Doutorado - Fabiano-Grendene-De-Souza-Cfa-E-O-Cinema-O-Processo-De-Adaptacao-De-Morangos-Mofados PDF
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Porto Alegre
2010
FABIANO GRENDENE DE SOUZA
Porto Alegre
2010
FABIANO GRENDENE DE SOUZA
Aprovada em_____de__________________de_____.
BANCA EXAMINADORA
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Maria Clara, que ter 25 anos em 2022.
Gabi, minha pessoa-eu desde os meus 25.
Aos meus pais, sempre pais-heris, independente da minha idade.
AGRADECIMENTOS
The studies are anchored in the literary and audiovisual criticism and act as a
prelude to the presentation of the creative process, divided into three steps: the first
encounters with the material to be adapted, the scriptwriting itself, and the cogitation
upon its creation.
INTRODUO 13
FILMOGRAFIA 414
APNDICE A 435
APNDICE B 441
APNDICE C 443
13
INTRODUO
Caio Fernando Abreu escreveu para o amanh. Isso pode ser visto nas
reincidentes reedies de sua obra, nas frequentes anlises acadmicas e nas
constantes adaptaes de seus textos, permanentemente invadindo palcos e telas1.
Enquanto o longa-metragem Onde andar Dulce Veiga?, de Guilherme de Almeida
Prado, baseado no romance de 1990, comeou a ser exibido em 2007, a montagem
teatral de Aqueles dois conto de Morangos mofados (1982) foi concebida pela
companhia mineira Luna Lunera e estreou no Festival de Curitiba, em 20082.
1
Em 2005, a editora Agir iniciou a reedio de sua obra. Alguns de seus livros ou antologias tm
edies recentes pela L&MP e pela Global Editora. Ao mesmo tempo, seus contos encontram-se
disponveis na internet. Grande parte dessa produo est disponvel em
semamorsoaloucura.blogspot.com (acesso em 15.12.2009). Os demais contos so facilmente
achados com ajuda do Google. Entre os estudos acadmicos, destaca-se a publicao do trabalho de
Bruno Souza Leal (2002), Caio Fernando Abreu, a metrpole e a paixo do estrangeiro: contos,
identidade e sexualidade em trnsito. Dissertao de mestrado em Estudos Literrios / Teoria da
Literatura, defendida na Fale/UFMG, em 1995.
2
Devido grande quantidade de obras citadas, optou-se por uma diferenciao de sinalizao entre
filmes e materiais literrios (livros, contos, poemas etc). Os primeiros aparecem em itlico; os ltimos,
entre aspas. Mantm-se itlico nos livros apenas nos ttulos dos subcaptulos desta tese, nas citaes
de outros autores em que o nome da obra aparecer em itlico, e quando o ttulo for citado em nota de
rodap, como citao bibliogrfica (como na nota anterior). Citaes de discos, msicas, encenaes
teatrais e publicaes permanecem em itlico.
3
Sem apresentar uma pesquisa exaustiva, destaca-se a produo gacha A visita (especial da RBS
TV, dirigido por Gilberto Perin, em 2007), baseado em vrios contos de Os drages no conhecem o
paraso (1988), bem como dois filmes produzidos no curso de Produo Audiovisual da PUCRS:
Linda, um filme horrvel (Elisa Simcza, 2007), a partir de Linda, uma histria horrvel, presente no
citado livro de 1988; e Inimigo (Mariana Neibert, 2006), baseado em O inimigo secreto, conto de
Pedras de calcut (1977). Ainda na seara dos curtas h A mulher binica (2008), de Armando
Praa, baseado no conto Creme de alface, presente em Ovelhas negras (1995), mas escrito em
1975; e Na terra do corao (2008), produo pernambucana de Caroline Quintas e Renata Monteiro,
baseada em uma crnica de Caio Fernando Abreu, publicada em 1988 em O Estado de S. Paulo e
reproduzida na antologia Pequenas epifanias (2006).
4
Quem resumiu as preocupaes foi Marcelo Bessa (Apud GARCIA, 2003: p. 22).
14
5
Atuei como roteirista e diretor dos seguintes filmes que tm matriz literria: o curta Rastros do vero
(1996, co-dirigido com Cristiano Zanella), a partir da novela homnima de Joo Gilberto Noll; o curta
Um estrangeiro em Porto Alegre (1999), parte do qual parte baseado em O estrangeiro, de Albert
Camus; o telefilme Porto Alegre de Quintana (2006, co-dirigido com Gilson Vargas), a partir de
poemas de Mario Quintana, com roteiro feito em colaborao com Gilson Vargas, Milton do Prado e
Vicente Moreno; o telefilme O louco (2007) e o longa A ltima estrada da praia (em finalizao),
ambos roteirizados com Vicente Moreno a partir de O louco do Cati, de Dyonelio Machado. Sobre o
processo de adaptao de O louco do Cati, ver SOUZA (2009, p. 129-144).
6
Pelo carter terico-prtico da pesquisa, envolvendo uma criao pessoal, optei por usar
prioritariamente a primeira pessoa do singular.
7
Uso a grafia Morangos mofados o filme para diferenciar o roteiro do livro de mesmo nome. J o
livro (Morangos mofados) diferencia-se do conto homnimo porque o nome deste ltimo
totalmente grafado em maisculas (MORANGOS MOFADOS).
15
8
Desde j, impe-se uma diferena entre esta pesquisa e aquelas apresentadas por Ana Cristina
Cesar e Jlio Csar de Bittencourt Gomes. Os trabalhos deles so, invariavelmente, ensaios focados
em uma obra; no caso, um conto e um romance. Enquanto a poeta carioca usa a maior parte de seu
enxuto texto para justificar suas escolhas na hora da traduo, Gomes relaciona O quieto animal da
esquina e outras obras do escritor com livros, filmes, msicas, traando um painel instigante
sobre a representao contempornea, atravs de temas como o olhar, o tempo e a influncia
cinematogrfica na literatura. Em contrapartida, a pesquisa aqui apresentada segue uma anlise que
busca a todo momento um corpo a corpo analtico dos filmes e livros que compem este trajeto mais
amplo. Ou seja, a metodologia usada nesta pesquisa diferente.
9
Para uma compilao das teorias dos cineastas, ver AUMONT (2004).
16
10
O texto de Eisenstein de 1932.
17
produo da obra, bem como a ideologia do artista criador. Abrindo caminho para o
dilogo entre movimentos estticos, Johnson discute Macunama (1968), de
Joaquim Pedro da Andrade, baseado no livro homnimo de Mario de Andrade
(1928). Ento, enfatiza os pontos de aproximao entre o Modernismo e o Cinema
Novo, explicitando que as duas correntes tinham preocupaes semelhantes, tanto
no que diz respeito pesquisa formal, quanto na questo temtica, pautada pela
reflexo sobre a representao da identidade brasileira.
Jos Carlos Avellar (2007) tambm aborda a presena da literatura brasileira
dos anos 1920 no cinema dos anos 1960 e 1970, estudando no s o filme de
Joaquim Pedro, mas outros, como Lio de amor (1975), de Eduardo Escorel,
baseado em Amar, verbo intransitivo (1927), do mesmo Mario de Andrade. Mas
Avellar tambm amplia o dilogo entre cineastas e escritores, apresentando um
pensamento em que a adaptao apenas uma forma do cinema se relacionar com
os livros; afinal, para o ensasta, existe um caminho de mo dupla entre as duas
formas de expresso. Segundo Avellar:
uma srie de relaes com outras obras, a comear com toda uma tradio prpria
de seu meio. Entre suas diversas anlises, o ensasta revela a dvida que As
aventuras de Tom Jones (Tom Jones, 1963), de Tony Richardson, tem no s com
o romance de Henry Fielding, mas com o filme burlesco e o cinema verit (p.23).
Desenvolvendo um raciocnio similar, Ismail Xavier (2003) ataca a noo de
fidelidade, argumentando que ela exige critrios subjetivos de observao. Assim,
mesmo quando h comparao de estilos, o que se v uma confuso entre os
especficos literrio e cinematogrfico. Em contrapartida, Xavier salientou que cada
vez mais se pensa em dilogo entre obras11. Este olhar no s leva em conta a
diferena de contextos em que as duas criaes foram produzidas, como admite
que o texto um ponto de partida e no de chegada.
dentro de um pensamento mais aberto sobre adaptao que Umberto Eco
(2007) analisa Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971), realizado por Visconti a
partir do livro de Thomas Mann (publicado em 1912). Ao mesmo tempo em que
aponta diversas diferenas entre o original e a adaptao, ele reitera que isso no
impede que Morte em Veneza seja um filme esplndido (p.399). Ou seja, Eco
defende o ponto de vista de que no h problemas da adaptao gerar uma obra
distante do livro-base. Assim, quem adapta usa o original, dele extraindo ideias e
inspiraes para produzir um texto prprio (p.400).
A partir dessa ideia de Umberto Eco possvel avanar na questo,
invertendo o olhar, tentando entender no mais somente alguns impasses da
relao entre cinema e literatura, mas investigando as formas, os mtodos, os
pensamentos mais correntes de certos diretores e roteiristas envolvidos nesta
questo.
Primeiramente, a reflexo sobre adaptao est no bojo de algumas
polmicas histricas a respeito do prprio cinema. Em seu j citado texto, Bazin usa
a reflexo sobre adaptao para explorar a oposio cinema industrial cinema
autoral. Mesmo que tal viso hoje soe generalista, o crtico diferencia os filmes em
que a literatura serve de selo de qualidade daqueles elaborados por cineastas que
se esforam honestamente pela equivalncia integral, tentam ao menos no mais
inspirar-se no livro, no somente adapt-lo, mas traduzi-lo para a tela (p.93). Na
hora de exemplificar, Bazin contrape duas verses de Madame Bovary, opondo a
11
O termo dilogo que aparece constantemente nesta pesquisa tomado em sentido amplo,
referindo-se a proximidades estticas entre obras ou entre autores.
19
12
Bazin refere-se a Madame Bovary (1933), de Jean Renoir; e Madame Bovary (1949), de Vicente
Minelli, com roteiro de Robert Ardrey.
13
Quem definiu a adaptao para Joaquim Pedro foi Eduardo Escorel (ESCOREL apud AVELLAR,
Op. Cit., p.276).
14
A dupla de roteiristas realizou diversas adaptaes, como Adltera (Le diable au corps, 1947), de
Claude Autant-Lara, a partir do livro de Radiguet, homnimo ao titulo original do filme.
20
infilmveis e que ainda levado tela por diretores primrios um roteiro que serve
a um cinema de roteiristas, em suma. Fazendo comparaes entre filmes e livros,
Truffaut brada contra um cinema que no se revela altura da literatura, procurando
demonstrar sua opinio com a comparao de certas cenas. Por outro lado, ao citar
seus preferidos Bresson, Renoir, Max Ophuls... -, Truffaut sublinha o quo
possvel fazer cinema de autor, tendo por base obras literrias.
Se uma das possibilidades da manuteno da autoria a livre adaptao j
havia sido citada por Bazin, a prpria filmografia de Truffaut que oferece uma
outra maneira do realizador se ligar literatura. Como lembrou Marie-Therse
Journot (2009)15, o diretor, pelo menos em suas adaptaes de Henry-Pierre Roch,
parece se interessar antes de tudo pela forma da escritura, adaptando-a a outro
meio16. Este tipo de proposta se ancora na ideia de que a fidelidade do cineasta
obra pode lhe dar liberdade, por vezes propiciando uma experincia cinematogrfica
radical17.
Fazendo um salto no tempo e no espao, esse tipo de fixao pela obra-
base, que leva ao experimento cinematogrfico, apareceu no cinema brasileiro
recente com Lavoura arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho. interessante
como o diretor valoriza a matriz literria do seu filme: No h uma vrgula que
esteja ali que no seja do texto do Raduan, no h um artigo que no seja dele (...).
No h nada no filme que no seja do texto do Raduan (CARVALHO, 2002, p.45).
Ao mesmo tempo, o realizador descreve as inspiraes visuais de um filme em que
o roteiro era o prprio livro, revelando que utilizou a cmera como uma caneta,
tentando criar um dilogo entre as imagens das palavras com as imagens do filme
(p.36). E complementa, afirmando que, no livro, as palavras tm uma elaborao e
uma relao com o tempo. Ento, toda essa manipulao do tempo me interessava
enquanto narrativa no mbito das imagens (p.43).
15
A referncia s reflexes de Marie-Therse Journot partem de anotaes que fiz em seu seminrio,
Cinma et littrature 2. Les modalits narratives, du roman au film. O curso ocorreu no primeiro
semestre de 2009, na Sorbonne Nouvelle Paris 3.
16
As duas adaptaes de Henri-Pierre Roch so Jules e Jim (Jules et Jim, 1961) e Duas inglesas e
o amor (Les deux anglaises et le continent, 1971). Ambas foram escritas com Jean Gruault. Para o
estudo do processo de trabalho, ver Francis Vanoye (2005) e Jean Gruault (1992). Sobre as relaes
do roteiro de Jules e Jim com o livro-base, pode-se consultar a obra que rene estes dois escritos
(TRUFFAUT, 2006).
17
Este tipo de pensamento fidelidade leva liberdade j havia aparecido no artigo de Bazin sobre
o citado filme de Bresson. Ver Bazin (Op. Cit., 105-122).
21
18
Poesia aqui no sentido pasoliniano do termo. Ver PASOLINI (1982, p. 137-152).
22
19
Visconti assina o roteiro junto com Suso Cecchi DAmico.
23
20
A tlima verso deste artigo de Eisenstein de 1941.
21
Declarao tirada do DVD ESCRITORES GACHOS. Extra. Perfil dos escritores: Caio Fernando
Abreu. Porto Alegre: RBS publicaes, 2007.
25
22
Sem fazer um mapeamento exaustivo, podem-se citar ainda dois curtas realizados nos anos 1980,
baseados em contos de Morangos mofados: O dia que Urano entrou em Escorpio (1985), de
Roberto Henkin e Srgio Amon; e Morangos mofados (1988), de Rubem Corveto, baseado no conto
Pela passagem de uma grande dor.
26
23
Mesmo que muitas vezes o filme de esquetes e os filmes de episdios sejam tratados como
sinnimos, nesta pesquisa o filme de episdios refere-se obra que abriga a reunio de diretores,
enquanto o filme de esquetes dirigido apenas por um realizador. J o multiplot abriga tanto os filmes
girando em torno de um grande grupo (uma famlia, por exemplo), como aqueles com vrios
personagens que tm vnculos mais tnues, por vezes ligados apenas pela narrao. Em tempo:
nesta pesquisa, network narrative e filme-coral so usados como sinnimos de multiplot .
24
Os episdios foram dirigidos por Vittorio De Sica, Federico Fellini, Mario Monicelli e Luchino
Visconti. A produo contava com atrizes como Sophia Loren, Anita Ekberg e Romy Schneider.
27
Ao mesmo tempo, Smith faz uma linha evolutiva desse tipo de filme, no s
citando outro dos meus filmes escolhidos, Conflitos de amor (La Ronde,1950), de
Max Ophuls, como lembrando que este tipo de estratgia pode ser encontrada em
Life of an American Fireman, um filme de Edwin Porter, l de 1903. Este tipo de
olhar, que reverencia tambm La Glace trois faces (1927), de Jean Epstein, passa
por Cidado Kane (Citzen Kane, 1942), de Orson Welles, e Rashomon (Akira
Kurosawa, 1950), assegura que minha delimitao puramente subjetiva e no
busca valor historiogrfico.
25
Eu escrevi Lola pensando em O prazer, de Max Ophuls, a quem eu dediquei o filme (DEMY,
2008). Traduo do autor para: Jai crit Lola en pensant au Plaisir, de Max Ophuls, qui jai ddi le
film. A data de 2008 refere-se ao lanamento do DVD do filme. A declarao foi retirada do encarte.
26
Ele cita Contos de Nova York (New York Histoires, 1989), de Woody Allen, Martin Scorsese e
Francis Ford Coppola.
29
27
O roteiro obedece formatao especfica deste tipo de material, podendo a partir da liberao
dos direitos autorais ser inscrito em concursos de apoio produo de longa-metragem. Em tempo:
este roteiro destina-se momentaneamente apenas reflexo acadmica.
32
Como boa parte dos escritores que iniciaram suas atividades no sculo XX,
Caio Fernando Abreu teve uma relao intensa com cinema. Se posteriormente
abordarei as adaptaes de seus textos para o meio audiovisual, interessa aqui
examinar como o cinema est presente em sua literatura. Este objetivo amplo pode
ser desmembrado em alguns questionamentos que norteiam a busca: o que
representa, na obra de Caio, o ato de ir ao cinema? Em seus escritos, qual a relao
entre o cinema e a vida? Existe uma viso de cinema na obra do escritor? Algumas
histrias de Caio parecem prontas para serem levadas tela? De que maneira sua
escrita incorpora processos estilsticos prprios do cinema?
Fazendo um plano geral sobre a obra de Caio Fernando Abreu, percebe-se
que o cinema foi aparecendo de maneira crescente em seus escritos. Na sua
produo anterior a Pedras de Calcut (1977), encontram-se menes esparsas a
filmes e algumas tentativas de dialogar com a forma de escritura tpica de um roteiro
cinematogrfico. Se na coletnea de contos Inventrio do irremedivel (1970), e no
romance de estreia Limite branco (1971), h pouqussima relao com o cinema,
em O ovo apunhalado (1975) j se detecta uma ligao maior.
No livro, o conto Manequim e rob faz um retrato apocalptico da sociedade,
com seres nascendo em ferro velho. Dentre estes mutantes, Robhia atinge a fama,
vira manequim e atriz. Ela, ento, chega a filmar com os cineastas mais em voga no
momento, ganhando prmios e mais prmios em festivais internacionais e sendo
eleita rainha das atrizes durante cinco carnavais seguidos (p.35).
A partir dessa passagem e da sinopse da histria, pode-se ver uma dupla
influncia do cinema no conto. Por um lado, o plot segue uma linha de fico
cientfica, onde a sociedade regida por um Poder e a humanidade disputa espao
com andrides como em Metrpolis (Metropolis, Fritz Lang, 1927) e no posterior
Blade Runner (Ridley Scott, 1982)28. Ao mesmo tempo, j se pode perceber a
obsesso do autor pelas atrizes e sua constante problematizao da ideia de
sucesso. Alis, o suicdio final de Robhia no deixa de ser uma verso pessimista
28
O romance de Philip K. Dick, Do androids dream of eletric sheep?, que serviu de base para o
filme, foi lanado em 1968. No existem indcios concretos se Caio leu o livro.
33
mais tarde, na coletnea Ovelhas negras (1995). Alis, este conto apresenta uma
ampla gama de relaes com questes audiovisuais.
Acho que vou ao cinema. A partir das oito, no Classic, de Nothing Hill Gate
tem uma sesso qudrupla sensacional: Performance, Five Easy Pieces,
Easy Rider, Drive, He Said. Acho que o dinheiro d at para comer um
sanduche no intervalo. Luxo! (p.123).
29
Pode ser que seja s o leiteiro l fora foi censurada e estreou apenas em 1983, com direo de
Luciano Alabarse. Em tempo: as peas do Teatro Completo (2009), de Caio Fernando Abreu, sero
evocadas sempre que necessrio. O conjunto da obra, porm, no inspirou uma reflexo
cinematogrfica sobre seu todo.
36
O outro filme visto pelo narrador do dirio dessa mesma safra americana:
Perdidos na noite (Midnight Cowboy, 1969). O conto deixa claro que existe uma
relao de proximidade entre as experincias do narrador, sobrevivendo de bicos e
pequenos furtos em um pas estranho, com o protagonista do filme de John
Schlesinger, que, ao deixar o Texas por Nova York, v naufragar o seu sonho de ter
uma vida fcil na terra das oportunidades: Fui rever Midnigth Cowboy depois da
escola. J havia visto no Brasil, mas naquela poca era pura fico. Agora no,
parecia minha prpria vida, s um pouco piorada (p.126).
37
Esses filmes da transio dos anos 1960 para os anos 1970 geralmente
colocam em pauta os questionamentos de personagens jovens, vistos por um olhar
que os acolhe e um dos sinais dessa adeso dos filmes a seus protagonistas a
utilizao da trilha sonora recheada de rock. Neste sentido, pode-se pensar que tais
filmes representam um estilo de cinema que marcar a obra posterior de Caio
Fernando Abreu, principalmente a partir do seu terceiro livro de contos, Pedras de
Calcut (1977). Assim, como se este conjunto alimentasse uma transio de
postura criativa, que pode ser percebida tanto na forma quanto no contedo. Por um
lado, Caio at este instante prima por retratos subjetivos muitas vezes centrado
em apenas um personagem , em que a exposio dos dilemas dos mesmos surge
atravs da tcnica do fluxo de conscincia. claro que, como ele mesmo lembra na
introduo da reedio de Inventrio do irremedivel (1995), h tambm espao
para a alegoria poltica, a influncia do nouveau roman e o realismo fantstico.
Porm, a partir de Pedras de Calcut, Caio migra para uma narrativa que no
abdica dessas opes estilsticas, mas que mistura-as com outras, como, por
exemplo, com o texto que incorpora elementos da cultura de massa. De Clarice
Lispector drogada, Caio passar a trafegar por um grupo de escritores que traz a
indstria cultural para dentro de suas histrias e de seus personagens, cujos
exemplares vo desde Jos Agripino de Paula, do antolgico libelo tropicalista
PanAmrica (1967), at os jovens teatrlogos que se firmam no cenrio nacional
no fim dos anos 1960 e incio dos anos 1970, como Jos Vicente30 e Antnio Bivar31.
30
Jos Vicente autor de Santidade (1967), O assalto (1968) e Hoje dia de rock (1971).
interessante que, ao escrever sobre Morangos mofados, Helosa Buarque de Hollanda evoca esta
ltima pea citada: No sei por que lembro-me do Teatro Ipanema, casa lotada aplaudindo
freneticamente a pea de Jos Vicente, Hoje dia de rock, na primavera-vero de 1971. De certa
forma, Morangos mofados fala de uma histria que se configurava oficialmente, no Rio, naquele
teatro, naquele vero... A pea rito de passagem da gerao do desbunde falava da grande
mudana para a Fronteira, de um incmodo desejo de sair, de se desligar de um mundo
condenado... No texto e na encenao, a presena da f fundamental que iluminou o projeto
libertrio da contracultura. A f que orientou o sonho cujo primeiro impulso veio dos rebeldes sem
causa de Elvis e Dean, que se define em seguida como a grande recusa da sociedade tecnocrtica
pelo flower power ao som dos Beatles e dos Rollings Stones; e que ganha, de forma inesperada, uma
nova e mgica fora no momento em que John Lennon declara drasticamente: o sonho acabou...
Pois bem, Morangos mofados fala desse tempo (BUARQUE DE HOLLANDA, 2000, p. 243-244).
31
Autor de Cordlia Brasil (1967), Abra a janela e deixa entrar o ar puro da manh (1968), Co
siams ou Alzira Power (1969), Longe daqui, aqui mesmo (1971). Fernanda Montenegro lembra
que Antnio Bivar tem a qualidade de ser o detonador de um tipo de teatro contestador dos anos
1960. Criou entidades unissex, personagens distantes do realismo e que possibilitam um jogo
fascinante (Apud BIVAR, 2002, p.8). Bivar publicou, entre outros livros, O que punk? (1982) e
Verdes vales no fim do mundo (1984). Este livro, inclusive, um dirio de viagem, uma busca pelas
razes da contracultura na Europa, nos anos 1970 ou seja, dialoga com o conto Lixo e purpurina,
apesar de ser bem menos amargo.
38
S que ao contrrio destes mencionados autores, Caio ser talvez aquele que
melhor vai entender (ou buscar entender) o naufrgio do sonho hippie, que desgua
na encruzilhada entre a falta de esperana total com os novos tempos (o j citado
Sem futuro dos punks) ou a busca pela compreenso das angstias e os impasses
de uma gerao que comea a conviver com a liberdade dos costumes e com a
iminente democratizao do pas, mas tambm com um passado recente
profundamente trgico e um cenrio que, ao lado da efervescncia, oferece as
dificuldades sociais de um milagre econmico que desvela a sua real face de
misria, desemprego e inflao. Neste sentido, a temtica de Caio tambm sofrer
uma certa alterao: mesmo que os personagens emparedados em seus universos
ainda permaneam, de suma importncia a pintura dos mundos externos a eles
a urbanidade, a grande cidade, as dificuldades de relacionamento num mundo
marcado por exigncias financeiras so temas que passam a aparecer cada vez
mais.
Para essa nova postura, talvez a primeira atitude importante tenha sido
justamente a ruptura com o sonho hippie (ABREU, 1995b, p.79). A expresso do
prprio Caio na apresentao de Loucura, chiclete e som o conto de 1975, que
representa sua mudana de atitude em relao contracultura, s veio tona em
Ovelhas negras (1995). Na mesma apresentao, o escritor afirma que gosta da
estrutura do conto, prxima de um roteiro cinematogrfico.
Loucura, chiclete e som narra um dia na vida de um jovem urbano, que vive
uma existncia incerta, mergulhado na paranoia alimentada pela possibilidade de
coao policial, e na incomunicabilidade familiar radical, onde as geraes diferentes
pai e filho nem sequer conversam. Neste panorama, as drogas e o sexo efmero
parecem j no corresponder ao prazer libertrio e talvez por isso o conto acabe
assim: Ento vomita vomita vomita vomita vomita vomita vomita. Sete vezes feito
um ritual. Amanh tem mais (p. 86).
Se esse encerramento j evidencia que a aproximao de Loucura, chiclete
e som com o formato de roteiro um pouco estranha, examinando o conto por
inteiro podem-se perceber outras estratgias. Por um lado, acima de cada cena h a
presena de cabealhos, indicando se os acontecimentos ocorrem de dia ou de
noite, e dentro ou fora de um ambiente. Ainda, as aes so divididas em
sequncias, como num roteiro. Porm, no s a numerao das sequncias
repetida (vai at a trs e, depois, reinicia a contagem), mas tambm a construo do
39
32
Todas as citaes de Pedras de Calcut so retiradas da reedio de 1996, editada pela
Companhia das Letras. Portanto, a numerao das pginas no se refere edio original.
40
33
Passaremos a chamar o conto assim, com ttulo abreviado.
34
H um erro de grafia no conto; o nome correto da musica de Henry Mancini Bevete pi latte. Ao
mesmo tempo, interessante que essa expresso tambm citada na pea Sarau das 9 s 11
(1976). Escrita em colaborao com Luiz Arthur Nunes, a pea um quadro de monlogos
entrecruzados (ABREU, Op. Cit., 17), totalmente nonsense. Depois que um personagem pergunta
quando ser aberto o ltimo seio?, EGO, uma espcie de orculo, responde Bevete pi latte. Em
tempo: a pea apresenta poucas relaes com o universo audiovisual, mas faz uma meno rpida
s estrelas de cinema. A personagem Madame descreve o local em que passou a infncia: Reis
destronados, ditadores depostos, envelhecidas artistas de cinema conviviam com magnatas do jet set
internacional e conviviam com a antiqussima aristocracia local (ABREU, Op. Cit., p.18).
41
35
Essa atmosfera da cultura de massa tambm foi trabalhada por Fellini em A doce vida (La dolce
vita, 1960).
36
Recentemente David Lynch celebrou Gilda. Em Cidade dos sonhos (Mulholland Dr., 2002), uma
das personagens no sabe seu prprio nome e, ao olhar para um cartaz do filme, decide que
atender pelo nome de Rita.
42
Selma (com um rugido agreste): Vim buscar a parte superior do meu mai
tigrado.
Sally (desabotoando lentamente a camisola de tule): Est em meu corpo.
(Sussurrando) Its in my body. (Gemendo): Est en mi cuerpo.
Selma (rosnando e cingindo a cintura da donzela num feroz amplexo).
37
S.i.m.p !
Obs.: Nesta altura, para evitar embora inevitveis futuros problemas
com a conhecida firma distribuidora dos afamados Cintos de Castidade
Mental S.S., a cmera pode (deve) desviar-se dos corpos suados para El
reloj de cabeceira e fix-lo durante o tempo necessrio. A trilha sonora deve
manter, em contraponto, suspiros y gemidos very hots com o tique-taque
cibernticos del reloj se possvel digital, y se possvel ainda, sugere-se
que desperte com a interpretao de Ney Matogrosso para Trepa no
coqueiro, finalizando a tomada (p.122).
Todo este trecho que mostra um reencontro caliente entre Sally e Selma,
extravasa com humor a ausncia de sutileza, chegando a ecoar as
pornochanchadas brasileiras dos anos 1970. Ao mesmo tempo, a presena de um
compromisso com um eventual patrocinador deixa a cena mais cafajeste ainda.
37
Sociedade Itinerante Meio Pirada.
44
Esse tom cafajeste personificado pelo jovem cineasta Valdomiro Jorge. Ele
encontra Sally no mesmo lugar em que ela tinha conhecido Selma: no Festival de
Cinema Nacional de Altamira. Depois de apresentar seu filme Quem muito d um dia
se escracha, ele tenta convencer Sally das suas concepes cinematogrficas-
poltico-existenciais. Com este personagem e com os apontamentos de cmera, o
conto parece elaborar uma crtica genrica a uma parte do cinema brasileiro.
Sally Can Dance parece ser o primeiro conto abordado nesse captulo que
faz pensar em cineastas ou filmes que no foram citados nominalmente no texto. A
rebeldia desaforada, o uso irnico dos meios de comunicao de massa, a defesa
da juventude, a abordagem despachada da homossexualidade, a naturalidade da
abordagem das drogas e a incorporao do mau gosto, tudo isso remete o leitor ao
primeiro Almodvar. Cineasta que reaparecer nos livros de Caio, Almodvar pode
ser lembrado neste momento tanto pelas histrias de Pepi, Luci, Bom Y otras chicas
del montn (1980) e Labirinto de paixes (Laberinto de pasiones, 1982), como pelo
cronista que publicou os textos da atriz porn Patty Diphusa, sem dvida uma
parente de Sally. Ao mesmo tempo, Sally tem um(a) brother-sister, que um
personagem de sexo indefinido. Quando este aparece, sempre que h uma palavra
que possa definir o gnero, a grafia mantm essa ideia, chamando o personagem,
por exemplo, de ele(a). No puro Almodvar?
Como no primeiro Almodvar, a trilha de rock est presente. As referncias a
Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan e Lou Reed ecoam os filmes citados em Lixo e
purpurina, pois nos dois casos o rock pontua a trama. Mesmo que este
procedimento passe a ser usual nos textos de Caio e que nem sempre a msica
pertena a este gnero, neste conto a abundncia de canes americanas e
inglesas no deixa de ser uma marca da utilizao de uma linguagem que flerta com
o pop e que, por consequncia, se afasta de qualquer tipo de manifestao
nacionalista. Ao mesmo tempo, a presena destes msicos rebeldes no texto pode
ser vista no s como ferramenta narrativa, mas como um indcio de que o escritor
tem grande simpatia por sua jovem e inquieta protagonista38. Neste sentido, vale
lembrar que o ttulo do conto evoca um lbum de Lou Reed, de 1974, Sally Cant
38
Inclusive, esta associao ideolgica entre criador e criatura pode ser vista no citado cinema
americano da virada dos 1960 para os 1970.
45
Dance. Ou seja, a utilizao do rock aparece no s como trilha sonora, mas como
influncia na concepo de mundo do autor e da protagonista.39
Outro conto de Pedras de Calcut que traz relaes com o cinema
Garopaba, mon amour. O prprio ttulo dialoga com a stima arte, evocando
Hiroshima Mon Amour, dirigido por Alain Resnais e escrito por Marguerite Duras40.
Narrando de maneira fragmentada a represso policial a jovens que buscam
aproveitar o sossego, o prazer e a liberdade de uma praia deserta, Garopaba, mon
amour prope reflexes cinematogrficas diversas, a comear por ter uma trilha
sonora. Afinal, abaixo do ttulo, se l: ao som de Sympathy for the devil (p.91). Em
primeiro lugar, a msica dos Rolling Stones funciona de maneira similar trilha
sonora de Sally Can Dance, evocando uma possvel identificao do autor com o
personagem jovem. Alm disso, dois trechos da letra da msica, em ingls, so
inseridos no meio do conto. Isto acontece em dois momentos, com cada trecho
aparecendo em um instante. Tal proposta acaba entrando em consonncia com
outras estratgias do conto: a narrao no conta linearmente a histria, misturando
informaes e digresses, oscilando entre as primeiras pessoas do singular e do
plural e a terceira pessoa do singular. Ainda, aparecem dilogos para ilustrar o
momento de coao policial a um dos jovens s que este momento nunca
preparado pelo texto, os dilogos surgem dando, antes de mais nada, a ideia de
descontinuidade. Nesta mescla de posturas que compe o todo do texto, percebe-se
novamente que uma das influncias do cinema na obra de Caio Fernando Abreu
est ligada questo da montagem. E talvez por isso o conto homenageie o filme de
Resnais, em que a relevncia deste processo notria, principalmente pela
oscilao entre temporalidades. Alm disto, nunca demais lembrar que a
montagem em Hiroshima, mon amour tambm manipula materiais diversos (como
exemplo bsico basta lembrar a combinao entre cenas documentais e de fico).
J citados quando abordei a montagem, os dilogos do conto pedem ateno.
Em primeiro lugar, a literatura de Caio Fernando Abreu muitas vezes trabalha as
falas dos personagens no meio dos fluxos de descrio, gerando uma grande
39
Sally Can Dance tem ainda mais alguns aspectos que o ligam ao cinema: em dois momentos, o
narrador avisa que est usando um flashback; em outro instante, surge a expresso The End.
Nestes casos, aparece novamente o conceito de embaralhar o real e a fico dos personagens.
40
Lembrando que o ttulo de um dos ltimos textos de Caio Bem longe de Marienbad, numa
homenagem a Ano passado em Marienbad (Lanne dernire a Marienbad, 1961), pode-se perceber
desde j uma fixao por dois filmes prximos de Alain Resnais. Inclusive, so dois filmes que tm
em comum, entre outros aspectos, experimentao da manipulao do tempo e o fato de terem sido
roteirizados por escritores. Neste caso, Alain Robbe-Grillet, uma das tantas influncias de Caio.
46
- Conta.
- No sei.
(Tapa no ouvido direito.)
- Conta.
- No sei.
(Tapa no ouvido esquerdo).
- Conta.
- No sei.
(Soco no estmago) (p. 91,92).
objetos, buscando revelar ao espectador algo invisvel ao olho nu. Logo no incio do
conto, entende-se quem est na praia de Garopaba, graas a uma panormica
realizada pelo olhar do narrador:
Com toda essa diversidade de produtos, a praia s pode estar tomada por
jovens hedonistas. Mas a panormica de Caio no deixa de mostrar ironicamente
certas contradies do grupo festivo, porque seringas convivem com fotonovelas e
ampolas vazias esto lado a lado com tamancos ortopdicos. Drogas pesadas e
ingenuidade; experincias autodestrutivas e cuidado com os ps.
Alm da panormica descritiva, Garopaba, mon amour ainda conta com
ideias de decupagem, como na passagem a seguir: Os homens estavam parados
no topo da colina. O mais baixo tirou alguma coisa metlica, o sol arrancou um
reflexo cego. Quando comearam a descer, percebeu que era um revlver (p.92).
Aqui, o leitor v claramente a cena como se estivesse diante de um filme
mesmo que o tempo seja o passado e que perceber no seja um verbo usado na
escritura de um roteiro. A questo que o trecho nitidamente visual e proporciona
aproximaes e afastamentos da situao. Pode-se dizer que tudo comea num
plano geral dos homens. Depois aparece o homem mais baixo e passa-se a um
plano detalhe de algo que no revelado. Esse no enxergar pode ser salientado
por um reflexo de sol que deixe a lente toda branca, o negativo quase velado. Ento,
a cmera se afasta um pouco e mostra a imagem de um revlver. Por fim,
percebe-se que toda aquela cena pode estar sendo vista por um personagem, como
se todo o incio (ou parte dele) fosse um ponto de vista de um determinante oculto. E
esta pessoa que est a princpio oculta, acompanhando a cena, ir ser capturada e
torturada. Este tipo de decupagem, que chega a lembrar a descrio do
assassinato de O estrangeiro (Ltranger, Albert Camus, 1942), demonstra
nitidamente a tcnica de fracionar a ao, manipulando determinado espao e
tempo.
Depois dessas observaes sobre os aspectos cinematogrficos de
Garopaba, mon amour, vale a pena retornar ao ttulo do conto. Alm da j citada
48
Ele acendeu um cigarro e ela outro e ele viu que ela havia mudado para
Continental com filtro e que antigamente era Minister, Minister, gola rol
preta, olheiras e festivais de filmes da nouvelle vague no Rex ou no pera,
e ela odiava Godard, s gostava do trecho onde Pierrot le fou sentava numa
pedra e Ana Karina vinha caminhando pela praia gritando que se h de
fazer, no h nada a fazer, rien faire, e assim por diante at chegar em
primeiro plano, e ento ele lembrou e disse que tinha as obras completas de
Sartre, Simone e Camus... (p. 72-73).
... e ele pensou que se fosse cinema agora poderia haver um flash-back que
mostrasse os dois na chuva recitando Clarice Lispector, para te morder e
para soprar a fim de que eu no te doa demais, meu amor, j que tenho de
te doer, meu Deus, tu decorou at hoje, e o teu cabelo t caindo, ela falou...
(p.74).
41
O Arqui-Samba de 1966 foi realizado no Cine Cacique, com shows da citada Nara Leo e de Chico
Buarque, Quarteto em Cy e Bossa Jazz Trio.
42
H ainda um momento em que o personagem fala que tem um pster amarelado de Marylin
Monroe em casa (mas preferi no incluir isso na reflexo).
50
modos de vida. Isso em apenas seis pginas. Ou seja, a histria parece servir a um
curta-metragem ou a um segmento de um longa-metragem multiplot. Tirando os
flashbacks, h basicamente dois personagens agindo em um espao, ou melhor,
dois perdidos bebendo chope no Chal do Mercado.
Alm disso, a histria parece trazer um trao contemporneo. Afinal, fbulas
em que uma situao fugaz traz tona a dicotomia rebeldia versus acomodao
so tpicas da virada do sculo XX para o XXI. Mesmo que no joguem com um
passado ligado ditadura, Encontros e desencontros (Lost in Translation, Sofia
Coppola, 2003) e Antes do pr-do-sol (Before Sunsrise, Richard Linklater, 2004)
guardam similitude com o conto de Caio43.
Prosseguindo na relao entre os contos de Pedras de Calcut e a
possibilidade da realizao de curtas, interessante abordar Paris no uma
festa. O conto, cujo ttulo evoca a passagem de Hemingway pela cidade-luz, narra o
instante em que um escritor, que voltou de uma experincia frustrada na Europa,
visita uma antiga conhecida, agora executiva de uma grande editora. Entre
conversas constrangedoras sobre a passagem dele pelo velho mundo, ela procura
um jeito educado para inform-lo que seu livro no ser publicado.
Em Paris no uma festa aparecem dilogos bem construdos, inclusive
mesclados com aes (como dentro de um roteiro). H tambm alguns detalhes
visuais interessantes tudo se passa em uma sala de um prdio comercial e,
atravs do dia que vai escurecendo na janela, ocorrem insinuaes de estados de
esprito (como em Antonioni, talvez). Mas o fundamental a dramaturgia o
encontro de dois personagens em um espao, o reencontro entre duas pessoas que
no se vem h tempos e que conquistaram coisas diferentes na vida, propondo o
choque entre duas vises de mundo, onde as escolhas de cada um so postas na
balana. Poderia dizer que isso puro teatro, se tudo no se passasse em
novamente apenas seis pginas.
Pensando na dramaturgia, Paris no uma festa difere de Aconteceu na
Praa XV. Se nos dois contos o passado importante, aqui aparecem dois
personagens que seguiram rumos diferentes: ela est bem colocada; ele, no. J
43
No filme de Linklater, a histria do escritor americano que reencontra uma ativista ecolgica em
Paris pe em cena dois personagens e um passado de apenas uma noite. Tendo duas horas para
pegar seu vo de volta para seu pas e sua famlia, ele resolve dar uma volta com sua antiga
conhecida. Enquanto o tempo vai passando, eles so obrigados a enfrentar suas escolhas e decidir
se so acomodados ou no. Poderia ter acontecido no centro de Porto Alegre.
51
Depois disso, a garota ainda diz que sabe adivinhar sempre que horas so,
criando um clima que chega a lembrar alguns filmes centrados em dilogos dentro
de um espao, cujo tom oscila entre o naturalismo e o realismo fantstico. O longa-
metragem Uma simples formalidade (Una pura formalit, Giuseppe Tornatore, 1994),
o mdia Diablica (Claudio Torres, 1998) e o curta Quem? (Gilson Vargas, 2000)
so alguns exemplos dessa tendncia. Alis, o frio que permeia o conto talvez haja
uma pequena camada de gelo em cima dos automveis (p.22) , faz lembrar a
importncia da chuva nos dois primeiros filmes citados.
Pensando em Pedras de Calcut, poder-se dizer que Caio Fernando Abreu
no s se especializou na forma breve, mas com certeza produziu inmeros
contos que so argumentos prontos para curtas metragens. O interessante que at
este livro, seus contos com uma ou outra exceo no parecem to moldados a
isso.
44
O conto do livro centrado em dois personagens Rubrica, mas a narrativa em primeira pessoa e a
prpria falta de relao do jovem e da garota que se encontram nos fazem deix-lo em segundo
plano.
52
... ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich,
depois Castaeda, depois Laing, em baixo do brao, aqueles sonhos
colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chs com Simone
e Jean-Paul nos anos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the
Sun here comes the Sun little darling; 70 em Nova Iorque danando disco-
music no Studio 54; 80 a gente aqui mastigando essa coisa porcas sem
conseguir engolir nem cuspir para fora nem esquecer esse gosto azedo na
boca (ABREU, 1982, p.15).
46
A presena da cmera aparece mais uma vez com o sentido de propor uma decupagem: Ficou
olhando as grades baixas cortando a avenida em duas, enquanto os toques nas teclas do piano
tornavam-se mais e mais acelerados no allegro, cmera que se aproxima, brasa acesa na penumbra,
respirao regular (p.95).
58
para si e para o amigo: Na coluna dos espelhos quebrados viu refletido o rosto dos
dois. Vrios rostos espatifados, divididos em ngulos, em pedaos (p.124). Em
todas estas passagens o que se percebe uma estilizao das imagens.
Pensando nesses trechos, interessante perceber que a literatura de Caio
oferece, no incio dos anos 1980, uma srie de questionamentos e procedimentos
estticos que marcariam no s o seu romance Onde andar Dulce Veiga?, mas
parte do cinema brasileiro, principalmente a chamada Trilogia da Vila47. Em primeiro
lugar, a presena massiva de luzes e neons so o emblema de uma certa
sofisticao dos ambientes, remetendo a filmes como Diva (Jean-Jacques Beneix,
1981), Blade Runner, e O fundo do corao (One From the Heart, Coppola, 1982).
Ao mesmo tempo, estas mesmas luzes insinuam, pelo artificialismo, a dificuldade de
se estabelecer fronteiras entre realidade e imaginao, entre o verdadeiro e o falso.
Neste sentido, Pela noite dialoga com Cidade oculta, Anjos da noite e A dama do
cine Shangai no s por propor um retrato estilizado dos ambientes, mas por
apresentar um questionamento sobre as fronteiras da representao.
Reparando na funo que a luz tem no trecho citado, pode-se propor mais
uma associao com a Trilogia da Vila: se a passagem acima fosse a descrio
lrica de uma cena filmada, no haveria dvida de que a direo de fotografia teria
ficado a cargo de Jos Roberto Eliezer (Z Bob), profissional que ocupou essa
funo nos trs filmes paulistas mencionados.
Dentro desse olhar estilizado de Pela noite, outra faceta que chama a
ateno o apartamento de Prsio. Mais do que pensar na descrio do seu
aspecto fsico, parece relevante lembrar uma observao de Mairim Lick Piva48,
especialista em Caio Fernando Abreu: A sala assemelha-se a um teatro, cujo palco,
tenuamente separado da platia composta pelo amigo visitante, permite a Prsio um
constante representar (1997, p.91).
Ento, percebe-se que parte do apartamento pode ser visto como um local de
representao de um espetculo. Este tipo de associao no deixa de lembrar o
trabalho de Arnaldo Jabor, no anterior Eu te amo (1981) e no posterior Eu sei que
47
Trilogia formada por Cidade oculta (Chico Botelho, 1986), Anjos da noite (Wilson Barros, 1987) e A
dama do cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1987).
48
Mairim Lick Piva fez mestrado e doutorado sobre a obra de Caio Fernando Abreu, ambos no
Programa de Ps-Graduo em Letras, da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. O
mestrado, defendido em 1997, intitula-se Uma figura s avessas: O tringulo das guas, de Caio
Fernando Abreu. J o doutorado, terminado em 2003, chama-se Das trevas luz: o percurso
simblico na obra de Caio Fernando Abreu.
59
vou te amar (1986). Nos filmes de Jabor, os apartamentos viram estdios de TV,
sala de projeo, galeria de arte, entre outras coisas, de acordo com a cenografia, a
iluminao e a inteno da cena.
O apartamento tambm aparece ligado ao imaginrio do cinema, sensao
de impotncia que os personagens tm:
- Sei, sei. Qualquer coisa que ficar falando no que a gente podia ter sido
no bom. D uma sensao de...
- ... fracasso...
- Justamente. Em cima. De fracasso, amargura, frustrao. Tipo Walter
Hugo Khouri, nem pensar (p. 67).
Esse dilogo parece evidenciar uma situao retratada por Khouri em Noite
vazia (1964): dois homens angustiados passam grande parte da noite com duas
prostitutas, tentando viver momentos de prazer. Ao contrrio do planejado, uma
sensao de nusea vai poluindo o ambiente. E talvez por lembrar disto que
Prsio arquiteta planos para que a noite dos dois seja a mais agradvel possvel. Da
alterao de nomes ao itinerrio a ser percorrido, tudo foi pensado. Mas como nos
filmes do prolfico diretor paulista, a busca da satisfao traz uma srie de
dificuldades.
A citao de Khouri tambm reitera que aqueles personagens no s vo ao
cinema, como no pertencem categoria de espectador-mdio. Ento, uma
questo que aparecera nitidamente em Aqueles dois volta em Pela noite: o
cinema tambm representa um elo entre os dois personagens. Novamente os filmes
aparecem como antdoto ao vrus da solido, ao deslocamento, aos revezes
sentimentais, aparecendo como abrigo que acolhe os desajustados ao sistema, em
suma, os infelizes.
O primeiro momento em que a ideia do cinema como lugar de encontro
enfatizada aparece quando o narrador incorpora a fala de Prsio, que comenta o
fato dos dois terem se visto em uma sauna. ... veja s, um lugar como outro
qualquer, cruzamento de duas avenidas principais, no fim de tarde elevador repleto
ou sala de espera de um cinema, sesso annima de domingo (p. 81-82).
Se as avenidas e o elevador surgem como hipteses de um encontro casual,
o cinema no parece to ligado coincidncia. Neste sentido, o texto insinua que
60
... apago a luz, entro no quarto, cubro a xcara de leite quente com o
cinzeiro para no esfriar, tiro a roupa, ligo a televiso procurando um filme
com Audrey Hepburn, que saudade de Audrey Hepburn, sacudo os lenis,
desligo a televiso, Audrey nenhuma, peruas platinadas, dzia delas, ento
deito, bebo devagar o leite pensando em escrever para minha me, em
mudar de emprego, de cidade, de pas... (p. 150).
Em Pela noite, o cinema, como outras artes, tambm pode ser frudo pelo
solitrio em carter quase masoquista. Essa ideia aparece quando Prsio comea a
se recompor da briga com o amigo. Depois de sublimar a vontade de fazer um
escndalo , ele desfere, em fluxo de conscincia:
Mas o cinema, em Pela noite, tambm pode abrigar namorados que fazem
um programa a dois. Santiago, ao lembrar seu grande amor que morrera num
acidente, fala do incio do relacionamento: A a gente comeou a se emprestar
livros, ir ao cinema juntos, de tarde. Glauber, Godard, Truffaut, aquelas coisas. Ele
gostava de Franoise Dorlac, eu adorava Rita Tushingham (p. 106).
