As Diferenças de Gênero Na Prática e No Significado Da Religião
As Diferenças de Gênero Na Prática e No Significado Da Religião
As Diferenças de Gênero Na Prática e No Significado Da Religião
e no significado da religio
Linda WOODHEAD *
RESUMO: Este artigo trabalha com a crescente influncia dos estudos de gnero
na Sociologia da Religio e faz uma sntese das principais publicaes sobre o
tema na literatura de lngua inglesa. Mostra que a introduo de uma perspectiva
de gnero tem efeitos essenciais, entre os quais podemos citar o questionamento
do conceito de religio e as formas de religiosidade valorizadas, sobretudo aquelas
nas quais os homens tem maior visibilidade e dispem de um poder maior. Mas
isto tambm implica uma adaptao dos mtodos e o questionamento das teorias
dominantes, como a da secularizao. Graas a essa abordagem, a Histria religiosa
das sociedades ocidentais podem ser reanalisadas em funo das transformaes nas
relaes de gnero, estabelecendo, deste modo, uma ligao entre gnero e religio.
O artigo prope, ainda, um novo contexto de anlise, de modo a articular gnero e
religio, esclarecendo, assim, a maneira segunda a qual as relaes de poder opem-
se ou complementam-se em ambos os campos.
1
Ver Michael Argyle e Benjamin Beit-Hallahmi (1975), Leslie Frances (1997), Tony Walter e Grace Davie
(1998). Grande parte desses trabalhos so dedicados participao das mulheres no cristianismo.
Cada vez mais, estudos tm mostrado o papel desproporcionado das mulheres nas novas formas de
espiritualidade no Ocidente (HEELAS; WOODHEAD, 2005; HOUTMAN; AUPERS, 2006).
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A nica especialista do vasto campo dos estudos da religio que foi e continua sendo regularmente
citada nos estudos de gnero- mesmo que seja, sobretudo, para criticar seu reducionismo essencialista
Mary Daly (1979). Apesar da importncia em todo o mundo de sua crtica s religies, em obras como
Gyn/ Ecology); Daly no se considera uma especialista da sociologia da religio.
Esta tipologia no implica que haja uma ordem sexuada nica e esttica
dentro da sociedade, uma vez que a unidade de anlise pode variar de um
Estado-nao a uma regio ou a um grupo tnico. Ela supe, em contrapartida,
que nesta entidade exista, a um dado momento, uma diviso preponderante do
poder entre homens e mulheres que podemos qualificar como instituda, dentre
outras possibilidades que so, ao mesmo tempo, marginais. Na maior parte das
sociedades conhecidas, a distribuio comum de poder favoreceu os homens em
detrimento das mulheres. Mas a natureza desta desigualdade varia muito segundo
as pocas e lugares. Em determinadas sociedades, como as sociedades ocidentais
atuais, as relaes entre os sexos no so fixas, ainda que a(as) posio(es)
dominante(s) seja(sejam) relativamente precria(s). Tal quadro no implica que
haja uma ordem religiosa dominante em uma determinada sociedade, nem mesmo
que todos os membros de uma religio tenham posies teolgicas idnticas
sobre a questo de gnero. Dentro de uma mesma congregao ou denominao
crist, por exemplo, alguns podem consolidar a ordem sexuada existente pelo
intermdio das atividades religiosas (sem que isso implique o questionamento da
verso santificada da denominao masculina apresentada pela doutrina oficial,
nem da organizao institucional, ou mesmo das prticas litrgicas, por exemplo).
Enquanto outros fazem um uso mais estratgico da religio (por exemplo, as
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mulheres que ignoram grande parte da doutrina oficial criam grupos de ajuda
feminina em suas igrejas utilizando-os para conquistar um poder ao mesmo tempo
religioso e secular (WINTER; LUMMIS; STOKES, 1994). Ainda outros podem
se encontrarem em uma situao de busca, por exemplo, aqueles que frequentam
as igrejas esporadicamente adentrando-as apenas para tirar do espao sagrado o
proveito necessrio a sua prpria empreitada, pessoal e espiritual, sem implicar a
confrontao com a ordem existente.
