnia religio-
sa, como costume em certos pases europeus e tambm no Brasil.
12
Onde o casamento de primos de primeiro grau no proibido.

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498 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

A deciso da Corte Suprema no se revelou unnime:


dos sete juzes, quatro deles mantiveram a deciso do tribunal
inferior, enquanto trs juzes divergiram13 . Deve ser notado
aqui que os votos dos juzes so publicados e no h segredo
nas Cmaras.
A opinio majoritria raciocinou como segue:
1. O esprito da lei permitir casamentos, contanto
que no sejam incestuosos, polgamos, que no violem a boa
moral, que no sejam invariavelmente contrrios a uma bem-
definida diretriz pblica, ou proibidos.14
2. A validade de um casamento deve ser determinada
pela lex loci contractus15 : se validamente foi a solenidade realizada,
ento vlida em qualquer parte. Desde que o casamento foi
contratado em Massachusetts, era necessrio verificar as leis
de Massachusetts; e tais estabelecem o seguinte:
(a) Em Massachusetts, um casamento entre primos de
primeiro grau no ilegal.
(b) Contudo, nenhum casamento pode ser contratado
em Massachusetts por uma parte residindo em outro Estado,
se o casamento fosse nulo nesse outro Estado. Todo casamento
contratado com violao desta norma nulo e sem efeitos.
3. Por causa da lei pertinente a Massachusetts, a questo
se um casamento entre primos do primeiro grau sem efeito
em Ohio16 .
4. Pelo Common Law17 , os casamentos de primos do
primeiro grau so vlidos. E os casamentos pelo Common Law

13
Em outras palavras, a mais estreita margem possvel.
14
Neste caso, a pretenso de Mazzolini, o apelante, foi que o casamento
opunha-se bem definida diretriz pblica do Estado de Ohio, como
previsto na Seco 3101.01 do Cdigo Revisto de Ohio.
15
Traduo: Lei do local do contrato.
16
O famoso renvoi, com o bem conhecido no Direito Internacional Privado.
17
O Common Law expressa a idia que o direito evoluiu atravs dos
sculos anteriores validade de um Cdigo

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 499

so ainda reconhecidos em Ohio18 . De forma que, a Seco


3101.01 do Cdigo Revisto de Ohio claramente contempla
apenas a regulamentao dos casamentos cerimoniais.19
5. A lei deixou de especificar que os casamentos de pri-
mos em primeiro grau seriam sem efeito, e um contrato de
casamento uma nulidade ab initio apenas quando expres-
samente assim declarado pela lei.
6. Conseqentemente, desde que os casamentos entre
primos em primeiro grau no so declarados sem efeito por
provises explcitas na lei, o casamento de Massachusetts deve
ser mantido vlido, e o pedido de anulao conseqentemente
no foi devidamente admitido.
Os divergentes20 raciocinaram como segue:

1. Se a lei estabelece que apenas pessoas de grau de


parentesco no mais prximos do que primos em segundo
grau podem juntar-se em casamento, segue-se que sob a
doutrina do expressio unius est exclusio alterius os casamentos de
primos em primeiro grau so proibidos e, por conseguinte,
ilegais e sem efeito.
2. Os casamentos pelo Common Law em Ohio podem
ser vlidos apenas quando as partes contratantes so capazes
de assim o fazer. Conseqentemente, se os primos em primeiro
grau no podem contratar um casamento cerimonial, eles no
podem realizar um vlido contrato de casamento pelo Common
Law tambm.
3. A considerao de um casamento pelo Common Law
no vlida absolutamente, desde que no presente caso o
casamento foi um casamento cerimonial.21
18
Um casamento pelo Common Law um casamento sem qualquer cerim-
nia, consistindo simplesmente no fato de que homem e mulher decidem
viver juntos e consideram-se como pessoas casadas para o pblico.
19
Por causa da sentena podem se unir em casamento.
20
Aqueles que formaram uma opinio minoritria.
21
MAZZOLINI v. MAZZOLINI, 168 Ohio St. 357, 115 NE 2d. 206, 1958.

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500 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

Comumente verificamos que os estudantes principiantes


tm uma tendncia de argir acerca dos argumentos e a resul-
tante deciso do tribunal.
Pode-se mesmo aduzir que se apenas um juiz integrante
do grupo da opinio que teve maioria tivesse pensado con-
soante as linhas da opinio minoritria, o resultado teria sido
inteiramente diferente.
Enquanto esses so interessantes passatempos, temos
que mostrar que, ao estudarmos o direito, no devemos discutir
a deciso do tribunal, porm, muito melhor tentar compre-
ender como o tribunal22 chegou sua deciso, porque esta
deciso o direito do caso.
Ao mesmo tempo, devemos tambm compreender o
raciocnio das opinies divergentes porque acontece muito
freqentemente que, em casos subseqentes, a opinio
minoritria de um caso anterior se torna a opinio majoritria
em um caso posterior.
esta atitude acerca da compreenso legal que tem
conduzido afirmao, muitas vezes citada, que o direito o
que os juzes dizem ser.

6 O RACIOCNIO PELOS PRECEDENTES

O grande filsofo do direito Jeremy Bentham respondeu


questo de como os juzes fazem o direito da maneira que
segue:
Exatamente como um homem faz direito para seu
cachorro. Quando seu cachorro faz qualquer coisa que
voc quer evitar que ele faa, voc aguarda at que ele
o faa, e ento o espanca por isso. Isto a maneira
como voc faz direito para o seu cachorro e esta a
maneira como os juzes fazem direito para voc e para

22
Queremos dizer a maioria.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 501

mim. Eles no diro ao homem antecipadamente o


que ele no devia fazer... Eles no permitem sequer
que se diga algo a respeito: eles permanecem quietos
at que algum tenha feito algo que dizem que no
devia ter sido feito, e ento eles enforcam esse algum
por isso. De que modo pode ento qualquer homem
adaptar-se ao seu direito co? Apenas atravs da
observao do procedimento dos juzes: por observar
em que casos eles enforcaram um homem, em que
caso o mandaram para a cadeia, em que caso
penhoraram seus bens, e assim por diante.23

O raciocnio o raciocnio pelos precedentes. Porm,


este raciocnio jurdico pelos precedentes24 tem uma lgica
toda sua.
Em primeiro lugar, seu propsito atingir uma deciso
que expressiva do pensamento social responsvel, isto significa
que o juiz deve, em primeiro lugar, considerar alternativas para
o problema em julgamento e, em segundo lugar, pesar as
conseqncias de cada uma das solues em termos do interesse
do indivduo em particular e da sociedade.
Porque o juiz deve sopesar, em cada novo caso, pode-se
facilmente concluir que no se pode abordar o estudo do direito
com um esforo de fazer previses do que os juzes decidiro no
futuro, meramente com bases nas decises passadas.
O direito uma instituio social bastante dinmica
para sugerir tal possibilidade. Deve ter sido esta conscincia
do direito como um instrumento de construo social que
conduziu a autora americana Harper Lec25 , em sua novela Ma-
tar Um Pssaro Zombeteiro, a uma observao interessante:

23
BENTHAM,Jeremy apud ZWARENSTEYN.Hendrik . Op.Cit, p.136.
24
Em ingls denominado Case Law.
25
Essa autora americana era formada em Direito.

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Sem ttulo-6 501 29/8/2006, 20:18


502 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

A observao atribuda a uma empregada negra, cha-


mada Calprnia, em resposta a uma pergunta que lhe foi
dirigida, com referncia a um processo crime, ou seja, o alegado
estupro de uma moa branca por um negro, no qual o
empregador branco de Calprnia o advogado de defesa.
Sua observao, ento, :...a primeira coisa que se aprende quando
se est em uma famlia de juristas que no h nenhuma resposta
definitiva para qualquer coisa...26
Em mais amplo contexto, a observao uma resposta
questo com respeito certeza acerca do direito, que o leigo
mdio espera e talvez justificadamente, porm, que o advogado
anglo-americano sabe no ser existente, pelo menos no no
limite em que noutras partes do mundo muitas pessoas, advoga-
dos e leigos igualmente esperam de um sistema legal.
Em outras palavras, se bem que os americanos queiram
e esperem continuidade e persistncia nas decises judiciais,27
existe, simultaneamente, o forte sentimento de que o direito
deve refletir uma flexibilidade, que acompanha um mundo
continuamente mutvel.
a esse respeito que o direito se torna uma parte do
controle social e os tribunais desempenham um importante
papel em virtude disso.
O juiz deve, primeiramente, analisar os fatos da situao
mo, de tal maneira que as similaridades ou diferenas com
anteriores decises possam ser examinadas e avaliadas. Contudo,
dois excelentes peritos em anlise podem tomar diferentes
elementos como essenciais situao mo. Isto nos faz lembrar
um velho adgio latino: Si duo faciunt idem non est idem.28

26
LEC, Harpec. Matar um Pssaro Zombeteiro.. In : ZWARENSTEYN,Hendrik.
Op. Cit., p.137.
27
Resultando em uma possvel previso de resultados de uma controvrsia
e dando aos cidados um sentimento de justia.
28
Traduo: Se duas pessoas fazem a mesma coisa, o resultado no a
mesma coisa.

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Sem ttulo-6 502 29/8/2006, 20:18


A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 503

Um exemplo pode ser encontrado no muito conhecido


caso Estados Unidos v. Cia. de Ao Bethlehem, 315 U.S.
289,62 S. Ct. 581, 1942.
No referido caso, o Conselho Naval da Frota de Emer-
gncia dos Estados Unidos Fleet Corporation contratou
com a Cia. de Construo Naval de Ao Bethlehem a
construo de certo nmero de navios necessrios ao sucesso
do esforo de guerra contra a Alemanha. O preo contratual
dos navios foi baseado no preo do custo atual e mais uma
certa quantia de lucro. O lucro, no entanto, foi baseado no
custo estimado, com a previso de que se o custo atual fosse
menos do que o custo estimado, a diferena seria igualmente
dividida entre o governo e o construtor naval. O resultado
podia ser que, ao estimar o custo consideravelmente acima do
custo atual, o construtor naval aumentaria seu lucro substan-
cialmente.
Posteriormente, o governo tentou mostrar que havia
sido pressionado, por causa da situao de emergncia e que a
Cia. de Construo Naval de Ao Bethlehem tinha se apro-
veitado indevidamente da mesma.
Na anlise dos fatos, o Ministro Black29 , falando pela
maioria da Corte, afirmou:

A palavra presso implica fraqueza de um lado e


superior fortaleza do outro.
Aqui sugerido que a fraqueza est do lado do
governo do EE.UU. e a superior fortaleza do lado
de uma simples empresa privada... Isto, tanto quanto
sabemos, o primeiro exemplo no qual o governo
reclama ser vtima de presso nas negociaes com
um indivduo.30

29
Ministro da Suprema Corte de Justia Americana.
30
Estados Unidos v. Cia. De Ao Bethlehem, 315 U.S. 289,62 S. Ct. 581,
1942.

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504 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

Observando tambm que ambas as partes foram


representadas por funcionrios inteligentes, bem informados
e experimentados, a Suprema Corte julgou que no poderia
concluir que a Fleet Corporation31 tivesse aceito as condies
do contrato em virtude de seus representantes terem se sentido
sem foras para recusar. A Corte ento concluiu que os
representantes do governo no tinham sido forados a aceitar
os contratos contra suas vontades.
Essa uma linguagem convincente. Porm, a linguagem
da opinio divergente do Ministro Frankfurter no , em nada,
menos convincente.
O Ministro Frankfurter analisou primeiro quem tomou
parte das negociaes, e quais eram as relaes entre tais pessoas.
Notou que embora a Fleet Corporation tivesse dois
almirantes, competentes peritos em construo naval, como
seus atuantes negociadores, a autoria final para concluir os
contratos pertencia ao vice-presidente da Fleet Corporation,
um homem de empresa, sem prvia experincia em construo
naval e, alm disso, um homem de estreitas relaes com o
vice-presidente da Bethlehem. Tambm notou que o vice-
presidente da Fleet Corporation dependia do vice-presidente
da Bethlehem para informaes e assistncia, com respeito a
assuntos de construo naval.
O Ministro Frankfurter, ento, observou:

Negar a existncia de presso em um contrato


governamental por referncia irnica fraqueza dos
Estados Unidos contra a superior fortaleza de uma
simples empresa privada uma indulgncia de retrica
com desrespeito aos fatos. Os Estados Unidos, com todo
seu poder e majestade, nunca fez um contrato. Falar de
um contrato pelos Estados Unidos usar de uma

31
Uma empresa pblica.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 505

abstrao... Os contratos no so feitos pelos 130 milhes


de americanos, porm por alguns funcionrios em seu
nome. Para todos os fins prticos, o arranjo foi realizado
por duas pessoas, almirantes Bowles e Radford. Por
conseguinte, a Corte no deveria permitir que a
Bethlehem recuperasse tais inescrupulosos, o que faz da
Corte instrumento desta injustia. Durante o tempo
de guerra a possibilidade de barganha dos funcionrios
contratantes do governo inerentemente fraca, no
interessa quo consciencioso, eles possam ser.32

Verificamos que se a situao do fato concreto cuida-


dosamente analisada, o juiz procurar situaes similares no
passado, e analisar quais as bases para as decises nesses casos
anteriores.
Nesta anlise histrica de decises judiciais, os juzes
podem ou discernir um modelo persistente, ou eles podem
achar que os pontos de vista dos tribunais mudaram atravs
dos anos.
Se eles verificarem que uma mudana nos pontos de
vista dos tribunais ocorreu, investigaro as circunstncias
peculiares para a mudana.
A mudana pode ter lugar em virtude de as concepes
socioeconmicas daquela comunidade terem mudado. A
mudana pode igualmente ter lugar em virtude de mudanas
na tecnologia, terem transformado uma srie de relaes, ou
em virtude da interferncia legislativa.
O terceiro passo, no processo do raciocnio jurdico,
a realizao, pelo juiz, dos fins e propsitos do direito. Ou
seja, deve o juiz pesar todas as solues alternativas luz da
justia e ordem jurdica.

32
Estados Unidos v. Cia. de Ao Bethlehem, 315 U.S. 289,62 S. Ct. 581,
1942.

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506 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

Com base em tudo isto, o juiz chegar sua deciso.


Essa deciso significa, em primeiro lugar, ser o direito do caso
julgado. Assim, somente quando, em casos posteriores, uma
completa similaridade encontrada, a mesma regra ser
aplicada.
Em referncia ao mesmo caso Mazzolini33 , como uma
ilustrao, outro interessante aspecto do raciocnio jurdico
no Common Law a diferena entre o Common Law e o direito
legislado.
O Common Law pode, para presente finalidade, ser
definido da mesma maneira como Blackstone o definiu h
quase trs sculos, especificamente em 1765: Uma coleo
de mximas no escritas e costumes que tm existido imemo-
rialmente, mantidas pela tradio, uso e experincia, e que
tm fora de direito.34
Desta maneira, o sistema do Common Law pode ser, em
vrias ocasies, definido de diferentes maneiras. E este um
dos interessantes aspectos deste sistema, em que uma simples
denominao apresenta diferentes e quase igualmente impor-
tantes significados.

7 O COMMON LAW EM FACE DA LEI UM CASO


AMERICANO

O caso Mazzolini nos deu pelo menos mais um indcio


de que o juiz pode voltar-se para o Common Law.
Em verdade, tal observao pode ser inteiramente vlida
quando algum quer compreender o processo de raciocnio
no sistema do Common Law.
Para compreender isto, devemos ressaltar que podemos
subdividir as leis em trs amplos grupos:

33
O caso do homem que casou com uma prima do primeiro grau.
34
ZWARENSTEYN,Hendrik. Op. Cit., p.141.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 507

a) Leis que regulam aspectos da vida em sociedade, no


regulados anteriormente, pela simples razo de que no houve
necessidade ou ocasio para tanto. Um exemplo seria a regula-
mentao da viagem area, da energia atmica, ou da explorao
espacial.
b) Leis que no so, em essncia, mais do que uma
concisa reafirmao do que j era o direito pelo Common Law.
Referimos a tais leis como sendo declaratrias do Common
Law. Um exemplo seria a Lei Uniforme dos Instrumentos
Negociveis.35 Um argumento para tal afirmao poderia ser
encontrado na seco 196 da Lei dos Instrumentos Negociveis,
que dispe como segue:
Qualquer caso no previsto nesta Lei, ser regido pelas normas
do Law Merchant (Direito dos Mercadores).
c) As Leis em clara divergncia com o Common Law, em
virtude do Common Law, na matria em apreo, no mais ser
considerado em acordo com as mudanas das atitudes sociais
ou as mudanas tcnicas e econmicas que ocorreram num
particular Estado ou sociedade. Tais leis so derrogatrias do
Common Law. Um exemplo seria encontrado nas diferentes
leis sobre hospedagem nos vrios Estados.36
A importncia da distino entre as leis que so decla-
ratrias e as que so derrogatrias do Common Law que, no
primeiro caso, os juzes se sentiriam livres para interpretar a
lei liberalmente, tal como eles abordariam o Common Law em
geral. Contudo, quando a lei derrogatria do Common Law,
os juzes sentir-se-o constrangidos a interpretar as palavras da

35
A maioria dos dispositivos dessa Lei pode ser encontrada nas decises
do Common Law tomadas nos trubunais do Common Law da Inglaterra,
seguindo a assimilao das Cortes-de-Pied-Poudre (o tribunais dos merca-
dores) at o sistema do tribunal britnico (primeiro passo sob o Ministro
Presidente Sir Edward Coke, em 1603, completado sob o Ministro Pre-
sidente Lord Mansfield, em 1756).
36
Comumente em divergncia umas com as outras na ausncia de uma Lei
Uniforme de Hoteleiro

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508 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

lei estritamente. Interessante exemplo desta distino pode


ser encontrada no Direito dos Hoteleiros.
O Common Law reconheceu o direito de uma garantia
para o hoteleiro pela parte no paga da conta do hotel. Esta
proteo foi dada aos hoteleiros apenas, os donos de penso e
hospitais no tm esta proteo.
Hoje, todavia, encontramos em muitos Estados ameri-
canos normas que garantem aos proprietrios de penses e
hospitais privilgios similares aqueles deferidos pelo Common
Law aos hoteleiros.
Assim, o Estado de Iowa tem uma lei37 que prev uma
garantia para o hoteleiro pelas acomodaes fornecidas ao
hspede. A lei define como hspede qualquer ocupante legal
de qualquer hotel38. E hotel definido como qualquer
estrutura onde quartos ou refeies so fornecidos a ocupantes
permanentes ou temporrios.39
Quando a conta de hospital da Sr. Zimmerman no
foi paga, a administrao do Hospital Hull procurou obter
uma garantia de hoteleiro sobre alguns dos valiosos pertences
da Senhora Zimmerman. O hospital reclamava que as amplas
palavras da Lei de Iowa - qualquer estrutura onde quartos e
refeies so fornecidos- traria os hospitais dentro da definio
da lei.
Porm, a Corte Suprema de Iowa rejeitou o argumento,
afirmando: que o histrico desenvolvimento dos hotis e hos-
pitais revelavam uma ampla diferena na finalidade funda-
mental das duas instituies, que a lei no poderia ser
considerada como tendo considerado um hospital um hotel,
a no ser que explicitamente declarado. O tribunal ressaltou
que um hspede vai para um hotel por divertimento,

37
Seces 10348 e 10349 do Cdigo de 1931.
38
Seces 10348 e 10349 do Cdigo de 1931.
39
Idem.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 509

enquanto um paciente vai para um hospital para tratamento e


cuidados.
Um exemplo mais interessante pode ser encontrado em
um caso de Nova Iorque, tambm relacionado com o no
pagamento de conta:
A seco 925 da Lei Penal de Nova Iorque declara
contraventor aquele que esconder e sub-repticiamente remover
a bagagem de um hotel, com a finalidade de no pagar a conta.
O procedimento criminal pode ser iniciado com a queixa do
proprietrio do hotel. Porm, uma queixa falsa pode resultar
em indenizao ao triplo para a vtima inocente.
Analisemos o caso40 do Sr. Cooper e sua famlia. Eles
ocuparam um pequeno apartamento mobiliado no Hotel
Oxford, em Nova Iorque; o Sr. Cooper fez um contrato com
a administrao do Hotel Oxford que permaneceria por seis
meses. Quando deixou de pagar sua conta de eletricidade, a
administrao desligou a energia. A fim de evitar o pagamento
de sua conta de hotel e de energia, o Sr. Cooper e famlia
desapareceram com todos os seus pertences do hotel, durante
a noite, fugindo atravs da sada de emergncia.
A fim de forar o Sr. Cooper a pagar a sua conta, a
administrao do Hotel Oxford encaminhou uma queixa e
procedimentos criminais foram iniciados.
No havia dvida que o Sr. Cooper tinha reunido e
removido sua bagagem; de fato, ele abertamente admitiu isto
na corte.
Contudo, no houve nenhuma condenao, porque a
lei de Nova Iorque tinha apenas dado esse direito de processo
criminal a hotis... O Hotel Oxford, em relao ao Sr. Cooper,
no se qualifica como um hotel (onde as pessoas chegam
por um no predeterminado perodo, por uma taxa per diem),
porm, muito mais, como um hotel-apartamento, ou mesmo

40
Cooper v. Shirrmeister, 176 Misc 474, 26 NYS 2d 668, 1941).

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510 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

como uma relao de proprietrio e inquilino. Desde que a


lei apenas deu direito a hotis, outros estabelecimentos no
foram includos.41 O resultado: o Sr. Cooper props ao
por queixa criminal maliciosa contra a administrao do Hotel
Oxford e recebeu 300 dlares.42

8 CONCLUSO

Verificamos que o processo de raciocnio jurdico


domina o sistema do Common Law. E este um dos mais
significantes aspectos do sistema bem como uma das impor-
tantes contribuies que pode o mesmo fazer ao desenvol-
vimento do raciocnio jurdico atravs do mundo.
Cremos que se o processo de raciocnio jurdico, o mto-
do da anlise factual detalhada do caso em julgamento
conduzindo a uma deciso dos princpios legais nos quais o
caso possa se enquadrar, fosse estendido a reas fora do mbito
do Common Law, seria outra contribuio desse mesmo sistema
ao sistema do Civil Law. Pois, no seria a primeira vez que o
sistema do Common Law Anglo-Americano contribuiria para
o desenvolvimento do Direito em outras partes do mundo.
O Prof. Zwarensteyn cita em seu trabalho o seguinte:
... Foi durante a ltima parte do sculo dezoito que o galante
general francs Lafayette foi aos Estados Unidos. Na Amrica, ele
ficou bastante intrigado, seno fascinado, pela Carta de Direitos de
Virgnia de 1776. Aps seu regresso Frana, Lafayette fez um forte
e emocionante apelo Assemblia Nacional Francesa, para incorporar
certos dispositivos da Carta de Direitos de Virgnia ao direito bsico
francs.43

41
Cremos que porque a lei era derrogatria do Common Law, o tribunal
interpretou as palavras da lei estritamente.
42
COOPER v. Shirrmeister, 176 Misc 474, 26 NYS 2d 668, 1941).
43
ZWARENSTEYN, Hendrik. Op. Cit., p.146.

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 511

E assim ns verificamos que aquele famoso documen-


to francs, a Dclaration des Droits de IHomme et du Citoyen44,
contm vrios preceitos similares da Carta de Direitos da
Virgnia.
Um dos importantes dispositivos, incidentalmente,
previa que nenhum homem poderia ser mantido em priso
sem o direito de inquirir sobre a causa de sua deteno.45
Esta proviso foi originalmente estabelecida na Magna Carta
de 1215, segundo o Conselho Luterano.
Assim, a norma viajou da Inglaterra para os Estados
Unidos, e dos Estados Unidos para a Frana46. Da Frana, o
dispositivo espalhou-se a outros pases europeus e a outras
partes do mundo. Hoje, muitos pases tm em sua legislao,
de alguma maneira, um dispositivo referente s leis, expost
facto47 (nullum crimen, nulla poena; nulla poena sine previa lege
poenali)48, uma norma muitas vezes atribuda ao austraco
Anselmus von Feuerbach, mas realmente traada pela Magna
Carta de 1215, a Carta de Direitos de Virgnia, e a Dclaration
des Droits de IHomme et du Citoyen,49 e da em vrios precei-
tos constitucionais dos pases do Oeste Europeu e de outros
pases do mundo.
Desta forma, o sistema do Common Law expressa, atravs
do raciocnio jurdico nele empregado, o modo pelo qual o
juiz chega sua determinao do resultado de um caso, por
uma extensiva e detalhada anlise dos fatos, guardando em
mente decises anteriores em casos semelhantes, tendo, porm,
sua vista voltada para o caso sub judice50, de tal maneira que,
ao final, possa preferir uma deciso que far justia ao caso e

44
Traduo: Declarao de Direitos do Homem e do Cidado.
45
O assim chamado direito ao habeas corpus.
46
Com um intervalo total de uns 600 anos.
47
Traduo: Aps o fato.
48
Traduo: Nulo crime, nula pena; nula pena sem prvia cominao legal.
49
Traduo: Declarao de Direitos do Homem e do Cidado.
50
Traduo: Sob apreciao judicial.

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512 ROSNGELA ARAJO VIANA DE LIRA

ainda ser a expresso de um pensamento responsvel da


sociedade.

9 REFERNCIAS

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional.


So Paulo: Saraiva, 1990.

BRUCKBERG, R. L. Estados Unidos, Aspectos Sociais-


Econmicos. Rio de Janeiro: [s.n.], 1960.

CAVALCANTI, Francisco Ivo Dantas. Direito Constitucional


e Instituies Polticas. [S.l.]: Tavoli, 1986.

_____________. Direito Comparado e Epistemologia.


Recife : s.d. Cap. 1, Texto distribudo em sala de aula e
captulo de livro em preparo sobre Direito Constitucional
Comparado.

MIRANDA, Jorge. Sobre o Direito Constitucional Com-


parado. Direito e Justia Separata do Volume II. 1981-1986
Texto distribudo em sala de aula.

PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Direito Comparado, Cincia


Autnoma. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Minas
Gerais, out. 1952.

______________. Direito Comparado e seu Estudo. Revista


da Faculdade de Direito da UFMG, Minas Gerais. Texto
distribudo em sala de aula.

POUND, Roscoe. El Espiritu del Common Law. Barcelona,


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Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 487-513 jan./jun. 2005

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A ARGUMENTAO NO SISTEMA DO COMMON LAW ... 513

REHINSTEIN, Max. Common Law Equity. Milo,Itlia :


Dott. A. Giuffre Ed., 1960.

SCHRDEDER, Richard et alii. Panorama do Governo dos


Estados Unidos. Estados Unidos : Departamento Cultural
da Embaixada dos EUA, s.d.

WELLINGTON, Harry H. Interpreting the Constitution.


Birnghamton, New York, USA: Vail-Ballou Press, 1991.

ZWARENSTEYN, Hendrik. O Processo do Raciocnio


Jurdico no Sistema do Common Law. Revista Acadmica
da Faculdade de Direito do Recife, Recife, a. LXII, 1964-65.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 487-513 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 513 29/8/2006, 20:18


514 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 515-539 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 514 29/8/2006, 20:18


O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 515

O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA
Uma viso do princpio observado sobre a
estrutura do conceito de culpabilidade

Sabrina Arajo Feitoza Fernandes Rocha


Professora da Escola Superior de Magistra-
tura de Pernambuco-ESMAPE, do Institu-
to de Ensino Superior de Olinda-IESO e
da Universidade Salgado de Oliveira-UNI-
VERSO

Se a crtica deixa as coisas como esto, porque fazer


a crtica da crtica? Se as palavras so vazias de
poder, porque usar tantas palavras para discutir o
poder? No, o fato que todos aqueles que ainda
tm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda
que de forma tnue, que o seu falar faz uma
diferena.
Rubem Alves

No podemos voltar atrs e fazer um novo


comeo, mas podemos recomear e fazer um novo
fim.
Chico Xavier

SUMRIO
INTRODUO. 1 NOES PRELIMINARES ACERCA DO PRINCPIO DA
INSIGNIFICNCIA. 2 ARGUMENTOS QUE FUNDAMENTAM O PRINCPIO DA
INSIGNIFICNCIA. 3 A CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO. 4
OBJEES AO PRINCPIO. 4.1 Indeterminao conceitual. 4.2 A previso legal
de condutas de menor potencial ofensivo. 4.3 A falta de previso legal explcita do
Princpio da insignificncia. 4.4 A aplicao do Princpio como retrocesso do Direito
Penal por ausncia de direito e de tutela jurdica. 5 CONCLUSO. 6 REFERNCIAS

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 515-539 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 515 29/8/2006, 20:18


516 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

INTRODUO

A conjuntura nacional e internacional que nos envolve


neste momento desoladora. Encontra-se circunscrita por um
cenrio marcado pela ausncia de obrigaes e responsabili-
dades por parte dos indivduos, pela ausncia dos valores
fundamentais vida do homem, por relaes de poder que
priorizam o egosmo, o individualismo exacerbado, o corpora-
tivismo e tantos outros ismos prprios da ambio humana.
Constatam-se, a todo instante, desigualdades extremas que
tornam o fosso entre ricos e pobres cada vez mais profundo,
em decorrncia, sobretudo, da injusta distribuio de renda
que faz do pas um lugar do mundo impiedoso.

