A Psicologia Social e A Questão Do Hífen
A Psicologia Social e A Questão Do Hífen
A Psicologia Social e A Questão Do Hífen
openaccess.blucher.com.br
Nelson da Silva Junior
Wellington Zangari
(organizadores)
A psicologia social e a
questo do hfen
Programa de Psicologia Social do Instituto de
Psicologia da Universidade de So Paulo
FICHA CATALOGRFICA
Arley Andriolo
Professor-associado do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (IP-USP), onde coorde-
nador do Laboratrio de Estudos em Psicologia da Arte. Bacharel e licenciado em
Belinda Mandelbaum
Concluiu o doutorado (2004) e a livre-docncia (2010) em Psicologia So-
cial pelo Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (IP-USP). Coorde-
na o Laboratrio de Estudos da Famlia do Departamento de Psicologia Social
e do Trabalho. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico (CNPq) de produtividade em pesquisa PQ-2 (2016-2019). Criou,
organizou e supervisiona o Servio de Atendimento a Famlias e Casais (Sefam)
do IP-USP. Realizou estgio na Clnica Tavistock, em Londres, para acompan-
hamento de trabalhos de assistncia psicolgica a famlias, e coordena o inter-
cmbio entre o IP-USP e o Departamento de Estudos Psicossociais da Birkbeck
College/Universidade de Londres. Coordena cursos de extenso sobre prticas
com famlias em instituies dirigidos a profissionais da rede pblica de sade,
da assistncia social, da educao e da rea jurdica. Participou de um projeto de
pesquisa interdisciplinar sobre juventude, violncia e sexualidade na cidade de
So Paulo (2010-2012) com financiamento da Fundao Ford e coordena, desde
2011, o projeto Reconstruo dos Espaos da Memria com Famlias de So Luiz
do Paraitinga, com financiamento da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso da USP.
autora de Psicanlise da famlia (Casa do Psiclogo, 2010, 2. ed.) e Trabalhos
com famlias em psicologia social (Casa do Psiclogo, 2014), alm de diversos
captulos em coletneas e artigos em revistas nacionais e internacionais. chefe
do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP-USP desde 2014.
Fbio de Oliveira
coeditor dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. Possui graduao
em Psicologia pela Universidade de So Paulo (USP) (1992), mestrado em Psico-
logia Social pela mesma universidade (1997) e doutorado em Psicologia Social
pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) (2005). Realizou
estudos de ps-doutoramento no Instituto de Cincias Sociais da Universidade
de Lisboa em 2012. Foi psiclogo do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho
da USP entre 1996 e 2013, docente da PUC-SP entre 1997 e 2013 e coordenador
da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da PUC-SP entre 2001 e
2003. Desde 2006, membro do grupo de trabalho Trabalho e processos organi-
zativos na contemporaneidade da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-grad-
uao em Psicologia (ANPEPP). Sua atividade de pesquisa est voltada para o
estudo dos processos de trabalho no cotidiano a partir das condies concretas e
das relaes entre pessoas. Essa linha de investigao inclui o interesse por temas
como: relaes de poder no trabalho, crtica gesto tradicional, formas de eman-
cipao, autogesto, cooperativismo e economia solidria.
Leny Sato
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). Possui graduao em Psicologia
pela Universidade de So Paulo (USP) (1982), mestrado em Psicologia Social pela
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) (1991), doutorado em
Psicologia Social pela USP (1998) e livre-docncia em Psicologia pela USP (2006).
professora titular do Instituto de Psicologia da USP (IP-USP) desde 2008.
coeditora dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho. Foi docente visitante
na Universidade Autnoma de Barcelona (Espanha) em 2009. Lder do grupo de
pesquisa Trabalho e Processos Organizativos na Contemporaneidade, cadas-
trado no CNPq, em conjunto com prof. Henrique Caetano Nardi, desde 2004.
Autora de publicao sobre leso por esforo repetitivo (LER) que subsidiou de-
ciso judicial do Tribunal Federal do Trabalho sobre sade do trabalhador (2006).
Coordenadora do projeto Feiras e mercados no espao lusfono: experincias de
trabalho, gerao de renda e sociabilidade, com financiamento do CNPq (Edital
Profrica), com pesquisadores de Cabo Verde, Guin-Bissau, Portugal e Brasil.
Coordenadora do projeto Redes Sociais e trabalho informal: estudo de feiras em
So Paulo (SP) e Fortaleza (CE), com pesquisadores da Universidade de Fortale-
za (Unifor), Universidade Federal do Cear (UFC) e da USP.
Curricular por seis anos (at 2002); foi chefe do Departamento de Psicologia
Social por quatro mandatos e membro da comisso executiva da Revista do IP-
USP (at 2007); atualmente, presidente da Comisso de Cooperao Nacional
e Internacional (CCNINT). Em nvel nacional, foi fundadora da Associao Bra-
sileira para o Ensino da Psicologia (Abep) e membro de sua primeira gesto;
representante do Programa de Psicologia Social junto Associao Nacional de
Pesquisa e Ps-Graduao (ANPEPP) (desde 1994), editora da Coleo Psicolo-
gia, Inconsciente e Cultura, da editora Casa do Psiclogo, e membro do conselho
editorial da editora Zagodoni e de vrios peridicos.
Sigmar Malvezzi
Possui graduao em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo (PUC-SP) (1969), mestrado em Psicologia Social pela PUC-SP
(1979), doutorado em Department of Behaviour in Organizations pela Univer-
sity of Lancaster (1989) e livre-docncia pela Universidade de So Paulo (USP)
(2006). Tem atividades regulares como docente visitante em 18 universidades
estrangeiras, entre elas: Universidade Paris V (Frana), Universidade de Coim-
bra (Portugal), Universidade de Lisboa (Portugal) e University of Texas (EUA),
e, atualmente, est vinculado a trs universidades latino-americanas (Univalle
Colmbia, Universidad Tecnolgica Nacional Argentina e Universidad Catli-
ca de Montevideu Uruguai) como professor visitante regular de mestrado e
doutorado. Atua como assessor externo da Fundao de Amparo Pesquisa do
Estado de So Paulo (Fapesp) e da Academy of Management (EUA). Foi docen-
te do Programa Erasmus Mundus WOP-P (Work, Organization and Personnel
Psychology). Professor-associado do Departamento de Psicologia Social. Tem
experincia na rea de psicologia, com nfase em psicologia do trabalho e orga-
nizacional, atuando principalmente nos seguintes temas: organizao, trabalho,
Vera Paiva
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) Nvel 1D. Professora titular no
Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade
de So Paulo (IP-USP) desde 1987. Na ps-graduao, orientadora nos pro-
gramas de Psicologia Social (IP-USP), Medicina Preventiva (Faculdade de Me-
dicina FM-USP) e Sade Pblica (Faculdade de Sade Pblica FSP-USP). Tem
se dedicado inovao das prticas de sade (preveno e cuidado), em especial
no campo da Aids, com nfase no estudo psicossocial da desigualdade das sex-
ualidades e dos gneros. De dezembro de 2016 a maro de 2017, esteve como
visiting scholar no Center for Iberian and LatinAmerican Studies/University of
Califrnia, San Diego, EUA. Coordenou o Ncleo de Estudos para a Preveno
da Aids (Nepaids) da USP, grupo interdisciplinar que congrega, desde 1991, pro-
fessores de diversos programas de ps-graduao na USP e em outras universi-
dades e instituies pblicas de pesquisa e alunos de graduao e ps-graduao
dedicados a ensino, extenso e pesquisa. Desde o Nepaids, tem desenvolvido
extensa colaborao com os programas (nacional, estaduais e municipais) de
Aids. No plano internacional, tem sido consultora junto s Naes Unidas (Or-
ganizao Mundial da Sade OMS; Organizao das Naes Unidas para a
Educao, a Cincia e a Cultura Unesco; Fundo de Populao das Naes
Unidas UNFPa; e Programa Conjunto das Naes Unidas sobre HIV/Aids
Unaids); entre as universidades com as quais manteve intercmbio em ensino
e pesquisa, destacam-se a Columbia University (Public Health) e a University
of Southern California (Medicine San Francisco e Public Health Berkeley),
Harvard University (Public Health), Institut Pasteur/Frana (WAF) e Univer-
sity of California/San Diego. Em 2014-2016, presidiu a Comisso de Direitos
Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP). No Conselho Nacional de
Direitos Humanos (CNDH, Lei 12.986), representou a sociedade civil (2014-
2016). De 2003 a 2007, foi pesquisadora e professora convidada no Social
Medical Department da School of Public Health da Columbia University. Board
da Association for the Social Sciences and Humanities in HIV (2013-2015).
Foi MacArthur Individual Grantee (1991-1994) e Fogarty Fellow na Universi-
dade da Califrnia Berkeley e San Francisco, onde tambm fez ps-doutorado
(1996-1997). Tem 61 artigos publicados em peridicos cientficos, 37 captulos
de livro e 8 livros desde sua primeira publicao em 1985.
Wellington Zangari
Zelia Ramozzi-Chiarottino
Doutora (1970), livre-docente (1982) e titular (1987) em Psicologia Social
pelo Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (IP-USP). Ps-douto-
rada na Universit Degli Studi di Roma (1974/75). Investiga as estruturas funda-
mentais do funcionamento psquico e seus impactos no comportamento psicos-
social. Orientadora do Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia
da USP desde 1976, tem 28 orientaes de mestrado, 21 de doutorado e 2 de
ps-doutorado concludas. Foi bolsista de Produtividade em Pesquisa do Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) Nvel 2.
Atua como assessora externa da Coordenadoria de Aperfeioamento de Pessoal
de Nvel Superior (Capes) e do CNPq. Tem larga experincia internacional, sendo
docente visitante em vrias universidades estrangeiras, entre elas: Universit de
Lyons II (Frana) e Universit de Genve (Suia). declarada principal difusora
da obra de Jean Piaget na Amrica Latina pela Fondation Archives Jean Piaget.
Prefcio........................................................................................ 17
1.2
1.3
Gostaria de propor, no entanto, uma vinculao maior do psquico com o
social, de forma que o psquico s pode ser social e o social s pode ser psquico.
E gostaria de calar esta proposta com algum estudo emprico. Tenho feito, na
verdade, muitos estudos relativos formao da identidade religiosa de conver-
tidos, particularmente de brasileiros catlicos a novas religies japonesas. Esses
estudos, de natureza emprica, tm produzido uma informao que nem sequer
estava sendo buscada a saber, a de que a identidade do convertido s se realiza
quando, ao mesmo tempo, a pessoa se filia ao novo grupo religioso e reelabora
sua cadeia de significantes. Verifiquei que quando falha, total ou parcialmente,
seja a filiao ao grupo, seja a reelaborao dos significantes, no se opera a
converso, ou seja, no se tem uma nova identidade religiosa. O que se obtm
a manuteno da antiga religio, com emprstimos mais ou menos artificiais de
uma segunda ou terceira, ou o relativo enfraquecimento da primeira identidade,
ou a total desidentificao religiosa.
Insisto em que a falncia, total ou parcial, seja na adeso grupal, seja na
reelaborao cognitiva, afeta a formao da identidade em medida recproca:
uma reelaborao insuficiente aponta para uma pertena tambm insuficiente;
uma pertena superficial est em paralelo com uma reelaborao deficiente do
referencial religioso no estudo da converso.
1.4
1.5
Alguns casos ilustrativos, resumidos de publicao anterior (PAIVA, 2007):
A, na Perfect Liberty, h doze anos, mudou o grupo de pertena do catlico
para o da PL; refere-se ao catolicismo como religio anterior e contrape-se a
peelistas que vo a outras religies; declara que do catolicismo no ficou muita
coisa de forte e que, no lugar das coisas deixadas de lado, vieram outras, novas.
A frequenta as atividades de culto da PL e busca orientao de vida com os agen-
tes religiosos peelistas. Demonstra ter mudado, tambm, de simblico religioso,
possuidora que do prottipo peelista: a pessoa e a funo do Fundador, os ensi-
namentos e preceitos, a prece poderosa do oyashikiri, a orientao dos mestres, a
dedicao em tornar artstica a vida de cada dia. Os poucos elementos catlicos
que persistem (os dez mandamentos, o amai-vos uns aos outros, a missa domi-
nical) comparecem sem destaque e podem ser caracterizados como imaginrios.
Na trajetria de A, verifica-se mudana de identidade, pois houve a substituio
(1) de um grupo religioso por outro e (2) de um simblico por outro.
B, na PL h catorze anos, afirma, literalmente, que sempre se identificou
com a igreja [catlica], mas que a PL veio responder a seus questionamentos do
dia-a-dia. Ainda vai missa, mas no pratica os ensinamentos que ouve. Dedica
todo o tempo livre PL, amparada nas referncias peelistas: a pessoa e a funo
mediadora do Fundador, as cerimnias rituais, a palavra salvfica oyashikiri, os
preceitos e prticas relativos elaborao artstica da vida, o carter de espelho
do indivduo, que reflete as falhas e vcios da famlia. B refere-se ao catolicismo e
ao espiritismo como religio e PL como filosofia de vida, com o que, aparente-
mente, aponta realidades para ela no coincidentes. Sua referncia ao catolicismo
precisa ser provocada e restringe-se missa, inoperncia do ensinamento catli-
co e influncia negativa da famlia catlica no praticante. Esses no se tornam,
contudo, elementos que passem a gravitar, ao modo do imaginrio, ao redor da
articulao peelista, o que sugere no se ter ainda estabelecido com exclusividade
um simblico substituto da religio anterior. B d a impresso de que est cami-
nhando para a plena aceitao do simblico da PL, o que parece demonstrar-se
tambm pela intensa dedicao s atividades peelistas e pouca frequentao do
culto catlico.
C filia-se com seriedade ao grupo PL, que, aparentemente, no se encontra
em competio com a religio catlica, qual diz continuar pertencendo. Desta-
ca na PL o engrandecimento pessoal e cultural e a ausncia de qualquer presso
relacionada com a adeso religiosa. Parece relacionar-se com a PL como grupo
de natureza no religiosa, de grande influncia em sua vida pessoal e social. No
parece ter substitudo o simblico religioso anterior por outro simblico religioso,
mas ter acrescentado ao simblico religioso catlico um simblico de tipo socio-
cultural. D a forte impresso de que pertence igualmente a dois grupos, cada
qual com seu simblico: um grupo de apoio socioafetivo eficiente e estruturado (a
PL) e um grupo religioso (catlico).
D tem o prottipo da Seicho-no-ie: inexistncia do pecado, filiao divina
perfeita, o deus interior, a purificao do subconsciente pela leitura dos sutras/
mantras na meditao, o corpo como casulo do esprito, o carma dos antepassa-
dos, o agradecimento constante, a vocao missionria. Refere-se Seicho-no-ie
como sua religio. Em outros momentos, porm, fala da Seicho-no-ie no como
religio, mas como filosofia, que lhe faz compreender melhor a religio catli-
ca, de cujo grupo no se desligou, afirmando que continua catlica, vai igreja
e manda celebrar missas, invoca nominalmente os anjos, l a bblia, mantm o
hbito da orao. C parece, ento, considerar o catolicismo como sua religio de
base, subsumida atualmente pela Seicho-no-ie, e tendente, na Nova Era, a ser, jun-
tamente com as outras religies, absorvida no mesmo vrtice, simplesmente deus
como luz e energia interior. Do ponto de vista do simblico, portanto, revela-se
indefinida, porquanto no possui um eixo de significao que articule os mlti-
plos elementos religiosos de referncia, dando a impresso de que se deixa dirigir
por dois aglomerados religiosos regidos pelo imaginrio, sugerindo ambiguidade
de identidade religiosa e no permitindo, no momento, um juzo do processo
1.6 Concluso
Embora os exemplos tenham dito respeito formao da identidade religiosa,
os princpios de anlise a saber, pertena grupal e elaborao cognitiva do pro-
ttipo do grupo aplicam-se formao de qualquer identidade. Mediante os
conceitos de imaginrio e de simblico, possvel discriminar a natureza tanto
da pertena grupal como da elaborao cognitiva. Quando a pertena grupal
ntida, acompanhada pela correspondente elaborao cognitiva do prottipo
grupal; igualmente, quando a elaborao cognitiva do prottipo grupal ntida,
observa-se pertena inequvoca ao grupo. Em ambos os casos, no se exclui a
permanncia de elementos anteriores, que se mantm imaginariamente na nova
constelao grupal e cognitiva. Inversamente, quando falha uma ou outra, obser-
va-se, nos extremos, a manuteno ou o esvaziamento tanto do simblico cogni-
tivo anterior como da anterior pertena grupal.
Confirma-se, ento, a desnecessidade do hfen em psicossocial, pois tanto a
elaborao psquica quanto a relao grupal acabam sendo uma nica realidade
psicossocial.
Referncias
BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Hachette, [s. d.].
Por que o adjetivo social para fenmenos psicolgicos? Por que falamos em
fenmenos psicossociais? Haver fenmeno cuja inteligibilidade no exija espo-
sar suas determinaes sociais? E haver fenmeno que deva ser interpretado
sem que a interpretao considere o lugar social do intrprete? Todo fenmeno,
exigindo ateno sobre suas determinaes e sobre o ponto de vista de seus intr-
pretes, no exigir ateno social?
Um fenmeno, no modo como se manifesta, inclui a visada daqueles para
quem houve manifestao. O fenmeno e a visada reclamam-se mutuamente. Um
fato aparente, no modo como aparece, inclui a perspectiva daqueles para quem
houve apario. Um fato inclui aqueles que o testemunham: o pendor das teste-
munhas participa da coisa testemunhada. Inversamente, includos no campo do
fato e movendo-se em seu meio, sentimos atraes e presses que nos superam,
vivemos uma influncia como que externa e que mais ou menos dirige nossos tes-
temunhos. Mas eis o assunto que mais especificamente impe-se aqui: condies
sociais parecem informar assiduamente o fenmeno e o ngulo pelo qual o vive-
mos. E parecem inform-los, o fenmeno e o ngulo, simultaneamente.
Um fato, se o tomamos mais objetivamente, pelo lado das coisas, parece so-
cialmente lavrado. Condies sociais parecem ter atuado na gnese do fato, ope-
rando sobre seu aspecto, finalmente, mais insistente e, ento, sobre sua estrutura
ou esquema assumido por sua organizao mais definitiva. Tambm se o tomar-
mos mais subjetivamente, pelo lado dos que o testemunharam, condies sociais
parecem tambm informar o ngulo pelo qual o fato foi vivido. Condies sociais
parecem reconhecveis na posio daqueles para quem e com quem o fato foi
formado. As pessoas movem-se por posies no mundo, tornam-nas suas, assu-
mem-nas como prprias. As pessoas encarnam suas posies. Tambm mudam de
posio e, muitas vezes, participam bem ativamente do surgimento do fato ou de
1 Depois de entregar ao leitor a lembrana e a discusso seguintes, topei pela internet com o
filme nunca mais revisto. Era de 1986 e havia s uma vez feito a experincia de seus poucos
trinta segundos. O que at ontem guardava dele, devo admitir, era menos lembrana do
que parfrase. Minha falha memria afastarase dele quanto a certos aspectos, conferindo-
lhe postios. Ainda assim, foi ele a gui-la. Portanto, imaginao, mais que memria, foi
trazida aqui ao leitor, mas me parece fiel ao argumento do velho e bom filme.
****
Voltemos ao problema inicial, a saber: por que o adjetivo social para fenme-
nos psicolgicos? Por que falamos em fenmenos psicossociais?
Hoje, h muitas maneiras de nos decidirmos sobre o objeto da psicologia.
Seguem tenazes e vlidas certas decises, como: o comportamento; a ao; o tra-
balho; a aprendizagem; a sexualidade humana; os processos cognitivos (a percep-
o, a memria, a imaginao, o pensamento discursivo, a inteligncia, a crena)
ou os processos afetivo-cognitivos (os sentimentos; os desdobramentos corporais
e mentais da exposio aos signos, aos enigmas e aos rostos); a loucura; a solido;
a comunidade e a violncia; a arte e a recepo da arte; a religio e a mstica.
Em certa medida, nenhum desses apareceria por si mesmo como um objeto
de psicologia social. Ou digamos positivamente: quaisquer deles podem contar
como objetos de psicologia social, desde que tomados sob perspectivas que va-
riem o bastante at alguma apresentao de sua constituio no tempo, constitui-
o biogrfica e histrica. A psicologia social reclama alguma forma narrativa na
apresentao de seus objetos. Atingindo ou partindo de crnicas muito pessoais,
reclama historicidade.
Esta metdica exigncia de uma pluralidade de perspectivas at que alcance-
mos traos histrico-biogrficos de manifestao do objeto leva a psicologia so-
cial a uma condio fronteiria, ali onde atendemos, sem parar e imperfeitamente,
a uma necessidade de dilogo com antroplogos, socilogos, economistas, ge-
grafos, artistas, bilogos, engenheiros, fsicos, qumicos, mdicos e historiadores.
A lista de parceiros pode crescer indefinidamente.