Esta classificao atrai a ateno no somente para as relaes de dominao
fundadas sobre a questo de gnero na sociedade, mas tambm para a ou as ordens
sexuadas inerentes a uma religio ou a um dado grupo religioso. O papel da religio
na diviso sexuada no passvel de ser decifrado somente com base em seus
smbolos culturais, por mais importantes que sejam. As representaes do divino no
esto necessariamente ligadas de maneira unvoca ordem sexuada. Elas devem ser
vistas mais como um leque de possibilidades que se estendem desde a identificao
do poder sagrado a um ou vrios seres sobrenaturais e a seus representantes
autorizados (os padres); s representaes que identificam o divino prpria vida
e, portanto, ao princpio espiritual de todo ser vivente (WOODHEAD; HEELAS,
2000). Nas primeiras religies, que definimos como religies da diferena, o poder
sagrado estreitamente concentrado e controlado, enquanto nas espiritualidades
da vida o poder mais difuso e acessvel. No primeiro caso, um pequeno grupo
que controla a maioria assemelha-se s formas de organizao social e religiosa que
distribuem o poder hierarquicamente; enquanto no segundo invoca estruturas mais
horizontais e igualitrias.
Considerando a onipresena da dominao masculina como norma social, no
surpreendente que as religies da diferena, sobretudo os monotesmos, identificam
o poder sagrado, concentrado entre as mos de poucos, ao poder masculino. Em
uma sociedade hierrquica e dominada pelos homens, esperamos encontrar uma
religio tambm hierrquica e monotesta que sacralize o poder masculino e garanta
a ordem sexuada dominante. Esperamos, tambm, que uma religio contracultural,
que conteste a dominao masculina, rejeite divindades masculinas em favor de
divindades femininas, conteste o monotesmo em favor do politesmo ou pantesmo,
ou de um misticismo menos estruturado, que aproxime o poder sagrado s mulheres.
Entretanto, como demonstram os estudos citados anteriormente, as relaes entre
as representaes e suas respectivas encarnaes sociais devem ser estudadas de
modo mais preciso e com menos pressupostos, uma vez que na prtica essas ligaes
mostram-se surpreendentes e variadas.
Consolidao
3
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
reunio calorosa e ntima da famlia em torno da mesa do shabbat, com suas velas,
a comida, o amor e o apoio mtuos tornam-se a experincia mais emblemtica (e
idealizada) desta ordem (DAVIDMAN, 1991).
Este papel sagrado feminino no o nico fator que atrai as mulheres s
formas de religio conservadoras, fato este que refora a ordem dominante, o mesmo
ocorre com o papel sagrado do homem. Os dados recolhidos por Lynn Davidman
mostram que elas se sentem atradas pelo ideal domstico da clula nuclear
como um todo, tal qual o promovido pelas formas contemporneas do judasmo
ortodoxo, que incluem o modelo de um marido guardio da famlia, confivel,
que proteja as mulheres do perigo das rupturas familiares. Ainda aqui podemos
ver uma reao contra as normas de gnero em vigor, particularmente contra as
modalidades recentes do masculino que desresponsabilizam os pais, que Barbara
Ehrenreich (1983) chama de a fuga diante do compromisso, ou modalidades que
legitimam a violncia masculina. Andra Dworkin (1983) explica que ao se refugiar
no fundamentalismo religioso as mulheres esto em busca de uma (v) proteo
masculina contra a prpria violncia masculina. Nos pases em desenvolvimento do
hemisfrio sul, segundo Bernice Martin (1998), as mulheres que so atradas pelo
cristianismo pentecostal buscam nele os benefcios de uma clula familiar estvel
para elas mesmas e seus filhos, com um pai responsvel, cuja converso passa
tambm pela negao do machismo. Ao deslocar o olhar do real para ideal, Ellen
Clark-King (2004) explica que, no noroeste da Inglaterra, as mulheres da classe
operria que praticam o cristianismo veem em Deus o Pai, a figura idealizada de
um apoio protetor e em Jesus Cristo a figura de um marido ou de um amor ideal.