61
Voltar a sua luxuosa cobertura para tentar o suicdio ingerindo uma dose
excessiva de barbitricos? Ou ligar o videocassete para assistir, uma vez
62
A fala de Prsio sublinha que Lavnia veria o filme de novo. Esta simples
observao est em sintonia com um dos impactos que o videocassete traz na
forma do espectador se relacionar com os filmes: ele pode colecion-los. Ou seja, a
partir dos anos 1980, os filmes geralmente no so eternamente revistos no
cinema, mas em casa. Assim, parte do ato cinfilo se desloca da esfera pblica as
salas para o ambiente privado.
A referncia de Susan Hayward traz tona outro aspecto j mencionado da
obra de Caio: a fixao pelas musas do cinema. Este vis aparece j no incio,
quando Prsio, ao ir tomar banho, fala para Santiago que, na cabeceira, tem
revistas antigas de cinema (p. 73). Ento, o momento em que ele pega uma delas,
descrito com detalhes:
Tal revista, que tem Lana Turner na capa, a Cinelndia, uma publicao
surgida nos 1950 para difundir o cinema americano, atravs das suas estrelas. Ao
mesmo tempo, tambm divulgava a Chanchada brasileira. Destinada
prioritariamente ao pblico feminino, a Cinelndia era farta em fotos, como comprova
o trecho acima destacado.
Em Pela noite, ainda so citadas outras musas, como Jane Mansfield,
Marlene Dietrich, Jane Wyman, Key Kendall e Edith Piaf, comprovando a fixao do
autor e de seus personagens por mulheres exuberantes.
Um outro aspecto interessante do cinema em Pela noite como ele, junto
com outras manifestaes artsticas, se liga, a tribos, forma identidades. Deste
modo, a stima arte aparece com o poder de oferecer o reconhecimento de uma
gerao e/ou de uma opo sexual. Quando Santiago expe a dificuldade que seus
alunos tm de entender suas referncias, ele fala como pertencente a uma gerao:
a gente tem a cabea cheia de versos e filmes e memrias que para eles no tm
nada a ver. Peas de museu, nossas emoes (p.121).
63
49
Os vmitos contnuos lembram a estratgia usada no conto de 1975, Loucura, chiclete e som.
Inclusive, o vmito uma expresso que aparece em outros contos de Caio Fernando Abreu. Nesse
sentido, parece haver um dialogo com o Cinema Marginal, pois vrios filmes ligados a este
movimento mostram personagens vomitando.
64
50
O nmero das pginas das citaes dos contos de Os drages no conhecem o paraso referem-
se sua publicao em Caio 3D: o essencial da dcada de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
51
No incio do conto, h uma descrio tipicamente cinematogrfica da me na janela: Enquadrada
pelo retngulo, o rosto dela apertava os olhos para v-lo melhor (p.21). Mas este expediente no se
repete em Linda.
65
52
Ao mesmo tempo, como o narrador est bbado em um bar, podemos chegar a pensar que o
rapaz do ttulo ele mesmo e que aquela conversa uma alucinao sua, ou uma imaginao dele
conversando consigo mesmo mais jovem. Principalmente pela frase: Eu sou os dois, eu sou os trs,
eu sou os quatro. Esses dois que se encontram, esse trs que espia, esse quatro que escuta (p. 62).
66
ressalta que no nico conto que o amor se realiza com final feliz, ele se realiza
como pardia do Amor-Mercadoria (p.9).
Esse tom de pardia remete artificialidade que aparece de vrias formas,
como no incio da descrio do jantar dos dois.
53
A importncia do cinema aparece tambm em Sem Ana, blues, quando o personagem revela que
seu telefone no tocou, mas poderia ter tocado. Poderia ser, inclusive, um amigo de cineclube. Logo
a seguir, inclusive, h uma brincadeira com a atriz Nastassja Kinski, quando o narrador conta que um
dos programas possveis de se fazer com quem tivesse ligado seria ver uma tal de Nastassja Kinski
nua.
67
54
Um escritor que, posteriormente, radicalizou o uso de esteretipos foi Andr Santanna, no livro
Sexo (1999). A novela conduzida por um numero enorme de personagens, como O Executivo De
culos Ray-ban e A Gorda com Cheiro de Perfume Avon.
68
55
A sobreposio de tempo e estados de conscincia aparece de maneira diferente na pea
Reunio de famlia (1984), adaptao que Caio Fernando Abreu fez para o romance homnimo de
Lya Luft. Na pea a unio das cenas e suas transies que do a sensao de embaralhamento.
Mesmo que seja tributria Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues, Reunio de famlia no
deixa de trazer mente alguns filmes do cinema moderno que trabalham com esta mistura, como o
citado Muriel, e Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman. Em tempo: na pea
h menes esparsas ao cinema; o personagem Bruno comenta desinteressadamente que viu um
filme; posteriormente, os personagens Aretusa e Alice, vistas na poca em que eram meninas,
discutem sobre o ato de beijar. Aretusa explica que o beijo no nojento e arremata: No cinema
fingido. Na vida real de verdade. muito melhor (p.133).
69
56
Nesta pesquisa, a potica ps-moderna refere-se a um tipo de texto que usa elementos como
pardia ldica, ironia (muitas vezes com os clichs), citao, mistura de gneros, combinao de
elementos da cultura de massa e da alta cultura. Durante o texto, por vezes uso na mesma direo
a expresso esttica ps-moderna. Para uma reflexo sobre a potica ps-moderna, na literatura,
ver HUTCHEON (1991); j em relao ao cinema, ver PUCCI JR. (2008).
70
57
Aqui, inclusive, vale fazer um parntese sobre outro conto de Os drages no conhecem o
paraso. O destino desfolhou apresenta tambm a coragem do heri de cinema, ao citar uma cena
do ator Johnny Weissmuller no meio de pigmeus canibais. Alis, a passagem que se refere ao filme
Jim da selva O vale dos canibais (Jungle Man-Eaters, Lee Sholem, 1954) serve no s para
retratar a infncia do personagem, com suas idas ao Cine Cruzeiro Sul, mas tambm para reafirmar
que o garoto luta contra sua a falta de coragem para se aproximar de Beatriz, a garota por quem ele
est apaixonado.
71
58
Esta representao da representao uma das caractersticas do Cinema ps-moderno. Alm
daquelas caractersticas citadas na potica ps-moderna, no caso do cinema, podem-se citar
outras, como a oscilao entre narrativa clssica e recursos de linha modernista, o uso do
abertamente falso, provocando antinaturalismo-parcial (a cena pode conter elementos no-realistas,
mas sem agredir o espectador), impureza em relao a outras artes e mdias. Para aprofundar o
conceito, ver PUCCI JR (2008).
59
Uso simulacro para definir uma situao em que a presena das imagens to macia que as
fronteiras entre o real e o que produzido pelos meios de comunicao de massa ficam
embaralhadas. Como na perspectiva de Denlson Lopes: No que no haja distino entre vida
cotidiana e um filme que passa na TV, mas as imagens miditicas permeiam de tal forma o mundo
que se tornam referencias to ou mais bsicas de informao do que o cotidiano, a ponto de nossa
viso do cotidiano ser filtrada pelo cinema, pela televiso e por outros meios de comunicao de
massa. O simulacro no nossa perdio, nosso continente... Mais do que procurar as origens do
simulacro para extirp-lo, aceito seus desafios (2002, p.106). Ao mesmo tempo, relevante a viso
de Linda Hutcheon, que relaciona o simulacro e as manifestaes ps-modernas: ... a arte ps-
moderna atua no sentido de contestar o processo de simulacrizao da cultura de massa no
negando ou lamentando este processo, mas problematizando toda a noo de representao da
realidade...(1991, p.280). Para uma viso diferente, pessimista, do simulacro, ver Baudrillard (1991).
72
Em tempo: existem outros pontos de vista sobre o simulacro, mas no inteno desenvolver o
tema.
60
Segundo o conto, esta uma frase de Oscar Wilde, citada por Fassbinder em Querelle.
61
Ideia que dialoga com o prefcio que Mrcia Denser escreveu para Caio 3D: o essencial da dcada
de 80 (2005b). S que a escritora defende que a linguagem o grande mrito de Caio: Assim, no
no tema, nem no enredo, nem nos personagens, na linguagem ambgua e fragmentada,
descentrada e esquizofrnica, potica e antiliterria, minimalista e abusiva que reside a grande arte
de Caio Fernando Abreu (DENSER, 2005, p.10). Sem entrar nos mritos do ponto de vista de
Denser, me parece possvel ver arte tambm no tema, no enredo e nos personagens do escritor.
73
62
Lyris Castellani era atriz, cantora e danarina. Participou de cerca de dez filmes, sendo que o
primeiro foi Absolutamente certo (Anselmo Duarte, 1957) e o ltimo, A ilha (Walter Hugo Khouri,
1962).
74
Ou seja, talvez j na primeira pgina (que recebe o nmero onze por causa
do ttulo do romance, do nome do captulo, das dedicatrias e epgrafes), exista uma
vontade por parte do protagonista de empreender a sua odissia de despojamento
parcial da simulacrpolis.
Inclusive, na segunda vez em que o jargo cinematogrfico aparece, para o
personagem revelar que perdera o vcio paranico de imaginar estar sempre sendo
filmado (p.13). Mas na mesma pgina, depois de dizer que comearia a trabalhar
no mesmo dia, o narrador escolhe uma expresso tpica de set de filmagem para
sublinhar que seu destino est mudando: A claquete bate. Deus vira mais uma
pgina de seu infinito, chatssimo roteiro. Esta expresso cinematogrfica sintetiza
o fato de que o personagem, no incio do livro, vive enclausurado dentro do seu
apartamento, em estado de inrcia. Alis, talvez somente nessa inrcia, nesse
encerramento, ele tenha subtrado o seu contato com a influncia massiva do
cinema, da televiso, da publicidade. Mas o protagonista sabe que, ao voltar s ruas
da maior cidade de Amrica do Sul, retornar ao mundo das imagens.
Ento, o personagem-narrador passa a olhar o mundo como se a realidade
fosse um filme. Em primeiro lugar, isto aparece nas frases baseadas em expresses
cinematogrficas. Ao descrever (exageradamente?) a rua onde pega um txi para
fazer uma entrevista, o protagonista cita diversos tipos miserveis, deficientes...
e arrebata: a cenografia eram sacos de lixo de cheiro doce, moscas esvoaando,
crianas em volta (P.21). Esta viso que, de alguma forma, enxerga os desvalidos
com uma lente cinematogrfica, reaparece depois da metade do livro.
Veiga, ele ouve uma cano que conhecia. Qual um personagem de Casablanca
(Michael Curtiz, 1942), a msica leva o personagem ao passado. Ainda como em
Casablanca, esta volta no tempo sublinhada para que o leitor-espectador no se
perca. Porm, ao contrrio do filme com Bogart e Bergman, aqui as memrias so
confusas:
personagem, no meio do dilogo, revela que estava irritado com aquela cena em
cmera lenta & closes nos olhos reminiscentes (p.48). Neste sentido, muitas vezes
o narrador apresenta ideias de decupagem em suas descries de cena e, em
algumas delas, no deixa de critic-la.
A postura de decupar rima com o fato de que o narrador, como um dos
personagens de Pela noite, funciona como uma cmera, podendo atravs de
seus olhos se afastar ou se aproximar de um objeto. Em um determinado
momento, o faxineiro Jacyr sai apressadamente da casa do protagonista e esbarra
na mesa, derramando caf sobre um carto postal que sua ex-mulher enviara, um
carto com versos de Ceclia Meirelles. Ento, o narrador descreve sua ao: e
como se meus olhos embaados, no sabia de qu, dessem um zoom de
aproximao no papel, antes de me afastar li os versos agora manchados... (p.79).
Um pouco mais adiante, o protagonista j embebido de entusiasmo por
buscar Dulce Veiga, por buscar alguma coisa chega na redao, um fotograma
projetado no espao (p.82). Ou seja, o ambiente do jornal algo paralisado, preso.
Mas enquanto faz a crtica da inrcia daquele pasquim pr-informtico, ele se d
conta de que est parado na porta. Ento completa: eu tambm fazia parte daquela
cena. Qualquer movimento, o filme andaria. Assim, reitera-se a ideia de que a
atmosfera cinematogrfica impregna a realidade da narrativa. E mais do que isso,
parece que o protagonista que representa o movimento das imagens: a redao
sem ele uma fotografia, uma imagem parada; com ele, a imagem se mexe, como
num filme. Esta ideia salientada quando o protagonista sai dali, deixando aquele
fotograma voltar outra vez sua imobilidade (p.86).
Alm da utilizao da gramtica audiovisual, a presena da stima arte se
instaura por um grande nmero de comparaes de personagens do livro com
atores conhecidos, e por diversas associaes de ambientes e situaes com filmes
e programas de televiso. Nestes movimentos, cria-se a sensao de que tudo que
acontece no mundo dos personagens tem sua origem no cinema, ou um qu de
cinematogrfico. Desta forma, em Onde andar Dulce Veiga?, a representao
invade o cotidiano.
Essa representao onipresente aparece na primeira vez que o protagonista
encontra Mrcia. Ela fica brava quando ele duvida do desaparecimento de Dulce
Veiga. Ento, o personagem-narrador descreve a atitude da filha da cantora:
78
estendeu uma das mos fechadas at muito perto do meu rosto. Achei que ia me
esbofetear, feito filme (p. 30).
O edifcio do protagonista doente, contaminado, quase terminal (p.37)
tambm descrito com comparaes. Passando pelo primeiro andar, pelo
apartamento de duas velhinhas idnticas, o personagem ouve uma cena de
novela, em que a personagem Leda briga com o marido Rogrio, os dois casados h
sete anos. Quando o marido exige saber se ela tem outro, o protagonista no ouve a
resposta, mas, como os folhetins eletrnicos geralmente seguem as mesmas regras
, ele arrisca: No ouvi a resposta de Leda. A nefasta verdade. Ou a cmera
parada num rosto impenetrvel, narinas frementes: cenas do prximo captulo
(p.37-38). Ou seja, o fato das velhinhas serem idnticas parece estar relacionado
com a repetio das frmulas das novelas. Alis, uma das novidades de Onde
andar Dulce Veiga?, na obra de Caio, que o livro incorpora programas de
televiso (o que ser retomado posteriormente).
Voltando ao prdio, o segundo andar abriga uma dupla de argentinos
musculosos, garotos de programa. Segundo o narrador, dependendo do humor de
cada dia, aquilo poderia soar folclrico, bizarro, srdido, deprimente. s vezes Pedro
Almodvar, s vezes Manuel Puig (p.38). Talvez aqui Almodvar seja evocado por
seu cinema de carter debochado, colorido, alegre o que era uma constante at a
publicao do livro de Caio (com exceo de A lei do desejo La ley del deseo,
1987 , e Matador 1986). Por outro lado, o argentino Puig representa a
exasperao da tristeza, o estado mais sofrido. De qualquer sorte, aqui aparecem
duas influncias deste romance e, mais amplamente, da literatura de Caio Fernando
Abreu. A grosso modo, os trs so artistas homossexuais influenciados pelo
melodrama e deslumbrados com o requinte do cinema clssico hollywoodiano,
principalmente com o glamour das musas.
Ainda focando o edifcio, o protagonista tem uma vizinha, Jandira, que envia o
seu filho para fazer faxina na casa dele. S que, quando ele aparece, est
travestido: Botas brancas at o joelho, minissaia de couro, cabelos presos no alto
da cabea, pulseiras tilintando, a maquiagem de prostituta borrada como se tivesse
dormido sem lavar o rosto ou pintado a cara no espelho (p.45).
79
63
A adorao de Caio Fernando Abreu por Almodvar aparece tambm na ltima pea que escreveu,
o monlogo O homem e a mancha, encenada apenas aps a sua morte. Na pea, Caio faz uma
releitura de Dom Quixote, de Cervantes, novamente aludindo a AIDS. A partir da vida de um ator, o
texto mistura outros quatro personagens que refletem sobre a utopia, o espetculo e a solido. Na
pea, Quixote elenca o nome de quatro possveis localidades para ele e Sancho irem, sendo que uma
das cidades Almodvar del Pilar. Ento, Quixote arremata: Eu preferia toujours Almodvar, mas
deixo-te escolher (p.242). Em tempo: em O homem e a mancha, Caio tambm cita Antonio
Banderas e outro diretor espanhol, Bigas Luna. Em termos cinematogrficos, h um momento que o
Quixote pergunta se na plateia h algum bigrafo. E completa: Um videomaker que seja? Mas nem
sequer um msero cineasta (p.251). Por fim, um aspecto interessante que a pea, como o conto
MORANGOS MOFADOS, acaba com a palavra sim.
64
claro que existem vrias diferenas entre o filme de Scorsese e o livro de Caio, a comear pelas
formas de expressividade. Enquanto Dulce Veiga est mergulhado no ps-modernismo, Taxi Driver
ainda respira os ares do cinema moderno. Para uma reflexo sobre cinema moderno, ver
BORDWELL, David. Narration in the Fiction Film. Londres: Routledge, 1988.
80
65
Huston parece ser mais um cineasta do panteo de Caio Fernando Abreu. Em O pecado de todos
ns, h algumas ideias que aparecem na literatura de Caio: a fora feminina, o homossexualismo
reprimido e o lcool como companheiro da solido. J em Os vivos e os mortos, o tema da
memria, da reminiscncia, que parece se ligar ao romance que estamos analisando.
81
mundo kitsch: o milionrio usa correntes de ouro, com os plos do peito mostra;
sua mulher, cheia de pulseiras, se interessa por arte, j tendo publicado livros de
poesia; a decorao da manso parece ser de mau gosto. E toda a ao, como no
poderia deixar de ser, acontece ao som de Ray Conniff e Simone. Ento, o
protagonista observa, olhando a pose de Silvinha, a madame Rafic: Faltava uma
cadela poodle tingida de rosa aos seus ps. E os crditos de Dallas subindo sobre a
imagem congelada (p.108).
Aqui se percebe que os personagens so vistos propositalmente como
clichs, sem maiores nuances: os novos-ricos vo ao paraso. E invadem as colunas
sociais, quando descansam da leitura da Vogue e da fatiga das horas, vistas em um
Cartier. Alis, uma das diverses deles convidar jovens para noitadas bem
artsticas (p. 107)66.
Mas os crditos de Dallas renovam tambm a ideia de que tudo o que est
sendo narrado j foi visto em alguma produo audiovisual. Esta sensao de que a
representao colonizou a realidade aparece com fora no momento posterior ao da
casa de Rafic, quando o personagem vai jantar fora. Ele descreve as pessoas do
restaurante quase sempre citando apenas o ator-referncia:
66
Uma piada interna acontece nesta cena, quando Silvinha fala que eles poderiam convidar o
protagonista para uma festa e chamar o cineasta Valdomiro Jorge. Enquanto o narrador conta ao
leitor que trata-se de um profissional de sexta categoria (p.108), interessante lembrar que
Valdomiro aparece em Sally Can Dance, l em 1977, em Pedras de Calcut. Treze anos depois,
ele citado aqui, ainda como picareta.
83
pelo cone John Travolta, vai jantar com Mia (Uma Thurman) em um restaurante
povoado por cones pop, como as louras Marylin Monroe e Mamie Van Doren67.
Alis, essas loiras lembram que a atmosfera cinematogrfica do mundo de
Onde andar Dulce Veiga? vai ganhar fora com a enorme quantidade de atrizes
musas citadas no decorrer do romance. Tudo j comea na dedicatria que cita
Odete Lara, no s a atriz que fez Dulce Veiga no filme de Bruno Barreto, mas um
cone do cinema brasileiro, com personagens marcantes, principalmente nos anos
1960 e 1970.
Dentro do romance, aparecem as j reverenciadas Marlyn Monroe, Jayne
Mansfield, Debora Kerr, Audrey Hepburn, Jane Fonda, alm daquelas citadas
anteriormente neste texto. Ao mesmo tempo, o narrador acrescenta Vanessa
Redgrave, Charlotte Ramplin, Diane Keaton (esta inclusive serve de inspirao para
o gozo do protagonista). Alm disso, h espao para musas mais contemporneas,
como Michele Pfeifer, Isabela Rosselini e Dbora Bloch. A prpria Dulce Veiga, que
tambm atuara no cinema, no deixa de ser uma musa.
Essa atmosfera de representao da representao vai aparecer tambm
em dois momentos claros de metalinguagem que o filme apresenta: a gravao de
um videoclipe, e o momento em que o narrador v um filme que Dulce Veiga fez,
mas abandonou no meio68.
A filmagem do videoclipe favorece que palavras da gramtica cinematogrfica
sejam inseridas na narrativa, como quando algum grita corta, e quando, logo
depois, o diretor informa que far os contraplanos (p.28).
Mas talvez o mais importante seja lembrar que a produo rodada em um
cenrio abertamente artificial, uma mistura de surrealismo com filme de terror, que
traz para o romance a esttica fake. Neste sentido, a msica (re)gravada o
sucesso Nada alm69 parece ganhar outra conotao. Os versos Nada alm,
nada alm de uma iluso no tm apenas o significado romntico, pois no
contexto do livro trazem a ideia de que a realidade dos personagens pura fico.
E este raciocnio leva a dois pensamentos: por um lado, uma forma de alertar o
67
Nessa cena, inclusive, Tarantino prope um empilhamento de representaes quando (o
personagem de) John Travolta comea a danar, esbanjando os quilos a mais obtidos no ostracismo
posterior aos seus personagens clebres de Os embalos de sbado noite (Saturday Night Fever,
John Badham, 1977) e Nos tempos da brilhantina (Grease, Randal Kleiser, 1978). Crtica da
efemeridade do sucesso? Citao? Pura diverso?
68
Poderia ser acrescentado como metalinguagem o ensaio de Beijo no asfalto, que o protagonista
assiste na casa de Alberto Veiga. Mas me restrinjo ao audiovisual.
69
Msica de Custdio Mesquita e Mrio Lago.
84
leitor para o fato de que a histria que ele est lendo apenas uma representao;
por outro, funciona para evidenciar que o prprio mundo dos personagens distante
da realidade, antes de tudo uma representao calcada em cones da cultura.
Pensando bem, a presena de uma banda de rock e da gravao de um
videoclipe faz Onde andar Dulce Veiga? dialogar com diversos filmes que trazem
este tipo de expressividade para o cinema. Ou seja, filmes que no apenas mostram
bandas, mas tambm incorporam certos procedimentos estilsticos dos vdeos
musicais. Dos vampiros de Fome de viver (The Hunger, Tony Scott, 1983),
passando pela banda de rock montada no metr em Subway, o livro de Caio parece
evocar fortemente a iconografia do cinema ps-moderno dos anos 80.
Mas a outra cena metalingustica apresenta um carter diverso da filmagem
do videoclipe. Uma das ltimas pessoas com quem o protagonista fala antes de
encontrar Dulce Veiga a atriz Lilian Lara outra homenagem atriz Odete Lara.
Amiga, atriz contempornea de Dulce, Lilian acha, primeiro, que o jornalista est l
para saber o final da novela Muralhas de sangue.
Aqui j possvel comprovar que a televiso vista de forma negativa em
Onde andar Dulce Veiga?. Se o livro flerta com a cultura de massa, trazendo at
um fascnio por manifestaes como o videoclipe e o rock, o mesmo no acontece
com a tev. Com exceo do momento em que personagens vem filmes na telinha,
a TV sempre o lugar do brega e, neste caso, traz consigo um tipo de
espetacularizao das novelas, prpria do Brasil.
Voltando cena, Lilian Lara conta que, quando Dulce desapareceu, elas
estavam fazendo um filme juntas. Ento, Lara, a partir dos fragmentos j rodados,
mandou editar um vdeo, com a ltima imagem dela (p.174). Na sala de um
apartamento carioca, os dois assistem a um filme preto e branco, sem som.
Primeiramente, colocar o ato de fazer um filme dentro do romance j aponta
para a metalinguagem. Mas aqui h duas questes importantes. Em primeiro lugar,
a relao j referida da memria com a imagem. De Blade Runner a Paris,
Texas (Wim Wenders, 1984), de Speaking Parts (Atom Egoyan, 1989) a Sexo,
mentiras e videotape (Steven Soderbergh, 1989), muitos filmes reiteraram que as
recordaes no mundo contemporneo esto ligadas ao ato de ver uma cpia de
algo que j aconteceu. Neste caso, os fragmentos montados do a ideia de
desaparecimento; a ltima imagem de perda como no recente Dlia negra (De
Palma, 2006).
85
Alis, a figura de Brian De Palma paira em Onde andar Dulce Veiga?. E ela
vem claramente tona quando Lara informa que o filme chamava-se Vertigem
diablica, numa mistura bvia de dois filmes do mestre Hitchcock: Vertigo (o nome
original de Um corpo que cai, 1958) e Festim diablico (Rope,1948). Esta citao de
Hitchcock (meio fora de contexto, verdade) no deixa de evocar o cineasta que
ficou conhecido por ser um reincidente parodiador dos filmes do mestre do
suspense. Alis, se Caio cita vrias vezes o cinema de terror70, interessante
lembrar que o personagem principal de Dubl de corpo (1984) justamente um ator
de filmes desse gnero.
Pensando em cinema de gnero, essa outra questo importante na cena e,
ao mesmo tempo, no romance todo. justamente aqui que Lilian revela para o
protagonista que Mrcia no filha de Alberto Veiga, ela uma bastarda. A
surpresa sobre a real identidade de um personagem, feita aos quarenta minutos
do segundo tempo, tpica do melodrama. Sem aprofundar a relao do cinema
de lgrimas com o romance, pode-se pensar que em Onde andar Dulce Veiga?
h uma mistura de gneros melodrama, noir, terror, musical, ao tpica da
esttica ps-moderna. Inclusive, a utilizao proposital de lugares-comuns aparece,
entre tantas vezes, no momento em que o jornalista logo depois de chegar do Rio
pede para um taxista seguir o carro de Mrcia: Precisei repetir trs vezes, demais
para um clich. Ele comeou a se mover, era nordestino. A cena de perseguies
dos automveis, filmada de helicptero (p.182).
Voltando cena com Lara, ainda h um dado relevante. Ela afirma que,
depois do desaparecimento de Dulce Veiga, o diretor a colocou no papel principal,
no papel de Dulce. Esta ideia, de uma atriz que substitui outra, traz mente o filme
A malvada (All about Eve, 1950), de Joseph Mankiewikcz. Mesmo que Lilian Lara
no tenha sido ardilosa para obter o papel, o que fica que, como no filme de
Mankiewikcz, Onde andar Dulce Veiga? enfoca o sucesso e problematiza o que
uma atriz de cinema.
Se h metalinguagem em cenas especficas, tambm pode-se perscrutar a
construo textual de certas passagens e enxergar cenas decupadas e utilizao
do tempo cinematogrfico. O tempo cinematogrfico aparece principalmente em
dilogos curtos que preparam uma fala longa e no fato deles serem entremeados
70
Como na pgina 191: De repente, como um vampiro de filme de terror barato, ele (Saul) gritou
outra vez, jogou-se sobre mim, tentando enfiar as unhas vermelhas nos meus olhos.
86
Por trs das lentes escuras dos culos, contra a luminosidade do sol das
duas da tarde, enquadrada pelo retngulo da porta do edifcio, cortada pelo
reflexo na lataria dos automveis l fora, do fundo do corredor onde eu
estava pensei primeiro que a silhueta era de mulher (p.45).
ao cinema, mas j tinha visto todos os filmes da cidade, inclusive aqueles de frias,
em que adolescentes esquizides de repente viram o dolo do colgio e conquistam
a rainha da torcida... (p.42).
Como insinua-se nesta fala, alm de refgio, o cinema tambm pensado
como modo de expresso e isso aparece nos momentos em que o protagonista
mostra seu lado crtico de cinema, seja quando cita filmes detalhadamente - Toda
nudez ser castigada (1971), de Arnaldo Jabor, por exemplo ou quanto lana
teses sobre pelculas:
que no filme de Orson Welles no h maior relao entre o jornalista e seu objeto de
pesquisa.
Outra ponte entre as duas obras aparece num contraste existente entre o
presente da narrativa e o passado. Nas duas obras, alguns personagens que do
depoimento apresentam uma certa decadncia. J as histrias contadas por eles,
geralmente se referem a momentos de sucesso, realizao financeira e, por vezes,
felicidade. Mas claro que sempre h espao para a presena da tristeza,
principalmente quando se explica a transio dos tempos antigos para os dias
atuais. Isso, de alguma forma, enseja uma sensao de nostalgia por algo que j
passou. No romance de Caio, quando o protagonista entrevista o pianista de Dulce
Veiga, Pepito Moraes, o que se v algum que foi escanteado do showbizz e que,
no momento presente, entretem clientes desinteressados em um bar de hotel. No
h como no lembrar de alguns depoimentos de Kane, como o do seu colega de
trabalho, que fala em um asilo.
Em contrapartida, Cidado Kane e Onde andar Dulce Veiga? dois ttulos
que citam os protagonistas trazem personagens completamente diferentes no que
tange a um dos temas mais relevantes das duas obras: o sucesso. Enquanto no
filme de Orson Welles, Kane busca o sucesso e o poder a qualquer preo, acabando
solitrio e triste, em Onde andar Dulce Veiga? a cantora abandona a sociedade,
larga tudo, justamente quando est no seu auge. ela que busca a solido, o
afastamento. Ao contrrio do empresrio que quer mandar no pas, Dulce quer
apenas se afastar da sociedade do espetculo.
Mas lendo Onde andar Dulce Veiga?, ainda mais luz dos outros livros de
Caio, pode-se chegar a outras associaes, principalmente na parte em que o
protagonista revela o seu passado junto a Pedro. Retrato de uma relao de paixo
e intimidade, onde a intensidade do desejo e da identificao deixa o resto do
mundo descolorido, as passagens com Pedro imprimem por causa da ausncia
deste um tom de melancolia ao presente do protagonista. Neste sentido, pode-se
relacionar o romance de Caio a filmes como Minha adorvel lavanderia (1985) e O
amor no tem sexo (1987), ambos de Stephen Frears. Em Frears, as relaes dos
personagens masculinos naufragam permeadas pela dor do abandono de um dos
personagens. claro que possvel citar outros filmes calcados em uma relao
frustrada entre dois homossexuais, mas talvez tenha sido o trabalho deste realizador
britnico que melhor captou os desencontros de amantes masculinos em um mundo
90
do conto Bem longe de Marienbad, um dos ltimos escritos por Caio Fernando
Abreu, parece diferente. Este texto de 1992 sinaliza o olhar derradeiro do escritor
para o mundo, para o mundo das imagens71. Num relato que retrata um absurdo
kafkiano, em uma cidade invisvel talo Calvino, Caio se mostra preocupado com
a sensao de deslocamento que passara a vivenciar tanto pelas constantes
viagens ao exterior, quanto pela conscincia da proximidade da morte. Neste
sentido, o ttulo Bem longe de Marienbad expressa uma ambiguidade presente no
conto. Por um lado, h a presena do cinema, principalmente com filmes franceses:
com exceo do sempre citado Querelle, esto l Cais das sombras (Le Quais des
brumes, Marcel Carn, 1938), Clo das 5 s 7 (Clo de 5 7, Agns Varda, 1962),
Noites felinas (Les nuits fauves, Cyril Collard, 1992). Por outro, este bem longe
pode estar se referindo a um afastamento do cinema. Afastamento que talvez diga
respeito necessidade de distncia do caleidoscpio de imagens da urbanidade e
busca da intimidade, das relaes pessoais e do afeto. E quem sabe esta distncia
sinalize que o cinema pode sim ter lugar na vida dos personagens desde que
veculo de um encantamento do mundo. O que, de uma forma ou de outra,
perpassou a obra ficcional de Caio Fernando Abreu.
71
O conto foi publicado no Brasil na antologia pstuma Estranhos estrangeiros (2006).
92
74
Por causa de filmes como Eduardo II e Caravaggio (1986), Jarman pode ser visto como o pai do
new queer cinema, cujos expoentes so Todd Haynes, Gregg Araki, Gus Van Sant etc. Ao mesmo
tempo, como filmes de baixo oramento do diretor, podemos citar Sebastiane (co-dirigido com Paul
Humfress, 1976), The Garden (1990) e Blue (1993). Inclusive, nenhum destes foi captado em 35mm.
75
Os outros prmios foram Melhor Montagem, Melhor Primeiro Filme e Atriz Revelao.
95
fascinao de Caio por atores e atrizes76. Na crnica, o escritor relata que tem visto
anjos, e que estes seres tm algo de Claudia Abreu, um qu de Jos Mayer. Se a
citao da atriz de Gilberto Braga (p.110) remete ao fato de que, em 1994, as divas
brasileiras esto nas telas eletrnicas, a lembrana de Mayer parece no ser apenas
uma referncia ao ator viril, mas quele que protagonizou Perfume de gardnia
(1992), de Guilherme de Almeida Prado.
A devoo por atores vai reaparecer em outras crnicas. Em memria de
Llian, de junho de 1986, toda dedicada a Lilian Lemmertz. O texto em que Caio
compara a atriz de Lio de amor (Eduardo Escorel, 1975) a Jeane Moreau, comea
assim: Mais que linda: Viva e tensa: Lilian Lemmertz era meio rainha. E nobre
(p.24). Opinando que o melhor papel dela foi no teatro, encenando Becket
(Esperando Godot), Caio afirma que Lemmertz nem chegou a ter seu grande papel,
sua Fedra, sua Petra, seu Pixote, sua hora da estrela (p.25).
claro que a frase chama a ateno como uma construo embebida de
ritmo. A reiterao dos pronomes possessivos combinada com um jogo de
palavras: Fedra e Petra, duas paroxtonas com duas slabas sonoramente similares,
preparam a aliterao entre esta ltima e Pixote. J no final da frase, aparece uma
distenso, quando a expresso hora da estrela rompe com a reincidncia de
expresses de apenas uma palavra (Fedra, Petra, Pixote).
Ao mesmo tempo, Caio mistura os autores das obras citadas. Eurpedes,
Fassbinder, Babenco e Suzana Amaral esto lado a lado, como criadores de
personagens (ou momentos) femininos inesquecveis. Mesmo que Fedra surja na
mitologia grega e que depois seja relida por Sneca, Racine e Sarah Kane,
Eurpedes que populariza a personagem que se apaixona pelo filho do marido. J
citado nos contos de Caio, Fassbinder aparece aqui como o criador de um cone da
solido e da dor. Inclusive, a protagonista de As lgrimas amargas de Petra von
Kant reaparece nas cartas de Caio, que chega a comparar-se a ela. J ao lembrar
de Pixote: a lei do mais fraco (1981), Caio parece se referir ao desempenho de
Marlia Pra (tambm citada em determinado trecho da mesma crnica).
Participando de apenas cinco minutos do filme, Marlia Pra magnetizou o pblico e
76
No inteno desta pesquisa ampliar o debate sobre a adorao dos homossexuais por musas.
Denlson Lopes (2002: p.217) resumiu: Sabemos, pelos estudos de Wayne Koestenbaum (1993),
entre outros, do estreito vinculo entre homens gays e divas, especialmente mulheres de
personalidade forte, que impem sua excentricidade, sua diferena ao mundo, mesmo ao custo do
silncio e do estigma. Os eventos em torno destas divas criam espaos homossociais, espaos de
encontros e de reconhecimentos, da pera ao teatro e shows de msica.
96
Como em Onde andar Dulce Veiga?, Caio mistura atrizes e escritores. Mas
o que mais chama a ateno a ideia de que a morte uma diva. Nesse sentido,
faz lembrar a presena de Jessica Lange em O show deve continuar (All That Jazz,
1979), de Bob Fosse. Enquanto o coregrafo Joe Gideon (Roy Scheider) se
recupera de um enfarte, a bela Morte, toda de branco, aparece para conversar com
ele e, eventualmente, seduzi-lo.
Esse amor de Caio pelas musas reaparece na crnica No dia em que Vargas
Llosa fez 59 anos, que no chegou a ser publicada em jornal. Nesse texto, Caio
77
Ao ver o garoto Pixote indefeso, a personagem de Marlia Pra lhe d colo, numa aluso a Piet.
Pixote passa, ento, a mamar em seus seios. Rapidamente, a prostituta se enoja com a situao e
passa a agredir o garoto. Singrando rapidamente do paternalismo para a violncia social, da relao
maternal afetiva para o desejo carnal desesperado, a cena de Pixote antolgica.
97
narra as coisas que fez em tal data. Primeiro, conta sua conversa com um taxista
que prefere Sharon Stone a Michelle Pfeifer. Por fim, o que fez quando tomou
conhecimento do aniversrio do escritor de Conversa na catedral:
... liguei a TV e s ento fiquei sabendo que Vargas Llosa estava fazendo
59 anos, em Porto Alegre, mas esperei paciente s para ver um pouco a
Audrey Hepburn em Funny Face, aquele visual fantstico de Richard
Avedon, mas s depois de atravessar todos os crimes e o aumento dos
juros dos importados foi que o filme comeou e para meu espanto lembrei
da letra de Think Pink, futilidade o que mais salva a gente, gente, s trs
da manh desisti do filme e de repente pensei em Hilda Hilst sozinha na
fazenda, 64 anos, 15 cachorros mais nada nem ningum... (p.203-204).
78
A ironia em relao felicidade artificial presente nesta crnica no deixa de lembrar que o mesmo
procedimento aparece no conto Mel e girassis.
98
79
Esta a parte conhecida da msica Cheek to cheek, do filme O picolino (Top Hat, 1935), de Mark
Sandrich.
80
Joo Batista de Brito, ancorando-se em tericos como Gilbert Durand, fez uma anlise interessante
do personagem que abandona a tela em A rosa prpura do Cairo. Embora hiperblica, esta metfora
da situao arquetpica do espectador comum ilustra bem a fuso de nossas etapas divisadas:
psicologicamente, se trata de uma projeo; sociologicamente, de uma compensao; e
antropologicamente, da satisfao de um imperativo categrico (vide o conceito de Kant) que Durand
chama de mitolgico (1995, p.224).
99
81
Dados dos filmes: Robocop: o policial do futuro (RoboCop, 1987) e Instinto selvagem (Basic
Instinct, 1992).
82
Para uma reflexo sobre o camp ver, SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: Contra a
interpretao. Porto Alegre: LPM,. 1987, p. 318 a 337.
100
Mas como j mencionado, o cinema para Caio Fernando Abreu tambm serve
para espelhar as angstias solitrias dos seres desiludidos e expressar as paixes
humanas descontroladas. Essa concepo insinuada na crnica O livro da minha
vida, de junho de 1995. Nela, Caio afirma no ter dvidas de que seu romance
preferido A pequena princesa, de Frances Burnett83, mas que fica em um impasse
quando a escolha recai sobre uma obra cinematogrfica:
Outro dia me perguntaram qual era o filme da minha vida. Sem pensar
muito, hesitando entre Vagas estrelas da Ursa, de Visconti, e Paisagem na
neblina, de Theo Angelopolous, respondi A histria de Adle H, de Franois
Truffaut. Mais tarde, pensado melhor, decidi: o filme da minha vida La
strada, de Fellini. Nada me comoveu tanto no cinema quanto aquela
Gelsomina de Giulietta Masina, misto de clown e pivete, duende e louca
84
(p.157) .
83
Por causa desta escritora, nesta mesma crnica, Caio cita O Jardim secreto (The secret graden,
1993, Agnieszka Holland), baseado em um livro dela. Ele qualifica o filme de lindo (p. 158).
84
Os nomes originais e as datas dos filmes so: Vaghe stelle dell'Orsa (1965); Topio Stin Omichli
(1988); L'Histoire d'Adle H. (1975) e La Strada (1954). Alis, chama a ateno que Caio escolheu
uma pelcula por dcada.
101
Caio, ento, no deixa dvidas sobre a sua paixo pelo filme, focado
principalmente na protagonista e, claro, na atriz. Assim, a desmesura amorosa,
romntica, aparece aqui sem qualquer trao de auto-ironia.
Da mesma forma, interessante que, ao citar uma srie de lugares, Caio traz
tona a questo da viagem, do movimento, presente em alguns ttulos citados na
crnica de 1995, como Paisagem na neblina e A estrada.
Outra vertente tpica da relao de Caio Fernando Abreu com o cinema
reaparece em muitas de suas crnicas: a comparao entre pessoas, lugares e um
referencial flmico. Continuando sobre o tema da dificuldade de relao afetiva,
pode-se perceber o niilismo sentimental de Caio quando este evoca um personagem
de Herzog para abordar o assunto. Segundo o escritor, procura-se o amor da
mesma forma que Aguirre procurava o Eldorado: inutilmente (p. 49).
A referncia a Aguirre (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) empresta contornos de
herosmo, de saga, busca incessante da troca amorosa. Inclusive, este aspecto
reaparece em No centro do furaco, de fevereiro de 1987: ... hoje no me suporto
nem me perdo de ser como sou e no ter soluo. Me ajuda, peo, quando
Excalibur afunda sem volta no lago (p. 53). Aqui o escritor evoca o universo do Rei
Arthur e, por consequncia, o filme de John Boorman (1981). Esta lembrana denota
o desespero da solido e o carter pico que a relao amorosa adquire em certos
textos do escritor.
Os descaminhos entre seres fictcios ou no propiciam tambm que Caio
Fernando Abreu descreva alguns personagens. Em Anotaes insensatas, de abril
de 1987, Caio constri uma narrativa em terceira pessoa para falar de um homem
que abandona um escritor: Era desses caras de barba por fazer que sempre
escolhero o risco, o perigo, a insensatez, a insegurana, o precrio, a maldio, a
noite a Fome maiscula (p.65). Logo antes disso, o narrador afirma que o tal
sujeito preferia A mosca a Uma janela para o amor. Neste caso, Caio contrape
David Cronenberg a James Ivory85, vodka a um copo de leite (p.65). Ou seja,
como se o realizador canadense incorporasse em seu cinema o risco, o perigo etc86.
85
Dados dos filmes: Respectivamente, The fly (1986) e A Room With a View (1985).
86
O contraste entre os dois cineastas distintos est no meio de outros: ... sempre preferira Jim
Morrison a Manuel Bandeira, Sid Vicious a Puccini, A mosca a Uma janela para o amor, sempre uma
vodka a um copo de leite: metal drstico (p.65).
102
E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco no bom nem mau, feio ou
bonito, inteligente ou burro nem a Alice, de Woody Allen, nem Bette Davis
em algum filme antigo, nem o Homem Elefante, nem os irmos Baldwin,
nem Gertrude Stein nem Romrio embora possa dar uma impresso
errada a quem o v de fora, vido por adjetivar (p.137).
Com estes contrastes, Caio revela que muitas vezes o cinema que veicula
padres do bem, do mal, da beleza e da feira. Ao mesmo tempo, David Lynch e
Bette Davis so nomes que j tinham aparecido em sua literatura e formam aquele
grupo do mal junto com Cronenberg, Polanski, Verhoeven. J a personagem de
Simplesmente Alice (Alice, 1990), tambm citada nas cartas do escritor como
sinnimo de bondade, lembra que o realizador de Manhattan (1979) outro que tem
seu lugar no imaginrio de Caio Fernando Abreu.
103
que Caio Fernando Abreu traz novamente suas reflexes sobre os anjos. Ao relatar
que os querubins lhe mostraram as mos de Deus, Caio descreve-as de vrias
formas:
... depois vou ficar comovido e vai me baixar uma Teresa de Calcut de
frente e partirei para a Bsnia chorando alto como chorei naquele cinema
em Saint-Germain-des-Prs ano passado vendo Bosna! Documentrio que
Bernard-Henry Lvi fez l naquele inferno e tudo isso sempre gritando
106
87
chega! chega! chega! tomado de clera divina e asco e. Corta (p.188) .
Ao mesmo tempo em que Caio se relaciona com pases estrangeiros, ele est
a todo o momento falando do Brasil e de seus artistas. A relao de Caio com o
cinema brasileiro aparece em Para ler ao som de Vincius de Moraes, de novembro
de 1994. Refletindo sobre a violncia da capital carioca, o escritor faz um flashback
e lembra o Rio de Janeiro dos anos 1950, com estrelas de cinema deixando cair o
decote nos bailes do Copa (p. 121). Depois ele evoca a cidade maravilhosa pouco
antes da parania do AI-5, quando era possvel passar noites a fio bebendo chope
no Zeppelin vendo entrar Leila Diniz, nossa, como ela baixinha (p.121). Na
continuao, Caio afirma que no era possvel prever a crescente violncia da
cidade:
Aqui Caio parece acusar o Cinema Novo justamente daquilo que ele
pretendia no ser: alienante. Alis, outro ataque aparece porque o escritor insere a
pelcula de Marcel Camus dentro do movimento, sendo que os cinemanovistas
criticavam muito o filme francs88. Caio prossegue: ...tento entender como tudo
comeou. Quem sabe com a prpria poetizao da misria, o cncer medonho
crescendo escondido enquanto todo mundo achava bonitinho o moleque do morro
87
Caio refere-se a Bosna! (1994), de Bernard-Henri Lvy e Alain Ferrari.
88
Dados dos filmes: Cinco vezes favela (1962), longa de episdios, dirigidos por Marcos Farias,
Miguel Borges, Cac Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman; Orfeu negro (1959), de
Marcel Camus.
107
Aqui, Caio parece vontade entre a sua turma do cinema brasileiro (lembre-
se que ele um dos roteiristas de Romance). O escritor se sente prximo de
89
Essa negao de Caio ao Cinema Novo lembra as crticas de Manuel Puig ao neo-realismo italiano.
Ver Prlogo. In: PUIG, Manuel. A cara do vilo. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p.9-17.
90
No campo de batalha. Disponvel no site Tablide digital, em: www.millarch.org/ler.php?id=2937.
Acesso em: 19/05/2008. Este texto foi originalmente publicado em: Estado do Paran. Almanaque, p.
3, 25 mar, 1988.
108
91
Para um debate sobre este tema, ver Carta e literatura: correspondncia entre Tchkhov e Gorki.
ANGELIDES, Sophia. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001.
109
Nas primeiras cartas, grande parte dos filmes citada en passant. O escritor
tece elogios a Fara (Faraon, Kawalerowiks, 1966); Matadouro 5 (Slaughterhouse-
Five, George Roy Hill, 1972); Irmo sol, irm lua (Fratello Sole, Sorella Luna, Franco
Zefirelli, 1972) e Woyseck (Werner Herzog, 1979)92.
Estes elogios se traduzem em um comentrio mais apurado quando Caio, em
carta de 1977 a Luiz Fernando Emediato, relata seu impacto ao assistir O inquilino
(Le Locataire, 1976), de Roman Polanski:
... estou um tanto perturbado recm cheguei do cinema, fui ver o Inquilino,
do Polanski. Acho que poucas vezes, ou nunca, vi algo to patolgico:
assustador, sobretudo porque convincente um processo de
enlouquecimento visto de dentro, num crescendo que chega at o grand-
guignol do final brrrrr! J estou elaborando em cima da minha perturbao
e tentando entender sa do cinema absolutamente tonto, trmulo, me
enfiei no boteco da frente e tomei um balde de caf. Agora passou um
pouco. que o filme, do meu enfoque, justamente sobre a parania do
relacionamento entre as pessoas (no caso especfico do filme, agravada por
uma srie de outros fatores a solido e o homossexualismo contido no
personagem). E essa parania, essa desconfiana tem sido o meu leitmotif
nos ltimos tempos (p.492).
Talvez o primeiro aspecto que chame a ateno neste relato a fora com
que o filme atinge o escritor ele narra o seu estado de esprito ao sair da sala,
completamente transtornado. Ao mesmo tempo, a prpria carta parece ser uma
forma de aliviar a tenso causada pelo filme que parece estar passando, mas
permanece.
92
O nome do destinatrio e a data das correspondncias s sero citados quando acrescentarem
informaes relevantes e clareza ao trabalho. Ao mesmo tempo, quando os filmes citados por Caio
forem incorporados a uma lista evitarei citar o nmero da pgina em que foram mencionados.