Cincia de fronteira ou parceria. E sero imprescindveis, como j aponta-
mos na primeira parte do texto, os parceiros distinguidos por participao no
fenmeno interrogado. o que traz os psiclogos sociais para perto de testemu-
nhas, depoentes, observadores e pensadores naturalmente implicados na trama e
experincia do fenmeno. So cidados sobre os quais caiu um destino comum e
que foi por eles questionado ou interpretado, neles encontrando, individualmente
e tambm coletivamente, algum sentido, alguma pista de sentido e sempre a baliza
de quais sejam os problemas e enigmas a enfrentar. Que sejam eles encontrados
no como objetos de pesquisa, mas como indispensveis interlocutores na in-
terrogao de objetos. So interlocutores em quem a vivncia assumiu ou pode
assumir algum trao de vivncia compartilhada ou experincia. Ser pertinente,
aqui, um argumento com fora de exemplo: no existem, rigorosamente falando,
os oprimidos; existem pessoas que carregam e interrogam a opresso, tendo todas
e cada uma delas o que dizer.
Da que em psicologia social seja amide encarecida a memria dos atores:
o trabalho que realizam sobre lembranas, as lembranas mais solitrias e as
lembranas mais ou menos coletivas (apoiadas por grupos de enraizamento, por
lugares e objetos). Neste ponto, pem-se alguns temas: as lembranas desemba-
raadas e o pensamento; as lembranas amarradas e os esteretipos; a memria
sustentada por condies econmico-polticas da convivncia urbana ou rural e a
memria impedida por condies econmico-polticas da convivncia urbana ou
rural; as lembranas e os mundos, as lembranas e as ideologias.
A psicologia social prope-se eletivamente uma tarefa. Uma tarefa que, como
vimos, exigida pela manifestao cada vez mais objetiva dos fenmenos: variar
perspectivas e conversas at, suficientemente, tomar os fenmenos no tempo da durao
biogrfica e da durao histrica, quando mais ganham revelao, tanto quanto alte-
ridade. Eis uma tarefa que seria lamentvel restringir a psiclogos sociais, o que a tor-
naria, afinal, impossvel. Trata-se de uma tarefa que os psiclogos sociais, tantas vezes,
recebem de outras escolas de psicologia, de outras cincias ou artes e da memria de
cidados leigos. Trata-se de uma tarefa a fomentar em todo e qualquer exerccio de
psicologia, praticado ou no por profissionais. Uma tarefa que vale para a caracteri-
zao do psiclogo social, mas que no exclusivamente sua.
Pois bem, a tarefa eletiva levou-nos, muitas vezes, a fazer notar dois tipos de
fenmenos:
H fenmenos cuja inteligibilidade no pode dispensar percepo histrica,
ao preo de entrarem em distoro quando tomados sob perspectiva unilateral e
sob aspecto abstrato. H fatos que, tomados imediatamente, na redoma do indi-
vduo, fazem valer como acidente fortuito ou violncia o que salvamento, fazem
valer como malicioso engodo de um velho o que justia sem sangue contra um
inescrupuloso agiota.
Interpretaes distorcidas tornam-se graves, sobretudo, quando vm comple-
tar a desmoralizao de pessoas. Certas atitudes ou aes pessoais e coletivas so
tomadas sob ngulos que, isolados, vo isolar: roubando mundo e histria, vo
prop-las como coisas do indivduo ou de seu grupo, facilmente rebaixando-as
como doena, incapacidade ou crime. Coisa mrbida, coisa de nscios ou coisa
imoral. Medicalismo, psicologismo e judicialismo do-se as mos e semeiam mo-
ralismo. Atitudes e aes, sob perspectiva alargada e mais objetiva, revelam coisa
bem diferente de uma doena, uma tolice ou um crime. A distoro serve reitera-
damente justificao e exaltao da dominao e dos dominadores.
Houvesse tempo, trataria aqui, como exemplo, de dois problemas referidos
humilhao racial: de cidads e cidados negros brasileiros (o sentimento de
que o golpe racista fosse dirigido cor da pele e no cor como signo de algum
visado como representante de um grupo subordinado; e o problema de uma ex-
presso to ambgua ou sobretudo equvoca: racismo interiorizado, uma ideia
que precisa ser reexaminada clnica, poltica e teoricamente).
H fenmenos que podemos destacar/assinalar como distintivamente huma-
nos: porque s notados entre ns ou porque, entre ns, so notados em incompa-
rvel regime de complexidade e relevncia (polarizam motivos e aes). Ocorre
que estes fenmenos, indispensveis para a conquista sem esforo do sentimento
de dignidade humana e pessoal, tm em comum, alm de contarem com capaci-
dades semiolgicas e capacidades ticas (o que haveremos de esclarecer), o fato
de no poderem prescindir da companhia de outros humanos para que assumam
suficiente realidade e sentido ou seja, so fenmenos sociais em sentido muito
radical (a sociabilidade e a pluralidade humana no se lhes pe como acrscimo
secundrio, mas como condio necessria, embora no suficiente).
****
Chegados a este ponto, que deveramos entender pelo adjetivo social asso-
ciado ao adjetivo psicolgico? Que os objetos de investigao psicolgica exigem,
para sua mais segura proposio objetiva, que sejam provados segundo relaes.
Relaes que variam no espao e que variam no tempo, relaes sentidas do lado
do objeto e do lado do sujeito.
As relaes se pem simultaneamente, podem ser tomadas num quadro
simultneo, aquilo que os linguistas designaram como quadro sincrnico, mas
podem tambm ser tomadas diacronicamente, temporalmente, quando assumem
uma mobilidade e uma abertura que fazem perceber algum jogo vivo em todo
sistema e um jogo, afinal, capaz de modificao do sistema. As relaes do esque-
mas de inteligibilidade, esquemas que se tornam historicamente mais ou menos
rgidos ou se mantm vivos, ou seja, maleveis e mutantes.
O esquema d distncias, a posio de elementos em relao aos outros, a
simetria e a assimetria; d o intercmbio entre eles, a maior ou menor correspon-
dncia entre eles, e tambm os casos de equivalncia ou reversibilidade entre eles.
Um esquema meldico d a distncia de tons e semitons entre notas, d tambm a
correspondncia entre notas e os casos de linhas meldicas comparveis, paralelas
ou iguais.
O intercmbio entre elementos, sua correspondncia, a comunicao dos ele-
mentos, sempre supera a sua esquematizao. Os esquemas saem de intercmbios
vivos, muito mais do que servem para vir assinal-los, abra-los e, s vezes, amar-
r-los.
E toquemos finalmente numa espcie de impasse de psicologia social. A cate-
goria relao tende a prevalecer sobre os termos do relacionamento, sobre os polos
que afinal so representados pelos elementos ou unidades do relacionamento. H
quem decida, ento, que relao nome para o evento mais originrio: o movimen-
to primeiro indefinido de relacionamentos precederia a hora em que as relaes se
sedimentam tanto quanto os seus polos, os seus extremos, a figura dos elementos
ento percebidos como relacionados. Tudo se passaria como se a figurao dos
elementos e sua configurao fossem contemporneos: as figuras no seriam mais
antigas que suas configuraes, no seriam precedentes.
Os elementos, entretanto, tomados como perfeito resultado secundrio, per-
feito e secundrio resultado de relao, tendem a ser tomados como evanescentes,
como entes evanescentes e at mesmo como nada. Mas h quem tenha, na histria
contempornea das ideias (penso em Lvinas), encontrado motivos para afirmao
do rosto no como um elemento, mas, ainda assim, como um ente vertical, isto para
apont-lo aqum e alm de sua identidade, aqum e alm dos valores horizontais
que assume por relacionamentos e que o identificam como elemento. O rosto como
um ente vertical, mas, ainda assim, outra coisa que nada: uma pessoa. A noo de
pessoa representa um limite para a psicologia social, um limite que pode ser des-
manchado ou adotado. Um limite que pode ser adotado contra um uso dissolvente
e tirnico da noo de relao, talvez puramente especulativo.
O conceito de relao est entre os mais caros, urgentes e indispensveis para
uma psicologia social. Mas possvel no o tomar como um trator e reconhec-lo
em parceria com o conceito de pessoa e com conceitos aparentados ao conceito de
pessoa. Isso, entretanto, deixamos para uma outra vez.
Referncias
Arnheim, R. Arte e percepo visual: uma psicologia da viso criadora. So Paulo:
Cengage Learning, 2016.
Lane (2006 [1981]) no diz que h vrias formas de definir esa rea do co-
nhecimento e que ela o define de uma maneira X, mas diz simplesmente que a
psicologia social aquela que estuda a relao entre o indivduo e a sociedade e
que se preocupa em conhecer como o homem se torna agente da histria. Ao
definir psicologia social dessa maneira, a autora no s omite que, como j vimos,
h psiclogas(os) sociais que se posicionam contrrias(os) dicotomia indiv-
duo-sociedade, como tambm desconsidera que outras(os) tantas(os) no buscam
entender como o homem se torna agente da histria, mas que objetivam com-
preender o presente ou antecipar o futuro (OLIVEIRA, 2008; SOUZA, 2005).
Podemos dizer que textos que fazem uso desse modo de (co)ordenao criam
singularidade apagando, camuflando ou desconsiderando a existncia de di-
ferentes verses dessa rea do conhecimento. No entanto, de acordo com Law
(2008), h maneiras de lidar com a diversidade sem criar objetos singulares; aqui-
lo que Mol (2002) chamou de distribuio um exemplo disso.
3.2 Distribuio
Na distribuio, a ideia central que diferentes verses de um objeto podem
coexistir pacificamente, desde que no tentem ocupar o mesmo lugar no tempo
e no espao (MOL, 2002). Dizemos, por exemplo, que nas escolas a psicologia
social busca evidenciar a estrutura concreta e simblica dos conflitos escolares
(ALVES; SILVA, 2006); que nas instituies de sade a psicologia social visa com-
preender processos de sade e doena, o funcionamento dos servios, bem como
os mecanismos de promoo e proteo da sade (VAN STRALEN, 2007); en-
quanto que nas comunidades a psicologia social preocupa-se em desenvolver a
conscincia de suas(seus) moradoras(es) como sujeitos histricos e comunitrios
(GIS, 1993). A despeito de possurem diferentes objetivos e mtodos, essas psi-
cologias sociais no entram em conflito. Afinal, cada uma acontece em um am-
biente determinado: uma ocorre em escolas, outra, em instituies de sade e a
terceira, em comunidades.
Outra forma de evitar o choque entre diferentes psicologias sociais dis-
tribu-las geograficamente e dizer, por exemplo, que na Europa a psicologia social
de um modo, enquanto que nos Estados Unidos ela de outro. Ou, ainda,
3.3 Adio
Assim como os objetos podem ser distribudos, eles podem, tambm, ser re-
combinados para formar entidades compostas. Mol (2002) chama esse mecanis-
mo de (co)ordenao de adio. Frequentemente, documentos oficiais e textos
introdutrios definem psicologia social somando uma srie de prticas e objetos.
A Resoluo 05/03 do CFP, por exemplo, afirma que
Assim, de acordo com essa resoluo, o(a) psiclogo(a) social faz pes-
quisa e prope polticas pblicas; trabalha com movimentos sociais e com
a comunidade em geral; intervm nos mbitos da sade e da educao; atua
nos mundos do trabalho e da justia; lida com questes referentes ao meio
ambiente e comunicao social... essas diferentes prticas e locais de atua-
o so alinhados e somados de maneira que passam a referir-se a um objeto
nico: a psicologia social.
importante ressaltar que a coordenao para a singularidade no depende
da possibilidade de se referir a um objeto preexistente, mas ela uma tarefa. Desse
modo, no existe uma psicologia social que pode ser pensada a partir de diferen-
tes perspectivas que, ao serem devidamente identificadas e somadas, podem nos
dizer o que essa rea do conhecimento de fato . O processo inverso: ao definir
a psicologia social desta maneira, o CFP soma e subtrai uma srie de prticas e,
como resultado, cria uma psicologia social singular.
Alm de singular, essa psicologia social composta. Ou seja, uma uni-
dade formada por uma srie de elementos agrupados. como um trabalho
de patchwork, no qual tecidos com diferentes texturas, cores e padres so
cortados, alinhavados e costurados, formando um todo. No entanto, esse todo
no igual soma de suas partes afinal, uma colcha de patchwork no
um mero agrupamento de retalhos, mas algo que cobre camas, decora quar-
tos, evoca lembranas, aquece corpos... Do mesmo modo, a psicologia social
performada pelo CFP tambm no se reduz soma das atividades descritas
na Resoluo 005/2003. Ela provoca debates, estabelece normas, define quem
pode e quem no pode receber o ttulo de especialista na rea, influencia pol-
ticas educacionais, embasa concursos pblicos etc. (CORDEIRO, 2012; COR-
DEIRO; SPINK, 2014)
Assumir essa postura evita, entre outras coisas, problemas na hora de de-
finir o tamanho das reas, subreas e especialidades. Afinal, o que maior: a
psicologia social ou a psicologia comunitria? Interveno psicossocial ou clni-
ca psicanaltica? Provavelmente, muitos(as) pesquisadores(as) se deparam com
essa dificuldade ao preencherem formulrios ou cadastrarem seus currculos
na plataforma Lattes tanto que, nessa plataforma, o escalonamento dos cam-
pos do saber no padronizado. Algumas(uns) pesquisadoras(es) colocam, por
Referncias
ALLPORT, G. W. The historical background of modern social psychology. In:
LINDZEY, G. (Ed.). Handbook of social psychology. Reading: Addison-Wesley,
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MOL, A.; LAW, J. Regions, networks and fluids: anemia and social topology. Social
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A doutoranda afirma que sua tese est baseada na teoria de Jean Piaget.
No entanto, como no Brasil e em muitos outros pases, a pesquisadora entende
que a teoria de Piaget e o modelo piagetiano sejam, no fundo, construtivismo
e desenvolvimento. Diz ela:
vation consiste en son essence en une coordination des rapports, sous son
double aspect de multiplication logique des relations et de composition
mathmatique des parties et des proportions (1941, p. 24).4
4 Traduo livre: A conservao parece, pois, ser devida a uma deduo a priori e anal-
tica que torna intil a observao das relaes, assim como a prpria experincia [...] o
raciocnio que resulta na afirmao da conservao consiste, em sua essncia, em uma
coordenao de relaes, sob seu duplo aspecto de multiplicao lgica das relaes e de
composio matemtica das partes e das propores
5 Traduo livre: Em todos esses domnios, a presena dos agrupamentos se marca pela
construo de noes dedutivas fundamentais que permanecem ausentes nos nveis pr-
-operatrios: so as noes de conservao que constituem os invariantes dos agrupa-
mentos precedentes (conservao dos conjuntos, dos comprimentos etc.)
blusa est limpa, ento ela foi lavada. A implicao da qual falamos aqui no
a implicao logico-matemtica [a implicao entre premissas verdadeiras e fal-
sas], mas, sim, uma implicao entre significaes muito simples, chamada por
Piaget de implicao significante, aquela que liga duas significaes e as conecta.
A implicao significante leva a compreender, a descobrir a razo das coisas, a
descobrir sistemas de relaes mesmo muito simples. O se... ento leva tambm
a compreender a negao. preciso que nos lembremos de que a transitividade
tambm depende da possibilidade de negar. Piaget escreve:
6 Traduo livre: Em uma palavra, no h atividade cognitiva, quer se trate de aes ma-
teriais como de operaes mentais, sem que seus elementos positivos sejam compensados
(mas em direito) e enquanto necessidade de carter lgico, por elementos negativos, a eles
correspondendo termo a termo.
7 Traduo livre: Ensaio para introduzir no conhecimento do universo o conceito de
grandeza negativa.
Referncias
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______. The strategy of the genes. London: George Allen & Unwin Ltda, 1957.
uma narrativa, at, por fim, adquirir funes definidas na vida do mdium e nas
prticas do grupo. Tais casos so exemplos robustos da profunda interconexo
entre processos biolgicos, psicolgicos e sociais, os quais se acham descriti-
vamente separados ao olhar do especialista, mas no exatamente aos olhos do
leigo, para o qual seu sistema de crenas oferece, muitas vezes, interpretaes
globais e totalizantes.
H que se ter em conta, ainda, que mesmo nas cincias cognitivas e nas neu-
rocincias, modernamente, a dicotomia biolgico versus cultural tem sido ques-
tionada e abandonada em favor de uma perspectiva menos exclusiva. A esse res-
peito, ao apresentar tanto a psicologia cognitiva quanto a religio, vejamos
como Paiva (2007) pondera a questo:
Apreendemos, portanto, que talvez mais que buscar por uma resoluo defi-
nitiva que permita encontrar uma forma nica de relacionar o psico com o so-
cial, talvez seja mais frtil a compreenso de que nossos fenmenos se situam,
efetivamente/simbolicamente, como o hfen desse binmio. luz dos estudos que
realizamos em nossos laboratrios, consideramos o hfen entre psico e social,
do ponto de vista metafrico, como representante da ligao entre essas duas ins-
tncias humanas, e, como tal, pode suscitar diferentes interpretaes. Hfen este
que, de acordo com o novo acordo ortogrfico da lngua portuguesa, perdeu-se.
Assim, temos no uma justaposio de dois vocbulos, mas uma palavra apenas,
psicossocial, o que, ao nosso modo de ver, vem reforar simbolicamente a im-
portncia de serem considerados esses dois mbitos da constituio da subjetivi-
dade no apenas como inter-relacionados, mas como amalgamados. Como um
hfen esse pequeno trao na posio entre elementos , pode-se pensar numa
articulao que se inicia no biolgico, mas no se encerra nele, passar para o
plano lingustico, medida que as experincias, sejam quais forem, so narradas
e, assim, enredadas numa cadeia simblica que confere sentido ao que o indiv-
duo vivenciou. A experincia, compreendida como hfen, impele-nos ao dilogo
interdisciplinar e, talvez, transdisciplinar, uma vez que se deve reconhecer o papel
limitado das disciplinas em seu trabalho solitrio e isolado. As divises entre dis-
ciplinas no deveriam refletir diferenas reais entre diversos aspectos (fisiolgicos,
psicolgicos, sociais), mas simplesmente convenes humanas para o seu estudo e
investigao. Tais divises devem-se limitao do conhecimento humano, no a
uma separao objetiva entre tais coisas.
Finalizando, gostaramos de extrapolar o mbito de nossas reflexes res-
saltando, ainda, a relevncia da imbricao entre o psicolgico e o social para
a materializao do compromisso social da psicologia. Os estudos de psicologia
anomalstica e de psicologia social da religio podem parecer alheios s questes
sociais mais prementes. No entanto, as reflexes deles decorrentes quanto in-
ter-relao entre social e psicolgico levam a consideraes mais aprofundadas,
empiricamente fundamentadas e complexas sobre a constituio da subjetividade.
Deste modo, pensamos que, mais do que pontuar uma conexo racionalizada do
que seja psico-social, desejvel que psiclogos sociais incorporarem/desen-
volvam uma atitude decorrente da profunda compreenso do que se denomina
ou adjetiva como psicossocial. Essa atitude contribui para o entendimento da
intricada constituio da subjetividade e para a articulao de modos de interven-
o na medida em que no desconsidera que temos um corpo, aspecto individual
que enseja o psicolgico que habita e constri o social ao mesmo tempo em que
simbolicamente habitado e construdo pelo social (MACHADO, 2014). Descon-
siderar essa dialtica, distinguir radicalmente e privilegiar um ou outro aspecto
enseja uma compreenso empobrecida do sujeito e de seu contexto como bem
ilustram os estudos que brevemente comentamos. Compreender essa complexida-
de encontrar a brecha pela qual se pode escapar de determinismos individuali-
zantes e da cilada do exclusivamente social (SAWAIA, 2005), abrindo caminho
para a possibilidade de protagonismo do sujeito.
Que o hfen, neste contexto, no seja a representao daquilo que separa,
mas, sim, daquilo que une, amalgama e, potencialmente, empodera.
Referncias
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tion. New Jersey: Rutgers University Press, 2011.
BARRETT, J. Why would anyone believe in God? Walnut Creek, CA: AltaMira Press,
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ward. Journal for the Scientific Study of Religion, v. 50, n. 2, p. 229-239, 2011.
______. Cognitive science of religion: looking back, looking forward. Journal for
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OSIS, K.; HARALDSSON, E. At the hour of death. New York: Avon, 1977.
ROSE, R. Living magic: the reality underlying the psychical practices and beliefs
of Australian aborigines. Chicago: Rand McNally, 1956.
Se, por certos perodos, tendi para uma explicao intra-subjetiva do ho-
mem, se em outros, o peso da percepo das determinaes sociais me
levou praticamente a abdicar da Psicologia, como ocorreu com inmeros
estudiosos de Psicologia Social, procurei aqui um equilbrio na busca de
uma explicao interativa entre o homem e os processos sociais histori-
camente dados.
2 O livro Indivduo, grupo e sociedade traz quase todos os artigos e captulos do livro de
autoria de Arakcy Martins Rodrigues. No integra essa coletnea o livro Operrio, ope-
rria, publicado pela Editora Smbolo em 1978.
3 A entrevista concedida por Arakcy Martins Rodrigues a mim e ao Fbio Oliveira foi publi-
cada em 1999 na revista Cadernos de psicologia social do trabalho, volume 2, nmero 1.
4 Todos os artigos aqui citados foram publicados na coletnea Indivduo, grupo e sociedade,
em 2005.
Referncias
GALVO, W. N.; PRADO JR., B. (Eds.). Almanaque psicanlise em questo.
Brasiliense, So Paulo, n. 12, 1981, p. 24-37.
