A Escrita Na Universidade
A Escrita Na Universidade
A Escrita Na Universidade
textos
Resumo:
Este trabalho situa-se na discusso sobre escrita na universidade e tem como objetivo principal
observar o que alunos universitrios revelam em seus textos sobre suas escritas antes do
ingresso na universidade e sobre o que esperado deles no contexto acadmico. Os textos que
integram o corpus do trabalho foram produzidos por uma turma composta por 45 alunos da
disciplina de Leitura e Produo de Texto I, matriculados em um Centro Universitrio situado
na cidade de Lajeado/RS. Os textos foram produzidos na primeira aula, a partir de uma tarefa
que orientava o aluno a escrever um texto no qual contasse aos colegas sobre prticas de leitura
e escrita vivenciadas por ele durante a sua vida. Ao ler os textos escritos pelos alunos, percebi,
nas escritas, remisses a reflexes feitas sobre a prpria escrita, destacando-se reflexes sobre
dois momentos: a escrita antes de entrar na universidade que, segundo os alunos, representava
um jeito de escrever e o ideal de escrita a ser atingido aps o ingresso no meio acadmico que,
para muitos, significa aprender a escrever de outro jeito. Esses dois momentos trazem tona, em
uma anlise luz do letramento acadmico, os conflitos existentes entre a escrita que produziam
e a que esperada pela universidade. Neste trabalho, analiso aspectos que se repetem nos textos
dos alunos para verificar o que esses textos revelam sobre esse conflito. Os resultados apontam
para a necessidade de o professor levar em conta no seu planejamento o letramento que os
alunos j possuem antes de ingressarem na universidade, rompendo com o discurso do dficit.
1. Introduo
1. A escrita na universidade
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Este trabalho situa-se na discusso sobre escrita na universidade esboada acima
e tem como objetivo principal observar, com base em discusses recentes sobre o
letramento acadmico, feitas por estudiosos dos Estudos sobre o Letramento, o que
alunos universitrios dizem sobre suas escritas, mais especificamente, como eles veem
suas escritas em confronto com o que esperado no contexto acadmico.
Segundo Fiad (2011), uma pergunta que fazia parte das discusses sobre a
escrita na universidade nos anos 80 era a seguinte: Por que os estudantes chegam
universidade sem saber escrever? Para a autora, se a pergunta podia ser essa naquele
tempo, hoje no pode mais ser a mesma. No mais possvel dizer que os estudantes
no sabem escrever, de modo genrico e absoluto (FIAD, 2011, p. 360).
Se, naquela poca, era possvel ver o desempenho na escrita como habilidades
individuais de ler e escrever, adquiridas principalmente na escola bsica, hoje
necessrio situar qualquer prtica envolvendo leitura e a escrita em um contexto scio-
histrico-cultural especfico.
So muitas as pessoas que, dominando magnificamente a lngua, sentem-se
logo desamparadas em certas esferas da comunicao verbal, precisamente
pelo fato de no dominarem, na prtica, as formas do gnero de uma dada
esfera. No raro o homem que domina perfeitamente a fala numa esfera da
comunicao cultural, saber fazer uma explanao, travar uma discusso
cientfica, intervir a respeito de problemas sociais, calar-se ou ento intervir
de uma maneira muito desajeitada numa conversa social. (BAKHTIN, 2003,
p. 170).
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composta por 45 alunos. Para a realizao deste estudo, tomo como referncia o texto
produzido por cada um dos alunos que integraram a turma, totalizando 45 textos 1.
Com base nas reflexes sobre letramento acadmico trazido no interior dos
Novos Estudos do Letramento, analiso os textos, buscando fazer uma aproximao entre
as reflexes feitas pelos alunos e as reflexes desses autores, que tm discutido o ensino
da escrita no contexto acadmico considerando os alunos como sujeitos letrados e
iniciantes em prticas letradas at ento desconhecidas. Primeiramente apresento alguns
pressupostos dos Novos Estudos do Letramento, nos quais est baseada a discusso
feita, aps discuto os textos dos alunos.
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Os textos que compem o corpus do trabalho integram o acervo de pesquisa aprovada pelo COEP,
Comit de tica e Pesquisa do Centro Universitrio em que a pesquisa foi desenvolvida. Os participantes
assinaram o Termo de Consentimento dos materiais para fins de pesquisa.