Configura-se diante de ns um cenrio no qual a tica foi


reduzida a discursos circunstanciais e estratgicos, instrumentos de
apelo s emoes dos que aguardam uma resposta ao estado de
coisas que tem transformado a maioria da populao em vtima
do descompromisso de autoridades que, longe de desempenharem
o seu papel de promotores do bem-estar pblico, entram na briga
cotidiana de proteo aos seus interesses pessoais. J no existe
uma coerncia nos discursos e nas posturas dos detentores do poder
pblico, deixando a populao merc das discusses da hora.
Mudanas argumentativas em prol de seus prprios interesses e
totalmente descontextualizadas das necessidades pblicas.

A pequena e mdia criminalidade domina as pautas das


audincias judiciais e assoberbam os Tribunais do pas. O apego
incondicional lei e a dificuldade de solues mais avanadas
para essas condutas criminais so as respostas ineficincia da
administrao da justia.

Apesar da modificao do nosso Cdigo Penal na sua


parte geral, ainda no h soluo palpvel para o srio problema

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 515-539 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 516 29/8/2006, 20:18


O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 517

da superlotao carcerria brasileira, motivada, sobretudo, pela


falta de poltica criminal que d menos importncia lei em
sentido estrito e se apegue mais s circunstncias concomitan-
tes do crime1 , que faro grande diferencial no momento da
aplicao da lei penal e processual penal.

No se pode mais acreditar apenas na eficcia pura e


simples da lei penal. preciso uma anlise mais aprofundada
da conduta humana que, apesar de ferir um bem juridicamente
tutelado, seria irrelevante apesar da sua tipicidade. As nossas
penitencirias e delegacias de polcia esto cheias de pessoas
que cometeram crimes de pequena relevncia ou mesmo de
reduzida reprovao social, movendo o aparelho estatal, que
poderia est sendo utilizado com causas mais relevantes.

Este estudo tentar de forma sucinta e com base na doutrina


mais atual, trazida pelo mestre Cludio Brando, durante as aulas
do mestrado, aprofundar os fundamentos do denominado
princpio da insignificncia, tambm conhecido como crime de
bagatela, traando um paralelo com a teoria normativa da
culpabilidade, tentando sinalizar caminhos mais adequados para
apreciao do problema no mbito das decises penais.

Pretendemos demonstrar neste trabalho, portanto, que


no mais possvel que o direito positivo, visto como objeto
de estudo do direito penal, seja considerado de forma isolada
e abstrata. Faz-se premente reaproxim-lo da realidade e interagi-
lo com outras reas do conhecimento humano, onde se incluir
a poltica criminal de descriminalizao de condutas que no
atinjam de maneira significativa a vida em sociedade, deixando
a sano penal, como ltima e mais severa instncia de controle

1
Sobre La Estrutura Del Concepto
Sobre o tema, FRANK,Reinhard.Sobre
de Culpabilidade
Culpabilidade. Uruguai :B de F Ltda: 2004.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 515-539 jan./jun. 2005

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518 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

social, sobretudo quando se tem convico de que o direito


penal e seus institutos no o nico caminho para a soluo
de todos os males da sociedade e, tampouco, cumprem com
o seu papel primordial de ressocializao do apenado.

No desejamos esgotar toda e qualquer discusso sobre


o tema, apenas demonstrar a necessidade de um novo trata-
mento para a poltica criminal e sinalizar para possveis solu-
es alternativas para um melhor funcionamento do sistema
jurdico estatal, pois esta deve ser uma busca incansvel dos que
esto cansados dos ismos sociais e desejam sair em busca de
solues que englobem a maior parte da sociedade, para se tentar
chegar ao ideal social atravs da distribuio igualitria dos
direitos. Isso porque, o individualismo improdutividade, a
unio fecundidade. O individualismo solido, a unio o
convvio feliz. Queremos fazer parte dos que fazem a diferena.

1 NOES PRELIMINARES ACERCA DO PRIN-


CPIO DA INSIGNIFICNCIA

As prticas do pretor do direito romano que, em regra


geral, no se ocupavam de coisas ou delitos de pequeno porte,
sinalizava para a adoo, desde aquela poca, do princpio da
insignificncia. Claro que no havia uma inteno dirigida para
o tratamento diferenciado a prticas criminosas de pequena
monta, levando em considerao o agente da ao criminosa,
mas to somente a pessoa do pretor, mas j demonstra que
no se devia perder tempo se debruando sobre condutas
insignificantes, quando havia aes muito mais srias a serem
desvendadas. Os romanos seguiam a mxima contida no
brocardo minimis non curat pretor.2

2
ACKEL FILHO, Diomar . O princpio da insignificncia no direito
penal
penal. So Paulo : JTACrimSP, 94:73

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 515-539 jan./jun. 2005

Sem ttulo-6 518 29/8/2006, 20:18


O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 519

Avanando no tempo, identificamos o tratamento da


matria por Montesquieu, o qual afirmou, no seu Esprito
das Leis, que quando um povo virtuoso, bastam poucas
penas3 . Ilustramos, ainda, esta abordagem histrica evolutiva
consolidando o princpio, atravs das lies de Beccaria, que
afirma proibir uma enorme quantidade de aes indiferentes
no prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar
outros novos4 .

Depois de longo tratamento doutrinrio, culminou no


artigo VIII, da Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado, que prescrevia: A lei no estabelecesse seno penas
estrita e evidentemente necessrias.

Entre os autores modernos, podemos citar Quintero


Olivares que, com muita propriedade e pertinncia, afirma:
o Estado no deve recorrer ao direito penal e sua gravssima
sano se existir a possibilidade de garantir uma proteo sufi-
ciente com outros instrumentos jurdicos no-penais. E
completa sua exposio fundamentando: de acordo com o
princpio de interveno mnima, com o qual se relacionam
as caractersticas de fragmentariedade e da subsidiariedade, o
direito penal s deve intervir nos casos de ataques graves aos
bens jurdicos mais importantes. As perturbaes leves da
ordem jurdica devem ser objeto de outros ramos do direito5 .
O princpio da interveno mnima, embora no
presente no texto legal expressamente, pois de cunho poltico-
criminal, deve ser de observncia do legislador e do intrprete
jurdico, por sua compatibilidade com outros princpios ju-

3
MONTESQUIEU. O Esprito das LLeis eis. p. 109
eis
4
BECCARIA,Cesare . Dos delitos e das penas penas. Trad. Conrado A.
Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1973.p. 307
5
OLIVARES,Gonzalo Quintero . Introduccin al derecho penal.
penal Bar-
celona: Barcanova, 1981. p. 49

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520 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

rdico-penais dotados de positividade, e, sobretudo, com os


pressupostos polticos do Estado Democrtico de Direito.

2 ARGUMENTOS QUE FUNDAMENTAM O PRIN-


CPIO DA INSIGNIFICNCIA

Nilo Batista sustenta que o direito penal um sistema


descontnuo de ilicitudes.6 E, para enfatizar, trazemos baila
a lio do ilustre Navarrete: imaginar que a legislao e a inter-
pretao tenham como objetivo preencher suas lacunas e
garantir-lhe uma totalidade falso em seus fundamentos e
incorreto enquanto mtodo interpretativo, seja do ngulo
poltico-criminal, seja do ngulo cientfico.7

Sem sombra de dvida a idia de que o Estado deva e


possa reprimir penalmente toda e qualquer infrao deriva da
utopia de um ordenamento jurdico pleno, que no se coaduna
com os modernos pensamentos filosficos, to pouco com a
realidade da prtica criminal.

A subsidiariedade que ora intencionamos para o direito


penal, resulta sua concepo enquanto remdio sancionador
extremo8, que, todavia, s dever ser utilizado quando no
houver outro meio. No possvel, numa sociedade cada vez
mais complexa, a aplicao de sanes iguais para condutas
que apenas aparentemente so iguais. E mais, como se justifica
a aplicao de uma pena mais severa se, no caso especfico, era
possvel obter-se o resultado reintegrao atravs de uma
6
BATISTA,Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro
brasileiro. Rio
de Janeiro: Revan, 1990. p. 86.
7
NAVARRETE, Miguel Polaino. Derecho penal; parte geral. Barcelo-
na: Bosch, 1984. p. 103
8
ROXIN, Claus. Iniciacin al derecho penal de hoy
hoy.. Trad. Francisco
Muoz Conde e Diego-manuel Luzon Pea. Sevilha : Ed. Univ. de Sevi-
lha, 1981. p. 31

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 521

conduta mais suave? Maurach alerta: no se justifica aplicar


um recurso mais grave quando se obtm o mesmo resultado
atravs de um mais suave: seria to absurdo e reprovvel cri-
minalizar infraes contratuais civis quanto cominar ao
9
homicdio to-s o pagamento das despesas funerrias .
Assim, se o direito penal se presta para o reestabelecimento
da ordem e remdios sejam suficientes para reinstaur-la, no
se justifica a sua aplicao, pois isto feriria o prprio objetivo
do especfico ramo do direito e produziria um efeito contrrio
ao desejado pela sociedade.

Outro argumento fundante do princpio da insignifi-


cncia, que ser embasado em outro princpio atualssimo do
direito, a proporcionalidade que deve haver entre a pena
aplicada e a gravidade da conduta incriminada. Nos casos de
insignificante afetao ao bem jurdico tutelado pelo ordena-
mento jurdico, o contedo do injusto to pequeno que
no subsiste qualquer razo para imputar a pena. Conforme a
doutrina de Zaffaroni10 , mesmo se aplicando a menor penali-
dade possvel prevista para o ilcito, ainda seria desproporcional
significao social do fato.

O princpio da insignificncia dever ser entendido,


nesse contexto, como instrumento de interpretao restritiva
de aplicao das penas, mesmo que a conduta esteja formal-
mente tipificada, se descriminalizando as condutas que, mesmo
violando as regras impostas pelo Estado, por no atingirem
de forma relevante os bens jurdicos protegidos, devam ser
tratadas de forma mais branda.

9
MAURACH, Reinhart. Tratado de derecho penal
penal. Trad. Juan Crdoba
Roda. Barcelona: Ariel, 1962. p. 31
10
ZAFFARONI,Eugenio Ral . Tratado de derecho penal
penal. Buenos Aires:
Ediar, 1981.v. 3. p.554 e s.

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522 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

O carter fragmentrio e subsidirio do direito penal


poder ser efetivado com a adoo do princpio da insignifi-
cncia, pois haver uma reduo do campo de atuao deste
ramo do direito, que ficar reservado apenas para tutelar juridi-
camente os valores sociais indiscutveis.

3 A CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL BRA-


SILEIRO

So vrias as interpretaes que se faz sobre a culpabili-


dade no direito penal hodierno, porm h um ponto comum
entre todas as interpretaes e diz respeito ao fato de existir
uma relao psquica entre o autor e sua ao delituosa. Con-
tudo, surge o problema de como se deve entender essa relao
psquica, se seria estabelecida pela vontade ou como pura
representao mental11. Assim, para entender o conceito de
culpabilidade, devemos nos debruar sobre o aspecto subjetivo
ou a fase interna da ao. Atravs dessa concepo Lffer12
define culpabilidade como o conjunto de relao penalmente
relevante das interioridades de uma pessoa e um resultado
social danoso de sua ao. Reforando, nesta mesma linha,
ressalta Kohlrausch13 : culpabilidade para o Direito Penal
aquela relao subjetiva na qual um autor culpvel deve reco-
nhec-la para poder ser responsabilizado penalmente. Diferen-
temente, Von Liszt afirma que culpabilidade a responsa-
bilidade por um ato realizado de forma ilcita. Porm, para a
nossa tese central, vale analisar quais as circunstncias em que
a justia vincula a responsabilidade.

11
FRANK,Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpa-
bilidad. Montevideo: BdeFLtda, 2004. p. 25
bilidad
12
LFFER apud FRANK,Reinhard. Die Schuldformen des Strafrechts.
1895 . p. 5
13
KOHLRAUSCH apud FRANK,Reinhard. Irrtum und Schuldbegriff
Schuldbegriff,
1903. p. 1

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 523

Dentro da perspectiva do princpio da insignificncia,


apenas o conceito trazido por Lffer ter aplicabilidade prtica,
pois no basta que exista por parte da legislao penal o
reconhecimento da conduta ilcita, mas a sua ao dever causar
um dano social. Assim, dever haver por parte dos julgadores
uma ponderao entre os bens jurdicos que estejam em con-
flito. Para ilustrar a nossa posio, trazemos um exemplo coti-
diano que dever alertar para a necessidade de um tratamento
diferenciado para certas situaes fticas: partindo da figura
tpica penal do furto, tipificada no artigo 155 do Cdigo Penal
Brasileiro, que descreve uma ao humana de subtrair, para si
ou para outrem, coisa alheia mvel, imaginemos um pai,
desempregado e sem perspectiva de arrumar um trabalho,
diante da famlia passando fome, que resolve furtar, de uma
grande supermercado, uma lata de leite para saciar a fome dos
seus dependentes menores. Nessa situao especfica, e levando
em considerao os bens jurdicos tutelados (a vida dos filhos
x o patrimnio econmico do dono do supermercado), seria
razovel aplicar as sanes penais previstas no tipo penal em
apreo, para esse pai que agiu, nica e exclusivamente, tendo
em mente salvar os filhos da situao de fome em que se
encontravam? Por mais cticos e legalistas que sejamos, no
podemos admitir certos tratamentos legais, que vo completa-
mente de encontro tnica legal autorizadora para um enqua-
dramento penal. No queremos com esta defesa banalizar as
figuras tpicas, mas adequar ao ramo do direito penal dois
princpios que norteiam todas as discusses jurdicas do
momento: proporcionalidade e razoabilidade. Apesar do par-
grafo segundo, do artigo supracitado, tentar amenizar as situa-
es fticas menos expressivas quando reza: se o criminoso
primrio, e de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode
substituir a pena de recluso pela de deteno, diminu-la de
um a dois teros, ou aplicar somente a pena de multa, ainda
assim, para este caso retratado, no seria lgico a sua aplicao.

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524 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

Seno vejamos: punir com deteno seria imperioso, pois como


seria possvel o sustento da famlia? Aplicar a pena de multa
seria impossvel diante do fato de ele no ter dinheiro nem
mesmo para comprar comida para a famlia. Como ento lidar
com essa situao ftica, sem afrontar o ordenamento jurdico?
A soluo vivel seria uma nova forma de lidar com a culpabi-
lidade, enquanto elemento integrante do crime.

A doutrina penal dominante encontra a essncia da


culpabilidade numa relao psquica entre o autor e algo que
est fora de sua personalidade. Assim, as circunstncias conco-
mitantes sero levadas em considerao na hora de se averiguar
a conduta ilcita, ou seja, influenciar diretamente sobre a
culpabilidade. Dessa forma as circunstncias concomitantes
podem atenuar a culpabilidade ou, at mesmo, podero exclu-
la. Cada situao ftica ter sua histria real, que nica e
irrepetvel, e, por isso, dever ter tambm um julgamento nico
e irrepetvel. Mas como fazer isso, se s temos uma nica fonte
legal? exatamente a culpabilidade que ir fazer a diferena.

Cludio Brando14 brilhantemente conclui que o prin-


cpio da culpabilidade, que traduz a responsabilidade penal
do Homem, condiciona o mtodo do Direito Penal porque
um dos mecanismos para o sopesamento do caso no processo
da deciso e da argumentao jurdica, possibilitando a prpria
realizao da tpica, que para garantir o respeito dignidade
humana pode superar o silogismo, assegurando, em determina-
dos casos, decises at mesmo contra legem. Nessa perspectiva
principiolgica que pretendemos congruir os dois princpios
- o da culpabilidade e o da insignificncia da ao delituosa -
em prol de um tratamento mais humanizado no ramo do

14
BRANDO,Cludio. Posio da Culpabilidade na dogmtica
Penal
enal. Aula inicial do Curso de Doutorado em Direito penal. Recife:
Faculdade de Direito do Recife UFPE, 2004.

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 525

direito criminal. E conclui o mestre: quando se reconhece,


por exemplo, causas supralegais de inexigibilidade de conduta
diversa, que causa de excluso da culpabilidade, reconhece-
se a insuficincia do silogismo legal, que por bvio no contem-
pla tais causas, valorizando-se o homem pelo reconhecimento
de circunstncias concretas que devem afastar a aplicao do
tipo penal. Isto , pois o uso da tpica para aumentar a liberda-
de, o que confirma que o homem um ser reconhecido em
sua dignidade no Direito Penal, sendo o mago, o prprio
fim desse direito.

A culpabilidade no direito penal brasileiro encarada


sob as bases da Teoria Normativa Pura, defendida pelos finalis-
tas, onde ser necessria a constatao de trs elementos
normativos para se constituir a culpabilidade: potencial conhe-
cimento da antijuridicidade, exigibilidade de conduta diversa
e imputabilidade. O emprego do princpio da insignificncia
ir ter como base sempre a ausncia de um destes requisitos e,
portanto, dever ser aplicado de forma cotidiana pelos nossos
Tribunais em prol do bem coletivo e da efetivao das polticas
criminais de ressocializao dos apenados.

4 OBJEES AO PRINCPIO

Apesar da doutrina dominante aceitar o princpio da


insignificncia, h autores que estabelecem algumas objees
sua aplicabilidade. A principal reside no fato de ser difcil
caracterizar conceitualmente o crime de bagatela (Bagatelldelikte)
a partir de critrios precisos. Outra, o fato do prprio
legislador tipificar situaes de pouca relevncia, e, neste caso,
no poderia se aceitar a aplicao do princpio, pois a lei se
tornaria incua. Outros, ainda, obstaculizam a aplicao do
princpio ao afirmarem ser impossvel a tarefa de interpretar
restritivamente em certos tipos penais, como os formais, por

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526 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

no disporem de um elemento (por exemplo, o resultado)


que possa ser valorado como de escassa importncia. Os
positivistas ou formalistas alegam no ser aplicvel o princpio
da insignificncia por no estar legislado e, assim, no reconhe-
cido pelo ordenamento jurdico. H aqueles que alegam ser
um retrocesso ao direito penal, por no haver um respeito aos
seus preceitos e por causarem a sensao de ausncia de direito
e de tutela jurdica.

Todos os obstculos apresentados, no entanto, no tm


o condo de eliminar a validade do princpio da insignificncia
como instrumento poltico-criminal e sistemtico de descrimi-
nalizao, como j apontado anteriormente. o que estamos
tentando demonstrar e resumidamente tentaremos rebater
todas as alegaes contrrias expostas acima.

4.1 Indeterminao conceitual

inegvel que a utilizao de conceito indeterminado


ou vago pode implicar risco para a segurana jurdica que deve
proporcionar o sistema, at porque este tem por objetivo
bsico impedir a arbitrariedade. o que se verifica com o
conceito de periculosidade social da ao, na concepo
material do crime adotada nos pases de regime socialista.

No entanto, a doutrina e a jurisprudncia tm conse-


guido elaborar, a partir de interpretaes, critrios razoveis
de delimitao das condutas que devam ser consideradas
insignificantes, sob a tica de um direito penal fragmentrio e
subsidirio, devendo ser aplicados em casos de extrema
relevncia e impacto social.

Para se estabelecer limites a essa objeo conceitual, se


faz premente que as interpretaes e valoraes da ofensa

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 527

tenham carter rigorosamente normativo. Poder ser utilizado


o critrio da nocividade social que, segundo Roxin15 , dispe
de contedo prprio, sendo suscetvel, portanto, de concreo
material, no obstante todos os problemas a ele pertinentes.

4.2 A previso legal de condutas de menor potencial


ofensivo

A corrente doutrinria que no aceita o princpio da


insignificncia, por sustentar que o prprio sistema penal
expressamente incrimina tais condutas, afigura-se-nos como
equivocada em sua concluso, pois nada impede que, feita a
valorao normativa da ofensa, nos moldes postos em lei, o
intrprete reconhea que, de to nfima, no se submete sequer
aos tipos privilegiados e contravencionais.

Entre outras, a ttulo de exemplificao, a nossa


legislao penal reconhece como condutas privilegiadas o furto
(art. 155, 2, do CP), o estelionato (art. 171, 1, do CP),
a apropriao indbita (art. 170 do CP) e a receptao (art.
180, 3, do CP). Temos, ainda, as contravenes penais que
j so, pela prpria caracterstica delituosa, consideradas pelo
legislador de menor gravidade. Mesmo estando previstas tais
aes, algumas devero, pela sua prpria peculiaridade e levando
em considerao as circunstncias concomitantes, ter trata-
mento diferenciado, sob pena de ferirmos os princpios gerais
desse ramo do direito, sobretudo o da interveno mnima e
o das caractersticas de fragmentariedade e subsidiariedade do
direito penal, que s devero ser acionados nas hipteses em
que a vida em sociedade for atingida de forma intolervel e
grave, como j frisamos.

15
ROXIN,Claus. Culpabilidad y responsabilidad como categoriad sistem-
ticas jurdicopenales. In: Problemas bsicos del derecho penal.
Madrid: Ed. Reus, 1976. p. 220.

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528 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

Com a criao dos Juizados Especiais pela Carta Magna


de 1988, os argumentos contrrios foram reforados, pois
alegam que a prpria constituio reconheceu as aes de
bagatela, mas cabe, ainda assim, a punio devida aos infratores.
Contudo, no comungamos de tal afirmativa, pois esta previ-
so constitucional um avano na poltica criminal do Estado
no que se refere s prticas de pequena delinqncia, e s
confirma o princpio da insignificncia, uma vez que expres-
samente determina a no criminalizao dos casos de bagatela,
fixando tratamento diferenciado no processo e julgamento
dessas ofensas menores. Vale ressaltar que a expresso utilizada
pelo constituinte foi infeliz e mais uma forma de sustentar
nosso argumento, pois se infrao de pequeno potencial
ofensivo, j no tem natureza penal, como j afirmamos acima.
Alm do mais essas condutas passveis de juizados no acarreta-
ram reincidncias, o que refora ainda mais nosso argumento.
Por todo o exposto, nada obsta que, nos juizados informais,
os operadores do direito considerem a insignificncia penal
do fato e reconheam pela sua atipicidade.

Essa deve ser a nova tendncia do direito penal, que


vem sendo defendida por muitos juristas. Trazemos baila a
lio de Ada Pellegrini Grinover16 que sustenta: operam
diversos critrios de seleo informais e politicamente caticos,
inclusive entre os rgos da persecuo penal e judiciais. No
se desconhece que, em elevadssima porcentagem de certos
crimes de ao penal pblica, a polcia no instaura o inqurito
e o Ministrio Pblico e o Juiz atuam de modo a que se atinja
a prescrio. Nem se ignora que a vtima com quem o Estado
at agora pouco se preocupou est cada vez mais interessada
na reparao dos danos e cada vez menos na aplicao da

16
GRINOVER,Ada Pellegrini . Novas tendncias do direito proces
proces--
sual. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 403.
sual

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 529

sano penal. por essa razo que atuam os mecanismos


informais da sociedade, sendo no s conveniente, como
necessrio, que a lei introduza critrios que permitam conduzir
a seleo dos casos de maneira racional e obedecendo a
determinadas escolhas polticas.

Conclumos que a pena privativa de liberdade s


dever ser aplicada como ltimo recurso penal, sendo aplicada
apenas nos casos em que no houver outra alternativa vivel.
Tudo levando em considerao o princpio da interveno
mnima que norteia o tratamento moderno do direito penal.

4.3 A falta de previso legal explcita do princpio da


insignificncia

Como j afirmado acima, alguns doutrinadores con-


denam a aplicabilidade do princpio da insignificncia por se
apegarem a questes puramente formalistas, afirmando no
ter o princpio se incorporado ao ordenamento jurdico por
falta de previso legal.

No podemos aceitar essa argumentao positivista e


improcedente, pois, conforme ressalta brilhantemente Odone
Sanguin17 , o princpio da insignificncia nada mais do
que importante construo dogmtica, com base em conclu-
ses de ordem poltico-criminal, que procura solucionar
situaes de injustia provenientes de falta de relao entre a
conduta reprovada e a pena aplicvel. (grifo nosso). Da se
negar a construo analtica do crime, afirmando-se a atipicidade
da conduta levemente agressiva ou lesiva ao bem jurdico. E
isso no novidade uma vez que a doutrina, em diversas hip-

17
SANGUIN,Odone . Observaes sobre o princpio da insignificncia.
Fascculos de Cincias PPenais,
enais, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 47.

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530 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

teses, constri teorias sobre causas excludentes da criminalidade


que no esto previstas, levando-se em considerao as causas
concomitantes da ao.

Como se pode desejar que o direito contenha, em seus


dispositivos, toda e qualquer situao ftica social, se estamos
lidando com uma sociedade altamente dinmica e que dever
ter tratamentos diferenciados de acordo com estas situaes
especficas? A norma escrita, como sabido, no contm todo
o direito. Por isso, a construo de princpios como o da
insignificncia no ferir o princpio da legalidade penal ou da
reserva legal, assim como as chamadas causas supralegais de
excluso da ilicitude tambm no o so, como o consenti-
mento do ofendido. Assim, sustenta Francisco de Assis Tole-
do18 , como no pode o legislador acompanhar as mutaes
das condies materiais e dos valores ticos-sociais, a criao
de novas causas de excluso da ilicitude, ainda no traduzidas
em lei, torna-se necessria para a correta e justa aplicao da
lei penal. Dessa forma, embora nosso estatuto penal no faa
referncia ao princpio da insignificncia, no possvel ao
intrprete afirmar o carter exaustivo e taxativo das causas
previstas no art. 23 do Cdigo, onde se trata das causas de
excluso da ilicitude.

O princpio da insignificncia se justifica atravs dessas


consideraes, pois tanto as causas supralegais, como o princ-
pio que aqui defendemos, tm carter regulador, competindo
ao aplicador do direito a tarefa de julgar o contedo da
insignificncia, conforme preleciona Roxin19 .

18
TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal
penal.
So Paulo: Saraiva, 1986. p. 159.
19
ROXIN, Claus. Culpabilidad y responsabilidad como categoriad siste-
mticas jurdicopenales. In: Problemas bsicos del derecho pe-
nal
nal. Madrid: Ed. Reus, 1976. p. 221.

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 531

4.4 A aplicao do princpio da insignificncia como


retrocesso do Direito Penal por ausncia de direito
e de tutela jurdica

Odone Sanguin20 esclarece: a adoo do princpio


da insignificncia, para alguns, gera o perigo de um recuo do
direito penal, com o alastramento do senso de ausncia de
direito e de tutela jurdica, sem qualquer compensao e com
conseqncias incontrolveis. Essa sensao causada pela
falta de conhecimento da natureza fragmentria e subsidiria
do direito penal, como j deixamos claro. O que se pretende
fazer com que as condutas pouco expressivas em termos de
violao dos bens tutelados pelo ordenamento jurdico passem
a ser tratadas atravs de um controle social, fora do direito
penal, por seu carter de bagatela. No se pretende tornar lcito
o que ilcito, mas, to somente, dar um tratamento diferen-
ciado, com anlise e soluo por outro ramo do direito, le-
vando-se em considerao todas as circunstncias concomitan-
tes, muitas vezes adversas prpria vontade do sujeito ativo
da figura tpica.