110
93
Essas atividades so contadas principalmente em cartas escritas no ano de 1970. Para Hilda Hilst,
ele relata que talvez v ao Rio de Janeiro (p.411) e que participa de filmagens (p.406). J a Myriam
Campello, ele conta do roteiro que est escrevendo junto com um amigo (p.404). Depois, em 1978,
em carta enviada sua me, Caio diz que um conto seu ser adaptado para o Caso especial da TV
Cultura (p. 499). No interesse desta pesquisa fazer uma investigao sobre o desenrolar destes
projetos citados.
113
Nas cartas posteriores, escritas entre 1980 e 1996, as relaes com o cinema
se intensificam. Novamente, aparecem os filmes vistos, os filmes que ele pretende
ver, e o impacto que as pelculas causaram no escritor.
Os elogios vo para filmes como O baile (Le bal, Etore Scola, 1983); Os
eleitos (The right stuff, Philip Kaufman, 1983); E La Nave Va (Fellini, 1983), Ensaio
de orquestra (Prova dorchestra, 1978, Fellini); Passagem para a ndia (A passage to
India, David Lean, 1984); Um homem, uma mulher, uma noite (Claire de femmes,
Costa-Gavras, 1979); O cu que nos protege (The sheltering sky, Bertolucci, 1990);
Henry e June (Philip Kaufman, 1990); The Garden (Derek Jarman, 1990); O
Mahabharata (The Mahabharata, Peter Brook, 1989); Os vivos e os mortos (The
dead, John Huston, 1987); A outra (Another Woman, Woody Allen, 1988). Dois
filmes elogiados rapidamente merecem comentrios ligeiros: Um amor de Swann
(Un amour de Swann, Volker Schlondorff, 1983) um pouco frio, mas com
fotografia e cenografia belssimas (105); j Perdas e danos (Damage, Louis Malle,
1992) tem Jeremy Irons e Juliete Binoche fazendo horrores na cama (de ruborizar o
Marlon Brando e la Schneider naquele Drniere Tango) (p.258).
O impacto que alguns filmes tm sobre Caio reaparece quando ele comenta A
mulher do lado (La femme d Ct, 1981), outro filme de Franois Truffaut: Dei
umas boas choradas ( liiiindo e amaaaargo) sa meio down e acabei tomando uns
vinhos alm da conta (p. 36)94.
Outro filme marcante para Caio foi Carmen (1983), de Saura:
94
Extrado de carta destinada a Maria Adelaide Amaral, em 1982.
95
Extrado de carta destinada a Luciano Alabarse, em 1984.
114
96
Extrado de carta de 1985 destinada a Jacqueline Cantore (amiga de Caio, radicada em Los
Angeles, onde trabalha como produtora executiva).
115
at o dilogo com o cinema noir dos anos 1940, em que a trama cheia de enganos
convive com a utilizao de personagens femininos fortes.
Alm disso, h outra aproximao possvel entre estes dois universos: a
questo do estrangeiro. Se esta temtica marca prioritariamente o final da produo
de Caio, ela se encontra presente nos j citado Minha adorvel lavanderia, e em
Sammy e Rosie (1987) filmes dirigidos por Frears e roteirizados por Hanif Kureishi,
escritor ingls de origem paquistanesa.
Outro aspecto interessante do trecho que Caio faz relaes entre diretores
e, claro, entre atrizes. Neste sentido, a estrela de cinema que personifica a mulher
m e destruidora parece ser um tipo que interessa muito ao escritor.
Em outra carta a Guilherme de Almeida Prado, Caio comenta que descobriu a
neo-zeolandesa Jane Campion: vi Sweetie e An Angel at my Table este o melhor
filme que eu vi em Londres (p.212). Na mesma carta, Caio ainda elogia Aki
Kaurismaki, chamando Contratei um matador profissional (I hired a contract killer,
1990) de cnico e brbaro (p.212). Ainda, afirma que Uma cidade sem passado
(The nasty girl, Michael Verhoeven, 1990) lembra estranhamente um certo cinismo
dos filmes do Sergio Bianchi (p.212)97.
Por outro lado, na mesma carta, o escritor comenta que viu uma retrospectiva
de Samuel Fuller: definitivamente me parece B demais (p.212). Essa afirmao
mostra que Caio parecia estar dando uma segunda chance ao diretor de Paixes
que alucinam (Shock Corridor, 1963), mas que mesmo que alguns o venerem
continua com a sua opinio. Este desprendimento do gosto da crtica
cinematogrfica algo que sempre acompanhou o escritor, como comprova seu
comentrio sobre A balada de Narayama (Shohei Imamura), vencedor da Palma de
Ouro de Cannes, em 1983. Em carta de 1984, ele confessa que achou: tosco
demais, bruto demais (p. 99).
Voltando correspondncia com Guilherme de Almeida Prado onde Caio se
solta como crtico de cinema , o escritor fala de suas novas descobertas, na
Frana:
97
Dados dos filmes: Sweetie (1989), Um anjo em minha mesa (1990).
116
Fiquei louco com Short Cuts, o Raymond Carver filmado por Robert Altman,
e como tinha visto Kika, de Almodvar no dia anterior (com figurinos de
Jean-Paul Gaultier, meu bem), e que uma droga, descobri que Altman
100
um Almodvar COM substncia (p.293).
98
Dados do filme: Lua de fel (Bitter Moon, 1992)
99
In: www.imdb.com/title/tt0105032/releaseinfo. Acesso em 23/05/2008.
100
A crtica a Almodvar exibe o desgaste que os prprios fs do cineasta sentiam em relao sua
obra na poca do citado Kika (1993). Esta situao foi se alterando (voltando ao normal) com seus
filmes posteriores: A flor do meu segredo (La flor de mi secreto,1995), Carne trmula (Carne
trmula,1997) e, principalmente, Tudo sobre minha me (Todo sobre mi madre,1999).
117
Em suas cartas, Caio volta a revelar os filmes que tem vontade de assistir: Lili
Marlene (do sempre citado Fassbinder, 1981); Merry Crhistmas, Mr. Lawrence
(Nagisa Oshima, 1983); Os Gritos do silncio (Roland Joff, 1984); o j citado Dubl
de corpo; Cenas de famlia (Mr. & Mrs. Bridge, James Ivory, 1990); Heri por
acidente (Stephen Frears, 1992); Orlando (Sally Potter, 1992).
J o hbito de rever clssicos na TV reaparece quando Caio revela que no
foi a um encontro de trabalho, porque ficou at altas assistindo a Nasce uma
estrela, com Judy Garland (p.104). Se a outra meno televiso cita Clark Gable,
pode-se perceber que o cinema glamoroso, tpico dos anos de ouro de Hollywood,
fascina Caio e , constantemente, revisto na telinha. Ainda na TV, Caio assiste a
Apocalypse Now (Coppola, 1979) e ao musical Camelot (Joshua Logan, 1967).
Outra faceta interessante nas cartas surge quando Caio assume um olhar de
realizador. Por exemplo, ao comentar que terminou de ler As brumas de Avalon, de
Marion Zimmer Bradley, o escritor revela:
101
As brumas de Avalon chegaria ao cinema somente em 2001, em filme homnimo com direo de
Uti Edel e roteiro de Gavin Scott. Apesar de nenhum ator coincidir com as especulaes de Caio,
certamente ele aprovaria a escolha de Angelica Huston para o papel de Viviane.
118
102
Aqui, pode-se pensar que existe uma certa fixao de Caio pelo universo das histrias do Rei
Arthur. No desenvolverei este raciocnio, mas tanto a feitiaria como a fora dos cavaleiros
seduziam o escritor.
103
As comparaes referem-se a Nosferatu: o vampiro da noite (Nosferatu Phantom der Natch,
1979), de Werner Herzog; e Tootsie (1982), de Sydey Pollack.
119
conhecido como Gilda, numa aluso ao filme homnimo, vrias vezes citado nos
escritos de Caio.
J quando comenta a histria das irms Baptista (Linda e Dircinha), que
foram muito famosas nos anos 1940 e 1950 e depois caram no ostracismo, Caio
compara: Baby Jane lembra daquele filme com a Joan Crawford e Bette Davis
(p.135). A citao do filme O que ter acontecido com Baby Jane (Robert Aldrich,
1962) reitera dois aspectos: a obsesso de Caio com filmes que abordem atrizes e o
fato dele relacionar diretamente fatos com filmes.
H ainda comparaes envolvendo localidades diversas. Ao comentar para
Maria Adelaide Amaral o sequestro dela, ele imagina algo tipo filme B americano,
assustador e ruim (p.65). J quando descreve o temporal que caiu no Rio de
Janeiro, ele conta que choveu muito. Blade Runner perde (p.80). J o Le Skypper,
um bar da cidadezinha francesa de Saint-Nazaire, o Ritz do local (p. 244), numa
aluso a Casablanca. Em contrapartida, o prdio em que se hospeda em Paris
sinistrrrimo, parece aquele do Polanski em O Inquilino, mas o ap. timo (p.302).
Esta ltima citao chama a ateno para a permanncia de um filme no imaginrio
do escritor. Da carta de 1977 a Luiz Fernando Emediato, em que Caio se mostrava
impactado com aquele filme, a este comentrio de 1994, dirigido a Gilberto
Gawronski, passaram-se dezessete anos.
Em outro instante, ao descrever o bairro onde est hospedado na Inglaterra,
ele afirma: Estou vivendo numa espcie de Harlem londrino. muito Sammy &
Rosie, embora eu preferisse que fosse mais para Beautiful Laundrette (p.197).
Neste trecho, ao citar novamente a obra de Stephen Frears, Caio no s sublinha
sua proximidade com o realizador, mas tambm deixa clara a dificuldade de ter
relacionamentos homossexuais em tal ambiente; afinal, na comparao dos dois
filmes, o cenrio muda menos que o tipo de relacionamento entre os personagens.
Ao continuar a descrever seu bairro, Caio comenta que uma negrona grita o
tempo todo fuck you little devil!... Grita mais coisas que no entendo, mas me soam
mais para David Lynch do que para T.S. Eliot (p.197).
Ou seja, Caio Fernando Abreu ope dois mundos completamente distintos,
contrastando a poesia de Eliot ao universo notadamente bizarro do realizador de
Veludo azul.
A mistura de locais, cores, pintores e cineastas feita por Caio em carta
120
Aqui, fica claro que a cidadezinha bastante cinza, com cores frias. J as
citaes do filme de Fassbinder e de Klimt (que tem vrias telas erticas) salientam
justamente a falta de sensualidade do ambiente: a latinidade, as cores fortes no
marcam presena em Saint-Nazaire.
104
A msica Esquadros, de Adriana Calcanhotto, apareceu no disco Senhas (1992). A cano fez
muito sucesso, principalmente seu incio: Eu ando pelo mundo/ Prestando ateno em cores/
Que eu no sei o nome/ Cores de Almodvar/ Cores de Frida Kahlo/ Cores!
121
Fiz fantasias. No meu demente exerccio para pisar no real, finjo que no
fantasio. E fantasio, fantasio. At o ltimo momento esperei que voc me
chamasse pelo telefone. Que voc fosse ao aeroporto. Casablanca, ltima
cena (p.140).
105
Outra questo que chama a ateno no trecho que, em um nico pargrafo, Caio cita Almodvar
e Puig, justamente os dois autores usados para descrever o mesmo apartamento em Onde andar
Dulce Veiga?
106
Essa citao a Alice volta em uma carta em que Caio tenta encerrar uma briga com Guilherme de
Almeida Prado, dizendo ter nostalgia da bondade (p.296), como a referida personagem.
122
exagera, ironiza, contando que virou uma mulher misteriosa, reclusa, raramente
vista, something between Garbo e Jackie (p.285)107. Por outro lado, ao ser bem
recebido pela crtica francesa, com direito a reportagens com fotos, ele diz a
Maria Lydia Magliani que se sente quelque chose entre Beatrice Dalle e Sonia
Braga (p. 293).
Caio tambm se compara a uma personagem j citada de Fassbinder. Em
carta de 1984, ao diretor teatral Luiz Arthur Nunes, ele relata: Quarta cheirei
toneladas (...) e hasta hoy no me recuperei. No puedo me drogar. Quest de
sade, infelizmente: desequilbrio total. Fico depois, comendo e vomitando sem
parar, linha Petra von Kant (p. 80).
Ao comparar-se com a protagonista de As lgrimas amargas de Petra von
Kant, Caio ressalta questes que, com certeza, dizem respeito ao seu trabalho,
como novamente o tema da solido. Alm disso, se lembrarmos que Petra se
enclausura entre quatro paredes, pode-se perceber uma citao velada da temtica
do apartamento; neste caso, visto como priso e como fim108.
A figura de Fassbinder volta a aparecer quando Caio conta dos seus
problemas com um namorado. Em carta de 1987 a Srgio Keuchgerian, ele escreve:
Tive vontade de pegar uma faca na cozinha e enfiar no corao dele, depois
no meu. Tive vontades Maria Bethnia, vontades Maysa, vontades
Fassbinder teatrais, melodramticas. Me limitei a escovar os dentes, me
masturbar pensando nele e dormir. (p.148).
107
Uma citao parecida aparece na carta citada na nota anterior. No aguento mais desaforo, e vou
ficar pior, vou ficar, se Deus quiser, como Odete Lara, Greta Garbo... (p.297).
108
Caio tambm se compara a uma cantora-atriz alem em outra carta, s que em um tom positivo:
Fico ouvindo Berlim, Berlim / Bomfim, Bomfim e se me baixa uma Nina Hagen rpida. Ou ser
mais clssica Marlene Dietrich? (p.160).
123
noite.
Ento, pode-se perceber que a oscilao entre a purgao sentimental
intensa e o olhar irnico so sinais de um texto que no s mistura, fragmenta
sensaes, como tem neste embaralhamento uma forma de representar a
subjetividade embebida de confuso dos seus personagens. como se a
subjetividade dos protagonistas mergulhados em paranoia, neuroses e delrios
contaminasse a escrita, o que, evidentemente, acontece em contos como Os
sobreviventes, de Morangos mofados.
Voltando ao retrato que Caio faz de si mesmo, h pelo menos um momento
em que ele abandona a postura sofredora. Comentando a bateria de fotos que fez
para ilustrar a primeira edio de Os drages no conhecem o paraso, ele afirma:
... vi os contatos hoje. Me sinto inclinado claro pela mais dark de todas.
Algo assim entre o Jim Jarmusch, o Tow Waits e o Arnaldo Antunes. (Em
falsete, em coro, as vozes: narcisa!). muderrrno, tem o clima destes
(negros) tempos (p.156).
J passou, j passou toda a vez que repito isso lembro daquele final do
Last Picture Show, do Bogdanovich, a mulher passando a mo na cabea
do rapaz, o vento soprando, a cidade deserta, ela repetindo its all right
now, its all right now... o que posso dizer que estou aqui... quando voc
precisar (p. 65).
110
Essa brincadeira de dar nomes cinematogrficos a objetos vai reaparecer quando Caio descreve
suas estadias em hospitais por causa da AIDS: j estou ntimo do trip metlico que chamo de
Callas em homenagem a Tom Hanks... (p.312). Aqui, a aluso ao filme Filadlfia (Johnathan
Demme, 1993) comprova a ironia, o humor, de Caio Fernando Abreu, inclusive em relao a si.
125
Onde andar Dulce Veiga?. Desta forma, Caio prope uma relao entre as duas
artes e cria um universo permeado pela mistura de elementos dspares que
permeiam a cultura pop. Neste caso, o nome de Dorothy Lamour chama a ateno
por dois aspectos: por um lado, Lamour, quando adolescente sonhava em ser
cantora (o que no deixa de ser uma vontade tpica de um personagem de Caio
Fernando Abreu). Por outro, ficou conhecida por atuar em filmes passados na selva,
como The Jungle Princess (1936), de Wilhelm Thiele. Ento, novamente aparece o
imaginrio dos filmes que marcam alguns personagens do escritor, principalmente
aqueles que vivem em cidades pequenas.
Como se viu em Onde andar Dulce Veiga?, e na citao das dorothys
Parquer e Lamour, a questo da musa em Caio Fernando Abreu transcende o
cinema: o escritor tem verdadeira fixao por mulheres de personalidade forte,
principalmente aquelas ligadas s artes. Essa relao aparece com fora quando ele
descreve um filme que viu para Maria Lidia Mogliani:
Outra ideia relevante uma certa fixao por James Dean que pode ser
percebida pelas vrias citaes que o escritor faz do ator americano. O interessante
que o cone Dean aparece sempre reproduzido: em uma foto, em um carto
postal e em um busto. Ou seja, talvez aqui haja uma referncia no s ao dolo, mas
ao fato da imagem dele ter se tornado onipresente o cinema invadindo a vida.
Essa ideia do cinema invadindo a vida reaparece quando Caio escreve sobre
seu livro infantil, As frangas. Em carta roteirista Thereza Falco, que tinha planos
de levar a histria ao palco, o escritor deixa claro que sua inspirao foi A vida
ntima de Laura, de Clarice Lispector112. Ento, afirma que a Laura do livro tem uma
111
O escritor refere-se a Frida, Natureza Viva (Frida, naturaleza viva, 1983), de Paul Leduc.
112
A ideia da presena do cinema na vida das pessoas parece j estar contida no original de Clarice;
afinal, o nome Laura no deixa de ser uma referncia ao filme homnimo de Otto Preminger (1944).
Voltando carta, h duas outras citaes cinematogrficas. Primeiro, Caio elogia o dilogo de
Tereza Falco, engraadssimo e rpido como o daquelas comdias hollywoodianas dos anos 30/40.
Rpida no gatilho. Delcia (p.165). Ainda, Caio se refere ao monolito de 2001: uma odissia no
espao (Kubrick, 1968), ao comentar parte da decorao de sua casa.
126
influncia forte sobre as suas frangas: ela um verdadeiro mito para elas, uma
espcie de Marylin Monroe das frangas (p.167). Ainda, ao descrever Blondie, a
franga jovem, ele sugere: Talvez ela pudesse usar uma camiseta com a cara de
Laura. Assim como uma adolescente usaria um James Dean ou uma Madonna?.
Em uma carta posterior mesma Thereza, Caio fala de um novo personagem, a
Cassandra, que tem olhos maquiadssimos (tipo Lyz Taylor em Clepatra) (p.174).
Neste caso, o que se v que tanto Liz Taylor como James Dean e Marylin trs
cones venerados pelo prprio Caio ilustram no s o quanto o cinema invade a
vida das pessoas, mas como certos atores no deixam de ser modelos de
comportamento de rebeldia e de seduo.
A fascinao de Caio pelos atores ressurge nos momentos em que ele conta
que viu determinada pessoa. Desfilam pelas pginas de sua correspondncia atores
como Terence Stamp, Isabela Rosselini e Jeff Bridges.
113
Deu pra ti anos 70 (1981), longa-metragem gacho em Super 8, dirigido por Nelson Nadotti e Giba
Assis Brasil.
114
Dados dos filmes dos dois ltimos pargrafos: Quilombo (Cac Diegues, 1984), Patriamada
(Tizuka Yamazaki, 1986), Memrias do crcere (Nelson Pereira dos Santos, 1984), Besame Mucho
(Francisco Ramalho Jr., 1987). Caio acabou no fazendo o roteiro. Quem assina o diretor e Mario
Prata, autor da pea homnima.
127
Na mesma carta, ele fala mal das lamrias dos cineastas brasileiros (p.
128
207), comentando que viu The Garden, de Derek Jarman115, feito em Super 8,
rodado no jardim da casa dele. Ao mesmo tempo, ele pede que Guilherme mande
boas vibraes para Sergio Bianchi e um beijo para Wilson Barros.
Esta carta citada acima parece ter, de alguma forma, irritado Guilherme de
Almeida Prado. Apesar da resposta do cineasta ser desconhecida, conclui-se isso
atravs da carta seguinte enviada pelo escritor: Sobre Dulce Veiga, nunca pensei
que fosse m vontade sua no filmar. um filme que s pode ser seu, e que todo
esse atrolho brasileiro tem impedido.... Faa o filme o meu palpite de qualquer
jeito (p.213).
Na mesma missiva, Caio faz outras observaes de cunho cinematogrfico:
comenta cartas de Odete Lara e Ana Carolina e faz observaes sobre a baixa
penetrao do cinema brasileiro em Londres: A dama do cine Shangai, do prprio
Guilherme, foi exibido apenas um dia na capital inglesa116.
Depois de 1991, as menes ao cinema brasileiro praticamente
desaparecem, como se o desmantelamento promovido por Collor repercutisse no
silncio do escritor. Alis, justamente depois do fenmeno chamado de Retomada
do Cinema Brasileiro que Caio volta a falar no assunto. Em carta de dezembro de
1995, ele comenta que achou Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas
excelentssimo (p.342).
Verdadeiro testamento da sua relao com o cinema, a correspondncia de
Caio Fernando Abreu revela um profissional prximo a certos diretores do cinema
brasileiro, um escritor influenciado por realizadores bem diferentes, um cinfilo
inveterado, um esteta que usa a comparao com o universo audiovisual como um
de seus recursos e algum que nunca parou de admirar as musas e as personagens
fortes do cinema. At porque se identificava com elas. Afinal, talvez a maior
referncia ao cinema estivesse em sua assinatura: Caio F. Uma homenagem
junkie que ficou conhecida atravs do filme Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e
prostituda ( Christiane F. - Wir Kinder vom Bahnhof Zoo, 1982), de Ulrich Edel.
Depois de examinar os livros de fico, a correspondncia e as crnicas do
115
Quando fala em Derek Jarman, Caio escreve que ele o Cazuza do cinema ingls, porque tem
HIV positivo (p.207). Interessante que ele evoca o mesmo cantor para elogiar Cyril Collard, realizador
francs que tambm contraiu o mesmo vrus (p.258). Alis, em carta de 1994, a Magliani, Caio se
compara aos dois, quando afirma que produzir muito como eles porque, em razo da AIDS, tem
conscincia que seu fim est prximo (p.312).
116
Nas cartas a Guilherme de Almeida Prado, Caio sempre pergunta sobre o trabalho do cineasta.
129
escritor pode-se pensar que Caio Fernando Abreu era um nmade em relao ao
cinema. Talvez tudo comece na era de Ouro de Hollywood e na fixao pelos
grandes espetculos, pelo visual elaborado das tramas noir e pelas divas que, como
estrelas, marcam o imaginrio dos sujeitos terrenos. Mas alm disso, h espao
para Rei Arthur, Tarzan e musicais coloridos.
Acompanhando o cinema dos anos 1960, Caio se volta para a Europa,
fixando-se em autores italianos, como Visconti, Fellini e Bertolucci. A passagem pela
nouvelle vague tambm decisiva, como nas citaes de Godard e do
contemporneo Alain Resnais. Na terra de Agns Varda, Truffaut parece ser o
preferido, talvez porque a inteligncia de suas realizaes venha acompanhada de
uma dose de romantismo, produzindo figuras femininas marcantes, corporificadas
por Isabele Adjani e Fanny Ardant.
Quando o cinema volta a se concentrar nos Estados Unidos, Caio vai de
carona e abraa o novo cinema americano, de Hopper a Scorsese, de Schlesinger a
Bogdanovich, chegando a Jarmusch. Alis, esta transio continental est na prpria
carreira de um dos cineastas mais admirados, Roman Polanski. O erotismo, a
paranoia e a morte, tpicos de o realizador de O inquilino, acabam sendo temas de
outros cineastas que entram na fila do mal, os poetas do abjeto David Lynch, David
Cronenberg, Paul Verhoeven e Brian De Palma.
Como Brian De Palma, Caio migra de uma abordagem mais realista para uma
expressividade hbrida, embebida de conflitos entre realidade e representao.
Ento, a partir dos anos 1980, ele vai se reconhecer em Blade Runner, Fome de
amor e A rosa prpura do Cairo. Ao mesmo tempo, o escritor olha para uma
linhagem de cineastas que trabalha com os afetos, principalmente entre
personagens de mesmo sexo: Derek Jarman, Stephen Frears, Cyril Collard e Pedro
Almodvar.
Almodvar nos lembra que o melodrama outro componente forte, ainda
mais quando revisitado por Fassbinder. E este prolfico realizador alemo no nos
deixa esquecer Herzog e Wenders. As rotas so muitas e os ttulos idem. Mas
importante sempre lembrar que todo este cnone deve ser posto em xeque, deve
ser desestruturado com a fora de Barbarella. Por que nunca houve uma mulher
como Gilda. Heaven, Its heaven. Corta.
130
117
No inteno fazer um debate sobre os perodos histricos que dizem respeito Primavera do
Curta-Metragem e Retomada do Cinema Brasileiro. Geralmente, a Primavera do Curta associada
passagem da dcada de oitenta para a de noventa, um momento da produo brasileira em que os
longas praticamente pararam de ser produzidos, enquanto os curtas se destacavam, inclusive com
premiaes internacionais. evidente que independente do final da EMBRAFILME (1990), a fora do
formato j vinha sendo demonstrada pelo menos desde o paradigmtico ano de 1986, quando, no
Festival de Gramado, ocorreu o empate triplo entre trs curtas: O dia em que Dorival encarou a
guarda (Jorge Furtado e Jos Pedro Goulart), Ma qu bambina! (Ceclio Neto); e A espera (Luiz
Fernando Carvalho e Mauricio Farias). J no que diz respeito Retomada, convencionou-se associar
seu incio ao ano de 1995, tendo como emblema o filme Carlota Joaquina (Carla Camuratti) e seu
mais de um milho de espectadores. Em termos de produo universitria gacha, interessante
lembrar que a primeira turma de graduao em Produo Audiovisual da PUC/RS foi formada em
2007, e a da UNISINOS, em 2006.
131
118
A Z Produtora era capitaneada por Srgio Lerrer. A empreitada previa quatro longas, mas o ltimo
ttulo (Porque hoje sbado, de Rugi Lagemann) no chegou a ser produzido (foi substitudo por
Quero ser feliz 1986 com direo do prprio Lerrer). Para um exame dos longas da Z, ver
MERTEN (1995) e BECKER (1986).
119
Para uma abordagem destes filmes, ver SELIGMAN (1995). Aqui basta dizer que A revoluo dos
bichos uma animao; A palavra co no morde um filme que aborda questes semiolgicas,
com metacinema pela primeira vez no cinema gacho (p.89), e que O dia em que Urano entrou em
Escorpio uma adaptao de Caio Fernando Abreu.
132
120
Traduo e adaptao do autor para: deux pages de Platonov ont fourni Francesco Rosi e
Tonino Guerra la matire dun film de deux heures (Trois Frres); une courte nouvelle de Cortzar (Le
Fils de La Vierge) est la base du scnario de Blow-up dAntonioni et T. Guerra; un recit dHenry
James, LAutel ds morts, constituit celle de La chambre verte de Truffaut.
133
121
Vale recapitular a descrio do conto: Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco
mais definido, com sua voz de baixo profundo, to adequada aos boleros amargos que gostava de
cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor e mais frgil,
talvez pelos cabelos claros, cheios de caracis midos, olhos assustadios, azul desmaiado (p.134).
Com exceo da altura similar, o resto da descrio vale para os atores escolhidos para o filme.
134
Enquanto Saul preenche a ficha, sua lembrana vem tona: que eu queria
o emprego, eu precisava. Da, surgem vrios planos rpidos da zeladora
descobrindo Saul ensanguentado no quarto a srie comea com os planos-
detalhes dos ps da mulher na escada, passando por cmeras com mais
movimento, at evidenciar o contraplano omitido na apario anterior: Saul, deitado,
sangue pelo corpo, folhas com desenhos espalhadas pelo cho. S depois da ltima
tomada de Saul deitado que a narrao volta: Talvez o trabalho, as pessoas,
ajudassem a esquecer. Essa forma usada deixa claro o que antes era apenas
insinuado: o seu ataque, o seu espasmo, havia acontecido antes do incio
cronolgico da narrativa preponderante. Porm, quando o filme visto pela primeira
vez, o surto de Saul algo que fica sem uma temporalidade precisa122 .
Essa montagem rpida, de alguma forma, parece espelhar a subjetividade
fissurada de Saul, parece traduzir os traumas, os bloqueios de um personagem que
carrega em seu ar taciturno um desespero angustiado encerrado em si. Se esta
ideia cinematogrfica no chega a retornar ao filme, digno de nota que estes
pequenos momentos com cortes velozes e um certo embaralhamento de
temporalidade fazem parte de uma proposta que, talvez por linhas tortas, dialoga
com o cinema de Alain Resnais, mais especificamente os primeiros minutos de
Muriel (1963), e A guerra acabou (La guerre est finie, 1966). Sem a chave poltica e
o esmero formal dos filmes do diretor francs, Aqueles dois reitera a possibilidade de
expressar o surto psictico pelo uso de tomadas rpidas.
Mas se os flashes de imagens so praticamente abandonados, o filme
evidencia a possibilidade iminente de uma nova crise de Saul. Isso acontece atravs
da reiterao de seu aspecto solitrio. Um momento emblemtico ocorre quando ele,
sozinho em um anfiteatro, assiste uma apresentao de msica erudita, com a pea
sendo executada por um grupo. O desamparo do personagem realado,
primeiramente, porque a msica que Saul aprecia no escutada pelo espectador.
Ao mesmo tempo, o que se ouve um blues, que inicia alguns momentos antes e
permanece at a cena posterior.
A solido de Saul no anfiteatro sublinhada por uma panormica da direita
para a esquerda, que inicia desvendando vrias cadeiras vazias, at chegar nele,
122
A meu ver, a sensao de dvida sobre o momento real do surto de Saul permanece em uma
primeira apreciao, mesmo que no final, quando a cena da escadaria retomada, o personagem
saliente que aquele acidente aconteceu h mais de um ano.
136
sozinho. Saul mostrado em um plano aberto, com vrias cadeiras ao lado dele. A
solido de algum sentado no meio do vazio e a melancolia da msica um blues e
no uma pea clssica sublinham a dificuldade de estar s.
Ao mesmo tempo, vale lembrar a relao do movimento de cmera com o
cenrio, formado por cadeiras brancas de ps pretos. Na cena, a panormica que se
desloca pelo espao vai, apesar dos seus pequenos solavancos, apresentar um
movimento de fluidez, harmonia, captando uma imagem que no deixa de ter a
pureza das manifestaes visuais ligadas ao neoplasticismo123. De certa forma, este
enquadramento dominado por linhas retas, vai reaparecer no filme, no s
simbolizando o anseio de Aqueles dois por uma esttica elaborada, como talvez a
prpria busca do personagem (ou dos protagonistas) por um ideal de completude
existencial (ver APNDICE A, Fig. 3.1.1)124.
interessante perceber que o blues comea a tocar na cena anterior, com
Saul caminhando na cidade. Neste sentido, outra forma de reiterar a solido de Saul
aparece pela utilizao de planos gerais no s dele, mas de pessoas caminhando
em Porto Alegre. A falta de comunicao dos habitantes da cidade, tpica do
universo de Caio Fernando Abreu, aparece aqui em enquadramentos do centro,
onde annimos vagam sozinhos e apressados.
Mas o blues, que inicia nas ruas e passa pelo anfiteatro, tambm pulsa na
cena posterior a esta. Quando Saul est passando pelo corredor externo da penso,
entrando no seu apartamento, surge uma vizinha. Os dois se olham em close,
garantindo um clima de interesse. Quando ela fecha a porta sem dar maior ateno
a ele, h uma panormica da direita para a esquerda, saindo da porta do
apartamento dela e chegando na parede branca do corredor. Da, surge uma nova
panormica, que sai da parede branca do quarto de Saul, at enquadrar o
protagonista. Essa passagem, que visa esconder o corte e promover uma elipse de
tempo, mostra Saul triste. Sua expresso vai mudando, enquanto ele ouve
gemidos femininos de uma relao sexual. Pelo olhar do personagem, parece tratar-
se da vizinha. Mas no h garantias de que no se trata de memria, de
imaginao. At porque Saul deita-se na cama e simula um ato sexual ele age
como se estivesse com algum, sem se masturbar. Na simulao, o momento do
123
Uso o conceito de neoplasticismo, pensando principalmente nas pinturas baseadas em formas
geomtricas, como as de Bart Van der Leck. Para um debate sobre tal corrente esttica, ver
FRAMPTON (2000, p. 103-115).
124
Todas as imagens das cenas das adaptaes de Caio Fernando Abreu esto no APNDICE A.
137
seu gozo acompanhado do orgasmo sonoro, tido (quem sabe) pela vizinha. Ento,
fica claro que uma das facetas da sua solido a dificuldade de satisfao sexual
o que reiterado pelo corte escondido, que liga diretamente, atravs de duas
panormicas, a vizinha entrando em casa e Saul dentro do seu apartamento,
sentado na cama, ar de desiludido.
125
Mais do que isso, a cena de sexo de Aqueles dois faz lembrar as citaes de pornochanchadas
presentes na literatura de Caio Fernando Abreu, bem como alguns contos de sua fase ps-moderna,
em que os personagens desenvolvidos do lugar a clichs (como em Mel e girassis, de Os
drages no conhecem o paraso).
138
cartomante. Alis, l que Clara se convence que tudo est acabado, pois conclui
que ele homossexual, que ele tem uma doena.
Se o filme mostra desde o incio uma afinidade entre Raul e Saul, no sentido
narrativo a aproximao dos dois comea com uma crtica do primeiro ao segundo.
Quando esto na lanchonete tradicional da turma, junto com outros colegas, Saul
confessa que no conhece Dalva de Oliveira. Raul, sorrindo, dispara: Vinte e oito
anos e nunca ouviu Dalva de Oliveira? Ento me desculpa, mas so vinte e oito
anos mal vividos. Saul no responde, mas depois de alguns meses, depois de
conhecer melhor Raul, acaba comprando um disco da cantora126.
O relacionamento dos dois ganha novos contornos quando um descobre que
o outro gosta de cinema e, como na literatura de Caio Fernando Abreu, surge o
mote de que as imagens em movimento so um refgio para sobreviver ao mundo.
No filme, um dia Saul chega atrasado na repartio, e Raul quer saber se o motivo
do atraso foi uma boa companhia. O amigo revela que dormiu tarde, ficou
assistindo a Psicose. Raul, ento, fala todo feliz: Do Hitchcock!. Esta cena, mais do
que aproximar os dois como amigos, traz um subtexto de uma possvel relao
carnal entre eles; afinal, a clssica cena do chuveiro chegou a aparecer na TV de
Clara, na noite em que ela transara com Raul ou seja, de alguma forma, a ideia de
uma relao sexual entre os dois fica desde j insinuada127.
Depois de um perceber que o outro gosta de filmes, eles se reconhecem
rapidamente e, no setor do cafezinho, comeam a trocar figurinhas cinfilas: o
primeiro filme que eles comentam No limiar da liberdade (Figures in a Landscape,
1970), hoje um dos filmes mais obscuros de Joseph Losey. Ao contrario da meno
126
Pontuar o primeiro encontro dos dois com uma pequena divergncia, no deixa de ser uma
ferramenta clssica da construo narrativa do filme. Inmeros filmes mostram dois personagens
brigando para depois se tornarem amigos ou amantes.
127
Essa ideia de que a aproximao de Saul e Raul vai sendo gestada tambm por detalhes entre
cenas em que eles esto separados reaparece na comparao da cena da relao sexual de Clara e
Raul com a sequncia em que Saul compra o disco da Dalva de Oliveira. Nos dois casos, existe a
presena marcante de um espelho. Assim, o reflexo dos personagens no deixa de uni-los.
140
a Hitchcock, aqui no se fala no diretor, mas de uma pelcula que tinha uma
perseguio de helicptero com dois caras que fugiam128.
Alm da narrao de Saul, que sempre sublinha os gostos comuns, outro
momento capital da aproximao dos dois acontece em uma noite em que eles so
os ltimos a deixar a repartio (na realidade Saul permanecer fazendo sero,
substituindo o seu Ferreirinha). A cmera mostra os dois, ao fundo na sala,
conversando justamente sobre o funcionrio mais antigo da casa o travelling vai se
aproximando, enquanto eles discutem se escolheram ou no estar ali. Raul conta
que sua vida foi uma sucesso de acidentes, e Saul, identificando-se, comenta que
com ele foi a mesma coisa. Neste momento, no h mais plano geral, mas um
enquadramento prximo. Este movimento acaba mostrando justamente a ideia de
que a unio dos dois pode faz-los transcender no s aquele ambiente opressivo
o dito deserto de almas129 , mas s dificuldades de relacionamento com outros
seres.
A proximidade entre os dois e a distncia que eles tm do pessoal da
repartio sublinhada por algumas construes visuais especficas. Por exemplo,
um plano geral mostra Raul e Saul saindo do trabalho, com a sala vazia. Eles
conversam animadamente, mas no ouvimos o que eles falam; escuta-se apenas a
narrao de Saul dizendo que, no final das contas, o trabalho no cansava era
algo simples. Dessa cena, corta-se para os dois, sozinhos, de noite, em uma
sacada, enquanto se ouve um coro saudando o Seu Ferreirinha: eles esto em uma
festa da firma, mas esto sozinhos, desgarrados da malta.
Na sada da festa justamente aquela em que Raul declina o beijo de Clara
os dois decidem ir tomar cerveja. No caminho, bebendo vinho na calada, na frente
de uma loja de roupas de noivas, eles conversam sobre as mulheres do passado:
Raul lembra do casamento fracassado; Saul conta de uma tal Ana. Ali, os
manequins na vitrine, petrificados, talvez representem a morte daquelas relaes
passadas e a dificuldade de se relacionar com o sexo oposto (Fig. 3.1.3).
Os dois acabam caminhando em um parque, conversando bbados sobre
umas mulheres desconhecidas que estavam na festa, debatendo que roupas elas
128
Quando os dois falam do filme de Losey, tanto Jussara como Alfredo olham para eles. Num
primeiro momento, pode-se pensar que os habitantes do deserto de almas esto
olhando/censurando os dois. Em uma abordagem menos direta, podemos pensar que, enquanto
Jussara recrimina aqueles dois diferentes, Alfredo olha para eles, reconhecendo seres parecidos
consigo, mas mais corajosos.
129
A expresso deserto de almas aparece no conto e no filme para designar a repartio.
141
vestiam130. A narrao de Saul avisa que ele pouco lembra daquela noite e, assim,
prepara-se o terreno para o primeiro momento de aproximao fsica entre os dois:
numa cena banhada fumaa, que mistura delrio e desejo, Saul e Raul danam ao
som da msica de Nino Rota, eternizada em Amarcord (Fellini, 1973). A cena
comea com cada um deles danando com uma dessas mulheres desconhecidas,
as duas de vestido roxo. Daqui a pouco, os pares so embaralhados: um baila com
a mulher que estava com o outro; eles danam juntos e por vezes aparecem
sozinhos (Fig. 3.1.4). De certa forma, este o tom de Aqueles dois, um tom que
insinua a relao homossexual, mas nunca evidencia a conjuno carnal dos
personagens. uma forma de olhar que se mantm ambgua: a relao dos dois
transcendeu a amizade, a vontade, e obedeceu lei do desejo? Ou o preconceito
social contra a homossexualidade tanto que os fez reprimirem (para si prprios) as
suas vontades?
No outro dia, a chuva que une os protagonistas. Saul acorda de ressaca,
uma garrafa de conhaque em cima da cama. A sombra da chuva quase exagerada
na parede culpa pela noite anterior? Ento, corta para a repartio: a cmera de
fora, captando Raul na janela, a chuva explodindo no vidro (Fig. 3.1.5). Quando os
dois se reveem, o cumprimento frio, at que Raul convida o amigo para ir ao
cinema acho que esse aqui um dos filmes que tu gosta , marcando o encontro
para s oito da noite.
Antes da noite chegar, eles almoam no restaurante de sempre e acabam
tendo uma conversa conflituosa. No meio do bate-papo sobre cinema, Clara passa
pelos dois. Da, Saul lembra que Raul tinha contado no parque que Clara achava-o
interessante. Raul afirma que falou aquilo por falar. Saul fica decepcionado e
torna-se evidente que Raul no dimensiona os conflitos pessoais do amigo, mais
trgico, mais deprimido.
Esse no dimensionamento talvez aparea na mesma noite, quando Raul
recebe a visita inesperada de Clara e acaba no indo ao encontro de Saul. Pela
primeira vez, o filme usa abertamente a montagem paralela: enquanto Saul espera
na frente do cinema, Raul se apronta para sair de casa. Ento, ouve-se uma
campainha. Na frente do cinema, Saul est impaciente ele fuma, verifica o relgio
e entra na sala para ver, como o cartaz indica, Laranja mecnica (A Clockwork
130
Novamente h uma cmera fixa que flagra os personagens caminhando do fundo onde
aparecem em plano geral at passarem pela lente.
142
com medo de surtar de novo. Aos prantos, chorando, Saul pe todas suas angstias
para fora Raul nada fala, mas parece compreender bem o que o amigo quer dizer.
Assim, um dos temas mais frequentes de Caio Fernando Abreu a loucura
aparece aqui com mais nfase do que no conto.
Depois do desabafo de Saul, os dois passam a sair mais; a prpria narrao
de Saul esclarece que Raul tambm se abriu um pouco e falou da sua vida. Ento,
eles vagam juntos pelo simples prazer de vagar. A unio selada com uma foto
tirada em um lambe-lambe do Centro: os dois abraados, corajosos, prontos para
enfrentar o mundo, o deserto e a ausncia de alma (Fig. 3.1.7). Eles tambm bebem
no chal da Praa XV e vo a diversos bares da noite porto-alegrense.
Saul parece revigorado, volta a desenhar, alegre, no quarto de penso. Seu
trao mostra-se um pouco diferente, principalmente quando se v um retrato que
parece ser de Raul este desenho, inclusive, aparece ao lado da foto tirada no
lambe-lambe. Mas a alegria dura pouco: Saul deixa cair a tal foto no cho do prdio
da repartio. Juarez (Carlos Cunha) e Carlos (Oscar Simch), dois colegas
machistas, acham a dita-cuja e logo fazem piada dois homens abraados sinal
do homossexualismo e isto deve ser recriminado.
Quando Saul vai novamente ao apartamento do amigo, Raul, indignado, avisa
que o pessoal est falando dos dois. Saul, amedrontado, prope que eles passem a
se ver menos. Raul fica mais irritado, o amigo est sendo covarde. interessante
que nesta cena, baseada no esquema campo-contracampo, os personagens
parecem distantes Raul aproxima-se algumas vezes da janela, mas nunca
acompanhado por Saul. A imagem dos dois na janela, emblema da unio deles, fica
ausente.
Posteriormente, aparecem alguns planos da repartio vazia, alm de
tomadas que mostram os dois separados. Saul fuma dentro da repartio olhando
pela janela pode-se ver seu reflexo, enquanto ouvem-se gozaes grosseiras e
indiretas dos colegas de firma. Ento, corta para Raul, em casa, violo em punho,
tocando Tu me acostumbraste131. Ele dedilha e canta como se oferecesse a cano
ao colega de escritrio.
A separao torna-se geogrfica: o pai de Raul morre e ele parte para o
interior. Saul, ento, visto em casa acendendo e apagando a luz, enquanto se
131
Msica composta pelo pianista cubano Frank Dominguez em 1957. Foi gravada por Caetano
Veloso em 1972, no seu disco experimental Ara azul.
144
ouve uma briga de casal, num tom de baixaria. Posteriormente, Raul pede que Saul
v se juntar a ele. Nesses pequenos atos, o filme demonstra mais uma vez que
trabalha discretamente com reincidncias. Raul fica sabendo da notcia do pai na
firma, pelo telefone. Quando pedem para falar com ele, Raul abandona a sua mesa
e atravessa a repartio de cabea erguida, seguido por um travelling de
acompanhamento. Todo esse procedimento o telefonema, o travelling e a atitude
orgulhosa repetido quando Saul recebe a ligao de Raul e vai atender o
telefone. Ao mesmo tempo, o apagar e acender as luzes de Saul evoca a cena em
que Raul faz gesto parecido (embora mais contido), quando estava com Clara, na
cama, sendo cobrado para assumir o namoro. Desta forma, mais uma vez os
personagens parecem unidos pelos elementos cinematogrficos132.
Os dois se reencontram no interior, em Jaguaro. Ali, mais do que contar que
seu pai falecera, Raul desabafa, diz que est se sentindo sozinho e cobra que Saul
tenha pensado em se afastar.
Saul volta para Porto Alegre e volta-se imagem do incio do filme: ele
sentado em uma escadaria de Porto Alegre. Ento, Saul conversa com a zeladora e
avisa que est bem, que ela no precisa se preocupar (ele deixa claro que j faz
quase um ano do surto que marca o incio do filme).
Chega o ms de dezembro. Enquanto a firma se organiza presentes, faixas,
rvore de Natal , Saul e Raul passam a virada do ano juntos, no apartamento deste
ltimo. Ele toca uma bossa-nova no violo, enquanto Saul bebe champanhe.
Detalhe: a janela do apartamento se mostra bem presente, o que fica mais
enfatizado ainda quando os dois se levantam para fazer um brinde em p, prximos
da sacada.
No momento em que vo dormir, Raul apaga a luz e coloca um disco (uma
verso instrumental de Tu me acostumbraste). Os dois, o anfitrio na cama e o
hspede em um colcho, ficam em silncio. Os relmpagos da chuva fazem clares
no escuro azulado. O silncio parece berrar, enquanto eles se confrontam com suas
escolhas. Ento, Saul pergunta se Raul j gostou de um homem. Corta para Raul
acordando, j de dia. Essa construo cria uma ambiguidade a pergunta foi
realmente feita e o filme omitiu a resposta, ou a pergunta foi sonhada por Raul?
132
H um outro momento no filme em que aparece um travelling de acompanhamento: na primeira
vez que Saul vai at o apartamento de Raul. Ou seja, quando Raul fica sabendo da morte do pai e o
travelling aparece de novo, pode-se intuir que aquela morte unir os dois.
145
O filme fica ainda mais ambguo quando Raul vai at o quarto de penso de
Saul e a cena mostra apenas ele entrando, examinando o local e olhando para a
foto do lambe-lambe.
Na cena seguinte, o chefe Andr (Birat Vieira) demite os dois, baseado em
uma gravao deixada em sua secretria eletrnica. Raul argumenta, grita; Saul
insinua que a secretaria eletrnica foi algo que o chefe recebeu de propina. Andr
fica ainda mais bravo, confirma a demisso, e os dois saem furiosos.
Ento, depois de alguns planos de Porto Alegre, Saul e Raul caminham pelo
meio-fio da Rua Borges de Medeiros. Enquanto isso, uma voz feminina l o final do
conto.
Depois disso, Saul e Raul comeam a rir. Eles continuam caminhando pelo
meio-fio, a cidade passando por eles. Os risos viram gargalhadas (Fig. 3.1.8). A
proximidade dos dois, a distncia dos outros. A verdade que j no tem ningum
em volta134 essa frase proferida por Saul para comentar o sentimento posterior ao
encontro no interior parece retumbar aqui. neste clima de otimismo que entram os
crditos e a voz de Dalva de Oliveira entoando justamente Tu me acostumbraste.
Esse final chama a ateno no s por ser mais solar que o do livro algo
ainda a ser aprofundado , mas porque usa um expediente indito no filme: a leitura
de um trecho do conto por um narrador externo. O mais interessante que esse
procedimento causa um impacto epifnico no filme: o texto de Caio, a voz feminina e
a imagem dos dois singrando a cidade parecem condensar toda a beleza que a
relao daqueles dois tem.
Sem falar que essa construo no s ilumina um estilo peculiar de trazer a
literatura para a tela, como tambm reitera que a introduo de uma forma flmica
diferente na ltima cena pode ser algo interessante como acontece tambm, sua
133
H apenas a omisso de duas palavras na penltima frase. No texto do livro est escrito: Quase
todos ali dentro tinham a sensao de seriam infelizes para sempre. E foram.
134
interessante que a primeira frase do conto : A verdade que no havia mais ningum em
volta. (p.126)
146
135
O filme de Huston quase todo filmado em uma casa, onde acontece uma festa, marcada por
pequenos conflitos familiares. Quase no fim do filme, o protagonista fica sabendo que sua mulher fora
apaixonada por outro homem. Ento, na ltima cena, sua voz sobreposta surge e engendra uma
reflexo sobre o amor e a vida, enquanto a montagem, outrora discreta, combina vrios planos de
paisagens glidas, fazendo imagem e som dialogar de uma forma indita no filme.