7.1
Neste texto, ns discutiremos a relao entre a dimenso psicolgica e a social
como definidora do campo da psicologia social tanto no mbito do conhecimento
quanto na prtica. A ao de reunir ou dividir esses termos poderia ser apenas uma
questo de definio de categorias. Por exemplo, a gramtica indica a reunio dos
termos como psicossocial. E, no campo da psicologia social, temos tanto a defesa da
forma psicossocial como a do hfen do termo psico-social. Propomos contribuir com
o conhecimento dessa relao a partir da teoria social e da prtica (comprometida
com interesses coletivos). Deste modo, consideramos a relao entre o psquico e o
social determinada por mediaes histricas. Tanto a sociedade define as condies
de existncia e formao da dimenso psicolgica quanto h nesta dimenso parti-
cular diferentes reaes subjugadas, resistentes e criativas s formas dominantes
na sociedade. na compreenso dialtica e histrica das relaes entre sociedade
e psicologia que se encontra a especificidade do nosso ponto de partida, ou seja, a
psicologia social definida a partir da teoria crtica da sociedade. Consideramos esta
teoria por meio de dois modelos diferentes o negativo e o reconstrutivo , elabo-
rados por tericos e pesquisadores associados ao Instituto de Pesquisas Sociais de
Frankfurt. Consideramos essas tendncias como matrizes para definir essa relao
em um contexto histrico especfico, como a periferia do capitalismo que ilumina
as formas gerais do tempo histrico. A periferia , ao mesmo tempo, um posiciona-
mento poltico e social em relao ao centro detentor do capital, do conhecimento
e do poder, bem como um lugar produtor de identificaes e identidades sociais de
grupos que resistem e criam novas formas de expresso, memria e organizao
social. Neste sentido, a periferia pode ser compreendida como um significante para
designar locais sociais de pessoas oprimidas e desconsideradas como cidads.
As consequncias da dominao na dimenso psicolgica so heterogneas e
fortemente determinadas por diferentes graus de elaborao do sofrimento social.
Essas consequncias vo de formulaes patolgicas at crticas. As expresses
patolgicas o desrespeito, a humilhao e o preconceito so formas de reao
subjetiva dominao. Outras formas apontam na direo da resistncia opres-
so e da criatividade o reconhecimento recproco, a capacidade de realizar ativi-
dades coordenadas e estticas ao serem crticas dominao, sendo ou produtos
acadmicos, ou populares, cujo sentido o da emancipao social.
Deste modo, destacam-se dois vetores de anlise para a psicologia social: de
um lado, aquele do grau de utilidade da irracionalidade do sofrimento; do outro,
a elaborao que leva da reao at resistncia e a realizao de capacidades indi-
viduais e sociais por meio da luta por reconhecimento.
Consideramos que a chave para um projeto de psicologia social crtica na
periferia do capitalismo a descrio das condies psicossociais (da resistncia e
da regresso) das periferias do capitalismo e a reconstruo normativa por meio
do reconhecimento recproco formado na memria e na interao social. Deste
modo, consideramos que esta comunicao dialoga com os seguintes conceitos: o
psicossocial, a psicologia social crtica e o reconhecimento recproco.
A relao da dimenso psicolgica com a dimenso social definidora do
campo da psicologia social como pesquisa e atuao. Lembramos que entre o so-
cial e o psicolgico h categorias intermedirias. So categorias que mediam essas
relaes, como o grupo, a identidade, o self 1. Definir tanto as dimenses como as
suas mediaes poderia ser apenas uma questo de nomeao de categorias.
Consideramos que esta questo permite compreender a definio dessas cate-
gorias como uma necessidade histrica. Tanto a sociedade define as condies de
existncia e formao da dimenso psicolgica, bem como suas mediaes como
linguagem, cultura e capital, quanto h nesta particularidade caractersticas resis-
tentes s formas dominantes na sociedade. na compreenso dialtica e histrica
das relaes entre sociedade e psicologia que se encontra a especificidade da psi-
cologia social definida a partir da teoria crtica da sociedade.
Ns reconhecemos que h outras definies de psicologia social crtica
(FREITAS 1998; GUARESCHI, 2005; LIMA; CIAMPA, 2012). Mas, neste texto,
atemo-nos reflexo sobre as consequncias para este campo de estudo da teoria
crtica da sociedade nos sculos XX e XXI. Deste modo, recuperamos a noo de
psicologia social crtica (kritischem Sozialpsychologie) apresentada por Theodor
Adorno (1970). A teoria crtica da sociedade precisa de cincias sociais que des-
crevam aspectos empricos da sociedade, pois estes revelam as formas como a do-
minao se expressa, bem como a distncia das possibilidades humanas demons-
tram a necessidade da crtica. Para que essas afirmaes sejam compreendidas,
necessrio apresentar os princpios da teoria crtica.
A relao entre a teoria crtica e a pesquisa emprica teve um grande desen-
volvimento a partir dos pesquisadores ligados ao Instituto de Pesquisas Sociais
de Frankfurt. H dois conceitos fundamentais para compreender a teoria crtica
da sociedade: a histria social e a razo dialtica. A histria social a resultante
de conflitos que expressam a dominao social e negam a emancipao social.
Na histria, as relaes entres os agentes sociais so regidas por um tipo espe-
cifico de razo: a dialtica. Esta permite compreender a histria como relaes
contraditrias entre afirmao e negao, possivelmente superveis pela negao
da negao. Estes dois conceitos so fundamentais para compreender o papel da
cincia e da relao entre as dimenses social e psicolgica. Esses pesquisadores
produziram dois modelos diferentes de teoria crtica da sociedade e, consequente-
mente, sobre o papel da realidade social e de sua descrio pelas cincias sociais.
Esses dois modelos so o negativo e o reconstrutivo. (NOBRE, 2004).
Estes modelos da teoria crtica da sociedade nos interessam por dois motivos:
em primeiro lugar, por situarem as cincias sociais, em particular a psicologia
social, na histria social e na razo dialtica por meio de um projeto de pesquisa
interdisciplinar que reuniu a crtica e a pesquisa emprica; em segundo lugar, por
desvelarem as contradies entre a sociedade e a psicologia a partir de diferentes
ngulos: descritivo e normativo.
Adiantamos que a descrio dos conflitos sociais na histria indica que a
dominao organiza a distribuio do territrio como uma dimenso importante
para descrever a dominao e a formao de movimentos de resistncia e recons-
truo. Por exemplo, Milton Santos (2002) e Erminia Maricato (2000) descrevem
que o capital determina a distribuio do espao a partir do seu valor como mer-
cadoria, o que significa que, para alm das aparncias, a desigual concentrao
dos mais pobres nas periferias e centro deteriorado das cidades uma determi-
nao da desigual distribuio do capital. Ns destacamos que esses conceitos
se desnudam a partir da realidade social da periferia do capitalismo. Mas vamos
retomar os modelos e a forma como integram a pesquisa e a crtica para refletir-
mos sobre a relao entre o psquico e o social.
O Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, em 1930, reuniu pesquisadores
de diferentes reas do conhecimento. Neste primeiro momento, a questo principal
era como as massas, em vez de procurarem a emancipao, aderiram a regimes
autoritrios. Para tanto, era necessria uma definio da relao entre as partes
e o todo da sociedade. Esta relao definida, a partir da razo dialtica, como
uma superao da contradio nas situaes histricas como nos movimentos so-
ciais e na poltica. A superao dialtica no modelo crtico estava restrita estti-
ca e, mesmo assim, suas possibilidades de realizao da negao da negao eram
muito reduzidas por ser uma esfera dominada por meio da indstria da produo
e circulao de bens culturais: a indstria cultural.
A proposta de reconstruo do materialismo histrico a partir de suas bases
normativas permitiu uma recuperao da crtica nas interaes, o que inclui a est-
tica e aspectos das aes instrumentais. Esta nfase identificou uma relao menos
determinada das estruturas sociais com as dimenses particulares por entender que
a histria se estende para a integrao social por meio de experincias sociais. Es-
sas experincias tm um ncleo normativo comum. Para essa teoria, o papel da nor-
matividade passa a ser central para a regulao e os conflitos sociais. Esse modelo
de teoria crtica identifica a interao social com a psicologia social, e suas anlises
corroboram com a definio do objeto da psicologia social como psicossocial.
Diremos que o fortalecimento da crtica desta segunda abordagem a recons-
truo da possibilidade de ao poltica e social. O enfraquecimento representado
por esta de um certo dficit sociolgico ao propor alternativas normativas
sem uma crtica mediao do capital e da dominao na linguagem. Esse dficit
, em parte, diagnosticado por Axel Honneth no caso das relaes de poder na
linguagem. Consideramos que este mais enfrentado posteriormente a partir de
uma considerao das duas nfases e do lugar social da crtica (VOIROL, 2012).
As anlises da sociedade, no sentido da reconstruo, detectaram um certo
arrefecimento das foras utpicas em uma sociedade do bem-estar social euro-
peia. As aes normativas, em parte, contemplavam o respeito ao outro apenas
em parte, por continuar havendo a alienao das aes para finalidades heterno-
mas, fundamentalmente a reproduo do capital.
7.2
Nosso terceiro elemento para compreender a relao entre a psicologia e a
sociedade o lugar do sujeito no tempo e no espao. O territrio o local de onde
interagimos com natureza e outros seres humanos na histria:
Milton Santos (2002) e Erminia Maricato (2000) descrevem que o capital de-
termina a distribuio do espao a partir do seu valor como mercadoria, o que
significa que, para alm das aparncias, a desigual concentrao dos mais pobres
nas periferias e centro deteriorado das cidades uma determinao da desigual
distribuio do capital. Ns destacamos que esses conceitos se desnudam a partir
da realidade social da periferia do capitalismo.
As contradies do todo social se manifestam tambm nas suas partes, mes-
mo as mais distantes. Ao analisar a obra de Machado de Assis, o crtico Roberto
Schwarz (1977, 1990) identificou que na periferia do capitalismo era possvel
revelar a condio humana em determinado momento histrico. Esta anlise res-
saltou a hipocrisia das ideias fora do lugar do sculo XIX os ideais liberais
no Brasil Imperial, uma sociedade distante da revoluo industrial, na qual os
ditos liberais mantinham escravos em vez de receberem a mais-valia do trabalho
de empregados livres para vender sua fora de trabalho. Consideramos que essa
no a idiossincrasia da elite brasileira, mas a contribuio dessa parte do sistema
social do capital para revelar a contradio do liberalismo com a sua prpria base
material. Ou seja, o liberalismo parte de um sistema social que se fundamenta na
produo da mais-valia, seja por meio do trabalho livre ou escravo.
Mas as contradies do todo social se manifestam tambm nas suas partes,
mesmo as mais distantes. Ao analisar a obra de Machado de Assis, o crtico Ro-
berto Schwarz (1977, 1990) identificou que na periferia do capitalismo era poss-
vel revelar a condio humana em determinado momento histrico. Esta anlise
ressaltou a hipocrisia das ideias fora do lugar do sculo XIX os ideais liberais
no Brasil Imperial, uma sociedade distante da revoluo industrial, na qual os
ditos liberais mantinham escravos no lugar de receberem a mais-valia do trabalho
de empregados livres para vender a sua fora de trabalho.
No concordamos com a noo de que haja um patamar normativo infe-
rior na periferia. Defendemos que h uma normatividade condizente com as
contradies sociais e, deste modo, as aes morais so expresso da sociedade.
Por exemplo, um pobre no Brasil no moralmente mais permissivo com o
roubo do que o rico. Quando um pobre diz que vota em um poltico que rouba,
mas faz, ele no mais permissivo do que um rico que diz no votar com essa
justificativa. Para o rico, no roubo a diferena de muito mais servios p-
blicos prestados aos ricos do que aos pobres, sendo que nos pases centrais do
capitalismo esta distncia bem menor. A iniquidade da distribuio dos bens
sociais na periferia do capitalismo permanece como correlato da acumulao da
mais-valia por uma frao da populao mais rica. Esse lucro exportado para
os pases centrais e elites locais por meio da manuteno de distores normati-
vas, que justificam a explorao de parte desta populao perifrica. E produ-
zido um lugar aqum da pobreza, o lmpem para a teoria econmica, ou seja, o
7.3
A relao entre a dimenso psicolgica e a sociolgica marcada por uma
luta por reconhecimento. A reviso do modelo reconstrutivo nos leva discusso
da luta por reconhecimento, na qual a dimenso psicolgica intersubjetiva per
se. Sua constituio permite observar a gramtica dos conflitos sociais por reco-
nhecimento os quais pautam a identidade e a cidadania dos diferentes do padro
hegemnico: mulheres, homossexuais, transsexuais e travestis, negros, indgenas ,
bem como a necessidade de considerao dos humilhados e dos marginalizados
na histria: o lmpem proletariado e os desempregados de longa permanncia.
Essa reviso recoloca no centro das relaes as construes normativas a
partir do conflito. Estas se do em trs dimenses de conflito, quais sejam: a inte-
gridade do corpo e o afeto, o respeito e o respeitar, e, por fim, o reconhecimento
recproco e a realizao dos potenciais de ao (HONNETH, 2003).
Essas dimenses comportam a contradio do todo social expressas em suas
prprias gramticas: as relaes amorosas, as relaes do direito e as relaes de
solidariedade recproca.
Para Axel Honneth, as trs dimenses do reconhecimento recproco amor,
direitos e solidariedade permitem a compresso da dinmica do processo de
luta por reconhecimento e indicam, tambm, um ponto culminante do processo:
o reconhecimento recproco, que inclui a origem e o sentido dos processos de
mudana social:
7.4
A chave para um projeto de psicologia social crtica na periferia do capita-
lismo a descrio das condies psicossociais (da resistncia e da regresso) das
periferias do capitalismo e a reconstruo normativa por meio do reconhecimento
recproco formado na memria e na interao social. Nestes termos, no h, ainda,
uma negao da negao da afirmao psicossocial e a sua negao psico-social.
Temos que manter a contradio entre elas. Isto para mantermos nossa utilidade na
luta social e na busca por aes e normatividades que superem a dominao.
Na sociedade (descritivamente) o centro um polo de poder e controle do
conhecimento, sua circunscrio exatamente a expresso da dominao. Nor-
mativamente, o conhecimento com centro em toda parte um princpio de inte-
rao do si mesmo como outro, no qual todos esto no centro. preciso manter
a compreenso de que uma expectativa normativa diramos utpica cuja
constituio geral no podemos esperar, embora a sua imediatez esteja na contra-
dio presente que a gesta.
Por fim, enunciamos, por meio da arte, que a periferia est para o todo da
sociedade assim como o serto est para o mundo:
Referncias
ADORNO, T. Erziehung nach Auschwitz 1966. In: ______. Erziehung zur Mn-
digkeit, Vortrge und Gesprche mit Hellmuth Becker 1959-1969: Heraus-
gegeben von Gerd Kadelbach. Berlim: Suhrkamp, 1970. p. 88-104.
GUIMARES ROSA, JOO. Grande Serto: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1988.
MEAD, G. H. Mind, self and society. Chicago: The University of Chicago Press, 1952.
Tal formulao terica implica vrias questes. Como o interno se faz exter-
no e o externo se faz interno? E mais:
Nesse percurso, pode-se ver que ele relana o debate sobre a pulsionalidade
na constituio do vnculo grupal e vai sustent-la a partir de duas proposies
abordadas sob o ngulo do trabalho psquico e das exigncias que lhe so im-
postas pela correlao de subjetividades: uma delas diz respeito correlao da
psique com o investimento pulsional que ela recebe do objeto; a outra procede da
correlao da psique com os processos responsveis da formao do inconsciente,
sob o aspecto em que esses processos dependem do conjunto subjetivo, no qual
a medida de trabalho psquico se expressa, pelas operaes de co-recalque, nas
alianas inconscientes (KAS, 2010b, p. 220).
Entende-se, assim, que a questo do apoio e do encontro com a subjetividade
do objeto esto no corao de suas proposies. Dessa forma, Kas relana de
outra forma a complexa questo da intersubjetividade.
Se esta questo no foi elaborada como uma problemtica que se inscreveria
no domnio dos objetos tericos centrais da psicanlise, diria Kas (1996), foi de-
vido ao fato de que a tarefa fundadora da psicanlise dizia respeito constituio
da realidade psquica inconsciente nos limites de um aparelho psquico individual.
Sabe-se, porm, que Freud interrogou as condies familiares diretas e transmi-
tidas, de gerao em gerao, para tentar entender a inscrio do sujeito numa
cadeia; assim ele coloca em perspectiva um sujeito em sua diviso interna e em
relao ao contedo psquico dos vnculos que o precedem (KAS, 1996, p. 4).
Embora o conceito de intersubjetividade no esteja verdadeiramente consti-
tudo como um conceito psicanaltico, e isso se deve aos medos de se deslocar o
campo da psicanlise do intrapsquico para o relacional, ou pior, em direo ao
interacional (KAS, 2015, p. 247), deve-se reconhecer que a questo da intersub-
jetividade, em realidade,
Esta afirmao de Kas nos reenvia a duas questes relevantes para o nosso
propsito: uma delas, abordada pela psicologia social de Pichon-Rivire, refere-se
ao conceito de gestalt-gestaltung uma estrutura em permanente estruturao e
que diz respeito prpria definio de vnculo; a outra refere-se a uma teoria que
no ser aquela dos fundamentos sociais do vnculo mas permite sustent-la e
nem aquela da psicologia da interao, e sim a que fala do desejo inconsciente,
desejo do outro e do objeto de desejo do outro.
O modelo desta teoria o aparelho psquico grupal - supe pensar as relaes
entre os espaos do grupo, dos vnculos intersubjetivos e dos sujeitos e dar conta
das continuidades, das descontinuidades e das rupturas entre os espaos (KAS,
2015, p. 121). Neste quadro conceitual pode-se ter uma representao da maneira
como se forma um grupo, da realidade psquica inconsciente que a se produz e das
formas de subjetividade que a se manifestam (KAS, 2015, p. 121).
Referncias
ARBISER, S. El grupo interno. Buenos Aires: Libreria Paids, 2013.
1 Essa uma verso modificada do artigo Sobre o campo da Psicologia Social, publicado
originalmente na revista Psicologia USP, v. 23, n. 1, So Paulo.
qualquer um, quando coloca a seu servio a Teologia, que hoje, como
notrio, pequena e desagradvel e no deve deixar-se ver por ningum
(p. 77, traduo livre).
A estranha imagem construda por Benjamin no incio dos anos 1940 parece
servir para mapear o estado de coisas no embate terico-filosfico no campo da
filosofia da histria, nessa poca. Nesta imagem, o materialismo histrico capaz
de ganhar os torneios tericos graas interveno tanto de um complexo meca-
nismo especular produtor de uma iluso , quanto do auxlio de um habilidoso e
deformado parceiro de jogo. Por meio da mquina especular, o que o boneco ves-
tido turca aspira pela piteira de narguil so as velhas especulaes teolgicas,
potencializando-se o impacto das suas jogadas para vencer o jogo. A potncia do
materialismo histrico no torneio intelectual lhe seria emprestada pela teologia,
ainda que o materialismo, na inquietante imagem mostrada por Benjamin, seja o
condutor das jogadas. A assero de Benjamin implica uma estranha composio
de modelos na qual o materialismo histrico pode servir de boneco, por assim
dizer, da ventrloqua teologia, isto , da concepo em princpio mais antagnica
a si prprio. E bom lembrarmos que essa imagem no construda por qualquer
pensador, mas por um polmico do idealismo irracional da filosofia, mas tambm
dos aspectos reducionistas e mecanicistas do materialismo histrico. Mas que
Benjamin, como bem mostra nessas teses, pensa sempre na histria quando pensa
os modelos tericos. E sabe, como ele desenvolve nas teses que se seguem a essa,
que as runas do passado e delas fazem parte as concepes todas sobre o ho-
mem que foram elaboradas nunca silenciam propriamente, podendo vir a res-
surgir em voz transfigurada, como a teologia por meio do materialismo histrico,
em que as expectativas revolucionrias deste so alimentadas pela velha potncia
histrica das expectativas redentoras da teologia. Talvez o elemento central da
imagem criada por Benjamin no seja o boneco vestido turca nem o ano cor-
cunda, mas o sistema de espelhos produtor da iluso de uma mesa em todos os
sentidos transparente, que vincula tempos do pensamento distanciados entre si.
No campo da psicologia social, nosso embate d-se essencialmente no modo
como entendemos o hfen pressuposto na integrao entre o psicolgico e o so-
cial, ao qual este campo de estudos parece sempre fazer referncia. a natureza
deste hfen que parece sempre estar no horizonte dos estudos da psicologia social.
Costumamos alocar este hfen numa virtual linha horizontal que separa indivduo
de coletivo e, em ressonncia ideacional, o psicolgico do social. Assim, o psico-
lgico estaria em ressonncia com o individual, o social, em ressonncia com o
coletivo, e o hfen entre ambos. Claro que j aprendemos que o indivduo uma
construo do coletivo e, portanto, que o psicolgico um produto do social. Mas
tambm aprendemos que o indivduo anseia pelo coletivo, valoriza-o e se apega a
ele com a mesma intensidade e dessa mesma raiz a partir da qual se desdobra em
sujeito. Neste sentido, o social seria um desdobramento da demanda psicolgica
humana. Ou seja, aprendemos que entre o psicolgico e o social, o hfen domina.