A passagem do tratamento dessas infraes de pequeno


dano social para outro ramo do direito, traria benefcios signi-
ficativos para a poltica criminal do Estado. Evitar-se-ia o gasto
excessivo pelo aparelho estatal na persecuo criminal, que
tanto pesa no oramento pblico. Evitar-se-ia a superlotao
dos estabelecimento penitencirios, pois o encarceramento s
se faria indispensvel nos casos de grave comprometimento da
ordem pblica. E o mais importante, a nosso ver, seria a pos-
sibilidade de se obter a efetiva tutela jurisdicional em relao
aos casos graves.

20
SANGUIN, Odone. Observaes sobre o princpio da insignificncia.
Fascculos de Cincias PPenais,
enais, Porto Alegre, v. 3, n.1, p.48.

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532 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

Alguns autores afirmam que no seria necessria a


aplicao do princpio, levando em considerao o que cha-
mam de criminalidade oculta, que, por ser to pequena a
violao do bem jurdico, a prpria vtima no deixa chegar
ao conhecimento do aparelho estatal de represso, pois ela
est mais interessada na reparao do dano sofrido e no na
aplicao da sano penal. Assim, na prtica, operam diversos
critrios informais de descriminalizao da pequena delin-
qncia.

Vale ressaltar que o prprio Poder Judicirio h muito


desenvolve o trabalho de descriminalizao interpretativa das
condutas de pouca repercusso social, seja pela alegao de
insuficincia de prova, seja pela ausncia do elemento subjetivo
tido como indispensvel em certas condutas tpicas. Na
realidade, conforme preleciona Diomar Ackel Filho21 , o que
se faz desconsiderar, embora sob justificativas diversas e inde-
vida, aquilo que, por sua insignificncia, revela-se indiferente
para o direito penal. Isto s fortalece o nosso posicionamento
quanto ao carter subsidirio do direito penal, que s deve
ser utilizado em situaes de grave comprometimento da har-
monia comunitria.
Aproveitando o exemplo dado, do pai que rouba para
saciar a fome dos filhos, de fcil observao que essa pessoa,
normalmente, no cometer outros crimes, inexistindo razo
para submet-lo experincia traumatizante do sistema penal
que, ao invs de ressocializar, o que demonstra na prtica a
perverso da personalidade para a reiterada prtica criminosa.
Dessa forma, a aplicao de pena criminal no redunda em
qualquer benefcio para a sociedade ou para o autor da infrao,
por isso dever ter tratamento diferenciado.

21
ACKEL FILHO,Diomar Ackel Filho. Op.Cit, 94:73.

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 533

Por todos os pontos levantados, a aplicao do princpio da


insignificncia, como forma de descriminalizao, constitui impor-
tante objetivo para a reforma do sistema penal, convertendo essas
infraes criminais de bagatela em infraes administrativas, punveis
com, no mximo, pena de multa de cunho puramente disciplinar.
Com a adoo de medidas de natureza administrativa, no se
pode falar em ausncia de direito ou de tutela jurdica, mas to
somente em utilizao de outros instrumentos de controle social
no trato da questo das pequenas infraes, preservando-se o
direito penal para a tutela de valores sociais relevantes.

5 CONCLUSO

Passaremos s concluses partindo do brocardo jurdico


nullum crimem nulla sine culpa. Sem dvida alguma esta frmula
resume o dogma fundamental de um Estado Democrtico,
impedindo que ao indivduo se imponha o gravame da sano
penal exclusivamente com base em critrios de responsabilidade
objetiva, como desejam os positivistas. O sistema jurdico precisa
considerar que as circunstncias de privao da liberdade e a
restrio de direitos do indivduo somente so justificveis quando
estritamente necessrias prpria proteo da pessoa, da sociedade
e de outros bens jurdicos que lhes sejam essenciais, principalmente
nos casos em que os valores penalmente tutelados se exponham
a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
O Direito Penal no se deve ocupar de condutas que produzam
resultado, cujo desvalor por no importar em leso significativa
a bens jurdicos relevantes no represente, por isso mesmo,
prejuzo importante, seja ao titular do bem jurdico tutelado,
seja integridade da prpria ordem social.

Demonstramos que a tendncia para se afastar este


pensamento, puramente objetivo, buscar a reaproximao
do direito penal com a experincia cotidiana social, sem que

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534 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

se negue o mrito do trabalho sistemtico para a preservao


da garantia da segurana jurdica, mas clamando pela adaptao
da lei realidade ftica, onde sero levadas em considerao as
circunstncias concomitantes, que variam de caso para caso.

Como explicitado, o princpio da insignificncia, que


deve ser analisado em conexo com os postulados da fragmen-
tariedade, subsidiariedade e da interveno mnima do Estado
em matria penal, tem o sentido de excluir ou afastar a prpria
tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu carter
material, consoante assinala expressivo magistrio doutrinrio
expendido na anlise do tema em referncia, como Francisco
de Assis Toledo22 , Cezar Roberto Bitencourt23 , Damsio E. de
Jesus24 e Maurcio Antonio Ribeiro Lopes25 . A incriminao,
tendo em conta o alto custo social que a pena representa, s se
justifica quando estiver em jogo um bem ou um valor social-
mente relevante, no podendo alcanar fatos que se encontrem
exclusivamente na ordem moral, nem situaes que, apesar de
ilcitas, no atinjam significativamente a ordem externa.

O princpio da insignificncia considera necessria, na


aferio do relevo material da tipicidade penal, a presena de
certos vetores, tais como:
- a mnima ofensividade da conduta do agente;
- a nenhuma periculosidade social da ao;
- o reduzidssimo grau de reprovabilidade do comporta-
mento e

22
TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de Direito PPenalenal
enal.
So Paulo: Saraiva, 2002. p. 133-134.
23
BITENCOURT, Cezar Roberto. Cdigo PPenal enal Anotado
Anotado. So Paulo:
Saraiva, 2002. p. 6.
24
JESUS,Damsio E. de. Direito PPenal;
enal; parte geral.
geral So Paulo: Sarai-
va, 2003. Item n. 11, h.
25
LOPES, Maurcio Ribeiro. Princpio da insignificncia no Direito
Penal. So Paulo: RT, s. d. p. 113-118

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 535

- a inexpressividade da leso jurdica provocada.

Apoia-se, dessa forma, o seu processo de formulao


terica, no reconhecimento de que o carter subsidirio do
sistema penal reclama e impe, em funo dos prprios objeti-
vos por ele visados, a interveno mnima do Poder Pblico
em matria penal.

Na verdade, o princpio da bagatela ou da insignificncia


no tem previso legal no direito brasileiro, sendo considerado,
contudo, princpio auxiliar de determinao da tipicidade, sob a
tica da objetividade jurdica. Funda-se no brocardo minimis non
curat praetor e na convenincia da poltica criminal. Se a finalidade
do tipo penal tutelar um bem jurdico quando a leso, de to
insignificante, torna-se imperceptvel proceder a seu enqua-
dramento tpico, por absoluta falta de correspondncia entre o
fato narrado na lei e o comportamento inquo realizado. que,
no tipo, somente esto descritos os comportamentos capazes de
ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razo, os danos
de nenhuma monta devem ser considerados atpicos. A tipicidade
penal est a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os
bens jurdicos, pois nem sempre ofensa mnima a um bem ou
interesse juridicamente protegido capaz de se incluir no reque-
rimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de
alguma magnitude a esse mesmo bem jurdico.

Na realidade, e considerados, de um lado, o princpio


da interveno mnima do estado (que tem por destinatrio o
prprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificncia
(que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal
ao caso concreto), na precisa lio do eminente professor Ren
Ariel Dotti26 cumpre reconhecer que o direito penal no se
26
DOTTI,Ren Ariel. Curso de Direito PPenal;P
enal;Parte Geral
enal;Parte Geral. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 68.

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536 SABRINA ARAJO FEITOZA FERNANDES ROCHA

deve ocupar de consultas que produzam resultado, cujo


desvalor por no importar em leso significativa a bens
jurdicos relevantes no represente, por isso mesmo, prejuzo
importante, seja ao titular do bem jurdico tutelado, seja
integridade da prpria ordem social, como j frisado.

Ao redigir o tipo penal, o legislador apenas tem em


mente os prejuzos relevantes que a conduta incriminada possa
causar ordem jurdica e social, no tendo como evitar que
sejam alcanados tambm os casos leves. O princpio da
insignificncia surge para proteger tais eventos, atuando como
instrumento de interpretao restritiva do tipo penal, com o
significado sistemtico e poltico-criminal de expresso da regra
constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do
que revelar a natureza subsidiria e fragmentria do direito
penal. Por outro lado, fundamenta-se tambm o princpio na
idia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relao
gravidade do crime. Nos casos de nfima afetao do bem
jurdico, ainda que se aplicasse uma pena mnima, esta seria
desproporcional insignificncia social do fato. No se
pretende, como j dito, que as condutas lesivas de pouca
importncia passem a ser consideradas lcitas, o que se objetiva
retir-las da rea de influncia do direito penal, transferindo
a soluo do problema para outros ramos do ordenamento
jurdico ou mesmo para outros instrumentos de controle
social.

por reconhecer que o ramo do Direito Penal no


contempla todas as situaes fticas sociais e suas circunstncias
concomitantes, que apelo para a soluo deste impasse utili-
zando o brocardo jurdico nullum crimen nulla poena sine culpa.
Sem dvida alguma esta frmula resume o dogma fundamental
de um Estado Constitucional Democrtico, impedindo que
ao indivduo se imponha o gravame da sano penal

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O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. UMA VISO DO PRINCPIO... 537

exclusivamente com base em critrios de responsabilidade


objetiva. A utilizao do princpio da insignificncia, por parte
dos nossos aplicadores do direito, seria um passo fundamental
para uma possvel reduo dos problemas carcerrios brasileiros
e de ressocializao na poltica criminal do Estado, tudo em
prol da realizao do justo e do pleno desenvolvimento social.

6 REFERNCIAS

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 541

A AUTO-EXECUTORIEDADE
DA SENTENA MANDAMENTAL

Simone Duque de Miranda


Advogada da equipe do escritrio Correa
Rabello, Costa & Associados, Ps-Gradua-
da em Direito Tributrio pela UNEB, Espe-
cialista em Direito Processual Civil pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie,
bacharela em Administrao de Empresas
pela Fundao Universidade de Pernam-
buco.

SUMRIO
INTRODUO; 1 AO MANDAMENTAL; 2 CLASSIFICAO DAS SEN-
TENAS UMA CONCEPO FOCADA NA EFETIVIDADE; 3 SENTENA
MANDAMENTAL; 4 O FUNDAMENTO DO CUMPRIMENTO DA ORDEM E
SUA IMEDIATIDADE; 5 A COERCITIVIDADE; 6 EFETIVAO DA TUTELA;
7 UM CASO CONCRETO; 8 CONCLUSO; 9 REFERNCIAS

INTRODUO

O interesse pelo tema a Auto-executoriedade da


Sentena Mandamental surgiu da observao dos emba-
tes da lida diria na advocacia tributria, onde vivenciamos
um constante desrespeito da Fazenda Pblica aos provi-
mentos mandamentais, especialmente s sentenas, mo-
mento em que so travadas verdadeiras batalhas em bus-
ca da efetividade da prestao jurisdicional. O sentimen-
to, indubitavelmente, o da mais pura frustrao.
Com efeito, nestes momentos, sente-se morrer o

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542 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

herosmo dos remdios hericos, a celeridade da urgn-


cia, e at mesmo, o sentimento de justia da prpria
Justia, posto que jurisdio sem efetividade to, ou
mais frustrante, do que no t-la. Dessa forma, essa frus-
trao conduz seguinte reflexo: que valores esto sen-
do desrespeitados, e por qu?
A busca dessas respostas nos levou a confrontar
opinies de grandes nomes em defesa de teses brilhantes
acerca do tema. Dessa forma, mantivemo-nos na conscin-
cia da pequenez da pouca bagagem, deixando-nos condu-
zir muito mais pela nsia sincera de entender algo que no
se aceita, do que propriamente pela tcnica acadmica.
O que interessava, pois, era adquirir uma real per-
cepo da essncia da auto-executoriedade da sentena
mandamental, quais os motivos que justificaram sua exis-
tncia e qual seu verdadeiro alcance na prestao juris-
dicional.
A motivao inicial da pesquisa partiu da percep-
o de que a mandamentabilidade nasce de uma necessi-
dade especial de tutela. Com efeito, a mandamentabilidade
existe para albergar determinadas situaes que, na viso
do ordenamento jurdico, so to importantes que ensejam
tutela diferenciada.
Para se chegar ao cerne do estudo em tela, faz-se
necessrio, antes, ultrapassar a polmica acerca da clas-
sificao das sentenas, a fim de entender a existncia da
sentena mandamental como espcie autnoma. Para s
depois abstrair de sua essncia a natureza de sua auto-
executoriedade.
Fixado esse primeiro entendimento, questiona-se
acerca dessa auto-executoriedade: Que fora a motiva?
Quais bens da vida justificam sua existncia?
Para formao do silogismo de base, partimos da
idia de que a sentena mandamental no pode ser anali-
sada por si s, posto que, como j o dissemos, existe

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 543

para atender pretenses especiais, bens de vida que pe-


dem mandamentabilidade. Em assim sendo no se pode
entend-las, sem antes entender a natureza das aes
mandamentais e que pretenses tutelam, para ao final
entendermos suas caractersticas e quais elementos a do-
tam de auto-executoriedade.
Nos ensinamentos do mestre Pontes de Miranda,
encontramos a base lgica que fundamentou o entendi-
mento da mandamentabilidade, a qual nos deu todo o
direcionamento para o desenvolvimento da pesquisa.
Dessa forma, conceitos como peso de manda-
mentabilidade, tutela especfica, satisfao in natura,
imediatidade, ordem, coercitividade, entre outros, foram
se justapondo, e tornando mais ntida a idia de que a
mandamentabilidade tem por objetivo uma maior
efetividade da prestao jurisdicional.
Percebe-se, nesse momento, o porqu do sentimento
de frustrao diante do desrespeito s decises manda-
mentais. que hoje, o direito processual se volta para
essa busca de efetividade jurisdicional, uma situao, vale
dizer, condizente com o Estado Democrtico de Direito,
o qual tem no escopo da jurisdio o reflexo de sua
essncia.
Com efeito, vivenciamos um tempo de moderniza-
o do direito processual civil, onde tudo se direciona
para a idia de processo como instrumento de justia. Hoje,
o Estado interfere, sim, na esfera dos particulares. No
existe mais o receio de desrespeito dignidade dos cida-
dos ao interferir nas suas relaes, pois a esse dever de
respeito se sobrepe a idia de interferir para proteger.
Curial dizer, que, nem sempre a no interferncia
significa respeito, pode significar, tambm, omisso. E
omisso, indubitavelmente, no condiz com o Estado
moderno, onde o bem estar de seu povo constitui motivo
precpuo de sua existncia.

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544 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

sob essa tica, a de maior interferncia do Estado


com o fim de tutelar, onde Ao e Processo existem para
viabilizar Jurisdio, e esta para atender nsia dos cida-
dos de tornar mais justa a vida, que surgem elementos
no direito processual com o fito de tornar efetiva a distri-
buio de justia.
Assim surgem mecanismos diversos como a previ-
so de provimentos mandamentais, o procedimento mo-
nitrio, a tutela antecipada, a tutela especfica, bem como
uma nova feio de velhos institutos como o agravo e o
procedimento sumrio, e mecanismos como o ato atenta-
trio ao exerccio da jurisdio, capazes de assegurar um
maior acesso ordem jurdica justa.
dentro desse contexto de inovao que se preten-
de tratar a auto-executoriedade da sentena mandamental,
no com um enfoque meramente terminolgico, mas que,
de alguma forma, por mnima que seja, traga alguma
eficcia na vida de quem precisa da tutela jurisdicional.
Como dizia o extraordinrio Pontes de Miranda ...
o direito processual o ramo das leis mais rente vida.
E como verdadeira essa afirmao, posto que no se
pode conceber a evoluo de um povo sem a evoluo
da distribuio de justia desse povo. Esse trabalho ,
pois, mais uma tentativa despretensiosa de pensar sobre
o que, verdadeiramente, tem o condo de nos conduzir a
essa evoluo.

1 AO MANDAMENTAL

A classificao moderna das aes costuma admitir


como cientificamente adequada a que leva em conta a
espcie de tutela jurisdicional pleiteada pelo demandante,
razo pela qual se fala em aes de execuo, aes
cautelares, e aes de conhecimento, as quais, a depen-
der do tipo de sentena que se pretenda obter, sero para

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 545

que se declare, ou se constitua, ou se condene, ou se


mande, ou se execute.
Em assim sendo, tem-se a subclassificao das aes
de conhecimento, onde parte da doutrina entende existir
apenas trs tipos de aes (classificao trinria), as quais
seriam a meramente declaratria, a constitutiva e a
condenatria, e uma outra parte que entende existir ain-
da mais dois tipos, a executiva e a mandamental, a clas-
sificao quinria, por ns adotada.
A lgica da classificao quinria nos pareceu mais
adequada por ter o condo de bem evidenciar cada carac-
terstica que compe as aes, especialmente a manda-
mentabilidade (objetivo deste trabalho). Dessa forma, tem-
se a possibilidade de entender a natureza das aes segun-
do a carga de eficcia de cada uma. Parece-nos, pois, um
raciocnio mais ntido e conseqentemente mais slido.
Da anlise sob a tica do peso da eficcia dos
elementos, conclui-se que no existem sentenas de m-
rito de contedo puro: seja uma puramente condenatria,
ou puramente declaratria, ou puramente constitutiva,
puramente mandamental ou ainda puramente executiva.
Os elementos existem sempre, o que varia a intensida-
de dessa existncia. Dessa forma, a qualidade de cada
uma resulta da quantidade ou intensidade de um dos
elementos, de como distribuda a sua intensidade.
Fixado o entendimento da existncia da ao man-
damental como espcie autnoma, faz-se necessria a
anlise de suas caractersticas. A ao mandamental tem
por objetivo preponderante obter uma ordem a que al-
gum atenda, de imediato, ao que o juzo manda. Nessas
aes evidencia-se a premncia de obedecer, h, pois, a
preponderncia da mandamentabilidade.
Nesta espcie de ao, supe-se que o juiz, ao
analisar fatos e direito postos sob sua apreciao, esteja
de tal modo convicto da presena de todos os elementos

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546 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

necessrios execuo de sua deciso que de logo possa


mandar cumpri-la.
V-se, pois, claramente, a preponderncia da
mandamentabilidade, bem mais expressiva, por exemplo,
do que a carga declarativa, ou constitutiva, ou condenatria,
ou executiva, a exemplo do que ocorre nas aes de
habeas-corpus, na ao de mandado de segurana, na de
manuteno de posse, no interdito proibitrio, na de ar-
resto, na de seqestro, busca-e-apreenso e tantas outras.

2 CLASSIFICAO DAS SENTENAS UMA CON-


CEPO FOCADA NA EFETIVIDADE

A classificao tradicional das sentenas as enume-


ra como declaratrias, condenatrias e constitutivas. En-
tretanto, as sentenas dessa classificao trinria so, nos
dias de hoje, onde se busca uma maior efetividade da
tutela jurisdicional, insuficiente para garantir tutela ade-
quada aos direitos no patrimoniais, posto que, atravs
de nenhuma delas, se tem como ordenar.
Por este motivo, e com a mesma lgica utilizada na
classificao das aes, adotamos a classificao quinria
das sentenas, a qual introduziu a sentena executiva e a
mandamental, por conterem auto-executoriedade, e des-
sa forma serem mais capazes de imprimir uma maior
efetividade prestao jurisdicional.
Dessa forma, vale a reflexo sobre o seguinte as-
pecto: se surgiu nova necessidade de proteo jurisdicional
e, assim, nova modalidade de tutela, no h razo para se
preservar a antiga classificao trinria como se ela fosse
absoluta e intocvel. 1

1
CARRIO, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje
lenguaje. Buenos Aires:
Abeledo Perrot, 1990. p.98.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 547

Ademais, hoje, o direito brasileiro contm expressa


aluso aos provimentos judiciais de natureza mandamental,
conforme prev o art. 14 do CPC com a redao que lhe
foi dada pela Lei N 10.358/2001.
Vejamos, pois, o fundamento da nova classificao.
Antes, porm, importante ressaltar que parte da
doutrina, vale dizer, composta de grandes e respeitados
nomes, no aceita a classificao quinria das sentenas,
entendendo-a como desnecessria, posto que, para estes
juristas, o conceito de sentena condenatria amplo e
suficiente para incluir as sentenas executivas e manda-
mentais, no necessitando, pois, de novas classes de sen-
tenas2 .
Ao analisarmos a origem da classificao trinria, o
sentimento que se tem de que no apenas reflete a
necessidade de isolar o direito material do processo, como
tambm, espelha valores do direito liberal, fundamental-
mente a pretendida neutralidade do juiz, a autonomia da
vontade, a no ingerncia do Estado nas relaes dos
particulares e a incoercibilidade do fazer.
Dessa forma, todas as sentenas da classificao
trinria so, lato sensu, declaratrias, posto que no per-
mitem ao juiz ordenar, o reflexo do Estado liberal o
qual fez surgir um juiz despido de poder de imperium,
que deveria apenas proclamar as palavras da lei.
O juiz, na sentena condenatria, alm de declarar,
aplica a sano, abrindo as portas para a ao de execu-
o, e apenas esta interfere no plano da realidade social.
Dessa forma, sem a ao de execuo, a sentena conde-

2
Nesse sentido, considerando que as sentenas executivas e mandamentais
so, em verdade, sentenas condenatrias. BERMUDES. Introduo
ao Processo Civil.
Civil p. 121. de se referir a posio de Arruda Alvim,
para quem as sentenas mandamentais so , em verdade, constitutivas
(Sentena no Processo Civil. Repro 2/59).

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548 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

natria ficaria reduzida a uma espcie de sentena decla-


ratria, da qual se diferencia to somente por conter uma
sano, e assim, a potencialidade de abrir ensejo para a
execuo.
H que se atentar, pois, para o fato de que uma
jurisdio com funo meramente declaratria est com-
prometida com o princpio da separao dos poderes e,
principalmente, com a relevncia institucional que foi
dada pelo direito liberal ao poder legislativo. A sentena
lato senso, ento, seria to somente a reafirmao da von-
tade da lei e a autoridade do estadolegislador. O juiz
seria apenas um boca da lei3 .
No resta dvida que o juiz, na sentena manda-
mental para ordenar, tambm tem que declarar, esse no
o problema, posto que o juiz precisa investigar a exis-
tncia do direito para poder ordenar. O problema reside
em reduzir a funo do juiz declarao, privando-o da
possibilidade de dar ordens e exercer, assim, o imperium4 .
Em assim sendo, clara a imprescindibilidade para uma
maior efetividade da tutela jurisdicional, de uma sentena
que ordene.
V-se, pois, que a classificao trinria das senten-
as tem ntida relao com um Estado marcado por uma
acentuao dos valores da liberdade individual em rela-
o aos poderes de interveno estatal, revelando ainda
ntida opo pela incoercibilidade das obrigaes.
Isso ocorre porque o processo liberal, permeado
pelos princpios da abstrao dos bens e sujeitos e da
equivalncia dos valores, no estava preocupado em as-
segurar o adimplemento in natura, ou em assegurar ao

3
TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moderna
(assolutismo e codificazione del diritto). Bologna: Il Mulino, 1976. p.287.
4
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conheci-
mento
mento. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 452.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 549

credor o que lhe era devido, mas apenas em garantir o


natural funcionamento da economia de mercado, e para
tanto bastava a sentena de condenao.
H que se ver, todavia, que a dinmica de vida que
hoje se vivencia outra, bem como os valores que devem
ser protegidos.
O direito liberal no tinha a menor preocupao
com a tutela das posies sociais economicamente mais
fracas, nem mesmo com a proteo de determinados bens
que hoje merecem, em razo de sua imprescindibilidade
para a insero do cidado em uma sociedade mais justa,
tutela jurisdicional diferenciada. Em funo dessa realida-
de, a tutela no precisava ser especfica, bastando apenas
o restabelecimento do valor econmico da leso, isto , a
tutela ressarcitria5 .
V-se, pois, a ntima relao entre a ideologia
liberal e a transformao do processo econmico, e a
estreita ligao entre a igualdade formal das pessoas, a
concepo liberal de contrato e o ressarcimento do dano
como a sano que expressa a realidade de mercado.
Ou seja, a idia de que se os homens gozam de
liberdade para contratar, no cabe ao Estado interferir no
caso de inadimplncia. A interferncia estatal se limita
conteno do que proibido, gozando dessa natureza a
tutela ressarcitria.
A sentena condenatria, enquanto sentena que se
liga execuo por sub-rogao, no tem o condo de
obrigar, posto que independe da vontade do obrigado,
de algo que atue sobre sua vontade. V-se a uma clara
ligao com a ideologia liberal, j que o juiz no tem o
poder de atuar sobre a vontade do ru, privilegiando a
liberdade individual.

5
MAZZAMUTO, Salvatore.. LLattuazione
attuazione degli obblighi di fare
fare.
Napoli: Jovene, 1978. p. 35.

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550 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

O mesmo ocorre com a sentena declaratria, que


regula, sem interferncia na esfera do particular, uma
relao jurdica j estabelecida pelas partes. Ambas so
reflexos da ideologia de que, interferir na relao, no se
constitui proteo, mas um verdadeiro atentado contra a
liberdade e a dignidade dos homens. 6
A anlise de todos esses aspectos nos leva a con-
cluir que o sistema clssico de proteo dos direitos no
se preocupava com a preventividade, posto que se base-
ava na idia de que qualquer infringncia se corrigiria
pelo ressarcimento. Uma idia, com certeza inadequada
aos dias de hoje, onde muitos bens da vida requerem
uma tutela jurisdicional diferenciada, o que significa di-
zer que, para algumas situaes, nada ou quase nada
adiantar a tutela to somente ressarcitria.
Em razo dessa carncia, que o processo mo-
derno vem buscando um redirecionamento de sua estru-
tura normativa, a exemplo do que ocorre com os arts.
461 e 461 A, do CPC, e do art. 84 do CDC, os quais
permitem que se ordene, sob pena de multa, o que no
se encaixa em nenhuma das decises da classificao
trinria, visando prestao de uma tutela verdadeira-
mente efetiva.

3 A SENTENA MANDAMENTAL

A sentena mandamental a que ordena mediante


coero indireta. a que tem auto-executoriedade. Con-
ter auto-executoriedade significa dizer que a sentena,
por si s, j tem fora executiva, posto que contm uma
ordem, em paralelo a um mecanismo coercitivo, no pre-
cisando, pois, de uma ao que lhe d eficcia. Dessa

6
CHIARLONE, Ver SRGIO. Misure coercitive e tutela dei diritti
diritti.
Milano: Giuffr, 1980.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 551

forma, conclui-se que este o seu elemento eficacial: a


existncia de uma ordem para que se expea um man-
dado.
A sentena mandamental se diferencia das demais
por tutelar o direito do autor, forando o ru a adimplir a
ordem do juiz. A ordem que nela existe significa imperium,
elemento inexistente na sentena condenatria, por exem-
plo, compreendida como sentena correlacionada com a
execuo forada. 7
Curial observarmos o significado da expresso
forar o ru a adimplir a ordem do juiz. Pontes de
Miranda, atravs de pequeno excerto de sua obra Co-
mentrios ao Cdigo de Processo Civil, nos esclarece,
como sempre de forma extraordinria, a respeito da
natureza da ordem contida na sentena mandamental,
evidenciando-lhe o aspecto da imediatidade a diferenci-
la dos demais elementos que compem os atos
decisrios, verbis:

Na sentena mandamental, o ato do juiz


junto, imediatamente, s palavras
(verbo), _ o ato, por isso, dito ime-
diato. No mediato como o ato exe-
cutivo do juiz a que a sentena con-
denatria alude (anuncia); nem inclu-
so, como o ato do juiz na sentena cons-
titutiva. 8

V-se, pois, que a sentena mandamental se carac-


teriza pela presena dos seguintes elementos: reconheci-
mento de direito, imediatidade, ordem e coero. Dessa

7
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitria
Inibitria, cit., p.351.
8
MIRANDA, Pontes. Comentrios ao Cdigo de PProcesso rocesso Civil
Civil:
arts. 444 475.
475 Rio de Janeiro: Forense, 1974. Tomo V, p. 63.