147
136
Nesse sentido, preciso destacar que o prdio da repartio filmado geralmente em um contra-
plonge de quase noventa graus. O interessante que esta imponncia da imagem parece, antes de
mais nada, ironizar a pseudo-grandeza daquele lugar. Alis, convm lembrar que a imponncia
tambm uma caracterstica de um regime calcado no milagre econmico e na modernizao
conservadora (vide Transamaznica).
148
montagem apresenta alguns planos distintos (um caderno sendo aberto, por
exemplo), mas o esprito o mesmo.
H uma outra forma de montagem que, combinada com a narrao de Saul,
mostra que o carter maquinal traz junto consigo o tdio. Enquanto vrios planos
contguos mostram em detalhe a mo do seu Ferreirinha colocando um chapu no
porta-chapus, Saul fala que poucas coisas mudavam na repartio. No final, ele
comenta: vieram dias cada vez mais iguais. Um, dois, trs meses.
Pensando nos personagens, salta aos olhos o comportamento bossal de
Carlos e Juarez, representantes quase caricaturais da paixo por boles, mulheres e
outros lugares-comuns. A primeira vez em que Juarez fala, ele pergunta para os
novos contratados: Vocs no esto a fim de entrar no bolo da esportiva?. Para
reiterar o discurso de Aqueles dois, no h resposta de ningum. Na segunda
apario de Juarez, ele encontra Saul no elevador, lendo um jornal. Ento,
questiona se ele est conferindo o horrio do jogo. Como no h resposta, Juarez
brinca, perguntando se ele est de olho nas fofocas de novela. Quando Saul fala
que quer saber o horrio dos filmes da TV, Juarez no perdoa: Bah, aqueles filmes
velhos... ainda por cima preto e branco. Este mesmo personagem ainda visto no
tradicional restaurante da firma, discutindo com o garom sobre o resultado do jogo
da noite.
J Carlos solta seu lado firma na festa de Ferreirinha, quando fala que
aquela festa est boa, pois apareceram umas gurias bonitas. No mesmo evento,
ele chega a demonstrar simpatia pela dupla, principalmente por Saul, mas deixa
clara a diferena deles: Eu acho que aqueles dois deveriam ser artistas de cinema.
A conversa das mulheres sobre os homens vista principalmente nos
dilogos entre Clara Cristina e Jussara. Mais do que todas as conversas, chama a
ateno o fato de Jussara ter um companheiro, que quase sempre permanece
silente, enquanto ela bota uma pilha para a amiga forar a barra com Raul,
chegando a convenc-la a ir numa cartomante. Alis, Jussara tenta de tudo, at dar
uma indireta para Raul, dizendo que Clara seria uma tima esposa. Mas nada d
certo.
Pensando nos personagens que jogam no time do deserto de almas, h
ainda o chefe, o doutor Andr. Ele autoritrio, bate portas, tem cara de bravo e
muitas vezes enrgico. Alm disso, encarna a corrupo que existe naquele lugar.
Ele procura favorecer um amigo, um tal de Dr. Sartori, colocando seu processo na
149
instantes em que externa uma opinio, Alfredo defende Raul e Saul, afirmando que
os funcionrios no devem se meter na vida dos outros.
Pensando bem, se contarmos Raul e Saul, o grupo de dissidentes maior do
que aquele que simboliza o padro da pouca sensibilidade. Neste sentido, o que se
v que as normas de conduta do escritrio no so regidas pela maioria o
comportamento ali mais herdado do que tomado para si. O problema que a
maioria silenciosa nada faz quando Saul e Raul so postos para rua. Se a
repartio pode ser pensada como uma alegoria da sociedade, a demisso dos dois
no deixa de ser a representao da excluso ferrenha que ainda era imposta aos
homossexuais em plena segunda metade do sculo XX alguns no podiam
assumir sua opo sexual, outros reprimiam seus desejos e ainda havia aqueles que
eram perseguidos137. Por outro lado, a presena de vrios funcionrios que no se
adequam ao sistema talvez represente justamente a ideia de que os tempos
estavam mudando, e de que a democracia era questo de tempo. Pouco tempo.
Por fim, vale lembrar um detalhe da narrao de Saul: ainda no incio do
filme, ele lembra que foi contratado como escriturrio funo que no aparece
detalhada no conto. Esta simples fala ilumina outro parentesco dessa histria, a
narrativa Bartleby, o escriturrio, de Herman Melville. Publicada pela primeira vez
em 1853, a pequeno relato do escritor americano fala justamente de burocracia,
absurdo e capitalismo (como a literatura de Kafka, j influenciada por esta histria).
Em Melville, o copista Bartleby se nega a executar as tarefas de seu chefe,
proferindo sempre a mesma frase: prefiro no fazer. Se, em Aqueles dois, os
protagonistas no se negam a fazer seu trabalho, pode-se pensar que o prefiro no
fazer deles est ligado conduta fora do expediente. No filme de Amon e na
literatura de Caio, os bartlebyes so aqueles que transcendem as regras de
comportamento, so aqueles que dentro de ambientes rgidos acabam preferindo
no seguir a manada dos normais. Os bartlebyes so aqueles que enfrentam o
preconceito, porque so amigos queridos com afeto transbordando pelos poros,
porque so amantes mergulhados em uma paixo inicitica, porque so, enfim,
aqueles dois.
Partindo de um conto de oito pginas, o filme de Amon constri uma narrativa
em torno de dois personagens, tratando a histria deles com sensibilidade,
137
evidente que tal situao ainda existe, mas com certeza vivem-se ares mais democrticos. A
prpria criao, em 1993, do Mix Brasil, maior entidade GLBT da Amrica Latina, atesta tal fato.
151
138
As taras de todos ns (1981), Flor do desejo (1984), A dama do cine Shangai (1987), Perfume de
gardnia (1995), A hora mgica (1998) e o curta Glaura (1995) formavam a filmografia do diretor at a
realizao de Dulce. Para amostras da cultura cinematogrfica de Guilherme de Almeida Prado, ver
ORICCHIO (2005).
152
139
Meditao (1958) de autoria de Tom Jobim e Newton Mendona. No filme, a letra da msica
aumentada, pois ela aparece em vrias cenas.
153
procura Dulce Veiga: tem vrios encontros com conhecidos da diva, mergulha em
uma errncia amorosa com Mrcia (Carolina Dieckmann), e acaba descobrindo o
paradeiro da cantora: ela est na Amaznia, local do Brasil desconhecido por
excelncia140.
No priplo, o personagem principal que se chama justamente Caio
antes de tudo um espectro, uma luz que revela um mundo to artificial quanto
particular141. A prpria caracterizao do protagonista corrobora tal ideia. No s o
figurino estampado, que parece se harmonizar com os cenrios, sem
necessariamente representar uma escolha individual, mas tambm os cabelos
negros, longos e lisos, e os culos. Assim, Caio visto mais como uma figura do
que como algum de carne e osso142.
Na formao desse espectro, a narrao com voz sobreposta construda de
maneira anloga aos outros elementos que caracterizam o personagem. A narrao
no expe os sentimentos de Caio, talvez com exceo de sua relao com o
passado traumtico. Ao mesmo tempo, h uma inundao de clichs, como por
exemplo: minha vida feita de peas soltas como as de um quebra-cabea sem
molde final. Alis, o prprio fato dessa frase se relacionar com uma narrativa
labirntica no deixa de soar antes como pardia auto-consciente do que como frase
pseudo-filosfica143.
Nesse sentido, a narrao do personagem serve, primeiramente, para afastar
um tipo de identificao simplria do espectador que quer um personagem calcado
140
No livro, Dulce est escondida no interior de Gois. Alis, toda a parte final do filme bem
diferente da do livro.
141
A composio de Caio at pode mostrar algum na crise da meia-idade, na penumbra dos trinta,
quarenta anos. Ainda guardando resqucios de juventude os cabelos compridos, um tanto
esquisitos , ele sempre chamado de rapaz, ora pelo pianista Pepito (Francarlos Reis), ora por
seu chefe, Castilhos (Cac Rosset). Inclusive, em uma cena Caio retruca, mas o editor no quer
saber, bate-boca e diz para ele cortar os cabelos. E no justamente o que acontece quando ele vai
para a Amaznia? Porm, o filme parece no explorar outros elementos que dariam complexidade ao
personagem (ele no tem amigos, vizinhos, passado mais nuanado etc).
142
Essa relao do figurino de Caio com o cenrio fica evidente porque, em um momento, ele veste
uma camisa que no deixa de ser uma apropriao kitsch das composies de Piet Mondrian. J
quando o jornalista vai visitar Lyla Van (Cristiane Torloni), h um vitral que tem as cores e as formas
geomtricas muito semelhanas s da camisa de Caio.
143
Essa interpretao se ancora tambm no fato de que em A dama do cine Shangai existe uma
convergncia entre a forma narrativa e a fala sobreposta do protagonista. A trama do filme apresenta
diversos enigmas e no deixa de ser um quebra-cabea. Ento, ouve-se o pensamento de Lucas
(Antonio Fagundes), o personagem principal: Meu chefe, o velho, sempre diz: Lucas, no acredite
em coincidncias. Quando duas peas se encaixam, porque pertencem ao mesmo quebra-cabea,
no importa onde voc as encontrou. A relevncia desta frase para o filme foi enfatizada por PUCCI
JR. (2008, p.87). Em tempo: em seu texto sobre A dama (p. 163-198), o autor desenvolve uma
reflexo sobre a questo do quebra-cabea.
154
144
Esse personagem diferente dos protagonistas de outros filmes de Guilherme talvez ele seja o
mais inteligente. S que suas palavras praticamente no acrescentam dimenses a Caio que,
independente do seu grau de conhecimento, tende a um esvaziamento.
145
Algumas falas de Filemon (que insistiam que o protagonista deveria pensar mais em deus) foram
transferidas para Patrcia. Ainda, como personagens cortados, deve-se citar caro, o antigo namorado
de Mrcia.
155
abandonando Caio. Pode-se at pensar que a diferena que aqui ela representa a
dificuldade que ele tem de se relacionar com o outro, independente do sexo. Mas o
principal no isso; a forma com que a despedida filmada. Ldia fala as frases
duas vezes, de maneira teatralizada, e Caio ouve quieto, passando a mo pelos
lbios, imitando atuao de Jean-Paul Belmondo, em Acossado (A bout de soufle,
1960), de Jean-Luc Godard. A montagem reitera a citao e exacerba os jump cuts.
No meio disto, surgem planos rpidos de algum (provavelmente Caio) batendo
mquina e jogando uma folha de papel no lixo. A janela enorme do apartamento
parece mostrar uma paisagem mutante: ora ela fake, formada por um backlight
artificial, ora abstrata, tomada por interferncias em animao. Ldia continua a
esbravejar, falando que no um dos contos dele, mas sim um romance que Caio
nunca escrever. No cho, diversos exemplares do livro A sombra informam que
ele um escritor frustrado, um personagem muito comum na literatura e no cinema
contemporneos.
Se a janela uma metfora do cinema ou de uma forma de pens-lo, a cena
condensa a exploso formal de Guilherme de Almeida Prado: no filme, o espectador
obrigado a navegar em um terreno pantanoso, em uma pletora de procedimentos
flmicos que tragam o olhar como um redemoinho. A citao de Godard se mistura
com a repetio de frases, cara ao diretor fraco-suo, mas tambm a Glauber
Rocha. O apartamento grafitado e a janela com uma paisagem abertamente falsa
ecoam o cinema dos anos 1980. Ainda, o clich do escritor em crise reiterado e
ganha ares de auto-conscincia quando percebe-se que o livro se chama justamente
A sombra146. J os planos da mquina de escrever so enigmticos: ser que
mostram Caio em crise criativa num passado recente? Ou ilustram que, depois de
encontrar Dulce Veiga, ele finalmente escrever o romance que nunca conseguiu?
Nesse sentido, vale lembrar que a primeira imagem do filme mostra os tipos de uma
mquina de escrever batendo sobre um papel branco, escrevendo: So Paulo,
198...
Generalizando, pode-se pensar que a cena salienta que Guilherme de
Almeida Prado usa preponderantemente duas estratgias formais no filme: a
utilizao e a subverso do cinema clssico, mais especificamente o policial; e a
apropriao de tcnicas do cinema moderno, principalmente aquele calcado na
146
Alm disso, o titulo de seu livro reitera a brincadeira com os lugares-comuns: quem est alijado do
establishment s pode ter escrito um livro que se chama A sombra.
156
uma personagem formada por olhares mltiplos, vises que nem sempre so
unvocas, que geram uma contradio por exemplo, sobre seu carter e sua
relao com os homens.
De alguma forma, Onde andar Dulce Veiga? faz coro a uma preocupao j
presente no filme de Welles: possvel narrar a vida de uma pessoa em um filme?
Como narrar esta vida? Por a, o filme de Guilherme de Almeida Prado se aproxima
das experincias recentes de Todd Haynes (Velvet Goldmine, No estou l) e David
Lynch (A estrada perdida e Cidade dos sonhos), que questionam a ideia de
totalidade, usando narrativas que privilegiam interrogaes formais147. Como se ver
posteriormente, a prpria ideia de desfecho questionada por Guilherme de Almeida
Prado.
Focando a construo da personagem Dulce Veiga, interessante perceber a
multiplicidade de formas com que ela aparece na vida do protagonista. Volta e meia,
a cantora loira surge na memria e em delrios, atiados por uma msica ou um
lampejo qualquer. Pelo menos trs vezes, Dulce aparece em uma tela. Seguindo
este raciocnio, chegamos a um componente fundamental da relao do jornalista
com ela: Caio constri a sua imagem de Dulce Veiga. De certa forma, esta temtica
fica evidente desde a primeira vez em que os dois contracenam. Caio est
assistindo gravao de um videoclipe de Mrcia, quando chega a um lugar
(imaginrio, como se ver) e se depara com um telo, que mostra Dulce Veiga
cantando. Ele ento vai at a imagem. O plano geral contrasta a cantora enorme
com o jornalista diminuto. Quando o espectador se d conta, Caio sumiu no meio da
imagem.
A temtica da imagem criada e a construo acima descrita fazem com que o
filme evoque o seminal Um corpo que cai (Vertigo, 1958), de Hitchcock. Como em
Um corpo que cai, Caio fica obcecado por uma mulher loira, num mundo de perucas
e aparncias. Como no filme de Hitchcock, a personagem feminina vai pulsar seu
magnetismo, os ombros nus, o vestido elegante ao lu. E talvez por ser um pouco
147
Em Velvet Goldmine (1998), Todd Haynes usa uma estrutura abertamente inspirada em Cidado
Kane para contar a histria de um jornalista que busca reconstituir a trajetria do astro pop Brian
Slade. Nessa jornada, muitos pontos ficam abertos, mas a referncia a Welles reiterada. Em No
estou l (Im Not There, 2006), Haynes conta a vida de Bob Dylan, misturando momentos da sua vida,
muitas vezes publicando a lenda e no a verdade. No filme, vrios atores interpretam o cone-pop.
Em A estrada perdida (Lost Higway, 1997), de David Lynch, um personagem se transforma em outro,
criando duas narrativas que podem se relacionar de diversas formas. Em Cidade dos sonhos
(Mulholland Dr., 2002), Lynch volta a dividir o filme em duas partes, sendo que todo o primeiro e
maior momento da narrativa parece ser um delrio de uma das protagonistas.
158
como o personagem de James Stewart, Caio se relaciona com Mrcia; afinal, ela
no deixa de ser uma simulao de Dulce Veiga.
A relao de Caio com Mrcia obedece a certas regras do cinema: eles se
aproximam e se afastam durante quase todas as cenas, at se reencontrarem no
final, cantando na chuva, l na Amaznia. Os desentendimentos aparecem
geralmente quando Caio quer saber mais sobre Dulce Veiga como se Mrcia
sentisse cime da me e, ao mesmo tempo, quisesse esquecer sua infncia. Para
Caio, Mrcia no s uma pequena Dulce, mas, de maneira quase incoerente e
contraditria, a possibilidade de transcender o passado, marcado pelo dia em que
foi entrevistar Alberto Veiga, o ento marido da cantora. Na ocasio, ele viu a antiga
diva completamente entregue s drogas.
Todas essas facetas reaparecem na cena em que Caio entrevista a roqueira.
No quarto dela, o jornalista comea a fazer perguntas. Na TV, passam imagens da
tela Mo pesando prolas, de Vermeer. No meio da entrevista, os dilogos so
substitudos pela narrao de Caio. Ento, as luzes mudam, a montagem alterna
planos de Mrcia e de Dulce, e surgem novamente interferncias em animao
como ocorrera na abertura, com Ldia. Esta cena introduz mais um pensamento de
Caio sobre Mrcia: ela pode ser uma repetio de seus casos antigos148.
Quando Caio vai editar a matria no jornal, as interferncias flmicas tornam-
se ainda mais poderosas: Caio est no jornal, o telefone toca, a fita-cassete com a
entrevista amassa e as vozes ficam graves e vagarosas. Ento, ele comea a
escrever sua crtica do disco de Mrcia. Logo, uma enxurrada de imagens surge na
tela, uma montagem frentica de enquadramentos e sons, criando sentidos diversos.
Antes de pensar um pouco sobre essa passagem, relevante ressaltar que o
roteiro de Guilherme de Almeida Prado no s previa uma mistura de videoclip com
poema de amor ertico (ALMEIDA PRADO, 2008, p.104), mas tambm detalhava
grande parte das estratgias usadas. Entre as estratgias que aparecem no filme
presentes ou no no roteiro , se destacam:
- A montagem mistura Mrcia cantando no videoclipe do incio do filme com
um close de Caio batendo mquina no jornal e a luz do videoclipe parece se
instaurar na imagem dele (Fig. 3.2.1). Ainda, surgem planos das mos de um
148
A ideia de que Mrcia pode ser a repetio de casos antigos do protagonista reiterada na ltima
cena entre Caio e Mrcia em So Paulo. Os dois brigam, e a roqueira xinga o jornalista. As frases
dela so proferidas duas vezes, como as de Ldia, na abertura do filme.
159
pianista tocando seu instrumento, enquanto ouve-se, junto ao rock, apenas o som
das teclas de uma mquina de escrever;
- Mrcia, com o vestido de Dulce, canta ao lado do piano verde, com Caio
vestido como Pepito, o fiel msico que sempre acompanhava a cantora (Fig. 3.2.2).
Ainda se ouvem apenas as teclas de uma mquina de escrever substituindo o som
do instrumento;
- Mrcia, encarnando a Mulher pesando prolas, de Vermeer (Fig. 3.2.3). No
fim do clipe, ela joga um escapulrio e outras coisas para cima;
- Mrcia, vista quando criana, com roupas de adulto, entrega repetidas vezes
a seringa para Caio e, no ltimo desses planos, aponta uma arma para ele (Fig.
3.2.4);
- Mrcia, nua, sentada na poltrona verde, encara a lente (Fig. 3.2.5);
- Mrcia cantando junto com Dulce, uma na frente da outra, como num
espelho (Fig. 3.2.6 e Fig. 3.2.7);
- Mrcia encarando a cmera, abrindo a boca e mostrando dentes de vampira
(Fig. 3.2.8);
- Alternncia constante das verses de Meditao. Por vezes, Mrcia parece
cantar a verso de Dulce.
Toda essa sequncia, permeada por luzes estroboscpicas, encerra quando
Caio tira a lauda da mquina de escrever, a crtica est pronta. Aqui, novamente
aparecem associaes diversas, mas talvez o ponto comum seja o fato de que todos
os personagens carregam algo que no deles, como se o imaginrio do
protagonista fosse povoado por uma confuso em que o desejo se materializa de
diversas formas e os papis podem ser trocados. S que, pelo menos nessa cena, o
que parece canalizar o desejo do protagonista Mrcia. E para Caio, ela uma
profuso de fagulhas: uma musa distante (quadro de Veermeer), uma vampira
destrutiva, uma companheira para cantar ao piano, uma possvel amante (sentada
na poltrona verde), o emblema de um trauma (a seringa, que Dulce usava no dia da
fatdica entrevista), a corporificao de uma paixo antiga (Dulce Veiga) ou de um
extremo prazer efmero (o beijo de Raudrio, simbolizado pela arma que Mrcia-
menina aponta). Enfim, Mrcia provoca um caleidoscpio de sensaes em Caio.
Mas no centro dessa mutao est Dulce e o fatdico dia do passado.
160
- A cmera se afasta de Caio, que fala (para si, para o espectador): Dulce
Veiga. Ele, ento, inicia uma pequena entrevista com Mrcia e o tempo presente
se estabelece por alguns momentos. Quando ele pergunta sobre Dulce Veiga,
Mrcia garante que ela desapareceu, mas que no lembra direito, era uma criana;
- Uma garota (provavelmente Mrcia quando menina) aparece e aponta uma
seringa para Caio (Fig. 3.2.16);
- A cena continua como se nada tivesse acontecido. A entrevista avana, a
banda volta a gravar o videoclipe, e Caio vai embora.
Essa sequncia de cerca de oito minutos e meio aparece bastante diferente
no roteiro do filme (mais explicativa e com marcao precisa de diferena dos
espaos e tempos)149. Porm, no filme, o que se v um curto-circuito de tempos e
sensaes. A primeira ideia relevante que a memria de Caio acionada por uma
msica. Se o filme todo vai girar em torno de uma imagem, de um mito, relevante
pensar que esse acendimento do passado feito por algo que no uma
representao icnica. De alguma forma, o uso da cano bossa-novista parece
servir a um sentimento nostlgico que est embebido no filme uma nostalgia de
um outro tempo, um outro cinema, uma outra msica150.
A outra questo fundamental que esse trecho ressalta um pouco a forma
com que passado e presente so misturados. Uma das propostas do filme
representar ambos como se no houvesse barreira entre os dois, abdicando de uma
marcao de alterao de temporalidade. Isso vai reaparecer em diversas cenas em
que Caio imagina que encontra Dulce: ao entrar no bar onde o pianista Pepito se
apresenta, Caio v Dulce em meio a fotgrafos. Ele, ento, pede um autgrafo, e ela
assina justamente na capa do disco das Vaginas Dentatas que Caio carrega
consigo. J no Rio de Janeiro, Caio vai at a praia e v Dulce e Pepito cantando na
praia. Enquanto Patrcia conversa com ele, no se ouve o que ela fala; s a voz de
Dulce Veiga.
Se essa mistura entre passado e presente no chega a ser nova, remontando
a Morangos silvestres (Bergman, 1957) e ao recente Spider (David Cronenberg,
2002), a cena do estdio encontra sua potencialidade na mistura ambgua entre
passado, memria e imaginao: o que dizer do momento em que Caio v Dulce no
telo e de costas na poltrona verde? Estaria ele diante de duas memrias no mesmo
149
Ver ALMEIDA PRADO, Guilherme (2008, p.37-60)
150
A nostalgia da msica, do piano-bar, chega a lembrar Apolnio Brasil, de Hugo Carvana (2003).
162
151
No livro o personagem se chama Saul e no h nenhum jogo de palavras envolvendo o seu nome;
o protagonista assume que o denunciou para a ditadura, mesmo que sem querer. No filme, Caio
parece mais ter ajudado Raudrio a escapulir.
163
se abre e dali surge uma coisa estranha: o brao de Dulce Veiga, sob vestido e
luvas verdes, segurando um cigarro, que queima, espalha fumaa. Caio tira coisas
do armrio, justamente a peruca, o casaco e a arma. Da, ele olha pela janela e v
um telefone tocando em uma sala vazia e, em outra janela, dois homens danando,
abraados, no meio de uma academia de ginstica, com rapazes musculosos ao
fundo. Um cigarro aceso nos sulcos do disco de vinil. Dulce Veiga aparece no
apartamento, ostentando o cigarro; ela Rita Hayworth em Gilda (Charles Vidor,
1946). A cantora vai at Caio, a musica na vitrola, os homens na janela. Ela abraa
o jornalista, abre o cinto dele e apalpa-o. No meio disso, v-se uma borboleta
tatuada acima do seu seio direito. No meio disso, o espectador lembra que Mrcia
tem uma tatuagem no mesmo lugar. Ao fundo, alm da msica, ouve-se o telefone
tocando sem parar.
A cena reitera a fora do passado na vida do protagonista e seu
encantamento por Dulce Veiga, melhor dizendo, seu fascnio sexual por ela. Nesse
sentido, a presena da borboleta sublinha que a aproximao do jornalista com a
vocalista das Vaginas Dentatas no deixa de ser uma forma de recordar o passado.
Se bem que a tatuagem pode representar que aquela excitao sexual de Caio
tambm provocada pela jovem que acabou de conhecer.
Ao mesmo tempo, a dana masculina no meio de um ambiente cheio de
msculos reitera como aquele beijo de Raudrio (que ainda no ficou claro no filme)
marcou o protagonista. Ainda, o telefone que toca no deixa de ser enigmtico.
Pode ser simplesmente um telefone na sala vazia, mas o fato da chamada no parar
nunca evidencia que se trata de algo importante. Seria uma representao do
telefonema de Castilhos, que mudou a vida de Caio e fez a histria acontecer? Ou
algo que ainda vai surgir? Apostando nesta hiptese, no h como no lembrar
deste recurso (do som do telefone que antecipa o seu uso) em Era uma vez na
Amrica (Once Upon a Time in America, 1984), de Sergio Leone. S que ao
contrario da realizao do inventor do western-spaghetti, no filme de Guilherme de
Almeida Prado o telefone representa algo que aconteceu no passado, mas que s
ser desvendado na parte final do filme. Quando um flashback posterior revela o que
ocorreu no dia em que Caio esteve no apartamento de Dulce Veiga, entende-se que
naquela ocasio o telefone tocou e que a chamada tinha sido feita por um
companheiro de Raudrio, avisando da tocaia e o mais alucinante que o militante
reitera: um companheiro a da frente acabou de ligar. A partir dessa informao, a
164
152
Talvez seja este tipo de construo que faa Guilherme de Almeida Prado afirmar que o filme fala
dos anos 1980 com uma linguagem de sculo XXI. Ele destaca a influncia da globalizao e dos
videogames e da internet. Sobre esta ltima, ele afirma que relaciona fatos e ideias de forma
globalizada e quase aleatria(p.16). Talvez seja um pouco o que o ponto de vista do telefone
represente para ele.
165
153
Ver a apresentao de Guilherme de Almeida Prado para o roteiro do filme. Op.Cit., p.16.
154
interessante lembrar que essa ideia do corredor como local de transformao aparece tambm
em A estrada perdida, de David Lynch.
168
155
Entrando quase no devaneio, esse tipo de plano (em que as cordas formam linhas no plano)
chega a lembrar dois filmes da histria do cinema que combinam reflexo social com
enquadramentos cerebrais: O encouraado Potenkin (Bronenosets Potyomkin, Eisenstein, 1925), e A
Terra treme (La terra trema,Visconti, 1948).
169
156
Durante um debate sobre Cinema de Poesia, Jlio Bressane enalteceu o filme e a figura de Ruy
Guerra, com frases como: Os cafajestes foi um filme civilizador do cinema brasileiro, no h nenhum
realizador da gerao dele que tenha no s o talento, mas o conhecimento do cinema que tem o
Ruy. In: O eu da arte fora de si Ruy Gerra, Jio Bressane e Joel Pizzini debatem Cinema de
Poesia Cinemais. Rio de Janeiro, n 33, janeiro/maro, 2003. p. 31.
171
andar Dulce Veiga? pode trazer uma critica ao Cinema Novo em sua superfcie,
mas desenvolve uma relao de aproximao em alguns vetores, evidenciando,
incontestavelmente, a relevncia do perodo.
Mais tranquila a relao com o Cinema Marginal. Se, em Perfume de
gardnia, Guilherme de Almeida Prado j tinha literalmente matado os atores que
vivem os protagonistas de O bandido da luz vermelha, em Onde andar Dulce
Veiga?, as homenagens so menos notrias. Se h um pster da estreia de Rogrio
Sganzerla no apartamento do protagonista, com uma pelcula de Jlio Bressane
que o filme parece criar uma ponte mais slida. Para evidenciar a subjetividade
transtornada de Caio, o disco de vinil que toca Meditao est arranhado. Ento, a
agulha repete sempre o mesmo trecho. Esse expediente alude a Matou a famlia e
foi ai cinema (1969), de Jlio Bressane. Se no filme marginal esse procedimento era
levado ao paroxismo (e por isso mesmo algo antolgico), na realizao de
Guilherme, a utilizao do disco arranhado combinada com outras ferramentas.
Porm, em ambos os casos, o que se busca um sentimento de exasperao um
sentimento de exasperao que (por que no?) lembra a literatura de Caio Fernando
Abreu157 .
Dentro dessa rede, talvez o mais intrigante seja a chegada na Amaznia.
Desde a visita de Caio ao Rio de Janeiro, havia um indcio de intertexto com
Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Depois da cena em que Caio
ouve Dulce cantar na beira da praia, um avio cruza o cu do Rio de Janeiro e,
posteriormente, o cu de So Paulo. Ento, o protagonista aparece em seu
apartamento, de capa de chuva e peruca loira, olhando-se no espelho. O
interessante que, atravs de uma fuso, v-se o avio, diminuto, cruzar o espao
da sala. O trauma de Caio, a fuso que deixa o avio pequeno (em Coppola o
helicptero), tudo aponta para o pico lisrgico do realizador de O poderoso chefo
(The Godfather, 1972). Mas talvez o que faa resplandecer essa relao sejam os
planos da Amaznia lugar ribeirinho, coberto de vegetao, quase sempre ausente
das telas brasileiras.
157
Em Onde andar Dulce Veiga? ainda aparecem outras citaes: o cartaz do filme Nosferatu
(Murnau, 1922) aparece no quarto de Mrcia; a boate onde as Vaginas Dentatas fazem show se
chama Ginger e Fred (Fellini, 1986); em uma cena, a loira Mrcia balana os cabelos perto de um
caleidoscpio, lembrando a ao de uma replicante de Blade Runner; o bar em que Pepito Toca tem
o nome da pea de Plnio Marcos, Abajur lils.
172
158
H outra coincidncia que une estas duas pelculas: as duas foram muito difceis de serem
produzidas.
159
Para um estudo das narrativas labirnticas, ver ANTONELLIS, Raffaella. Cinema condicional/
cinema destino: os caminhos da simultaneidade. In: FABRIS, Mariarosria (et al). Estudos Socine de
Cinema, Ano III 2001. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 491-498.
173
alis, ele a mata com a arma recebida de Raudrio na fatdica noite da fuga160. Mas
Dulce logo vista junto a Caio, aconselhando-o a ficar com a filha Mrcia. Antes de
partir, ela d um beijo nele aqui seria um final em aberto, mas com o protagonista
ainda seduzido por Dulce Veiga. Por fim, Caio, correndo sob a chuva, comea a
cantar a msica-tema do filme. Nisso, Mrcia, guarda-chuva verde em punho,
aparece, entoando a mesma cano. com essa pardia de musical,
completamente artificial, que o filme acaba, entre Cantando na chuva (Singin in the
Rain, Stanley Donen & Gene Kelly, 1952), Os guarda-chuvas do amor (Les
Parapluies de Cherbourg, Jacques Demy, 1964), e Eu te amo (Arnaldo Jabor, 1980).
Assim, a transgresso da linearidade acaba em um happy-end fake, talvez uma
ironia com quem quisesse uma histria de amor num mundo onde at a Amaznia
est contaminada pela representao.
Como o personagem de Caio, que quer encontrar o real na Amaznia e
acaba no meio de um musical, Guilherme de Almeida Prado tambm finaliza seu
filme embrenhado no intertexto. At porque um dos dilogos mais contundentes que
o filme apresenta com a sua prpria obra, a comear pela escolha do elenco.
Matilde Mastrangi (Iracema) fez vrios outros filmes de Guilherme; Oscar Magrini
(Alberto Veiga) atuou em Glaura; Jlia Lemmertz (Lydia) protagonizou A hora
mgica; Imara Reis (Teresa OConnor) j aparecera em Flor do desejo; Cristiane
Torloni (Lyla Van) j protagonizara Perfume de gardnia; e Mait Proena (Dulce
Veiga) fora nada menos que A dama do cine Shangai.
Inclusive, a atriz do filme dentro do filme em A dama se chama Lyla Van.
Como a Lyla Van de Cristiane Torloni tambm atriz, pode-se pensar que h a
insinuao absurda de que a personagem de Torloni roubou seu nome da
personagem de Mait Proena (justamente quem interpreta Dulce Veiga). De
alguma forma, essa operao meio esquizofrnica refora um dos temas do filme: a
busca pelo sucesso e, neste caso, a disputa pelo estrelato. Assim, como no livro, o
filme no deixa de ter sua relao com A malvada, em que uma atriz acaba tomando
o lugar da outra.
160
Esse final, inclusive, no deixar de lembrar o encerramento de Corao Iluminado (1998), de
Hector Babenco: um diretor de cinema volta para a terra natal em busca do grande amor da sua
juventude e, ao encontrar uma mulher que talvez seja ela, acaba esfaqueando-a.
174
O livro de Caio Fernando Abreu foi publicado em 1990, enquanto o filme veio
tona somente em 2007. Mesmo sabendo que a realizao comeou a sair do
papel a partir da seleo do roteiro para o Laboratrio de Sundance em 2002, pode-
se investigar dois aspectos importantes desse adiamento constante do projeto.
Como o prprio Guilherme ressalta: o que era para ser um filme contemporneo,
virou um filme de poca sobre os anos 80 com um ponto de vista de hoje (ZANIN
ORICCHIO, op.cit, p.263). Ele acrescenta:
De alguma forma, me parece que a influncia destes trs aspectos pode ser
sentida na anlise acima inclusive, sempre destaquei construes cnicas que
poderiam estar relacionadas com estes fatores. Porm, parece mais salutar
investigar duas mudanas ocorridas desde o nascimento do projeto at a finalizao
do filme. A primeira delas diz respeito ao cinema. Sem querer entrar a em teses
sobre a produo cinematogrfica deste sculo, pode-se afirmar que o filme de
Guilherme de Almeida Prado se insere de maneira particular no cinema brasileiro,
oscilando entre o registro radicalmente abstrato e a contaminao generosa das
marcas populares. Seu filme pode at dialogar com as experincias de Carlos
Reichenbach (Falsa loura, 2007) e Lrio Ferreira (rido movie, 2005), mas se
distancia do cinema calcado na aproximao do documentrio, na simulao do real
e outros cacoetes de nossa poca. Guilherme de Almeida Prado faz fico.
Ao mesmo tempo, Onde andar Dulce Veiga? parece encontrar eco em um
tipo de cinema marcado no s pelas j citadas experincias estimulantes de
experimentao narrativa de Todd Haynes e David Lynch, mas tambm pelo dilogo
metalingustico apresentado por Pedro Almodvar e Brian De Palma duas
influncias confessas da prpria literatura de Caio Fernando Abreu. claro que
todos estes cineastas so muito diferentes entre si e j realizaram obras de variadas
latitudes, mas algumas comparaes poderiam ser feitas.
175
161
Alm disso, Dama da noite acontece em pleno fim de sculo, ao contrrio dos longas-metragens
analisados, cujas narrativas so ambientadas nos anos 1980.
162
Gilberto Gawronski participou como ator da montagem de Pode ser que seja s o leiteiro l fora
(Luciano Alabarse, 1983). Estreou como diretor justamente levando aos palcos a montagem de Uma
estria de borboletas, a partir de um conto de Caio Fernando Abreu. Como diretor e ator, levou
Boate Kitschnet, no Rio de Janeiro, a j citada montagem de Zona contaminada (1994). Aps isso,
continuou sempre encenando como diretor e ator peas de Caio Fernando Abreu, como Do outro
lado da tarde (1998).
163
A Enciclopdia Ita Cultural de Teatro (2007) destaca Gawronski e a verso teatral do texto
presente em Os drages no conhecem o paraso: Em 1997, estria o monlogo A Dama da noite,
adaptado do conto de Caio Fernando Abreu, encarnando a mulher que vai a um bar procura do
homem da sua fantasia. Transforma a personagem em uma figura sexualmente hbrida e dbia,
traduzindo um universo de marginalidade social. A cenografia e a iluminao englobam palco e
platia, sugerindo o sombrio e adornado ambiente de uma boate. Com interpretao frontal e
direcionada platia, o ator dirige o texto a cada espectador, sem convoc-lo participao direta.
Disponvel em: www.itaucultural.org.br (acesso em 15/09/2009).
177
164
Vale lembrar que o mdia-metragem feito para a RBS TV, A visita (Gilberto Perin, 2007), une
vrios contos de Caio Fernando Abreu, mas todos eles saram da mesma antologia, Os drages no
conhecem o paraso (1988). Em A visita, inclusive, h uma encenao de A dama da noite,
personificada por Antonio Carlos Falco (que tambm vive o travesti Isadora em Sargento Garcia).
178
pela manh, no porto. Esta imagem aparece duas vezes e contribui para o clima
hbrido do filme, pois as cenas diurnas misturam-se s noturnas com rapidez. Neste
sentido, interessante lembrar que essa elaborao narrativa combina elementos
clssicos e modernos. Por um lado, a montagem paralela entre cenas da pin up no
clube e do travesti na rua um expediente que remonta ao cinema de gnero,
aludindo possibilidade do encontro de personagens; por outro, o uso do
flashfoward um recurso muito utilizado pelo cinema moderno, como no j evocado
A guerra acabou, de Alain Resnais.
Outro procedimento moderno marcante aparece em um momento da
performance, quando a Dama se irrita e encara a lente. Ento, chega a agredi-la
fisicamente, pois a imagem se desestabiliza, e a cmera parece cair no cho. Mas
estes procedimentos modernos nunca se instalam completamente; eles convivem
com outras propostas, que do ao filme um hibridismo formal: h ecos de monlogo
teatral, performance, videoclipe, show, documentrio, e dilogo melodramtico. Toda
essa mistura, acompanhada de diversas texturas de vdeo e de pelcula 35mm
do ao filme uma multiplicidade de representaes. Alm disso, o fato de misturar
uma encenao (a performance) e realidade (as outras cenas) tambm contribui
para a criao de um filme multifacetado.
A hibridizao formal de Dama da noite parece espelhar seus personagens,
cuja sexualidade no se contenta em atuar somente em uma direo, somente de
acordo com o establishment. Assim, pode-se perceber que mesmo guardando a
diferena de proposta e abordagem o mundo radicalmente preconceituoso de
Aqueles dois parece ter ficado para trs; afinal, esta realizao feita na virada do
sculo discute a sexualidade a partir de uma sociedade mais democrtica.
Voltando cena do show, logo no incio do curta, casais se entregam a beijos
prazerosos, embalados por msica eletrnica. De repente, a filmagem em cmera
lenta empresta um ar de percepo alterada. No preciso mais do que isso para
avisar: de madrugada. Surge a voz da protagonista e logo aparece ela: careca,
olhos pintados, paets, anel, tatuagem nas costas a Dama da noite uma figura
andrgina.
A Dama inicia seu texto lembrando que, nos grupos noturnos, existem os
excludos e aqueles que fazem parte da cena, que tm um passe para a roda
gigante. Ento, v-se um DJ, torso nu, botando msica em cima de uma armao,
um verdadeiro andaime que fica acima do cho. Apenas este enquadramento j traz
179
pistas sobre como o filme trabalha sua relao com a cultura da noite. Por um lado,
o DJ visto como um smbolo dessa nova ordem noturna, em que todos se vestem
de preto (como em todas modas, as pessoas parecem iguais, sem personalidade).
Por outro lado, o enquadramento em contra-plonge endeusa o DJ, como se ele
fosse uma espcie de lder dessa tribo hedonista165.
Voltando ao filme, Dama da noite est em cima de um palco, continuando a
proferir seu monlogo. Ento, ela se atira rumo ao cho, de costas, e amparada
pela plateia. Este salto evidencia mais um passo na relao do filme com a cultura
da noite. De alguma forma, essa cultura vai espelhar uma sociedade de consumo,
uma sociedade do espetculo e assim tangencia-se um tema j presente em Onde
andar Dulce Veiga?166. Mas o curta vai permanecer ambguo em sua relao com
estas problemticas. Por um lado, a queda que lembra os vos de astros e fs de
rock em certos concertos lana um discurso crtico a um mundo em que um sonho
comum, banal, o estrelato pop; por outro lado, no h como negar um certo grau
orgistico, prazeroso, no salto e na queda da Dama. Assim, o filme parece tambm
mergulhar em certos prazeres da vida contempornea.
Ainda, h um lado teatralizado na queda da crooner sobre a plateia. A partir
dessa constatao, surge a ideia de que as pessoas da boate tanto participam da
performance quanto a assistem. Esta questo do espectador que faz parte do
espetculo outra faceta da reflexo sobre o consumo o espectador quer
participar de um evento legitimado, quer ser visto, tambm faz a sua performance.
Essa problemtica vai reaparecer quando a Dama desce do palco, e um
fotgrafo, entre outros frequentadores, se aproxima da diva. Enquanto ela diz que
no gosta de luz, o flash da cmera ilumina a cena. Ento, surge a dvida: trata-se
de um profissional que est fazendo cobertura do show ou de uma parte da
performance? Ou no h diferena? Nesse sentido, pode-se pensar que tanto o
artista quanto o jornalista que cobre manifestaes culturais (e o espectador) so
peas de um mesmo jogo de consumo uma no existe sem a outra.
Esse discurso um pouco mais crtico do que aderente cultura do espetculo
reaparece em outro instante: enquanto muitas pessoas e a Dama se abraam e se
165
Para relaes entre hedonismo e ps-modernidade, ver MAFESSOLI (2005).
166
No meu desejo fazer uma reflexo aprofundada sobre a sociedade do espetculo. Para tal, ver
DEBORD (1967). Mesmo sem abraar todas as ideias do pensador francs, considero suas reflexes
fundamentais para o pensamento sobre filmes que meditam, em maior ou menor medida, sobre a
busca do sucesso.
180
beijam, algum, com uma cmera de vdeo, filma a cena. Aqui aparecem alguns
questionamentos anlogos aos elaborados anteriormente: o sexo grupal no passa
de uma performance? A pessoa que filma est incorporada na performance? Ou ela
vai registrar a mesma para oferec-la, diluda, nos meios de comunicao de
massa? Ou o melhor parar de fazer perguntas e gozar?
Lanando essas questes, o filme de Diamante parece adotar uma postura
distante das radicalizaes tanto crticas quanto enaltecedoras da
contemporaneidade. Enquanto usa a cultura da noite para lanar questes sobre as
ditaduras do comportamento, da moda e do consumo, Dama da noite no renega o
prazer que uma boa noite regada msica eletrnica pode propiciar, inclusive para
aqueles que tm crebro.
Mas se h ambiguidade no que tange cultura da noite, o filme tambm
apresenta uma dicotomia quando aborda as relaes pessoais. Por um lado, h o
efmero, caracterizado pelo encontro casual, tpico da balada; por outro, aparece
reincidentemente o tema da busca do amor.
Ento, pode-se perceber que, em A dama da noite, amor e prazer formam
uma dicotomia praticamente inconcilivel tem-se um ou outro. Nesse sentido, o
filme ambguo no seu discurso. Por exemplo, num determinado momento, uma
garota se dirige cmera e, em tom srio, fala de suas decepes amorosas,
lembrando que a verdade de vez em quando di. Nisso, a Dama passa por ela
sorrindo, debochando e danando, como se desmerecesse os sentimentos da
garota e conclamasse os frequentadores da boate (e do filme) para a diverso.
Pensando no retrato da efemeridade das relaes, deve-se levar em conta o
fato de que a Dama nunca para por muito tempo na frente de um personagem: ela
sempre muda o interlocutor para o qual dirige seu texto. Ao mesmo tempo, em
alguns instantes, ela toca rapidamente homens e mulheres, sublinhando o carter
fugidio de certos relacionamentos noturnos. H, inclusive, um instante claramente
dionisaco onde todos danam juntos, num transe pansexual.
Mas estes prazeres efmeros no bastam Dama. Em vrios momentos, ela
reitera que busca o seu verdadeiro amor. A imagem que melhor simboliza isso o
momento em que ela, antes de ir embora, pega um castial e fala de seus
sentimentos. Assim, com uma imagem propositalmente kitsch, o filme enaltece a
busca do amor (o que reaparece nas sequncias finais).
181
sabe que o meu gostar por voc chegou a ser amor pois se eu me comovia
vendo voc pois se eu acordava no meio da noite s para ver voc
dormindo meu deus como voc me doa vezenquando eu vou ficar
esperando voc numa tarde cinzenta de inverno bem no meio duma praa,
ento os meus braos no vo ser suficientes para abraar voc e a minha
voz vai querer dizer tanta coisa mas tanta coisa que eu vou ficar calado um
tempo enorme s olhando voc sem dizer nada olhando e pensando meu
168
deus ah meu deus como voc me di vezenquando .
167
Em 1987, Caio Fernando Abreu escreveu uma crnica sobre esse tema. A mais justa das saias
fala de muitos preconceitos aos homossexuais, gerados pela AIDS. Ver ABREU (2006, p.58-60).
168
Na transcrio da fala, mantive o fluxo textual do bilhete do conto (ABREU, 1975, p.111-112). O
texto do conto praticamente idntico. A expresso de vez em quando presente no texto foi
substituda pela forma coloquial vezenquando. O bilhete do conto usa apenas uma vez a expresso
meu deus; no curta tem um ah meu deus ausente no original.
182
A partir deste texto, podemos pensar que Mario Diamante utilizou o conto
Harriet para fazer uma contraposio aos momentos efmeros embebidos de
representao da boate. A presena desta histria traz tona um universo calcado
nas relaes individuais, ntimas, evidenciando uma certa valorizao da unio
duradoura. Na dicotomia amor-prazer, o curta parece pender para o primeiro.
Mas h duas observaes formais a serem feitas sobre a utilizao do
fragmento de Harriet, a comear pela forma com que o bilhete lido. No incio, o
jornalista que profere as palavras escritas ardorosamente mo em uma folha de
caderno. Mas um pouco antes da metade do bilhete (a partir da expresso tarde
cinzenta de inverno), surge a voz de Carlos, substituindo a fala do antigo
companheiro. Este expediente no s reitera que o performer escreveu aquilo, mas
d conta de que Carlos, ali, naquela noite, naquela madrugada, j de manh, tem
seu corao em frangalhos, mergulhado na solido tpica de Caio Fernando Abreu.
Alm disso, como em Aqueles dois, Dama da noite apresenta a introduo de
um procedimento expressivo no desfecho do filme. Enquanto a narradora extra-
diegtica do filme de Amon surge no ltimo plano, a introduo de um bilhete no
curta de Diamante aparece na penltima cena. O interessante que, nos dois
casos, as palavras dos textos de Caio praticamente no sofreram nenhuma
alterao. E essas linhas atingem um poder potico peculiar nos dois filmes.
Inclusive, vale ressaltar que tal tcnica no est associada aos dilogos; pelo
contrrio, nos dois casos h uma ligao menos direta entre som e imagem, pois as
palavras no so ditas pelos personagens em cena.
J no final de Dama da noite, Carlos encontra o travesti no cais do porto. Ele
atuara na performance; o travesti, fazendo programa. No beijo dos dois, a
possibilidade de um novo amor, a possibilidade de valorizar todas as manifestaes
sexuais. um final feliz, que une garoto e garoto, garoto e garota, garota e garota
(GARCIA, 2003, p.48).
Pensando na utilizao do cais do porto, uma primeira leitura pode associar o
local como espao caracterstico de personagens marginalizados. Mas, ali, parece
haver antes de mais nada o encontro entre dois seres em um no-lugar em que as
mscaras do travesti, do performer ficam para trs. Ao mesmo tempo em que
dana com a cultura clubber, Dama da Noite oferece um vis poltico no s por
observar criticamente a moda, mas por ver com simpatia (e militar a favor de) toda
forma de manifestao sexual.
183
169
A proximidade de produo de Dama da noite e Sargento Garcia evidencia como o curta-
metragem passou a abrigar reflexes sobre homossexualidade a partir do fim dos anos 1990.