Um produz o outro, ao modo como, na fita de Moebius, verso e reverso realizam-
se transitoriamente, num contnuo infinito. No apenas o hfen serve para indicar
a existncia de um conectivo entre o elemento psicolgico e o elemento social,
mas aqui o hfen serve para deixar surgir a prpria essncia relacional que ine-
rente a cada um dos elementos, para que estes possam existir como tais. O hfen
a natureza do psicolgico e do social. Foi a histria das realizaes no campo
das cincias humanas, e at das cincias em geral, que levaram a esse estado de
coisas no qual o hfen se instaura para juntar campos aparentemente separados
o psicolgico e o social.
No o caso, agora, de mostrar como os principais modelos de compreenso
do homem e suas produes operaram no intuito de sinalizar o fortalecimento da
essncia relacional que define o psicolgico e o social. Mas, sem dvida, precisa-
mos pr em destaque as contribuies de Freud. Porque, mesmo que no sejam
propriamente as suas construes tericas que tiveram um impacto mais acen-
tuado para salientar a importncia do hfen ainda que no possamos esquecer,
por exemplo, a clebre frase com que, em 1921, ele abre o texto Psicologia de
grupo e a anlise do ego, de que no h psicologia que no seja psicologia social
, foi, sem dvida, seu modelo mais geral de entender o homem que teve um
impacto enorme sobre toda a produo de conhecimento no sculo XX, s vezes
de forma invisvel, como o ano na partida de Benjamin. Freud, ao criar e mobi-
lizar o que poderamos denominar como metfora psicanaltica, isto , o modo
extremamente poderoso e singular de, ao mesmo tempo, estudar e dinamizar os
fenmenos psicolgicos, soube suscitar uma abordagem que, por suas implicaes
na histria das cincias humanas, torna-a, a nosso ver, um legtimo representante
a ser entendido, no campo da psicologia social, em analogia ao ano corcunda
da teologia na imagem de Benjamin. A psicanlise pode ser quem mobilize os
fios para os lances do jogo no interior deste campo. Claro que a psicanlise no
a sucednea da teologia, se bem que, por sua potncia articuladora, resqucios
poderosos da teologia possam, neste discurso, tambm ser atualizados. Mas o
que queremos salientar a ao da linguagem psicanaltica no interior do campo
da psicologia social. Freud soube dar ao psicolgico um estatuto completamente
original, permitindo a nomeao de relaes e encadeamentos que ampliam nos-
sa compreenso sobre o modo como os homens se constroem. Um exemplo que
pode nos servir para ilustrar o que estamos sugerindo sobre o profundo impacto
realizado por Freud pode ser extrado de seu ensaio de 1930, O mal-estar na
civilizao. Mesmo que as ideias centrais que Freud elabora neste texto possam
nos parecer esboos tericos no muito bem-sucedidos, levando em considerao
2 Vale lembrar as reflexes de Marcuse (1979/1964) sobre a potncia que a cultura tem
para a criao de necessidades, a ponto de ele indagar-se, referindo-se especificamente
sociedade industrial de meados do sculo XX, se haveria ainda alguma necessidade
humana genuna que no fosse construda pela cultura.
cional para o qual estas foram atradas. Benjamin supe um jogo de xadrez no
campo da filosofia da histria. E devemos ter em mente que no se trata apenas
de um embate de ideias, mas, como um bom marxista, Benjamin sabe que se
trata de um embate no campo da vida dos homens propriamente dita e de seus
destinos, implicando, para alm do cultural, o poltico, o econmico e o social.
Isto , implicando o poder. , talvez, o mesmo embate que se trava hoje. Mas,
a nosso ver, h um novo ano corcunda atuando nos destinos desses lances o
da psicologia. No apenas a mquina que Benjamin monta no campo das ideias
funciona em ressonncia com a mquina especular que Freud (1976 [1900]) con-
cebeu na construo de seu modelo de aparelho psquico, no clebre captulo VII
da Interpretao dos sonhos3, como haveria tambm, na dinmica prpria do
campo das ideias, algo assim como um inconsciente, desde onde velhos segmentos
ideacionais atuariam no desdobramento das concepes atuais, numa complexa
luta interna em que o novo sempre uma reorganizao das demandas de todas
as aspiraes humanas construdas ao longo da histria. Ao instalar sua mquina
especular, que opera em analogia com o modelo psquico de Freud da primeira
tpica, no campo das ideias, de algum modo, podemos dizer que Benjamin psi-
cologiza, num certo sentido, a histria do esprito, ao permitir entender o campo
da histria intelectual em analogia ao campo do desenvolvimento psquico, isto
, l como aqui, a razo sofre de transtornos. Tambm no campo da razo, o ir-
racional pode irromper, como Adorno bem salienta em seus trabalhos. Este modo
de entender as produes sociais e a prpria ideologia j resultado da fora do
hfen psico-social no pensamento contemporneo. Toda a Escola de Frankfurt
trabalhou assim.
Claro que no se trata de reduzir toda a complexidade do campo da psico-
logia social a uma concepo psicanaltica. A aplicao da psicanlise enquanto
um agregado de teorias construdas ao longo da histria dessa disciplina, sobre
um determinado contexto a ser estudado, reduz em muito o alcance do que ela
teria para oferecer ao estudo do fenmeno. Com isto, queremos dizer que, a nosso
ver, a aplicao da psicanlise como um conjunto terico pr-estabelecido sobre
qualquer campo de investigaes um exerccio limitado e em nada prximo
3 Lembremos que Freud utilizou um modelo ptico, isso , um modelo especular para des-
crever sua concepo sobre o funcionamento do aparelho psquico, levando em conside-
rao seus achados sobre a produo onrica. Esse modelo devia dar conta de seus quatro
achados essenciais em relao aos sonhos: 1. o sonho um ato psquico importante e
completo; 2. o que o mobiliza sempre a realizao de um desejo; 3. a forma como se
apresenta torna impossvel reconhecer esse desejo, dada a deformao promovida pela
ao de uma censura psquica; e 4. alm da ao da censura, colabora na formao do
sonho a condensao e a representao por meio de imagens, e por vezes tambm o cui-
dado de que o sonho apresente um aspecto racional e inteligente.
4 O estudo, no momento histrico em que vivemos, que reconhece na tcnica seu atributo
identificatrio mais perfeito, , antes de mais nada, aplicabilidade, isso , o desenvolvi-
mento de dispositivos e equipamentos para o aperfeioamento do social. Em princpio,
na nossa realidade, claro que nada temos a opor a este entendimento. E a psicologia so-
cial, sem dvida, uma poderosa ferramenta terico-tcnica para aprimorar a formao
de profissionais que iro envolver-se nos servios sociais e nas polticas pblicas. Mas,
justamente por isso, o estudo pode correr o risco de reduzir-se a um elemento manipu-
lvel ideologicamente, e a misso da universidade, atualmente, penso que seja dupla:
por um lado, reconhecer sua raiz pblica e trabalhar para o aperfeioamento da esfera
pblica, e por outro, lutar pela autonomia necessria para o estudo crtico, isso , para
garantir uma produo capaz de fazer a crtica de toda e qualquer ideologia, o que, nos
dias de hoje, quer dizer tambm de toda e qualquer poltica pblica. Este segundo aspecto
tambm vai, em nosso entender, em direo ao aperfeioamento do pblico, pois a ga-
rantia do estudo crtico tambm parte da luta por um homem que no seja reduzido
mera insero numa ideologia determinada, to prpria dos fenmenos totalitrios que
assolaram to violentamente o sculo XX e que hoje podem ganhar uma verso talvez
aparentemente mais civilizada, mas no por isso menos violenta.
Desde que superamos o erro de supor que o esquecimento com que nos
achamos familiarizados significava a destruio do resduo mnmico isto
, a sua aniquilao , ficamos inclinados a assumir o ponto de vista opos-
to, ou seja, o de que, na vida mental, nada do que uma vez se formou pode
perecer o de que tudo , de alguma maneira, preservado e que, em circuns-
tncias apropriadas (quando, por exemplo, a regresso volta suficientemen-
te atrs), pode ser trazido de novo luz (FREUD, 1976[1930], p. 87).
de Klee est em ao, com os mesmos olhos arregalados, a mesma boca aberta, a
mesma tenso nas asas e, principalmente, a mesma implicao com o tempo: tudo
o que ele dispe do passado, apresentado, ao mesmo tempo se integrarmos as
imagens de Freud e de Benjamin , na forma de memria e runa, a demandar o
seu ato de construo pessoal, modo como o futuro se realiza.
Se Freud soube imprimir psicanlise um carter etiolgico, isto , uma vin-
culao com uma origem para a compreenso do fenmeno psquico, na origem
da psicanlise, Freud outorgou ao trauma o estatuto de origem do sintoma psqui-
co. Ali, a psicanlise surgiu. O trauma psquico uma comoo psquica. Ferenczi
(1981 [1933]) lembra que a palavra alem Erschtterung, comoo psquica,
vem de schutt, runa, compreendendo a destruio, a perda da prpria forma.
Em Estudos sobre a histeria, o primeiro trabalho psicanaltico de Freud (1976
[1895]), o trauma assume, em diversos momentos, essa condio de origem do
conflito psquico, do sintoma. Ali, o trauma entendido como um evento advin-
do do real, como um choque na experincia real capaz de estremecer as defesas
do eu. Mas, medida que Freud foi se aprofundando em sua compreenso da
realidade psquica, o estatuto do real foi, por assim dizer, sendo absorvido ou en-
globado pelo da realidade psquica. Freud nunca silenciou, propriamente, a fora
do real. Isto ns podemos ver em todos os casos clnicos, nos quais os aspectos
do real so seriamente levados em considerao por ele. Mas Freud outorgava
tambm realidade psquica um papel ativo na constituio do conflito. Podemos
at afirmar que responsabilizar a realidade psquica pelo conflito uma das ca-
ractersticas bsicas da psicanlise e, a nosso ver, isto se deve no apenas a Freud
entender que a realidade psquica se constitui a partir de um suporte pulsional,
mas tambm talvez porque responsabilizar cada sujeito por seu sintoma seja uma
etapa importante da teraputica, no sentido de possibilitar a superao do sinto-
ma. Em todo caso, inerente aos textos psicanalticos de Freud, quando vistos em
seu conjunto, uma certa ambiguidade em sua posio em relao ressonncia
do real na constituio psquica e, mais especificamente, na noo de trauma.
Se, por um lado, Freud avana no sentido de dar uma nfase maior realidade
psquica, por outro lado, esta realidade constituda em resposta ao real. isto
que ns vemos apresentado em Alm do princpio do prazer (1976 [1920-1921]),
em que a angstia, a consequncia imediata do trauma, funciona como um sinal
organizador de todos os mecanismos de defesa do ego, isto , ela estruturadora
da realidade psquica. E mais: toda essa nfase que Freud d filognese nada
mais do que salientar o fator determinante dos elementos extra-psquicos que,
em Freud, de algum modo, tambm devem se constituir numa espcie de histria
psicolgica para agir na psicologia de cada um. Assim , por exemplo, em seus es-
tudos em Totem e tabu (1976 [1913]), em que a angstia de castrao e o prprio
complexo edpico, que, em princpio, so para Freud invariveis da constituio
a arte de narrar caminha para o fim. Torna-se cada vez mais raro o encon-
tro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito... como se uma
faculdade, que nos parecia inalienvel, a mais garantida entre todas as
coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experincias (p. 57).
Referncias
BENJAMIN, W. (1940) Tesis de la filosofia de la historia. In: Angelus Novus.
Barcelona: Edhasa, 1971.
FREUD, S. (1895) Estudos sobre a histeria. Edio standard das obras psicolgi-
cas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
______. (1913) Totem e tabu. Edio standard das obras psicolgicas completas
de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
______. (1917) Luto e melancolia. Edio standard das obras psicolgicas com-
pletas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (v. XIV).
10.1 Introduo
As representaes da teoria social de Freud, aquelas, por assim dizer, mais co-
nhecidas, inspiram-se em trs grandes textos: Totem e tabu (1913), Psicologia de
massas e anlise do ego (1920) e O mal estar na civilizao (1930). Se o primeiro
apresenta uma teoria da gnese da lei e da religio nas sociedades humanas a par-
tir de uma construo hipottica e assumidamente especulativa, os dois ltimos se
concentram na anlise dos efeitos irracionais da organizao social.
Claro est que cada um destes textos objeto de objees provenientes de den-
tro e fora do campo psicanaltico. Contudo, poucas destas objees levam em conta
o mtodo utilizado pelo criador da psicanlise para elaborar suas hipteses sobre a
organizao social e seus efeitos. Este mtodo, pouco conhecido, busca construir mo-
delos sobre as determinaes dos processos psquicos a partir dos males individuais,
das patologias psquicas, enfim, do que escapa ao controle das conscincias e causa
sofrimento. Trata-se do mtodo psicopatolgico, que busca fazer inferncias a res-
peito das estruturas subjacentes ao que considerado normal pela sociedade a partir
das aberraes e exageros presentes naquilo que ela julga anormal (SILVA JR., 1999).
Note-se desde j a sutil e radical potncia crtica deste mtodo. Com efeito,
trata-se de tomar o que a sociedade expulsa de si como aquilo que pode revelar
que o que para ela mais inassimilvel, e portanto, mais verdadeiro. Em suma,
trata-se de assumir que o que ela julga como sua norma depende de uma cons-
tante vigilncia e expulso do que a isto no se adequa. Nas patologias e sofrimentos
do indivduo teramos, assim, a chave de leitura de certas formas de controle e
disciplina que a organizao social faz sobre seus membros e seus corpos. Apesar
das ressonncias, esta chave de leitura no comea em Foucault, mas em Freud, e,
antes dele, em Marx e Nietzsche, os trs hermeneutas da suspeita, segundo Paul
Ricoeur (1965, p. 40). Em tais hermenuticas, a suspeita de que algo est sendo
velado da conscincia um princpio de leitura dos discursos. Mas h diferentes
suspeitas possveis. O fato que, se Nietzsche toma os valores morais e se Marx
toma a ideologia capitalista como objeto de leitura das verdades veladas da e pela
estrutura social, Freud toma os sintomas psquicos, os sofrimentos dos sujeitos
para fazer sua leitura sobre a sociedade e a civilizao.
Uma reflexo sobre o que seria o sentido do hfen, nesse caso, revela nesse
modelo de leitura no uma oposio, tampouco uma separao entre o indivduo
e a sociedade, (que, ento, seriam reunificveis por um elemento com funo de
hfen), mas, sim, um co-pertencimento e uma co-determinao, ao modo de vasos
comunicantes, em que o nvel do lquido em cada abertura est em relao com o
nvel de todas as outras.
A imagem do equilbrio falseia, contudo, algo essencial do modelo freudiano.
Assim, uma observao importante nesse ponto a de que, neste modelo, no h
lugar para uma situao de equilbrio sem resto: no h possibilidade de uma re-
velao final da verdade nem para algo anlogo teleologia marxiana da histria,
em que a luta de classes e a falsa conscincia chegariam ao seu termo uma vez que
o proletariado assumisse o governo. Em vez disso, encontramos uma posio tr-
gica na base do pensamento freudiano, que assume que a prpria constituio da
organizao social depende de uma renncia constante e uma excluso de desejos.
O equilbrio social , portanto, segundo Freud, essencialmente tenso e precrio.
Diferentemente de em Marx, no haveria redeno final no conflito entre a norma
social e sua exceo, entre o seu interior e aquilo que dele excludo. Por outro
lado, isso no implica, nesse modelo, uma resignao ordem social vigente e ao
seu sofrimento inevitvel. A posio tica oriunda da teoria freudiana mais sutil.
Procurarei explicit-la e demonstrar seu funcionamento a partir da anlise dos
fenmenos de modificao corporal que tm crescido exponencialmente em nossa
cultura. Trata-se, assim, de demonstrar o valor metodolgico do sofrimento como
chave de leitura da organizao social (DUNKER, 2015).
A suposio de base por ns assumida no Latesfip (Laboratrio de Teoria So-
cial, Filosofia e Psicanlise) na investigao das patologias do social que as for-
mas de sofrimento no podem ser isoladas da prpria organizao social de onde
surgem, sendo, portanto, formas priviegiadas de leitura destas ltimas (SAFATLE,
2015). Freud supunha que a cultura possui um poder causal na produo de suas
patologias e se referia a estas como patologias da comunidade culturalizada
(FREUD, 1930). Como as razes disto nem sempre esto claras, proponho-me
a fazer aqui uma exposio sobre o que sustenta tais diagnsticos. Buscarei, em
outras palavras, demonstrar como funciona a estrutura conceitual psicanaltica
capaz de produzir diagnsticos das culturas e o que as prticas do corpo nos
informam sobre o nosso caso. Veremos, ainda, que esta estrutura conceitual orga-
dar origem a uma teraputica. Ora, este no o caso, pois h na teoria freudiana
uma segunda fonte possvel de sofrimentos, esta sim suscetvel de uma teraputica.
Retomemos, aqui, a figura da elipse, pois este apenas um dos dois centros
causais da teoria das patologias do social em Freud. No segundo centro, Freud
atribui a eficcia patognica ao problema da verdade. Mais especificamente, re-
lao deficitria dos discursos com a verdade histrica dos sujeitos e de sua vida
em comunidade. Em outras palavras, as grandes narrativas de uma cultura, seus
ideais, suas exigncias morais, podem fazer adoecer na medida em que estabele-
am relaes deficitrias dos seus sujeitos com a verdade de sua histria e de seus
desejos. Esta a segunda fonte de sofrimento na teoria freudiana: a relao dos
sujeitos com a verdade pode potencializar ou atenuar o sofrimento proveniente da
estrutura de impasse entre a natureza e a cultura.
Assim, se o primeiro centro da elipse causal freudiana diz respeito a uma an-
tropologia filosfica, isto , ao que torna o homem diferente do animal, o segundo
centro se inscreve numa filosofia da histria, isto , a relao do homem com sua
verdade. nesta relao que se localiza, para Freud, o papel propriamente poltico
das teses psicanalticas. Com efeito, desde 1908, em A moral sexual civilizada e a
neurose moderna, at 1930, em O mal-estar na civilizao, (FREUD, 1908, 1930)
uma mesma acusao de hipocrisia moral feita por Freud contra os discursos
que negam ou escamoteiam a inegvel natureza sexualizada ou agressiva do ser
humano. Claro est que, se por um lado a psicanlise aponta para o carter inevi-
tvel do mal-estar da vida em civilizao, ela tambm aposta na minimizao de
tal sofrimento, buscando reduzir a dor neurtica ao sofrimento humano comum.
Est clara a homologia estrutural na teoria freudiana do corpo e da cultura
por meio da figura da elipse. Em ambos os casos, a insero na linguagem produz
um resto necessrio de sofrimento e gozo. Mas, uma vez no interior da linguagem,
vrias possibilidades de refrao, concentrao, desvio deste sofrimento e gozo se
apresentam aos sujeitos e s culturas nas quais se inserem. Vejamos, em seguida, a
questo das marcas corporais como sintomas da cultura atual e o funcionamento
da chave de leitura freudiana nesse caso.
1 Estudo comparativo internacional das marcas corporais autoinfligidas luz do lao social
contemporneo. Funes das tatuagens e escarificaes na economia psquica dos jovens
adultos: gnese, relao aos corpos, soluo subjetiva, 2008-2012, CAPES COFECUB,
processo 609/08. Pesquisa desenvolvida em colaborao com o Laboratoire de Psychopa-
thologie et clinique psychanalytique Equipe daccueil 4050. Universit Rennes 2, Frana.
2 O capital fixo consiste no capital fsico que no consumido durante um ciclo de produ-
o. So os edifcios, mquinas e equipamentos. Corresponde ao ativo de uma empresa.
3 Commodity um termo de lngua inglesa que, como o seu plural, commodities, significa
mercadoria. utilizado nas transaes comerciais de produtos de origem primria nas
bolsas de mercadorias. Usado como referncia aos produtos de base em estado bruto
(matrias-primas) ou com pequeno grau de industrializao, de qualidade quase unifor-
me, produzidos em grandes quantidades e por diferentes produtores.
Mas h tambm uma faceta aceita como normal das demandas de ampu-
tao de membros. Com efeito, em nosso segundo exemplo, a questo da amputa-
o e substituio de membros ou rgos por prteses consideradas mais eficazes
ou simplesmente melhores recoloca a questo da corporeidade em sua interface
com a economia. Assim, o jovem srvio Milo perdeu os movimentos do brao
direito em um acidente de motocicleta dez anos atrs. Cirurgias conseguiram re-
cuperar o brao parcialmente, mas sua mo ainda incapaz de fazer movimentos
bsicos. Por causa disso, ele optou por amputar a mo disfuncional para colocar
uma prtese mecnica em seu lugar. Milo, que tem 26 anos, diz que a soluo de
amputar sua mo a melhor que pode imaginar, depois de viver uma dcada com
uma mo deficiente4. Trata-se do que poderamos chamar de funo capital-fixo
do corpo, isto , o corpo como maquinrio ativo fixo do indivduo-empresa.