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552 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

forma, conclui-se que a auto-executoriedade o resulta-


do da contemporaneidade entre o reconhecimento do di-
reito e a ordem com fora coercitiva.

4 O FUNDAMENTO DO CUMPRIMENTO DA
ORDEM E SUA IMEDIATIDADE

As decises mandamentais so especiais, justamen-


te para tutelarem situaes especiais. Se ensejam manda-
mentabilidade, porque o ordenamento jurdico julgou-a
to importante a ponto de justificar essa mandamentabili-
dade. Se h ordem, porque a situao no pode esperar
pelo rito normal. A presena da ordem significa que a
urgncia a ensejou, sob pena de no mais adiantar a
prestao jurisdicional, posto que, em certas situaes,
atitude tardia omisso.
A necessidade de proteo to contundente que
s resta a ordem, qualquer coisa menos eficaz incuo.
Dessa forma, o fundamento do cumprimento da
ordem a contundncia da necessidade de que se reveste
a situao de uma tutela imediata sob pena de transfor-
mar-se em algo menos que especial, menos que remdio,
menos que herico, ou at mesmo, menos que justo. a
esse imperativo que se obedece.

A Coercitividade

Como vimos, na sentena mandamental h que se


cumprir a ordem, face imperiosidade que ensejou a
mandamentabilidade. Essa ordem, por sua vez, h que
ser contempornea ao reconhecimento do direito e dota-
da de coercitividade. Para tanto, dever estar acompanha-
da de mecanismos, os quais constituem meios de coer-
o, a fim de que seja efetivamente cumprida, que tenha
eficcia.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 553

Esses mecanismos de coercitividade so objetos


complementares de sua efetividade. No mais com a fei-
o de mandar cumprir, mas de punir, porque no se
cumpriu. Surge, dessa forma, a sano.

A sano como objeto complementar de efetividade

Em assim sendo, o sistema estabelece diversos mei-


os de coero do destinatrio, os quais se constituem em
multas, priso etc. , pois, a sano, a forma comple-
mentar da efetividade da sentena mandamental, indis-
pensvel para o fim de que seja cumprida a ordem e que
se chegue a uma efetividade da prestao jurisdicional.
Em assim sendo, a sano h de estar sempre pre-
sente no decisum, concomitantemente com a ordem, posto
que, o que lhe d eficcia. Caso contrrio, no se for-
mar o mecanismo de efetividade. Ou seja, o mesmo ato
que reconhece o direito o mesmo que manda e coage
para isso. Como faz-lo na ausncia da sano?
O sistema processual admite que a ordem judicial
seja acompanhada por uma ou mais espcies de sano.
O importante que a fora coercitiva dessa previso seja
suficientemente capaz de compelir o demandado a cum-
prir a ordem contida na deciso.
Quanto incidncia das sanes, estas podem incidir
de diversas formas: sobre a prpria pessoa, sobre seu
patrimnio, na sua atuao processual etc. Entretanto, h
uma tendncia na maximizao das sanes sobre o
patrimnio9 , em detrimento das que incidem na pessoa

9
Como j anotava Barbosa Moreira, tendncia do direito moderno que
as medidas coercitivas de ordem pessoal fiquem reservadas para casos
excepcionais, como o das dvidas de alimentos. Em compensao, ten-
dem a ver-se consagradas com largueza crescente as de ordem
patrimonial, do tipo astreintes.Tendncias em matria de execuo de
sentenas e ordens judiciais, RePro 41/163.

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554 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

do destinatrio, sendo esta utilizada to somente em ca-


sos extremos, em que as demais se mostraram ineficazes
ao cumprimento da ordem.
A sano de cunho patrimonial, a qual se constitui
na cominao de multa pecuniria, a mais importante,
tendo em vista sua eficcia prtica, principalmente com
o advento do art. 84, 4, do CDC, para as relaes de
consumo, e dos artigos 461, 4, e 461-A do CPC para os
casos genricos que tratem de obrigao de fazer ou no
fazer ou de entrega de coisa.
As sanes pessoais, normalmente, so advertnci-
as e medidas de coero fsica, as quais resultam em
grande eficcia prtica, face presso psicolgica que
produzem. Entretanto, sua utilizao restrita, aplican-
do-se apenas aos casos em que outros tipos de sano
no alcanam o resultado desejado.
O exemplo mais famoso a execuo da presta-
o de penso alimentcia, a qual possui normativo que
estabelece pena de priso para o caso de descumprimento
da ordem10 .
No exemplo acima, v-se que a presso psicolgi-
ca que tem o verdadeiro poder coercitivo, por este
motivo alguns defendem a possibilidade de aplicar a pri-
so civil para os casos de desobedincia s ordens judi-
ciais, a exemplo do que ocorre nos pases que adotam o
sistema do common law, no qual empregam o mecanis-
mo coercitivo denominado Contempt of Court.
O instituto do Contempt of Court se constitui na
recusa em se obedecer a uma ordem judicial, que pode
ser o civil contempt, que objetiva induzir a parte a cum-
10
Na execuo da sentena ou de deciso que fixa os alimentos provisio-
nais, o juiz mandar citar o devedor para, em trs (3) dias, efetuar o
pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetu-lo.
1. Se o devedor no pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe- a
priso pelo prazo de um (1) a trs meses,conforme art. 733 do CPC.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 555

prir o comando judicial, e o criminal contempt, que tem


dupla finalidade: punir aquele que se recusa a cumprir a
deciso judicial e inibir outras pessoas a desobedecer a
essa ordem.
Curial dizer que em nosso ordenamento h o que
se chama de Contempt of Court Brasileiro11 . Na verda-
de, trata-se do ato atentatrio ao exerccio da jurisdio,
mecanismo inserto no art. 14, inciso V, e pargrafo nico
do CPC, introduzido pela Lei n 10.358/01, com o fito de
dar mais eficincia e efetividade prestao jurisdicional,
todavia, numa feio bem mais contida do que a verso
anglo-saxnica, posto que, entre outros aspectos no prev
a priso civil.
Quanto priso civil, entende Srgio Shimura12 que
preciso interpretar a priso como forma de concretizao
do direito fundamental tutela efetiva, e no apenas como
uma odiosa leso ao direito de liberdade. Realmente, a pri-
so, no caso, no tem a ver com dvida. Trata-se de meio
coercitivo para cumprimento das determinaes judiciais.
Todavia, no se pode olvidar os bices impostos
pela Constituio Federal. Com efeito, o Brasil signat-
rio da conveno americana de Direitos Humanos, a qual
probe qualquer forma de priso civil, salvo a do devedor
de alimentos13 . Por sua vez, a referida conveno ganha

11
CMARA, Alexandre Freitas. O contempt of court brasileiro como meca-
nismo de acesso ordem jurdica justa. Revista dialtica de direito
processual
processual, So Paulo,, n. 18, p. 9-19, set. 2004.
12
Efetivao das tutelas de urgncia. In : Processo de execuo execuo,
p.674.
13
Segundo Barbosa Moreira, difcil ir alm das astreintes , sobretudo no
que concerne a medidas de coero pessoal as quais, sem falar em
possveis objees de princpio, suscitariam desde logo questo de
legitimidade constitucional; o art. 153, 17 da constituio da Repbli-
ca s admite priso civil por dvida nos casos de depositrio infiel e do
responsvel pelo inadimplemento de obrigao alimentar. (Notas so-
bre o problema da efetividadedo processo, p. 40)

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556 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

fora de garantia individual, em face da previso do arti-


go 5, 2, da CF.
Ademais, como a falta de cumprimento de deciso
judicial atrai sanes penais com penas privativas de li-
berdade, se faz desnecessria a adoo da priso civil
para tais casos.
A sano penal tem por finalidade punir a infrao
cometida pelo agente, diferentemente das demais que tm
por funo fazer cumprir o comando judicial, apesar de
que termina por coibir, da mesma forma, o descumpri-
mento da ordem.
O cdigo penal tipifica como crime desobedecer
a ordem legal de funcionrio pblico. Dessa forma, para
fins de aplicao, o juiz considerado funcionrio pbli-
co, e descumprir sua ordem crime. No se pode, toda-
via, confundir ordem com exortao, em assim sendo,
apenas o desrespeito s decises que contm uma or-
dem, as mandamentais, que tipificam o crime de deso-
bedincia14 .
Os sujeitos ativos da conduta tipificada podem ser
particulares ou funcionrios pblicos em sentido amplo,
em relao a atos e fatos no relacionados ao exerccio
do cargo e funo pblicos, podendo inclusive caracte-
rizar o crime de prevaricao, ou de responsabilidade
quando o funcionrio pblico estiver no exerccio da
funo.
No caso de pessoa jurdica de direito privado, ser
considerado sujeito ativo do delito a pessoa responsvel
pelo cumprimento da ordem. Para Eduardo Talamine 15
irrelevante a circunstncia de o representante, pesso-
almente considerado, ser terceiro no processo civil de

14
TALAMINE, Eduardo. Ainda sobre a priso como execuo in-
direta, p.289-290.
15
Ainda sobre a priso, p. 307.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 557

que proveio a ordem, at porque reitere-se o sancio-


namento por desobedincia alheio ao processo em cur-
so. De resto, sempre se reconheceu que o crime de
desobedincia praticvel por terceiros em relao ao
processo.
J para as pessoas jurdicas de direito pblico ocorre
de forma diferente, tendo em vista no caracterizar cri-
me de desobedincia, e sim, de prevaricao. Entretan-
to, surge a um complicador, posto que para sua
tipificao se faz necessria a presena do elemento
subjetivo satisfazer interesse ou sentimento pessoal,
dessa forma no h como se punir o agente pblico
pelo crime de prevaricao.
Nesse sentido, Eduardo Talamine entende que

o funcionrio pblico, ao descumprir or-


dem judicial em virtude de determina-
o de seu superior hierrquico, pratica
crime de desobedincia ou prevaricao,
pois o art. 22, CP, somente subtrai a res-
ponsabilidade penal quando a ordem do
superior hierrquico no manifesta-
mente ilegal. No caso de deciso judici-
al, seria manifestamente ilegal a ordem
para descumpri-la, devendo o funcion-
rio, portanto, obedecer ao comando ju-
dicial. 16

Adotamos, pois, o entendimento acima esposado,


posto que, do contrrio teramos a institucionalizao da
imunidade do poder pblico no que diz respeito ao cum-
primento de ordens judiciais. O que, para um Estado de
Direito Democrtico, termina por se constituir em fragili-

16
Ainda sobre a priso
priso, p. 309

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558 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

dade, tendo em vista o risco que se corre ao admitir-se a


inatingibilidade do poder pblico diante das ordens do
judicirio.
o que ocorre, por exemplo, com a Fazenda P-
blica Nacional, notadamente no governo em exerccio,
onde se vivencia um total desrespeito s decises judici-
ais, pelos delegados da Receita Federal, os quais se arvo-
ram a reinterpretar decises mandamentais, sob a orien-
tao do Governo federal, numa clara tipificao do cri-
me de desobedincia.

6 EFETIVAO DA TUTELA

Entretanto, mesmo com essa fora coercitiva pode


acontecer que a deciso no seja cumprida.
O que fazer ento?
Uma das opes a converso da obrigao infun-
gvel em perdas e danos e o atingimento do patrimnio
do destinatrio da ordem descumprida, a fim de satisfa-
zer a obrigao. Uma outra, seria a converso do carter
mandamental da sentena em executivo lato sensu.
Curial observar que no h uma modificao na
sentena que a altere de mandamental para executiva,
pois na sentena mandamental j existe a eficcia execu-
tiva, o que se promove, pois, to somente a sua intensi-
ficao.
Essa converso termina por produzir uma maior
coercitividade, posto que produz o efeito psicolgico de
mostrar ao destinatrio da ordem que o preceito ser
cumprido, com ou sem a sua colaborao. Entretanto,
no todo tipo de ordem que se pode converter, a exem-
plo das que so intuito personae e possuem um perodo
de tempo limitado para sua prestao. Para estes casos,
resta a indenizao por perdas e danos, sem prejuzo das
sanes cabveis.

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 559

Com efeito, o descumprimento da ordem se equi-


para situao em que ocorreu o dano, atraindo a tutela
ressarcitria conforme preceituao do artigo 927 do C-
digo Civil.

O ressarcimento, dessa forma, faz com que, mes-


mo que a tutela no seja prestada como determinada, no
haja prejuzo, ou que pelo menos este seja minimizado,
posto que, nas perdas e danos computa-se tudo o que
perdeu, e mais o que deixou de lucrar.
O sentimento que se tem quanto efetividade da
prestao jurisdicional que, mesmo com a reforma pro-
cessual, muito fica a desejar. E da observao que fazem
os especialistas, o que se conclui que o bice maior
dessa efetivao reside na estrutura falha do processo de
execuo.
Diante dessa constatao, algumas solues so
sugeridas a exemplo da previso abrangente de crime de
desobedincia para o descumprimento de decises que
contenham ordem, ou mesmo a introduo de um tipo
penal de ato atentatrio dignidade da justia.
O que no se pode permitir que cesse a busca
pela efetividade da prestao jurisdicional. E no resta
dvida que a sano a forma mais eficaz de conduzir
obedincia das ordens judiciais. Em assim sendo, que as
tornemos mais abrangentes e mais coercitivas. Respeitan-
do, logicamente os princpios e garantias fundamentais.
No se pode, entretanto, permitir a injustia de uma justi-
a sem efetividade. Seria um ferimento de direito ainda
maior.
No decorrer deste item pudemos observar que as
ltimas alteraes das normas processuais fortaleceram a
teoria da sentena mandamental, a qual exerce papel de
fundamental importncia na obteno da tutela jurisdicional
especfica.

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560 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

Por ser dotada de mais eficcia, a sentena manda-


mental um mecanismo que tende a se tornar mais
abrangente. Para tanto, necessrio se faz munir o judici-
rio de dispositivos com poder para tal fim. Entretanto,
sem o desrespeito aos limites constitucionais, como no
caso da priso civil, a qual nos parece drstico, e que
resultaria no s no atentado liberdade do indivduo,
bem como, em mais um dispositivo legal sem uso.
O que se precisa, pois, a utilizao dos mecanis-
mos que j se tem, de seu aprofundamento, e que dessa
vivncia seja tirada e aperfeioada a idia de qual o meio
mais eficaz para o atingimento da efetiva prestao
jurisdicional.

7 UM CASO CONCRETO

A fim de ilustrarmos o estudo em tela, trazemos um


caso concreto, onde, a nosso ver, houve um claro afronta-
mento auto-executoriedade das decises mandamentais.
Com efeito, a deciso em foco desconsidera a pr-
pria auto-executoriedade, ao determinar extrao de car-
ta de sentena em mandado de segurana, a fim de que
se proceda a execuo, aplicando, assim, a orientao
geral do art. 521 do CPC, e no a execuo direta do
decisum com simples ofcio ao destinatrio da ordem,
como seria o procedimento correto para tais casos. Con-
forme transcrio abaixo:

...

A despeito da juridicidade dos argu-


mentos favorveis imediata executo-
riedade dos acrdos proferidos em ape-
lao de mandado de segurana, inclusi-
ve na prpria segunda instncia, esta

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 561

egrgia Primeira turma firmou o entendi-


mento de que a execuo de acrdos
compete ao juzo de origem , na primeira
instncia , razo por que cabe ao Presi-
dente da Turma ou Relator, to-s, de-
terminar a baixa definitiva dos au-
tos, aps o trnsito em julgado da
deciso, ou a expedio de carta
de sentena, quando houver recur-
so pendente de julgamento.17
... (Grifamos)

surpreendente o posicionamento, posto que no


h previso legal que condicione a execuo provisria
da sentena mandamental extrao de carta de senten-
a. Pelo contrrio, o que quis o legislador ao atribuir ao
mandado de segurana um rito especial, que permite a
execuo especfica, foi, justamente, dar celeridade ao
remdio. Alis, como ocorre com todas as situaes
ensejadoras de decises mandamentais.
Com efeito, se o legislador entendeu que a situao
em tela estaria ao abrigo de uma proteo especial,
para que seja especial por todo o processamento. Ou
seja, todos os seus mecanismos e atos devero estar im-
pregnados da essncia de celeridade que lhe motivou a
proteo.
Lamentvel, pois, o posicionamento daquela egr-
gia corte. como se a situao merecesse a proteo
clere do rito mandamental, e que em determinado mo-
mento essa necessidade de proteo deixasse de existir,
ensejando, dali por diante, o rito ordinrio.
Numa viso analtica da estrutura da mandamen-
tabilidade, conclui-se que, no caso em tela, esta foi mu-

17
TRF1. AGMS n 199801000610701. DJ de 27/09/1999
(...) (TRF1. 27/09/1999).

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562 SIMONE DUQUE DE MIRANDA

tilada. Com efeito, o decisum reconheceu o direito, entre-


tanto, tornou-se mera deciso condenatria, posto que a
imediatidade foi suprimida pela determinao da extra-
o de carta de sentena para execuo provisria peran-
te o juzo singular.
Nesse momento, estancou-se todo o rito manda-
mental, posto que mesmo reconhecido o direito, no houve
imediatidade, no houve ordem, e nem a coercitividade
para fazer cumpri-la. Entretanto, a natureza da situa-
o jurdica a cujo amparo se destinou a manda-
mentabilidade permanece, a situao continua a ensejar
proteo, o que nos leva a concluir que no houve
efetividade da prestao jurisdicional.
Dessa forma, questiona-se: essa concretizao de
distribuio de justia pode esperar pela finalizao do
rito ordinrio?
E se pode, como ensejou mandamentabilidade?
Vimos, pois, um caso em que a auto-executoriedade
no foi respeitada, entretanto, no pelo destinatrio da
ordem que deveria conter a deciso, mas pelos prprios
julgadores que, numa viso, lamentavelmente equivocada
da deciso mandamental, terminaram por mutil-la. Tira-
ram-lhe, pois, a essncia, a natureza de remdio e conse-
qentemente, a efetivao da prestao jurisdicional.

8 CONCLUSO

Da pesquisa conclui-se que a auto-executoriedade


o resultado da contemporaneidade entre o reconheci-
mento do direito e a ordem dotada de fora coercitiva.
Este o elemento fundamental das decises que se
formam a partir das pretenses que ensejam manda-
mentabilidade.
A mandamentabilidade, pois, especial s situa-
es especiais, as quais o legislador considerou to im-

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A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 563

portantes que deveriam estar ao abrigo desse tipo de


mecanismo.
Nesse sentido, de se observar que se no houve
formatao de sentena mandamental, porque no ca-
racterizou uma situao que justificasse o remdio, ou
seja, os elementos ensejadores da mandamentabilidade
no estavam presentes. Entretanto, formado o decisum,
reveste-se este de auto-executoriedade. E em assim sen-
do, no tem como no ser cumprida a ordem que dele
emana.
Diante das reflexes, o sentimento que fica de
que o desrespeito s sentenas mandamentais, seja no
seu cumprimento ou na sua prolatao, fere direitos que
emanam do mais puro ideal, fruto do Estado Democrti-
co de Direito, especialmente a ordem jurdica justa.
H que se lutar, pois, para que no se permita o
desrespeito ao mecanismo da auto-executoriedade, posto
que se constitui numa conquista da evoluo do direito
processual civil brasileiro, e que, com certeza ter seu
uso alargado face grande contribuio na busca pela
efetividade da tutela jurisdicional.

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Sem ttulo-6 564 29/8/2006, 20:18


A AUTO-EXECUTORIEDADE DA SENTENA MANDAMENTAL 565

____________. Tratados das aes. Aes Mandamentais.


So Paulo: Revistas dos Tribunais, 1976. Tomo VI

WATANABE, Kazuo. Da Cognio no Processo Civil. So


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Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996.

TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica moder-


na (assolutismo e codificazione del diritto). Bologna: Il
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Sem ttulo-6 565 29/8/2006, 20:18


566 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 567

VERDADE E PRAGMATISMO:
O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD RORTY

Teodomiro Noronha Cardozo


Juiz de Direito Titular da 1 Vara Criminal e
do Tribunal do Jri da Comarca do Paulista.
Ps-graduado pela Escola Superior da
Magistratura de Pernambuco ESMAPE.
Ex-Coordenador da ESMAPE. Especialista
em Direito Pblico e Privado pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco UFPE.
Especialista em Cincias Criminais pela
UFPE. Mestrando em Direito Pblico pela
UFPE. Professor Titular de Tcnica de
Elaborao de Decises Penais da ESMAPE.
Professor Substituto da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Pernambuco.

Em nossa cultura, as noes de cincia,


racionalidade, objetividade e verdade esto
em ligao estreita umas com as outras. A cincia
pensada como fornecendo uma verdade slida,
objetiva; verdade enquanto correspondncia
realidade; o nico tipo de verdade digno desse
nome. (RORTY, Richard. Objetivismo,
ralativismo e verdade: escritos filosficos
I. Traduo: Marco Antnio Casanova. Rio
de Janeiro : Relume-Dumar, 1997. p. 55).

SUMRIO
1 INTRODUO
INTRODUO.. 2 O QUE PRA GMA
PRAGMA TISMO
GMATISMO
TISMO. 2.1 Distino entre
verdade e verdadeiro. 2.2 O deflacionismo pragmatista. 2.3 A lista tricotmica
de Rorty sobre o uso do termo verdadeiro.. 3 O CONCEIT
CONCEITO O PRA GMTICO
PRAGMTICO
DE VERD
VERDADEADE DE RICHARD ROR RORTYTY
TY.. 3.1 Contextualizao da objetividade
solidariedade. 3.2 Crticas ao realismo. 3.3 Noo de correspondncia entre
fato e verdade. 4 CONCLUS
CONCLUSES ES
ES.. 5 REFERNCIAS
REFERNCIAS.

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568 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

1 INTRODUO

O pragmatismo uma filosofia criada nos Estados


Unidos da Amrica. conhecido como a contribuio autenti-
camente americana para a filosofia. Seus autores clssicos so
Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-
1910) e John Dewey (1859- 1952).

William James definiu o pragmatismo como um


empirismo radical e como um mtodo para a verdade. Com isso,
James afirmou que na disputa entre racionalismo e empirismo
o pragmatismo deveria ser a superao de ambos.1

Os pragmatistas rejeitam definies racionalistas de


verdade ou conhecimento que seja criada, independentemente,
de uma compreenso do homem que realmente conhece a
verdade ou o conhecimento.2

Para Richard Rorty, os pragmatistas afirmam que a


melhor esperana para a filosofia abandonar a prtica da
Filosofia. Eles crem que para decidir algo verdadeiro de nada
serve pensar na Verdade, como tampouco de nada serve pensar
na Bondade para atuar bem, nem pensar na Racionalidade para
ser mais racional.3

1
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. O que pragmatismo
pragmatismo. Disponvel em :
www.filosofia.pro.br. Acesso em : 22 ago. 2004, pp. 1-2.
2
SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano americano. Tra-
duo de Fbio M. Said. Rio de Janeiro : DP&A, 2002. p. 14.
3
RORTY, Richard. Consecuencias del pragmatismo
pragmatismo. Traduao: Jos
Miguel Esteban Cloquel. Madrid : Editora Tecnos, 1996. p. 21. Tradu-
o livre do texto em espachol: Los pragmatistas afirmam que la mejor
esperanza para la filosofia es abandonar la prctica de La Filosofia.
Creen que para decir algo verdadeiro de nada sirve pensar La Verdad,
como tampoco sirve de nada pensar en La Bondad para actuar bien, ni
pensar em La Racionalidad pra ser ms racional.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 569

Rorty se orgulha do pragmatismo como contribuio


filosfica, genuinamente americana, para o mundo.4

Cabe, de logo, frisar que Rorty identifica seu pensamen-


to pragmtico com os de seus fundadores clssicos como John
Dewey, Willian James e Charles Sanders Pierce e, por isso,
no aceita ser chamado de neopragmatista.

Na apresentao do livro Para realizar a Amrica O


pensamento de esquerda no sculo XX na Amrica, de Richard
Rorty, Paulo Ghiraldelli Jr., afirma que o pragmatismo uma
corrente filosfica, no pela razo de o pragmatismo se ocupar
de uma essncia filosfica, mas porque os pragmatistas e
neopragmatistas tratam de assuntos, que no passado e, em
diversos lugares, em diversas comunidades, as pessoas sobre
eles j conversaram, cujos assuntos so filosficos ou metafilo-
sficos.5

Para Emile Durkheim o pragmatismo caracteriza-se: (1)


como mtodo pragmtico, que consiste em procurar
interpretar cada concepo segundo suas conseqncias
prticas; (2) como uma teoria da verdade e , sobretudo, pela
teoria da verdade que o pragmatismo tem interesse; (3) como
uma teoria do universo para, justamente, estabelecer uma
teoria da verdade.6

4
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. A filosofia do novo mundo em bus bus--
ca de mundos novos. Petrpolis, RJ: Vozes, 1999. p.34.
5
RORTY, Richard. Para R ealizar A Amrica: O PPensamento
Realizar ensamento Da
Esquerda No Sculo Xx Na Amrica. Traduo: Paulo Ghiraldelli
Jr., Alberto Tosi Rodrigues , Leoni Henning. Rio de Janeiro: DP& A
Editora, 1999. p. 07.
6
DURKHEIM, Emile. Sociologia pragmatismo e filosofia (pragmatism
et sociologie sociologie et philosophie). Traduo de Evaristo Santos.
Porto, Portugal : RS Editora, Lta, s.d. p. 22 e 23.

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570 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

2 O QUE PRAGMATISMO

2.1 Distino entre verdade e verdadeiro

A distino que a filosofia clssica faz entre verdade e


verdadeiro tem sempre um sentido objetivo: o verdadeiro o
que o falso o que no . Assim, h uma identidade do
verdadeiro com o ser, enquanto que a verdade no uma coisa,
mas consiste em pensar a essncia das coisas como de fato elas
so.7 Rorty, dentro de sua perspectiva pragmatista, tem a
concepo de que no possvel afirmar que algumas sentenas
so de fato verdadeiras e outras so falsas.8

As teorias da verdade, segundo Paulo Ghiraldelli Jnior,


especialista em filosofia americana, subdividem-se basicamente
em duas vertentes: de um lado, as que substantivam a verdade
na medida em que a tomam como sendo uma apropriao
real e importante dos elementos lingsticos aos quais se
possvel aplicar o predicado verdadeiro, a exemplo, de sentenas,
declaraes, proposies, crenas etc, e as teorias deflacionrias
que dessubstanciam o termo verdade.

2.2 O deflacionismo pragmatista

Para Paulo Ghiraldelli Jr., antes do deflacionismo havia


duas teorias: o correspondentismo e o coerentismo. A primeira,
realista, entendia que havia algo de extralingstico no mundo
- o fato - que torna verdadeiro o lingstico. A segunda, idealista:

7
ALVES, Alar Caff. Lgica: pensamento formal e argumentao
: elementos para o discurso jurdico. 3. ed.- So Paulo: Quartier
Latin, 2003. p. 325-327.
8
PINTO, Paulo Roberto Margutti et alii (organizadores). Filosofia ana-
ltica, pragmatismo e cincia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
p. 16-17.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 571

o lingstico se combina com o lingstico, e s. Os crticos


dessas duas teorias vo dizer que a primeira (correspondentismo)
acusada de circularidade e a segunda (coerentismo), de rela-
tivismo.9

Das teorias deflacionrias exsurge a mais conhecida delas


que , justamente, a da redundncia. Essa teoria vislumbra
uma equivalncia entre a afirmao de uma proposio p e a
afirmao de que p verdadeiro. Exemplifica Rorty: quando
se diz: verdade que o gato est em cima da mesa, no se est
dizendo nem mais nem menos que o gato est em cima da mesa e da
pode-se inferir que o predicado-verdade um elemento que
mais cumpre uma funo de performance do que mesmo de
explicao.