184
que rolam no cho. No fim da cena, um dos garotos, de camiseta vermelha, leva a
sua mo em direo cmera, at que a tela fica preta. Depois da tela escurecida
pela mo, passamos sequncia em que, num quartel, o sargento inquire uma
dezena de jovens, totalmente nus.
Essa passagem da infncia para a tela escura, e para uma cmera que expe
frontalmente a nudez dos jovens, leva o curta a um tom agressivo. Como lembrou
Noel Burch (1992), os filmes, para serem violentos, devem conter uma certa dose de
lirismo para que o espectador baixe a guarda. Nesse sentido, Sargento Garcia
opera exemplarmente, porque, de uma cena de carter terno, corta-se para uma
imagem que afronta o espectador. Desta forma, a transio sublinha a proposta
poltica do filme, defensor da liberdade de escolha sexual170.
Ainda, interessante destacar que o conto inicia pela cena do quartel. Ento,
essa criao de contraste entre a infncia ingnua e o momento constrangedor do
alistamento foi uma sacada interessante do roteiro.
Voltando ao quartel, diversos enquadramentos mostram jovens nus (de
frente, de costas, da cintura para cima, em travelling), sugerindo uma ligao entre o
exrcito e homossexualidade. Aqui, o filme chega a ser transgressor, pois os
militares geralmente so associados a pessoas conservadoras, que valorizam a
virilidade masculina. Por essa tica, vale a pena descrever como Marcos Breda
compe o personagem do Sargento: vestindo botas pretas, com um relho na mo,
ele caminha com passos firmes. No rosto, um olhar severo convive com o bigode
masculinizante. O personagem fala gauchs, insulta a gurizada e, fumando sempre,
chega a dar uma baforada no rosto do imberbe Hermes (Gedson Castro).
Na cena do quartel, aparece um procedimento estilstico presente em Aqueles
dois e em Onde andar Dulce Veiga?. Para expressar um pouco da vida interior do
personagem, surgem flashes rpidos de Hermes menino, sozinho, botando sal no
corpo de um caracol. Estes momentos, que indicam a solido do garoto, fazem uma
associao com a situao de Hermes ali no quartel: ele o caracol que est sendo
acossado.
Mas os flashes rpidos de Sargento Garcia tm propsitos diferentes
daqueles usados nos longas. Se as realizaes de Amon e Almeida Prado usavam
170
Um dos exemplos dados por Burch (Op. Cit., p152-155) Um co andaluz, de Buuel e Dal.
Depois de comear com um interttulo em que se l era uma vez, como em todas as histrias
infantis, surgem planos do cu, com nuvens e lua. Ento, um homem corta o olho de uma mulher com
uma navalha. Da sua maneira, um procedimento similar ao que vemos em Sargento Garcia.
185
Aqui vale lembrar que, no carro, Garcia conta para Hermes que tem trinta e
trs anos, quase o dobro do rapaz de dezessete. Como a cena cortada com
flashes que mostram o conflito com o pai, surge a insinuao de que o garoto v no
militar uma figura paterna. Alm disso, as imagens do passado mostram Hermes
prximo da me e distante do pai, numa traduo de uma situao que quase um
clich quando se aborda homossexualidade.
Depois do Sargento saber que o jovem virgem e convenc-lo a ir a uma
penso, h um flashback mostrando Hermes-criana, jogando de goleiro, tomando
um gol e sendo xingado de bicha por seus amiguinhos. Agora fica evidente a
relao do futebol e do quartel: ambos so espaos prioritariamente masculinos,
ambos so espaos em que a homossexualidade aflora, muitas vezes em seus
interstcios.
Chegando na penso, o primeiro aspecto que chama a ateno que uma
mulher est escorada na janela, fumando. O plano aparece trs vezes, sendo que
na ltima, ela acena negativamente ao ver Garcia e Hermes se encaminharem para
a casa de Isadora. Ento, com estas tomadas da janela, o curta reitera um discurso
que se ope s presses sociais que pautam a escolha sexual das pessoas.
Quando os dois entram na penso, se deparam com o travesti Isadora. Ela,
velha conhecida do sargento, faz algumas piadas com Hermes, antes de entregar-
lhes a chave de um quarto. Neste espao, aparecem elementos diferentes dos
apresentados anteriormente: a interpretao de Antnio Carlos Falco (Isadora)
propositalmente exagerada, com gestos teatrais; o vermelho toma conta do cenrio,
aparecendo nas luzes, nas cortinas e nas unhas da anfitri.
Quando o Sargento e Hermes vo para o quarto, Isadora comea a cantar
tambm de forma extravagante o bolero Que queres tu de mim. Ento, h uma
montagem paralela entre a relao sexual masculina e a cantoria de Isadora. O
exagero chega a ponto dela aparecer embaixo dgua, sendo que seu cantar
reproduz apenas a melodia e faz com que surjam bolhas na gua171.
Aqui certamente h uma representao saturada de falsidade. Inclusive, este
uso do fake talvez quebre um pouco o calor da relao entre Garcia e Hermes.
Neste sentido, Sargento Garcia evidencia como complicado elaborar a transio
entre momentos realistas e instantes exagerados, principalmente quando o tom
171
evidente que podemos interpretar a imagem de Isadora embaixo dgua como representao da
relao sexual entre o Sargento e Hermes.
187
preponderante mais prximo da vida como ela . Assim, se Dama da noite sai do
artifcio cheio de plumas e paets, e aterrissa sem turbulncia em um confronto
amoroso ntimo, Sargento Garcia inicia prximo do corpo, do desejo e do cheiro dos
personagens, mas acaba entrando no fake de maneira um pouco questionvel.
Por outro lado, essa utilizao do fake traz cena uma riqueza de
hipertextos. Primeiramente, o prprio nome da travesti, Isadora Duncan,
homenageia a bailarina, que, por seu comportamento rebelde, um cone gay172 . Ao
mesmo tempo, a presena do bolero celebrizado por Altemar Dutra, no incio dos
anos 1960, arma diversas relaes. Por um lado, Isadora cantando Que queres tu
de mim j presente no conto, publicado em 1982 transcende a relao com o
brega, pois como as vrias apropriaes do melodrama expe sentimentos que
muitas vezes ficam escondidos. Nesse sentido, a msica sublinha a perda da
virgindade de Hermes e numa subverso da letra original faz associaes com
desejos homoerticos173.
Como o filme foi realizado no fim dos anos 1990, impossvel no fazer a
associao entre a utilizao do bolero em Sargento Garcia com a valorizao deste
estilo musical no cinema de Pedro Almodvar. Presentes em Labirinto de paixes
(1983), A lei do desejo (1987) e De salto alto (Tacones lejanos, 1991), os boleros
destes filmes geralmente acentuam o carter melodramtico das realizaes do
cineasta espanhol e muitas vezes embalam as relaes (ou tenses) entre
personagens homossexuais e transexuais.
Depois da transa com o sargento, Hermes aparece em uma praa,
contemplando vrias esttuas. Ento, cita uma srie de personagens da mitologia
grega: Zeus, Jpiter, Atlas, Posseidon, Netuno, Afrodite, Vnus, Mercrio e Hermes.
Da, ele se diz o mensageiro dos deuses, ladro e andrgino. Neste momento, fica
evidente que o nome do personagem baseado na cultura grega: na mitologia,
Hermes um ladro que acaba expulso do Olimpo. Ainda, depois de ter uma
relao proibida com Afrodite, foi pai de Hermafrodito aquele que ficou conhecido
por ter dois sexos. Mas talvez, mais do que estabelecer essas relaes, o filme e o
172
Alm de ser apontada como criadora do bal moderno, por ter criado coreografias at para a
msica clssica, Isadora Duncan (1878 1927) foi rebelde em sua vida pessoal. Depois de um
relacionamento heterossexual, casou-se com um poeta gay, Serguei Yesenin, e foi amante da atriz
Eleonora Duse. Para outros apontamentos sobre a vida de Isadora Duncan, ver RODRIGUEZ (2007).
173
Para diversos usos do bolero em manifestaes culturais, ver KNIGHTS (2006). Uma das
observaes da autora que os pronomes dos boleros geralmente possibilitam que eles sejam
cantados por pessoas de qualquer preferncia sexual.
188
174
Justamente por travar este dilogo, o filme constri um intertexto com Jean Cocteau e sua obra
banhada de helenismo.
189
Comeo por dois filmes de Max Ophuls realizados no incio dos anos 1950.
Representantes da ltima fase do diretor alemo175, estas pelculas so
fundamentais para a reflexo sobre as possibilidades expressivas do filme de
esquetes. Conflitos de amor (La ronde, 1950), a partir de uma pea de Arthur
Schnitzler, e O prazer (Le Plaisir, 1952), adaptado de contos de Guy de Maupassant,
so obras com engrenagens narrativas inspiradoras, ambientadas no final do sculo
XIX. Nas duas, alm da cmera movedia, se destacam as reflexes feitas sobre a
representao do narrador, sobre aquele que conta a histria.
175
A ltima fase de Ophuls compreende quatro produes realizadas na Frana. Alem dos filmes
citados no texto, ele realizou Lola Monts (1955) e Desejos proibidos (Madame de..., 1953).
194
176
Inicialmente o projeto de Ophuls no previa a adaptao de O modelo, mas sim de A mulher de
Paul. A mudana, segundo BEYLIE (p. 197) foi causada por questes de oramento.
177
Traduo e adaptao do autor para: Lon a affaire plutt un tryptique tel quen peignaient les
artistes du Moyen Age et dans lequel volets droits et gauches rpondent symtriquement au panneau
central.
178
O contraste entre a jovialidade e a velhice, entre a aparncia sedutora e o rosto real depauperado
chega a lembrar A bela e a fera (La Belle et la Bte, 1946), de Jean Cocteau. S que, em Ophuls, o
personagem traz em si os dois opostos.
195
Ento, um dos temas caros de Ophuls vem tona: a decadncia, o contraste entre
um passado opulento e um presente melanclico179.
Se as diferenas entre o original de Maupassant e o roteiro de Ophuls e
Jacques Natanson j foram apontadas por Francis Vanoye (Op Cit, 148-150), cabe
sublinhar alguns aspectos. O episdio de Ophuls basicamente dividido em duas
cenas: a do baile e a do quarto. Ao contrrio do que escreveu Maupassant, os
roteiristas no colocam o personagem em um baile de fantasias, mas sim em um
evento onde o nico mascarado o protagonista, como que sublinhando a j citada
decadncia180. J na segunda cena, ocorre o oposto. Na casa do desacordado, o
mdico basicamente ouve a histria contada pela esposa resignada ela conta no
s como aguentou por anos as traies do marido, mas como a mscara a arma
dele para tentar driblar o tempo e a inrcia amorosa. Como j apontado pelo prprio
Vanoye, esta postura da adaptao colocar em cena um personagem basicamente
ouvindo no deixa de ser uma forma de colocar em cena a figura do espectador;
no caso, personificado na figura do mdico que escuta. Nesse sentido, esta relao
talvez seja uma forma de fazer com que o primeiro episdio do filme a exemplo do
ltimo oscile entre o retrato da paixo e a observao metalingustica.
O episdio que fecha o filme, O modelo (Le Modle), tem vrias
particularidades, a comear pela presena de um personagem que conta a histria.
Ao lado de outro homem, este narrador aparece na praia, relatando fatos sobre um
conhecido que est prximo deles, ali ao lado, na areia, mas no aparece, situa-se
fora do enquadramento. A partir de um flashback, surge a relao tempestuosa entre
um pintor e sua modelo. Primeiramente, ele se apaixona por ela, fazendo de tudo
para ser correspondido. Depois, eles passam a viver juntos at que ele a
abandona, um pouco entediado com a vida conjugal. Ela faz de tudo para ach-lo e
provar o seu amor. Por fim, ela encontra-o, morando justamente na casa do
personagem que conta a histria. Este, inclusive, pede que ela desista.
Ensandecida, ela ameaa se atirar pela janela. Como ele ainda no acredita no
desespero amoroso da moa, ela se joga. Ento, o filme volta a mostrar a praia. O
179
Esse contraste entre presente triste e passado feliz pode ser visto tambm em Lola Monts e, de
certa forma, em Carta de uma desconhecida (Letter from un unknow woman, 1948).
180
Alis, a vivacidade do personagem em sua entrada no baile reiterada pela direo: o local do
baile enorme, dois andares, p direito altssimo. H gente por todos os lugares. O personagem
mascarado entra e a cmera simula o xtase do homem velho mergulhado em uma atmosfera de
flerte em movimento constante, a cmera faz corridas verticais e horizontais, criando um sentimento
de alucinao. no meio deste desvario que o personagem sente-se mal, cai e naufraga.
196
homem finaliza a histria e finalmente o espao off: um homem leva uma mulher em
uma cadeira de rodas. Ele finalmente acreditou nela. Algumas pipas voam no ar os
dois vagam pela beira-mar. Uma imagem estonteantemente triste.
J em A penso Tellier (La Maison Tellier), Ophuls toma por base um conto
centrado em um dos temas favoritos de Maupassant: a prostituio. Primeiramente,
aparece o discurso de que existe uma ligao univitelina entre sociedade e bordel. O
ritual masculino de relao monetria com o sexo oposto visto como uma
decorrncia natural da vida em famlia esta sim, talvez problemtica. A tal
decorrncia natural ressaltada quando a penso permanece fechada por um
tempo e os homens parecem agressivos, perdidos. A segunda parte da histria
explica a luz apagada da penso: as prostitutas tinham viajado para o interior, para
participar da primeira comunho da sobrinha da cafetina-chefe. Como sintetiza
Harold Bloom:
181
Alis, chama a ateno que no filme a casa da Madame tenha o nmero trs. Seria uma aluso ao
trptico?
197
inspiradora para uma narrativa como a que irei criar centrada em contos, muitas
vezes vividos em ambientes fechados.
Nesse trptico, que oscila entre tragdia narrativa leve tragdia, todos os
episdios se unem pelo discurso sobre o prazer. Quase sempre relacionado a
momentos efmeros a dana no baile, o sexo dos namorados, a satisfao da
clientela da casa de tolerncia , o prazer parece destinado a sumir da vida dos
personagens.
Ao evidenciar que Ophuls se afasta de Maupassant, tanto por sabotar a
origem naturalista dos contos em prol do seu barroquismo cinematogrfico, como
por alterar o olhar sobre as relaes humanas, Beylie sintetiza a viso do filme:
Para todas as idades o prazer coisa fcil, mas se ope quase sempre
verdadeira felicidade... a felicidade uma pacincia, no um turbilho de loucura
(Op. Cit., p. 85)182 possvel acrescentar ainda que Ophuls enfatiza o carter
trgico deste aspecto da condio humana. Nesse sentido, no custa lembrar que o
filme inicia com um homem danando loucamente e acaba com outro levando uma
mulher em uma cadeira de rodas. De Paris, da cidade, para a praia, para o mar.
Independente da poca e do local, a questo a mesma.
Outro aspecto relevante de O prazer a introduo do prprio Maupassant no
filme. Um ator simula a voz do escritor nos dois episdios iniciais; j no terceiro a
apario mais complicada. Ele concede que um cronista relate os fatos em seu
lugar. Nesse sentido, pode-se encarar o homem que conta a histria do pintor como
a corporificao do escritor. Essa interpretao ganha flego porque Jean Servais,
que faz a voz de Maupassant nos primeiros episdios, interpreta o contador da
histria. Pensando sobre o efeito desta estratgia, Mxime Scheinfeigel (2008, p.69-
70) destaca que em nenhum momento Ophuls relaciona diretamente o escritor com
o personagem de Servais. Ao mesmo tempo, o ensasta lembra que, no incio do
relato, o espectador pensa que o cronista apenas conta a histria, mas na verdade
ele tem papel preponderante nela. Mais do que isso, de certa forma, ele que
impulsiona o ato da modelo. Ao tentar acalmar os nimos da moa, o homem fala
que o pintor se casar com outra mulher por exigncia da famlia. Ento, depois da
182
Traduo e adaptao do autor para: Pour tous les ges le plaisir est chose facile, mais
contrecarre presque toujours le vrai bonheur... la bonheur est une longue patience, non une
tourbillonnante folie.
198
183
Alm de associada com as operaes metalingusticas j evidenciadas, a autorreflexividade pode
ser vista na utilizao da cmera que passa de um cmodo para outro, sublinhando a filmagem em
estdio.
184
Para Scheinfeigel, a proposta de Ophuls em associar o narrador a algum morto traz a ideia de
que o filme busca ressuscitar um fantasma. Por essa tica, o ensasta chega a comparar o filme com
Crepsculo dos deuses (Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder.
185
A primeira adaptao do escritor austraco ocorrera em Liebelei (1932), dezoito anos antes.
interessante que Ophuls fez uma verso francesa da pea, com o mesmo roteiro: Une histoire
damour (1933).
199
186
Para o espectador brasileiro, impossvel no lembrar dos versos de A quadrilha, de Carlos
Drummond de Andrade.
200
187
Essa cena parece antecipar em cerca de trinta anos a autorreferncia sem choque do cinema
ps-moderno.
201
Nesta cena, o personagem tambm canta, contracena com a prostituta, que surge
no carrossel, volta a falar com o espectador, e ainda bate claquete para anunciar o
primeiro segmento do filme: a prostituta e o soldado. De pronto, j se entende que
a metalinguagem faz parte do filme e que existe um personagem que representa
uma espcie de demiurgo, que no deixa de aludir funo de diretor.
Ao estudar o filme, Willian Karl Gurin (1988, p.11-12) tratou basicamente
deste personagem. Para ele, o animador funciona, num primeiro nvel, como uma
ferramenta que possibilita a Ophuls abandonar as cenas de amor, sem ter que
mostr-las. paradigmtico o momento em que a atriz e o conde esto embebidos
em carcias, e a cena interrompida. Ento, v-se o meneur de jeu com uma
tesoura na mo, cortando uma pelcula e dizendo: censurado. Mas Gurin tambm
lembra que o personagem se dirige platia, afirmando ser a encarnao do seu
desejo de tudo conhecer. Neste sentido, ele encarna Mefistfoles, enquanto ao
espectador sobra o papel de Fausto. Assim, o diablico narrador pode entrar e sair
de cena para mostrar ao espectador a verdade:o sexo mais forte que o amor, o
casamento uma inveno burguesa fadada ao fracasso, o desejo rompe barreiras
sexuais e culturais. Tudo ao som de valsa. Tudo se passando na Viena de Sigmund
Freud, Gustav Mahler, Gustav Klimt e Arthur Schnitzler188.
A utilizao do meneur de jeu e a presena de Maupassant fazem com que
Conflitos de amor e O prazer tenham forte carter metalingustico. Durante nosso
passeio por narrativas plurais, esta autorreflexividade aparecer de maneira similar,
quase como brincadeira, em No estou l, de Todd Haynes, e de maneira mais
agressiva, nos multiplots de Michael Haneke, que questionam ainda mais
diretamente a representao apresentada ao espectador. Ao mesmo tempo, a cena
inicial de Conflitos de amor lembra que outros filmes tratados aqui tambm iniciam
com um personagem falando para a cmera, como Barril de plvora (Bure Baruta,
1998), de Goran Paskaljevic.
188
Para uma introduo ao mundo cultural de Viena na virada do sculo XIX para o XX, ver: BADER,
Wolfgan. ustria, Viena, Schnitzler. In: SCHNITZLER, Arthur. Contos de amor e morte. So Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 7-22.
202
Saio do sculo XIX, abandono Paris e Viena, e chego no fim do sculo XX, e
aporto em cidades no to charmosas. Barril de plvora e Ainda orangotangos
(Gustavo Spolidoro, 2007) se passam, respectivamente, em Belgrado e Porto
Alegre. Mesmo separados por nove anos, os filmes guardam uma atmosfera comum
de insanidade a morte, a violncia, convivendo com exploses de afetos. Em
termos narrativos, os filmes chamam a ateno por guardarem caractersticas tanto
do registro episdico como do filme-coral.
A partir da estratgia de um personagem invadir a cena seguinte, presente
em Conflitos de amor, pode-se desembocar em Ainda orangotangos (2007), de
Gustavo Spolidoro. Neste filme, quem faz a ligao entre os esquetes a prpria
cmera. Rodado em plano-sequncia, o longa, inspirado livremente em seis contos
do livro homnimo de Paulo Scott (2003), traz uma srie de situaes que ocorrem
durante um dia na capital gacha.
A partir do material de divulgao (AINDA ORANGOTANGOS, 2007), chega-
se a uma sinopse do filme: Durante 14 horas de um dia quente de vero, quinze
personagens transitam pelas ruas e prdios de Porto Alegre. Enumerando as
cenas: no metr um japons desespera-se ao ver que sua namorada morreu; em um
nibus, duas garotas beijam-se e acabam numa confuso com um homem vestido
de Papai Noel; uma das garotas entra em um prdio e discute com o porteiro, que
est preocupado com a possvel falta de cerveja; num dos apartamentos do edifcio,
uma mulher nua foge de pombas ameaadoras; no apartamento da frente, um
homem e sua namorada tatuada danam e bebem perfume at que ela desmaia; no
mercadinho em frente ao edifcio, um garoto tenta comprar remdio, mas o
atendente no vende fiado; na rua, com o dia escurecendo, um escritor insano acha
que um velho seu editor e obriga-o a ficar com seus originais; em uma festa de
debutante, cheia de evanglicos, o ex-namorado sequestra a garota com uma
granada na mo. Ela acha tudo timo, eles se beijam e partem em um carro. Um
203
189
Entre as duas partes citadas, o material de divulgao revela um olhar bem-humorado para as
aes que descrevi objetivamente: Japoneses vo ao limite no metr. Garotas se beijam em um
nibus enquanto discutem futebol e o saco do Papai Noel. O porteiro de um grande condomnio s
pensa na cerveja no fim do expediente. Uma mulher nua foge de pombas dentro de seu apartamento.
Ao lado, um quarento e sua garota tatuada, na falta de coisa melhor para fazer, bebem perfume. No
mercadinho um garoto tenta comprar aspirinas, mas o atendente lhe d balas. Um grotesco escritor
obriga um velhinho a ser o editor de uma obra sobre as 193 espcies de smios j descobertas no
planeta. Em uma festa evanglica de 15 anos, no Deus quem marca presena, mas sim o
professor de canto da debutante.
204
190
Essas duas unidades no apareciam na obra original. No livro de Paulo Scott, por exemplo, o trem
que virou o metr da capital gacha, o Trensurb passa pela Argentina, com um casal de
namorados que no so japoneses e esto literalmente morrendo de frio. Mas h um beijo de morte
com sangue saindo da boca. Isso ficou no filme.
205
191
Todas essas caractersticas podem ser encontradas como caractersticas das network narratives,
em Bordwell (Op. Cit., p. 189-250)
192
H outras diferenas entre livro e filme. Enquanto a violncia do livro mais crua e os contos
misturam espaos de vrias classes sociais, o filme tenta relacionar agresso com escracho e une
todas as situaes num resumido permetro urbano.
206
193
Sem os crditos finais, o filme tem cerca de 76,5 minutos.
194
Uma das ideias da adaptao foi justamente concentrar as aes em menos de vinte e quatro
horas. O roteiro foi assinado pelo diretor, pelo teatrlogo e por Filip David e Zoran Andrc.
195
Traduo e adaptao do autor para as legendas em ingls do filme: Why are you laughing at
me? You think its funny? That Im different? That Im mutilated? Is that why you have come? Tonight I
will be fucking you, kids.
207
196
As long as were alive and healthy!.
208
pronto para sair dgua e acabar com a farsa. Mas neste momento o namorado d-
lhe uma paulada na cabea. Mane afunda.
J um personagem que aparece apenas em uma situao um velho, que
caminha com dificuldade, e cruza frente do taxista. Os dois acabam bebendo em
um bar e, depois de um dilogo de quase dez minutos, a histria pregressa
revelada: o velho era policial e, numa ronda, tinha flagrado o chofer com uma garota
dentro de um carro. Para demonstrar autoridade, aplicara golpes de cassetete no
meio das pernas do motorista. O homem ficou estril e, para se vingar, espancou o
velho a marteladas. Por isso, ele mal anda, toma cerveja de canudinho, tem um
aparelho no pescoo, e no consegue ir ao banheiro sozinho. Depois do taxista
contar que o autor do espancamento, o velho nada faz. No final, os dois ainda
acabam um pouco reconciliados.
Outra sequncia longa (mais de oito minutos) acontece entre dois boxeadores
amigos. Os dois comeam treinando com o saco de pancadas. Ento, o mais forte
conta para o mais franzino que dormiu com a mulher dele e ficou com aquilo na
cabea por vinte anos. O outro responde que no tem problema mulheres so
mulheres. Mas os dois comeam ligeiramente a se agredir com o saco.
Posteriormente, eles passam para o ringue depois do menor contar que
envenenou um animal do amigo, eles se agridem at sangrar. O maior chega a tirar
a luva para golpear o companheiro. Logo depois, o maior retorna ao ringue com
duas cervejas. Enquanto bebe, segurando a garrafa nas mos, o outro usa as luvas
de boxe para segurar o vasilhame. O menor, ento, conta que tambm tinha
transado com a mulher do amigo. O maior ri, fica tenso, encara o outro, mexe na
garrafa, como se fosse aplicar uma estocada. A sequencia progride no banheiro. O
menor conta que pai do filho do amigo. O maior nada faz. At que fica sabendo
que o parceiro j sabia do seu caso com a mulher dele. Ento, o homem pega a
garrafa e mata o outro a golpes.
Mas alm das cenas longas de dois personagens, Barril de plvora aposta em
uma espcie de efeito curto-circuito, ao mostrar acontecimentos que vo se ligando
a outros como qu por acaso, quase num ritmo de fluxo de conscincia. No incio do
filme, um jovem bate no carro de um homem. Este homem fica furioso, vai at a
casa do adolescente e, ensandecido, arruna o local, junto com um conhecido. Ele
nunca mais visto e o adolescente abandona a cidade em um trem. Neste trem, ele
ir cruzar com o boxeador que, minutos antes, havia fugido de txi, depois de ter
209
Uma das formas de unir histrias distintas, que tm como ponto comum uma
determinada temtica, a utilizao de uma estrutura narrativa que mostra relatos
de maneira intercalada sem que eles se encontrem. Um exemplo deste tipo de
organizao pode ser encontrado justamente em uma adaptao de contos. Guerra
conjugal (1974), de Joaquim Pedro de Andrade, baseado em Dalton Trevisan,
197
Traduo e adaptao do autor para: Jai tenu a montrer qui chacun personnage recelait une part
dhumanit, des failles, des zones dombre, une certaine tendresse.
211
198
interessante recordar a gnese do projeto. Em entrevista a Alex Vianni (concedida em 1983,
publicada em 1999), o realizador lembra que, depois de Os inconfidentes (1972), seu projeto era
filmar As minas de prata, de Jos de Alencar, mas o oramento era muito alto: No havia
possibilidade financeira de fazer As minas de prata. Me propuseram um filme alternativo, barato, aqui
no Rio. Eu estava precisando filmar e propus uma histria baseada em contos do Dalton Trevisan,
Guerra conjugal, do qual fui produtor executivo junto com o Luiz Carlos Barreto, isso em 1975. O filme
foi bem de pblico e de crtica, e com ele ganhei outro prmio Air France. engraado, porque um
filme sobre a feira, e intencionalmente feio, porque trata da feira moral (VIANNY, 1999, p. 261-
262).
199
Joaquim Pedro de Andrade , sem dvida, um dos realizadores brasileiros mais ligados
literatura. O padre e a moa (1966), a partir de Carlos Drummond de Andrade, e Macunama (1969),
suma do modernismo brasileiro, so alguns exemplos de filmes do realizador de Garrincha, alegria do
povo (1963). A vida e a obra de Oswald de Andrade serviram a Homem do Pau Brasil (1981), e um
conto de Pedro Maia Soares serviu de base para o curta homnimo Vereda tropical (1977).
200
A data de 2008 refere-se ao lanamento do DVD do filme. A declarao foi tirada do encarte, mas
no h indicao da data em que ela foi feita, nem da fonte de onde foi retirada.
212
No caso do Dr. Osris, ele protagoniza oito segmentos, numa jornada que
pode ser dividida em trs unidades: as duas primeiras sequencias do escritrio, em
que ele tenta tirar partido do seu poder; o caso com Olga (que inicia no escritrio,
mas transfere-se para a casa dela); e sua cena final, em que acuado por um amigo
de infncia homossexual.
As duas primeiras cenas do escritrio so variaes do mesmo tema, com
Osris cercando as mulheres que pisam no seu escritrio, seja ela cliente ou
funcionria (a primeira dura mais de dez minutos e a segunda no chega a quatro).
J o relacionamento com Olga aparece em cinco sequncias.
Primeiramente, a reiterao de cenas envolvendo estes dois personagens (e,
por vezes, o marido dela) chama a ateno para a possibilidade de que, no meio de
um filme de estrutura intercalada, surja um fio dramtico condutor. No caso de
Guerra conjugal, esta histria inicia depois dos quarenta minutos e se estende at os
sessenta e cinco minutos. Assim,o caso dos dois se torna preponderante no
segundo tero do filme. Alis, o fato da relao de Osris com Olga ser recortada em
cinco momentos, salienta a possibilidade interessante da adaptao de contos: em
uma estrutura que trabalha com a intercalao de textos curtos, alguns deles podem
aparecer inteiros de uma vez s e outros podem ser divididos em partes.
Na relao de Osris com Olga, essas cinco sequncias separadamente
nunca alcanam mais de cinco minutos de tela. Ao mesmo tempo, cada fragmento
representa uma fase da relao. O incio acontece no escritrio, dando a falsa ideia
de que haver uma terceira cena em que Osris aplicar seu golpe diante de uma
mulher. A cena comea com Osris dizendo que advogado padre, uma fala
completamente hipcrita. Olga tira os culos e mostra uma cicatriz, afirmando que o
marido bate nela. O advogado promete cuidar do desquite, e a cena interrompida.
A segunda cena de Osris com Olga separada da primeira apenas por um trecho
de Joozinho e Amlia brigando, na cama. A cena acontece no escritrio e comea
com o marido de Olga falando para Osris que desconfia da mulher, que ela
apareceu em casa com uma inexplicvel cicatriz no olho. O advogado fala para o
marido que talvez sejam s suposies, e promete intervir junto moa. Ento,
conduz o marido para fora do escritrio, e Olga para dentro. Depois de um jogo de
seduo farsesco, a mulher se entrega ao advogado, fazendo sexo oral em Osris.
Aqui h uma passagem muito interessante: enquanto Olga abaixa-se, some
do enquadramento, e vai no espao off em direo ao sexo do advogado, ele
216
201
H outros pontos em comum entre Guerra conjugal e O Casamento, como o tratamento kitsch da
direo de arte. No filme de Joaquim Pedro, destacam-se as roupas de Olga, a cama rosa que
mostra uma vagina dentada e o abuso do mau gosto. Alm disto, h a exacerbao do grotesco nos
dois filmes: em O casamento faz-se sexo perto de um aleijado; em Guerra conjugal, a nudez
prxima a uma cega. Desta forma, Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues parecem escritores prximos.
Mudando de foco, extremamente rica a relao do filme com a pornochanchada. Para um debate
sobre isso, ver AMARAL (Op. Cit., 127-177).
218
202
Michael Cunningham voltou a misturar trs histrias em seu romance Dias exemplares. Neste
livro, o escritor entrelaa a industrializao do sculo XIX, o terrorismo do incio do sculo XXI, e um
mundo ps-catstrofe ambiental. Um menino franzino, apaixonado por Walt Whitman, aparece na
primeira histria. J nas outras duas, os protagonistas so garotos que no deixam de ser verses do
primeiro.
221
que inclui imagens de todas elas paradas, pensando na vida volta-se a Nova York.
Clarissa pega um vaso de flores. Ao tocar nele, corta para o marido de Laura
pegando outro vaso e colocando sobre uma mesa. Logo em seguida, a empregada
de Virginia ajeita as flores no vaso que fica em cima de uma escrivaninha.
Esses cinco minutos embalados pela musica de Philip Glass mostram uma
astuta intercalao de cenas, que no s transmite seu carter artificial, impositivo,
mas ao mesmo tempo extrai uma beleza que parece vir do sentimento de tragdia,
de destino inexorvel, que faz com aquelas mulheres infelizes paream marionetes
do processo flmico e, por consequncia, da vida.
Durante As horas, essas transies que espelham os personagens e suas
questes continuam a aparecer, principalmente ligando Virginia Wolf e Laura Brown:
a leitora joga um bolo no lixo e, corta, para o marido de Virginia Wolf batendo com
um martelo em um tipo, preparando uma impresso; a escritora est deitada na
grama olhando para um lado, e Laura est na sua cama encarando o vazio pela
montagem, elas parecem se enxergar; Laura est saindo do banheiro, voltando para
o quarto, para reencontrar o marido com quem no quer se deitar. Depois disso, o
marido de Virginia Wolf chega na sala tambm passando por uma porta ,
perguntando porque a escritora no vai para o quarto.
A estrutura de As horas, que chega a lembrar Intolerncia (Intolerance, 1916),
de Griffith, no evidencia uma lgica geral de alternncia entre as histrias203 . Mas,
levando em conta conflitos entre os personagens, pode-se organizar o filme da
seguinte forma: os grandes choques dramticos dos trs personagens acontecem
em sucesso. Clarissa vive seu momento mais tenso logo em sua primeira cena
longa com o poeta ali afloram seus sentimentos que, posteriormente, recebero
mais injees de desnimo; depois, h o momento em que Laura encara a
possibilidade do suicdio este instante mostrado em montagem intercalada com a
cena em que Virginia Wolf decide no matar a personagem do seu livro. Por fim, a
escritora tem uma grande discusso com seu marido, enquanto espera o trem para,
quem sabe, fugir da regio. Desta forma, o filme parece fugir lgica (ou ao clich)
de unir no mesmo momento da narrativa a parte mais dramtica de todos os
personagens.
203
Alguns especialistas em roteiro, como McKee (1997, p.56), apontam o filme de Griffith como
exemplar pioneiro de multiplot. A meu ver, as oscilaes de poca presentes no painel histrico sobre
a sordidez humana deixam o afresco griffithiano mais prximo da narrativa intercalada. Independente
disso, Intolerncia um filme capital para o entendimento da narrativa plural.
222
Porm, nos seus ltimos vinte e cinco minutos, o filme empilha uma srie de
ferramentas para dar fora ao final. Para mostrar que Laura me de Richard, o
roteiro constri uma situao diferente do padro apresentado anteriormente. Ao
invs de mostrar uma das trs protagonistas (ou um companheiro das mesmas),a
cena flagra o poeta sozinho. ele que se lembra dela, agarrado a um retrato da me
que o abandonara. Menos de dez minutos depois, surge outra surpresa: o poeta se
suicida, na frente de Clarissa. E ainda h tempo para Laura Brown reaparecer na
histria e ir casa da editora, totalizando trs fatos novos. So surpresas relevantes
ou artifcios narrativos forados? Independente da resposta, no fim de As horas, a
editora Clarissa parece entender um pouco mais sobre a sua vida204.
Ainda, preciso lembrar que a abertura e o desfecho de As horas mostram a
mesma cena. O incio se passa nos anos 1940 e revela, numa hbil sequncia de
sobreposies de tempo, o suicdio de Virgnia Woolf, misturando o momento em
que ela escreve uma carta de despedida ao marido, o instante em que ele a l, e o
derradeiro autoafogamento. No final do filme, o suicdio volta a ser mostrado, em
uma cena bastante discreta. De alguma forma, esta oscilao de proposta lembra
que as experincias de montagem, que as solues radicais de adaptao, foram
concentradas no incio do filme.
As horas evoca certos filmes citados anteriormente nesse captulo. A
narrativa, que flana entre os anos 1920 e a primeira dcada deste sculo, rima com
as adaptaes que Ophuls realizou nos anos 1950 a partir de textos do sculo XIX:
quando se trata de relacionamentos humanos, amor e outros sentimentos, a
oscilao de poca no traz diferenas. Em 2001, em Nova York, Clarissa continua
carregando as questes problematizadas por Virginia Wolf no incio do sculo XX.
Outro aspecto interessante que a vida dos trs personagens contada em
um dia. Espelhando o que acontece no prprio Miss Dalloway e em outros romances
baseados no fluxo de conscincia como Ulisses, de James Joyce , As horas, o
filme, retrabalha esta noo, quase sempre explorando a subjetividade dos
personagens atravs dos enquadramentos e da montagem. Neste sentido, enquanto
204
preciso lembrar que, tanto a realizao de Daldry quanto Veneno, dialogam intensamente com a
obra de Caio Fernando Abreu. Por um lado, As horas um dos representantes do Hollywood Queer
Melodrama filmes melodramticos que enfocam relaes homossexuais, mas que tm certa
penetrao comercial, a ponto de serem indicados ao Oscar em algumas categorias. Junto de As
horas, aparecem O segredo de Brokeback Montain (Brokeback Montain, 2005), de Ang Lee, e Longe
do paraso (Far from Heaven, 2002), de Todd Haynes. Por outro lado, Veneno chama a ateno para
New Queer Cinema filmes independentes americanos que abordam livremente questes
homossexuais, como os de Gregg Araki, Rose Troche e Tom Kalin.
223
205
Chama a ateno que os trs filmes tripartidos analisados praticamente ocultam suas marcas
urbanas.
224
passam: saem os anos 1970 e entram os 1990. Por essas observaes, nota-se que
o realizador no se deteve em um determinado conjunto de textos, mas sim, pensou
em toda obra de Carver para construir o seu afresco suburbano.
A relao de Altman com Carver faz lembrar a adaptao que Joaquim Pedro
de Andrade fez dos contos de Trevisan. Por um lado, h uma grande diferena dos
filmes no s em termos estticos, mas estruturais. Em Guerra conjugal, Joaquim
Pedro compactou dezesseis histrias em trs vetores. J em Short Cuts, Altman
usou menos histrias, mas criou um leque mais amplo de personagens e conexes,
formando nove ncleos de personagens. Porm, os dois cineastas parecem ter o
mesmo conceito ao mexer com a origem literria: conhecimento total da obra do
escritor, cincia da necessidade de manipul-la, aposta na significao do trabalho
da mise en scne, e a certeza de que o resultado final o filme antes de tudo um
desejo (e um espelho) do realizador.
208
Traduo e adaptao do autor para o original: Altman and Barhydt broke the frames on the
stories and allowed the characters to affect each others worlds or not, as if to suggest that we are
both in this together and alone than we ever suspected.
209
Traduo e adaptao do autor para: La plupart du temps, le ralisateur abrge quelques scnes
e semble mme les abandonner en cours de route. En revanche, et cest l que rside la originalit du
film, le flux narratif lintrieur des pisodes est inhabituellement lent e retenu... On a finalement le
sentiment que cette ouvre fonctionne la manire dun grand corps fbrile, inquiet, en mouvement
incessant, qui pourtant se construit partir de petites squences extrmement matrises.
226
- Jerry Kaiser (Chris Penn) cuida da piscina dos mais abastados. Ele
casado com Lois (Jennifer Jason Leigh), uma atendente de tele-sexo, que exerce
suas atividades enquanto cuida dos filhos pequenos;
- Honey Bush (Lili Taylor) e seu marido Bill Bush (Robert Downy Jr.) so
amigos dos Kaiser, sendo que ela filha de Doreen. Eles tomam conta do
apartamento de uns vizinhos que vo viajar.
- Claire Kane (Anne Archer) uma animadora de festas, que anda pelas ruas
vestida de palhaa. Seu marido Stuart (Fred Ward) um desempregado que sai
para pescar com amigos e encontra uma mulher morta boiando na gua.
Para unir tal constelao, Altman usa diversas formas de transio entre
personagens e cenas. Curot (Op. Cit., 152) analisa estas passagens, iniciando pela
mais simples, motivada por aes fsicas semelhantes: no fim de uma cena,
algumas pessoas esto saindo de um lugar; no incio da seguinte, outro grupo est
entrando em outro local. Assim, a passagem por portas liga os dois momentos.
Desde j interessante perceber como a transio de Short Cuts diferente
daquela de As horas enquanto o passar pelas portas em Altman algo que fica
escondido pelo realismo da mise en scne, esta ao, no filme de Daldry,
extremamente marcada, enfatizando a relao dos personagens ou das histrias
que aparecem antes e depois do corte.
Continuando sobre a ligao das cenas, um dos instantes mais marcantes
acontece quando o garoto que fora atropelado est deitado na cama e sua me
pede que ele tome leite. Um travelling passa pela situao e vai at o copo com
lquido branco. Corta para um copo de leite que est sendo mostrado em um
programa de TV. Quem est assistindo o taxista Earl, mas atrs dele est sua
companheira Doreen (que tinha atropelado o garoto). Na TV, o locutor diz que
acidentes acontecem e que alguns so bem graves. claro que aqui fica explcita a
alienao de Doreen perante o fato do garoto se encaminhar para a morte. Mas
alm disso, juntar o leite da cena do garoto com o leite da TV insinua uma possvel
ausncia de barreiras definidas entre vida real e representao.
Outra estratgia usada por Altman, tanto para unir as cenas quanto para
elaborar um discurso sobre o mosaico social, mostrar personagens em
deslocamento, entrando e saindo de casas e bares, dirigindo pela cidade. Estas
chegadas, partidas e trajetos propem a ideia de que os personagens esto dando
voltas em crculo, perdidos em pequenos impasses, naufragados em suas
228
narrativos, passa por outras cenas j iniciadas e volta para o LOW NOTE. Ali, ao
som da mesma msica, Bush e seus vizinhos decidirem ir embora do local.
Na cena acima, Altman usa da liberdade de montagem, pois h um acmulo
de fragmentos que mostram muitas histrias em poucos minutos. Para isso, o tempo
manipulado: vrias cenas so mostradas depois do primeiro momento do LOW
NOTE, mas quando o clube aparece de novo, pouco tempo diegtico transcorreu
desde a cena anterior do bar. Esta manipulao do tempo evoca a cena do caf da
manh de Cidado Kane, em que Orson Welles mostra uma grande quantidade de
tempo diegtico em poucos minutos de filme.
Abrindo um parntese e focando no filme como um todo: a liberdade de ir e
vir no tempo tambm aparece em relao s vrias narrativas, que somem e
aparecem de maneira diversa durante o filme. Altman manuseia os pequenos
dramas dos personagens de maneira a tornar difcil para o espectador adivinhar qual
histria suceder a que est na tela. Inclusive, muitas vezes alguns personagens
ficam por um longo perodo sem aparecer. Desta forma, as relaes das histrias
no obedecem a uma lgica proporcional. Por exemplo, Paul Finnigan, o
personagem de Jack Lemmon, aparece somente no hospital onde seu neto ir
morrer. Ento, Paul reencontra o filho e desabafa, conta que traiu a me dele, em
uma espcie de grande monlogo. Depois disto, o personagem praticamente some
da narrativa210. Mesmo que este momento seja uma exceo, a construo de Short
Cuts lembra a assimetria de Barril de plvora.
Voltando ao casal Bush, interessante pensar a participao dele no todo
narrativo. Em Short Cuts, h dezessete fragmentos envolvendo um destes dois
personagens, sendo que a maioria deles inspirada no conto Vizinhos
(Neighbors, 1976). No texto de Carver, Bill e sua companheira so encarregados
de cuidar do apartamento de outro casal que mora no mesmo prdio e precisa viajar.
Nos estudos sobre este relato211, geralmente se destaca que o relacionamento dos
protagonistas, imersos em uma vida desinteressante, acaba ganhando novo impulso
210
O personagem do confeiteiro (Lyle Lovett) tambm aparece de maneira diversa dos demais.
Depois que os Finigann deixam de pegar o bolo de aniversrio do filho (ele tinha sido atropelado), o
confeiteiro comea a telefonar para a casa deles. Ento, depois da morte do garoto, os pais vo
confeitaria. Depois de uma discusso rspida, Ann Finnigan (Andie McDowell) exaspera-se em
emoo. O confeiteiro ento rev seus atos, pede que o casal no v embora, e oferece uma cadeira
para a mulher.
211
Para um resumo da repercusso crtica de Vizinhos, ver STEVEN J. MCDERMOTT, Being a Boon
for Critics, disponvel em www.storuglossia.com/blog/archives/2003_06_08_archive.html. Acesso em
01/07/2009.
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(inclusive sexual) quando eles passam a frequentar a casa dos outros. Assim, o
desfecho do conto quando eles perdem a chave do apartamento dos vizinhos
no deixa de ser irnico, pois obriga os personagens a encararem suas prprias
vidas.
No filme, a histria do apartamento no chega a ter um final. Ao mesmo
tempo, o casal no traz consigo a expresso de que as oportunidades da vida foram
perdidas; eles at parecem felizes no clube de jazz que frequentam. Por outro lado,
inevitvel perceber os problemas que eles tm: em vrias cenas, Bill tenta, sem
sucesso, transar com Honey; em outro momento, ele no hesita em tra-la.
O prprio tratamento que o filme d aos dois mostra esse desapego entre
eles: Bill um maquiador, cheio de fantasias, que gosta de provocar seu amigo Jerry
Kaiser (Chris Penn), relatando situaes erticas212. Alm disso, seu carter luntico
aparece quando ele maquia sua mulher como se ela estivesse morta, exibindo
enorme prazer em fotograf-la, ensanguentada, deitada na cama do apartamento
dos vizinhos; j sua mulher, Honey, um personagem mais enigmtico: no se sabe
bem o que ela faz, apenas que assediada pelo padrasto.
Se a situao do apartamento vem de Vizinhos, o casal Bush tambm se
envolve em situaes de outros contos, principalmente por causa da amizade com
os j citados Jerry e Lois Kaiser. Quando os quatro amigos esto em um clube de
jazz e um homem negro oferece dinheiro para transar com Louis, o texto adaptado
o conto Vitaminas (Vitamins, 1984); j o desfecho do filme, onde as duas famlias
vo acampar, e Jerry acaba matando uma garota que recm conhecera, foi
inspirado em Diga s mulheres que a gente j vai (Tell The Women Were Going,
1986). Alm disso, como mencionado, Honey Bush filha da garonete Doreen,
proveniente do conto Eles no so seus maridos (Theyre not your husbands,
1973). Por fim, outra liberdade narrativa aparece quando Honey esbarra por acaso
em um dos pescadores de Muita gua perto de casa (So Much Water So Close to
Home, 1976). Assim, pode-se perceber que Altman misturou textos de cinco contos
para dar conta do segmento dos Bush.
212
No conto de Carver, Bill contador. A mudana fez com que Bill ficasse mais prximo a outros
personagens ligados questo da representao Claire Kane, a mulher que anda pelas ruas
trajada de palhaa, a figura emblemtica desta tipologia que inclui ainda o comunicador televisivo e
a atendente de tele-sexo.Neste sentido, a mudana de profisso de Bill no deixa de ser um reflexo
da forma como Altman atualizou os contos de Carver, transferindo as aes dos anos 1970 para os
1990.
231
Voltando ao final do filme, h o piquenique dos Bush e dos Kaiser, com direito
presena dos filhos pequenos destes. Aqui, Altman mostra mais uma vez como
obter contraste de situaes, s que o faz atravs do uso do plano-sequncia e da
profundidade de campo: no mesmo plano, aparecem as mulheres junto com as
crianas, e, um pouco distantes, os maridos gaiatos, flertando com outras garotas.
No desfecho, Jerry Kaiser mata uma das mulheres, mas todos acabam
surpreendidos por um terremoto.
A meu ver, o terremoto final parece mais uma metfora das vidas
descontroladas dos personagens do que um julgamento. Por esta tica, os
helicpteros do incio tambm so uma espcie de emblema da selvageria de alguns
seres do filme. Mesmo que a interpretao seja diferente, os dois acontecimentos
servem para carimbar todos os personagens, mostrando-os como pertencentes ao
mesmo grupo.
Essa ideia de iniciar e terminar um filme com algo globalizante vem
aparecendo em outros multiplots. Se tentador afirmar que a propagao da
network narrative, dos anos 1990 para c, se deve a Short Cuts nem Altman vinha
exercendo sua veia coral , tambm sedutor lembrar que este tipo de narrativa se
transformou em algo quase banalizado213 .