Com efeito, este o inquietante sentido no horizonte do comentrio de um
especialista em tica mdica da Universidade de Oxford, Bennett Foddy: na me-
dida em que a tecnologia evolui, podemos ter mos binicas melhores do que
as mos naturais e pessoas com mos saudveis querendo fazer substituies
(FODDY). O que estaria em questo seria a introduo, no campo da medicina,
de um pensamento no mais pautado exclusivamente pelo eixo sade-doena,
mas diretamente pela funcionalidade e o aumento da produtividade calcado no
prprio corpo.
Nesta nova funo da medicina, sua interface com a economia de mercado
passa a organizar as intervenes. Podemos, assim, imaginar a abertura de linhas
de emprstimos especialmente voltadas para a aquisio de membros artificiais e/
ou medicamentos psicoativos capazes de multiplicar a performance dos trabalha-
dores. Mas esta no mera especulao futurstica. Um dos nichos mais rentveis
do mercado financeiro se localiza naquilo que poderia ser definido como corpos-
commodities, constitutivo de nosso terceiro exemplo sobre as funes do corpo
em nossa cultura.
Com efeito, Laurie Essig, sociloga norte-americana, em seu livro American
plastic. Boob jobs, credit cards, and our quest for perfection (apud CHOLLET,
2011), investiga o financiamento oferecido pelos bancos para realizao de ci-
rurgias estticas. Segundo a autora, nos ltimos dez anos o crescimento de pro-
cedimentos estticos nos Estados Unidos aumentou 465%, ao mesmo tempo que
85% destes foram pagos por emprstimos bancrios.
Essig afirma que dois discursos esto em jogo nessa relao: primeiramente,
a aparente autonomia e liberdade do sujeito, que se v condenado a se construir
por meio de manipulaes estticas e corporais, frente ao que oferecido pelo
10.5 Concluses
O impacto das relaes de poder sobre o corpo por meio dos dispositivos e dos
saberes comum a todas as pocas e culturas (BERTHELOT, 1998; LE BRETON,
1990). Mas, diferentemente de outrora, quando as sociedades eram locais, bem
definidas e estruturadas a partir de rituais religiosos ou de iniciao muito eficazes,
os modos atuais de constituio do corpo e da relao com a sexualidade parecem
se organizar em torno da categoria do indivduo, responsabilizando cada um pelo
modo como ter acesso sua prpria inteligibilidade, totalidade de seu corpo e
sua identidade (FOUCAULT, 1976, p. 205). Cabe perguntar se essa herana tardia
da modernidade, se esse movimento quase planetrio de individualizao, se esse
cuidado contemporneo de si promovido pela cultura atual, no age, na verdade,
como um engodo, uma iluso alienante do sujeito, que esconde uma dominao
por discursos cada vez mais totalizante e hegemnica e o mal-estar particular a essa
dominao. Questo que nos convida a definir como se do os modos de produo
social das subjetividades atuais para compreender como novos sintomas podem,
eventualmente, surgir na cultura (GASPARD, 2010). Nesse sentido, compreende-
mos o desenvolvimento de certas prticas e usos do corpo enquanto respostas a
impasses e lgica do lao social contemporneo (HILTENBRAND, 2005).
A proliferao e a coletivizao dos modos de gozo no campo do consumo
(SILVA JR.; LIRIO, 2005b), das prticas e usos do corpo (GASPARD; DOUCET,
2009), a busca de sensaes extremas, os adoecimentos da funo desejante te-
riam por correlato, segundo a hiptese de Freud apresentada na primeira parte
deste texto, uma alterao importante dos laos sociais ou discursos. Ora, as pr-
ticas do corpo, em sentido amplo, so por ns consideradas como formas pelas
quais os sujeitos se posicionam e reagem, em nossa cultura especfica, ao resto ne-
cessrio de sofrimento masoquista. Nossa hiptese que por meio da variedade
das respostas individuais que implicam e fazem uso do corpo, de novos modos de
gozar ou de novas maneiras para que os sujeitos possam tomar posio frente ao
saber, ao poder e ao sexo que poderemos localizar as consequncias subjetivas da
atual economia de normalizao, inerente ao neoliberalismo.
Referncias
BERTHELOT, J. M. Le corps contemporain: figures et structures de la corporit.
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Frankfurt-am-Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1999.
a segunda um mtodo de interpretao que visa a uma sntese mais que uma
anlise (p. 8).
O mtodo iconolgico estabeleceu-se em uma posio crtica iconografia,
termo cuja raiz etimolgica encontrada em eikon imagem e graphia des-
crio ; desse modo, pressuporia um papel descritivo, capaz de alimentar clas-
sificaes, comparaes, tradies, circulao etc., como notou Ulpiano Meneses
(2012, p. 244); a iconografia est fundamentada na descrio particular dos
smbolos, enquanto a iconologia visa a um projeto de interpretao geral dos sm-
bolos em horizonte histrico. Esta ciso foi sintetizada por Meneses (2012) em
referncia a Gottfried Boehm: a iconografia identifica na imagem a significao
interna de significaes externas, ao passo que a iconologia implica em genera-
lizaes, integrao de informao e perspectivas (p. 244).
A iconologia tambm foi baseada em uma srie de termos pertinentes ao
domnio da psicologia, os quais Panofsky utiliza para fundamentar cada um dos
nveis de sua interpretao. Por exemplo: personalidade, sensibilidade, expres-
so, emoo etc. Noutra ocasio, pude apontar algumas correspondncias entre
os estudos de Merleau-Ponty, Panofsky e Pierre Bourdieu (ANDRIOLO, 2011).
Bourdieu designou a iconologia como uma cincia estrutural capaz de superar a
dicotomia psquico-social por meio do conceito de habitus (BOURDIEU, 1992).
Ao prolongar o projeto iconolgico de Aby Warburg, Panofsky elaborou um
sistema de interpretao em referncia ao socilogo hngaro Karl Manheim e ao
filsofo alemo Ernst Cassirer e interessou-se pelos trs nveis de interpretao
e pelo conceito de forma simblica. Dividiu o conjunto da abordagem em trs
passos: (1) descrio pr-iconogrfica (e anlise pseudoformal); (2) anlise ico-
nogrfica; (3) interpretao iconogrfica em sentido profundo ou interpretao
iconolgica. Cada um desses nveis refere um objeto da interpretao: (1) conte-
do primrio, constitudo pelo mundo dos motivos artsticos; (2) contedo secun-
drio, constitudo pelo mundo das imagens, histrias e alegorias; (3) significado
intrnseco, constituindo o mundo dos valores simblicos.
Todos esses nveis esto correlacionados a conceitos psicolgicos, notada-
mente no terceiro nvel, quando trata de formas simblicas no sentido definido
pela abordagem cultural de Cassirer (1944). Esse nvel deve revelar atitudes b-
sicas de uma nao, perodo, classe social, comportamentos filosficos ou reli-
giosos, inconscientemente qualificado por uma personalidade e condensado em
uma obra de arte (PANOFSKY, 1967 [1939], p. 7). Assim, uma imagem precisa
ser entendida em contexto psquico e social. A abordagem iconolgica descreve
a experincia esttica por meio de processos histricos expressos em condies
psicossociais de significao.
De modo preliminar, o socilogo Pierre Francastel (1990 [1951]), leitor e
contemporneo de Jean Piaget e Henri Wallon, considerava que uma imagem
1 Entre os autores aqui citados, apenas J. Stefanou desenvolveu seus estudos nos quadros insti-
tucionais da psicologia, na Universidade de Strasbourg, sob a orientao de Abraham Moles.
Referncias
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STEFANOU, J. tudes des paysages dans la carte postale: une iconologie experi-
mental de limage. Thse de Doctorat dEtat. Strasbourg: 1981.
1 Este texto uma edio corrigida do texto originalmente publicado na Revista Temas em
Psicologia, v. 21, n. 3, 2013, em espanhol e ingls. Contei com o incentivo da bolsa PQ/
CNPq (Produtividade em Pesquisa/Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico).
pelo excesso de peso. uma produo que se articula com o movimento pela
humanizao das prticas de sade, em especial no campo da sade da mulher.
Este texto oferecer referncias para uma reflexo crtica sobre o contexto
histrico e acadmico desta experincia e um comentrio sobre o sentido do ter-
mo psicossocial adotado neste caminho.
7 Trata-se de uma reviso sobre o tema (ROTHER, 2007) realizada no corpo dos artigos
cientficos recuperados no SciELO, em uma busca que utilizou os termos psicossocial
ou psicossociais e o ano de publicao (2000-2012). Indicada para os objetivos pro-
postos neste texto, uma reflexo crtica sobre o uso do termo psicossocial no campo
da sade, escolhemos a base de dados SciELO porque esta a base que concentra os
peridicos que passam por rigorosa avaliao sistemtica e inclui um nmero bastante
expressivo e representativo dos artigos cientficos brasileiros melhor avaliados.
8 Histrico que vai desde os sintomas iniciais at o momento da observao clnica, reali-
zado com base nas lembranas do paciente ou de seu responsvel.
9 Diagnsticos de doenas mentais que usam mtodos ou testes psicolgicos.
10 Interessante notar que se trata de uma tecnologia de avaliao psicossocial raramente
ensinada nas grandes universidades naquele momento.
cuidado dos que padecem de sofrimento mental e das suas vrias necessidades
frequentemente definidas na linguagem dos direitos humanos. Uma clnica am-
pliada dever ampliar o cuidado, at ento reduzido ao tratamento do problema
(doena) definido por uma nosologia ou taxonomia. H muitas referncias no
SciELO aos centros de ateno psicossocial (em algumas regies do pas chama-
dos tambm de ncleos de ateno psicossocial NAPS).
Se o termo psicossocial aparece nos artigos analisados comumente para res-
saltar que nem tudo depende do indivduo e em oposio a um genrico mode-
lo biomdico, so ainda raras as descries mais detalhadas sobre quais seriam
as prticas realizadas com base no modo psicossocial.
Ao longo das primeiras dcadas do sculo XXI, somaram-se a esse conjunto
de textos os que incluem na categoria psicossocial as relaes de poder, principal-
mente relaes de gnero e de classe e, mais raramente, relaes tnico-raciais.
Referncias classe, ou pobreza, ou s questes de gnero so includas no
domnio considerado psicossocial, inspiradas pela tradio de estudos culturais
e de gnero de perspectiva socioconstrucionista. Ao discutir sobre as diferenas
encarnadas em certos segmentos sociais (mulheres e homens, pobres e ricos), afir-
mam que a desigualdade social resultante dessas diferenas no pode ser explica-
da pela natureza ou por processos macrossociais inevitveis: a desigualdade no
natural, inevitvel, nem tolervel11. Nesse conjunto de textos, entretanto, rara-
mente se marcadores da desigualdade como categoria de anlise na organizao
da anlise e ao longo da narrativa do texto, como propem Brah (2006) ou Scott
(1988, 1995). Usa-se, por exemplo, a expresso questes de gnero, que nada
define, apenas para sinalizar o reconhecimento da desigualdade entre homens e
mulheres; raramente se operacionaliza gnero como categoria de anlise.
Finalmente, nos textos analisados so diversos os fenmenos so definidos
como da ordem psicossocial nas diferentes abordagens e epistemologias escolhi-
das: os artigos versavam sobre sentimentos, emoes, atitudes e prticas, ou ain-
da, sobre discursos (extrados das falas de pessoas ou analisados com base em
documentos), sobre dinmicas relacionais, resistncia e resilincia, cenas e contex-
tos. Como qualificam esses fenmenos ou a atuao sobre eles?
A expresso aspectos psicossociais escolhida pelos autores que incluiria
no campo construcionista para definir um conjunto de fenmenos ou de dinmi-
cas psicossociais, como nos estudos sobre desigualdade ou sobre a relao indi-
12 John Gagnon, recm-falecido, o cientista social que escolho como ancestral do cons-
trucionismo e de uma abordagem dramatrgica do psicossocial e da sexualidade. Inte-
racionista e herdeiro do pragmatismo e da Escola de Chicago, seu uso das noes de
carreira e trajetria ajudou-o a definir, com Simon (SIMON; GAGNON, 1969) e
antes de Foucault, o sexo como uma atividade social como outra qualquer; defendeu que
os discursos sociais sobre o sexo substituem com vantagem a noo de impulso. A con-
duta sexual, em termos simblicos e fsicos, pode expressar outros interesses (trabalho,
poltica, religio) que no tm prioridade na explicao causal. Ou seja, inverte Freud
ao afirmar que o sexo pode significar quase tudo na vida social e que o sexual no tem
prioridade na explicao causal (GAGNON, 2006, p. 406). Bem antes de Butler, Simon e
Gagnon descreviam a performatividade do sexual.
13 A participao dos usurios foi resultado do movimento de Reforma Sanitria que con-
cebeu o Sistema nico de Sade (SUS) e responde ao princpio de controle social direto
dos usurios, inspirado na Constituio de 1988, conhecida como Constituio cidad.
14 Nesse ltimo caso, Bandura, Proshaska, Lazarus, Folkman, entre outros, so os autores
mais conhecidos e mais citados na literatura internacional da chamada psicologia da
sade (TUNALA, 2012).
Figura 12.1 Interdependncias das dimenses social, programtica e individual da vulnerabilidade concebidas
como intersubjetividade.
Fonte: Adaptado de Paiva et al. (2010).
dade deve proteger e promover direitos para promover sade e que seus gover-
nos (nacionais e locais) podem ser responsabilizados em caso de displicncia ou
violao (GRUSKIN; TARANTOLA, 2012). O uso deste princpio por ativistas e
profissionais de sade no SUS e em condies de responder s demandas do mo-
vimento social marcou a resposta brasileira aids.
Trata-se de superar a individualizao, assim como a culpabilizao da
vtima, que responsabiliza as pessoas pelo seu mau comportamento e pelos
fatores sociais (aspectos contextuais) associados ao seu adoecimento. Progra-
mas e prticas baseados em uma anlise da vulnerabilidade ao adoecimento
necessariamente dependem da ao de diversos saberes em interao de diver-
sas clnicas, da epidemiologia, das cincias humanas e sociais e de prticas na
perspectiva dos direitos humanos (da gesto ao cuidado). Ou seja, as pessoas
dependem que o sistema de sade no as discrimine, que se garanta acesso
universal aos servios, sua aceitabilidade e qualidade que, como intuitivo, a
participao dos usurios favorecer.
Para pensar a chamada dimenso individual da vulnerabilidade, portanto,
abandonamos no Brasil rapidamente a social psychology que ilustrava a obra
original de Mann, Tarantola e Netter (1992, 1997) sobre vulnerabilidade e di-
reitos humanos. Em outra direo, a tradio latino-americana da pedagogia, da
psicoterapia e do teatro do oprimido (BOAL, 1975; FREIRE, 1968, 1973; MOF-
FAT, 1987; OLIVEIRA; ARAJO, 2012), porque enfrentava contextos de grande
vulnerabilidade, inspirou uma psicologia social dedicada ao social e comuni-
tria uma interveno psicossocial , sintomaticamente definida como uni-
termo pela SBD e no pela APA, como discutimos na primeira parte deste texto.
Implicada na construo da cidadania ps-colonial e ps-ditaduras, essa tradio
brasileira fez histria no modo de ateno psicossocial introduzido no Sistema
nico de Sade.
Este foi o contexto acadmico e poltico para o surgimento do movimento
terico-prtico na direo de uma abordagem psicossocial na sade no quadro da
V&DH (PAIVA, 2012b).
Preferimos o termo pessoa, utilizado na linguagem dos direitos e uma defi-
nio de sujeito prpria das vertentes construcionistas (CAN, 2008). Nesta
abordagem psicossocial15, o sujeito no um termo genrico para indivduo ou
pessoa e concebido como sujeito de discursos e de direitos. Como sujeitos
sexuais, as pessoas reelaboram os diversos discursos sobre o sexo o da preven-
16 O Brasil organiza o maior encontro que debate exclusivamente gnero (Fazendo Gne-
ro), que junta milhares de pesquisadores brasileiros. A Amrica Latina coprodutora da
grande virada epistemolgica produzida pelos estudos de gnero e sexualidade constru-
cionista, inspirao fundamental dessa vertente da psicologia h mais de duas dcadas.
Como Terezita de Barbieri sintetizou, a produo da categoria gnero de anlise uma
ruptura epistemolgica, talvez a mais importante nas cincias sociais nos ltimos 20
anos (BARBIERI, 1993, p. 150). Os autores do campo da aids valorizavam os estudos
de gnero bem antes de a obra de Butler ser conhecida e conquistar finalmente os que, de
algum modo, foram inspirados, como ela, pela tradio psicanaltica.
oferecer recursos tcnicos para renovar a relao face a face com os usurios e a
intimidade das prticas em sade e sua organizao.
Como saber mediador nico, portanto, as anlises de risco colonizam inde-
vidamente outros campos de saber com receitas de estilos de vida adequados
para indivduos genricos, biopsquicos/comportamentais, pessoas-tipo, que
existem apenas como resultado da anlise de questionrios, dedicada ao debate
acadmico que interpreta fatores associados e o risco epidemiolgico.
Alm disso, como sintetizaram Kippax et al. (2013), as concepes sobre o
plano do indivduo adotado nas abordagens da epidemiologia de risco e sociopsi-
colgicas, assim como por certa verso do quadro da V&DH adotada pela Orga-
nizao Mundial da Sade17, esquecem que as aes das pessoas no so simples
produtos de suas caractersticas ou de suas escolhas racionais e esto implicadas
em sentidos e significados. Portanto, quando o plano do indivduo reduzido
a um determinado comportamento descrito como fator ou varivel de interesse
(comportamentos de risco, ou sexo sem o uso do preservativo, por exemplo),
desaparecem os diferentes significados que as mesmas prticas sexuais assumem
ao longo do tempo para uma mesma pessoa, nos diferentes lugares que ocupa e
ocasies que vive (como cnjuge ou amante; por amor ou sendo abusada). Esque-
cem que a normatividade cultural e as prticas sociais produzem constantemente
o indivduo e suas condutas, e a centralidade da cena viva, cuja resultante produz
de fato cada ato, desaparece. Como j discuti em outro texto, o bom trabalho de
cuidar e prevenir em sade depende de sustentarmos as conversas com as pessoas
com foco nas cenas vivas do seu cotidiano (PAIVA, 2008).
Kippax et al. (2013) propem substituir a noo de indivduo como foco da
preveno pela centralidade da comunidade, ou seja, pela focalizao na ao
coletiva e interao entre grupos e redes de pessoas. Mudanas sociais e de com-
portamento que foram articuladas comunitariamente transformaram os rumos
da epidemia da aids, argumentam. Como exemplos da centralidade dessa noo
de movimento comunitrio para a promoo da sade, lembram que a introdu-
o do uso do preservativo, um artefato contraceptivo, passou a ser norma entre
homens gays que, nos anos 1980, organizaram-se em um movimento social de
resistncia epidemia; argumentam que a mobilizao da solidariedade e do cui-
dado comunitrio produziram o acesso universal ao tratamento antirretroviral na
resposta brasileira aids.
Por outro lado, o desafio de repensar o hfen apontado por Frosh, Kippax
e autores construcionistas parece quase insupervel para quem trabalha no cam-
po da sade, em que a ambio de objetividade e o manejo cirrgico e clnico
do corpo individual, do indivduo extrado de seu contexto cultural, tm efeito
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Resumo: neste breve ensaio, apresento uma reflexo derivada das tenses co-
locadas pelo meu trabalho como docente em psicologia no campo da construo
sociocultural das diferenas, numa tentativa de contribuir para o debate sobre a
alteridade. So abordados os conceitos de conhecimento, opinio e esteretipo
com vistas produo de conhecimento no mbito dos currculos e da formao
dos(as) psiclogos(as), capazes de disparar a suspeita crtica em direo supe-
rao da alienao, auxiliar na reflexividade acerca dos processos de socializao
em contextos de dominao e desigualdade e desinstrumentalizar esteretipos.
Palavras chaves: conhecimento, opinio, esteretipo, alteridade.
s algum que olha? Ou estende a mo? Ou que desvia o olhar e se afas-
ta?... (NIETZSCHE, 1989[1888], p. 19).
Neste breve ensaio, apresento uma reflexo derivada das tenses colocadas
pelo meu trabalho como docente em psicologia no campo da construo sociocul-
tural das diferenas, numa tentativa de conhecer como lidamos com as diferenas
(tnico-racial, corporal, cultural, social, entre outras) e de contribuir para o de-
bate sobre o tema da alteridade no mbito da formao dos(as) psiclogos(as).
O conhecimento deriva da relao do ser humano com os outros seres vivos
e com os fenmenos que o cercam, possuindo, matricialmente, as funes de au-
toconservao e adaptao. Entretanto, conhecimento no significa uma relao
imediata e harmoniosa entre o ser humano, os seres vivos e fenmenos. Pelo con-
trrio, envolve tenso e luta. Conhecer o mundo humanizar o mundo. contra
um mundo sem ordem, finalidade, que o conhecimento precisa lutar. com esse
mundo que o conhecimento se relaciona para permitir que o ser humano possa
expressar seus universais (linguagem, valores) e se conduzir na vida (NIETZSCHE,
1983 [1881]).
para lidar com o outro diferente, que, em geral, reduzido condio de inferior
ou visto em situao de desvantagem, delimitando-se, assim, seu lugar na socieda-
de, enquanto lugar de poder, de oportunidades.