Paulo Ghiraldelli Jnior pontifica o seguinte:

Esse clima deflacionista o que alimenta a posio


de Rorty, para quem o que se pode dizer da verdade
no nada metafsico e/ou essencialista, de modo
que devemos nos limitar a elencar apenas os usos
do predicado-verdade na sua facilitao da
comunicao entre falantes.1 0

9
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. Op. Cit. (nota 04), p 38. Afirma Habermas
que Rorty, ao contrrio de Heidegger, no pode mais, depois da filosofia
analtica, estilizar um pensamento ps-metafsico como sagrada
rememorao do Ser; ele compreende a desconstruo da histria da
metafsica no sentido de Wittgenstein: como um diagnstico
deflacionante. O antiplatonismo retira um significado eminentemente
prtico to-somente da gravidade da doena que ele deveria curar.
Habermas, Jrgen. Verdade e justificao: ensaios filosficos. Ttulo
original (Wahrheit Rechtfertigung Philosophische Aufstze); Tradu-
o de Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola, 2004. p.
231-232.
10
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. Op. Cit. (nota 04), p. 36-37

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572 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

2.3 A lista tricotmica de Rorty sobre o uso do termo


verdadeiro

Nesta linha de raciocnio, Rorty apresenta uma lista


tricotmica dos usos do termo verdadeiro: (1) um uso de
endosso, (2) um uso descitacional, e (3) um uso acautelado.

O primeiro equivale a coisas do tipo certo, est bem!,


isso mesmo!, verdade!

O segundo, aparece quando falamos coisas matalings-


ticas do tipo s verdadeiro se x. O termo verdadeiro usado
junto do argumento varivel e condicional de x. Desta maneira,
s verdadeiro se x.

O terceiro, aparece quando pronunciamos coisas do


tipo: voc cr que s est bem justificada, porm talvez ela no seja
verdadeira. Ou seja, s no pode servir, ainda, como guia de ao.

A crtica que se faz a este procedimentalismo de Rorty


que o uso acautelado do termo verdadeiro contrasta, e muito,
entre o meramente justificado e o verdadeiro e parece reintroduzir
o discurso entre justificao e verdade do tambm pragmatista
Hilary Putnam.1 1

Robert Alexy, tecendo consideraes sobre a teoria do


discurso jurdico, acentua que quem afirma algo exterioriza
sua crena naquilo que acredita. Segundo Alexy, citando o
exemplo de Rorty, no podemos dizer:

11
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo. Op. Cit. (nota 04), p. 42. Para Habermas,
o processo de justificao pode se orientar por uma verdade que, por
certo, transcende a justificao, mas sempre j operativamente eficaz
na ao. Op. Cit., p. 259.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 573

O gato est deitado na esteira mas eu no acredito que


est embora esta sentena no esteja tingida lgica ou
gramaticalmente. Na opinio de Alexy um dos mritos da
teoria do discurso tornar clara a importncia dessas regras,
que so agora habitualmente chamadas de regras
pragmticas.1 2

3 O CONCEITO PRAGMTICO DE VERDADE DE


RICHARD RORTY

3.1 Contextualizao da objetividade solidariedade

Rorty, contextualizando a objetividade solidariedade,


afirma:

Por contraste, aqueles que desejam reduzir a objetividade


solidariedade chamo-os pragmticos no precisam nem
de uma metafsica, nem de uma epistemologia.1 3

Para Rorty, aqueles que desejam fundar uma soli-


dariedade na objetividade, a quem ele os nomeou de realistas,
so chamados a construir a verdade como correspondncia
realidade1 4 e, dentro dessa perspectiva, os realistas precisam
construir uma metafsica que tenha espao para uma relao
especial entre crenas e objetos e que possa diferenciar a crena
do que falso da crena do que verdadeiro. Numa viso
naturalista-procedimentalista rortyana, a justificao de crenas
natural e no localizada. De tal arte, afirma ele: os realistas
devem construir um espao que d vazo a um tipo de
12
ALEXY, Robert. Teoria da argumentao jurdica
jurdica. Traduo de Zilda
Hutchinson Schild Silva. So Paulo : Landy Livraria , 2001. p. 59.
13
RORTY, Richard. Objetividade, relativismo e verdade: escritos
filosficos II. Traduo Marco Antnio Casanova. Rio de Janeiro:
Relume-Dumar, 1997. p. 39.
14
RORTY, Richard, Op. Cit. (nota 13) p, 39.

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574 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

justificao que no meramente social, mas natural, isto


porque aflora da prpria natureza do ser humano. Na sua
concepo de justificao, os procedimentos, pensando que
fornecem uma justificao racional, podem ou no ser
racionais, a depender da cultura a que correspondam.
Todavia, para serem procedimentos justificados, racional-
mente, tm de conduzir verdade, correspondncia com a reali-
dade, natureza intrnseca das coisas.15

No seu discurso, Rorty chega mesmo a afirmar que os


pragmticos no precisam estabelecer uma ciso entre verdade
e justificao como um isolacionismo a ser superado, a partir
de um tipo natural e transcultural de racionalidade que pode ser
usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas, simplesmente,
com a separao entre o bem atual e o melhor possvel.1 6

Para o prof. da Universidade de Stanford, o desejo dos


pragmticos pela objetividade no significa fugir das limitaes
de uma comunidade, mas, e antes de tudo, simplesmente, a
vontade de alcanar maior concordncia intersubjetiva possvel,
com a incluso, mais longe possvel, do pronome ns, por-
quanto, Rorty advoga a emancipao dos grupos oprimidos
da sociedade, a partir de uma emancipao lingstica, o que
ele chamou, expressamente, de autoridade semntica.1 7

Na leitura de Habermas, a substituio do eu para o ns de


uma comunidade lingstica em que cada um justifica suas concepes
apenas uma interpretao empirista de um novo argumento de
autoridade que levou Rorty a equiparar o saber, como o que aceito
como racional pelos critrios estabelecidos de nossa comunidade.1 8

15
Idem, ibidem, p. 39.
16
Passim, p. 40.
17
RORTY, Richard, Op. Cit. (nota 13), p. 41.
18
HABERMAS, Jrgen, Op. Cit. (nota 09) p. 235.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 575

Habermas, ao dizer que Rorty, como filsofo analtico


e pelo brilhantismo de suas teorias, explica o significado de
sua virada antiplatnica e o Rorty, agora, nominalista, inscreve-
se na tradio empirista e relaciona a autoridade epistmica prxis
social corrente da comunidade que cada vez a nossa.1 9

Com efeito, Rorty diz que relativismo o apelido tradi-


cional dado pelos realistas ao pragmatismo e, na sua opinio,
trs vises diferentes podem ser extradas do termo relativismo:
1) toda e qualquer crena to boa quanto outra; 2) a verdade
um termo equvoco e possui tantos significados quantos
forem os procedimentos de justificao, e 3) nada h para ser
dito nem sobre a verdade, nem sobre a racionalidade, alm
das descries dos procedimentos familiarizados de uma
justificao que uma sociedade a nossa - emprega numa ou
noutra rea de justificao.

3.2 Crticas ao realismo

Rorty lana crticas sobre os realistas dizendo que os


pragmatistas vo sustentar o terceiro ponto como etnocn-
trico2 0, ou seja, numa perspectiva tendente a considerar a cultura
de um povo como a medida de outros, todavia, ele refuta a
primeira e a segunda vises, achando, inclusive, que os pontos

19
Idem, p. 236. Rorty elaborou uma tipologia dos usos dos termos verda-
de e verdadeiro, tentando mostrar que isso seria o suficiente para que
ns vissemos a responder, sem qualquer inflacionamento metafsico -
que viria da tentativa de responder a pergunta qual a natureza da verda-
de?. GHIRALDELLI JNIOR, Op. Cit. (nota 04) p. 01-02.
20
Na concepo de Rorty: De qualquer forma, no est claro porque o
termo relativismo teria sido pensado como um termo apropriado para
esse terceiro ponto de vista etnocntrico, esse que o pragmatismo vai
sustentar. Pois o pragmtico no est desenvolvendo uma teoria positiva
que afirma a verdade como alguma coisa referida a outra. RORTRY,
Richard, Op. Cit. (nota 13) p. 40.

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576 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

de vista dos pragmticos so melhores do que os dos realistas,


mas no sustenta que eles correspondem natureza das coisas.
Os pragmatistas pensam que a palavra verdade como uma
expresso de aprovao em qualquer cultura significa a mesma
coisa, como termos flexveis como: aqui, l, bem, mal, voc e eu,
tm o mesmo significado em qualquer cultura.

Rorty nega que o pragmatismo tenha uma teoria da


verdade ou uma teoria relativista:

Enquanto partidrio da solidariedade sua avaliao do


valor da investigao humana cooperativa s possui uma
base tica, no uma base epistemolgica ou metafsica.
No tendo qualquer epistemologia a fortiori, ele no possui
nenhuma epistemologia relativista.21

O autor discute a questo acerca de ser a verdade ou a


racionalidade uma natureza intrnseca e se podemos, a partir
de cada um desses tpicos, construir uma relao com a natu-
reza humana, ou ainda, a partir da relao com um conjunto
especfico de seres humanos, se ns desejamos uma objetividade
ou solidariedade. Rorty reconhece, no obstante, que a
proposio assim tratada coloca a questo a favor do realista,
por pressupor esta teoria em foco que o conhecimento entre
homem e natureza possui essncias que so reais e relevantes
para o problema a ser tratado. A latere, explica, que para o
pragmatista, por contraste, conhecimento, tal como verdade sim-
plesmente, um elogio feito s crenas que pensamos que
esto bem justificadas.

Na pensamento de Habermas, para alm de um olhar


pragmtico da verdade bifronte, o nvel de argumentao cria

21
RORTY, Richard, Op. Cit. (nota 13) p. 41.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 577

uma conexo interna entre certeza de ao e assertibilidade


justificada, 22 a partir da linguagem, vez que, como afirma
Lenio Luiz Streck, estribado em Rorty, no se pode - nunca
- apreender a realidade sem a mediao de uma descrio lingstica.23

Rorty esclarece que a verdade uma questo de crena:


Verdadeiro aquilo que bom na forma de crena24. Profetiza
Rorty que a verdade algo a ser conquistado em um encontro
livre e aberto. (...) verdade como satisfao dos padres de nossa
comunidade.25

Do ponto de vista de Rorty:

Uma investigao sobre a natureza do conhecimento s


pode ser, segundo seu ponto de vista, uma avaliao
histrico-social de como pessoas variadas tentaram alcan-
ar concordncia sobre aquilo em que acreditaram.26

Assim, nenhum conceito tem essncia e o que se pode


fazer com um conceito, de modo a utilizar para melhorar a
comunicao e a cooperao humanas, coloc-lo em relao
a outros, sucessivamente contextualizando-o. Da mesma
maneira o que podemos fazer com a verdade. O que podemos
fazer ver como e quando usamos o termo verdadeiro.27

22
HABERMAS, Op. Cit. (nota 09), p. 286.
23
STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise : uma ex-
plorao hermenutica da construo do Direito. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado , 1999. p.138.
24
PINTO, Paulo Roberto Margutti et alii (organizadores), Op. Cit. (nota
08), p. 18-19.
25
RORTY, Richard, Op. Cit. (nota 13), p. 64.
26
RORTY, Richard, Op. Cit. (nota 13) p. 41.
27
GHIALDELLI JNIOR, Paulo, Op. Cit., (nota 04) p. 39.

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578 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

3.3 Noo de correspondncia entre fato e verdade

Para a teoria da verdade como correspondncia um


candidato verdade se - e somente se - ele corresponde aos fatos.
Assim, uma sentena verdadeira se o que ela diz corresponde
a um fato no mundo. Segundo Rorty, a noo aqui de fato s
pode ser explicado em termos da noo de verdade.28

Assim, o fato, por definio, corresponde, no mundo,


a uma sentena, portanto, a uma proposio que verdadeira.

Deste modo, a teoria da verdade como coerncia est


na relao de correspondncia entre elementos no-lingsticos
(os elementos do pensamento) e os lingsticos (fatos) aos quais
se aplica o predicado verdadeiro.

Destarte, para Rorty verdadeiro a justificao, e a


justificao, como algo racionalmente aceito, sempre relativo
a uma audincia.29

Contextualizando Rorty, afirma o Professor Ghiraldelli


Jr. da Unesp de Marlia:

A teoria pragmatista, por sua vez, tenta superar esses


impasses. Os pragmatistas consideram que a verdade, alis
como qualquer outro conceito, deve ser entendida em termos
da prtica.30

Isto porque, na viso de Rorty, os grupos oprimidos da


sociedade s podem melhorar sua situao na medida em que

28
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo, Op. Cit., (nota 04) p. 34-35.
29
PINTO, Paulo Roberto Margutti et alii (organizadores), Op. Cit., (nota
08), pp. 19.
30
Idem, ibidem, p. 35.

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 579

forem capazes de alcanar o que ele chama de autoridade semn-


tica sobre si mesmos, de modo que possam inventar uma
nova identidade moral para si mesmos.31

Richard Rorty sustenta que a tradio da cultura ociden-


tal est centrada numa noo de busca pela verdade (...). A
idia de verdade como algo que persuade por sua prpria causa, no
por ser boa para ns, ou para uma comunidade real ou imaginria,
o tema central dessa tradio.32

Para Habermas, o que interessa ao mundo da vida o


papel desempenhado pelo pragmatismo de uma verdade bifron-
te, que serve de intermediria entre a certeza e a ao e a assertibi-
lidade discursivamente justificada, entendendo-se o termo justifi-
cado como argumento racionalmente aceito, dentro de um
auditrio idealizado:33

A verdade de proposies descritivas significa que


os estados de coisas enunciados existem, enquanto
a correo das proposies normativas reflete o
carter obrigatrio dos modos de agir prescritos (ou
proibidos) 34 sendo que a correo tem de ser
justificada pela argumentao.

31
GHIRALDELLI JNIOR, Paulo, Op. Cit., (nota 04) p. 66.
32
RORTY, Richard, Op. Cit.,.(nota 13) p.p. 37-38.
33
HABERMAS, Jrgen, Op. Cit., (nota 09), p 249.
34
HABERMAS, Jrgen, Op. Cit., (nota 09), p. 269. Para Robert Alexy h
uma pretenso de correo nos discursos jurdico e prtico geral. Alexy
defende que os discursos jurdicos relacionam-se com a justificao de
um caso especial de afirmaes normativas, isto , aquelas que expres-
sam julgamentos jurdicos. Com efeito, a justificao interna est vin-
culada questo de investigar se uma opinio est logicamente de
acordo com as premissas aduzidas para justific-la. J a idia da corre-
o, de justeza, das premissas, diz respeito justificao externa. Vide
ALEXY, Robert, Op. Cit., (nota 11), p. 218.

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580 TEODOMIRO NORONHA CARDOZO

Habermas, na abordagem da virada lingstica (linguist


turn) do pragmatismo de Rorty, assevera que linguagem e reali-
dade se entrelaam mutuamente, e que a verdade de opinies
e proposies somente pode ser fundamentada ou contestada
com outra. Habermas faz a seguinte afirmao:

O pragmatismo faz dessa necessidade uma virtude, na


medida em que dispensa noes de correspondncia e
analisa o que verdadeiro a patir da atitude
performativa daquele que trata alguma coisa como
verdadeira.3 5

4 CONCLUSES

Rorty, identificando-se como discpulo dos pragmatistas


clssicos, no aceita ser chamado de neopragmatista.

Os pragmatistas acreditam que a verdade, alis, como


qualquer outro conceito, deve ser entendida em termos pr-
ticos, como a satisfao dos padres da sociedade, a partir de uma
argumentao racionalmente aceita em um auditrio idealizado.

A partir de atos ideais de fala (standards), o pragamatismo


adota uma perspectiva de correo de verdade, tendo como
limite da justificao (argumentao) os limites da prpria
linguagem.

A noo de correspondncia entre fato e verdade


pouco explicativa, porquanto, no esclarece como elementos no-
lingsticos (pensamentos) se ligam a elementos lingsticos (fatos).

O procedimentalismo de Rorty criticado porque o


uso acautelado do termo verdadeiro contrasta, e muito, entre
o meramente justificado e o verdadeiro.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 567-582 jan./jun. 2005

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VERDADE E PRAGMATISMO: O CONCEITO DE VERDADE DE RICHARD... 581

Rorty parte do pressuposto de que as pessoas podem


justificar o termo verdadeiro com contedos de crenas, como
valores de uma comunidade.

Ser etnocntrico dividir a raa humana entre as pessoas


para quem precisamos justificar nossas crenas e as outras.3 6

Rorty advoga a emancipao dos grupos oprimidos da


sociedade pela emancipao da linguagem - autoridade semntica
- capaz de propicionar a inveno de uma nova identidade
para eles mesmos.

5 REFERNCIAS

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584 CLICRIO BEZERRA E SILVA

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 585

SENTENA CVEL:
Ao coletiva de indenizao.
Condomnio do Conjunto Residencial
Enseada do Serrambi

Clicrio Bezerra e Silva


Juiz de Direito

PROCESSO N 226.2000.000006-1
AO COLETIVA DE INDENIZAO
AUTORES: ADECON Associao de Defesa da Cidadania
e do Consumidor e Condomnio do Conjunto Enseada do
Serrambi
RUS: CONIPA Construes e Incorporaes Ltda, Fran-
cisco Jos de Godoy e Vasconcelos e Srgio Diniz de Godoy
Mendona

SENTENA

Vistos etc.

ADECON ASSOCIAO DE DEFESA DA CIDA-


DANIA E DO CONSUMIDOR, associao civil sem fins lu-
crativos, inscrita no CGC/MF sob o n 03.296.698/0001-
22, com sede na rua do Riachuelo, n 105, sala 803, Boa
Vista, Recife-PE, e O CONDOMNIO DO CONJUNTO
RESIDENCIAL ENSEADA DO SERRAMBI, neste ato re-

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586 CLICRIO BEZERRA E SILVA

presentado por seu sndico, conforme conveno de condo-


mnio e ata de assemblia, atravs de advogados legalmente
constitudos, ingressaram com a presente AO COLETI-
VA DE INDENIZAO COM PEDIDO DE ANTECIPA-
O PARCIAL DOS EFEITOS DA TUTELA ESPECFI-
CA contra A CONIPA CONSTRUES E INCORPO-
RAES LTDA., pessoa jurdica de direito privado, inscrita
no CGC/MF sob o n 24.123.960/0001-07, sediada na rua
Eduardo de Moraes, n 243, apt 502, Bairro Novo, nesta
cidade, FRANCISCO JOS DE GODOY E VASCONCELOS
e SRGIO DINIZ DE GODOY MENDONA, brasileiros,
casados, engenheiros civis, o primeiro residente na rua Marly
Figueiredo, n 721, Casa Caiada, neste municpio, e o segun-
do residente na rua Eduardo Morais, n 243, apt 502, Bairro
Novo, nesta cidade, fundando-se nas premissas seguintes.
Principiam seus articulados aduzindo a pertinncia da
via processual eleita, lastrando seus argumentos nos arts. 87,
91 e seguintes do Cdigo de Defesa do Consumidor, asseve-
rando que a presente ao destina-se tutela do consumidor e
dos direitos de cidadania, em sua dimenso coletiva, revelando-
se como meio eficaz para afastar as dificuldades que obstacu-
larizam a busca da tutela jurisdicional em defesa dos seus
direitos lesados ou ameaados.
Dissertam, outrossim, acerca da legitimao da
ADECON e do Condomnio do Conjunto Enseada de Ser-
rambi para postularem a associao a tutela judicial prote-
tora dos direitos difusos, coletivos e homogneos dos consu-
midores, bem como o condomnio representar os in-
teresses de todos os seus integrantes.
Em seguida, ainda em prembulo, destacam a compe-
tncia absoluta do foro da Comarca de Olinda para conhecer
e dirimir a demanda, por ser esta cidade o lugar onde ocorreu
o dano, cuja indenizao se persegue nesta actio.
Passando a retratar os fatos que originaram a presente

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 587

lide, afirmam que pblico e notrio que, por volta das 17:00
horas, do dia 27 de dezembro de 1999, desabou o bloco B,
do Conjunto Enseada de Serrambi, situado na rua Baro de
So Borja, n 30, Bairro Novo, Olinda-PE, ocasio em que
faleceram 06 (seis) pessoas soterradas e vrias outras foram
hospitalizadas com ferimentos graves.
Prosseguem assinalando que o desabamento se deu em
uma tarde em que no havia chuva, ventania ou mesmo, diga-se um
terremoto. Ouviu-se um estrondo surdo (sic), e aps alguns minutos,
tudo estava por terra, sem tempo algum para que os moradores que se
encontravam dentro de suas casas, pudessem ter sequer tentado esca-
par. Acrescente-se que o desabamento tomou de surpresa todos os mora-
dores, uma vez que nunca haviam se dado conta de que o prdio
tivesse problemas, fossem relativos a vcios de construo ou pertinen-
tes a defeitos de construo propriamente ditos, especialmente os que
levassem a um desabamento e a uma interdio.
Sedimentando-se em declaraes de tcnicos que esti-
veram presentes no local do evento, sustentaram a existncia
de indcios evidentes de que os motivos da queda do edifcio
relacionam-se com o desejo de ampliao do lucro atravs da
utilizao de materiais de baixa qualidade como forma de re-
duo de custos.
Insurgem-se, ademais, quanto construo de uma cai-
xa dgua com capacidade para 16.000 (dezesseis mil) litros,
quando a planta do projeto de construo do Conjunto En-
seada de Serrambi a estimava estruturalmente em 6.000 (seis
mil) litros.
Aps destacar a relao de consumo que envolve a cons-
trutora e os adquirentes das unidades imobilirias por ela
edificadas, ressalta a responsabilidade dos rus pelo fato do
produto e do servio, cabendo-lhes ressarcir aos prejudicados
quando da existncia de vcios.
Argumentam que resta demonstrado o dano atravs do
desabamento e da interdio, respectivamente, dos blocos B

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588 CLICRIO BEZERRA E SILVA

e A do Conjunto Enseada de Serrambi, competindo aos


rus, no desiderato de exonerar-se do dever indenizatrio, pro-
var que houve culpa exclusiva dos moradores ou de terceiros
no evento danoso, haja vista que o defeito existiu e foram os
rus que construram o imvel.
Volvendo seus arrazoados para os defeitos que motiva-
ram a decadncia da construo, afirmam que ocorreu vcio
de inadequao, somente detectado por ocasio do trgico
episdio, o que se constitui em vcio oculto, cujo prazo
prescricional embora denominado de decadencial no CDC
para o exerccio do direito de reparao dos danos causa-
dos, expira-se em 05 (cinco) anos, a contar da data do conhe-
cimento do dano e da sua autoria (art. 26 e 27 do CDC).
Ultimando sua pea inicial, postularam a concesso de
tutela especfica, constituda de vrias providncias a serem
executadas pelos rus, entre as quais, abrigo condigno para
todas as famlias do condomnio, que se acham desalojadas, e
pagamento imediato das despesas mdicas e hospitalares das
vtimas.
Afinal, requereram a procedncia do seu pedido no sen-
tido de ser proclamada a responsabilidade civil dos rus por
todos os prejuzos causados com o desabamento e a interdi-
o, respectivamente, dos blocos B e A, do Conjunto
Enseada de Serrambi, incluindo-se os danos materiais e mo-
rais.
exordial, agregaram os documentos de fls. 42 usque
198.
Atravs da deciso de fls. 206/213, o Juiz de Direito
plantonista da 9 Circunscrio Judiciria albergou o pedido
de tutela especfica e, nesse sentido, determinou que os rus
coloquem os moradores dos referenciados prdios em apartamentos ou
abrigos dignos e adequados s condies antes existentes no Conjunto
Enseada de Serrambi, sob as suas expensas; prestem assistncia mdi-
co-hospitalar e psicolgica aos moradores dos mencionados prdios,

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 589

assumindo o custeio com as despesas mdicas e hospitalares, em unida-


de mdica e hospitalar compatvel com a leso, doena ou enfermida-
de sofrida pela vtima, a critrio mdico especializado; e desconsiderem
e suspendam as cobranas e possveis prestaes e valores devidos pelos
moradores, comunicando essa determinao aos detentores dos ttulos
ou encargos devidos, por acaso transferidos ou negociados, at ulterior
deliberao.
Fixou, por fim, uma multa diria de R$ 1.000,00 (um
mil reais) em caso de descumprimento do decisum.
Apresentada pelos autores a relao das vtimas que es-
to compreendidas por essa ao coletiva, declinando, inclusi-
ve, as suas necessidades mnimas de sobrevivncia (fls. 226/232).
Determinada a notificao dos rus para cumprirem a
tutela especfica concedida no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas (fls. 233/235).
Em nova pea (fls. 243/248), os autores, em vista da
indiferena dos rus em atenderem ao pronunciamento judi-
cial, requereram a majorao da multa de mora e o bloqueio
de contas bancrias pertencentes parte r.
Atendendo a splica dos autores, foi determinado o
bloqueio de todas as quantias que se achem disponveis em
nome dos rus (fls. 251/254).
Citados, os rus apresentam resposta ao pedido inicial
em forma de contestao (fls. 259/298).
Principiam suas defesas assinalando que o Conjunto
Enseada de Serrambi, por eles construdo, teve concludas suas
obras em 30 de dezembro de 1991, oito anos antes do desaba-
mento em foco, no tendo chegado ao conhecimento dos
rus qualquer fato porventura indicativo de vcio, seja aparen-
te, seja oculto, na construo respectiva.
Realaram que a construo original foi zelosamente
concluda por seus responsveis tcnicos, com a rigorosa ob-
servncia de todas as normas tcnicas (ABNT) aplicveis es-
pcie de edificao.

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590 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Atribuem especial relevncia s caractersticas de tal


construo, afirmando que todas as suas paredes possuem fun-
o estrutural e do rigorosa sustentao ao edifcio, o que
desautoriza, por completo, a realizao de quaisquer obras
que venham a comprometer a estabilidade respectiva.
Todavia, argem que, contrariando os preceitos
contratuais, alguns moradores do prefalado bloco B efetiva-
ram reformas no imvel, causando grave e danosa repercusso
na estabilidade do edifcio.
Ademais, imputam tambm Prefeitura da Cidade de
Olinda a responsabilidade de haver expedido alvar de licena
de construo sem ressalvar a presena, no lenol dgua sub-
terrneo, do sulfato supostamente causador da corroso do
material utilizado na construo.
Findas essas primeiras colocaes, levantam uma preli-
minar de impossibilidade jurdica do pedido e de ilegitimida-
de passiva ad causam.
Consolidam seus argumentos no art. 1.245 do Cdigo
Civil que estabelece em 05 (cinco) anos o prazo em que o
construtor se responsabiliza pela solidez e segurana do seu
trabalho.
No decurso daquele prazo, segundo alegam, jamais se
teve notcia da mais tnue anormalidade, ameaa, perigo ou
defeito atinentes estabilidade e segurana da obra, razo
por que, no pode lhes ser atribuda responsabilidade por
acidente ocorrido posteriormente, considerando que o prazo
qinqenal de garantia e no de prescrio, como erronea-
mente tem entendido alguns julgados.
Quanto ao mrito da ao, atestam, em contraposio
s alegaes dos autores, a adequao de todo material utiliza-
do na edificao e, por outro lado, a rigorosa observncia s
normas editadas pela Associao Brasileira de Normas Tcni-
cas ABNT.
No mais, renovam a atribuio de responsabilidade pelo

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 591

evento danoso aos moradores, em funo das reformas


supervenientes realizadas nos apartamentos, e ao Municpio
de Olinda por no haver advertido aos autores sobre a presen-
a de sulfato elemento altamente corrosivo nas guas sub-
terrneas da regio adjacente.
Aps postularem a revogao do pronunciamento que
concedeu a tutela especfica e a improcedncia da pretenso
autoral, pedem: a) o chamamento ao processo, como
litisconsorte ativa necessria, a Caixa Econmica Federal; b) o
chamamento ao processo, como litisconsorte passivo necess-
rio, o Instituto de Resseguros do Brasil; c) o deslocamento da
competncia para a Justia Federal; d) a denunciao lide da
seguradora indicada pela Caixa Econmica Federal.
pea de contradita anexaram os documentos de fls.
301/434.
Em rplica (fls. 453/478), os autores, no tocante
impossibilidade jurdica do pedido, discorrem que, no caso
em tela, a demanda persegue direitos que se encontram bem
definidos nos arts. 12, 26 e 27 do CDC e at mesmo do
prprio art. 1.245 do CC, pelo que se afigura despicienda a
preliminar suscitada.
Concernentemente ilegitimidade passiva ad causam,
aduzem que a legitimidade dos rus decorre nica e exclusiva-
mente da circunstncia de terem sido os construtores do Con-
junto Enseada de Serrambi.
Enfocando ainda essa preliminar, em especial a prescri-
o suscitada pelos rus, mencionam que o desabamento do
bloco B e a interdio do bloco A, ambos do Conjunto
Enseada de Serrambi, derivou de vcios de construo, somente
revelados por ocasio daquele infortnio.
Assim sendo, por fora do art. 27 da Lei 8078/90,
de cinco anos o prazo prescricional, e no o decadencial, para repara-
o dos danos causados por fato do construtor, iniciando-se a conta-
gem a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

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592 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Revisitando o meritum causae, mantm os mesmos


argumentos que arrimaram a petio inicial, pugnando,
dessarte, pela procedncia do pedido.
Pronunciando-se sobre os novos documentos
apresentados pelos autores (fls. 479/490), os rus reproduzem
as razes j utilizadas em sua contestao (fls. 509/524).
Determinado o bloqueio da importncia de R$
130.000,00 para cumprimento da tutela especfica e ordena-
da a publicao de edital (fl. 551), dando conhecimento acer-
ca da tramitao deste processo, possibilitando, assim, o in-
gresso de eventuais interessados na lide, na qualidade de
litisconsortes (art. 94 do CDC).
Petio solicitando a revogao do despacho supracitado
(fls. 552/555).
Requerida pelas partes a suspenso do processo, pelo
prazo de 30 (trinta) dias, objetivando uma soluo amigvel
para o litgio (fls. 623 e 624).
Edital publicado (fls. 898).
Ingressa no feito, na qualidade de litisconsorte ativa, a
Sra. Maria Lcia de Azevedo Fonseca (fls. 903 e 904).
Informam os autores que restou infrutfera a tentativa
de acordo (fls. 915 e 916).
Parecer ofertado pelo Ministrio Pblico (fls. 1014/
1020), em que atesta a regularidade da tramitao do feito.
Realizada audincia de tentativa de conciliao e sanea-
mento (fls. 1031/1033), momento, em que, uma vez frustada
a tentativa conciliatria, foi rejeitada a preliminar de impossi-
bilidade jurdica do pedido e indeferida a interveno de ter-
ceiros no feito.
Em continuidade do ato, foi determinada a realizao de
prova pericial e, para tanto, nomeado o engenheiro civil Frederico
G. Bastos Gonalves para o desempenho de tal mister.
Entregue em cartrio o laudo pericial (fls. 1037/1056)
com seus anexos (1057/1114).