O reforo mtuo entre a religio e as formas hegemnicas de masculinidade
continua ainda relativamente pouco estudado, sendo que a maioria dos trabalhos
sociolgicos sobre a religio interessa-se mais pela feminilidade, distinta, do que
pela masculinidade, indistinta. Esse quadro comea a evoluir medida que a
masculinidade torna-se um objeto de estudo mais frequente nos estudos de gnero
(CONNEL, 1995; KIMMEL; MESNER, 1998), e que o papel central da religio na
construo e na afirmao da masculinidade se torna mais evidente. Movimentos
como The Promise Keepers e manifestaes tais quais A marcha de um milho de
homens nos Estados Unidos ajudaram os pesquisadores a tomar conscincia do
papel do cristianismo conservador no reforo de determinados modos patriarcais de
masculinidade, especialmente os paternalistas. Esse contexto no deve ser tratado
como um simples retorno ao patriarcado cristo tradicional, j que esses grupos
focalizam os novos imperativos comunicacionais e relacionais que devem ser
impostos a homens e mulheres (WILLIAMS, R., 2000). Um dos gritos de guerra
desses grupos a reconquista do direito divino dos homens de reinar sobre suas
famlias e de exigir obedincia de sua mulher e filhos, especialmente no trabalho
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Linda Woodhead
Ttica
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NDLR: Moderao em todos os prazeres provocados pelos sentidos.
Busca
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NDLR: forma de religiosidade inscrita numa espiritualidade new age. Do ponto de vista do gnero, o
feminino fortemente valorizado por intermdio do culto Grande Sacerdotisa e de devoes femininas.
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NDLR: mtodo de cura de origem japonesa que surge nos anos 1920.
Contracultura
os tempos, tanto pela influncia cultural como pela frequentao das igrejas.
Retomando o quadro terico evocado precedentemente, o cristianismo teve xito
em tornar-se uma religio ao mesmo tempo consolidadora e ttica. Consolida a
ordem existente santificando o trabalho domstico das mulheres, afirmando uma
identidade feminina que eleva seu prestgio espiritual e moral, erigindo distines
de classe fundadas na virtude crist e reforando a ideologia da separao das
esferas sagrada e secular. Alm disto, o cristianismo oferece tambm a algumas
mulheres os meios de negociar mais poder e proteo e de ter acesso vida cvica
e pblica7.
Talvez seja justamente por causa de seu papel principal na produo da
ordem sexuada na modernidade industrial que a religio foi muito vulnervel face
s contestaes e transformaes desta ordem. Callum Brown (2001) mostrou que
a assimilao da feminilidade a uma forma de religiosidade, no sculo XIX, ligou
irremediavelmente o declnio da primeira ao da segunda. A feminilidade crist
foi atacada por diversos lados, especialmente pelos combates e ideias feministas
a partir do fim do sculo XIX. Os ideais cristos de devoo, de sacrifcio, de
piedade, do trabalho domstico e da responsabilidade espiritual e moral das
mulheres em relao ao marido e famlia revelaram-se vivazes, dentro e fora
das igrejas, at o ponto de, nos anos 1950, vermos o ressurgimento da defesa
dos valores familiares tradicionais, que acompanhou um breve aumento na
frequentao das igrejas. Este aumento foi rapidamente seguido pelo incio de
uma fase de declnio, ainda mais acentuada daquela que a precedeu. A fase de
secularizao na modernidade tardia nasceu nos anos 1970 e se prolongou na
maioria das sociedades europeias, no Canad e, em menor medida, nos Estados
Unidos (HEELAS; WOODHEAD, 2005).
As teorias clssicas da secularizao fracassam ao explicar sua acelerao
aps os anos sessenta, ao passo que uma anlise atenta ao gnero veria uma ligao
estreita entre as reviravoltas ocorridas nessa poca nas relaes entre homens
e mulheres e uma religio comprometida com a ordem sexuada da sociedade
industrial. Essas transformaes compreendem no apenas a emergncia de um novo
combate feminista em favor da igualdade dos sexos, mas tambm e sobretudo
um conjunto de transformaes polticas, econmicas e sociais que conduziram um
nmero crescente de mulheres ao mercado de trabalho (WHARTON, 2005). Dizendo
de modo simples, as mulheres entraram na jaula de ferro aproximadamente um
sculo depois que os homens, mas essa entrada teve efeitos devastadores, tambm,
em seus engajamentos religiosos. Este quadro seria, entretanto, simplista porque
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Podemos tambm mencionar as diversas formas de religies marginais que floresceram no sculo XIX
e que visavam propiciar uma posio mais elevada no seio da ordem sexuada (busca) ou a destitu-la
(contracultura)- por exemplo os mrmons, os quakers e os teosofistas.
Alargar o campo
a new framework for thinking about religion and gender, which highlights the way
in which power relations established in each confirm or contest one another.
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