Magnlia (Magnolia, 1999), de Paul Thomas Anderson, um caso relevante
para dimensionar as regras do formato. Discpulo assumido do realizador de Popeye
(1980), o diretor de Boogie Nights (1997) entrecortou a vida de nove personagens
durante 24 horas, em Los Angeles, usando um narrador no incio, um acontecimento
arbitrrio no final (uma chuva de sapos), um programa de TV e dramas familiares
para impedir que os objetivos de cada um fosse facilmente executado.
Em seu estudo sobre o filme, Bordwell (Op. Cit, p.227-233) demonstra como
Anderson trabalha com os cnones clssicos. Por exemplo, todos os problemas dos
personagens so revelados nos primeiros trinta minutos; ao mesmo tempo, depois
de duas horas de filme, todos ficam em crise. Ento, a chuva de sapos aparece para
salv-los o que mostra a diferena do terremoto de Short Cuts. Por causa deste
salvamento, alguns personagens acabam melhor do que comearam.
213
A comdia romntica Simplesmente amor (Love Actually, 2003), de Richard Curtis, talvez seja um
bom exemplo dessa banalizao. O filme mostra histrias de amor entrecortadas, com a maioria dos
personagens encontrando a felicidade no mesmo momento do filme.
232
Mas, como lembra Bordwell, o que faz de Magnlia um filme relevante que
ele chega a ser autorreflexivo, pelo uso de certas ferramentas que reiteram o
artificialismo do esquema multiplot. O momento antolgico, em que todos os
personagens inclusive o senhor desacordado na cama de hospital cantam Wise
Up, de Aime Mann, mostra que o acaso no cinema sempre forado. Ao contrrio
do prlogo que, de maneira bem humorada, conta histrias estapafrdias, tentando
mostrar que tudo pode acontecer, este trecho, tambm irnico, revela que toda a
transio cnica que muda o foco da histria de um personagem para outro, todos
os encontros casuais, so frutos de uma construo. Mas no s isso: aqui, o
artificial no apaga completamente o sentimento dos seres. Como na abertura de As
horas, a sequncia musical de Magnlia mistura autorreflexo com o decalque das
dores dos personagens. Sem medo do melodrama.
Se Magnlia e Short Cuts tm vrias diferenas nmero de personagens,
utilizao ou no de ferramentas clssicas de roteiro, estilo de filmagem214 , o
diretor alemo Michael Haneke v pontos em comum entre os dois:
Embora eu ache filmes como Magnlia e Short Cuts muito refinados e muito
bem-feitos, eles utilizam meios estticos para apresentar uma iluso de
totalidade que no existe; na realidade, as nossas impresses so isoladas.
Eu apresento os fragmentos tal como so.(SCOTT, 2008: p.116).
214
A cmera de Altman em Short Cuts sempre mais instvel e menos direta que a de Anderson em
Magnlia. Enquanto o roteiro de Magnlia parece seguir certos paradigmas clssicos, o de Altman
antes um retrato de momentos.
233
separando as aes dos vrios personagens a marca de uma narrativa que prope
um grupo de personagens marcado pela quase absoluta no interao.
Alm da incomunicabilidade entre as partes, esses filmes tambm ostentam
uma autorreflexividade, cara ao realizador de Funny Games (1997). Atravs das
imagens de TV ou da figura de uma atriz, Haneke sempre frankfurtiano cria
discursos sobre a representao, a mdia e a relao com o espectador. Por outro
lado, estes dois filmes inspiram-se, em maior ou menor medida, em notcias de
jornal (os fait divers). Em 71 fragmentos, a histria de um garoto romeno adotado
por um casal vienense repercutiu na mdia austraca; em Cdigo desconhecido,
como assegura o prprio Haneke, nada foi inventado (SCOTT, 2008: p.119). Desta
forma, estes filmes partem de uma relao direta com fatos caados no cotidiano.
Ao mesmo tempo, 71 fragmentos e Cdigo desconhecido engendram os fatos
de maneira ambgua: muitas vezes no h garantia, certeza, de que o espectador
entende exatamente o que est acontecendo. As peas podem ser juntadas, a
narrativa, a histria, formada, mas a ambiguidade marca o desfecho, que quase
sempre uma inconcluso. O final de 71 fragmentos de uma cronologia do acaso
paradigmtico. No filme, os personagens se cruzam apenas no final ou nem isso.
Na verdade, trs deles esto no banco em que um jovem surtado assassina trs
pessoas. A cena filmada de forma a no oferecer a convico de que foram os trs
que morreram; afinal, quem alvejado est fora do enquadramento. Haneke quer
um espectador ativo.
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HANEKE, Michael. 71 fragments dune chronologie du hasard. BONUS DVD. Entretien Avec
Michael Haneke ralis par Serge Toubiana. 2:31. Para Michael Haneke, a narrativa fragmentada
tem algo de musical. como na msica: voc tem um tema e um contra-tema. Ento, com esta
estrutura, eu abro um universo, uma sonata. Traduo e adaptao do autor para: Cest comme
dans la musique: vous avez a thme, vous avez a contre thme, et, maintenant, cest la structure
avec l laquelle jouvre une univers, une sonata.
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companheira fica brava e discute. O homem, ento, lhe desfere um tapa na cara. Em
uma cena, Haneke vai do carinho desmedido agressividade cruel.
Porm, existem cenas que, ao invs de mergulharem numa situao
dramtica envolvendo o conflito de dois personagens, buscam sua fora em um
plano de longa durao, que exacerba a tenso. Em 71 fragmentos, a durao
extrema conjugada com uma construo de imagem cuidadosa e uma ao
expressiva. Em determinado instante, o estudante treina pingue-pongue. A cmera
fixa mostra-o atrs da mesa, defendendo as bolas lanadas por uma mquina.
Depois do golpe da raquete, as bolas geralmente so paradas por uma rede grande,
colocada no fundo da mesa do jogo bem na frente da lente. Assim, as bolas no
deixam de, por vezes, se dirigirem cmera. Em quase trs minutos, a cmera
flagra o mesmo gesto. A repetio do cotidiano, a solido e a violncia contida do
personagem, a agressividade do prprio filme, uma srie de problemticas vem
tona. Neste sentido, o essencial de 71 fragmentos a combinao de cenas cuja
dramaticidade oriunda de propostas distintas, seja o conflito entre dois
personagens, seja a explorao dos sentimentos de personagens que aparecem
sozinhos em cena.
Outra questo importante a do acaso. Mola fundamental do filme-coral, o
acaso em Haneke parece antes de tudo responsvel pela unio dos personagens na
cena do assassinato: o senhor est no banco para falar com a filha, o segurana
(que vive infeliz com a mulher) est levando dinheiro para l, e a mulher que adota o
romeno vai efetuar um saque para proporcionar-lhe conforto. inevitvel no pensar
que o encontro dos quatro personagens no banco s ocorreu por causa do acaso.
Por outro lado, o que se percebe que, no filme, o acaso vai sendo gestado por
uma narrao onisciente que guarda essa possibilidade para o final.
J a ideia de cronologia leva a dois pontos essenciais: o uso da elipse, e fato
do filme se dividir em dias especfico. No que se refere s elipses, os pulos do tempo
algumas vezes insinuam que um fato (no mostrado e importante) aconteceu entre
dois momentos. Um exemplo simples acontece quando o garoto romeno v um
homem deixar uma jaqueta vermelha em cima de um banco. Na outra vez em que
aparece, o menino j est vestido com ela o furto foi feito na elipse. Isso aparece
de maneira mais forte nas cenas em que o casal harmnico mostrado em sua
relao difcil com uma menina recm adotada. De repente, eles j esto com o
menino romeno em casa. Aqui o relevante no s entender que eles acabaram se
236
216
Em termos diegticos, o que se v so elipses distintas, sendo que o menor pulo de quatro dias
(de 26 para o dia 30 de outubro), e o maior, de mais de um ms (de 17 de novembro para 23 de
dezembro). Ao mesmo tempo, a grande mudana do filme parece acontecer com a reportagem de TV
sobre o garoto romeno; e ela se d justamente no terceiro dia ou seja, depois da menor elipse.
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bastante oscilao ele pede dinheiro, ela lhe d comida a mulher empresta a
chave da sua casa, avisando que s por aquele dia. O menino sai dali, comendo
um lanche. Ento, joga o papel sujo em uma senhora que est sentada na calada,
pedindo dinheiro. Um adolescente negro vai at ele e exige que o menino pea
desculpas. Os dois brigam e forma-se uma aglomerao na rua. O dono de um
empreendimento, que parece conhecer o jovem negro, comea a xing-lo. Este no
desiste de aplicar um corretivo no menino, que tambm sempre responde com
violncia. Nisto, a mulher que emprestara a chave retorna para ver o que est
acontecendo. A polcia chega, captura a senhora que pedia dinheiro, e leva o negro
para a delegacia. A mulher e o garoto esto liberados.
Essa cena, que atinge alto grau de violncia, condensa os vetores narrativos
do filme de Haneke, dividido entre aqueles que ficam em Paris e os que partem: a
mulher Anne, atriz que se prepara para estrear no cinema e que vive um namoro
problemtico com um fotgrafo de guerra; o jovem negro Amadou, professor de
uma escola de surdos-mudos, cuja trajetria familiar servir para enfatizar a
discriminao social; j a pedinte deportada para seu pas, e o garoto volta para a
fazenda do seu pai217.
Novamente, Haneke exibe um catlogo de cenas que exacerbam a tenso, a
violncia, o dio, e o absurdo do estado das coisas. Algumas das propostas
lembram 71 fragmentos, como as cenas que mostram a incomunicabilidade familiar
(pai e filho praticamente no conversam na fazenda), o cotidiano banal (Anne vendo
TV), e a errncia (cmera filmando personagem que dirige o carro de costas).
Outras concepes tambm so relevantes, como a proposta de alargar o
tempo anterior e posterior ao principal da cena. Esta ideia, que busca o
desnudamento de um estado psicolgico, ou insinua uma radiografia social, pede
um olhar atento: a cmera fixa mostra basicamente a entrada de um avio. A porta,
o finger, e duas aeromoas recepcionando os passageiros. Executivos entram na
aeronave. Um pouco depois, alguns idosos aparecem. Um funcionrio do aeroporto
fala com as aeromoas. Outros executivos surgem apressados. Policiais chegam
com a mulher que ser deportada. Eles tiram as algemas da senhora. Ela embarca.
217
Cdigo desconhecido um dos tantos multiplots que mistura diversos pases e naes, como
Babel (Alejandro Gonzlez Iarritu, 2006), e Syriana (Stephen Gaghan, 2005). J em relao ao dio
tnico, pode-se citar a proximidade com Crash no limite (Crash, Paul Haggis, 2004). De maneira
geral, nos trs filmes citados percebe-se um esforo narrativo para conectar as partes. O que no
acontece na pelcula de Haneke.
239
218
A fora de Anne como personagem principal reiterada porque ela vivida pela nica estrela do
filme, Juliette Binoche.
241
Paris no vero (Haut bas fragile, 1995), de Jacques Rivette, e Lge des
possibles (1995), de Pascale Ferran, so extremamente distintos, mas apresentam
alguns pontos de contato. De maneira geral, ambos mostram personagens tentando
se entender diante da iminncia da chegada da idade adulta. Ao mesmo tempo, so
obras que mergulham nos dilemas dos personagens, sem deixar de lado um olhar
que, por vezes, desconcerta a seriedade dos conflitos apresentados. Ainda, so
filmes em que os atores colaboraram de maneira criativa, assinando o roteiro (Paris
no vero), ou emprestando suas experincias pessoais para a criao dos conflitos
(Lge des possibles), Exibidos com cerca de um ano de diferena o filme de
Ferran s estreou nas salas de cinema em 1996 , eles so representantes da
242
expressiva produo francesa dos anos 1990, baseada em histrias com mltiplos
personagens principais219.
Se o filme com trs protagonistas uma espcie de estgio embrionrio do
filme-coral, Paris no vero apresenta uma srie de questes relevantes, a comear
pela maneira como Rivette manipula a estrutura narrativa, que combina a vida de um
trio de mulheres. Esta maestria oriunda de uma carreira em que os ttulos com
mltiplos personagens abundam, como Paris nos pertence (Paris Nous Appartient,
1960)220, Lamour fou (1967), Out one (1974), e Le Bande des quatre (1989)221.
Voltando Paris no vero, o filme de Rivette parece constituir, com duas
experincias de Alain Resnais (Amores parisienses222 e Beijo na boca, no Pas
sur la bouche, 2003), o flerte contemporneo dos realizadores da nouvelle vague
no s com a comdia musical, mas com sua utilizao no flanco do filme de vrios
personagens principais. Uma hiptese provvel que os dois diretores encontraram
neste pequeno gnero um tipo de filme que rompe com o realismo de duas
maneiras. Primeiramente, porque as cenas cantadas so artificiais por natureza no
caso do filme de Rivette, isto multiplicado porque a primeira coreografia surge
depois de quase cinquenta e cinco minutos. Mas tambm porque, como
mencionado, os filmes de mltiplos protagonistas so um convite
autorreflexividade quando o diretor assume ironicamente que a narrativa fora a
barra para gerar todos os encontros dos personagens. Pensando bem, no toa
que a sequencia-sntese de Magnlia regida por uma cano de Aime Mann.
219
Margrit Trhler (2000: p.85) cita ainda Petits arrangements avec les morts (o filme anterior de
Ferran ,1994), La Vie des morts (Arnaud Desplechin, 1991), Jai pas sommeil (Claire Denis, 1994), A
la vie, la mort ! (Robert Gudiguian, 1995), Grand bonheur (Herv Leroux, 1993), Sept en attente
(Franoise Etchegaray), Os ladres (Le voleurs, Andr Tchin, 1996), Un air de famille (1996,
Cdrick Kaplisch), Le Pril jeune (1995, Cdrick Kaplish), Amores Parisienses (On connat la
chanson, Alain Resnais, 1997), La vie ne me fait pas peur (1999, Nomie Lvovsky).
220
A estreia do diretor chama a ateno por ser um dos relatos mais sombrios do ps-guerra feito
pela gerao que saiu da redao do Cahiers du cinma para o set de filmagem. Uma fauna de
personagens perdidos entre a arte e o compromisso social vivem as incertezas de um mundo que
parece no fazer sentido, parece antes gerido por um compl.
221
interessante perceber que algumas obsesses do diretor aparecem de maneira diversa neste
filme. O teatro quase sempre presente com palco e tudo aqui substitudo pelo atelier de um
personagem. naquele espao que a atuao teatral ganha fora. Outra questo a do compl sai
do mbito poltico e entra no familiar. Em Paris no vero tambm h uma espcie de sociedade
secreta. Ali, joga-se nas cartas quem ir se suicidar. Mesmo que isso nunca acontea no filme, a
inspirao O clube dos suicidas, de Stevenson.
222
Amores parisienses, de Alain Resnais, foi escito por Jean-Pierre Bacri e Agns Jaoui. A dupla
tambm escreve os roteiros dos multiplots que Jaoui realiza como diretora, como O gosto dos outros
(Le got des autres, 2000), e Enquanto o sol no vem (Parlez-moi de la pluie, 2008). Inclusive, os
dois aparecem como atores nestes e em outros filmes dela.
243
Em Paris no vero, Ninon bas, uma loira junkie que vive de pequenos
golpes em uma boate. Quando o filme comea, ela entra numa enrascada e acaba
indo trabalhar de motogirl em Paris. Louise haut, uma rica herdeira de cabelos
escuros. Depois de sair de um coma de cinco anos, ela se hospeda em um hotel,
fugindo do contato com o pai. No meio desta dicotomia morena rica-loira pobre,
aparece Ida. Ela fragile, uma bibliotecria solitria que nunca conheceu a me e
convive quase somente com seu gato. Mas h tambm dois homens: Roland, um
decorador, nos seus quase cinquenta anos, e Lucien, um jovem detetive contratado
pelo pai de Louise. O primeiro entrar numa roda de seduo com Louise e Ninon; j
o segundo, passa quase todo o filme caminhando atrs da milionria. interessante
que os homens so personagens sem passado, enigmticos e inexplicveis.
Em termos gerais, Paris no vero prope uma assimetria narrativa, que vai se
instaurando aos poucos. No incio, o filme parece a histria independente sobre trs
mulheres. De repente, Ninon e Louise viram as principais envolvidas com o
mesmo homem, inclusive. Ento, Ida torna-se mais secundria. Posteriormente, as
duas protagonistas praticamente abandonam o homem e passam a conviver
sozinhas. No final, cada um dos personagens parece ir para o seu lado. Sem
ningum. Mas no meio disto, o filme por vezes volta a Ida que nunca encontra as
outras duas, mas frequenta os mesmos lugares e acaba se aproximando de Roland.
Desta forma, a realizao de Rivette se afirma como narrativa obtusa, em que os
personagens podem sumir, e, posteriormente, voltar. Assim, Paris no vero lembra a
possibilidade de uma narrativa permanecer em constante mutao de ponto de
interesse.
Em Paris no vero, a maneira de aproximar os personagens ocorre de forma
gradativa. Primeiramente, Roland conhece Louise. Depois, ele conhece Ninon os
dois trabalham em locais vizinhos. Este primeiro momento em que o filme insinua
uma ligao entre as protagonistas acontece aos 29 minutos justamente quando
Ida comea a aparecer menos. Posteriormente, Louise e Ninon se cruzam, sem uma
conhecer a outra. Louise est indo ao atelier de Roland, sendo perseguida por
Lucien. Ninon se prepara para sair de moto para fazer uma entrega. Ento, ela
quase atropela o detetive. Depois, Roland passar a se encontrar com a loira. Da
surge a ideia de que o homem circula entre as duas e isso as conecta ainda mais.
Essa gradao no impede que o filme traga momentos inesperados: a cena
em que as duas se conhecem surpreendente. Em um bar, Ninon dana abraada
244
223
Essa utilizao lembra que um dos temas do filme a questo da filiao (biolgica,
cinematogrfica). Porm, no meu objetivo abord-la neste texto.
245
224
Traduo e adaptao do autor para: Agns (Anne Cantineau) in as articulate, sexually-liberated
postgraduate student who has an unsatisfactory one night stand with Frdric (Antoine Mathieu), a
final year student and serial womanizer, who shares a flat with Jacques (Jrmie Oler), a depressive
painter. Agns friend, Batrice (Christle Tual), has a temporary job in a Quik burger bar and is having
an unsatisfactory affair with Gerard. Frdrics friend, Denise (Isabele Olive), a former drama student
doing market research, falls in love with unemployed Ivan (David Gouier), who plays chess with Henry
e lives with Catherine (Anna Caillre), who wants a child (which he does not) and whom he does not
love anymore. The appearance of the only three to have satisfactory jobs Catherine, Emanuelle (an
actress friends of Denise) and Grard, are mostly limited to scenes with those to still have to find their
way in life.
247
225
A trilha sonora do filme recheada de clssicos dos anos 90, incluindo bandas como Portishead.
Como o filme foi originalmente feito para a TV, a produo adquiriu os direitos autorais por apenas
cinco anos. Por isso, a circulao dessa sntese juvenil de fim de sculo to restrita.
226
Traduo e adaptao do autor para: Aujourd'hui, tout le monde a peur. De ne pas trouver de
travail, de perdre son travail, de mettre des enfants au monde dans un monde qui a peur, de ne pas
avoir d'enfant temps. Peur de s'engager, d'attraper une maladie, de passer ct de la vie, d'aimer
trop, ou trop peu, ou mal, ou pas du tout. La peur est partout et partout provoque des catastrophes.
Elle s'autoalimente. Qui a peur aujourd'hui aura peur davantage demain. La premire chose faire, le
seul but atteindre : tuer la peur qui est en nous.
248
227
Essa interpretao difere daquela apresentada por TARR e ROLLET (Op. Cit., p.71). Para as
americanas, o filme de Pascale Ferran pessimista. Assim, a citao de Jacques Demy seria antes
de tudo a autopsia de uma gerao despolitizada que s consegue criar coisas a partir do que j foi
feito no passado.
249
228
Na reflexo sobre o titulo, tambm seria possvel meditar sobre o curta-metragem e sua
influncia mltipla esttica, narrativa, financeira na produo de longas. Porm, tal
questionamento parece pedir uma outra pesquisa.
250
229
Como no lembrar de Caio Fernando Abreu?
230
Ao contrrio de se dizer um jovem judeu vindo de Minessota, o reciclador do folk proclamava-se
um aventureiro, cheio de histrias mirabolantes.
231
Mesmo que os crditos do filme informem que Christian Bale interpreta dois papis (o astro em
ascenso Jack e o Pastor John), preferi trat-lo como apenas um personagem.
252
232
Essas concepes cinematogrficas so mencionadas por Todd Haynes nos extras de No estou
l. DVD. 2008. udio comentrio. As demais citaes dos pensamentos do realizador tm a mesma
fonte.
233
Haynes, Todd. Op. Cit., cap.1. 6:08.
253
234
Woody Guthrie foi um cantor e compositor americano de folk music. Ficou tambm conhecido por
usar uma guitarra com a seguinte inscrio: "This machine kills fascists" (Esta mquina mata
fascistas). Para quem no conhece o compositor e a admirao de Bob Dylan por ele, todo este
incio fica um pouco incompreensvel. Para fatos da vida de Woody Guthrie, ver KLEIN, 1999.
254
para uma famlia branca, que acaba descobrindo a falsidade de suas origens. Ele
foge dali e embarca no trem, o trem do incio do filme. E do trem, ele parte,
justamente para visitar no hospital o verdadeiro Woody Guthrie. Neste final, o
menino permanece na tela por mais seis minutos e encerra sua participao no
filme.
Essa uma amostra da forma com que o filme mescla grandes e pequenos
blocos, um exemplo de como passado e sonho tambm se misturam, uma
inspirao, um ensinamento de como mesclar personagens a unio dos sonhos
dos personagens de narrativas distintas exemplar. Outros elementos relevantes
aparecem na utilizao de palavras na tela (elemento caro a Godard), na apario
de um personagem que no fala em determinada cena (Arthur aparece enquanto
Claire l Rimbaud). Ao mesmo tempo, apesar de no ter descrito aqui, vrias cenas
de personagens diferentes so unidas atravs das msicas de Bob Dylan.
Como lembra Todd Haynes, a estrutura do filme s funciona porque todos os
personagens ocupam o passado uns dos outros e alimentam uns aos outros235.
Neste sentido, vale lembrar que no decorrer do filme a histria de Robbie e Claire
mesclada vrias vezes com os momentos do cowboy Billy como se o personagem
do ator fosse o passado do exilado, como se aquela convivncia, marcada no s
pelos desencontros amorosos, mas pelo Vietn explodindo na tela de TV, fosse
responsvel pelo desgarramento hippie do homem cansado.
A forma de No estou l a prova de que a multiplicidade de histrias no
obriga uma unidade de forma de representao; o filme do realizador de Longe do
paraso o contrrio disso, pois busca sua coerncia justamente na mistura de
estilos, temporalidades, percepes a proposta que o espectador se sinta
vivendo todas aquelas vidas ao mesmo tempo. Cada parte surge vrias vezes, com
diversas duraes e intenes sempre h tempo para incluir um delrio, uma
tergiversao, uma descontinuidade.
Para finalizar, o diretor lembra que a estrutura do filme descendente direta
da prpria musica de Dylan, mais especificamente do lbum Blood on the Tracks
(1974). Segundo Haynes, as msicas deste disco trazem a ideia de embaralhar o
tempo e colocar referncias e histrias diferentes na mesma msica, intercalando-
235
Haynes, Todd. Op. Cit., cap.9. 78:00
255
as. E isso que eu tentei fazer com a estrutura do filme236. Talvez por isso, cause
uma grande sensao de circularidade o momento em que Billy entra em um trem,
quem sabe voltando para a cidade, para a luta, para os problemas do mundo, e
encontra o estojo do violo do menino Woody. Um trem l no incio e um trem no
fim. Uma imagem documental de Dylan tocando gaita encerra o filme que mostra
que tanto o homem quanto o cinema so plurais.
com o desfecho do filme de Haynes que termino esse passeio. Ento, mais
do que respostas, este captulo ventilou diversas inspiraes para escrever o roteiro
de Morangos mofados o filme. Com certeza, no meio destas inspiraes,
apareceram diversas perguntas sobre o roteiro:
- Os contos viro apenas de Morangos mofados? Algum conto se unir a
outro? Algum conto ocupar mais do que uma sequncia estanque?
- Como sero as ligaes das histrias? Como ser a durao das cenas?
Como ser o ritmo do filme?
- Qual ser a unidade espao-temporal? O filme se passa em um dia em
Porto Alegre? O filme se passar em que poca?
- Os personagens aparecero somente em uma cena? Eles se
entrecruzaro? Durante um dia? Durante um ms?
- Como sero os personagens? Sero todos da mesma gerao?
- O filme ter apenas um registro ou misturar diversas formas de
representao? Haver algum elemento propositalmente artificial? Haver narrador?
As respostas esto no prximo captulo.
236
Haynes, Todd. Op. Cit., cap 5. 37:00. O realizador cita a cano Trangled Up in Blue para
exemplificar isso. Alis, para falar desta msica, o diretor lembra que Dylan considerava essa
composio influenciada pelas artes plsticas.
256
5.1.1 Dilogo
237
Quando as citaes de Caio Fernando Abreu referirem-se a Morangos mofados (1982),
aparecer apenas a pgina, na citao.
257
Ento, A passa grande parte da cena tentando provar para B que sua frase
uma simples constatao, que no h nada por trs dela. At que o jogo se
inverte, e B afirma que A seu companheiro. Este prontamente responde: Hein?
De alguma maneira, esse texto evocou o Teatro do Absurdo (Becket e
Ionesco), a sensao de paranoia (cara aos momentos da ditadura militar), e um dos
temas do livro: a dificuldade dos relacionamentos afetivos, a neurose que implode as
ligaes pessoais.
A primeira anotao dessa leitura foi uma pergunta: e se a cena mostrasse
apenas um dos dois personagens, com ele falando para a cmera e com as
respostas sendo omitidas?
5.1.2 Os sobreviventes
O terceiro conto narra o encontro entre quatro amigos, sendo que um deles
faz uma tentativa de suicdio. Ao mesmo tempo, a presena de um sndico que, em
determinado momento, bate na porta, evidencia a represso imposta quele grupo.
Este terceiro conto tem alguns aspectos similares ao segundo, como as citaes e a
presena da msica.
Enquanto em Os sobreviventes fala-se em fotonovelas italianas e filmes,
aqui surge um livro de Ernest Becker, A negao da morte, e uma obra francesa
sobre astrologia. Em Os sobreviventes escuta-se Chopin e a epgrafe convida o
leitor a ler o texto ao som de ngela R R; j o terceiro conto usa msica indiana e
Pink Floyd. Com essas referncias nos dois textos, evidenciou-se a necessidade da
reflexo no s sobre a pertinncia de manter estas citaes do livro, mas
principalmente acerca da manuteno de um processo to intenso de
intertextualidade.
Ao mesmo tempo, j no terceiro conto, surgiu a ideia de que Morangos
mofados o filme, deveria ser movido msica e aqui nos referimos presena
de uma coleo de canes que retratem uma poca ou estado de esprito. Tal
proposta ainda era endossada pela pujana que caracteriza alguns filmes do cinema
contemporneo que usam este recurso, como O pagamento final (Carlitos Way,
Brian De Palma, 1993), Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994), Meu homem (Mon
homme, Bertrand Blier, 1996), Boogie Nights (Paul Thomas Anderson, 1997), e
Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002).
Mas ao lado dos aspectos estticos, o terceiro conto reitera um tema que
aparece desde Dilogo: a loucura. E aqui talvez haja uma grande dificuldade de
pensar como representar este tema hoje em dia. Uma pergunta foi anotada no canto
da pgina: qual a loucura desse incio de sculo?
Um aspecto narrativo desse conto tambm evocou questionamentos. O conto
retrata o encontro de quatro amigos. S que, na leitura, percebi que dois deles
aparecem muito pouco. Ou seja, o texto passa a noo de grupo, mas centra-se
principalmente no sujeito que visa se suicidar. O problema apontado foi que tal
construo, que privilegia um ou dois personagens em uma cena de reunio de
amigos, talvez no seja muito interessante em termos cinematogrficos.
259
238
No original em ingls. A traduo seria: excelente para todos os tipos de disfunes nervosas,
paranoia, esquizofrenia, efeitos de droga...
261
5.1.8 Fotografias
239
Disponvel em: www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2001/not20010427p6912. Acesso em
15/11/2009.
265
240
No original, em itlico com fonte menor que a do resto do conto.
266
gerao, vai traando um certo otimismo. Por fim, os dois subttulos no deixam de
ser uma espcie de parfrase da msica de Belchior, Velha roupa colorida, grande
sucesso juvenil, gravado por Elis Regina no antolgico Falso brilhante (1976).
Depois dessa primeira releitura, voltei a toda (ou quase toda) obra de Caio
Fernando Abreu, estudando suas relaes com o cinema o que originou os
captulo 1 e 2. Neste retorno, alguns contos chamaram a ateno, levantando o
dedo, querendo entrar no filme. A maioria destes intrusos veio de Pedras de
Calcut. Desta antologia, cujo cunho cinematogrfico foi analisado anteriormente,
selecionei: Aconteceu na Praa XV, Paris no uma festa e Joozinho e
Mariazinha. Alm disso, Os sapatinhos vermelhos, de Os drages no conhecem
o paraso, tambm pareceu oportuno para o filme. A histria da garota que se vinga
do namorado, transando com trs homens, se mostrou interessante no s como
241
CAZUZA. Down em Mim. In: Baro Vermelho. LP. Som Livre: Rio de Janeiro, 1982.
270
enredo, mas tambm porque o tpico relato que, mesmo sendo pequeno, pode ser
fracionado em vrias cenas.
Com esses contos, passei a pensar na possibilidade de outras estruturas
narrativas, deixando de lado a ideia inicial de elaborao de quatro ncleos. Ento,
mergulhei em uma maior fragmentao, valorizando cada vez mais a forma curta
dentro de uma estrutura de longa-metragem.
A partir da, escrevi uma pequena escaleta, fazendo uma relao dos contos
escolhidos. As cenas so minimamente descritas, fazendo referncia fonte
original. Destacam-se as diversas transies apontadas na escaleta.
ELE chega em casa. ELA entende que ELE est bbado. ELA fala durante toda a
cena, e ELE nada diz. Entendemos que so amigos ntimos. As falas de ELA vm do
conto Os sobreviventes. J a ideia de apenas um personagem falar foi inspirada no
curta Bel Indiffrent (1957), de Jacques Demy, baseado em Jean Cocteau.
1. Cartela
Sobre uma cartela preta est escrito em branco:
Meu Deus
Senhor dos Oprimidos
Eu apenas te encontro
Quando tomo comprimidos
(Henrique do Valle)
2. Sequncia de crditos
Fotos de caixas de remdios tarja preta ao lado de seus respectivos comprimidos.
Os primeiros comprimidos devem ser tpicos dos anos 1970. Enquanto os crditos
passam, os remdios comeam a ficar mais atuais: Lexapro, Ritalina, entre outros.
O ttulo do filme (MORANGOS MOFADOS) aparece escrito em um comprimido
redondo todo branco.
PEDRO
A gente tem que correr mais.
ALICE
Mais?
PEDRO
Tu te atrasou.
ALICE
Cinco minutos.
PEDRO
Bem mais que cinco minutos.
ALICE
Tu liga muito pra relgio.
DBORA
Muito obrigado por terem vindo. Mas o cinema t lotado.
ALICE
Muito obrigada pelo cinema. Mas ns queramos ter vindo.
276
Todos se olham.
ALICE
Deixa a gente entrar!
DBORA
A gente no pode botar mais ningum.
ALICE
Vai se foder!
DBORA
Se vocs voltarem pro debate, podem dizer tudo isso.
ALICE
Tudo isso?
DBORA
Vai se foder!
PEDRO
Ser que a Carla Camurati tava a?
277
ALICE
Eu queria a Carla Camurati... (bate com a mo no lbio) aqui.
Os dois se olham.
PEDRO
E eu tenho alguma chance com essa dupla?
ALICE
Tu sempre bem vindo.
ARTHUR
Tu conhece a melhor ponte do rio?
FELIPE
Ponte rima com Augusto Comte.
ARTHUR
Augusto Comte rima com Mastodonte.
FELIPE
Mastodonte rima com o que eu tenho pra ti.
ARTHUR
H?
FELIPE
Eu vou pegar a veia mais bonita.
Felipe olha para Arthur. Arthur estende o brao. Felipe guarda a seringa. Tira a
camisa. Enrola o brao de Arthur. Os dois riem. A camisa de Felipe cai no cho.
Felipe tira uma mangueira de borracha do bolso. Envolve o brao de Arthur com a
mangueira. Felipe pega a seringa. Aplica em Arthur. Felipe se aplica. Os dois,
abraados, olham os faris dos carros iluminarem a Avenida Goethe.
Entra a msica Tempo, da banda Cidado Instigado.
CIDADO INSTIGADO
Hoje eu sei
o que fazer pra perdoar voc
h um motivo escondido no meu corao
que no se cansa de me machucar
e me lembrar
das coisas tolas e perdidas que voc criou
EDUARDO
Urano t entrando em escorpio.
DBORA
Adoro esta parte. Bem tropicalista.
EDUARDO
E desde quando tu sabe o que tropicalista?
DBORA
Olha s (apontando para a caixa de som). Eu vejo aquele maestro. Como era
o nome dele? (no h resposta) Meu amigo, isso tropicalista, com certeza.
Eduardo vira o rosto. V mais duas pessoas. Felipe est sentado no sof, segurando
uma melancia. GABRIELA, vinte e poucos anos, loira, culos, est acomodada em
uma cadeira, lendo A negao da morte, de Ernest Becker.
EDUARDO (gritando)
Urano t entrando em Escorpio, porra!
DBORA
Fala baixo.
GABRIELA
No lembra da ltima vez?
EDUARDO
No interessa. Urano t entrando em Escorpio. Hoje.
Os trs se olham.
FELIPE
Ele?
DBORA
Quem?
GABRIELA
Onde, cara plida?
281
EDUARDO
Urano tava na minha casa oito, a casa da morte. Eu podia morrer. Vocs no
sabiam?
GABRIELA
Alquimia, astrologia, quiromancia, numerologia. Eu tinha um amigo que
comeou com essas coisas. Essas ias. Foi internado.
Dbora vai at o som. Coloca o disco Keith Jarret at Blue Note. Eduardo tira um livro
velho da bolsa.
EDUARDO
Vocs entendem francs?
Felipe pe a melancia numa mesa. Dbora, de costas, mexendo nos discos, faz um
gesto negativo com a nuca.
GABRIELA
Eu at que entendo.
EDUARDO
Dans la dissonance, son exigence conduit linsensibilit, la duret,
lexcessif, lextremisme, au jusquauboutisme, laventure, aux
bouleversements.
GABRIELA
Eu no sei o que bouleversements.
FELIPE
Boulevard rua. Deve ter a ver com rua. Com andar muito na rua.
DBORA
Eu vou procurar um dicionrio.
282
EDUARDO
Ltre tend affirmer une volont lucide dindependence qui peut le conduire
une expression suprieure et originale de sa personalit... vocs entendem?
FELIPE (contrariado)
Claro. (com sotaque ruim) Lucide, originale. que nem portugus.
Eduardo pe uma das pernas no peitoril da janela. Abre os braos. Dbora e Felipe
puxam Eduardo. Abraam-no.
FELIPE
O que isso, Eduardo?
DBORA
Tu t muito nervoso.
FELIPE
Agora t tudo bem.
283
Felipe e Dbora deitam Eduardo em uma cama. Ele treme. Gabriela aproxima-se.
Segura a mo de Eduardo. Faz carinho. Passa a outra mo nos cabelos dele.
FELIPE
Vou fazer um ch.
DBORA
Eu vou botar aquele disco de msica russa.
Um fsforo aceso.
A gua borbulha.
SNDICO
Baixem a merda desse som! Eu no aguento mais este antro!
284
GABRIELA
O senhor me desculpe.
SNDICO
o mnimo!
GABRIELA
O senhor me desculpe, mas no vai dar pra baixar o som. (o Sndico encara
Gabriela). Achei que o senhor sabia... hoje no uma noite qualquer. (tirando
os culos). O senhor sabe que Urano est entrando em Escorpio?
PAULO GRACINDO
Ela s te procurou porque voc jovem, bonito, inocente, frgil... porque voc
no nada.
MNICA
Al. Reinaldo?... a Mnica... tudo bem... o que tu t fazendo?
REINALDO
Agora ia fazer caf. Mas no sei se tem p. E tu?
MNICA
Vamos dar uma volta?... Mas eu passo a de carro. Depois te largo em casa.
Mnica anda pela casa. Tudo meticulosamente arrumado. Revistas sobre a mesa,
livros na estante, objetos feitos por designers.
MNICA
E vir aqui? Eu tenho uma vodka tima. Tu pode trazer limo?
MNICA
E se eu fosse at a?
REINALDO (fumando)
Eu tava quase dormindo... no, no precisa desligar... eu no tava fazendo
nada mesmo... Tu t deitada?
286
MNICA
Eu tava lendo uma matria, uma coisa sobre ecologia. Dizem que se tu planta
s uma coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo... a terra, no a
coisa plantada. Qualquer coisa. Soja, sei l. E logo acaba a camada de
hmus. E logo acaba a camada de hmus, que frase bonita, n. Parece: e
foram felizes para sempre. Mas a que t o problema. Aos poucos a terra vira
deserto. E como se faz muito isso, o deserto nunca para de crescer.
MNICA (off)
Na mesma revista falam de sprays. Diz que cada apertada que tu d num
tubo de desodorante faz um furo na camada de oznio.
REINALDO
Camada de hmus e camada de oznio. Quantas camadas, hein!
REINALDO
Olha s, achei um ch maravilhoso. Tinha at bula. Mas no sei onde enfiei.
Reinaldo pe gua para ferver na cozinha. Vai para sala. Vai at uma escrivaninha.
L, vrias polaroids e diversos ingressos de shows e peas de teatro. Revirando, ele
acha um papel amarelado.
MNICA
Tu no quer que eu te ajude a procurar a bula?... que eu fiquei meio
impressionada com essa histria dos desertos...
REINALDO (off)
Desertos so desertos.
MNICA
Tu t estranho. Aconteceu alguma coisa?
Mnica pe a mo no rosto.
REINALDO (off)
Estou cansado, s isso. Quer ver o que diz a bula? em ingls. Is excelent
for all types of nervous disorders, paranoia, schizophrenia, drugs effects,
digestive problems, hormonal diseases and other disorders... (rindo)
Entendeu?
MNICA
um ingls fcil, qualquer um entende. Bom esse ch, hein? ingls?
REINALDO
Aqui embaixo diz produced in China. Drugs effects timo, no ?
MNICA
Maravilhoso.
288
REINALDO
Maravilhoso.
MNICA
Maravilhoso... Vou tirar amanh.
REINALDO (off)
Hein?
MNICA
Nada. Vai fazer teu ch.
REINALDO
J fiz. Aqui diz tambm que tem vitamina E. No essa que boa para a
pele?
MNICA (off)
No entendo muito de vitaminas.
REINALDO (off)
Qual ser a que cura os tais drugs effects? Cheirei todas ontem. Estou com
aquela ressaca moral. Sabe aquela?
MNICA (off)
No sei. Vou desligar.
MNICA
Rock brasileiro. Vou ver se me animo sozinha. Bula em ingls, ch chins. Tu
t internacional demais pra mim. Uma pena que tu no queira sair. Estou
pensando em abrir aquela garrafa de vodca.
REINALDO
Por que tu no dorme? Toma leite morno que d sono. Pe canela e mel.
Acar faz mal.
MNICA
Agora tu resolveu cuidar de mim... T bom. Tchau. At mais. Boa-noite.
Um beijo.
Eduardo olha para ela. Mnica vira o rosto. Ela caminha at a janela. Olha para o
cu. Estrelas.
EDUARDO (f.q.)
Tu gosta de estrelas?
MNICA
T quase cheia. Em Virgem.
EDUARDO
Amanh faz conjuno com Jpiter.
MNICA
E com Saturno.
EDUARDO
Isso bom?
MNICA
Deve ser.
EDUARDO
Deve ser. Esse encontro.
MNICA
Tem um cigarro?
EDUARDO
T tentando parar.
292
MNICA
Eu tambm. Mas queria uma coisa nas mos agora.
EDUARDO
Tu tem uma coisa nas mos agora.
MNICA
Eu?
EDUARDO
Eu.
MNICA (saindo)
Vou pegar mais vodka.
Mnica vai at o bar. Espera na fila. Cabeludo lhe entrega um copo de plstico com
bebida e gelo. Recebe o limo. Morde o limo. Olha para Eduardo. Os dois riem. Ela
volta at Eduardo.
MNICA
Tu tomou alguma coisa?
EDUARDO
O qu?
MNICA
Aquelas coisas que terminam com ina.
EDUARDO
No tomo mais nada.
MNICA
Eu j tomei tudo.
293
EDUARDO
Tudo?
MNICA
Cogumelo coisa do diabo.
EDUARDO
coisa do passado. Ecstasy que bom.
MNICA
Amanh vou pra Natal. E tudo vai melhorar.
EDUARDO
Eu vou pra Paris. Acho que no volto mais.
MNICA
Eu te mando um carto de l.
MNICA
No meu carto vai ter uma palmeira dentro do mar.
EDUARDO
No meu no vai ter palmeira. S mar.
MNICA
Vou beber todas. E te ver perdido no deserto, tomando sol.
EDUARDO
Tambm vou encher a cara. E te ver nadando no Sena.
294
MNICA
Vamos nos ver?
EDUARDO
Nas nossas bebidas.
MNICA
Isso um encontro ou uma despedida?
EDUARDO
Sabe aquele papo de linhas paralelas?
MNICA
Tu nunca tomou nada que termina com ina".
EDUARDO
No tomei. Eu aspirei.
MNICA
Por que tu no me convida pra ir pra tua casa?
EDUARDO
Tu quer ir pra minha casa?
MNICA
No.
EDUARDO
Por que no?
MNICA
Me beija.
EDUARDO
Eu preciso ir.
ESQUADRILHA DA FUMAA
Aquele cogumelo que tomei
Nunca, nunca mais esquecerei
Foi numa noite de luar
Que eu comecei a viajar
Entrei numas de horror quase pirei
Pensei que nunca mais fosse voltar
Curti um visual muito maluco
Vi mil estrelas e planetas a rodar
296
No balco, Felipe, de bermuda e colar havaiano, toma usque. Ao seu lado, vrias
garrafas de cerveja e uma de vodka. Ele observa MARCO, trinta e cinco anos,
danando no outro lado do salo. Marco sorri para Felipe. Marco, tanga vermelha,
carteira de cigarro presa na tanga, aproxima-se, danando. Artur, em um canto,
observa os dois.
Marco chega frente de Felipe. Felipe comea a danar. Os dois esto muito
prximos. Marco pe a mo no rosto de Felipe.
FELIPE
Tu gostoso.
MARCO
Qu?
MARCO
Eu te quero.
FELIPE
Eu te quero.
297
MARCO
Agora.
FELIPE
J. Neste instante imediato.
MARCO (sorrindo)
Neste instante imediato de terceiro grau.
FELIPE
O figo no uma fruta. uma flor que abre pra dentro.
MARCO
Qu?
FELIPE
O figo uma flor.
FELIPE (interrompendo)
No.
Marco sorri.
FELIPE
No. No me d na mo. Pe na minha boca.
danando, empurram os dois. Eles danam tambm, seguindo o fluxo das pessoas.
Beijam-se.
O Parque da Redeno todo distorcido, visto por um olhar lisrgico. Marco e Felipe
caminham rapidamente, abraados.
MARCO
Pliades?
FELIPE
Parece uma raquete de tnis no cu.
Marco olha para as estrelas. Senta no cho. Pega a carteira de cigarro presa na
tanga. Da carteira, tira uma nota de um dlar, um saquinho de cocana, uma gilette e
um espelhinho. Felipe senta. Marco bate quatro carreiras. Cheira duas. Passa o
espelhinho e a nota para Felipe. Felipe cheira. Uma vez com cada narina.
MARCO
Eu no quero saber o teu nome.
FELIPE
Eu no vou perguntar o teu.
MARCO
Se tu quiser, eu digo.
FELIPE
O que tu mentir eu acredito.
299
Marco aproxima-se de Felipe. Beija o corpo dele. Coloca Felipe de bruos. Deita em
cima. Felipe abaixa a bermuda. Transam. Ouve-se gente se aproximando.
Uma turma de jovens (no se identifica nenhuma tribo especfica) cerca o casal. Na
turma, se destacam o LDER, loiro, vinte e poucos anos, e JOVEM MORENO, da
mesma idade.
LDER
Vidie well, little brother. Vidie well.
FELIPE
No!
O lder continua agredindo Marco. Ele fica desacordado. Felipe comea a vomitar.
JOVEM MORENO
Puta Merda!
300
LDER
Vmo embora!
LDER
Odeio bicha sensvel!
CAZUZA
Eu no sei o que o meu corpo abriga
Nestas noites quentes de vero
E nem me importa que mil raios partam
Qualquer sentido vago de razo
Eu ando to down
Eu ando to down
Alice vomita.
Pedro vomita.
Arthur vomita.
Eduardo vomita.
Mnica vomita.
Gabriela vomita.
301
CRISTIANE
Desculpa, mas tuas meias to trocadas.
CRISTIANE
Pra falar a verdade, no me importo com as tuas meias.
VITOR
No foi o que tu disse?
302
CRISTIANE
O que eu quero dizer que hoje eu no t a fim de fazer o teu jogo. Desculpe
se eu fui agressiva. Eu aposto nas ameixas.
Cristiane tira um cigarro da bolsa. Remexe mais um pouco. Vitor estende o isqueiro.
Cristiane tira uma caixa de fsforos da bolsa. Acende o cigarro.
CRISTIANE
Eu no quero ficar aqui discutindo por que eu disse que tu t com as meias
trocadas. Entendeu?
Vitor sorri.
CRISTIANE
Aconteceu uma coisa. Importante.
VITOR
Me conte.
CRISTIANE
Ontem eu dormi at as trs da tarde de hoje. E quando eu acordei, fiquei
olhando para o ventilador de teto.
CRISTIANE
Tem uma coisa dentro de mim que fica dormindo quando acordo.
304
VITOR
No que tu t pensando?
CRISTIANE
Reunio danante, cuba-libre. Aquela brincadeira besta que a gente fazia
quando era guria.
CRISTIANE
Faz tempo que eu no bebo. No dano, no brinco. Ser que ainda existe
reunio danante? E cubra-libre? E aquela brincadeira, ser que algum
ainda brinca?
CRISTIANE
Era uma sacanagem boba, juvenil. Uma pessoa tapa os olhos da gente com
um leno. Depois aponta para outra pessoa e pergunta: tu quer pra, uva ou
ma?
Vitor levanta-se.
Cristiane e Vitor voltam a se sentar no mesmo lugar, como se nada tivesse ocorrido.
305
CRISTIANE
S que a gente d um jeitinho de falar com a pessoa que pergunta. Da,
quando ela aponta algum que a gente t a fim, d um puxo disfarado no
leno. Ento a gente pede: ma.
CRISTIANE (sorrindo)
Foi a primeira vez que eu beijei de lngua.
CRISTIANE se entristece.
CRISTIANE
Antes de ir embora, eu quero dizer. Eu aposto nas ameixas. Foi isso que me
veio na cabea depois que sa caminhando, fugindo daquele funeral. E
quando entrei aqui no edifcio, de costas para o enterro, o tempo todo, sem
olhar para trs. No elevador, na sala de espera, quando entrei e sentei aqui, o
tempo todo. (com os olhos brilhando). Eu quero, certo? Eu preciso continuar
apostando nas ameixas. No sei se devo, tambm no sei se posso. Tambm
no sei o que dever ou poder, mas agora estou sabendo de um jeito muito
claro o que precisar.
CRISTIANE levanta-se.
Vitor levanta-se. Ela abre a mo. Mostra uma ameixa cor de vinho. Ela caminha at
a mesa. Coloca-a sobre a agenda, ao lado do telefone.