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 593

Valendo-se das peties de fls. 1117 e 1121, os autores


apresentam termos de transaes efetivadas com alguns dos
moradores do Conjunto Enseada de Serrambi.
Em vista dos vrios acordos firmados com alguns dos
autores, requerem os rus a revogao da tutela especfica e
que seja afastada, desde a sua original concesso, a incidncia
da multa cominada para a hiptese de descumprimento da
deciso (fls. 1130/1134).
Sobre o laudo pericial, se pronunciaram as partes (fls.
1179/1185).
Apresentadas as razes finais (fls. 1187/1208), o Minis-
trio Pblico, pelo parecer de fls. 1210/1211, posicionou-se
pela procedncia do pedido inicial.
Findo este histrico processual, pronuncio-me.
Compete-me, de incio, registrar que, embora focalizada
como preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, a matria
abordada pelos autores, pertinente garantia da obra por eles
executada, entrelaa-se com o mrito da demanda, posto que
define o alcance da responsabilidade do construtor.
No seu entender, o art. 1.245 da nossa lei substantiva
civil estipula o prazo de 05 (cinco) anos para que se possa
imputar ao construtor a responsabilidade por vcios compro-
metedores da solidez e da segurana da obra, no obstante
dispor o prejudicado do prazo prescricional de 20 (vinte) anos
para exercer o seu direito de ao.
Sustentam que, decorrido aquele prazo de garantia sem
que hajam se manifestado vcios construtivos, no mais subsiste
a responsabilidade do construtor.
Circunscrevendo-me tese abraada pelos rus, constato
que os autores demonstraram cabalmente, dentro do prazo
qinqenal de garantia fixado pelo art. 1.245 do Cdigo Civil,
a presena de vcios ameaadores da estabilidade e segurana
da obra.
O Conjunto Enseada do Serrambi foi concludo em

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594 CLICRIO BEZERRA E SILVA

agosto de 1991 e j em 08 de junho de 1992 (fls. 481), ou


seja, dentro do prazo de garantia da obra, vrios moradores
formularam reclamaes CONIPA, atravs de carta postal
com Aviso de Recebimento (fls. 482), apontando os inmeros
defeitos existentes nas unidades imobilirias, dentre os quais
se destacam rachaduras nos tetos dos quartos; rachaduras no piso
da sala; piso dos dois banheiros prestes a se soltar; desnivelamento
completo do piso da sala, terrao e cozinha.
Como se v, as graves anomalias construtivas no podem
ser compreendidas como meras imperfeies da obra, mas sim
como vcios comprometedores da solidez e segurana da
edificao (art. 1.245 do CC), sendo bastante a corroborar
com essa assertiva a ocorrncia do sinistro sub judice.
Noutro vrtice, encontramos a tese dos autores, segundo
a qual o momento de revelao do vcio representa o incio de
fluncia do prazo prescricional de 05 (cinco) anos para
reclamao dos danos causados por fato do construtor.
Efetivamente, dispe o art. 27 da Lei 8078/90: Prescreve
em 05 (cinco) anos a pretenso reparao pelos danos causados por
fato do produto ou do servio prevista na Seo II deste Captulo,
iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e
da sua autoria.
Sob essa tica, que, por sua vez, compartilhada por
este magistrado e por considervel parcela da doutrina hodier-
na, observamos que o Cdigo de Defesa do Consumidor cria um
dever legal de garantia, por danos decorrentes de defeitos nos produtos
ou servios, como regra geral. Se, pelo Cdigo Civil, a hiptese de
garantia do construtor pelos danos decorrentes de vcios de solidez e
segurana, gerando a presuno de culpa, excepcional, pelo Cdigo
de Defesa do Consumidor a regra geral de que o fornecedor responda
pelos danos decorrentes de defeitos dos produtos e servios. E com mais
uma diferena: enquanto a norma do Cdigo Civil cria uma presuno
de culpa, e por tempo limitado (cinco) anos, o Cdigo de Defesa do
Consumidor cria o dever de reparao independentemente da culpa,
no fazendo qualquer meno a prazos prefixados.

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 595

Prossegue o autor: Diante disso, de notar-se que a


sistemtica criada pelo art. 1.245 do Cdigo Civil sofreu profundo
impacto com a promulgao do Cdigo de Defesa do Consumidor
(relembro novamente que estamos tratando apenas das hipteses em
que os contratos de construo subsumem-se s relaes de consumo).
Com efeito, o empreiteiro de materiais e construo passa a
responder objetivamente pelos vcios de solidez e segurana,
independentemente de culpa, e sem a limitao de cinco anos,
mencionada pelo Cdigo Civil. A responsabilidade do construtor
encontrar limites apenas na culpa exclusiva do consumidor ou de
terceiro, ou na ausncia de defeito.
E exemplifica: Assim, se um prdio, dez anos aps ser entregue
ao dono vier a ruir, causando danos, caber ao construtor responder
objetivamente pela reparao.1
Em arremate, atinjo o convencimento de que, indepen-
dentemente da tese a ser por mim abraada nesta ocasio, a
responsabilidade dos rus, em repararem eventuais danos
causados aos autores por vcios construtivos, no foi atingida
pela prescrio, seja ela decursiva do prazo de garantia (art.
1.245 do Cdigo Civil) ou do momento de manifestao dos
vcios (art. 27 do Cdigo de Defesa do Consumidor).
Suplantada essa polmica preambular, dirijo-me ao
mago da contenda.
As circunstncias fticas que fecundaram a presente
demanda - precisamente delineadas nos articulados iniciais e
contestatrios - restaram imunes a maiores controvrsias,
descortinando-se, assim, a causa remota da lide.
No entanto, o contorno jurdico atribudo aos fatos
manifesta-se contraditrio entre as partes altercadoras.
Observemos.

1
GONALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil
Civil: So Paulo:
Saraiva, 1995. p. 301

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Sem ttulo-7 595 29/8/2006, 20:20


596 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Segundo regra consubstanciada no art. 12 do Cdigo


de Defesa do Consumidor:
Art. 12 O fabricante, o produtor, o construtor,
nacional ou estrangeiro e o importador respondem, indepen-
dentemente da existncia de culpa, pela reparao dos danos
causados aos consumidores por defeitos decorrentes de
projeto, fabricao, construo, montagem, frmulas, mani-
pulao, apresentao ou acondicionamento de seus produtos,
bem como por informaes insuficientes ou inadequadas sobre
sua utilizao e risco.
J o seu 3 traz o elenco de causas excludentes da
responsabilidade:
3 O fabricante, o construtor, o produtor ou
importador s no ser responsabilizado quando provar:
I que no colocou o produto no mercado;
II que, embora haja colocado o produto no mercado
o defeito inexiste;
III a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Entre as hipteses acima, buscaram os rus arrimo,
mesmo que de forma discreta, no item III, ao conferir aos
autores a culpa pelo dano, uma vez que estes realizaram
reformas indevidas nos imveis por eles ocupados.
Alm da ausncia de provas do alegado, o laudo pericial
afastou definitivamente essa suposio, ao indicar o somatrio
dos fatores fsico-qumicos e os vcios construtivos encontrados
na estrutura do imvel como as causas determinantes para
provocar o colapso da sua fundao, provocando, dessarte, o
sinistro.
Por outro lado, com mais veemncia, os rus imputam
ocorrncia da EPU Expanso Por Umidade como causa-
dora da perda de resistncia das alvenarias de embasamento e,
conseqentemente, da desagregao e da interdio, respectiva-
mente, dos blocos B e A do Conjunto Residencial Enseada
de Serrambi, assinalando que tal fenmeno era desconhecido

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 597

da comunidade cientfica, somente sido descoberto no ano


de 1997, com a queda do Edifcio Aquarela, localizado no
bairro de Piedade, em Jaboato dos Guararapes-PE.
No mais, atestam que a edificao no padeceu de qual-
quer defeito construtivo, uma vez que foi executada em estrita
observncia s normas da ABNT, bem como o material
utilizado na obra era de indiscutvel resistncia, adequao e
qualidade.
Em suma, almejam os rus se eximirem da responsa-
bilidade indenizatria, transferindo para um fenmeno da
natureza a causa do infortnio que vitimou os autores.
Pretendem caracterizar a presena do caso fortuito como
excludente da responsabilidade civil.
As hipteses de caso fortuito e fora maior, descritas no art.
1.058 do Cdigo Civil como eximentes da responsabilidade na ordem
civil, no esto elencadas entre as causas excludentes da
responsabilidade pelo fato do produto.
Mas a doutrina mais atualizada j se advertiu que esses
acontecimentos ditados por foras fsicas da natureza ou que, de
qualquer forma, escapam do controle do homem tanto podem ocorrer
antes como depois da introduo do produto no mercado de consumo.
... Quando o caso fortuito ou fora maior se manifesta aps a
introduo do produto no mercado de consumo, ocorre uma ruptura do
nexo de causalidade que liga o defeito ao evento danoso.2
No mesmo sentido a compreenso do Prof. Herman
Benjamin:
A regra no nosso direito que o caso fortuito e a fora maior
excluem a responsabilidade civil. O Cdigo, entre as causas excludentes
de responsabilidade, no os elenca. Tambm no os nega. Logo, quer
me parecer, que o sistema tradicional, neste ponto, no foi afastado,

2
GRINOVER, Ada Pellegrine e outros. Cdigo Brasileiro de Defesa
do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 6. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitria. s. d. p. 167

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598 CLICRIO BEZERRA E SILVA

mantendo-se, ento, a capacidade do caso fortuito e da fora maior


para impedir o dever de indenizar.3
Todavia, o caso fortuito deve necessariamente derivar
de dois pressupostos: a ausncia de culpa e a inevitabilidade
do evento.
Ora, todos os laudos tcnicos, confeccionados com o
desiderato de identificar as causas da tragdia do Conjunto
Enseada de Serrambi, apontaram os vcios construtivos da obra
como determinantes ou, no mnimo, concorrentes, para o
desabamento do imvel.
O trabalho pericial realizado sob a coordenao da
CODECIPE (fls. 918/967), cujas concluses foram inte-
gralmente acolhidas pelo Perito do Juzo (quesito 06
fls. 1041), indica precisamente que o esmagamento das
alvenarias e pilares ao nvel do embasamento e trreo se deu
devido a:
I) Os fatores de segurana encontrados nos clculos das tenses,
obtidos para as paredes mais solicitadas e nas hipteses mais
desfavorveis, so prximos do limite de ruptura, em se tratando de
estrutura em alvenaria resistente e considerando-se os elevados ndices
de incertezas inerentes ao processo construtivo. Observou-se, tambm, a
ausncia de elementos de distribuies de tenses (coxins) nas ligaes
entre as vigas e as alvenarias de embasamento;
II) As espessuras dos revestimentos das paredes e lajes,
constatadas nos levantamentos efetuados, eram maiores que o usual,
contribuindo para o aumento das tenses atuantes;
III) Foi utilizado um concreto poroso e de baixa qualidade
nos pilares, fora dos padres de composio usual, tendo sido constatado
o fenmeno da carbonatao do concreto;
IV) Foram utilizadas alvenarias singelas delgadas com
espessura mdia de 8,7 cm nos embasamentos, sem qualquer proteo

3
BENJAMIM, Antnio Herman de Vasconcelos. Comentrios ao Cdi-
go de PProteo
roteo ao Consumidor
Consumidor. So Paulo: Saraiva, 1991. p. 67.

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 599

contra a ao de agentes agressivos do meio ambiente, tendo sido


constatado o fenmeno da expanso por umidade (EPU) nos tijolos.
Conforme restou demonstrado, muitos dos vcios
existentes na obra no esto relacionados com os fatores fsico-
qumicos atuantes na fundao. Na verdade, o ataque da
umidade ao tijolo apenas mais uma causa externa concorrente
ao sinistro.
Dessa forma, sem maior dispndio de vigor racional,
conclui-se que houve a participao, concorrente ou prepon-
derante pouco importa na hiptese dos rus, pela moda-
lidade da culpa, no funesto acontecimento.
A ausncia de culpa elementar na concepo do caso
fortuito, porque, desde que o comportamento do agente facili-
tou ou concorreu para a ocorrncia do evento malsinado,
no se pode falar em fortuito, mas se deve atribuir a tal
comportamento a origem parcial ou total do fato lamen-
tado.4
Quanto inevitabilidade do acontecimento, evidencie-
se que a metodologia construtiva utilizada na alvenaria
estrutural est amplamente regulamentada atravs de normas
tcnicas.
No entanto, o sistema construtivo comumente empregado
na construo de edifcios de at quatro pavimentos, conhecidos
regionalmente como edifcios caixo, estruturado em elementos de
alvenaria de blocos de vedao em concreto ou cermicos.
Tal sistema equivocadamente chamado de alvenaria
estrutural, vez que a norma NB 1228/89, que trata do clculo de
alvenaria estrutural de blocos vazados de concreto, define como alvenaria
estrutural Aquela construda com blocos vazados de concreto, assentados
com argamassa, e que contm armaduras com a finalidade construtiva
de amarrao, no sendo esta ltima considerada na absoro dos
esforos calculados.
4
RODRIGUES, Slvio. Direito Civil, PParte arte Geral das Obrigaes.
So Paulo: 14. ed. Saraiva, s. d. p. 110.

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600 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Por outro lado, o sistema atualmente empregado utiliza blocos


cermicos vazados de seis ou oito furos. A norma NBR 7171/92
Bloco cermico para alvenaria, define o bloco utilizado como bloco de
vedao comum e no como estrutural.
Como se pode ver, o sistema construtivo empregado na nossa
regio para edifcios caixo no tem respaldo tcnico em normas
nacionais e nem to pouco internacionais.
Como no existem documentos tcnicos coerentes, respaldados
pela comunidade cientfica sobre este sistema construtivo, sua prtica
considerada emprica e, por isso diversas alteraes foram efetuadas
ao longo do tempo, muitas das quais contrariando prticas consagradas
na engenharia.5
No caso sub examine, em que a principal matria-prima
utilizada foi o material cermico comum, a boa tcnica cons-
trutiva exige que o construtor tenha pleno conhecimento do
material utilizado na obra, pois da argila empregada resulta-
ro diversas qualidades de produtos.
Assim, o tijolo comum deve ser usado exclusivamente
para fins de vedao.
No prdio sinistrado constatou-se a presena de tijolos
furados utilizados abaixo do nvel do solo, como alicerce.
Em virtude disso o ataque pela gua era previsvel dado
que a umidade sempre agride a cermica, por tal motivo no
recomendado o uso de tijolos em embasamentos, a no ser
com muita proteo e, via de regra, em obras de pequeno
porte.
que a umidade em si muito ruim para os tijolos.
Tijolos permanentemente midos se desagregam aps algum
tempo, porque a gua vai afrouxando a ligao entre os gros.6
Fundaes com tijolos enterrados no devem nunca ser

5
CUNHA, Cludia Maria Alves e outros. Razes da Inviabilidade Tcnica do
Sistema Construtivo que Utiliza Alvenaria PPortante
ortante
ortante. ITEP, 10.08.2001
6
BAUER, L. A. Falco. Materiais de Construo 2. 5. ed. p. 544

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 601

feitas, a no ser que se tenha absoluta certeza da impermeabili-


zao permanente.7
Com lastro nesses fundamentos afasto a incidncia de
caso fortuito como determinante para a ocorrncia do evento
danoso.
Do mesmo modo, ad argumentandum tantum, descarto,
como causa excludente da responsabilidade do construtor, a
teoria do risco de desenvolvimento, que se materializa quando
um produto inserido no mercado de consumo e os riscos dele advindos
no podem ser conhecidos ou identificados prontamente, s vindo a s-
los aps, face ao desenvolvimento tecnolgico.8
Incorporo, como forma de robustecer minha convico,
os precisos comentrios coligidos aos autos pelos autores em
sua pea derradeira (fls. 1205 e 1206), como tambm por
entender que a idia de risco de desenvolvimento possui
uma relao ntima com a noo legal de defeito de projeo,
o qual considerado, pelo nosso Cdigo de Defesa do Consu-
midor, como defeito apto a responsabilizar o fornecedor, ex-
cluindo-se, pois, a possibilidade de excluso da responsabili-
dade.9
Segundo Eduardo Arruda Alvim o risco de desenvolvi-
mento no exclui a responsabilidade civil pelo fato do produto pelas
seguintes razes: a uma, porque tal excludente no consta no 3, do
art. 12; a duas, porque o risco de desenvolvimento encarta-se no gnero
maior: defeito de concepo, o que, por disposio legal expressa, enseja
a responsabilidade do fornecedor (cf caput do art. 12, o qual alude a
defeitos decorrentes de projeto e frmula), e, finalmente, porque, pelo
sistema do Cdigo, eventual ausncia de culpa do fornecedor no
suficiente para eximi-lo de responsabilidade. No possvel, segundo
pensamos, que a idia de risco de desenvolvimento confunda-se com

7
VEROZA, nio Jos. Patologia das edificaes. Editora Sagra, p. 19
8
SIMINOVICH, Cludio. Causas Excludentes da Responsabilidade do
Fornecedor pelo FFato
ato do PProduto
roduto
roduto. Disponvel em: www.jurinforma.com.br.
9
SIMINOVICH, Cludio. Op. Cit.

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602 CLICRIO BEZERRA E SILVA

aquela da inexistncia do defeito. Quando h risco de desenvolvimento,


h defeito de concepo s que desconhecido.10
Em vista de no haver concorrido no evento qualquer
excludente da responsabilidade civil, evidencia-se, portanto o
liame de causalidade existente entre a conduta dos rus e as
leses infligidas aos patrimnios material e ideal das vtimas
do infortnio, exsurgindo, decorrentemente, o dever daque-
les em indenizar estes pelos danos causados.
Malgrado a natureza jurdica deste pronunciamento, em
que, quando procedente o pedido inicial, a condenao ser
genrica (art. 95, da Lei 8078/90), reputo necessrio tecer
alguns comentrios acerca do dano, indicando alguns par-
metros para sua fixao.
Dano, em sentido amplo, toda e qualquer subtrao ou
diminuio imposta ao complexo de nossos bens, das utilidades que
formam ou propiciam o nosso bem-estar, tudo o que, em suma, nos
suprime uma utilidade, um motivo de prazer ou nos impe um sofri-
mento dano, tomada a palavra na sua significao genrica. Na
esfera do direito, porm, o dano tem uma compreenso mais reduzida:
a ofensa ou leso dos bens ou interesses suscetveis de proteo jurdi-
ca.11
Mais hodierna e objetiva a lio de Carlos Alberto
Bittar, segundo a qual Configura o dano leso, ou reduo
patrimonial, sofrida pelo ofendido, em seu conjunto de valores protegi-
dos no Direito, seja quanto sua prpria pessoa - moral ou fisicamen-
te - seja quanto a seus bens ou a seus direitos. a perda, ou diminui-
o, total ou parcial, de elemento, ou de expresso, componente de sua
estrutura de bens psquicos, fsicos, morais os materiais.12

10
ALVIM, Eduardo Arruda. Responsabilidade Civil pelo fato do pro pro--
duto no Cdigo de Defesa do Consumidor Consumidor.. Revista dos Tribu-
nais, So Paulo, n. 15, p. 148, jul./set. 1995.
11
SALAZAR, Alcino de Paula, R eparao do Dano Moral. Rio de Janei-
Reparao
ro, 1943. p. 125.
12
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil. 2. ed. [s.l.]: Forense
Universitria, s. d. p.8 (Biblioteca Jurdica)

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 603

Abstramos destas prelees que o dano pode ser clas-


sificado em duas modalidades: os danos materiais, que so
resultantes de todo ato que afeta exclusivamente os bens concretos
que compe o patrimnio do lesado13 , ao passo que os danos
morais so leses sofridas pelo sujeito fsico ou pessoa natural de
direito em seu patrimnio ideal, entendendo-se por patrimnio ideal,
em contraposio ao patrimnio material, o conjunto de tudo aquilo
que no seja suscetvel de valor econmico14 , donde inclui-se a
mgoa, a tristeza, a honra etc.
A cumulao de pedidos de danos materiais com morais
hoje matria pacfica em nossos excelsos pretrios e na
doutrina ptria:
So cumulveis as indenizaes por dano material e
moral oriundos do mesmo fato15
Tambm so cumulveis os pedidos de indenizao
por danos patrimoniais e morais, observadas as regras pr-
prias para o respectivo clculo em concreto, cumprindo-se
frisar que os primeiros se revestem de carter ressarcitrio, e
os segundos, reparatrios, ou compensatrios.16
Demonstrados presentes todos os pressupostos do di-
reito reparao, passo ao seu enquadramento jurdico.
No tocante aos danos materiais, estes devem ser efetiva-
mente comprovados pelas vtimas e consistem em danos emer-
gentes e lucros cessantes.
Relativamente reparao dos danos morais, conquan-
to ressinta-se de normas especficas que delimitem a fixao
do seu quantum indenizatrio, compreendido como o res-
sarcimento s leses causada ao patrimnio ideal dos ofendi-
dos, a sua previso acha-se inserida em nossa Carta Magna

13
REIS, Clayton. Dano Moral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, s. d. p. 4
14
SILVA, Wilson Mello. O Dano Moral e a sua R eparao. 3. ed. Rio
Reparao.
de Janeiro: Forense, s. d. n. 1
15
Smula 37 do Superior Tribunal de Justia.
16
BITTAR, Carlos Alberto, Op. Cit., pg. 90.

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604 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Federal, consistindo em uma das garantias fundamentais do


indivduo dispostas no art. 5:
V - assegurado o direito de resposta, proporcional
ao agravo, alm da indenizao por dano material, moral ou
imagem: (grifos meus).
... omissis
X - so inviolveis a intimidade, a vida privada, a hon-
ra e a imagem das pessoas, assegurado o direito indenizao
pelo dano material ou moral decorrente de sua violao;
(grifos meus)
Em perfeita sintonia com os ditames constitucionais,
ruma a doutrina ptria:
Deixando de lado o aspecto bizantino da questo, inegvel
que a reparao do dano moral acha-se, atualmente, sancionada no
direito de todos os povos civilizados.17
Os doutrinadores nacionais, na sua maioria, admitem a re-
parao de qualquer dano, e que essa reparao deva ser a mais
extensiva possvel. Afinal, de que adiantaria reparar to somente uma
parte do dano, quando o sentido de eqidade da Justia conduz-nos
premissa de que todo ato ilcito que resultar em dano deve ser suscet-
vel de reparao.18
Se a responsabilidade civil constitui uma sano, no h
porque no se admitir o ressarcimento do dano moral, misto de pena e
compensao.19
Remansosos julgados tm acompanhado pari passu
tais posies:
Dano moral - indenizao - cabimento. Embora o dano
moral seja um sentimento ntimo da pessoa ofendida, para o
qual no se encontra estimao perfeitamente adequada, no

17
MONTENEGRO, Antnio Lindbergh. Do ressarcimento de Danos
Pessoais e Materiais: Editora Didtica e Cientfica Ltda., s. d. p. 134.
18
REIS, Clayton, Op. Cit., pg 44.
19
DINIZ, Maria Helena. Revista Jurdica Consulex
Consulex, Braslia, a. 1, n. 3,
p. 31.

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 605

isso razo para que se lhe recuse em absoluto uma compen-


sao qualquer. Essa ser estabelecida, como e quando poss-
vel, por meio de uma soma, que no importando uma exata
reparao, todavia representar a nica salvao cabvel nos
limites das foras humanas20
DANO MORAL - Reparao que independe da exis-
tncia de seqelas somticas. Inteligncia do art. 5, V, da CF,
e da Smula 37 do STJ. Ante o texto constitucional novo
indenizvel o dano moral, sem que tenha a norma (art. 5, V)
condicionado a reparao existncia de seqelas somticas.
Dano moral dano moral.21
Destarte, a reparao por dano moral deve ser
moderadamente arbitrada, de modo a evitar o lucro fcil e
generoso, o locupletamento ilcito, porm, suficientemente
considervel, para que o causador do dano possa sentir e
aquilatar o mau que impingiu, para que possa efetivamente
arrepender-se do que fez, para que tal penalidade possa cor-
rigir, para o futuro, seu comportamento imprudente,
negligente ou imperito.
Superadas todas as polmicas atinentes reparao do
dano moral, atenho-me a classificar os parmetros a serem
utilizados na fixao da indenizao compensatria, uma vez
que, ante a falta de critrios legais objetivos, esta subordina-se
ao prudente arbtrio do juiz (art. 1.553 do Cdigo Civil).
O arbtrio do juiz est presente em qualquer deciso judicial.
O juiz aprecia os elementos de prova, analisa-os, tira suas concluses e
decide. inevitvel o seu arbtrio, pois faz parte do procedimento do
magistrado.22

20
STF, RE 69.754-SP, rel. Min. Thompson Flores RT 485/230.
21
1 TACSP EI 522.690/8-1 Rel. Juiz Octaviano Santos Lobo RT 712/
170.
22
VARGAS, Glaci de Oliveira Pinto. Reparaco do Dano Moral:
[s. l.]: Sntese, s. d. p. 45.