No h espao para surpresas ou desafios quando os esteretipos triunfam
como categoria de interpretao da realidade e do outro (AMARAL, 1995). Ocor-
re uma reduo da percepo. Ela se torna unidimensional e o ser humano passa a
lidar com o outro por meio das mediaes que lhe so impostas. Existe um medo
de afrontar o pensamento ordenador e seus valores estabelecidos que impede a
construo de novas significaes sobre formas diferentes de ser, existir e pensar.
Opinio e esteretipo tm como origem o medo do conhecimento e o medo
da alteridade. A funo de ambos o empobrecimento da verdade e a dominao.
Eles distorcem, ocultam, reduzem a uma nica dimenso a percepo da realida-
de social e do outro, servindo, assim, dominao, ou seja, hegemonia de um
sistema de interpretao de mundo que impe uma nica tica, lgica, esttica,
espiritualidade como fundamento da relao do ser humano com a natureza e os
outros seres vivos.
O desrespeito diversidade das formas de ser, existir e pensar, a imposio
de um nico modelo, considerado verdadeiro e ideal, s faz sentido em uma so-
ciedade hierarquizada e extratificada, e so o sintoma do rebaixamento poltico
geral dos indivduos que a compem. Na base da dominao est o rebaixamento
poltico, a impossibilidade dos grupos subordinados de participar da vida social
como sujeitos histricos e de desejo e de influenciarem na construo de regras de
convivncia e na construo do futuro (GONALVES FILHO, 2004).
Desde o incio da vida, o ser humano precisa lidar com a alteridade, com a
presena de um outro, diferente, que funda o reconhecimento de si mesmo. Ora,
quando o encontro com esse outro ocorre numa situao de subordinao, cons-
trues defensivas como o esteretipo entram em cena para facilitar a opresso e
justificar a imposio de sistemas de interpretao de mundo. O encontro com o
diferente revela a incerteza do eu e do mundo construdo. Ao produzir estranha-
mento, o outro ameaa (FREUD 1976 [1919]).
A dimenso poltica do medo da alteridade revela-se no etnocentrismo, a
dimenso psicolgica nos processos de projeo e sombra. A alteridade mostra
que a diferena, ao mesmo tempo em que constitui a base da vida social, a fonte
permanente dos conflitos (VELHO, 1974). Por isso, no adianta incorporarmos a
diferena (tnico-racial, de gnero, de orientao sexual, associada deficincia)
nos mbitos da teoria e do discurso, se na prtica no nos encontramos politica-
mente como iguais. No igual direito de falar, tomar iniciativa, construir regras de
convivncia e projetos de felicidade.
Minha experincia como docente em psicologia tem mostrado que a opi-
nio, o esteretipo e o medo da alteridade esto presentes na atuao dos(as)
Referncias
AMARAL, L. Conhecendo a deficincia (em companhia de Hrcules). So Paulo,
Robe, 1995.
O tema geral deste livro prope que se reflita sobre as significaes do hfen
presente na expresso (adaptada) psico-social. Trata-se de um tema da mxima
relevncia, sem dvida, especialmente no momento em que as discusses de fundo
sobre os variados campos da cincia parecem perder lugar para seus frutos tecno-
lgicos. Isso, infelizmente, tambm constitui uma caracterstica contempornea da
psicologia. O presente trabalho parte do princpio de que a questo do hfen pode
ser proveitosamente entendida como uma busca pelo objeto da psicologia social e,
sem pretender esgotar a questo, ser aqui discutida tomando-a neste sentido.
comum encontrarmos alunos de graduao com dificuldade para respon-
der a esta pergunta aparentemente simples: o que estuda a psicologia social? Isso
deve nos dizer algo sobre nossa rea de atuao. A situao parece mais complica-
da quando encontramos alunos de ps-graduao com a mesma dificuldade. Mas
tudo se torna nebuloso quando profissionais deste campo apresentam dificuldade
semelhante. Como consequncia, temos que admitir, por simplicidade, que h
algo no prprio campo do conhecimento que explica este estado de coisas. Alm
disso, temos que admitir que h algo neste campo que explica a necessidade de
perguntar por seu objeto. Esta necessidade deve ser de ordem geral nas disciplinas
cientficas e as respostas devem ter grau varivel de dificuldade. Adorno (1995)
entende que a definio dos termos sujeito e objeto apresenta uma dificuldade
filosfica fundamental: se se quisesse definir ambos os termos, cair-se-ia em uma
aporia que se junta a problemtica do definir, continuamente retomada pela fi-
losofia moderna desde Kant. E que, de certa maneira, os conceitos de sujeito e
de objeto ou melhor, aquilo a que se referem tm prioridade sobre qualquer
definio. Definir e o mesmo que capturar objetividade, mediante o conceito fi-
xado, algo objetivo, no importa o que isto seja em si. Dai a resistncia de sujeito
e objeto a se deixarem definir (p. 182).
maioria dos psiclogos sociais estuda indivduos como uma pessoa pensa sobre
os outros, influenciada pelos outros, ou se relaciona com os outros (MYERS,
2000, p. 3). Dessas trs definies, conclumos que se trata de uma rea do conhe-
cimento que estuda o poder da situao social sobre o indivduo.
Seria uma definio simples e mais completa que a frmula da relao entre
psicologia e sociologia, no fosse a dificuldade representada pela palavra indi-
vduo. No est claro nesses casos o que significa o indivduo sobre o qual se
fala, e a palavra usada como um significante relacionvel univocamente com
um objeto do mundo: aquela pessoa individual, aquele ser humano que ali
est, um indivduo um ser humano individual, ou seja, singular, separado e
distinguvel, sinnimo de pessoa ou ser humano (VELHO, 1987, p. 591). No
entanto, as palavras tm sua histria e este termo to livremente definido carrega
o peso de sculos de reflexo. Isso porque indivduo comporta um vis espe-
cfico pelo qual se diz algo daquele ser humano. bem sabido que a palavra
significa, etimologicamente, indivisvel, e a traduo latina do termo grego
, tomo. Desta forma, encontra-se j nas origens da filosofia com Dem-
crito. Est envolvida em uma longa discusso filosfica a respeito da possibilidade
real de se conhecer racionalmente um indivduo singular ou seja, conhecer suas
determinaes. Se as determinaes que permitem conhecer um gnero podem ser
enumeradas os mamferos, por exemplo , conhecer uma espcie exige lanar
mo de um nmero bem maior de determinaes o homo sapiens sapiens, por
exemplo a fim de distingui-la de outras espcies. Conhecer um indivduo e dis-
tingui-lo de todos os outros indivduos exigiria lanar mo de infinitas determina-
es, tornando impossvel conhec-lo racionalmente.
A aplicao desta palavra aos seres humanos, porm, bastante recente e
data do perodo da Modernidade, quando a noo de indivduo como base da
sociedade torna-se representao social a aplicao da palavra para designar
o ser humano singular data do sculo XVII. O conceito de mnadas de Leibniz
oferece um modelo conceptual para a viso individualista do homem concreto
na sociedade burguesa (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 46). Neste sen-
tido, implica uma forma especfica pela qual a humanidade ocidental passou a
ver a si mesma: o indivduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu eu
e eleva o seu ser-para-si, a sua unicidade, a categoria de verdadeira determina-
o (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 52). , portanto, a conscincia de
sua singularidade frente a todos os outros seres humanos que define algum
como indivduo. Essa conscincia s pode existir em certas condies sociais,
aquelas nas quais o todo social se estrutura a partir da ao aparentemente li-
vre e autnoma dos agentes sociais e que se consolida com a economia da livre
concorrncia no sculo XIX. Deste modo, o indivduo um produto de certas
condies sociais.
O sculo XIX viu surgir uma rea dedicada a estudar este objeto: a psico-
logia cientfica, que, em sua primeira forma, a psicofsica (FECHNER, 1966),
j em 1860 visava estudar os fenmenos internos de fato, uma caracte-
rstica do indivduo burgus a nfase em sua vida interna, sua subjetividade
ou conscincia, e os processos psicolgicos so aqueles que atuam no ntimo
do indivduo (FROMM, 1983, p. 10). A psicologia surge como uma rea do
conhecimento voltada para entender o indivduo e sua subjetividade, e grande
parte das suas disputas tericas tem carter metodolgico: como acessar esses
fenmenos cientificamente? Este ponto corretamente sintetizado por Skinner
(1963): de qualquer forma, o problema de como algum pode conhecer o mun-
do subjetivo de outro tem que ser enfrentado. Alm da questo do que conhe-
cer significa, o problema a acessibilidade (p. 952). Ningum pode ver o
mundo interno de outro e at hoje se discute qual a melhor forma de conhec-lo.
Esta busca determina a origem deste campo do conhecimento e o unifica, pois
cada uma das abordagens tericas da psicologia vai tentar responder de forma
singular necessidade de definir os mtodos de acesso subjetividade. Deste
ponto de vista, nossa individualidade no imediata ou naturalmente dada,
e , ao contrrio, o fruto de um laborioso processo histrico. Face ao indiv-
duo empiricamente dado, quele ser humano que est ali, o indivduo da
psicologia pressupe uma complexa abstrao. O que vemos empiricamente so
corpos que se movem, falam, agem em conjunto com outros objetos animados
ou inanimados. apenas por um processo intelectual sofisticado que retiramos
desse fenmeno emprico uma caracterstica, seu mundo interno, que, segundo
supe parte da psicologia, determina-o. Quanto desta individualidade deve-se
a seus aspectos naturais ou sociais resta para ser definido, e talvez no se possa
faz-lo de uma vez por todas: se algo de nossa individualidade tem carter so-
cial, a relao entre indivduo e sociedade deve mudar com as transformaes
sociais. Por consequncia, os aspectos naturais do indivduo o indivduo como
um ser biolgico tambm pressupem uma abstrao.
Todas as cincias humanas e sociais abstraem deste fenmeno empirica-
mente dado um conjunto de aspectos que elegem para estudar. Horkheimer e
Adorno (1973, p. 45), por exemplo, afirmam que o que ha de especfico na
sociologia no so os seus objetos, que tambm esto presentes [em] outras
cincias, mas a nfase que da sobre o objeto, isto e, a relao entre todos esses
objetos e as leis da socializao. O mesmo se pode dizer da antropologia,
da economia, da lingustica, da cincia poltica, da demografia e da geografia
humana, cada uma investigando uma especfica determinao do fenmeno hu-
mano. Surge deste conjunto, porm, uma necessidade que ocasionalmente apa-
rece de forma explcita, e aqui cito os exemplos de dois livros. Os editores do
livro Modernity and Self-Identity (GIDDENS, 1991b), que examina o tema da
Talvez esses termos se expliquem por sua concepo, segundo a qual a psico-
logia ocupa, no estudo do homem, uma posio mpar e de comando [...] o que a
fsica para as cincias naturais, a psicologia para as cincias humanas (ASCH,
1972, p. 12). Sendo a psicologia a cincia do indivduo, e sendo esta a responsvel
ltima pela articulao entre as cincias humanas, o ponto em que elas se articu-
lam deve ser o indivduo. Mas a forma como ele entende a palavra indivduo
parece excessivamente ampla, considerando sua etimologia, e, consequentemente,
inadequada para expressar o objeto resultante da sntese das diversas cincias
humanas e sociais a cincia que estuda o indivduo no pode ser responsvel
por esta articulao.
Se buscamos o objeto concreto resultante das vrias cincias humanas, en-
tendendo o concreto, aqui, da mesma forma que Marx (1987):
Devemos busc-lo em uma rea do conhecimento que no seja uma das diver-
sas cincias sociais, mas que seja o campo em que elas se articulam. Os trabalhos
que buscam tal articulao devem ter carter interdisciplinar, muitas vezes, ensas-
tico, refletindo o fato de que este esforo sempre a sntese parcial, inacabada, do
conjunto das disciplinas que os alimentam. Novamente, Lucia Coelho (2007) o
diz claramente: todo estudioso do comportamento humano busca compreender
como se articulam os valores coletivos e os processos psicolgicos atuantes em
cada ser humano concreto (p. 7). Alm disso, ela segue: o principal interesse
desse livro [Estrutura social e dinmica psicolgica] decorre, sobretudo, do fato
de ele focalizar suas exposies e comentrios crticos nas encruzilhadas entre
diferentes reas do conhecimento (COELHO, L., 2007, p. 7). Com as ressalvas
j feitas ao termo psicologia, o desafio apresentado por Asch (1972, p. 12):
a tarefa nuclear da psicologia humana formular uma teoria do homem fun-
damentada na observao direta e no estudo da ao e da experincia humanas,
na sua relao com o meio fsico e social e que aparecer como fundamento de
todas as disciplinas sociais (p. 12). Este esforo, sem anacronismos, recebeu de
Wundt o nome de psicologia dos povos e, em seguida, de psicologia social. Isso
o que se pode depreender da anlise de Farr (2001). Segundo ele, para Wundt, a
psicologia era apenas em parte, um ramo das cincias naturais (FARR, 2001, p.
40) e a mente, em suas manifestaes externas, de carter cultural, era em parte
um objeto das cincias sociais (FARR, 2001, p. 42):
Por isso, a psicologia social merece ser considerada uma subrea da psicolo-
gia tanto quanto de qualquer outra cincia social ou humana.
A relao entre psicologia social e histria, consequentemente, tem carter
logicamente necessrio se, concordando com os pressupostos apresentados por
Dilthey em 1883 para o projeto de uma cincia social, entendermos que a dis-
ciplina central desse projeto era a histria, e a mente humana era concebida em
termos histricos (FARR, 2001, p. 43). Wundt tambm parece ter, segundo Farr
(2001), extrado de sua psicologia dos povos a consequncia de que a mente,
nesse contexto, [...] claramente um fenmeno histrico (FARR, 2001, p. 46).
Partindo desta concepo, causa estranheza a comoo gerada por um trabalho
como o de Gergen (2008), que defende que a psicologia social uma rea do
conhecimento diretamente relacionada histria, e uma explicao plausvel
apresentada por Gouveia (2015), para quem o trabalho teve repercusso por ter
sido publicado no peridico mais importante da rea: Journal of Personality and
Social Psychology (p. 492).
Uma consequncia dessas caractersticas da psicologia social o fato de que
ela aparece como uma rea central e marginal, forte e fraca, onipresente e esqueci-
da. , por assim dizer, uma no disciplina, a caixa de vcuo das cincias humanas
e sociais. Por isso to elogiada e to deplorada, to importante e to desprezada.
Localiza-se numa espcie de campo minado (DE QUEIROZ JR., 2007), sempre
sob suspeio: livre de intolerncia ou desconfiana em relao psicologia,
[Ruy Coelho] reconhece as contribuies das grandes correntes psicolgicas...
(DE QUEIROZ JR., 2007). Como bem notam Tassara e Ardans (2007), Florestan
Fernandes aponta-o claramente:
Seu objetivo deve ser o de buscar as snteses possveis em cada momento entre
as diversas disciplinas humanas e sociais. Por isso, jamais cessamos de nos pergun-
tar por seu objeto e jamais conseguimos responder adequadamente a esta pergunta.
Referncias
ADORNO, T. W. Sobre sujeito e objeto. In: ADORNO, T. W. (Ed.). Palavras e
sinais: modelos crticos. 2. ed. Petrpolis: Vozes, 1995. p. 62-75.
ASCH, S. E. Psicologia social. Dante Moreira Leite e Mirian Moreira Leite, Trans.
3. ed. Rio de Janeiro: Companhia Nacional, 1972. Disponvel em: <http://
www.amazon.com/dp/B001IKWLW6>. Acesso em:
______. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Stand-
ford Calif.: Stanford University Press, 1991b.
Ora, as relaes entre o social e o psquico esto longe de estarem bem de-
monstradas, e o est menos ainda que sejam relaes do tipo linear que o enuncia-
do denota e conota afinal, o que se entende por afetar? No texto, o emprego
do verbo parece referir a um de seus sentidos latos, que a ao de atingir e
causar leso. Assim, o enunciado sugeriria uma relao de causalidade local, na
qual o social seria a causa e o psquico, seu efeito, com conotaes redutoras e
deterministas to evidentes quanto questionveis. Mas as questes colocadas pelo
enunciado que aqui se pretende discutir so outras, as mais singelas, mas tambm
as principais e mais graves: o que o psquico? O que o social? Se levadas
a srio, talvez estas perguntas no admitam respostas e, de qualquer modo, no
admitem respostas triviais. Seria preciso repisar as afirmaes de que tal questio-
namento, alis, atravessa os sculos da histria do pensamento ocidental, seno
de todo o pensar? Repisemos apenas aquela com que Maurice Reuchlin (1965)
inicia seu livro introdutrio histria da psicologia: se a psicologia ainda fosse
aquele ramo da filosofia consagrado ao estudo da alma, sua histria comearia
com os primeiros sinais do pensamento humano (p. 7).
Logo, em vez de buscar apressadamente uma resposta, o melhor manter uma
atitude de abertura ao pensar. Sobretudo, preciso cautela para que o pensamento
no seja tragado pelas sedues e sequestros que, diuturnamente e a cada dia mais
vigorosamente, ameaam desencaminhar todo o conhecimento para fins, em ltima
anlise, imediatistas e utilitrios no importando, aqui, se estes fins possam ser
revestidos por uma roupagem ideolgica de aparncia mais ou menos benigna.
Mas, para instalar a necessria abertura do pensar preciso, antes, afastar,
ou pelo menos relativizar, ideias hoje comumente aceitas, que tm como efeito o
velamento ou a distoro das perguntas sobre o psquico e o social. Uma con-
siderao a afastar definitivamente que o psquico equivale ao objeto de estudo
da psicologia e, similarmente, o social equivale ao objeto de estudo da sociolo-
gia portanto, caberia a estas duas disciplinas oferecerem as respostas buscadas
e, neste caso, o psquico seria as funes mentais e comportamentais (gerais e
diferenciais) e o sentido vivido por indivduos singulares, enquanto o social seria
as estruturas institucionais e regulaes coletivas, as determinaes e significados
sociais dos comportamentos. Tais consideraes devem ser afastadas porque no
nos fazem avanar um passo sequer; no caso do psquico, apenas substitumos a
misteriosa palavra psique, plena de simbolismos e ressonncias mticas e histri-
cas, por mente, comportamento, sentido vivido de todo modo, ainda pre-
Figura 15.1 Reproduo da figura 15, que apresenta a primeira formulao de Jos Bleger dos nveis de integrao.
Fonte: BLEGER, Jos. Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1984. p. 63.
Figura 15.2 Reproduo da figura 27, que, no apndice do livro, apresenta-se como uma recuperao da primeira
formulao de Jos Bleger dos nveis de integrao, para a corrigir (mas, note-se, no idntica Figura 15.1).
Fonte: BLEGER, Jos. Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1984. p. 207.
Figura 15.3 Reproduo da figura 28, que apresenta a segunda formulao de Jos Bleger dos nveis de integrao.
Fonte: BLEGER, Jos. Psicologia da Conduta. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1984. p. 211.
Bleger salienta dois aspectos deste modelo, que cumpre comentar. Primeiro,
nesta nova formulao, a fratura que demarcaria o nvel biolgico e o nvel
humano, j indicada no primeiro modelo, radicalizada ao extremo; tal fratura
estaria dada, segundo o autor, pelo aparecimento do homem como ser social: a
vida humana introduz uma verdadeira fratura na evoluo (embora essa evoluo
tenha se cumprido tambm gradualmente) e essa fratura est dada pelo apareci-
mento do homem como ser social (1984, p. 211, grifo do autor).
A partir desta suposta fratura, Bleger defende que seria necessrio distinguir
o nvel de integrao biolgico (campo da biologia e da psicologia animal,
que, nesta perspectiva, em nada contribuem para os estudos do homem) de pos-
sveis cincias ainda no criadas, as quais deveriam se ocupar dos aspectos biol-
gicos do ser humano, mas em seu especfico nvel de integrao nomeadamente,
uma biologia humana e uma medicina humana, que viriam a ocupar um
lugar entre as demais subestruturas do nvel humano.
Deve-se notar que a suposta fratura evolutiva, insistentemente defendida
por Bleger, uma tese extremamente controversa. Em favor da brevidade,
preciso omitir a exposio dos argumentos que sustentariam a tese contrria,
provindos da etologia, da paleoantropologia etc., e to somente apontar que,
primeiro, na escala evolutiva, a emergncia da sociabilidade muito anterior
ao aparecimento do ser humano; segundo, que se houvesse, de fato, uma fra-
Novamente, Bleger toma como assentes as teses que ele prprio admite no
caso, a tese marxista de que a infra-estrutura econmica determinaria a superes-
trutura social. Tambm aqui, em vez de uma explicitao dos seus pressupostos
e a indicao dos fatos conhecidos que os corroboram, toda a argumentao an-
cora-se na frmula Sabemos que, nesse nvel de integrao constitudo pela vida
humana, nossa organizao econmica joga um papel fundamental na determina-
o de outros fenmenos do mesmo nvel, tais como os fenmenos psicolgicos,
sociais etc. (1984, p. 209, grifo nosso)
Note-se que sobre tais operaes, digamos, retricas, ancoram-se as afirma-
es sobre a existncia de um nvel de integrao especificamente humano e
sobre o papel fundamental (determinante) exercido pela economia em relao
s demais subestruturas deste mesmo nvel afora afirmaes que atribuem
alienao econmica e social a causao de todos os equvocos cientficos (por
exemplo, 1984, p. 209) e a algo como a participao, a superao de todos
os obstculos ao conhecimento, bem como de todas as mazelas da humanidade
(1984, p. 210). Ademais, preciso notar que, sobre os frgeis alicerces retricos
apontados anteriormente, vem se sobrepor uma hierarquizao que confere ao
psicolgico e ao social um papel de algum modo mais bsicos ou mais
significativos (1984, p. 211) que o de outras subestruturas (superestruturas)
admitidas no nvel humano, como a biolgica (no sentido de biologia humana)
e a jurdica (vide Figura 15.3, anteriormente).