CRISTIANE
Isto pra voc.
306
VITOR
Obrigado.
VITOR
Mas ainda setembro.
VITOR
Um instantinho, por favor.
Vitor vai at sua mesa. Olha para a ameixa. Pega a fruta. Devora a ameixa. Pe o
caroo no lixo. Novas batidas na porta. Vitor olha-se no espelho. A boca toda
vermelha. Ele limpa a boca. A porta abre. Algum senta na cadeira.
VITOR
Comece.
VITOR
Assim.
ARTHUR
Fazia frio. A umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola do sapato.
Meus olhos ardiam de frio.
Arthur chega em uma esquina. Muitos carros passam. Um carro aproxima-se dele. A
roda do veculo passa em uma poa dgua. Molha Arthur. (Imagem da Sequencia
9).
ARTHUR (continuando)
Eu teria que ter cuidado ao sorrir. Para que ele no visse o dente quebrado e
pensasse que eu andava relaxando, e eu andava. Fui percebendo que talvez
eu no quisesse que ele soubesse que eu era eu. E eu era.
Arthur deitado na calada olha para cima. A chuva bate em seu rosto.
ponto. Isso eu descobri. Tem um ponto em que a gente perde o comando das
prprias pernas.
ARTHUR
Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a
minha cabea at a dele. Por dentro da chuva, era para mim que ele abriria
sua porta. E eu fui chegando perto. To perto que uma quentura me subia
para o rosto. Como se tivesse bebido o conhaque todo.
ARTHUR
Eu quis chamar, mas tinha esquecido seu nome. Talvez eu tivesse febre. Eu
s estava parado naquela porta fazia muito tempo.
VITOR (interrompendo)
E que horas tu parou de bater?
ARTHUR
Acho que eu ainda t l agora.
VITOR
No, tu t aqui.
ARTHUR
Eu no t aqui.
VITOR
Onde era a casa?
311
ARTHUR
Eu posso levar o senhor at l.
VITOR
Eu s quero saber onde fica.
ARTHUR
Eu no sei dizer.
VITOR
Tu chegou a encontrar ele?
ARTHUR
Ele?
VITOR
A pessoa que tu foi atrs.
ARTHUR
Eu j no sei se eu fui.
VITOR
Foi um sonho?
ARTHUR
A vida sonho.
VITOR
Tu prefere ficar seco ou molhado?
ARTHUR
Eu prefiro ficar seco depois de estar molhado. S ficar seco no tem graa.
312
VITOR
E o que tem graa?
VITOR
Nada tem graa?
ARTHUR
Ficar seco depois de estar molhado. Isso eu gosto.
VITOR
Amanh vai chover.
VITOR
A tua consulta s semana que vem.
Todos personagens que apareceram no tempo anterior surgem com cinco anos a
mais.
PEDRO
A gente vai ter que apressar.
ALICE
No precisa correr. Tem um curta antes
Um rio. Mnica nada embaixo d gua. Na beira do rio, Reinaldo toca realejo. As
notas do realejo parecem reger as bolhas de gua formadas pela respirao de
Mnica. Mnica olha para o fundo do rio. Uma grande concha. As notas da msica
parecem vir da concha. A melodia acompanha o bailar de um peixe que passa por
Mnica. Ela comea a mexer os braos como se acompanhasse a msica. A msica
para. Mnica comea a ter dificuldade de respirar embaixo dgua. Nada em direo
superfcie. A cabea fora da gua. Respirao ofegante.
MNICA
O que aconteceu?
Reinaldo acaricia a caixinha de msica, sem toc-la. Mnica fica olhando para as
costas de Reinaldo. Reinaldo permanece imvel. Mnica desvia o olhar.
MNICA
Foi um pesadelo?
MNICA
Quer fumar?
REINALDO
rvore.
MNICA
O qu?
REINALDO
Eu vi uma rvore.
REINALDO
Que importa?
315
REINALDO
Que importa se foi sonho ou no? Se foi ontem ou hoje? Acordei pensando
nessa rvore.
MNICA
Fala mais da rvore.
REINALDO
No era uma, eram duas.
REINALDO
Tu quer ouvir?
REINALDO
Eu pensei que fosse s uma rvore. Eu vinha caminhando e l estava ela.
Enorme, toda florida. Com flores de todas as cores despencando at o cho.
No parecia de verdade, parecia uma coisa desenhada. Tipo Branca de
Neve.
REINALDO
Uma rvore de fantasia. A mais bonita que eu j tinha visto em toda a minha
vida. A eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte. Eu no conseguia ir
em frente. Mas daqui a pouco cheguei mais perto. De repente eu estava
dentro dela. que entre os ramos cobertos de flores havia uma espcie de
vo. Uma fresta, uma porta. Fui entrando por essa porta at ficar totalmente
316
MNICA
Tipo Alice no Pas das Maravilhas?
MNICA
Foi l?
No h resposta. Mnica pega o mao de cigarros. Acende. Brava, traga com fora.
Mnica aproxima-se de Reinaldo. Pe a mo no brao dele.
MNICA
Foi l? Eu preciso saber. (no h resposta) Meu Deus, tu ainda no esqueceu
aquele maldito lugar?
REINALDO
Tu entende?
MNICA
Melhor do que tu imagina.
REINALDO
Mas no acabou.
REINALDO
Voltei l no dia seguinte. Eu no tinha mais medo de estar dentro da rvore.
Nem via nada de mais do lado de fora. Ento fiquei andando em volta dela,
olhando bem. E percebi que eram duas rvores. Sabe uma dessas rvores
que d na beira dos rios? Uma rvore grande que parece cansada e triste.
MNICA
Um choro. Um salgueiro.
REINALDO
Isso. Um salgueiro, um choro. A outra, aquela cheia de flores, era uma
primavera. Eu lembrei ento de um poema que tu gostava. Como era
mesmo? Falava em primaveras, em morrer, em nascer de novo...
MNICA
Ceclia Meireles. Eu adorava. (sorrindo) Levai-me por onde quiserdes.
Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar. E a voltar sempre inteira.
Reinaldo aplaude Mnica.
REINALDO (rindo)
Quiserdes? (srio) Diz de novo.
MNICA
Levai-me por onde quiserdes. Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar.
318
REINALDO
Deixa eu tentar. Levai-me por onde quiserdes / aprendi com as primaveras a
deixar-me cortar/ e a voltar sempre inteira.
REINALDO
Era um caso de amor. O salgueiro e a primavera. Um lindo caso de amor
entre duas rvores.
MNICA
Vem, meu menino.
REINALDO
Tu no entende que a histria ainda no terminou.
MNICA
A maldita rvore de novo?
REINALDO
A maldita rvore.
REINALDO
Vai ser bem rpido. No outro dia, o terceiro dia, eu voltei l. Foi a ltima vez.
No foi preciso voltar mais. Dessa ltima vez, eu vi tudo. Eu descobri.
MNICA
O que foi que tu descobriu?
REINALDO
No era um caso de amor. O salgueiro estava morto. A primavera tinha
assassinado ele. Ela estrangulou, assassinou ele. Aquela escurido de dentro
era a fraqueza, o fracasso, a morte dele. Tu t me entendendo? Eu vou falar
bem devagar: as flores e as cores do lado de fora eram a vitria dela. A vitria
da vaidade dela. s custas da vida dele. Tu t ouvindo?
REINALDO
Uma vitria doente. Aquilo no era amor. Era podrido e morte. Amor no tem
nada a ver com isso. Ela matou ele porque era uma parasita. Porque no
conseguia viver sozinha. Ela sugou o coitado como um vampiro. At a ltima
gota. Tudo para poder exibir aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores
de merda.
MNICA
Tu t querendo dizer que eu te destru?
MNICA
Tu no vai responder?
Reinaldo sorri. Rapidamente, leva suas mos ao pescoo de Mnica. Ela tenta se
desvencilhar. Seu p chuta a caixinha de msica. Reinaldo estrangula Mnica.
Mnica abaixa a cabea.
PEDRO
Esse bar j no mais o mesmo.
ALICE
Odeio passadismo.
PEDRO
T cheio de yuppie.
ALICE
No s yuppie. Olha ali naquele canto.
PEDRO
Vou ali falar com eles.
ALICE
Que isso!?
PEDRO
Tu pode recitar aquele poema!
ALICE
Que besteira.
PEDRO
Pelo menos fala pra mim.
ALICE
Para te morder e para soprar a fim de que eu no te doa demais, meu amor,
j que tenho que te doer.
PEDRO
Ser que bares e rvores so coisas parecidas?
ALICE
rvores e bares, bares e rvores. O que tem a ver?
PEDRO
No curta, uma rvore matou outra. Fiquei pensando que as pessoas devem
ter ido pra outro bar. Esse outro bar matou... (batendo com o dedo na mesa)
este aqui.
ALICE
Eu sempre acho que o que t em volta da nossa mesa no tem importncia.
322
PEDRO
Me lembrei da cena de um filme. O cara vai preso. A namorada fica em
prantos. Mas ele diz pra ela: eu sou to fechado que o que passa fora da
minha pele, pode ser um centmetro s, no me diz nada.
Ao fundo, um casal parece bem menos animado. MAURO, cinquenta anos, terno e
gravata, conversa com Cristiane. Ela veste-se de maneira discreta, sem maquiagem.
MAURO
Cristiane, tu sabe to bem quanto eu o ponto de desgaste que o nosso
relacionamento chegou.
CRISTIANE
Ponto de desgaste? Parece que tu t falando de um pneu.
MAURO
Impossvel que tu no perceba. doloroso pra mim encarar esse
rompimento. A afeio que nutro por ti um fato.
CRISTIANE
Nutro? Quem sabe voc fala em apreo agora?
MAURO (contrariado)
Cris, tu sabe que eu tenho apreo por ti.
CRISTIANE (levantando-se)
Ento fica com o teu apreo.
323
MAURO
O jantar nem chegou.
CRISTIANE
Vou ver se eu me nutro de outra coisa.
CRISTIANE
Espelho, espelho meu, existe algum mais sem graa do que eu?
ARRIGO BARBAB
Voc tem medo de fazer amor comigo
Voc tem medo de acordar com um bandido
324
No banheiro, Cristiane enche a banheira. Coloca sais na gua. Canta junto com a
msica. Entra na banheira. Sorri.
Liga o chuveiro. Lava os cabelos.
No quarto, pinta as unhas dos ps e das mos com um vermelho igual ao do sapato.
De vestido justo, Cristiane pinta a boca. Manda um beijo sensual para o espelho.
Passa maquiagem.
Cristiane coloca um colar grande. Passa perfume nos braos, na ponta das orelhas
e nos seios. Sorrindo, balana os seios.
Ela veste meias negras e transparentes.
Na sala, abre uma bolsa preta. Coloca talo de cheques, documentos, chave do
carro, cigarros e um isqueiro Zippo de prata.
Desliga o som.
ANTNIO
Com licena...
CRISTIANE
de noite. Gosto de aproveitar.
Por baixo da mesa, Antnio avana o joelho entre as coxas de Cristiane. Ela cruza
as pernas. Desvia o olhar. V CARLOS, loiro, dezoito anos, vestido com roupas
esportivas, apoiado no balco. DCIO, quarenta anos, baixinho, est um pouco mais
distante. Antnio olha para Carlos e Dcio. Cumprimenta-os sorrindo.
CRISTIANE
Porque tu no convida os teus amigos pra sentar?
CRISTIANE
Acho que tu no precisa disso.
CRISTIANE
Ser?
ANTNIO
Garanto.
CRISTIANE
Ento chama os teus amigos.
ANTNIO
Tu no prefere s ns dois?
CRISTIANE
Eles parecem simpticos. No so teus amigos?
ANTNIO
Do peito. Tudo gente boa.
CRISTIANE
Gente boa sempre bem-vinda
ANTNIO
Se tu quer.
327
CRISTIANE
No quero outra coisa.
CRISTIANE
Vocs no bebem nada?
CARLOS
Cerveja.
CRISTIANE
Bebam outra coisa. Vocs vo precisar.
CARLOS
Eu t duro.
Antnio e Dcio concordam com a cabea. Carlos tira o forro do bolso da cala para
fora.
CARLOS
Veja s. (puxando a mo de Cristiane em direo ao forro) Pegue aqui.
CRISTIANE
Vocs no querem me ajudar com o usque?
328
DCIO
Eu prefiro vodka.
ANTNIO
Eu fico no usque.
CARLOS
Eu tambm.
CRISTIANE
Garom!
CRISTIANE (excitada)
Chega... por favor...
Carlos suspende o abrao. Fica olhando para Cristiane. Ela sorri. Vai voltando para
a mesa. Para perto de Dcio. Ela de p, ele sentado, os dois se olham.
CRISTIANE
Tu no quer danar?
DCIO
Eu quero te comer.
329
CRISTIANE
Lambe o meu sapato.
ANTNIO (f.q.)
Que sapato maravilhoso.
Dcio lambe o sapato de Cristiane. Cristiane tira a perna do colo dele. Pe no colo
de Antnio. Carlos aproxima-se.
CARLOS
Pra onde ns vamos?
GAL COSTA
Algum me disse que tu andas novamente
De novo amor nova paixo toda contente
Conheo bem tuas promessas
Outras ouvi iguais a essa
330
No quarto, Cristiane comea a tirar a roupa. Antnio e Dcio olham. Carlos entra no
quarto e aproxima-se.
DCIO
Fica de sapato.
ANTNIO
De meia.
Cristiane deita na cama. Os trs aproximam-se dela, tirando as suas roupas. Antnio
agarra-a por trs. Ela fica de quatro. Carlos beija-a na boca. Dcio fica olhando. Eles
transam. Ela puxa Dcio para si. Ele abraa-a tambm. Eles transam. Uma nesga de
sol entra pela persiana. Ela geme. Cada vez mais alto.
MAURO
Tu t s de calcinha!
CRISTIANE
Vai embora.
MAURO
E com o sapato que eu te dei!
331
CRISTIANE
Acabou.
MAURO
Eu te dei e tu nunca usou!
CRISTIANE
Mas eu t usando!
Mauro entra e observa o ambiente. Uma garrafa de usque e uma de vodka no cho.
O cinzeiro cheio de baganas. Os discos espalhados.
MAURO
Vadia!
CRISTIANE
Sou!
MAURO
Prostituta.
332
CRISTIANE
Foi de graa!
Mauro sai rapidamente, batendo a porta. Cristiane olha tensa para a porta. D um
passo na direo da porta. Para. Sorri.
ARTHUR
Depois dessa, chega.
DBORA
Vamos pegar mais.
ARTHUR
Eu no aguento.
DBORA
Se eu for sozinha, no volto.
DBORA
Quer um copo d gua?
333
ARTHUR
Quero.
DBORA
J volto.
GARBIELA
Dbora, quanto tempo.
DBORA
Vamos tomar uma cerveja?
GABRIELA
A gente pode marcar.
DBORA
T dizendo agora.
GABRIELA
T indo trabalhar.
DBORA
Inventa uma desculpa. Mata um tio.
GABRIELA
J matei toda famlia.
334
DBORA
E foi ao cinema.
GABRIELA
D.
DBORA
Mas vem junto. Eu tomo cerveja e tu toma um iogurte.
GABRIELA
Eu tenho que ir.
DBORA
Me liga um dia desses.
GABRIELA
Ligo. Ligo sim.
DBORA
At.
GABRIELA
Qu?
335
DBORA
Eu queria te dizer. Eu te acho to legal. To legal.
DBORA
Eu sempre me lembro do tempo que a gente morou juntas.
GABRIELA (maquinalmente)
Eu tambm.
GABRIELA (desvencilhando-se)
Vamos, vamos. Mas agora eu preciso ir.
DBORA
Achei que tu era minha amiga!
DBORA (f.q.)
Filha da puta!
NGELA R R
Amor, meu grande amor
No chegue na hora marcada
Assim como as canes
Como as paixes
E as palavras
GABRIELA
Eu preciso beber mais pra ouvir isso a
FELIPE
Vamos ouvir outra coisa.
GABRIELA
No, traz mais vodka.
A msica continua. Felipe pega o copo de vodka. Vai at uma outra mesa. Serve.
Entrega para Gabriela. Ela bebe. Durante o gole, a msica de ngela R R fica
mais baixa.
GABRIELA
Que tal Sri Lanka?
FELIPE
Como ?
GABRIELA
Tu pelo menos pode mandar fotos de l. E todo mundo vai pensar: como
que ele foi to longe?
FELIPE
Como tu te importa com os outros.
337
GABRIELA
Eu me importo contigo. Vou te esperar aqui. Trabalhando feito uma mula.
FELIPE
Tu no fica bem de vtima.
FELIPE
To bem de p.
GABRIELA
J eu no t to bem.
FELIPE
Senta.
GABRIELA
T falando de... (imita uma relao sexual).
FELIPE
A eu no posso te ajudar.
GABRIELA (rindo)
No pode mesmo.
FELIPE (rindo)
Foi to ruim?
GABRIELA
Teu pau ficou murcho.
338
FELIPE
Foi tu que insistiu.
GABRIELA
Foi tu que inseriu.
Os dois se olham.
GABRIELA
Eu me masturbei depois.
FELIPE
Eu tambm.
GABRIELA
Vamos nos masturbar juntos?
FELIPE
Tem que ser separado.
GABRIELA
Hoje eu encontrei a Dbora.
FELIPE
Como que t aquela louca?
GABRIELA
Tava virada.
FELIPE
A festa nunca termina.
GABRIELA
Ela tava saindo do edifcio do Arthur.
339
FELIPE
Me passa o cigarro.
GABRIELA
Desculpa. que andei fazendo as contas. A gente tinha que estar melhor.
FELIPE
Melhor? Vodka, ngela R R e uma boa companhia.
GABRIELA
Tu anda lendo autoajuda? (no h resposta) Olha que eu te jogo outro mao
na cara!
FELIPE
Tu t te tratando?
GABRIELA
A minha analista me largou. Diz que tem gente muito pior que eu. Ento, eu
tentei floral. A mdica disse preu procurar ajuda mais pesada. Ah, se foder!
FELIPE
Mas quem sabe tu no...
GABRIELA (interrompendo)
Claro que tu no tem culpa, corao. Estamos no mesmo barco.
FELIPE
No mesmo barco?
GABRIELA
Na mesma vodka. S que tu t te fazendo de centrado, neutro. Babaca!
340
FELIPE
Tu quer que eu durma aqui?
GABRIELA (sorrindo)
Teu pau frouxo de novo no!
FELIPE
Vai te foder!
GABRIELA
No te preocupa. Depois que tu sair em tomo banho frio e um leite quente.
FELIPE
Quem sabe banho quente e leite frio?
GABRIELA
Deixa. Semana que vem eu como s arroz integral. Depois mudo de dieta.
Pego um p e fico um ms sem dormir. Encontro a Dbora e finjo que tenho
dezoito anos.
FELIPE
Vem c. (eles se olham) Vem.
GABRIELA
Passa a mo na minha cabea.
GABRIELA
Eu to feia, n? Gorda. (sorrindo) T uma puta bebaa.
341
FELIPE
T linda.
GABRIELA
Bota uma msica leve.
NGELA R R
Amor, meu grande amor
No chegue na hora marcada.
Assim como as canes
Como as paixes
E as palavras
Gabriela comea a danar. Felipe vem em sua direo. Os dois danam juntos.
Caminham abraados.
GABRIELA
E no esquea de mandar aquelas fotos do Sri Lanka.
FELIPE
Tu vai ficar bem?
GABRIELA
S quando chegar as tuas fotos do Sri Lanka.
FELIPE
T dizendo agora.
GABRIELA (sorrindo)
Agora eu vou vomitar sozinha.
RITA LEE
Pra que sofrer com despedida
Se quem parte no leva
Nem o sol, nem as trevas
E quem fica no se esquece tudo que sonhou
I know
Tudo to simples que cabe num carto postal
E se a histria de amor
No pode acabar mal
343
MNICA
Entra.
Entra Eduardo. De casaco de couro e barba por fazer, ele caminha lentamente at a
cadeira.
MNICA
Welcome.
MNICA
Tu deve estar com saudades do caf.
EDUARDO
Saudade no o termo.
MNICA
Mas quer caf? (no h resposta) Ou ch? Como aquela msica?
(entoando) Drinking tea with the taste of the Thamis.
EDUARDO
Caf.
MNICA
Acar ou adoante?
345
EDUARDO
L ningum toma adoante. Faz mal.
EDUARDO (interrompendo)
Eu quero sem nada.
MNICA
Mas me conte. Tudo.
EDUARDO (sentando-se)
Tudo?
MNICA
Como Paris?
EDUARDO
No uma festa.
346
MNICA
tudo caro?
EDUARDO
Tem a Torre Eiffel, o Quartien Latin, o boulevard Saint Michel.
MNICA
Que delcia.
EDUARDO
E muitos rabes.
MNICA
E Londres?
EDUARDO
Picadilly Circus. Portobello Road.
MNICA
A Torre de Londres, o Big Ben, o Central Park.
EDUARDO
O Central Park em Nova York. L Hyde Park.
MNICA
mesmo. O Hyde Park.
EDUARDO
E rabes.
MNICA
Veneza tem canais, Roma tem a Fontana DiTrevi.
347
EDUARDO
Eu no fui Itlia.
MNICA
Dizem que lindo.
Os dois se olham.
MNICA
Mas tu foi Holanda. Lembro do carto.
EDUARDO
Eu no mandei carto.
MNICA
Mas tu foi?
EDUARDO
L tem tulipas, tamancos e moinhos.
MNICA
Tulipas, tamancos e moinhos. Parece slogan de shopping center.
EDUARDO
L tem rabes. E putas na vitrine.
MNICA
Como ?
EDUARDO
Em Amsterdam. Elas ficam numa espcie de vitrine, as putas.
MNICA
Interessante.
348
EDUARDO
Interessantssimo.
EDUARDO
O qu?
EDUARDO (erguendo-se)
Eu j vou indo.
MNICA
que t quase saindo. Se tu esperar, te dou uma carona.
349
EDUARDO
Tu tem carro?
MNICA
Todo mundo tem carro.
EDUARDO
Comprou zero?
MNICA
Comprei.
Os dois se olham.
EDUARDO (levantando-se)
Agora vou de novo at a janela.
MNICA
Olha, ns temos muito interesse em publicar o teu livro.
MNICA
um bom livro. Mas no h mais espao este ano.
EDUARDO
Claro.
MNICA
Sem falar na crise do papel. Internet. Essas coisas.
350
EDUARDO
Tu comprou essa sala?
MNICA
Eu trabalho aqui. S isso.
EDUARDO
D pra ver o rio. legal.
MNICA
Eu gosto.
Mnica apaga o cigarro. O toco fica em cima dos outros dois. Rapidamente, ela
acende outro
MNICA
Quer mais caf?
EDUARDO
Tu t fumando demais. E tomando muito caf.
MNICA
Tu t muito nervoso.
EDUARDO
Nunca tive to calmo.
MNICA
Tu mudou.
EDUARDO
Tu subiu na vida.
351
MNICA
uma ofensa?
EDUARDO (saindo)
Tu continua sendo uma boa atriz.
PEDRO
O cu est escuro.
ALICE
J tem at estrela.
PEDRO
Tu ainda sabe o nome delas?
352
ALICE
S depois do quinto chope.
ALICE (rindo)
Pode mesmo.
ALICE
Te lembra do Arthur?
PEDRO
Quem era mesmo esse?
ALICE
O bar.
PEDRO
Claro. Te lembra quando a gente foi no cinema e depois viu os atores l?
ALICE
Tu queria falar com eles.
353
PEDRO
Eu nunca mais vi aqueles dois.
ALICE
Esses tempos eu fui l no Arthur e o garom perguntou. Cad teu namorado?
Vocs no iam casar?
PEDRO
Eu s me caso se tiver um bom dote. Duas vacas leiteiras e uma fazenda.
ALICE
E no serve a coleo Gnios da Pintura?
PEDRO
Tem Bosch?
ALICE
Um fascculo inteiro.
PEDRO
Um fascculo leiteiro.
ALICE
Um fascculo leiteiro.
PEDRO
Vou analisar a proposta.
ALICE
Mas no pense que vou me jogar nessa empreitada assim no mais. S caso
contigo se tu tambm tiver um dote. Um dote pondervel.
PEDRO
Tu ainda fala essas coisas.
354
ALICE
Essas coisas?
PEDRO
Empreitada. Pondervel.
ALICE
E daqui a pouco eu falo o nome das estrelas.
Pedro acende um cigarro. Alice abre a bolsa. Tira de dentro uma carteira de FREE.
PEDRO
Aposentou o Marlboro vermelho?
ALICE
Fiz trinta e trs semana passada.
PEDRO
Fumou todo o Marlboro na festa?
ALICE
Quando cai domingo foda. Fiquei em casa.
PEDRO
Ficou com quem tu mais gosta.
ALICE
Aos trinta e trs anos ela enlouqueceu completamente. De sbito, abriu a
janela do quarto e ps-se a danar nua sobre o telhado gritando muito alto
que precisava de espao.
PEDRO
Isso Clarice Lispector.
355
ALICE
Deixa de ser bobo. Eu queria comear um conto assim.
PEDRO
um bom comeo. s desenvolver a trama.
PEDRO
Um chope.
ALICE
E se o conto fosse s essa frase?
PEDRO
Pode ser. Hoje vale tudo.
ALICE
T ficando frio.
PEDRO
Tu quer entrar?
ALICE
Eu tenho um casaco de pele comprado na Sucia.
PEDRO
Pe essa frase no teu conto.
ALICE
Eu tenho um vidrinho de Patchulli pela metade.
356
PEDRO
Pathculli?
ALICE
Perfume.
PEDRO
isso que eu t sentindo?
ALICE
Sempre que eu boto, levo umas cantadas.
PEDRO
Eu tenho um pster do Kurt Cobain em casa.
ALICE
Tu t te tratando?
PEDRO
Faz uns dois anos. (para o garom). Dois!
ALICE
Dois chopes e dois anos de terapia. Quando tu fizer trs, a gente pede trs.
Surpreso, olha em direo a uma mesa. Alice est sentada ali, com um gato no colo.
Ele vira-se para a janela. Chove. Ele senta-se ao lado de Alice. O gato sai do colo
dela. Os dois bebem. Alice pega o seu copo. Leva-o em direo ao de Pedro. Pedro
ergue o seu copo. Eles brindam.
357
ALICE (recitando)
Para te morder e para soprar a fim de que eu no te doa demais, meu amor, j
que tenho que te doer.
PEDRO
Tu ainda sabe o nome das estrelas.
ALICE
Tu j tem um cabelo branco. (os dois se olham). Mas fica bonito.
PEDRO
T bom.
ALICE
Desculpa. que eu no tenho mais vinte e trs.
PEDRO
Eu ainda tenho aquele disco da Silvinha Telles.
ALICE (cantando)
Se tarde, me perdoa.
ALICE
Tu viu que horror que fizeram naquela pracinha do Gasmetro?
Outro dia fui l e vi uma poro de gente morando dentro duns canos.
PEDRO
Porto Alegre no tem mais casas.
358
ALICE
E eu tenho que ir.
PEDRO
Tu nem falou o nome das estrelas.
ALICE
A chuva apertou.
PEDRO
Eu tenho uma gndola.
ALICE (levantando-se)
Eu vou pagar no caixa.
PEDRO
Pede mais um pra mim?
PEDRO
Eu vou dizer o nome das estrelas.
ALICE
O qu?
Pedro acena negativamente com a cabea, como que dizendo deixa pra l. Ele
desvia o olhar. Percebe um resto de chope no copo de Alice. Bebe. As mos dela
surgem por trs e acariciam os cabelos dele. Pedro olha para Alice. Apressada, ela
sai do bar. O garom lhe entrega o chope. Ele bebe.
359
PEDRO (f.q.)
Alice!
ALICE
Tu louco.
PEDRO
Te disse que eu tinha uma gndola.
JPITER MA
Eu e minha ex
Queremos amizade
Mas acho que eu no superei
Talvez ainda goste dela
Eu e minha ex
Talvez um dia
Sejamos um s outra vez
Em outro planeta, dimenso
Circunstncia, situao
Eles andam abraados. Conversam (no se ouve o que eles falam). Correm.
Sorriem. Beijam-se. Desaparecem na rua molhada.
ARTHUR
E este gosto azedo na boca?
MDICO
Isso no nada.
ARTHUR
Mas no me sinto bem.
MDICO
O senhor pode diminuir o cigarro. Tome mais leite. E faa cooper.
ARTHUR
Mas eu vou continuar com este gosto?
MDICO
Tu vai continuar criando esses slogans maravilhosos.
ARHTUR
Mas este gosto de morango?
361
MDICO
Morango?
ARTHUR
Mofado.
MDICO
Azia, m digesto. Coisinha de nada.
ARTHUR
Eu tomei todos aqueles remdios.
MDICO
No nada. O senhor ainda to jovem.
ARTHUR
Eu j tomei tanta coisa.
MDICO
Pode continuar tomando. Vai por mim.
RAUL SEIXAS
Acabei de dar um check up
na situao
362
ARTHUR
Felipe, tu voltou.
Arthur sorri. Felipe, com dezoito anos, est sentado no cho. Arthur vai at ele.
Felipe levanta-se. Beija a boca de Arthur. Os dois sentam-se no cho.
Felipe pega uma colher. Pe herona. Acende um isqueiro. Aquece. Puxa a droga
com uma seringa. Vai at Arthur.
ARTHUR
Eu no quero.
Silncio.
FELIPE
Tu t me deixando sozinho.
ARTHUR
Eu no quero.
FELIPE
Eu tambm no quero mais.
ARTHUR (berrando)
Dbora! Onde que tu t?
A msica para.
Arthur olha para baixo. A rua vazia. Arthur deita-se na mureta. Encara a parede de
edifcios sua frente. Ele olha para cima. O azul do cu.
Arthur passa as mos por seu corpo. Comea pelos joelhos e vai subindo
lentamente, at chegar nos cabelos. Arthur ajoelha-se nos ladrilhos. As mos sobre
o pnis.
CRDITOS FINAIS
366
242
De Os drages no conhecem o paraso veio Sapatinhos vermelhos; de Pedras de Calcut
foram aproveitados Aconteceu na Praa XV e Paris no um festa; do livro-base, Os
sobreviventes, O dia que Urano entrou em Escorpio, Pela passagem de uma grande dor, Alm
do ponto, Tera-feira gorda, Pra, uva ou ma?, Caixinha de msica, O dia que Jpiter
encontrou Saturno, e MORANGOS MOFADOS.
243
Por exemplo, no incio deste captulo, h a pergunta: qual a loucura deste incio de sculo?.
Evidentemente, Morangos mofados o filme no foi escrito com a pretenso de responder a isso.
367
5.3.1 A permanncia do tempo: o passado uma roupa que no ficou pra trs
244
Durante algum tempo, pensei que o filme deveria se passar em um perodo mais prximo de 2010.
Porm, os filmes escritos para um determinado momento presente sempre ficam merc do longo
perodo necessrio para se fazer um filme, ainda mais com as condies prprias do cinema
brasileiro. Assim, ou exigem centenas de revises para se adequarem s mudanas constantes da
tecnologia e do comportamento humano, ou acabam virando filmes de poca.
371
herana de Deu pra ti est na dica de que o cineasta deve falar de si o que j foi
bastante explicitado. Aliado a isso, Deu pra ti tem um tom dispersivo, em que mesmo
a presena do casal principal no encobre suas arestas. Esta pulverizao aparece
em Morangos mofados o filme, mas de maneira distinta. No existem
protagonistas, mas o grupo de personagens mais fechado.
Em relao aos personagens, preciso reiterar que a grande maioria
pertence mesma gerao. Mesmo quando aparecem idades distintas, a ideia no
focar em um possvel generation gap algo que aparece claramente em Deu pra
ti. Neste sentido, interessante recordar que uma das pretenses da adaptao de
Morangos mofados chegou a ser a de construir um pico marginal, unindo
junkies dos 18 aos 68 anos. Porm esta proposta foi abandonada, na falta de
argumento melhor, pela total falta de habilidade deste roteirista para entender e
retratar outras geraes sem cair no clich.
Com o tempo, a gerao e o espao do filme delimitados, a maioria das
transies do original para o roteiro foi feita sem maiores percalos. Os contos que
no eram claramente ambientados na capital gacha foram transportados com
certa facilidade: a So Paulo dos anos 1970 vira Porto Alegre dos anos 1990 sem
grandes traumas245; j o carnaval na praia foi ambientado no Bar Ocidente, com a
Redeno fazendo as vezes de praia paradisaca essa foi uma ideia tida logo no
incio do percurso.
A mquina do tempo que transformou as histrias dos 1970, para os 1990,
teve um pouco mais de percalos principalmente porque quem operava a
engenhoca estava em 2009. Neste mbito, uma das maiores dificuldades foi a
linguagem dos personagens. Mesmo que, em muitas adaptaes, os dilogos
tenham que ser reescritos, os textos de Caio Fernando Abreu propuseram um
desafio por se mostrarem ambguos. Por um lado, vrias expresses pareceram
datadas ou literrias, principalmente aquelas calcadas no iderio hippie, num certo
romantismo da insanidade, e na exposio adjetivada do sofrimento individual.
Como ilustrao, vale lembrar que um conto antolgico como Os sobreviventes
recheado de armadilhas, com frases do tipo : j pirei de clnica, lembra?(p.16). Isto,
hoje, dito a srio num filme , no mnimo, perigoso. Por outro lado, alguns dilogos
de Caio Fernando Abreu parecem praticamente prontos para o cinema. O conto O
245
Isso daria uma tese sobre (falta de) planejamento urbano, mas fico com o argumento de que os
contos que tm a cidade paulista como cenrio so perfeitamente adaptados a Porto Alegre.
372
dia que Jpiter encontrou Saturno exemplar, formado basicamente por dilogos
que, com raras excees, precisam de poucas adaptaes para entrarem em um
roteiro basta comparar as falas do filme com as do conto. Neste sentido, talvez eu
tenha feito cortes em falas que no eram to perigosas e mantido outras que no
so to bacanas assim. O futuro dir.
dia que Urano eram diferentes. Ento, Dbora acabou aparecendo nestes dois
ambientes o que pareceu muito interessante. Em relao sua participao neste
ltimo conto, criou-se uma convivncia dela tanto com Felipe quanto com Gabriela
estes dois, protagonistas de Os sobreviventes. J Felipe surge tambm em Tera-
feira gorda, conhecendo outro homem em um baile de carnaval. Aqui,
acrescentamos a presena de Arthur para evidenciar o rompimento amoroso dos
dois.
Aconteceu na Praa XV tambm foi dividido em trs tempos. Em dois deles,
Pedro e Alice, que no tinham nome no conto, vo ao cinema e a um bar. Na
primeira vez, cruzam com Dbora, e Alice chega a beij-la. Posteriormente, bebem
no mesmo bar em que Felipe e Arthur, mas as duplas no se conhecem. J na
segunda vez em que vo ao cinema, eles veem um curta-metragem e, logo depois,
esto no mesmo bar que outros trs personagens relevantes. Antes de abord-los,
preciso destacar como a dupla de Aconteceu na Praa XV faz, em suas duas
primeiras aparies, a funo de amlgama. No mesmo espao que eles, passam
seis personagens ficando de fora apenas Gabriela e Eduardo. Alis, necessrio
enfatizar que somente agora me dou conta de todos esses cruzamentos.
Voltando aos personagens que esto no mesmo bar que Alice e Pedro, o que
chama a ateno que eles tm trajetrias diferentes. A mulher, recebendo um
fora do namorado, Cristiane. Este personagem acabou protagonizando dois
contos extremamente diferentes: em Pra, uva ou ma?, ela se mostra insana,
contando ao psiquiatra que acredita nas ameixas e que tropeou num caixo antes
de chegar no consultrio. J em Sapatinhos vermelhos, ela se vinga do namorado,
entregando-se a uma noite de prazer com trs homens. O que acabou ligando os
contos foi o fato de que as duas protagonistas vivem odisseias completamente
individuais, sem relaes de amizade. No filme, a nica personagem principal que
no se liga com outra.
No mesmo bar esto Mnica e Reinaldo. Ali, eles aparecem como atores do
curta (adaptado de Caixinha de msica) que Alice e Pedro assistiram no cinema.
Mas antes, eles tinham sido vistos como protagonistas de Pela passagem de uma
grande dor. Ou seja, no TEMPO 1 eles so antes de tudo amigos: Mnica tenta
contar para Reinaldo que ir fazer um aborto no dia seguinte; j no TEMPO 2, eles
so namorados e fazem alguma coisa da vida, so atores. A questo que Reinaldo
374
s aparece quando est junto a Mnica, enquanto ela surge duas outras vezes, ao
lado de Eduardo.
Aqui vale comentar como as definies aconteceram. Enquanto muitos contos
foram se ligando naturalmente, com personagens vivendo vrias histrias, outros
demoraram a ser moldados. Na primeira escritura, Pela passagem de uma grande
dor e Caixinha de msica eram histrias que pareciam destinadas ao isolamento.
O problema que o roteiro ameaava explodir devido a uma grande quantidade de
personagens e situaes. Caixinha de msica comeou, ento, a correr perigo,
ainda mais quando eu lembrava que o filme estava calcado na vivncia e no
comportamento de um certo tipo de personagem urbano. Neste sentido, o fato de
um homem matar sua companheira (sendo essa morte metafrica ou no) destoava
dos outros contos a violncia do ato parecia demasiada. Ento, Caixinha de
msica acabou se tornando um curta-metragem que Alice e Pedro vo assistir no
cinema. Assim, sobreviveu a histria do casal em desacerto conjugal que, a meu
ver, funciona como espelho de outros desajustes amorosos no roteiro.
Ainda em termos de reminiscncias do processo, vale dizer que, quase at a
ltima hora, a personagem que acompanhava Reinaldo se chamava Roberta. Ento,
impulsionado no s pela vontade de reduzir os personagens, coloquei Mnica nas
cenas ela, que estava desde o incio da escritura nas cenas com Eduardo. Desta
forma, criou-se uma personagem que oscila entre dois homens e muda de profisso
no curso dos tempos.
Pensando na relao de Eduardo e Mnica uma homenagem msica da
banda Legio Urbana, lanada em 1986 -, os dois protagonizam os contos O dia
que Jpiter encontrou Saturno e Paris no uma festa. Como o primeiro no
deixa de ser uma despedida, e o segundo, um reencontro, as duas histrias se
atraram naturalmente. Alis, na primeira, o personagem chega a mencionar que vai
para a cidade-luz, justamente o lugar de onde volta o escritor. Por fim, a ltima
alterao do roteiro foi fazer de Eduardo o personagem que surta em O dia que
Urano entrou em Escorpio.
Essa aglutinao de personagens feita em todo o roteiro foi um procedimento
que lembrou muito aquele operado por Joaquim Pedro de Andrade em Guerra
conjugal. Mas se Joaquim Pedro manteve seus trs personagens mantendo uma
constante aparncia e psicologia, a proposta aqui radicalmente diferente. Com
esta estrutura, em que os personagens oscilam bastante de uma cena para outra,
375
246
GODARD, Jean-Luc. Introduo a uma verdadeira histria do cinema. Martins Fontes. So Paulo,
1989: p. 87.
377
e a presena constante das msicas foram algumas ferramentas usadas para fazer
com que a disperso dos personagens permanecesse compreensvel, criando uma
coeso mnima que pareceu extremamente necessria.
Durante o filme, acontecem dois momentos em que a montagem une vrios
personagens, enquanto a msica entoada tambm refora essa ligao247. Sem
serem to autorreflexivos como aquele instante de Magnlia todos cantando a
msica de Aime Mann , estes trechos trabalham no mesmo duplo sentido:
comparar os personagens e evidenciar para quem quiser o quanto as
coincidncias do filme tm um lado forado, artificial.
Falando em construo artificial, necessrio lembrar duas escolhas
narrativas fundamentais para a organizao estrutural: o uso do leitmotiv e a deciso
de comear a trama pelo final da fbula.
No que tange ao leitmotiv, em trs ocasies algum atira um cigarro da janela
de um prdio. Em duas delas, Alice e Pedro passam correndo por ele; na ltima,
ningum passa pelo cigarro, e os dois, separados, caminham pela rua. Sem entrar
nos saltos de tempo operados em dois destes momentos, preciso citar que a
referncia dessa criao foi O show deve continuar (All that jazz, 1981). Apesar da
proposta cinematogrfica ser diferente, h uma ligao entre os recursos dos dois
filmes: na pelcula de Bob Fosse, o leitmotiv marcado por planos expressivos a
caixa de remdios, o aparelho de som, o olho , pela montagem com tomadas de
curta durao e pela msica. Aliado a isso, o protagonista com a sade cada vez
mais abalada vai se cansando progressivamente. Em uma das primeiras vezes em
que aparece, ele balana as mos e fala, olhando para o espelho: Its show time,
folks. A maneira como ele diz a frase vai mudando, at que ele gesticula silente,
antes de conseguir proferir a frase, praticamente apagada pela tosse. De certa
forma, foi este o efeito buscado quando coloquei Alice e Pedro simplesmente
caminhando no TEMPO 3, sem a corrida enrgica de outrora. Olhando em
retrospecto, o mais inacreditvel que o ttulo deste captulo foi inspirado na pelcula
de Bob Fosse, antes da deciso de que o filme trabalharia com leitmotiv.
Alm da pontuao, outra marca forte da narrao que a trama inicia pelo
fim da fbula. Alis, o comeo do filme embalado por um momento de alta carga
dramtica: a ida de um personagem at o parapeito de um prdio para, quem sabe,
247
Essa foi uma das poucas ideias que se manteve desde o incio do processo.
378
se matar. Se tal expediente algo extremamente usado nos filmes, aqui ele pareceu
interessante porque o personagem mostrado no o nico protagonista do filme
longe disso. Alm do mais, o que se ver posteriormente no algo que est
totalmente sendo lembrado por ele.
Centrando o foco na preferncia pessoal, a passagem pela cobertura me
lembrou a abertura antolgica do recente Bens confiscados (2004), de Carlos
Reichenbach. Bens confiscados inicia com um suicdio, mas no o mostra. A cmera
circula sobre a personagem no parapeito, ao som de msica clssica, criando um
bal de som e imagem. Desde j fica a homenagem.
De volta cena inicial do roteiro, ali acontece algo que talvez s seja notado
no desfecho. Arthur joga um cigarro do alto da cobertura e ele cai no cho dez anos
antes: uma espcie de mini-2001 s avessas248. Mas mais do que uma homenagem
a uma das elipses mais famosas da Histria do Cinema, esta opo metafrica foi
inspirada em dois filmes de Todd Haynes: Velvet Goldmine e No estou l.
No estou l inicia com a morte metafrica de Bob Dylan. Ou seja, com a
representao de um fato que no ocorreu nem no filme, nem na vida real. J
Velvet Goldmine, centrado no movimento glam, volta no tempo em que Oscar Wilde
era criana para buscar a origem do modo de ser prprio a David Bowie e Marc
Bolan. Em uma cena, o beb Wilde ostenta um broche de brilhante; logo em
seguida, o filme avana cem anos e um dos personagens acha o penduricalho na
rua. Ainda, h uma cena em que o autor de O retrato de Dorian Gray, ainda criana,
est numa sala de aula e revela que quando crescer quer ser pop star. Como nos
dois filmes de Haynes, em que o realismo deixado de lado e a liberdade potica
fica evidente, aqui o cigarro que retorna ao passado ilustra uma das concepes de
Morangos mofados o filme: como se trata de uma fico, a liberdade em relao
manipulao do tempo total o que reaparecer justamente no segundo leitmotiv:
o psiquiatra joga o cigarro pela janela e ele cai no cho cinco anos depois.
Outro momento que reafirma essa postura em relao ao tempo acontece na
adaptao de O dia que Urano entrou em Escorpio. A histria se passa nos anos
248
A referncia completa do filme de Stanley Kubrick 2001: uma odisseia no espao (2001: A
Space Odyssey, 1968).
379
1990, mas os personagens ouvem uma msica lanada somente em 2005 (cujo
nome, inclusive, Tempo, da banda Cidado Instigado)249.
Essa livre manipulao do tempo tambm notada na sequncia de
montagem que une a cena de Arthur e Felipe na ponte, e o conto recm citado. Ali,
misturam-se cenas de vrias noites, j avisando que o filme no se passa em um
dia s. Estas passagens pertencem a segmentos distintos e reaparecem na sua
temporalidade correta ao longo da narrativa.
O roteiro tambm usa um pequeno flashfoward: a cena em que Cristiane
acorda, no dia em que ela vai ao psiquiatra, foi adiantada, inserida antes de vrias
cenas que cronologicamente acontecem anteriormente. Neste caso, a separao
do acordar da personagem do restante de sua histria foi usada principalmente para
retratar uma certa dificuldade de Cristiane em lidar com a realidade.
Alm do leitmotiv, da abertura, e do trabalho sobre o tempo, um aspecto
muito dimensionado na unio dos diversos segmentos foi a transio cnica. Ao
contrrio dos multiplots de Michel Haneke, em Morangos mofados o filme, essas
passagens geralmente buscam formar um senso de continuidade entre momentos
distintos. Nesta proposta, muitas vezes busquei no s reiterar a manipulao do
tempo, como tambm explorar significados que uma cena pode emprestar outra.
A primeira transio relevante acontece entre a cena da ponte do Parco e o
segmento de O dia que Urano entrou em Escorpio. Depois que Felipe e Arthur
ficam olhando os faris noturnos da cidade, aparece a citada montage sequence. A
ltima imagem desta sequncia revela um carro passando pela cidade mais tarde
se ver que o carro de Cristiane, no TEMPO 2, rumando boate do centro. S que
este carro visto, da janela, por Gabriela, ainda no TEMPO 1. Ento, a ideia do
tempo ficcional livremente manipulado acentuada pela falsidade da relao entre
determinante e ponto de vista.
Alm disso, Felipe aparece neste novo segmento de forma completamente
diferente do instante da ponte. Assim, numa curta durao de filme, o personagem j
mudou bastante. Este procedimento no deixa de lembrar de novo Cidado
Kane. No caso, a sequencia do caf da manh.
249
A meu ver, este anacronismo discreto, principalmente se comparado a toda uma tradio de
filmes que trabalham com a metafico historiogrfica vide a incluso de um par de tnis All Star no
figurino de Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006), de Sofia Coppola. Para o conceito de metafico
historiogrfica, ver HUTCHEON (Op. Cit.).
380
250
Aqui vem mente os processos de adaptao de Truffaut e Luiz Fernando Carvalho.
251
Para a anlise da subjetiva indireta livre em Terra em transe, ver XAVIER (1993, p.31-70).
252
VALLE, Henrique do. Do lado de fora. Porto Alegre: Editora Movimento, 1979. p.32.
382
neutralidade apresentada aos seus pacientes. Alis, ele que joga no cho o cigarro
que sinaliza o final do TEMPO 1.
Mas quando Arthur conta ao psiquiatra sobre sua jornada chuvosa em busca
de um parceiro possivelmente Felipe , o roteiro tenta equilibrar vrios tipos de
cena. H construes tradicionais. Por exemplo, enquanto mostra-se o passado,
Arthur conta o que se v com voz sobreposta. Mas h tambm expedientes mais
complexos. Durante parte do relato, a imagem centra-se em fios de luz, tentando
promover uma associao mais diversa entre sons e imagens. Um destes
procedimentos menos tradicionais foi inspirado em ngelo anda sumido (1997), de
Jorge Furtado. No roteiro, Arthur aparece entrando em um txi. Logo depois, fica-se
sabendo que ele no pegou a conduo, pois no queria gastar dinheiro. Ento, o
txi reaparece e passa por Arthur. J no curta de Furtado, logo no incio, o
protagonista, em over, conta o que tinha acontecido em determinada noite. Ento,
vai saindo do seu edifcio e conversa com o zelador. Depois desta cena, ele volta a
relatar a tal noite, dizendo que tinha pego um nibus para visitar o amigo que d
nome ao filme. Mas rapidamente ele se d conta que a informao est errada.
Volta-se para o final da cena do zelador e, posteriormente, o protagonista entra em
um txi. A voz sobreposta, ento, confirma a informao. Ele pegara um txi e no
um nibus.