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606 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Fosse o direito produto de laboratrio, sujeito a leis certas como


a fsica e a matemtica, no haveria necessidade de tribunais de julgadores.
O arbtrio, pois, da essncia da prpria justia e no vemos como
possamos excluir sem que altere, antes, o prprio homem.23
A idia prevalecente do livre arbtrio do Magistrado ganha
corpo na doutrina e jurisprudncia, na medida em que transfere para
o juiz o poder de auferir, com o seu livre convencimento e tirocnio, a
extenso da leso e o valor da reparao correspondente. Afinal, o
juiz quem, usando de parmetros subjetivos, fixa a pena condenatria
de rus processados criminalmente e/ou estabelece o quantum
indenizatrio, em condenao de danos ressarcitrios, de natureza
patrimonial.24
Diretrizes, as mais diversas, so evocadas para balizar o
quantum indenizatrio, entrementes, cuido que a escolha
dos critrios deve corresponder situao ftica exposta a jul-
gamento por ocasio da liquidao da sentena, sem perder
de vista a eqidade, a prudncia e a sensatez que devem nortear
todo julgador.
vista do exposto e sendo despiciendas outras consideraes,
julgo PROCEDENTE o pedido embrionrio para declarar, como
de fato declaro a CONIPA Construes e Incorporaes Ltda.,
Francisco Jos de Godoy Vasconcelos e Srgio Diniz de Godoy Men-
dona, civilmente responsveis pelo desmoronamento e interdio, res-
pectivamente, dos blocos B e A, do Conjunto Enseada de Serrambi,
situado na rua Baro de So borja, n 30, Bairro Novo, Olinda-PE
e, via de conseqncia os condeno ao ressarcimento integral de todos os
danos patrimoniais, materiais e morais que hajam ocasionado, inclu-
indo-se os prprios imveis (somente os quitados, uma vez que no
houve a participao neste feito do credor hipotecrio), os mveis que
guarneciam ou guarnecem os apartamentos destrudos ou interditados,

23
SILVA, Wilson Melo. Dano Moral: In: Enciclopdia Saraiva do Di-
reito, So Paulo: Saraiva, s. d. v. 22, p. 109.
reito
24
REIS, Clayton. Op. Cit. Pg. 94.

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SENTENA CVEL: Ao coletiva de indenizao. Condomnio do Conjunto ... 607

lucros cessantes e emergentes, alm dos danos morais resultantes das


perdas de parentes, leses corporais, constrangimentos etc., cuja liqui-
dao dar-se- na forma prevista no art. 97 e segs. do Cdigo de Defe-
sa do Consumidor.
Fica facultado s vtimas optarem pela restituio ime-
diata das quantias pagas, atualizadas monetariamente, ou a
reexecuo da obra por empresa a ser por eles escolhidas, sem
qualquer custo adicional.
Por fim, torno definitiva a deciso de fls. 206/213.
Com relao multa, outrora fixada para hiptese de
descumprimento da tutela especfica, tenho que o valor atin-
gido por oportunidade do ingresso da sua execuo provis-
ria (proc. em apenso) se mostrou suficiente a compelir os rus
a buscarem uma composio amigvel para o litgio, solucio-
nando, em especial, os casos de maior gravidade, pelo que
suspendo a sua incidncia a partir da propositura daquele fei-
to executivo.
que o valor da multa no pode ser irrisrio para o credor
nem pode lhe proporcionar um enriquecimento sem causa, vedado
pelo ordenamento jurdico ao consagrar os princpios gerais do direito
(LICC, art. 4). Nova situao de fato, no considerada no momento
em que foi proferida a deciso, pode modificar o valor da multa di-
ria. (grifos meus)
No entanto, o valor das astreintes no pode substituir even-
tual indenizao ou constituir multa moratria em favor da parte (...)
por ter natureza coercitiva, o objetivo da multa induzir o devedor a
cumprir a obrigao que lhe incumbe e sua imposio no impede ou
prejudica o direito ao adimplemento especfico da obrigao ou ao
recebimento do equivalente monetrio, ou, ainda, ao pedido de perdas-
e-danos.25

25
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficcia das Decises e Exe
Exe--
cuo PProvisria.
rovisria. Revista dos Tribunais. 2000. p. 281.

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608 CLICRIO BEZERRA E SILVA

Objetivando adequar o binmio necessidade/adequa-


o da multa, decido que esta ser revigorada, em toda sua
plenitude, to logo transite em julgado esta sentena e no
haja o cumprimento espontneo, por parte dos rus, das obri-
gaes contidas na tutela especfica.
Condeno ainda os rus satisfao das custas processuais
e honorrios advocatcios que arbitro, levando em conta o
grau e zelo do servio desempenhado pelos subscritores da
pea inicial, aliados importncia da causa, em R$ 15.000,00
(quinze mil reais) (art. 20, 4, CPC).

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Olinda, 11 de dezembro de 2001

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 585-608 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL E COMERCIAL: Marca grfica 609

SENTENA CVEL E COMERCIAL:


Marca grfica

Jorge Amrico Pereira de Lira


Juiz de Direito

Proc. n 001.2001.014678-5

EMENTA: CIVIL E COMERCIAL


MARCA GRFICA EXPRESSO GE-
NRICA IMPOSSIBILIDADE DE SUA
UTILIZAO CONSTITUIR DIREITO
EXCLUSIVO DE ALGUM, QUER
COMO MARCA GRFICA, QUER
COMO NOME COMERCIAL COLI-
DNCIA ENTRE MARCA NOMI-
NATIVA E NOME COMERCIAL
INOCORRNCIA DE CONFUSO
VIABILIDADE DE COEXISTNCIA
PRINCPIO DA ESPECIFICIDADE.
I. Consoante edita o art. 124, inc. VI,
da Lei n 9.279, de 14.05.1996 (Lei
de Patentes, Marcas e Direitos
Conexos), no so registrveis como
marca sinal de carter genrico, neces-
srio, comum, vulgar ou simplesmen-
te descritivo, quando tiver relao

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 609-614 jan./jun. 2005

Sem ttulo-7 609 29/8/2006, 20:20


610 JORGE AMRICO PEREIRA DE LIRA

com o produto ou servio a distin-


guir, ou aquele empregado comu-
mente para designar uma caractersti-
ca do produto ou servio, quanto
natureza, nacionalidade, peso, valor,
qualidade e poca de produo ou de
prestao do servio, salvo quando
revestidos de suficiente forma distin-
tiva. Destarte, o uso da expresso ge-
nrica auto line no pode constituir,
como marca grfica, direito exclusi-
vo de ningum.
II. No h confundir-se marca e nome co-
mercial, este elemento individualizador
da empresa e aquela, meio de identifi-
cao de produtos, mercadorias e ser-
vios. Tanto o nome comercial quan-
to a marca, devidamente registrados,
nos termos da legislao mercantil apli-
cvel, devem ser protegidos.
III. Em regra, eventual conflito entre eles
deve ser resolvido pelo princpio da
especificidade, sendo fundamental a
determinao dos ramos de ativida-
de das empresas litigantes, porque, se
distintos, de molde a afastar confu-
so, no haveria impossibilidade de
convivncia.
IV. Afigurando-se incompossvel a aplica-
o do princpio da especificidade,
quando as empresas em conflito atu-
arem no mesmo ramo de atividade
comercial, h de aplicar-se, ento, para
o desate da pendenga, o princpio

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SENTENA CVEL E COMERCIAL: Marca grfica 611

mercantil da anterioridade, observan-


do-se as jurisdies administrativas das
Juntas Comerciais.
V. Se os ramos de atividades das empre-
sas litigantes so distintos, obstando
confuso, eventuais conflitos de in-
teresses devem ser resolvidos pelo prin-
cpio da especificidade, desde que, de
fato, inocorra impossibilidade de con-
vivncia.
VI. De qualquer sorte, o uso da expres-
so genrica auto line no pode cons-
tituir, quer como marca grfica, quer
como nome comercial, direito exclu-
sivo de ningum, isso porque no so
registrveis sinal de carter genrico, ne-
cessrio, comum, vulgar ou simples-
mente descritivo, quando tiver relao
com o produto ou servio a distinguir,
ou aquele empregado comumente
para designar uma caracterstica do
produto ou servio, quanto nature-
za, nacionalidade, peso, valor, qualida-
de e poca de produo ou de presta-
o do servio, salvo quando revesti-
dos de suficiente forma distintiva.
VII. Ao e reconveno julgadas impro-
cedentes.

Vistos etc.

1. PROMOVEL EMPREENDIMENTOS E SERVI-


OS LTDA., invocando o direito exclusivo de utilizar a mar-
ca grfica auto line, por fora de registro no INPI, ajuizou ao

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612 JORGE AMRICO PEREIRA DE LIRA

de cumprimento de obrigao de no-fazer, com preceito


cominatrio, cumulada com perdas e danos, advenientes da
contrafao, em desfavor de AUTO LINE VECULOS
HONDA LTDA., que, por sua vez, se afianando na anteriori-
dade do registro dos seus atos constitutivos na Junta Comer-
cial do Estado de Pernambuco, requesta para si, com exclusi-
vidade, o direito ao uso do nome comercial em todo o terri-
trio nacional, aforando, por oportunidade da resposta, conco-
mitantemente com contestao, ao reconvencional.
Enfrentar e elucidar essa questo, decorrente da colidn-
cia entre registro de marca grfica no INPI e registro de nome
comercial no registro do comrcio, para o fim de se estabele-
cer a prevalncia, significa, na espcie dos autos, buscar-se a
composio do conflito intersubjetivo de interesses, coliman-
do a conseqente aplicao da justia ao acaso apresentado
tutela jurisdicional.
o relatrio, no que interessa para o desate da contro-
vrsia.
Decido.

2. O feito comporta, antecipadamente (art. 330, I,


CPC), a prestao jurisdicional seguinte:

2. 1 Com efeito, consoante edita o art. 124, inc. VI, da


Lei n 9.279, de 14.05.1996 (Lei de Patentes, Marcas e Direi-
tos Conexos), no so registrveis como marca sinal de car-
ter genrico, necessrio, comum, vulgar ou simplesmente des-
critivo, quando tiver relao com o produto ou servio a dis-
tinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma
caracterstica do produto ou servio, quanto natureza, naci-
onalidade, peso, valor, qualidade e poca de produo ou de
prestao do servio, salvo quando revestidos de suficiente
forma distintiva.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 609-614 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL E COMERCIAL: Marca grfica 613

o caso dos autos: o uso da expresso genrica auto


line no pode constituir, como marca grfica, direito exclusi-
vo de ningum.
A marca o sinal grfico, figurativo ou de qualquer
natureza isolado ou combinado e que se destina apresenta-
o do produto e/ou servio ao mercado, da por que deve
ser distinta, especial e inconfundvel. Consistindo a marca num
sinal qualquer, e empregada esta palavra genericamente,
subtende-se que a marca tudo, dispensando-se assim qual-
quer forma enumerativa, exemplificativa ou restritiva. Este si-
nal comumente se apresenta de forma grfica, tendo por obje-
to a letra, slaba, palavra, conjunto de palavras; o nmero ou
conjunto de nmeros; o risco, trao, conjunto de riscos e
traos; a sua forma figurativa ou ainda o conjunto das primei-
ras com esta ltima (cf. Jos Carlos Tinoco Soares, Coment-
rios Lei de Patentes, Marcas e Direitos Conexos, So Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 180).
O sinal pelo qual se apresenta a marca deve ser distinto
dos demais existentes em uso ou sob registro; por isso que se
diversifica, total ou parcialmente, no se confundindo com
outros. E sendo distinto, forosamente dever ser claro, vis-
vel e perceptvel.
2.2 Certo, no h confundir-se marca e nome comer-
cial: este, elemento individualizador da empresa, e aquela, meio
de identificao de produtos, mercadorias e servios. Tanto o
nome comercial quanto a marca, devidamente registrados, nos
termos da legislao mercantil aplicvel, devem ser protegi-
dos.
Em regra, eventual conflito entre eles deve ser resolvido
pelo princpio da especificidade, sendo fundamental a deter-
minao dos ramos de atividade das empresas litigantes, por-
que, se distintos, de molde a afastar confuso, no haveria
impossibilidade de convivncia.

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614 JORGE AMRICO PEREIRA DE LIRA

Afigurando-se incompossvel a aplicao do princpio


da especificidade, quando as empresas em conflito atuarem
no mesmo ramo de atividade comercial, h de aplicar-se, en-
to, para o desate da pendenga, o princpio mercantil da ante-
rioridade, observando-se as jurisdies administrativas das
Juntas Comerciais.
In casu, contudo, considerando que os ramos de ativi-
dades das empresas litigantes so distintos, obstando confu-
so, cuido que o conflito deve ser resolvido pelo princpio da
especificidade, desde que, de fato, inocorre impossibilidade
de convivncia.
E mais: o uso da expresso genrica auto line no pode
constituir, quer como marca grfica, quer como nome comer-
cial, direito exclusivo de ningum, isso porque no so
registrveis sinal de carter genrico, necessrio, comum, vul-
gar ou simplesmente descritivo, quando tiver relao com o
produto ou servio a distinguir, ou aquele empregado
comumente para designar uma caracterstica do produto ou
servio, quanto natureza, nacionalidade, peso, valor, quali-
dade e poca de produo ou de prestao do servio, salvo
quando revestidos de suficiente forma distintiva.
3. Forte nisso, JULGO IMPROCEDENTES a ao e a
reconveno.
Em havendo cada litigante sido em parte vencedor e
vencido, sero recproca e proporcionalmente distribudos e
compensados entre eles os honorrios e as despesas processu-
ais (v. art. 21, cabea, do CPC).
Custas na forma da lei.
P.R.I.
Recife, 28 de fevereiro de 2005.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 609-614 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 615

SENTENA CVEL.
REINTERAO DE POSSE

Nilson Guerra Nery


Juiz de Direito

PROCESSO N. 001.1993.019.471-4
AO: REINTEGRAO NA POSSE
A: KALCE LTDA.
RR: ADMINSTRADORA CENTROS COMERCIAIS
RECIFE S/C LTDA e outros

EMENTA: SOCIEDADE COMERCIAL


CONSTITUDA SOB A GIDE DO
SISTEMA DE COTAS BIPOLARIZA-
DAS ENTRE MARIDO E MULHER.
ATO NEGOCIAL DESPROVIDO DE
EVIDNCIA INSIDIOSA PRATICADO
PELA ESPOSA INVESTIDA DE
PODERES GERENCIAIS. INCONTRO-
VERSOS OS REFLEXOS PATRIMO-
NIAIS E/OU FINANCEIROS PARA A
SOCIEDADE EM RELAO AO
TERCEIRO CESSIONRIO/CONTRA-
TANTE CUJA BOA-F EXSURGE
INTANGENCIADA. PLEITO REINTE-
GRATRIO A QUE SE NEGA PRO-
CEDNCIA.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

Sem ttulo-7 615 29/8/2006, 20:20


616 NILSON GUERRA NERY

Vistos, etc.

KALCE LTDA., pessoa jurdica de direito privado


constituda sob a forma de sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, inscrita no CGC/MF sob o n
08.962.896/0001-00, representada pelo scio Carlos
Fernando Vilanova ut instrumento procuratrio acostado s
fls. 09 dos autos, props esta demanda reintegratria em
desfavor de ADMINISTRADORA CENTROS COMER-
CIAIS RECIFE S/C LTDA. (Shopping Center Recife),
estabelecida na Rua Pe. Carapuceiro n 777, bairro de Boa
Viagem, nesta Capital, inscrita no CNPJ/MF sob o n
12.590.444/0001-03, expondo para ao final requerer que,
atravs de contrato escrito de locao, a firma autora locou
promovida a loja caracterizada como sendo o Salo PC019,
consoante documentao acostada petio vestibular, local
onde passou a exercer suas atividades comerciais.
Em continuidade ao relato, assertiva a suplicante que,
inopinadamente, no dia 1/04/1993, a Administradora r,
de forma abusiva e despojada de amparo legal, procedeu
colocao de tapumes circundando a fachada da loja, ao
argumento de que pretendia transferir sua posse e fruio
comercial a terceiros cometendo segundo a tica da
inquilina/autora inequvoco ato esbulhativo da posse direta
do imvel por ela at ento detida, em decorrncia do contrato
vigorante, causando-lhe assim expressivos prejuzos e danos.
No detalhamento dos fatos esclarece a suplicante que
se achava constituda sob a roupagem de sociedade por quotas
de responsabilidade limitada, ostentando na poca quadro
societrio composto unicamente pelos scios e esposos entre
si, Carlos Fernando Vilanova e Elizabeth Borba Vilanova, os
quais detinham, em partes iguais, 650 (seiscentas e cinqenta)
quotas, perfazendo desta forma a integralidade do capital social
da empresa.

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 617

Exsurge ainda da narrativa factual que imperava uma


situao inamistosa entre os indigitados scios, culminando
com o rompimento da sociedade conjugal, passando a Kalce,
et pour cause, a experimentar gerenciamento e fiscalizao
compartilhados.
No entanto, malgrado a dualidade administrativa
posta em prtica, tal alternativa no teria ainda assim
proporcionado aos scios a harmonizao dos interesses
comerciais da empresa eis que, segundo noticiado, a scia
quotista Elizabeth Borba Vilanova teria, sponte sua e sem a
anuncia do scio varo, atravs de transao por ele tisnada
como simulacro forjado com a Administradora/locadora,
cedido o ponto comercial atravs da devoluo fsica do
imvel, mediante pagamento direto de quantia indeter-
minada prpria scia signatria da cesso [sic], em transao
nula de pleno direito porquanto estranha aos objetivos
sociais, mxime quando avenada por apenas um dos scios/
meeiros que representava parcela igualitria do capital e do
patrimnio da sociedade, desaguando-se por conseqncia
na imprestabilidade do ato solitariamente praticado.
Exprime ainda a autora o entendimento de que a pos-
sibilidade de alienao do bem e direitos a ele inerentes por
apenas um dos quotistas estaria condicionada existncia
de clusula contratual societria especfica que contivesse
comando positivo nesse sentido, o que inocorreria em face
do disposto no regramento insculpido no Contrato Social
ao estabelecer que a administrao da sociedade caber a ambos
os scios, os quais podero agir, em conjunto ou isoladamente, com
poderes de representao e administrao da sociedade, podendo
inclusive nomear mandatrios, e em continuidade, em seu
pargrafo primeiro, complementa que: expressamente vedado
aos scios o uso do nome da sociedade em negcios ou documentos de
qualquer natureza estranhos ou alheios aos fins sociais, bem assim
os atos de favor de interesses particulares dos scios, no afetando

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618 NILSON GUERRA NERY

responsabilidade alguma sociedade os atos em infringncia a este


pargrafo.
Em supedneo a essa linha de raciocnio, dizente com a
alegada iliceidade da cesso formalizada unilateralmente pela
scia Elizabeth Borba Vilanova, a parte autora traz colao
referncias doutrinrias todas no sentido de que no assistiria
ao scio dispor, isoladamente, do ponto comercial, renun-
ciando conseqentemente ao direito subjetivo de uso do
imvel para os fins especificados, quando da firmatura do
contrato locativo, contando para a prtica dessa cesso visuali-
zada como deletria pelo scio prejudicado, segundo comen-
trio explicitado na pea inaugural, (...) com a conivncia da
administrao da requerida (Administradora Centros Comerciais Recife
S/C Ltda.) que embora conhecendo amplamente os termos do contrato
social de sua locatria, enxergou na transao apenas o lucro fcil de
um novo contrato com terceiros, taxas de transferncia, ou a simples
convenincia de uma retomada arbitrria e legal (sic transcrito das
fls. 06).
Em razo do exposto, pugna o demandante pela sua
reintegrao na posse do imvel sub judice, alm da condenao
da requerida dos nus sucumbenciais reivindicados na atrial,
incluindo verbas indenizatrias.
Com a inicial vieram os documentos de fls. 09 usque
21, jazendo s fls. 26 despacho do ento Juiz auxiliar nesta
Vara, Dr. Clris Ribeiro, determinando a realizao de
audincia de justificao prvia, nos moldes da regra contida
no art. 928 do CPC, o que veio a ser implementado conforme
termo de fls. 31, tendo aquele magistrado, ao final da audincia
realizada em 27/04/1993, proferido decisrio vazado nos
seguintes termos: Julgo procedente a justificao e determino que
se expea mandado de reintegrao autora (Kalce Ltda.) com a
retirada dos tapumes colocados, at ulterior deliberao no curso da
ao, e uma vez efetivada a liminar, promova a autora a citao da
requerida para contestar a ao subseqente (transcrito de fls.

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 619

32v), materializando-se assim a reintegrao perseguida pela


acionante, ordenada aos 28 dias de abril de 1993, consoante
se infere do mandado e documentos carreados s fls. 43/45
dos autos vol I.
A reintegrao em tela, no entanto, deixou de ser imple-
mentada por fora da liminar concedida pelo ento Des.
Francisco de S Sampaio, no bojo do Mandado de Segurana
tombado sob o n 15664-7, impetrado pela sociedade
denominada TOQUE DE PELE BOUTIQUE LTDA., ao
fundamento de que, na condio de terceiro prejudicado no
citado na ao central possessria, ostentava a referida empresa
legitimidade para proteger-se atravs do mandamus, contra os
efeitos e conseqncias da liminar reintegratria monocrtica
concedida pelo Dr. Clris Guimares Ribeiro.
Manifestando-se nos autos por petitrio de resistncia
instrudo com documentos (fls.56/81), a Administradora
Centros Comerciais Recife S/C Ltda. esboa tese no sentido
de que o contrato locatcio preteritamente entabulado fora
extinto em data de 18/02/1993 com a cesso retromencionada
em favor da empresa Toque de Pele Boutique Ltda., com a
aquiescncia da locadora, razo pela qual descaberia, a seu
sentir, a tutela possessria, mormente porque no se lhe
poderia atribuir qualquer ato esbulhativo vulnerador da posse
da empresa ora autora, cujos efeitos danosos, caso existissem,
seriam ademais imputveis scia/cedente, questo essa a ser
resolvida entre os parceiros. Aduz, por fim, que, havendo-se
por escorreita a cesso com o conseqente transpasse da
possessio, afigurar-se-ia impositivo, assim, o reconhecimento da
desnecessidade de sua presena na lide ou, alternativamente,
o desacolhimento da pretenso autoral.
Rplica de fls. 150/151, onde se acham reprisados, em
linhas gerais, os fundamentos e pleitos vestibulares.
Convocada a integrar a relao processual, por fora do
despacho de fls. 152, na qualidade de litisconsorte necessria,

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

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620 NILSON GUERRA NERY

ofertou a TOQUE DE PELE BOUTIQUE LTDA. pea


contestativa com documentao (fls. 160/185) em que clama
pela validade do instrumento de cesso firmado pela quotista/
meeira, logo que, sendo terceiro de boa-f, os atos dos scios,
mesmo que em violao ao contrato social ou lei, obrigariam
a sociedade, esgrimindo, em arremate, a inexistncia de
prejuzo parte autora com a transferncia dos direitos
locatcios.
Combatendo a petio de bloqueio da litisconsorte,
fez a Kalce Ltda. repousar a rplica de fls. 187/188.
Em seqncia, restou o feito sentenciado pelo nclito
magistrado substituto (fls. 193/201), poca em exerccio
nesta Vara, que entendeu de fulminar a demanda sem incurso
meritria, ao agasalhar o entendimento de que as requeridas
(eram) partes ilegtimas ad causam para esta relao processual, porque
estranhas relao de direito material, sendo Juzo incontornvel a
extino do processo sem julgamento do mrito com fundamento no
art. 267 inc. VI do CPC (...) (transcrito de fls. 201 vol I).
Irresignada, a demandante Kalce Ltda ofertou o recurso
de apelao de fls. 203/209 ao Egrgio Tribunal de Justia de
Pernambuco, contra-arrazoada pelas requeridas s fls. 221/226
e 251/261, culminando-se com o provimento do recurso e
anulao do decisum guerreado, volvendo os autos a esta
unidade judiciria para que a demanda retomasse seu curso
normal, com a realizao da instruo probatria (fls. 283/
318 vol. II).
A apelante ofertou petitrio requerendo a expedio
de mandado de reintegrao (fls. 320), escorada na crena
segundo a qual, uma vez anulada a sentena extintiva, restaurar-
se-ia automaticamente a ordem liminar da lavra de Dr. Clris
Guimares, alusiva ao reingresso deferido por ocasio de
audincia de justificao (fls. 32v in fine). Este pleito restou
acolhido pelo Juiz titular da 8 Vara Cvel da Capital, Dr.
Sebastio Romildo do Vale Oliveira, que atuou no processo

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 621

em face da argio de suspeio do ento titular desta 7


Vara, Dr. Beraldo de Arruda Veras, consoante se verifica s fls.
85 da primeira carta de sentena extrada e apensa aos autos
principais, desaguando-se na concesso da reintegrao da Kalce
Ltda., conforme deciso proferida s fls. 86/87 daquela carta,
concretizada em data de 18/12/1995, pelo que se destaca do
mandado acostado s fls. 112 dos multicitados autos.
Todavia, em decorrncia da Reclamao n 373-PE
intentada pela demandada TOQUE DE PELE LTDA. perante
o Superior Tribunal de Justia (fls. 115 da primeira carta), o
ento Min. William Patterson entendeu de conceder liminar
obstativa da consolidao reintegratria, ordenando a
suspenso do ato impugnado com espeque no art. 14 inc. II
da Lei 8.038/1990 que estabelece: Ao despachar a reclamao,
o relator: I omissis; II ordenar, se necessrio, a suspenso do
processo ou do ato impugnado.
Ainda de registrar-se, por indispensvel, que a suplicada
Toque de Pele Ltda., inconformada com o Acrdo do
Colendo Tribunal de Justia de Pernambuco, que por maioria
de votos no conheceu do writ assestado contra o despacho
concessivo da liminar reintegratria, ingressou com MS perante
o Superior Tribunal de Justia recebido fungivelmente com
a roupagem de Recurso Ordinrio Constitucional 5454-3/
PE (95/0009567-0) logrando na condio de terceiro
prejudicado, por deciso da 5 Turma daquela Corte Superior
em data de 04/09/1995, compelir o TJPE a conhecer do
mandamus primitivo de n 15664-7, obtendo em 20/05/1996
a segurana perseguida (fls. 519/547).
Sucedeu-se a interposio de Embargos Infringentes n
26238-4 pela Toque de Pele contra a deciso que reconheceu
a legitimidade da Kalce Ltda. para residir e pleitear em Juzo a
anulao da cesso rotulada de defeituosa e ineficaz,
conseqenciando ainda o ofertamento de Recurso Especial
n 192/99 que teve seu curso obstaculizado em 30/09/1999

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

Sem ttulo-7 621 29/8/2006, 20:20


622 NILSON GUERRA NERY

(fls. 653/656), decisum esse atacado pela via de Agravo de


Instrumento n 59251-8-STJ, consoante certido de fls. 686
do vol. IV dos Embargos Infringentes, remansando e hiber-
nando o Recurso Especial em comento na forma do regramen-
to insculpido no art. 542 3 do CPC, conforme ratio
agasalhada pelo Min. Ari Pargendler, verbis: Aguarde-se a remessa
do Recurso Especial relativo deciso final da causa nos termos do
art. 542 3 do CPC. Comunique-se por ofcio ao Tribunal a
quo.
So estes, em linhas gerais, os aspectos do processo que
merecem destaque relatorial, cumprindo ento a este Juzo
reexprimir a prestao jurisdicional monocrtica, primitiva-
mente fulminada pela 4 Turma do Egrgio Tribunal de Justia
do Estado, em face do acolhimento da preliminar de cercea-
mento de defesa, volvendo o feito Instncia Primeira para o
implemento dos atos complementares conducentes a um novo
sentenciamento.
Intentou-se, assim, a conciliao do litgio, consoante
termo de audincia de fls. 751/752, tentativa que resultou
inexitosa, secundando-se a inaugurao da fase instrutria a
qual teve lugar e se realizou em exata consonncia com tudo o
que se contm e se acha assentado nos termos de fls. 824/
829 e 847/848, ocorrendo a desistncia da oitiva da teste-
munha Elizabeth Borges Vilanova por parte da Administradora
Centros Comerciais S/C Ltda., consoante se infere da petio
de fls. 853/857, inocorrendo destarte a realizao da audincia
ento aprazada para 15/05/2003 pelo que se dessume do
despacho exarado s fls. 858 dos autos que considerou
encerrada a instruo e facultou s partes prazo para exibio
e ofertamento das respectivas alegaes finais, o que veio a
ocorrer s fls. 861/866 por parte da Kalce Ltda., fls. 871/
888 pela Administradora Centros Comerciais Recife S/C Ltda.
Em seguimento, concluiu-se pela imprescindibilidade
da integrao lide do atual ocupante do imvel, ordenando-

Revista da ESMAPE Recife v. 10 n. 21 p. 615-629 jan./jun. 2005

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 623

se sua citao por despacho de 19/03/2004 (fls. 889) com a


conseqente expedio do mandado de estilo s fls. 894,
renovando-se a ordem citatria s fls. 905/906, aportando o
respectivo mandado s fls. 908 do vol V, oportunizando o
comparecimento de MARCELO AUGUSTO PEREIRA
SARDENBERG o qual ofertou sua contestao s fls. 910
usque 927, acompanhada de documentos, atravs da qual
esboa preliminares de carncia de ao e ausncia de interesse
de agir da parte autora, lastreado em pretensa inadequao
procedimental, incursionando ainda no aspecto dizente
obrigao que deve ser suportada pelas sociedades decorrentes
de atos negociais firmados ainda que por um de seus
representantes.
Formula ainda, em sua pea defensiva, tese por sinal
j abordada anteriormente por outro dos rus de inexistncia
da affectio societatis posto que, sob sua tica, ausente tal
pressuposto volitivo, faleceria a prpria sociedade dada a
ausncia indispensvel da pluralidade de scios. Suscita
tambm nuances atinentes ao exerccio dos poderes de
representao da empresa autora, referindo em arremate
necessidade ao seu sentir de oitiva da sr Elizabeth Vilanova.
Nova inter veno da Administradora Centros
Comerciais Recife S/C Ltda. s fls. 952/955 e rplica da Kalce
Ltda. s fls. 958/960, vindo-me ento os autos conclusos para
deslinde.
Desatando, pois, a questo, como me cumpre faz-lo,
cuido, primo oculi, que se afigura imperativa e prioritria a
abordagem e equacionamento das argies entranhadas no
petitrio de fls. 770 usque 779, atravessado pela r Adminis-
tradora Centros Comerciais Recife S/C Ltda. e tambm na
pea de fls. 910/927 da autoria de Marcelo Sardenberg,
pugnando pela extino do feito central ao argumento de
pretensa inexistncia de interesse de agir da parte autora,
esgrimindo tese segundo a qual no mais subsistiria o liame

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da affectio societatis entre os dois scios da firma Kalce Ltda,


com conseqente comprometimento do pressuposto da
pluralidade associativa, porquanto, estando o capital da
sociedade dividido em partes igualitrias entre os nicos dois
scios, marido e mulher, esto estes a litigar perante uma das
Varas de Famlia desta Capital, pelo que (tica da r) a
desarmonia e incompatibilidade pessoal entre seus scios
constituiria fundamento bastante e suficiente a neutralizar a
realidade formal espelhada no Contrato Social.
De todo implausvel se afeioa tal pretenso, conquanto,
em verdade, esgrime a parte r argumentos de ordem
eminentemente subjetivos, formulando suposies sobre o
relacionamento pessoal e ntimo dos scios mutvel e mutante
segundo suas convenincias adentrando na privacidade dos
componentes de uma sociedade comercial cujos atos
constitutivos permanecem intangveis e vigentes eis que
devidamente arquivados perante a Junta Comercial de
Pernambuco JUCEPE, rgo competente para seu registro.
Tal inteno no consegue escamotear que pretende a r, com
sua argio, a extino pela via oblqua do feito, que j se
arrasta por mais de um decnio, o qual enveredou por ngremes
caminhos e que, por entendimento e ordenao expressa da
Instncia Superior, baixou a esta unidade judiciria com a
recomendao de que fossem garimpadas todas as provas e
nuances disponveis e evidenciveis pelos litigantes, em razo
do que jazem rechaados de imediato os desideratos incidentais
perseguidos pela querelada no requerimento antes mencionado.
No que concerne especificamente ao requerimento
relativo oitiva da sr Elizabeth Vilanova, tenho que, de efeito,
os fatos j esto plena e suficientemente esclarecidos para o
livre convencimento e conformao gnosiolgica deste julgador
(art. 131 do Digesto Procedimental), acrescendo ainda que a
colheita de suas declaraes foi h muito descartada conforme
petitrio de fls. 853/857.