Na defesa do texto de Bleger, podemos sempre destacar que, j em seu segun-
do pargrafo, ele prprio assume expressamente a aceitao de uma quantidade
de pressupostos que no desenvolverei aqui e que no pretende uma exposio
rigorosa e sim a reflexo sobre esses problemas (1984, p. 206); por isso mesmo,
no parece impertinente que o tenhamos tomado como objeto de crtica, se com
isto pudermos reencontrar nele a inspirao para uma reabertura do pensamento.
E nesta direo que vale destacar uma passagem com implicaes epistemolgi-
cas particularmente instigantes:
Esta passagem, que li pela primeira vez nos tempos do bacharelado, nunca
deixou de inspirar minhas buscas, inclusive me levou a explorar campos muito
distantes daqueles habitados pelo prprio Bleger e no esta a funo primor-
dial de um mestre? Por isto mesmo, esta releitura, se aponta os pressupostos re-
ducionistas adotados por Bleger, sobretudo no referido apndice, pretende muito
mais destacar seu esforo sincero para apreender de modo sistemtico a totalida-
de e unidade concreta da vida humana, evidenciado na conceituao inicial dos
nveis de integrao da conduta esta uma diretriz que cabe sempre retomar
em psicologia social.4
Este esforo, embora fundamentado em outros pressupostos, tambm se pa-
tenteia num texto bastante conhecido de Jean Maisonneuve (1977), no qual a
psicologia social (ou psicossociologia, com o mesmo sentido) apresenta-se como
o campo de conhecimento incumbido de investigar exaustivamente a interao
dos processos sociais e psquicos no nvel das condutas concretas e a interao das
pessoas e dos grupos no quadro da vida cotidiana, bem como promover a juno
entre o aproche objetivo e o do sentido vivido no nvel do(s) agente(s) em situao
(p. 5). Esta imagem de uma cincia charneira, a cincia da encruzilhada entre
psicologia e sociologia, enfatizada pelo autor:
Neste perodo [ao redor dos anos 1930] se iniciaram tentativas, muitas
vezes no convincentes, de diferenciao entre o objeto da psicologia so-
cial em relao ao da sociologia; um certo consenso se estabeleceu na for-
mulao de que, de um lado, o contexto coletivo constitua-se em objeto
de estudo de ambas, mas, de outro, a sociologia se interessaria exclusiva-
mente pelo significado social e as determinaes sociais dos comporta-
mentos, enquanto que a psicologia social os examinaria como expresses
vividas pelos indivduos singulares. Essa diferenciao foi depois sempre
perdendo incisividade, dado que a psicologia social passou a assumir cada
vez mais objetos de estudo tradicionais da sociologia (como a comunica-
o de massas) e, de outra parte, pela emergncia da micro-sociologia, a
qual passou a enfrentar temticas relacionadas s relaes inter-pessoais
(por exemplo, como na obra de Goffman).
Muitos outros autores que comentam este perodo referem-no como um pe-
rodo de crise e falam na derrota das teses instintualsticas (por exemplo, MUNN,
A palavra kritik, crtica (em francs critique; em ingls criticks, hoje apenas
criticism) tem em comum com krise (em francs, crise; em ingls, crisis) a ori-
gem grega, de verbo significando: separar, eleger, julgar, decidir, medir, lutar e
combater. O emprego grego de krisis, crise em portugus, significa em primeiro
lugar, separao, luta, mas tambm deciso, no sentido de uma recusa definiti-
va, de um veredicto ou juzo em geral, que hoje pertence ao mbito da crtica.5
Parece-me que estas lies se bem aprendidas devem nos fazer supor que
tudo estaria bem se as teses instintualsticas (ou naturalistas) tivessem sido ter-
minantemente refutadas e, assim e por isto, tivessem deixado de ecoar. Todavia,
se ainda ecoam em outros campos, deve-se considerar a hiptese que tais teses
apenas tenham sado vencidas em um embate que logrou forclu-las da psicologia
social instituda desde ento. E mais: que at aqui nada autorizaria supor como
cientificamente vlidos nem as motivaes de quaisquer dos contendores, nem os
argumentos que empregaram nesta luta.
Ora, ocorre que, para o bem e para o mal, tais teses (sob formas mais ou
menos instintualistas, inatistas, nativistas ou naturalistas) continuaram
alimentando o pensamento e a pesquisa sobre o comportamento social em mui-
tos campos. Evidentemente, no haveria espao aqui para analisar este e outros
ecos instintualistas; mas, atendo-nos psicologia e aos bons desdobramentos,
no se pode ignorar, por exemplo, a cuidadosa reviso do conceito de instinto
procedida por John Bowlby no bojo de suas investigaes sobre o apego condu-
zidas ainda na dcada de 1950 e j de h muito difundida por meio da segunda
parte do primeiro volume constitutivo da trilogia Apego e perda e desdobrada,
por sua vez, em diversos outros estudos tericos e empricos sobre as interaes
humanas (BOWLBY, 2002). Este nico exemplo, de per si, autoriza at exige
que se reconsidere atentamente as controvrsias naturalismo versus ambienta-
lismo e o tipo de resoluo que lhe dado no apenas pelo comportamentalismo,
como tambm, e sobretudo, pelas mais variadas formas do construcionismo so-
cial e pelas psicologias sociais de ndole humanista ou marxista.
Esta reconsiderao atenta especialmente importante hoje, quando a popu-
laridade alcanada pela perspectiva construcionista nas cincias humanas tende
a ter como efeito a quase dispensa de fundar seus argumentos em evidncias em-
pricas e argumentos vlidos. Desnecessrio dizer que um efeito colateral desta
uma exposio mais detalhada de seus argumentos, ver MUNN, 2012). Para
este autor, compreender o comportamento social exige recorrer a um modelo in-
tegrador das diversas dimenses do comportamento humano enquanto tal, o qual
se organizaria em trs eixos: indivduo-sociedade, espao-temporal e bio-ecolgi-
co (MUNN, 2008, p. 142-143). Segundo este modelo, as cincias do comporta-
mento poderiam representar-se em um prisma, cuja descrio verbal nos dada
por Munn nos seguintes termos:
10 Aqui, Durand faz meno ao livro de Kurt Lewin, Princpios de psicologia topolgica
(LEWIN, 1973). Nesta edio, a formulao da equao parafraseada por Durand en-
contra-se na pgina 27 e seguintes (tpico A representao construtiva da situao).
Resumidamente: Todo e qualquer evento psicolgico depende do estado da pessoa e, ao
mesmo tempo, do ambiente [...] Assim, podemos estabelecer a nossa frmula [...] para
todos os eventos psicolgicos como C = f (PA) sendo que C = o comportamento ou
qualquer evento mental, P = pessoa e A = ambiente.
11 Para um maior detalhamento deste ponto, ver: RIBEIRO; BARTALINI, 2015.
Referncias
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Dicionrio de psicologia APA.
Porto Alegre: Artmed, 2010.
Il eut t plus difficile detudier, par exemple, une thorie physique sous
le mme angle, celui de la rpresentation sociale, en particulier parce
quil sagissait douvrir un domaine de recherche (MOSCOVICI).3
****
A este respeito, Karl Jaspers, citado por Vargas (1992), identifica a vocao
expansiva do conhecimento cientfico, caracterizando suas motivaes racionais:
A cincia conhecimento metdico cujo contedo se impe irresistivelmente
como certo e universalmente vlido, das coisas que encontramos em nossa vida
prtica. E prossegue: Na cincia moderna h a disposio de tornar objeto de
investigao cientfica tudo o que existe e a criar um mundo que se expande inde-
finidamente, abarcando com leis cientficas, e, portanto, humanas, todo o univer-
so (p. 103). Assim, a globalizao do ocidente decorreria, tambm, da vocao
metodolgica do conhecimento cientfico.
Por outro lado, tal globalizao obriga este conhecimento a se relacionar,
como produto da cultura do mundo compreendido como o ocidente, com as
diversidades culturais extra-europeias e, por meio da aquisio da conscincia
histrica, a inscrever os sistemas de interpretao da realidade que produz em
um processo de historicizao. Assim, para descrever a globalizao, torna-se
necessrio compreender como se processa o movimento da criao cientfica
em sua evoluo enquanto mtodo intelectual de crtica e em seu processo de
expanso histrica.
A anlise do mtodo intelectual de crtica o mtodo lgico da cincia
moderna implica, por sua vez, na anlise de suas duas dimenses caracteriza-
doras: a razo a dos mtodos racionais, dos algoritmos lgicos ou matem-
ticos aos quais recorrem; e a experincia a das tcnicas da manipulao da
matria com as quais opera. Por outro lado, a anlise do processo de expanso
da cincia como expresso da cultura do ocidente no pode se desvincular de
seu contexto de historicizao, ou seja, de incremento da conscincia histrica
de e em suas extenses, intrinsecamente contextualizadas pela dinmica dos
movimentos epistemolgicos, e extrinsecamente pela dinmica dos movimentos
utpicos da modernidade.
A criao da fsica dinmica na era moderna levou construo de um siste-
ma de mundo que produziu um conhecimento matemtico do movimento. Nesse
processo, dois aspectos teriam caracterizado a conduta intelectual de seus criado-
res (de Galileu a Newton). Em primeiro lugar, o objeto imediato dos estudos no
era o mundo material, mas a experincia sobre o mundo material. Em segundo
lugar, as leis enunciadas eram leis sobre o movimento, e no sobre os corpos em
movimento (SINGER, 1961).
Assim, a epistemologia clssica constituiu-se sob esta forma do conhecimen-
to cientfico que primeiro nasceu no pensamento moderno: a fsica dinmica e sua
matematizao. Uma forma precisa de racionalidade que se refere a um objeto
atemporal, a uma lgica atemporal (GAGLIASSO, 1990).
Este ideal cientfico preciso, devido axiomatizao oferecida pela lgica
matemtica, de local (fsica), tornou-se global (cincia), permitindo epistemo-
nizaes de pesquisa efetuadas pela Nova Aliana nos Estados Unidos e de suas
repercusses sobre o processo cientfico internacional.
A identificao deste desencontro permite se delimitar uma regio de luta,
o lugar de um jogo concorrencial em que o objeto de disputa o monoplio da
autoridade cientfica, nas palavras de Bourdieu (1983): o monoplio da compe-
tncia cientfica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente
que socialmente outorgado a um agente determinado (p. 127), aqui deslizando-
se sutilmente do campo do poder poltico-econmico para o campo da ortodoxia-
-heterodoxia, instalando-se na prxis epistemolgica.
Decorre, como concluso, que a totalidade na histria e na geografia no
pode ser esquecida quando se deseja considerar a desigualdade poltica, como
apontada nesta transposio ideolgica. A totalidade objetivada requer uma an-
lise estratgica e, portanto, geopoltica.
Sob tais consideraes e como um complemento, no se pode ignorar que o
quadro mundial contemporneo vem se caracterizando, de um lado, pela disse-
minao de informaes chamada ps-moderna e pela pretensa descentralizao
democratizadora; de outro, pelo crescimento das formas mais concentradas de
acumulao de poder e centralizao transnacional da cultura que a humanidade
conheceu. Neste processo, diferenas regionais ou setoriais originadas da hetero-
geneidade de experincias culturais e a diviso tcnica e social do trabalho so
elementos estratgicos utilizados por categorias sociais hegemnicas na obteno
de uma apropriao privilegiada do patrimnio comum. Desta forma, embora os
patrimnios culturais sirvam para unificar naes e agregados nacionais, o enfo-
que geopoltico na sua anlise exige que os estude como espao de luta material e
simblica inter-classes, grupos e etnias, face s ditas desigualdades em sua forma-
o e apropriao (BOURDIEU, 1970). Este princpio metodolgico corresponde
ao carter complexo das sociedades contemporneas sob o capitalismo global, em
funo da realidade econmica hodierna que domina o sistema-mundo.
Sob tal tica e do ponto de vista sociolgico, pode-se, portanto, afirmar que, a
este propsito, o conhecimento histrico traz analogias que permitem concluses.
Em primeiro lugar, pode-se concluir que as relaes planetrias contemporneas
so manifestaes cclicas da reorganizao da produo mundial. Em segundo lu-
gar, que esta reorganizao se faz sob o aprimoramento de condies cientfico-tec-
nolgicas a ela inerente, implicando no incremento da eficincia de subordinao de
humanidades ao processo global de produo e seu corolrio, o consumismo. Este
aprimoramento se processa pela diminuio do conhecimento compreensivo sobre
o trabalho e do poder sobre o processo cientfico, por sua vez tambm subordinado
ao processo produtivo, agora sob regime mercantil. Ou seja, as dinmicas de trans-
formao dos vnculos sociais e territoriais expressariam processos de substituio
de determinados grupos sociais no processo produtivo por novos outros, e sua in-
do fato de que vrios prmios Nobel participavam de seus trabalhos , teria sido
o Institute of Defense Analysis, uma associao de universidades criada em 1956
em resposta a uma sugesto do Secretrio de Estado de Defesa dos Estados Unidos,
justificando-a como uma necessidade para promover uma relao mais efetiva entre
segurana nacional e aprendizagem cientfica. Herdeiras das prticas da pesquisa
operacional do tempo de guerra, estas Think tanks so estruturas desconhecidas
antes da guerra e contriburam fortemente para a insero dos fsicos no que o pre-
sidente Eisenhower foi o primeiro a chamar de complexo militar-industrial.
As motivaes dos cientistas que participaram destas atividades no foram
estudadas sistematicamente. Quaisquer que tenham sido, porm, as razes indivi-
duais, estabeleceu-se entre o antes da guerra e o depois do Sputnik uma profunda
modificao no estatuto social e poltico dos fsicos, uma alterao radical de
suas relaes com o mundo antes da guerra a imagem que eles tinham deles
mesmos era a de servidores da verdade construindo um edifcio enriquecedor da
cultura humana integral; os fsicos nascidos na cincia durante os perodos das
guerras (quente e, depois, fria) encontram-se em implicao direta com os neg-
cios cotidianos do mundo, em uma postura que no pode seno estar afastada
das grandes interrogaes sobre a cincia e a natureza dos saberes. imagem de
personagens praticando uma disciplina intelectual, desenvolvendo ao mximo as
virtudes morais, contrape-se a imagem de profissionais capazes de resolver todos
os problemas tcnicos de seus pases. A maneira americana de fazer fsica que se
expande nos anos 1950 consagrou, de fato, uma espcie de tudo aceitvel me-
todolgico, uma falta de interesse total face a todo e qualquer debate sobre o m-
todo. Tornando-se um tcnico quase empirista em seus tateios, o fsico buscaria
fabricar teorias e modelos que servem, que sejam operacionais, eficazes, teis.
Antes de 1940, ao contrrio, a regra para o grande cientista a de vir a se
tornar uma figura do mundo cultural que reflete, tambm, sobre sua prpria pr-
tica. A cincia seria um jogo epistemolgico maior pois ela um dos motores
superiores do conhecimento, a forma por excelncia do saber e sua marcha
mereceria ser compreendida e analisada. Deixar alguns escritos filosficos ou de
reflexo moral constitui-se, portanto, em um dever. O cientista permanece um
intelectual no sentido mais forte do termo, um sbio filsofo depositrio de
uma cultura, devendo evidenciar uma viso coerente do mundo. Nos decnios
1940 e 1950, este tipo de homem tende a desaparecer, substitudo por prticos
cuja heurstica seria muito mais a da improvisao ou a do risco. Um excelente
ndice deste retorno a natureza dos testamentos que legam os novos sbios s
geraes futuras, textos contando fatos cientficos e polticos de uma vida e, bem
raramente, obras de reflexo.
A expanso dos efeitos desta aliana instrumental processada entre cientis-
tas, industriais, polticos, militares e sistemas de informao culminou na produo
****
Dessa forma, pode-se concluir que a anlise da luta que se desenvolve pela
propriedade do conhecimento e pelo domnio do processo de criao cientfica
aponta para a identificao de uma ao de propaganda (MOSCOVICI, 1961),
visando a construo de uma representao social da cincia vista como natural-
mente idntica configurao de seu domnio pela Nova Aliana. Esta viso seria
uma elaborao instrumental de uma modalidade de expresso de um grupo de
interesses em uma situao de conflito e visaria o domnio do processo mundial
de construo do futuro.
O conflito estaria situado nas diferentes opes estratgicas de interface entre
cincia e sociedade, cada uma das quais comprometidas com sistemas arbitrrios
de valores de verdade. Estas opes estariam sendo apresentadas como se fossem
determinaes naturais, portanto, idnticas aos paradigmas de cincia e de com-
portamentos do cientista projetados, tendo em vista associ-los a imagens difusas,
representando uma indiscernibilidade entre o domnio do processo cientfico pela
Nova Aliana, a produo intelectual do cientista e as propriedades desta produo.
A ao de propaganda atuaria por meio da organizao de temas e princpios
sistemticos, visando reduzir a fora do impacto da ao de difuso dos processos
autnomos de criao cientfica, uma vez que, pelas suas caractersticas de des-
continuidade e no ordenao, no poderiam ser por ela controlados.
Ou seja, esta luta estratgica visaria criar condies de passagem, por meio
da propaganda, do fato da propriedade por captura do conhecimento cientfico,
concluso de que esta seria a direo natural histrica do processo de criao
cientfica. Esta passagem seria feita mediante a ttica de impedimento ou dificul-
tao da emergncia da conscincia deste domnio e objetivaria a conquista do
poder de determinao do futuro.
****
****
Referncias
LESLIE, S. W. Playing the education game to win: the military and interdisciplinary
research at Stanford. Historical Studies in the Physical and Biological Sciences
(HSPS), v. 18(1), p. 55-88, 1987. (Nmero especial).
SINGER, C. Breve storia del pensiero scientifico. Traduo F.T. Negri. Turim:
Einaudi, 1961.
outro, o mundo e o trabalho. O que seria esse hfen? A busca de respostas a esta
questo o objeto de anlise deste captulo.
17.1 O hfen
A investigao desse hfen tem sido rotina na histria das cincias sociais e
seguir sendo questo aberta diante da complexidade da condio humana e de
sua insero dentro de uma sociedade em contnua evoluo, em todos os seus
aspectos (MALVEZZI, 2016). At mesmo, o olhar superficial e intuitivo sobre as
transaes entre o eu, o outro, o mundo e o trabalho sugere a existncia de algum
hfen que materializa suas influncias mtuas. Este hfen emerge nas suas ativi-
dades. Estes so movimentos que produzem e veiculam transaes que revelam
interdependncia entre essas duas interfaces. O eu, o outro, o mundo e o trabalho
se relacionam, expondo-se mutuamente em suas potencialidades, condio que
viabiliza transformaes neles mesmos ou no lcus que os abriga e sustenta. As
atividades so conjuntos coordenados de movimentos dos seres vivos ou mqui-
nas que alteram propriedades, funes, identidades, transaes em suas interfaces.
Toda mudana produzida por alguma atividade na interao entre dife-
rentes elementos (CROZIER; FRIDBERG, 1978), numa espcie de movimento
cooperativo entre eles. A argila se deixa moldar pelas mos do oleiro. A cria-
o e articulao desses movimentos cooperativos possibilitam mudanas no
status quo do mundo real, criando algo novo, promovendo ajustes funcionais em
propriedades e funes, provocando novos movimentos, gerindo conflitos, rede-
senhando contextos, fomentando novas interfaces ou instituindo agentes (CAL-
DWELL, 2006). Aristteles (1908) foi um dos pioneiros no reconhecimento das
atividades como hifens entre o eu, o outro e o mundo. Ele as diferenciou em duas
categorias de causalidade, que denominou de produo natural e de produo
pela arte.
A produo natural constituda por atividades cuja articulao em cadeias
de causas est programada na prpria natureza. Essa forma de produo requer al-
guma causa desencadeadora de sua programao, que Aristteles chamou de causa
efficiens, sem necessidade de algum agente. Assim, a semente de laranja contm a
programao de todas as etapas da cadeia de atividades necessrias para a produ-
o da laranjeira. Essa programao est intrnseca na semente. A transformao
da semente em laranjeira depender somente da existncia de condies externas
favorveis, mas no de algum agente (CALDWELL, 2006) que articule as ativida-
des necessrias para a produo da laranjeira. Para Aristteles, atividades como
os terremotos, as ondas do mar ou a reproduo dos vegetais, como a laranjeira,
independem de escolhas por parte de algum agente. As atividades da produo
natural so explicadas e compreendidas pelas propriedades fsicas e qumicas dos
tem sido largamente reconhecido como hfen crucial com o mundo (SMELSER;
ERIKSON, 1980). Essas propriedades das atividades situam-nas como hifens que
instituem a relao de interdependncia entre o indivduo e o mundo, revelando
a existncia de um disponvel para servir existncia do outro, em relao de
equilbrio e de reciprocidade. Nessa relao, o trabalho desponta como atividade
privilegiada, porque o instrumento apropriado para a sustentabilidade do mun-
do e crescimento do eu.