Aps a sada de Arthur, o mdico acende um cigarro e joga-o pela janela.
Segue-se o leitmotiv: Alice e Pedro correm, entram no cinema e assistem um curta-
metragem. Aqui, a primeira ideia foi fazer uma deferncia aos filmes de curta
durao e, por extenso, ao projeto Curta nas Telas, da Prefeitura Municipal de
Porto Alegre253.
Para alm das homenagens citadas, a presena do curta, baseado em
Caixinha de msica, teve a sua razo de ser. Mesmo que o roteiro seja calcado
nas relaes dos personagens, inserir um curta no meio da narrativa pareceu uma
referncia simptica a um certo tipo de cinema que valoriza a presena da
representao dentro do mundo diegtico. Um dos exemplos mais marcantes desta
intromisso da representao em uma narrativa calcada nos desencontros humanos
253
Projeto pioneiro no Brasil, que garante a exibio de filmes em 35mm de at quinze minutos no
circuito das salas de cinema da capital gacha.
386
apareceu em Fale com ela (Hable con Ella, 2002), de Pedro Almodvar254. Em
Almodvar, o filme dentro do filme no s um olhar surpreendente para a relao
homem-mulher, como metaforiza o momento em que o enfermeiro Benigno (Javier
Cmara) possui Alicia (Leonor Watling), que est em coma no hospital em que ele
trabalha. Em um registro oposto, mas usando a mesma tcnica, a adaptao de
Caixinha de msica tentou misturar um clima paradisaco (a cena da praia de rio)
com um tpico huis-clos angustiado, em que um casal discute a relao. A
oposio entre o idlio amoroso e a dificuldade de comunicao dos pares, de
alguma forma, uma tnica constante no filme.
O interessante que esse conto sempre sugeriu um olhar diverso do resto do
filme. A histria que o personagem masculino conta, envolvendo duas rvores,
chegou a instigar alguns ensaios de insero de animao dentro do roteiro. Apesar
de vrias tentativas, a opo foi deixar o rapaz desabafar, exacerbando a relao do
que ele conta com a sua situao conjugal.
O final do curta a morte da garota vista numa imagem metafrica manteve
a ideia de travar um dilogo com Luca e o sexo. Como j exposto, no filme de Julio
Medem, a filha do protagonista morta por um cachorro. Porm, a construo
baseia-se principalmente em duas imagens: o co latindo em direo cmera, e a
garota nadando no fundo do mar. Embora o curta seja mais explicativo, a ideia
similar.
Depois da adaptao de Caixinha de msica, o segmento seguinte
baseado em Sapatinhos vermelhos. Aqui vale uma observao sobre a escolha
deste conto de Os drages no conhecem o paraso. A histria de uma mulher
tmida que se vinga do marido, transando com trs homens em sua casa, sempre se
mostrara interessante para uma adaptao. Aqui o personagem mudou um pouco,
ganhou um passado, deixando o tom do conto um pouco mais prximo dos outros.
Mas a incluso de Sapatinhos vermelhos tem como intuito apresentar um momento
de quebra dentro do roteiro. O filme muda de ambiente (dos lugares de uma certa
boemia-intelectual-classe media passa a um bar ftido do centro), e de registro (o
mau gosto incorporado, o sexo passa a ser tratado sem nenhum pudor). Alm
disto, Sapatinhos vermelhos parece substituir Fotografias, presente no livro-base.
254
evidente que Fale com ela um filme extremamente rico e que traz outras inseres da ideia de
representao, como as cortinas que se abrem no incio do filme, o bal de Pina Bausch, o final, com
a plateia de um espetculo de dana se posicionando para sentar nas cadeiras etc.
387
A vida sexual de duas secretrias, uma mais contida, a outra bem menos, parecia
tambm ser uma quebra na antologia de Caio. E mesmo que o critrio no seja o de
ser fiel a isto ou aquilo, a insero de Sapatinhos vermelhos pareceu, com isso,
mais que justificvel.
ambguo o registro que mostra Cristiane vingando-se do namorado ou
simplesmente aproveitando a vida, servindo-se de homens. Na preparao de
Cristiane, h uma certa dose de ironia, com direito a um momento em que ela canta
Suspeito, de Arrigo Branab (j uma pardia de msica brega). Nas cenas da boate,
o mau-gosto visto no s com a ironia das falas exageradas; o roteiro tambm
entra no terreno dos filmes brasileiros populares, erticos, dos quais um dos
emblemas A dama da lotao (1978), de Neville de Almeida, baseado em Nelson
Rodrigues. Ao mesmo tempo, como a vontade feminina torna os homens
secundrios, h algo de Catherine Breillat nesta passagem na forma de olhar os
personagens e no em suas teses, bem entendido. Ento, as cenas de desejo
procuram transcender a mera representao do bizarro, tentando explorar a libido
dos personagens (e do espectador) em um largo escopo.
A boate em que Cristiane conhece seus trs parceiros tem seu nome tirado
de Mal dos trpicos (Tropical Malady, 2004), de Apichatpong Weerasethakul.
Quando vi este filme, tive a certeza de que ele deveria ser referenciado no roteiro,
pois o tipo de obra que, a meu ver, Caio Fernando Abreu adoraria. Dividido em
duas partes, Tropical Malady comea mostrando um relacionamento homossexual
sem maiores conflitos o grande conflito parece ser o fato de que todos encaram
aquele romance com naturalidade. Na primeira parte, o namoro dos dois em uma
sala de cinema uma das imagens que evocam o universo de Caio Fernando
Abreu. Na segunda metade, os dois atores mudam de personagens e se estabelece
uma histria fantstica: um soldado acaba se defrontando com o esprito de um tigre
xam. Aqui, o lado fantstico me lembrou de todo o primeiro universo do escritor,
marcado por uma prosa no s intimista, mas tambm afastada da abordagem mais
cronstica e geracional. Ao mesmo tempo, a insero da citao de Mal dos trpicos
no deixa de trazer tona o outro momento em que Cristiane aparece no nibus e
h a frase de Oscar Wilde pichada no muro.
J de manh, Cristiane cruza por Arthur e Dbora. Depois de uma cena
rpida dos dois (a ser comentada mais adiante), esta sai do prdio do protagonista
do conto MORANGOS MOFADOS. Ento, surge uma cena totalmente criada no
388
255
H, inclusive, uma longa citao de Pierrot le fou, de Godard.
391
256
preciso lembrar que Ugo Giorgetti escolheu Bar Esperana, de Hugo Carvana, como um dos
dez filmes que ele levaria para uma ilha deserta. Ver Ilha deserta filmes. So Paulo: Publifolha,
2007. p .214-215. O paralelo entre estes dois realizadores pede uma pesquisa que, salvo engano,
ainda no foi feita.
392
257
O desfecho otimista tambm preparado pela montagem que, posteriormente, une muitos
personagens do filme ao som de Check Up, de Raul Seixas. Este momento, que no busca eclipsar
as dores de cada um deles, prope um dilogo com uma das cenas finais de Bicho de sete cabeas.
Depois de todas dificuldades, o protagonista parece reencontrar um ponto de equilbrio. Ele caminha
pelas ruas, ao som da msica Bicho de sete cabeas (Z Ramalho e Geraldo Azevedo), entoada por
Zeca Baleiro.
393
258
Especificando: o roteiro apresenta trs fases de tamanho distintos, que vo ficando cada vez
menores. Na primeira formatao, com 103 pginas, o TEMPO 1 ocupava cerca de 44 pginas
(42,7%); o TEMPO 2, durava 32,5 (31,5%), e o TEMPO 3 acontecia durante 26,5 pginas (26,5%).
De certa forma, este ritmo criado pela quantidade de cenas em cada poca pareceu bem
interessante: o passado distante o momento de maior nmero de acontecimentos; o pretrito mais
recente tem um pouco menos de fatos, e o final concentrado. Isso no quer dizer que no
ocorreram tentativas para deixar as partes mais equilibradas, mas cada mudana parecia quebrar
uma estrutura mais coesa.
395
CONSIDERAES FINAIS
No final de Fale com ela, Benigno est morto e Alicia sobreviveu o estupro
lhe fez voltar vida. Marco (Daro Grandinetti) passa a morar no apartamento dele,
at para esquecer que Lydia (Rosrio Flores) no resistiu ao coma. Em um teatro,
Marco fica emocionado diante de uma coreografia. Alicia e Katherine Belova
(Geraldine Chaplin), prximas dele, veem o mesmo espetculo. No intervalo,
enquanto Katherine vai comprar gua, Alicia e Marco encontram-se no saguo e
travam um dilogo cheio de frases interrompidas. Na volta para a plateia, Alicia
afasta-se, e a professora vai at Marco. Katherine, consciente da maior parte dos
fatos, quer saber sobre a conversa do saguo. Depois de dizer a verdade, ele
convidaa para, quem sabe, num dia prximo, conversar e tomar um caf, vai ser
mais simples do que a senhora imagina. Ela rapidamente responde: nada
simples. Ento, com todos acomodados em suas cadeiras, letreiros surgem na tela:
a inscrio MARCO Y ALICE sinaliza que os dois passaro a se relacionar dali para
frente. A coreografia embala o desfecho e os crditos finais aparecem. No meio
deste encerramento, a cmera abandona o espetculo e enquadra uma parte do
cenrio da dana: uma vegetao com um verde exuberante.
A cena possui diversas interpretaes, mas aqui sua lembrana reitera que o
cinema de Almodvar um trao comum entre o imaginrio de Caio Fernando Abreu
e aquele apresentado pelo roteiro. Na obra de Caio possvel detectar citaes,
crticas, e at paralelismos e dilogos com a obra do realizador espanhol. J no
roteiro h uma influncia aberta no s de certos filmes, mas de determinadas
abordagens temticas. Por um lado, h aluses a obras realizadas depois do
desaparecimento de Caio Fernando Abreu, como Abraos Partidos e,
evidentemente, Fale com ela. Por outro, a postura amoral do primeiro Almodvar,
tratando o sexo e as drogas sem nenhum tabu, pode ser vista no roteiro.
Essa presena de Almodvar como amlgama entre o roteiro e a literatura de
Caio proporciona um retorno rpido aos dois primeiros captulos desta pesquisa. O
que ficou da ampla quantidade de filmes lembrados, da anlise da influncia da
linguagem cinematogrfica na construo textual, e da valorizao da sala de
cinema como espao de libertao?
397
sobre as originais evidente que algumas vezes quase todo o conto foi deletado,
mas algo escrito por Caio sempre permanecia na pgina, encarando o roteirista,
desafiando-o a apag-lo. Esta relao, mais do que tentar guardar fidelidade, foi
fruto de um texto-base cujas qualidades flmicas pareceram neste processo
sobrepujar as diversas nuances preponderantemente literrias. Neste sentido,
trabalhar literalmente em cima dos contos no impediu que surgissem novas ideias,
como alterao do sexo de personagens, novos dilogos, mudanas de desfecho, e
a insero do imaginrio pessoal do roteirista. Ou seja, as traies salutares tambm
apareceram a mancheias.
Centrando rapidamente o foco no processo de adaptao da cada conto, os
relatos que mais apresentaram dificuldades de transposio foram Alm do ponto e
Pra, uva ou ma?. Nos dois, o problema apareceu quando os personagens
contam longas histrias que se mostraram relevantes ao roteiro. Em compensao,
o fato do primeiro ser narrado pelo protagonista e o segundo, pelo psiquiatra da
personagem principal, no fez grande diferena (talvez com exceo do primeiro
exigir a inveno de algum para escutar). Alis, preciso salientar que a adaptao
de Morangos mofados foi pouco influenciada pela pessoa do narrador, pelo tempo
verbal, e pela quantidade de pensamentos internos dos personagens de cada
conto259.
Continuando a pensar sobre a influncia da anlise cinematogrfica da obra
de Caio, foi graas a ela que consegui agregar outros contos queles do livro-base.
Ento, chama a ateno o fato de que Aconteceu na Praa XV, de Pedras de
Calcut, se transformou em uma pea fundamental para a narrativa.
Essa pea fundamental foi justamente a que proporcionou a criao de cenas
em que personagens vo o cinema. Como em Godard, Truffaut e Wim Wenders,
nunca faltou cena de sala escura em Caio Fernando Abreu. Mesmo que o roteiro
no desenvolva o apetite cinfilo dos personagens, o cinema algo extremamente
presente no roteiro desde a lembrana de filmes exibidos, das salas, at a criao
de um curta-metragem, passando pela insero de algumas citaes. Se em alguns
contos de Caio Fernando Abreu o cinema se contrape caretice do mundo, se
torna droga viciante, em Morangos mofados o filme, a imagem de Alice e Pedro
indo ao cinema transmite um momento de vigor, juventude e paixo. J na ltima
259
O processo de adaptao de Visconti, evocado l na Introduo, parece presente aqui.
399
Com tantas perguntas e propostas, talvez seja a hora de voltar a Fale com
ela. Os crditos finais se sobrepem ao espetculo. A cmera sobe. Na cabea, a
frase da personagem de Geraldine Chaplin: Nada fcil.
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Nova York: Criterion Colection, 2008. p. 7-12.
413
ENDEREOS ELETRNICOS
DVD EXTRAS
AVELLAR, Jos Carlos. Sobre Guerra conjugal. In: Guerra conjugal. DVD. EXTRA.
Rio de Janeiro: Videofilmes, 2008.
FILMOGRAFIA
32 curtas sobre Glenn Gould (Thirty Two Short Films about Glenn Gould, 1993)
dir.: Franois Girard; rot.: Girard e Don McKellar.
8 ! (1963) dir.: Federico Fellini; rot.: Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano e Brunello
Rondi.
Abraos Partidos (Los abrazos rotos, 2009) dir. e rot.: Pedro Almodvar
Absolutamente Certo (1957) dir.: Anselmo Duarte, rot.: Duarte, Thalma de Oliveira, Jorge Ileli,
Jorge Dria e J. Miguel.
Lge des possibles (1995) dir.: Pascale Ferran; rot.: Ferran e Anne-Louise
Trividic.
Aguirre, a clera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes, 1972) dir. e rot.: Werner
Herzog.
Amantes do Crculo Polar (Los amantes del Crculo Polar, 1998) dir. e rot.: Julio
Medem.
Amargo Regresso (Coming Home, 1978) dir.: Hal Ashby; rot.: Nancy Dowd,
Robert C. Jones e Waldo Salt.
415
O amor no tem sexo (Prick Up Your Ears, 1987) dir.: Stephen Frears; rot.: Alan
Bennet, baseado em John Lahr.
Amores parisienses (On connat la chanson, 1997) dir.: Alain Resnais; rot.:
Agns Jaoui e Jean-Pierre Bacri.
ngelo anda sumido (1997) dir. Jorge Furtado; rot.: Furtado e Rosngela
Cortinhas.
Um anjo em minha mesa (An Angel at My Table, 1990) dir.: Jane Campion rot.:
Laura Jones, baseado em Janet Frame.
Antes do pr-do-sol (Before Sunsrise, 2004) dir.: Richard Linklater; rot.: Linklater
e Kim Krizak.
Apocalypse Now (1979) dir.: Francis Ford Coppola; rot.: John Milius, baseado em
Joseph Conrad.
Aqueles dois (1985) dir.: Srgio Amon; rot.: Srgio Amon e Pablo Viersi, baseado
em Caio Fernando Abreu
rido movie (2005) dir.: Lrio Ferreira; rot.: Ferreira, Hilton Lacerda, Eduardo
Nunes e Srgio Oliveira.
Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) dir.: Robert Altman; rot.:
Altman, Bob Balabam e Julian Fellowes.
As aventuras de Tom Jones (Tom Jones, 1963) dir.: de Tony Richardson ; rot.:
John Osborne, baseado em Henry Fielding.
O baile (Le bal, 1983) dir.: Etore Scola; rot.: Scola, Ruggero Maccari, Jean-Claude
Penchenat e Furio Scarpelli.
Bande part (1964) dir. e rot.: Jean-Luc Godard, baseado em Dolores Hitchens.
O banheiro do papa (El bao del papa, 2007) dir. e rot.: Cesar Charlone e
Enrique Fernndez.
Bar Esperana (1983): dir.: Hugo Carvana; rot.: Carvana, Martha Alencar, Denise
Bandeira, Armando Costa e Euclydes Marinho.
Barbarella (1969) dir.: Roger Vadim; rot.: Vadim e Terry Southern, baseado em
Jean-Claude Forest.
Barril de plvora (Bure Baruta, 1998) dir.: Goran Paskaljevic; rot. : Paskaljevic,
Filip David, Zoran Andrc e Dejan Dukovski, baseado em Dukovski.
Bel Indiffrent (1957): dir. e rot.: Jacques Demy, baseado em Jean Cocteau.
Besame Mucho (1984) dir. Francisco Ramalho Jr.; rot.: Ramalho Jr. e Mrio
Prata.
Bicho de sete cabeas (2001) dir.: Las Bodanski; rot.: Luiz Bolognesi, baseado
em Austragsilo Carrano.
Blade Runner (1982) dir.: Ridley Scott; rot.: Hampton Fancer e David Webb,
baseado em Philip K. Dick.
Boccaccio 70 (1962) A rifa (La riffa): dir.: Vittorio De Sica, rot.: Cesare Zavatini; A
tentao do Dr. Antnio (La tentazioni del dottor Antonio): dir.: Federico Fellini, rot.:
Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinneli e Brunello Rondi; Renzo e Luciana: dir.: Mario
Monicelli, rot.: Luchino Giovanni Arpino, talo Calvino e Suso Cecchi dAmico O
trabalho (Il lavoro): dir.: Luchino Visconti, rot.: Visconti e Suso Cecchi d Amico.
Bosna! (1994), dir.: Bernand-Henri Lvy e Alain Ferrari; rot. Lvi e Gilles Herzog.
417
Cada um vive como quer (Five Easy Peaces, 1970) - dir.: Bob Rafelson; rot.:
Carole Eastman.
Caf e cigarros (Coffe and Cigarretes, 2003) dir. e rot.: Jim Jarmusch.
Cais das sombras (Le quais de brumes, 1938) dir.: Marcel Carn; rot.: Jacques
Prvert, baseado em Pierre Dumarchais.
Camelot (1967) dir.: Joshua Logan; rot.: Alan Jay Lerner, baseado em sua pea, e
em T.H. White.
Cantando na chuva (Singin in the rain,1952) dir.: Stanley Donen & Gene Kelly;
rot.: Adolph Green e Betty Comden.
Um co andaluz (Un chien andalou, 1929) dir. Luis Buuel; rot.: Luis Buuel e
Salvador Dal.
Carmen (1983) dir.: Carlos Saura; rot.: Saura e Antonio Gades, baseado em
Prosper Merime.
Casablanca (1942) dir.: Michael Curtiz; rot.: Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e
Howard Koch, baseado em Murray Burnett e Joan Alison.
Cenas de famlia (Mr. & Mrs. Bridge, 1990) dir.: James Ivory; rot.: Ruth Prawer
Jhabvala, baseado em Evan. S. Cornell.
O cu pode esperar (Heaven Can Wait, 1978) dir.: Warren Beatty e Buck Herry;
rot. Beatty e Elaine May, baseado em Harry Segall.
O cu que nos protege (The sheltering sky, 1990) dir.: Bernardo Bertolucci; rot.:
Bertolucci e Mark Peploe, baseado em Paul Bowles.
Cidado Kane (Citzen Kane, 1941) - dir.: Orson Welles; rot.: Welles e Herman J.
Mankiewicz.
Cidade de Deus (2002) dir. Fernando Meirelles; rot.: Brulio Mantovani, baseado
em Paulo Lins.
418
Cidade dos sonhos (Mulholland Dr., 2001) dir. e rot.: David Lynch.
Cidade oculta (1986) dir.: Chico Botelho; rot.: Botelho, Arrigo Barnab, Luiz Ge e
Walter Rogrio.
Uma cidade sem passado (Das schreckliche Mdchen, 1990) dir. e rot.: Michael
Verhoeven.
Cinco vezes favela (1962) Z da cachorra: rot. e dir.: Miguel Borges; Couro de
gato: dir.: Joaquim Pedro de Andrade, rot.: Joaquim Pedro e Domingos de Oliveira;
Escola de Samba Alegre: dir.: Cac Diegues, rot. Diegues e Carlos Estevo; Um
favelado: dir. e rot.: Marcos Farias; Pedreira de So Diego: dir.: Leon Hirszman, rot.:
Hirszman e Flvio Migliacio.
Cinderela em Paris (Funny Face, 1957) dir. Stanley Donen; rot.: Leonard Gershe.
Cinema Paradiso (Nuovo cinema Paradiso, 1988) dir.: Giuseppe Tornatore; rot.:
Tornatore e Vanna Paoli.
O cobrador (Cobrador: in god we trust, 2006) dir. e rot.: Paul Leduc, baseado em
Rubem Fonseca.
Conflitos de amor (La ronde, 1950) dir.: Max Ophuls; rot.: Ophuls e Jacques
Natanson, baseado em Arthur Schnitzler.
Corao iluminado (Corazn Iluminado, 1988) dir. Hector Babenco; rot.: Ricardo
Piglia.
Corra Lola, corra (Lola Rent, 1998) dir. e rot.: Tom Tykwer.
Crash no limite (Crash, 2004) dir.: Paul Haggis; rot.: Haggis e Robert Moresco.
419
Dlia negra (The Black Dhalia, 2006) dir.: Brian De Palma; rot.: Josh Friedman,
baseado em James Ellroy.
Dama da noite (1999) dir. e rot. Mario Diamante, baseado em Caio Fernando
Abreu, Gilberto Gawronski e Hlio Dias.
Danando com um estranho (Dancing with a stranger, 1985) dir.: Mike Newel;
rot.: Shelagh Delaney.
De caso com o acaso (Sliding Doors, 1998) dir. e rot.: Peter Howitt.
Desejos proibidos (Madame de..., 1953) - dir.: Max Ophuls; rot.: Ophuls, Marcel
Achard e Annette Wadermant, baseado em Louise Vilmorin.
O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964) dir.: Michelangelo Antonioni; rot.:
Antonioni e Tonino Guerrra.
Deu pra ti anos 70 (1981) dir.: Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil; rot.: Nelson
Nadotti, Giba Assis Brasil e lvaro Luiz Teixeira.
Deus e o diabo na terra do sol (1964) dir.: Glauber Rocha; rot. Rocha, Walter
Lima Jr. e Paulo Gil Soares.
O dia que Urano entrou em Escorpio (1985) dir. e rot.: Roberto Henkin e Srgio
Amon, baseado em Caio Fernando Abreu.
Diabo no corpo (Le Diable au corps) dir.: Claude Autant-Lara; rot.: Jean Aurenche
e Pierre Bost, baseado em Raymond Radiguet.
Diablica (1998, episdio do longa Traio) dir. e rot.: Cludio Torres, baseado em
Nelson Rodrigues.
Dirio de um proco de aldeia (Le Journal dun cur de campagne, 1951) dir. e
rot.: Robert Bresson, baseado em Robert Bernanos.
Dias melhores viro (1989) dir.: Cac Diegues; rot.: Diegues, Antnio Calmon e
Vicente Pereira.
420
Diva (1981) dir.: Jean-Jacques Beneix; rot.: Beneix e Jean Van Hamme, baseado
em Daniel Odier.
Drive, he said (1971) dir.: Jack Nicholson; rot.: Jaremy Larner, Jack Nicholson,
Robert Towne e Terence Malick, baseado em Jeremy Larner.
Drugstore Cowboy (1989) dir.: Gus Van Sant; rot.: Van Sant e Daniel Yost,
baseado em James Fogle.
Duas inglesas e o amor (Les deux Anglaises et le continent, 1971) dir.: Franois
Truffaut; rot.: Truffaut e Jean Gruault, baseado em Henri-Pierre Roch.
Dubl de corpo (Body Double, 1984) dir.: Brian De Palma; rot. De Palma e Robert
J. Avrech.
Eduardo II (Edward II, 1991) dir.: Derek Jarman; rot.: Jarman, Stephen McBride e
Ken Butler, baseado em Christopher Marlowe.
Os eleitos (The right stuff, 1983) dir. e rot.: Philip Kaufman, baseado Tom Wolfe.
Ensaio de orquestra ( Prova dorchestra, 1978) dir.: Federico Fellini; rot.: Fellini e
Brunello Rondi.
Era uma vez na Amrica (Once Upon a Time in America, 1984); dir.: Sergio Leone;
rot.: Leone, Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli e
Franco Ferrini.
A escolha de Sofia (Sophias Choice, 1982) dir. e rot.: Alan J. Pakula, baseado
em Willian Styron.
Essa pequena uma parada (Whats up, doc?, 1972) dir. Peter Bogdonovich;
rot.: Buck Henry, David Newman e Robert Benton.
Estorvo (2000) dir. e rot.: Ruy Guerra, baseado em Chico Buarque de Hollanda.
A estrada da vida (La strada, 1954) dir.: Federico Fellini; rot.: Fellini, Tulio Pinelli,
Ennio Flaiano.
A estrada perdida (Lost Higway, 1997) dir.: David Lynch; rot.: Lynch e Barry
Giford.
421
Estranhos no paraso (Stranger than Paradise, 1984) dir. e rot.: Jim Jarmusch.
A estrela sobe (1974) dir.: Bruno Barreto; rot.: Barreto, Isabel Cmera, Cac
Diegues e Leopoldo Serran, baseado em Marques Rabelo.
Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituda (Cristiene F: Wir Kinder vom
Bahnhof Zoo, 1981) dir.: Uli Edel; rot. Edel e Herman Weigel, baseado em Kai
Hermann e Horst Rieck.
Excalibur (1981) dir.: John Boorman; rot. Boorman, Rospo Pallenberg, baseado
em Thomas Malory.
Fale com ela (Hable con ella, 2002) dir. e rot.: Pedro Almodvar.
A famlia (La famiglia, 1987) dir. Ettore Scola; rot.: Scola, Graziano Diana,
Ruggero Maccari, Furio Scarpelli.
Festim diablico (Rope, 1948) dir.: Alfred Hitchcock; rot.: Hume Cronyn e Arthur
Laurents, baseado em Patrick Hamilton.
Fome de viver (The Hunger, 1983) dir.: Tony Scott; rot.: James Costigan, Ivan
Davis e Michael Thomas, baseado em Whitley Strieber.
O fundo do corao (One from the heart, 1982) dir.: Francis Ford Coppola; rot.:
Coppola e Armyan Bernstein.
A fria (The fury, 1978) dir.: Brian De Palma; rot.: John Farris, baseado em seu
romance.
Garotos de programa (My Own Private Idaho 1991) dir. e rot.: Gus Van Sant.
422
Garrincha, alegria do povo (1963) dir.: Joaquim Pedro de Andrade; rot.: Joaquim
Pedro, Luiz Carlos Barreto, Mrio Carneiro, David Neves e Armando Nogueira.
Gilda (1946) - dir.: Charles Vidor; rot: Jo Eisinger, Marion Parsonnet e Ben Hecht,
baseado em E.A. Ellington.
Ginger e Fred (1986) dir.: Federico Fellini; rot.: Fellini, Tonino Guerra e Tulio
Pinelli.
La Glac Trois Faces (1927) dir. e rot.: Jean Epstein, baseado em Paul Morand.
Os gritos do silncio (The Killing Fiels, 1984) dir.: Roland Joff; rot.: Bruce
Robinson.
A guerra acabou (La guerre est finie, 1966) dir.: Alain Resnais; rot.: Jorge
Semprn.
Guerry (2002) dir.: Gus Van Sant; rot. Van Sant, Casey Affleck e Matt Damon.
Health (1979) dir.: Robert Altman; rot: Altman, Frank Barhydt e Paul Dooley.
Henry e June (1990) dir.: Philip Kaufman; rot.: Kaufman, Rose Kaufman, baseado
em Anais Nin.
Heri por acidente (Hero, 1992) dir.: Stephen Frears; rot. David Webb Peoples.
Hiroshima, mon amour (1959) dir.: Alain Resnais; rot.: Marguerite Duras.
A histria de Adle H. (LHistoire dAdle H., 1975) dir.: Franois Truffaut; rot.:
Truffaut, Jean Gruault, Suzanne Schiffman, baseado em Frances V. Guille.
Louis Malle, rot.: Malle e Clement B. Wood; Toby Dammit: dir.: Federico Fellini; rot.
Fellini e Bernardino Zapponi. Todos roteiros baseados em Edgar Allan Poe.
Homem elefante (The efephant man, 1980) dir. David Lynch; rot.: Lynch,
Christopher De Vore e Eric Bergren, baseado em Sir. Frederick Treves e Ashley
Montagu.
A hora da estrela (1985) dir.: Suzana Amaral, rot.: Amaral e Alfredo Oroz,
baseado em Clarice Lispector.
A hora mgica (1998) dir. e rot.: Guilherme de Almeida Prado, inspirado em Julio
Cortzar.
As horas (The hours, 2002) dir.: Stephen Daldry; rot.: David Hare, baseado em
Michael Cunningham.
A ilha das cangaceiras virgens (1976) dir.: Roberto Mauro, rot.: Mauro e Irvando
Luiz.
Os imorais (The grifters, 1990) dir.: de Stephen Frears; rot.: Donald E. Westlake,
baseado em Jim Thompson.
Infmia (The Childrens Hour, 1961) dir.: Wylian Wyler; rot.: Lilian Helm, baseado
em seu livro.
Inimigo (2006) dir. e rot.: Mariana Neibert, baseado em Caio Fernando Abreu.
O inquilino (Le Locataire, 1976) dir.: Roman Polanski; rot.: Polanski, Grard Brach
e Roland Topor.
Instinto selvagem (Basic Instinct, 1992) dir. Paul Verhoeven; rot.: Joe Eszterhas.
Iracema, a virgem dos lbios de mel (1979) dir.: Carlos Coimbra; rot.: Coimbra e
Za Jnior.
Irmo sol, irm lua (Fratello Sole, Sorella Luna, 1972) dir.: Franco Zefirelli; rot.:
Zefirelli, Suso Cecchi dAmico, Kenneth Ross, Lina Wertmller.
424
Janela indiscreta (Rear Window, 1954) dir.: Alfred Hitchcock; rot.: John Michael
Hayes, baseado em Cornell Woolrich.
O jardim secreto (The Secret Garden) dir. Agnieszka Holland; rot.: Caroline
Thompson, baseado em Frances Hodgson.
Jim da selva O vale dos canibais (Jungle Man-Eaters, 1954) dir.: Lee Sholem;
rot.: Samuel Newman.
Jules e Jim (Jules et Jim) dir.: Franois Truffaut; rot.: Truffaut e Jean Gruault,
baseado em Henri-Pierre Roch.
Julia (1977) dir.: Fred Zinnemann; rot.: Alvin Sargent, baseado em Lilian Hellman.
The Jungle Princess (1936) dir.: Wilhelm Thiele; rot.: Gerald Geraghty, Cyril
Hume, Gouverneur Morris e Frank Partos.
Kaos (1984) dir.: de Paulo e Vittorio Taviani; rot: irmos Taviani e Tonino Guerra,
baseado em Luigi Pirandello.
Os ladres (Le voleurs, 1996) dir.: Andr Tchin; rot.: Tchin, Gilles Taurand,
Michel Alexandre e Pascal Bonitzer.
Lady Chatterley (2006) dir.: Pascale Ferran; rot.: Ferran, Roger Bohbot e Pierre
Trividic, baseado em D.H.Lawrence.
As lgrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Trnen der Petra von Kant,
1972) dir. e rot.: Rainer Werner Fassbinder, baseado em uma pea sua.
Lavoura arcaica (2001) dir. e rot.: Luiz Fernando Carvalho, baseado em Raduan
Nassar.
A lei do desejo (La ley del deseo, 1987) dir. e rot.: Pedro Almodvar.
Lio de amor (1975); dir.: Eduardo Escorel; rot.: Escorel e Eduardo Coutinho,
baseado em Mrio de Andrade.
Liebelei (1932) dir. Max Ophuls; rot. Ophuls, Curt Alexander e Felix Salten, baseado em Arthur
Schnitzler.
425
Lili Marlene ( Lili Marleen, 1981); dir. Rainer Werner Fassbinder; rot.: Fassbinder,
Manfred Purzer, Joshua Sinclair, baseado em Lale Andersen.
Linda, um filme horrvel (2007); dir. e rot.: Elisa Simcza, baseado em Caio
Fernando Abreu.
Lola Monts (1955) dir.: Max Ophuls; rot.: Ophuls, Annette Wademant, Jacques
Natanson, baseado em Cecil Saint-Laurent.
O louco (2007) dir.: Fabiano de Souza; rot.: Fabiano de Souza e Vicente Moreno,
baseado em Dyonelio Machado.
Lua de fel (Bitter Moon, 1993) dir.: Roman Polanski; rot.: Polanski, Grard Brach,
John Brownjohn, Jeff Gross, baseado em Pascal Bruckner.
Lua de papel (Paper Moon, 1973) dir.: Peter Bogdanovich; rot.:Alvin Sargent,
baseado em Joe David Brown.
M.A.S.H (1970) dir.: Robert Altman; rot.: Ring Lardner Jr., baseado em Richard
Hooker.
Madame Bovary (1933) dir. e rot.: Jean Renoir, baseado em Gustave Flaubert.
Madame Bovary (1949) dir.: Vicente Minelli rot.: Robert Aldrey, baseado em
Gustave Flaubert.
Madame Sat (2002) dir.: Karim Ainouz; rot.: Ainouz, Marcelo Gomes, Sergio
Machado e Mauricio Zacharias.
A me (Mat, 1926) dir. Vsevolod Pudovkin; rot. Nathan Zakhi, baseado em Mximo
Gorky.
O mgico de Oz (The Wizard of Oz, 1939) dir.: Victor Fleming; rot.: Noel Langley,
Florence Ryerson e Edgar Allan Woolf, baseado em L. Frank Braum.
426
Mal dos trpicos (Tropical Malady, 2004) dir. e rot.: Apichatpong Weerasethakul.
Mala Noche (1985) - dir. e rot.: Gus Van Sant, baseado em Walt Curtis.
A malvada (All About Eve, 1950) dir. e rot.: Joseph L. Mankiewicz, baseado em
Mary Orr.
O manto sagrado (The Robe, 1953) dir.: Herny Koster; rot.: Philip Dunne, Gina
Kaus e Ibert Maltz, baseado em Lloyd C. Douglas.
Me beija (1984) dir.: Werner Schneman; rot.: Schneman, Rudi Lageman e Giba
Assis Brasil.
Memrias do crcere (1983) dir. e rot.: Nelson Pereira dos Santos, baseado em
Graciliano Ramos.
Merry Crhistmas, Mr. Lawrence (1983) dir.: Nagisa Oshima; rot.: Oshima e Paul
Mayesberg, baseado em Laurens Van der Post.
Metrpolis (Metropolis, 1927) dir.: Fritz Lang; rot.: Fritz Lang e Thea von Harbou,
baseado em Thea von Harbou .
Meu maior amor (My Foolish Heart, 1949) dir.: Mark Robson, rot.: Julius J.
Epstein e Philip G. Epstein, baseado em J.D. Sallinger.
Meu tio da Amrica (Mon Uncle dAmerique, 1980) dir.: Alain Resnais; rot.: Jean
Gruault, baseado em Henri Laborit.
Minha adorvel lavanderia (My Beautiful Laundrette, 1985) dir.: Stephen Frears;
rot.: Hanif Kureishi.
427
Morte em Veneza (Morte a Venezia, 1971) dir. Luchino Visconti; rot.: Visconti e
Nicola Badalucco, baseado em Thomas Mann.
A mosca (The fly, 1986) dir.: David Cronenberg; rot.: Charles Edward Pogue,
baseado em George Langelaan.
A mulher binica (2008) dir. e rot.: Armando Praa, baseado em Caio Fernando
Abreu.
Uma mulher descasada (An unmarried woman, 1978) dir. e rot.: Paul Mazurski.
Muriel (Muriel ou Le temps dun retour, 1963) dir.: Alain Resnais; rot.: Jean Caryol.
No estou l (Im not threre, 2007) dir.: Todd Haynes; rot.: Haynes e Oren
Moverman.
Noites felinas (Les nuits fauves, 1992) dir.: Cyril Collard; rot.: Collard e Jacques
Fieschi.
Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens,1922) dir. F.W. Murnau; rot.:
Hernrik Galeen, baseado em Bram Stocker.
Nosferatu: o vampiro da noite (Nosferatu Phantom der Natch, 1978): dir. e rot.:
Werner Herzog, baseado em Bram Stocker.
O que ter acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane, 1962)
dir.: Robert Aldrich; rot. Lukas Helles, baseado em Henry Farrel.
428
Onde andar Dulce Veiga? (2007) dir. e rot.: Guilherme de Almeida Prado,
baseado em Caio Fernando Abreu.
Orfeu negro (1959) dir.: Marcel Camus; rot.: Camus e Jacques Viot, baseado em
Vincius de Moraes.
Outras estrias (1999) dir.: Pedro Bial; rot.: Bial e Alcione Arajo, baseado em
Guimares Rosa.
O pagamento final (Carlitos Way, 1993) dir.: Brian De Palma, 1993); rot.: David
Koepp, baseado em Edwin Torres.
Paisagem na neblina (Topio stin omichli, 1988). dir.: Theo Angelopolous; rot.:
Angelopolous, Tonino Guerra e Thanassis Valtinos.
Paixes que alucinam (Shock Corridor, 1963) dir. e rot.: Samuel Fuller.
Paranoid Park (2007) dir. e rot.: Gus Van Sant, baseado em Blake Nelson.
Paris no vero (Haut bas fragile, 1995) dir.: Jacques Rivette; rot.: Rivette, Pascal
Bonitzer, Laurence Cote, Marianne Denicourt, Nathalie Richard e Christine Laurent.
Passagem para a ndia (A Passage to India, 1984) dir. e rot.: David Lean,
baseado em E.M. Forster e Santha Rama Rau.
Pela passagem de uma grande dor (2005) dir. e rot.: Bruno Polidoro, baseado
em Caio Fernando Abreu.
Pepi, Luci, Bom Y otras chicas del montn (1980) - dir. e rot.: Pedro Almodvar.
Perdas e danos (Damage, 1992) dir.: Louis Malle; rot.: David Hare, baseado em
Josephine Hart.
Perdidos na noite (Midnight Cowboy, 1969) dir.: John Schlesinger; rot.: Waldo
Salt, baseado em James Leo Herlihy.
Performance (1970) dir.: Donald Cammel e Nicholas Roeg; rot.: Donald Cammel e
Anita Pallenberg.
Le pril jeune (1995) dir.: Cdrick Kaplish; rot.: Kaplish, Santiago Amigorena,
Alexis Galmot e Daniel Thieux.
Petites arrangements avec les morts (1994) dir. Pascale Ferran; rot. Ferran e
Pierre Trividic.
Pixote: a lei do mais fraco (1981) dir.: Hector Babenco; rot.: Babenco, Jorge
Duran, baseado em Jos Louzeiro.
O poderoso chefo (The Godfather, 1972) dir.: Francis Ford Coppola; rot.:
Coppola e Mario Puzo, baseado em romance deste.
Popeye (1980) dir.: Robert Altman; rot. Jules Feiffer, baseado em E.C. Segar.
Porto Alegre de Quintana (2006) dir.: Fabiano de Souza e Gilson Vargas; rot.:
Souza, Vargas, Milton do Prado e Vicente Moreno, baseado em Mario Quintana.
O prazer (Le plaisir, 1952); dir.: Max Ophuls; rot.: Ophuls e Jacques Natanson,
baseado em Guy de Maupassant.
Procurando Mr. Goodbar (Looking for Mr. Goodbar, 1977) - dir. e tor.: Richard
Brooks, baseado em Judith Rossner.
430
Psicose (Psyco, 1960) dir.: Alfred Hitchcock; rot.: Joseph Stefano, baseado em
Robert Bloch.
Pulp Fiction (1994) - dir.: Quentin Tarantino; rot.: Tarantino e Roger Avary.
O quarto verde (La chambre verte, 1978) dir.: Franois Truffaut; rot.: Truffaut e
Jean Gruault, baseado em Henry James.
Querelle (1982) dir.: Rainer Werner Fassbinder; rot.: Fassbinder e Bukhand Driest,
baseado em Jean Genet.
Quilombo (1984) dir. e rot.: Cac Diegues, baseado em Joo Felcio dos Santos,
e Dcio Freitas
Quo Vadis (1951). dir.: Mervyn Leroy; rot.: S.N. Behrman, Sonya Levien e John Lee
Mahin, baseado em Henryk Sienkiewicz.
Rashomon (Akira Kurosawa, 1950) dir.: Akira Kurosawa; rot.: Kurosawa e Shinobu
Hashimoto, baseado em Ryunosuke Akutagawa.
Rastros do vero (1996): dir.: Fabiano de Souza e Cristiano Zanella; rot.: Fabiano
de Souza, baseado em Joo Gilberto Noll.
Relquia macabra (The Maltese Falcon, 1941) dir. e rot.: John Huston, baseado
em Dashiell Hammet.
Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965) - dir.: Roman Polanski; rot.: Polanski, Grard
Brach e David Stone.
Requiem (1998) dir.: Allan Tanner; rot.: Tanner, Bernard Comment, baseado em
Antonio Tabucchi.
A revoluo dos bichos (1981) dir. e rot.: Srgio Amon e Roberto Henkin.
Romance (1998) dir.: Srgio Bianchi; rot.: Fernando Coni Campos, Mrio
Carneiro, Caio Fernando Abreu, Cludia Maradei e Suzana Semedo.
A rosa prpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985) dir. e rot.: Wody Allen.
431
Sammy e Rosie (Sammy and Rosie Get Laid, 1987) dir.: Stephen Frears; rot.:
Hanif Kureishi.
O sangue de um poeta (Le Sang dun pote, 1930) dir. e rot.: Jean Cocteau.
Sanso e Dalila (Samson and Delilah, 1949) dir.: Cecil B. De Mille; rot.: Jesse
Lasky Jr., Fredric M. Frank, Harold Lamb e Vladimir Jabotinky.
Sargento Garcia (2000) dir. e rot.: Tutti Gregianin, baseado em Caio Fernando
Abreu.
Sebastiane (1976) dir.: Derek Jarman e Paul Humfress; rot.: Jarman, Humfress e
James Whaley.
Sem destino (Easy Rider, 1969) dir.: Dennis Hooper; rot.: Peter Fonda, Dennis
Hopper e Terry Southern.
sexo, mentiras e videotape (sex, lies, and videotape, 1989) dir. e rot.: Steven
Soderbergh.
Short Cuts Cenas da Vida (Short Cuts, 1993) dir.: Robert Altman; rot.: Altman e
Framk Barhydt , baseado em Raymond Carver.
O show deve continuar (All that jazz, 1979) dir.:Bob Fosse; rot. Fosse e Robert
Alan Arthur.
Smoking/No Smoking (1993) dir.: Alain Resnais; rot.: Jean-Pierre Bacri e Agns
Jaoui, baseado em Alan Ayckboum.
Os sonhadores (The Dreamers, 2003) dir.: Bernardo Bertolucci; rot.: Gilbert Adair,
baseado em seu romance.
O sonho no acabou (1982) dir.: Srgio Rezende rot.: Rezende, Jorge Durn e
Jos Joffily.
Spider (2002) dir.: David Cronenberg; rot.: Patrick MacGrath, baseado em seu
romance.
Subway (1985) - dir.: Luc Besson; rot.: Besson, Pierre Jolivet, Alain Le Henry, Marc
Perriet, Sophie Schmit.
Suspeita (Suspicion, 1941) dir. Alfred Hitchcock; rot.: Samson Raphaelson, Joan
Harrison e Alma Reville, baseado em Anthony Berkeley.
To longe, to perto (In weiter Ferne, so nah!, 1993) dir.: Wim Wenders; rot.:
Wenders, Richard Reitinger e Ulrich Zieger.
A terceira margem do rio (1994) dir. e rot.: Nelson Pereira dos Santos, baseado
em Guimares Rosa.
Terra estrangeira (1996) dir.: Walter Salles e Daniela Thomas; rot.: Salles,
Thomas, Marcos Bernstein e Millor Fernandes.
A terra treme (La terra trema,Visconti, 1948) dir.: Luchino Visconti; rot.: Visconti e
Antonio Pietrangeli.
Toda nudez ser castigada (1973) dir. e rot.: de Arnaldo Jabor, baseado em
Nelson Rodrigues.
Tootsie (1982) dir.: Sydey Pollack; rot.: Murray Schisgal e Larry Gelbart.
Trs Irmos (Tre Frattelli, 1981) dir.: Francesco Rosi; rot. Rosi e Tonino Guerra,
baseado em Andrei Platonov.
Tudo sobre minha me (Todo sobre mi madre, 1999) dir. e rot.: Pedro
Almodvar.
A ltima estrada da praia (em finalizao) dir. Fabiano de Souza; rot.: Fabiano de
Souza e Vicente Moreno, baseado em Dyonelio Machado
A ltima sesso de cinema (Last Picture Show 1971) dir.: Peter Bogdanovich;
rot.: Bogdanovich e Larry McMurtry, baseado em McMurtry.
433
O ltimo metr (Le dernier mtro, 1980) dir.: Franois Truffaut; rot.: Truffaut e
Suzanne Schiffman.
ltimo tango em Paris (Ultimo tango a Parigi, 1972) dir.: Bernardo Bertolucci; rot.:
Bertolucci e Franco Arcalli.
Os ltimos dias de Pompia (Gli ultimi giorni di Pompei, 1959) dir.: Mario
Bonnard; rot.: Sergio Corbucci, Ennio De Concini, Luigi Emmanuele, Sergio Leone e
Duccio Tessari, baseado em Edward George Bulwer-Lytton.
Um amor de Swann (Un amour de Swann, 1983) dir.: Volker Schlndorff; rot.:
Schlndorff, Jean-Claude Cariire, Marie-Hlne Estienne, baseado em Marcel
Proust.
Um corpo que cai (Vertigo, 1958) dir.: Alfred Hitchcock; rot.: Alec Coppel e
Samuel A. Taylor, baseado em Pierre Boileau e Thomas Narcejac
Um homem, uma mulher, uma noite (Claire de femmes, 1979) dir.: Costa-Gavras;
rot.: Costa-Gavras, Christopher Frank e Milan Kundera, baseado em Romain Gray.
Um s pecado (La peau douce, 1964) dir.: Franois Truffaut; rot.: Truffaut e Jean-
Louis Richard.
Uma simples formalidade (Una pura formalit, 1994) dir. e rot. Giuseppe
Tornatore.
Un air de famille (1996) dir.: Cdrick Kaplisch; rot.: Kaplisch, Agns Jaoui e Jean-
Pierre Bacri, basead em uma pea de Jaoui e Bacri.
Une histoire damour (1933) - dir. Max Ophuls; rot. Andr Doderet, baseado em
Arthur Schnitzler.
Vagas estrelas da Ursa (Vaghe stelle dell Orsa, 1965) dir.: Luchino Visconti; rot.:
Visconti, Susi Cecchi dAmico e Enrico Medioli.
Velvet Goldmine (1998) dir.: Todd Haynes; rot.: Haynes e James Lyons.
Verdes anos (1984) dir. Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil; rot.: lvaro Teixeira,
baseado em Luiz Fernando Emediato.
Vereda tropical (1977) dir. e rot.: Joaquim Pedro de Andrade, baseado em Pedro
Maia Soares.
434
Vicio frentico (Bad Lieutenant, 1992) dir.: Abel Ferrara; rot.: Ferrara, Victor Argo,
Paul Calderon e Zoe Lund.
Victor ou Vitria (Victor Victoria, 1982) dir.: Blake Edwards; rot. Edwards e Hans
Hoemburg.
La vie est un roman (1983) dir.: Alain Resnais; rot.: Jean Gruault.
La vie ne me fait pas peur (1999) dir.: Nomie Lvovsky; rot.: Lvovsky e Florence
Seyvos.
A visita (2007) dir. Gilberto Perin; rot. Angel Palomero, baseado em Caio
Fernando Abreu.
Os vivos e os mortos (The Dead, 1987) - dir.: John Huston; rot.: Tony Huston,
baseado em James Joyce.
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