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 625

De igual forma, soa oportuno sedimentar-se que jaz


cristalizado - a partir do acolhimento parcial (fls. 583/598) dos
Embargos de Declarao ao Acrdo da 4 Cmara Cvel (fls.
396/397 do vol. II) manejados pela litigante Toque de Pele Ltda.
- o entendimento do 1 Grupo de Cmaras Cveis, ao emprestar
nova redao ao Acrdo de fls. 479 et seq. de setembro de 1998,
estabelecendo vedao objetiva no sentido de que (...) a legitimidade
ativa da Kalce Ltda., j decidida nesta Egrgia Corte, no poder mais
ser apreciada na 1 Instncia (transcrito fls. 592 vol III dos
Embargos Infringentes n 0026238-4).
Postos a lume e suplantados estes aspectos, tem-se que,
a teor do quanto decidido no Acrdo repousante s fls. 399
datado de 16/08/1995 nos Embargos Aclaratrios intentados
pela A. C. C. Recife S/C Ltda. e Toque de Pele Ltda. em face
do Acrdo proferido primitivamente nos autos da Apelao
Cvel n 0019718-6, restou acolhida a preliminar de nulidade
do processo reintegratrio, determinando-se o retorno dos
autos ao Primeiro Grau de Jurisdio a fim de que se procedesse
instruo do feito e, conseqentemente, novo julgamento
da quaestio.
Em concomitncia aos referidos Embargos, a Toque de
Pele ingressou com Embargos Infringentes n 0026238-4 (fls.
407), visando modificao do Acrdo, escorada nos
fundamentos contidos no voto dissonante da lavra do Exmo.
Des. Napoleo Tavares, que repelia a Apelao da Kalce Ltda.
por no lhe reconhecer legitimidade ativa ad causam para trilhar
a via recursal.
Tais Embargos Infringentes quedaram rejeitados pelo
Acrdo do Primeiro Grupo de Cmaras Cveis em 02/09/
1998 (fls. 478/480), lavrado nos seguintes termos:

Embargos Infringentes. Dispondo a sociedade de


mais de um scio, igualitrios, ambos podem
administrar, porm um s no pode alienar o ponto

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626 NILSON GUERRA NERY

comercial na medida em que implicaria na extino


da sociedade. Poderes genricos conferidos ao scio
no se confundem com poderes especiais, mxime
aqueles que podem atingir o prprio patrimnio.
Preliminar de ilegitimidade de partes inexistente.
Cerceamento de defesa manifesto. Deciso
monocrtica que se anula por inescondvel e
indisfarvel cerceamento de defesa. Remessa dos
autos Vara de origem para julgamento do mrito
da questo apresentada a exame. Acrdo da 4
Cmara Cvel mantida unanimidade.

De gizar-se aqui, por absolutamente conveniente, que


em verdade o objetivo primacial dos Embargos em comento,
interpostos pela Toque de Pele Ltda., era especificamente o de
amparada em voto divergente impugnar a legitimidade ad
causam da litigante Kalce Ltda. para recorrer da sentena
monocrtica extintiva do processo. Ao decidi-lo, no entanto,
o egrgio Tribunal, pelo seu colendo Primeiro Grupo de
Cmaras, optou por alargar o balizamento do campo decisrio,
incursionando ao mbito conceitual dos atos que, ao sentir
daquele Colegiado, eram factveis de execuo lcita ou vedados
de serem praticados pelos comunheiros da sociedade comer-
cial.
O veredicto suzo anunciado deu sanchas a um segundo
Embargo Aclaratrio tambm adornado com pretenso
infringencial, questionando ainda, por outra vez, a deciso do
Primeiro Grupo de Cmaras atinente legitimatio da Kalce
Ltda. sob suposta existncia de coisa julgada (fls. 489) para
promover a Ao de Reintegrao na Posse, ora sub judice,
aspirao novamente desacolhida (fls. 584/598).
Em contraponto diretriz agasalhada no Acrdo nos
Embargos Infringentes acima referidos, impende ento
direcionar o foco perscrutativo para a vertente explicitada pelo

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 627

Segundo Grupo de Cmaras Cveis do TJPE no julgamento


do Mandado de Segurana n 15664-7 (fls. 519 e seguintes),
onde se acha chancelado entendimento diametralmente oposto
quele encampado pelo Primeiro Grupo de Cmaras,
consoante se infere da conseguinte dico:

Mandado de Segurana. Sociedade por quotas. Ato


de scio-gerente. Cesso de contrato de locao.
Validade. Terceiro de boa-f. O ato de scio-gerente,
com violao do contrato obriga a sociedade perante
terceiro de boa-f. A responsabilidade por excesso
de mandato deve ser discutida entre o scio e a
sociedade, sem qualquer reflexo queles que
contrataram supondo ter o scio legitimidade para
o ato. Viola direito lquido e certo o ato judicial
que, atendendo demanda de scio insatisfeito com
o ato de gerncia de outro, traz conseqncia para
terceiro de boa-f que sequer integrou a relao
processual.

De efeito, adentrando ao punctum saliens da querela,


resulta incontendvel para este Juzo que o entendimento acima
estampado guarda inteira conformidade e coerncia em relao
hiptese ventilada nestes autos, porquanto no se h negar,
por primeiro, que a scia Elizabeth Borba Vilanova havia,
preteritamente, em agosto de 1984, contratado a locao da
loja 019 do Shopping Center Recife em nome da firma Kalce
Ltda. e, por segundo, que detinha, sem rstia de dvida, poderes
para firmar a cesso da locao, o que veio a ocorrer em fevereiro
de 1993.
Tal prerrogativa emerge intangvel a questionamentos,
no apenas pela interpretao nas disposies do Contrato
Social da Kalce Ltda., que confere a ambos os scios, isolada-

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628 NILSON GUERRA NERY

mente, poderes de gerenciamento, representao e administra-


o da sociedade, mas tambm refulge das prprias declaraes
prestadas pelo scio Carlos Fernando Vilanova em audincia
instrutria (fls. 825) quando afirma que:

(...) Ele declarante mantinha contatos espordicos


com a administrao do shopping to somente
quando se fazia necessria sua presena para lidar
com assuntos pertinentes a reformas da loja, de
ambientao e arquitetura, remanescendo para a
sua esposa os demais contatos.

Doutra banda, no vislumbrou este Juzo indcios ou


contornos culposos que pudessem ser imputados s rs, nas
tratativas entre elas e a sr Elizabeth B. Vilanova por ocasio
da cesso do contrato locativo, assistindo cessionria induvi-
dosamente a condio de terceiro de boa-f para o fim de
reconhecer-lhes como ldimos os direitos possessrios decor-
rentes da cesso da relao ex locato vigorante com a Kalce
Ltda. at fevereiro de 1993.
Calha, ento, assentar que no exibe a roupagem da
razoabilidade a afirmao repetida ao longo da tramitao deste
processo no sentido de que a transao celebrada pela scia
Elizabeth Borba (...) implicaria na desconstituio da prpria
sociedade com a apropriao, sem qualquer ttulo, do produto da venda
mediante fraude flagrante em conduta patente de apropriao indbita
(transcrito fls. 06 da inicial).
Ora, ao que consta, a sociedade no se acha fenecida,
eis que no fora objeto de distrato ou dissoluo formal,
malgrado os alegados desentendimentos e desencontros entre
seus dois scios, como se acha reconhecido pela prpria r
Administradora C. C. Recife no item 7 de seu petitrio de
fls. 873. Se eventual extino da affectio societatis ter-se-ia
verificado, como pretensamente aduz a r, tal estado de aridez

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SENTENA CVEL. REINTEGRAO DE POSSE 629

convivencial entre os scios pr-existia guerreada cesso


locatcia, e no exclusivamente dela promanou, acrescendo
salientar-se que no se pode confundir a personalidade jurdica
da sociedade com o patrimnio, corpreo ou incorpreo, que
ela ostenta, sendo inegvel que, sem embargo da cesso
implementada, poderia a sociedade estabelecer-se em qualquer
outro endereo sua livre convenincia.
No se visualiza, portanto, nestes autos, eis que no
provada, a suposta alegada apropriao do produto da venda do ponto
comercial (sic), razo pela qual tenho por bem de rejeitar semelhante
argumento falta da devida evidenciao comprobatria.
No logrou, de semelhante modo, a demandante carrear
ao caderno processual, durante todo o seu atribulado curso, e
notadamente na implementao da fase instrutria, indcios
ainda que tnues das argidas condutas maliciosas das rs,
no se havendo desincumbido a contento do nus que lhe
atribui o art. 333 inc. I do Estatuto Instrumental Civil, no
se afeioando razovel, assim, diante da anemicidade
probatria, admitir-se/acolher-se o alegado conluio entre a
scia-cedente e as empresas demandas.
Bem por isso, cumprindo o munus que me foi cometido,
e aps analisar e sopesar minudentemente os fatos e argumentos
expendidos pelos litigantes, julgo improcedentes e desacolho
os requerimentos que integram a presente demanda possessria
com seus consectrios indenizatrios, atinentes s perdas e danos
pretendidos pela autora conquanto no provados, extinguindo
assim o feito com lastro no art. 269 inc. I do codex proce-
dimental, e imputando promovente o nus sucumbencial
equivalente s custas processuais j adiantadas e verba honorria
de 10% sobre o valor atribudo causa devidamente atualizado.

Publique-se e intimem-se.

Recife, 28 de fevereiro de 2005.

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SENTENA CRIMINAL. ARQUIVAMENTO DE INQURITO POLICIAL. ... 631

SENTENA CRIMINAL.
Arquivamento de inqurito policial.
Posse de arma de fogo.
Atipicidade temporria

Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim


Juiz de Direito

Inqurito policial n. 188/2004

DECISO

EMENTA: ARQUIVAMENTO DE IN-


QURITO POLICIAL. POSSE DE
ARMA DE FOGO. ATIPICIDADE TEM-
PORRIA. AUTORIZAO ESTATAL
PARA PERMANNCIA DA ARMA DE
FOGO EM RESIDNCIA. GARANTIA
INDIVIDUAL NO PODE SER INVO-
CADA EM DESFAVOR DO CIDADO.
REQUERIMENTO DE ARQUIVA-
MENTO DEFERIDO.

Relatrio

A ilustre representante do Ministrio Pblico desta


comarca requereu o arquivamento dos autos do inqurito

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632 PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

policial n. 188/2004, aberto com o objetivo de investigar


possvel delito de posse de arma de fogo, tipificado no art. 12,
da Lei n. 10.826/03, alegando, em resumo, que a conduta
atpica em razo da edio da Medida Provisria n. 229, de 17
de dezembro de 2004, f.

Requereu, ainda, diligncias para esclarecimento da ori-


gem ilcita de bens referidos no inqurito.

Assim vieram os autos conclusos.

Fundamentao

Nenhum reparo merecem as razes ministeriais quanto


ao arquivamento do inqurito policial no que pertine ao cri-
me insculpido no art. 12 da Lei n. 10.826/03.

De fato, a conduta descrita no pode ser punida crimi-


nalmente, ao menos momentaneamente.

O ilustre jurista Luiz Flvio Gomes, em artigo


capturado no site www.ielf.com.br, bem demonstra a situao
peculiar por que passa quem possui arma de fogo em sua
residncia, veja-se:

Todos os possuidores de armas ilegais, desde que estejam com a arma


em sua residncia ou na empresa, foram anistiados (leia-se: tero
prazo, a partir do regulamento da lei, que ainda no saiu, para registrar
tais armas ou entreg-las para a Polcia Federal). No presente momento,
portanto, no h que se falar em flagrante, inqurito policial,
indiciamento, denncia, processo ou condenao penal. Tudo isso
constitui patente ilegalidade, que deve ser evitada por todas as
autoridades do pas (Policiais, Ministrio Pblico e Juzes). (...)

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SENTENA CRIMINAL. ARQUIVAMENTO DE INQURITO POLICIAL. ... 633

A nova lei faz uma clara distino entre posse e porte ilegal de arma
de fogo nos arts. 12, 14 e 16. A posse de arma de fogo (assim como
seus verbos correlatos: manter sob sua guarda, guardar etc.) sempre
refletiu a idia de posse de arma no interior da residncia ou domiclio,
ou dependncia destes, ou, ainda, no interior de uma empresa. Isso
est mais do que patente no art. 12 do novo Estatuto do Desarmamento
(sobretudo quando comparado com o art. 14).

Fora da residncia ou domiclio ou, ainda, fora da empresa (observando


que a lei protege apenas o titular ou responsvel legal por ela), no h
que se falar em posse, sim, em porte (ou seus verbos correlatos: deter,
transportar, ter consigo etc.).

Realada a clara distino entre posse e porte, fica fcil compreender


a vertente desarmamentista da recente legislao, que prev trs diferentes
espcies de anistias que s beneficiam os possuidores e proprietrios
de armas de fogo (em residncia ou em empresa):

(a) no art. 30 aparece a primeira modalidade de anistia em relao


s armas de fogo no registradas, mas adquiridas licitamente: devem
seus proprietrios solicitar o registro, em cento e oitenta dias (a contar
da data do regulamento da lei, que ainda no saiu), livrando-se da
responsabilidade criminal;

(b) no art. 31 acha-se a segunda espcie de anistia aos possuidores e


(ao mesmo tempo) proprietrios de armas de fogo no registradas, mas
adquiridas licitamente: caso no queiram registrar a arma, podem
entreg-la para a Polcia Federal, a qualquer tempo, mediante recibo
e indenizao;

(c) no art. 32 foi contemplada a terceira forma de anistia aos


possuidores e (ao mesmo tempo) proprietrios de armas de fogo no
registradas (e adquiridas licitamente ou no): podem entregar a arma
(de uso permitido ou restrito, porque a lei no distingue) para a Polcia
Federal, no prazo de cento de oitenta dias, a contar do regulamento da

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634 PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

Lei 10.826/03, mediante recibo e, presumida a boa-f, podero ser


indenizados.
Entre castigar penalmente quem se encontra com arma ilegal em resi-
dncia ou em empresa, de um lado, e, de outro, estimular o seu possui-
dor e proprietrio a registr-la ou entreg-la para a Polcia Federal,
para efeito de sua destruio (art. 32, pargrafo nico, da citada lei),
a preferncia muito clara recaiu sobre a ltima conduta. Concluso:
enquanto no expirados os prazos das anistias mencionadas no
h que se falar em crime, porque o que est autorizado e fomentado
por uma norma legal no pode estar proibido por outra.

Bem demonstrado est que o Estado autorizou o pos-


suidor de arma de fogo a mant-la em sua residncia at o
ltimo dia do prazo definido no artigo, sendo tal prazo dilata-
do mediante medidas provisrias sucessivas. Tanto assim,
que o cidado pode at o ltimo dia do prazo entregar a arma
de fogo e ser indenizado por isso. Vejam-se os artigos citados
acima:

Art. 30. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo no registradas


devero, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e
oitenta) dias aps a publicao desta Lei, solicitar o seu registro
apresentando nota fiscal de compra ou a comprovao da origem lcita
da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.
Art. 31. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo adquiridas
regularmente podero, a qualquer tempo, entreg-las Polcia Federal,
mediante recibo e indenizao, nos termos do regulamento desta Lei.
Art. 32. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo no registradas
podero, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias aps a publicao desta
Lei, entreg-las Polcia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a
boa-f, podero ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.
Ao presente caso se aplica o art. 30 ou o art. 32, eis que
a arma de fogo no teria sido adquirida ou registrada regular-
mente.

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SENTENA CRIMINAL. ARQUIVAMENTO DE INQURITO POLICIAL. ... 635

Os prazos referidos deveriam ser contados aps a


publicao da Lei n. 10.826/03. Ocorre que a Medida
Provisria n. 229/04 determina como termo final o dia 23
de junho de 2005.

Portanto, a autorizao estatal para possuir arma de fogo,


em residncia ou local de trabalho, est plenamente em vigor,
no se podendo aplicar nenhum artigo da Lei n. 9.437/97,
eis que esta foi revogada expressamente pelo art. 36 da Lei n.
10.826/03.

Somente aps o decurso daqueles prazos, que se po-


der cogitar de crime de posse de arma de fogo.

Nem se argumente, em sentido um pouco diferente do


at aqui exposto, como o faz Damsio E. de Jesus, de que
medida provisria no poderia tratar de matria penal, con-
forme art. 62, pargrafo 1, inciso I, alnea b, da C.R.

O argumento do ilustre jurista, com a devida vnia,


totalmente despido de fundamento. Veja-se por qu.

A proibio constitucional no sentido de que a medi-


da provisria no pode tratar de matria penal foi instituda
com o intuito de manter intacta a garantia individual do prin-
cpio da legalidade para conformao de normas penais incri-
minadoras.

Conforme se verifica do art. 5, inciso XXXIX, da C.R.,


no pode haver crime sem lei anterior que o defina. O termo
lei aqui utilizado de forma restrita, ou seja, norma produ-
zida pelo Poder Legislativo de acordo com o respectivo proce-
dimento previsto. No fosse assim, qualquer norma produzi-
da poderia definir crimes, tais como decretos, medidas pro-

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636 PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

visrias, portarias, etc., j que todas se enquadram no concei-


to largo de lei.

O princpio da reserva legal foi institudo como garantia


individual dos cidados e, portanto, visa garanti-los de que o
Poder Executivo (ou mesmo o Judicirio) no poder instituir
normas penais incriminadoras em carter originrio, ou seja,
no poder definir crimes de forma autnoma. Esse o intuito
da vedao. Veja-se trecho do parecer do ex-Procurador-Geral
da Repblica Aristides Junqueira Alvarenga, retirado da obra
de Alexandre de Moraes, Constituio do Brasil Interpretada,
primeira edio, pgina 1.131-1.132, quando ainda no havia,
expressamente, a referida vedao constitucional:

certo que a Constituio Federal no limitou expressamente o


contedo material das medidas provisrias, que sem dvida, provi-
dncia legislativa cautelar, inspirada na Constituio italiana. Mas,
em face da secular garantia individual de que no h crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal (art. 5,
XXXIX, da Constituio Federal), no possvel permitir que o Chefe
do Poder Executivo se substitua ao Poder Legislativo, ainda que
cautelarmente, em tema de definio de crime e de cominao de pena,
uma vez que o termo lei, posto na norma garantidora individual,
acima aludida, h de ser interpretado restritivamente, em seu sentido
exclusivamente formal: norma criada pelo Poder Legislativo. Saliente-
se que tal interpretao restritiva imperiosa, por se tratar de direito
concernente liberdade de locomoo de qualquer um do povo, que s
pode ser legitimamente cerceado pela vontade dos representantes eleitos
especificamente para o exerccio normal do poder de legislar. Entender
que o Chefe do Poder Executivo, no uso de sua atribuio de expedir
medida provisria com fora de lei, cuja excepcionalidade caracteri-
zada pela relevncia e urgncia da matria, possa assim agir em ma-
tria penal permitir a possibilidade de dano irreparvel ao direito
maior da liberdade individual de locomoo, pondo em risco o prprio

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SENTENA CRIMINAL. ARQUIVAMENTO DE INQURITO POLICIAL. ... 637

regime democrtico, cuja defesa incumbncia constitucionalmente


imposta ao Ministrio Pblico (art. 127, caput, da CF)). Com efeito,
a eficcia imediata de medida provisria definidora de crimes e
impositora de penas privativas de liberdade e pecunirias, como as
ora contempladas, far com que algum possa ser constrangido a se
submeter a processo penal e a uma eventual condenao, antes que a
medida provisria se converta em lei pelo Congresso Nacional.

Percebe-se, claramente, que a instituio da vedao de


medida provisria em matria penal veio com o intuito de
evitar a criao de tipos penais e a imposio de penas aos
cidados sem a lei pertinente.

Pergunta-se: em qual lugar, em qual parte, veio a Medi-


da Provisria n. 229/04 a definir crimes ou impor penas?
Respondo: em lugar nenhum. Veio ela, apenas, definir novo
marco final de contagem de prazos j constantes na Lei
n.10.826/03.

No se pode, com a licena do ilustre pensador Evangelista


de Jesus, invocar garantia individual em desfavor do cidado! Ora,
ao referir que a citada medida provisria estaria violando garantia
individual do cidado, pois trataria indevidamente de matria
penal, o ilustre penalista invoca garantia individual deste cidado
para defender que sua conduta poderia ser considerada crimino-
sa, no fossem outros motivos que ele mesmo trata de arranjar.
No poderia haver maior contradio: uma garantia individual
posta em favor do cidado que, ao ser aplicada, implicaria
criminalizar a conduta deste mesmo cidado!

No. No se pode invocar garantias individuais em


desfavor dos cidados, mas, apenas, para benefici-los, j que
so garantias postas, em grande parte, para refrear a atividade
estatal.

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638 PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

A bem da verdade, diga-se que o ilustre Damsio E. de


Jesus no chegou a defender a tipicidade da conduta descrita
no art. 12 da Lei 10.826/03, veja-se:

Chega-se concluso de que, nas definies as quais requerem


complemento, qual seja a regulamentao, como ela ainda no existe,
so atpicos todos os fatos cometidos a partir da entrada em
vigor do Estatuto do Desarmamento (23 de dezembro de 2003).
o que ocorre, por exemplo, nas figuras que mencionam
armas de fogo de uso restrito, permitido e proibido (arts.
12, 14 e 16). Como no sabemos quais sejam, isto , no temos
elementos para classific-las como de uso permitido, proibido ou restrito,
no podemos enquadrar os fatos nos modelos legais. Criou-se uma
espcie de anistia temporria, perdurando a impunidade at que seja
regulamentado o Estatuto do Desarmamento e satisfeitos determinados
prazos. JESUS, Damsio de. Estatuto do Desarmamento:
medida provisria pode adiar o incio de vigncia de norma
penal incriminadora? So Paulo: Complexo Jurdico Damsio
de Jesus, maio 2004. Disponvel em: <www.damasio.com.br/
novo/html/frame_artigos.htm>. Com destaques de agora.

O ilustre jurista segue outro caminho: ressalvando, por


bvio, as condutas que no necessitam de regulamentao,
afirma que as que necessitam no podem ser consideradas crimes
pelo fato do decreto regulamentador no ter sido ainda editado,
no se concretizando a tipicidade destas condutas por serem
normas penais em branco sem o devido complemento.

Mas, e agora, que j houve a edio do decreto regula-


mentador (Decreto n 5.123, de 1 de julho de 2004), o ilustre
jurista vai defender a tipicidade da conduta acima mencionada?
Cremos que no. Por certo o ilustre Damsio conseguir, com
a inteligncia que lhe peculiar, remar na corrente majoritria
do entendimento esposado por Luiz F. Gomes.

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SENTENA CRIMINAL. ARQUIVAMENTO DE INQURITO POLICIAL. ... 639

Todavia, restaria indagar o que fazer com a arma


apreendida.
A posio que defende sua devoluo ao possuidor no
me parece a mais adequada. simples: se no tpica a conduta
de possuir arma de fogo irregular dentro de residncia, h,
sem dvida alguma, conduta criminosa no porte de arma de
fogo sem a devida autorizao, conforme art. 14, da Lei n.
10.826/03. Que o tipo definido no art. 14 referido plena-
mente aplicvel no resta a menor dvida.

Como se poderia ento autorizar a devoluo da arma


de fogo apreendida naquelas circunstncias, se, no momento
de sua entrega ao possuidor, este, sem autorizao para portar
arma, estaria ele imediatamente cometendo o delito descrito
no art. 14 da Lei n. 10.826/03?

Penso que o mais correto que a arma de fogo apreen-


dida permanea no depsito judicial e o seu possuidor seja
intimado para, querendo, durante a vigncia dos prazos
definidos pelo Estatuto, manifeste sua inteno de receber a
indenizao prevista na lei. A arma dever ser encaminhada
at a Delegacia de Polcia Civil Regional que tem convnio
com a Polcia Federal. No comparecendo o cidado at o
final do prazo, a arma de fogo dever ser encaminhada ao rgo
competente para posterior destruio, conforme art. 25,
pargrafo nico da Lei n.10.826/03.

Concluso

Ante o exposto, nos termos do art. 18 do CPP, deter-


mino o arquivamento parcial destes autos de inqurito polici-
al, com as cautelas legais, por considerar ser atpica, momen-
taneamente, a conduta do indiciado.

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640 PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM

Intime-se o indiciado para conhecimento do aqui deci-


dido.

O Ministrio Pblico requereu a devoluo dos autos


Autoridade Policial a fim de que sejam efetuadas diligncias
esclarecedoras da possvel provenincia ilcita de bens referi-
dos do inqurito. Portanto, devolvam-se os autos Delegacia
de polcia de origem, a fim de que sejam realizadas as dilign-
cias necessrias no prazo de 30 (trinta) dias.

Cientifique-se o M.P. do aqui decidido.

Garanhuns, 19 de janeiro de 2005

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