Construindo, desconstruindo e reconstruindo suas atividades para interagir
com o outro e consigo mesmo, o indivduo descobre e aprofunda o poder trans-
formador de sua ao seu hfen com o mundo e com o trabalho , por meio
do qual ele busca a complementaridade que necessita do outro e do mundo para
realizar seus projetos e estabilizar os vnculos sociais e afetivos que mantm suas
parcerias com o outro e com o mundo. Nesse aprendizado, acessando e atualizan-
do suas potencialidades, ele toma conscincia de sua condio de ser indetermi-
nado, crtico, criativo, sujeito emancipvel e protagonista das realizaes prticas
e sublimes de sua existncia, fortalecendo sua fora ontolgica (DE CHARMS,
1968), que o capacita para voos altura de seus ideais e para superar a si mesmo.
no protagonismo da construo do hfen que o ser humano se reconhece como
ser social, cuja condio de estar no mundo implica na aceitao e construo
de sua interdependncia com o outro e com o mundo. Na interdepndencia ele
encontra a possibilidade de atividades que confirmam sua liberdade para realizar
desejos e viabilizar o ambiente para si e seus descendentes. Seu protagonismo
alimenta a conscincia de sua condio de um ser em relao, ou seja, de um
ser que constri sua existncia tomando em conta a si mesmo, o outro e as po-
tencialidades de ambos. O ser humano apreende sua condio ontolgica pelo
aprendizado da eficcia ou fracasso de suas aes, criando atividades no locus da
fronteira entre suas interfaces com o mundo. Ele constri a si mesmo administrando
seus hfens com o mundo no qual vive. Para tanto, ele explora e direciona sua
existncia, transformando potencialidades em atividades. Gerard Mendel (1998)
confirma a fora das atividades na formatao da conscincia, do conhecimento
e da emancipao. Identificando as atividades como atos, Mendel explica como
as atividades transitam da esfera metafsica, revelando o ser humano em sua con-
dio ontolgica para a esfera da interveno, identificando as atividades como
poder que ele pode desenvolver para se capacitar a viver.
Pode-se concluir dessas anlises que a construo das atividades exercidas
pelos indivduos faz diferena em sua relao com o mundo, ensinando-os so-
bre as contingncias presentes em suas interfaces e sobre as potencialidades a
elas intrnsecas como condio crucial para seu equilbrio na construo de sua
histria. Relacionadas dessa forma, as interfaces entre o eu, o outro e o trabalho
so o locus de oportunidades no qual os indivduos podem agir e crescer em suas
O sculo XXI criou condies peculiares para a sociedade, a partir das quais o
trabalho se reinstitucionaliza (ESPRIT, 2009; LI VIGNI, 2015; METZGER; CLA-
CH, 2004; TOURAINE, 2013; VELTZ, 2015). Nessas novas condies, os eventos
esto articulados em redes de fluxos, movimentam-se em interdependncia e em
alta velocidade (SUTHERLAND, 2013). Desde os anos 1990, as redes de fluxos
evoluem rapidamente pela criao e inveno de novas derivaes que otimizam,
sem cessar, a compresso do tempo e do espao na velocidade de tecnologia digital.
Existindo dentro de redes movimentadas em fluxos digitais, as atividades tornaram-
se multiplicadas, velozes, fragmentadas e facilmente acessveis por meio dos apara-
tos eletrnicos que funcionam como prteses, como ironicamente Papa Francisco
os denomina. Desde ento, grande parte da produo pela arte foi integrada a
mltiplas redes. Estar no sculo XXI estar dentro de redes de fluxos, que so fer-
das atividades, que emerge da intersubjetividade. por esse motivo que a reins-
titucionalizao do trabalho se distancia das grandes estruturas organizacionais
(que requerem atividades serializadas) para evoluir na direo de projetos com os
quais o formato do trabalho autnomo precrio tem compatibilidade (McKAY
et al., 2012). Essa gramtica que demanda adaptao artesanal dos desempenhos
dentro de contextos estratificados por fronteiras instveis e lbeis impe pesados
desafios anlise da relao homem-trabalho sob a perspectiva de sua dimenso
prtica, uma vez que a institucionalizao do trabalho no contempla regularida-
des. Na gramtica dos fluxos em redes, a serializao de prticas para a relao
homem-trabalho seria outro paradoxo. De que serviria a oferta de critrios e
prticas para a criao de atividades no locus sem fronteiras no qual a produo
pela arte artesanal e sujeita a incertezas? A anlise dessas questes demandaria
outro captulo para este livro.
Referncias
ARENDT, H. A condio humana. So Paulo, Editora Forense, 2001.
______. Interview with Robert Cooper by Robert Chia & Jannis Kallinikos. In:
CHIA, R. Organized worlds. London: Routledge, 1998.
McKAY, S. et al. Study on precarious work and social rights. London: Working
Lives Research Institute, London Metropolitan University: Apr. 2012.
MEAD, H. G. (1934, 1962). Mind self and society. USA: The University of Chi-
cago Press.
SMELSER, N.; ERIKSON, E. (Ed.). Themes of work and love in adulthood. London:
Grant McIntyre, 1980.
18.1 Introduo
A questo do psico-social ou do scio-psicolgico, ou, ainda, da intersubjeti-
vidade, ou, se quisermos sintetizar, da clssica relao eu-outro, foi compreendida
ao longo da histria das cincias humanas e sociais por meio de dois olhares
puros: o olhar da psicologia individual e o olhar da sociologia, cada qual privile-
giando um dos eixos da relao ou seriam extremos da relao? A questopsi-
co-social e as significaes do hfen, como linha analtica central proposta para
o presente texto e questo fundante para o campo da psicologia social, colocam
em cena o velho dilema anteriormente postulado, representado pelo hfen, sobre a
origem da determinao da vida humana: a pessoa gerada pela estrutura social
ou a estrutura social fruto da relao entre as pessoas? Posturas subjetivantes e
posturas socializantes governaram a trajetria da construo argumentativa das
cincias humanas e sociais, mas foram sendo interpeladas por posturas mais h-
bridas, no sentido que Latour (1994) prope, ou seja, de ser individual e social ao
mesmo tempo, pela ruptura da separao dicotmica entre ambos, corroborada
pela ideia de juno o hbrido no opera com a lgica do ou, e sim com a
lgica do e (SANTAELLA; CARDOSO, 2015).
Tanto no campo tradicional das cincias sociais, por meio de autores como
Talcott Parsons, Erving Goffman, Alfred Schutz, George Mead, Peter Berger e
Thomas Luckmann, quanto no campo tradicional da psicologia, por meio de pen-
sadores como Sigmund Freud, Erik Erikson, Maurice Merleau-Ponty e Donald
Winnicott, este dilema se coloca, persistindo na contemporaneidade dos estudos
de Alain Touraine, Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Claude Dubar, Ren Kes
e Stephen Frosh, entre outros, que buscaram propor sua significao prpria do
hfen da relao eu-outro, ou, no limite, eliminar o hfen, transformando o psico-
significados que seria, ao mesmo tempo, identidade social (eu como mim, que
a dimenso do self em que a pessoa objeto para si mesma) e identidade pessoal
(eu como eu, que a dimenso do self em que a pessoa sujeito para si mesma),
o que garantiria processos de permanncia e mudana na pessoa bsicos para
sua vida psicolgica e social.
Autores oriundos da sociologia, como Alain Touraine, Anthony Giddens,
Claude Dubar e Pierre Bourdieu, buscaram, cada um sua maneira, propor uma
compreenso da relao eu-outro.
Seja pelas posies relacionais do indivduo diante do mundo, focando nas
relaes sociais, no nas estruturas, como a sociedade e os indivduos, corporifi-
cadas na concepo de sujeito (TOURAINE, 2006).
Seja pela ideia da dependncia mtua entre a agncia humana (capacidade
de realizar coisas) e a estrutura social com foco na produo da ao, referncia
ontolgica fundacional para a investigao da relao eu-outro da praxiologia
estruturacionista (GIDDENS, 1991).
Seja pela concepo interacionista simblica contempornea de que a pessoa
no seria um produto antecipvel, mas uma resultante, no previsvel, gerada
pela articulao de dois processos heterogneos: processo relacional e processo
biogrfico (DUBAR, 2000).
Seja, ainda, pela concepo da sociedade como uma estrutura estruturada
objetivamente, que, entretanto, transforma-se e/ou se conserva pelas relaes de
interao entre agentes sociais (teoria da prtica) que tm posies e disposies
especficas do seu habitus de classe no interior de um campo, que um segmento
do social, sendo, tambm, uma estrutura estruturante atravessada pelas relaes
de poder em um jogo de foras e lutas. A posio e a disposio no campo, deter-
minadas pelo habitus, representam a distribuio de diferentes formas de capital
(material, social, simblico, poltico) de que cada agente dispe e que determina
sua ao social, referncia ontolgica fundacional para a investigao da relao
eu-outro do estruturalismo praxiolgico (BOURDIEU, 1996).
No campo da psicologia, poderamos analisar as possibilidades de concep-
o da relao eu-outro por meio das propostas epistemolgicas contemporneas
que, segundo Greene (1990) e Guba (1990), seriam: (1) ps-positivismo, (2) inter-
pretativismo (construtivismo e construcionismo) e (3) teoria crtica.
Para o ps-positivismo, a produo de conhecimentos definida por uma en-
genharia social (social engineering) na qual h uma dicotomia entre as dimenses
subjetiva e social, sendo a realidade um fenmeno objetivamente determinado
(ontologia realista). Para as teorias crticas, a produo de conhecimentos defini-
da por um engajamento poltico (political engagement), preconiza a indissociabi-
lidade entre as dimenses subjetiva e social (totalidade histrica dialtica), sendo
a realidade um fenmeno objetivamente determinado por estruturas materiais e
tambm uma diviso de poder sobre o que e quem, no interior dos campos
do saber, podem se dedicar a estudar (RIBEIRO, 2014, p. 98).
Segundo Frosh (2012), uma teoria psicossocial focaria a inter-relao entre
subjetividades e identidades pessoais com as formaes histricas sociais e polti-
cas contemporneas, na busca de entender processos por meio dos quais as duas
dimenses (subjetiva e social) se constituem de forma mtua.
Paiva (2013), inspirada pela hermenutica e pelo construcionismo social,
postula o psicossocial como a intersubjetividade em cena implicada em cenrios
socioculturais, focalizando cenas cotidianas e das trajetrias das pessoas, plurais
e heterogneas, no numa resultante consensual como propunha o pensamento
moderno em geral.
Latour (1994) corrobora este princpio e versa que o ser humano somente
pode ser concebido como hbrido, ou seja, individual e social simultaneamente,
caracterizado por um campo de tenses heterogneas, no qual uma sntese no
um resultado necessrio. Ao contrrio de qualquer possibilidade de leitura dua-
lista dicotmica da realidade baseada na existncia de dois polos privilegiados,
Latour (1994) prope uma ontologia de geometria varivel, no interior da qual
h possibilidade de mltiplas entradas e conexes. Assim, para o autor, o hbrido
tem um propsito muito claro, que desmontar a iluso moderna de que pos-
svel isolar o domnio da natureza, das coisas inatas, do domnio da poltica, da
ao humana (SZTUTMAN; MARRAS, 2004, p. 397).
Mas o que seria um hbrido?
Para Madeira (2010), hbrido advm do termo grego hybris, que remete para
uma trama de ligaes cujo denominador comum a mistura de coisas de ordens
distintas, da qual resulta algo excessivo (ou, no seu inverso, algo em falta) (p. 1),
muitas vezes denominado monstro, que advm de monstrum, relacionado a anunciar
ou mostrar o que emerge da relao com um fenmeno excepcional ou diferente do
usual ou do normal, sendo um termo comumente utilizado desde a mitologia grega e
chegando cincia moderna em reas como a biologia, geografia, histria e religio.
Segundo a autora, qualquer um dos hbridos representa o resultado da mis-
tura de coisas/objectos/prticas de ordem diferente; qualquer um deles no se
integra em categorias como puro, fixo ou classificvel, seno nas suas catego-
rias hbridas e/ou monstruosas (MADEIRA, 2010, p. 2), e seria uma categoria
relacional central para pensar a contemporaneidade que tem rompido, gradati-
vamente, com as classificaes binrias dicotomizantes da experincia psicosso-
cial humana, por exemplo, com a ruptura da diviso dos sexos e do gneros e a
proposio dos(as) transgneros, com a consequente pluralizao das definies
(ou falta de definies) das identidades sexuais, ou, ainda, no campo do trabalho,
da ruptura da lgica dicotmica entre trabalho formal, focado no emprego, e
trabalho informal, e da multiplicao das formas reconhecidas socialmente de
d) Interdependncia.
e) Multiplicidade entendida como teia de processos com uma diversidade in-
trnseca, pois diversa e, ao mesmo tempo, singular, sendo mltiplo con-
cebido como sinnimo de ausncia de unidade, como um substantivo, no
adjetivo, como prope Latour (SANTAELLA; CARDOSO, 2015).
A relao eu-outros, como realidade psicossocial, no seria nem estrutura, nem
Figura 18.2
Fonte:
Referncias
BAUMAN, Z. Vida lquida. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2007.
______. The saturated self. New York, NY: Basic Books, 1996.
GREENE, J. C. Three views on the nature and role of knowledge is social science. In:
GUBA, E. G. (Ed.). The paradigm dialog. London, UK: Sage, 1990. p. 227-245.
______. The alternative paradigm dialog. In: GUBA, E. G. (Ed.). The paradigm
dialog. London, UK: Sage, 1990. p. 17-27.
______. Para alm do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: MENESES, M. P.; SANTOS, B. S. (Org.),Epistemologias do sul.
So Paulo, SP: Cortez, 2014. p. 21-71.
O agir, que no mera execuo de ordens pelo simples fato de no ser possvel
equacionar em prescries o circunstancial e o imprevisvel, ocupa o vazio deixado
pelas normas formais que regulam o trabalho. Conforme esclarece Silva (2008):
O vazio das normas apresenta aos sujeitos horizontes desde os quais se im-
pe a necessidade de fazer escolhas que permitam conciliar os elementos presentes
na situao do aqui-agora do trabalho. Contrariamente imagem legada pela
tradio taylorista, no h um nico modo de realizar uma tarefa (SILVA, 2008;
SCHWARTZ, 2000), e as escolhas sobre como agir envolvem a histria singular
de cada sujeito, sua experincia, os saberes formais adquiridos e os saberes cole-
tivos informais construdos no convvio contnuo com os meios de trabalho. As
pequenas escolhas feitas no dia-a-dia de trabalho configuram verdadeiras dra-
mticas do uso si (SCHWARTZ, 2004) e atualizam na atividade cotidiana deba-
tes de valores que so travados em esferas mais amplas da sociedade.
Ao refazerem as normas, os trabalhadores buscam conciliar o prescrito com
o real para tornar o trabalho possvel e, concomitantemente, as decises en-
volvidas nesse processo de renormatizao procuram dar conta dos debates de
valores suscitados pela atividade, os quais envolvem, por exemplo, questes do
campo da tica e dilemas entre produtividade e sade.
Assim, o trabalho tem uma funcao social essencial: e uma atividade que
liga aos outros e que implica se ajustar a eles para produzir algo util. Ele
tem, tambem, uma funcao psicologica essencial, pela qual ele e o opera-
dor simbolico indispensavel do separar-se de si mesmo, da delimitacao de
si (Clot, 1999 [2006]). Trabalhar e se livrar das preocupacoes pessoais
para se engajar em uma outra historia que nao a sua propria, para cum-
prir suas obrigacoes sociais. E o que permite nao se viver como um inutil
no mundo (p. 487).
Referncias
CLOT, Y. A funcao psicologica do trabalho. Petropolis: Vozes, 2006.
ODDONE, I.; RE, A.; BRIANTE, G. Redecouvrir lexperience ouvriere: vers une
autre psychologie du travail? Paris: Editions Sociales, 1981.
Iniciei meus estudos e pesquisas sobre stress na segunda metade dos anos
1970. Mais precisamente, em 1976. Desde ento, tenho acompanhado as diferen-
tes fases conceituais desse importante fenmeno social. Se antes ele era visto como
fator que deveria ser ferozmente combatido, hoje o aceitamos como parceiro no
20.2 Coping
O sistema neocortical, no qual se localiza o funcionamento do aparelho psqui-
co, tem capacidade de avaliar toda e qualquer situao e, conforme com a histria
de vida pessoal, interromper o processo biolgico de reao que o sistema lmbico
com base na sua sabedoria quase que puramente natural tenha antes desencadea-
do. Aps o bloqueio da ativao, o organismo retorna, ento, homeostase. No en-
tanto, perdurando a demanda, o sistema neocortical constri um processo cognitivo
para lidar com a ameaa e com o efeito deletrio dos stressores contidos na situao
stressante. Nosso aparelho psicofisolgico responde ao estado de stress estabelecido
com mecanismos de coping. A eficcia desses mecanismos varivel e individual. Em
1966, Lazarus os classificou em coping focado na emoo e coping focado no pro-
blema. Desde 2011,3 Vasconcellos tem classificado as estratgias de coping de acordo
com sua capacidade de resoluo do problema, portanto, eucoping e discoping.
Sabemos que todo ser humano possui e faz uso de estratgias para alcanar o
desejado estado de bem-estar. Nessa constatao, no consideramos a pertinncia ou
no das estratgias, mas to somente o fato de todo ser humano t-las. Impreterivelmen-
te, todos desenvolvemos coping. Do campons analfabeto que viva no mais profundo
interior do pas, totalmente afastado da civilizao e informao, at o mais laureado
cientista do MIT ou prmios Nobel do Max-Planck Instituto, todos possuem essa capa-
cidade. Todos desenvolvemos estratgias para reduzir o stress e o desprazer.
Aps dcadas de estudo e pesquisa sobre os diversos efeitos do stress, o olhar
moderno deve voltar-se, sobretudo, para o coping, pois que o stressor somente gera-
r doena e desgaste se no dispormos de uma boa e eficiente estratgia para com-
bater essa consequncia deletria implcita. Ilustramos esse efeito com um exemplo
da infectologia: o vrus tem uma virulncia potencial para desencadear uma doena,
mas isso s ocorrer se o sistema imunolgico no tiver capacidade de imuniz-lo.
Similarmente, todo stressor pode causar doena, mas o objetivo da estratgia de
coping deve sempre ser a reduo ou eliminao dessa ameaa. A eficcia das estra-
tgias varia na relao com as circunstncias, os diversos tipos de personalidade e as
especificidades dos dispositivos usados no combate aos potenciais perigos.
Quando, em 1966, Lazarus desenvolveu o conceito de coping para explicar
como o aparelho psicofisiolgico (crebro e funes psicolgicas da emoo e
cognio) processa e elabora estmulos e informaes, ele teorizou as duas dimen-
ses de avaliao que precedem a tomada de deciso ou a reao comportamental
ao estmulo stressante. So elas: a avaliao primria elaborada pelo neocortex
(denominada cognitiva) e a avaliao secundria processada pelo sistema lmbico
(denominada emocional). Cientistas europeus invertem, porm, a ordenao des-
tas duas avaliaes. Com razo. Eles se baseiam na cronologia desses processa-
mentos, pois que, em verdade, eles acontecem primeiramente no sistema lmbico
e secundariamente no sistema neocortical.
Apesar de desenvolvermos uma estratgia de coping para lidar com a situa-
o desfavorvel, essa estratgia pode, mais tarde, gerar problemas, os quais se
somaro aos j manifestados. Todos conhecemos casos em que a soluo agra-
va mais ainda o problema pr-existente. Nessas situaes o coping gera distress.
STRESS
EUSTRESS DISTRESS
RESILINCIA BURNOUT
20.3 Burnout
20.4 Resilincia
Nos ano 1990, duas geraes de pesquisadores comearam a estudar, pa-
ralelamente, a capacidade de resistncia e/ou invulnerabilidade de indivduos ao
stress relacionado condio de vida adversa que tinham (LUTHAR, 1993).
A primeira gerao, cujos representantes mais importantes so Werner e
Smith (1992), conduziu suas investigaes no Hawaii, acompanhando o desen-
volvimento de 505 pessoas por 32 anos. Iniciaram-no em 1955, quando do pe-
rodo pr-natal, at a vida adulta de seus sujeitos. Eles detectaram que fatores
como slida auto-estima e autonomia tinham influncia decisiva na superao das
dificuldades existentes.
A segunda gerao denominou o conjunto de fatores usados por pessoas
nesse estado para combater o risco inerente de mecanismos protetores (RUTTER,
stress. Sendo assim, no existe apenas stress, mas sempre stress-coping e/ou stress-
discoping-burnout e/ou stress-eucoping-resilincia.
Entender os fenmenos interligados por hifens o primeiro passo na direo
dessa nova viso. Uma vez criadas novas metodologias capazes de poder inves-
tig-los na sua conjuntividade, transcenderemos para a viso integrada em que
esses hifens perdero seu sentido, e teremos, ento, stresscoping, e stressdiscopin-
gburnout, e stresseucopingresilincia. Enquanto esse estgio no chega, treinamos
diariamente a necessria adaptao de mentalidades. A transdisciplinaridade o
caminho para tal.
Referncias
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