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maneira que qualquer insucesso com o uso da escrita, nesse domnio, passa a ser de
inteira responsabilidade do aluno.
necessrio destacar que no estou dizendo que o aluno no deva desenvolver
habilidades de leitura e escrita especficas da esfera acadmica, mas, para que isso
acontea, preciso considerar suas experincias de leitura e escrita antes de ingressar na
universidade, com o objetivo de conhecer o que o aluno l, como l, o que escreve e
como escreve ao ingressar na universidade.
O modelo da socializao acadmica parte do princpio de que o professor
responsvel por introduzir os alunos na cultura universitria, com o intuito de que eles
assimilem os modos de falar, pensar, interpretar e usar as prticas de escrita que
circulam na esfera acadmica. Esse modelo parte da concepo de que os gneros
discursivos acadmicos so relativamente homogneos e, sendo assim, uma vez que o
aluno aprende as convenes que regulam esses gneros, estar habilitado a se engajar
nas prticas letradas que permeiam essa instncia. Esse modelo passa a ideia de que a
esfera acadmica imutvel e suas identidades facilmente identificadas, ou seja, uma
vez aprendidos os gneros do discurso especficos das disciplinas, os estudantes se
tornariam capazes de reproduzi-los sem problemas.
A abordagem do letramento acadmico, compartilhada pelos pesquisadores dos
Estudos do Letramento, entende os mltiplos letramentos que permeiam a instncia
universitria como prticas sociais. Assim, o modelo do letramento acadmico pode ser
caracterizado por concentrar-se nos significados que os alunos, professores e
universidade atribuem escrita, partindo de questes epistemolgicas que envolvem as
relaes de poder estabelecidas entre esses sujeitos, no que diz respeito ao uso da lngua
nessa esfera social pelos prprios participantes.
Assumir essa concepo de letramento implica reconhecer que cada indivduo
ou grupo social possui algum tipo de conhecimento sobre a escrita e seu uso em prticas
sociais. Desse modo, os alunos que ingressam na universidade so sujeitos letrados e
que, portanto, trazem para essa esfera concepes de leitura e escrita construdas ao
longo da sua vida, ainda que essas concepes nem sempre sejam suficientes para que
eles se engajem de modo imediato nas prticas letradas do domnio acadmico.
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Assim, a gerao de dados desta pesquisa foi viabilizada por uma tarefa de
produo textual que orientava o aluno a escrever um texto no qual contasse aos colegas
sobre prticas de leitura e escrita vivenciadas por ele durante a sua vida. A finalidade da
tarefa consistia em conhecer as experincias de cada aluno em relao leitura e
escrita, socializar e valorizar conhecimentos prvios dos participantes e direcionar o
planejamento do semestre. Os textos circularam pela sala de aula e foram lidos pelos
colegas e pela professora, e aps foram comentados pelos participantes.
De modo geral, os quarenta e cinco textos produzidos pelos participantes
evocaram memrias de leitura e escrita relacionadas escola de ensino bsico. Ao ler os
textos, percebi, nas escritas, remisses a reflexes feitas sobre a prpria escrita,
destacando-se reflexes sobre dois momentos: a escrita antes de entrar na universidade e
o ideal de escrita a ser atingido aps o ingresso no meio acadmico. Esses dois
momentos trazem tona, em uma anlise luz do letramento acadmico, os conflitos
existentes entre a escrita que produziam e a que exigida pelos professores na
universidade.
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Nesses quatro trechos, destaco, inicialmente, expresses como antes de
ingressar na universidade no tinha uma exigncia to grande nas questes de escrita,
na universidade a minha escrita ainda no est adequada aos textos que preciso
escrever, aqui na universidade preciso usar uma linguagem mais formal, sei que vou
precisar aprender a escrever outros textos, que indicam que os alunos reconhecem que
h uma diferena entre os textos que escreviam antes do ingresso na universidade e os
que lhes so exigidos pelos professores no meio acadmico. Essas expresses
introduzem prticas que, supostamente, no eram conhecidas pelos estudantes ou que,
ao menos, no eram frequentes em contextos anteriores de escrita, como escola.
No conjunto de trechos dos textos abaixo citados, podemos destacar a meno
explcita, pelos estudantes, a gneros que faziam parte de suas prticas de escrita no
ensino bsico:
(5) Na escola normalmente fazamos resumos e redaes.
(6) Durante o ensino mdio uma das propostas da escola era preparar o aluno
para a redao do vestibular.
(7) Na escola escrevia msicas e muitos poemas.
(8) No ensino mdio a escrita era destinada a variados assuntos, mas a redao
se destacava entre os textos que tnhamos que escrever.
(9) O que escrevamos mais na escola eram redaes que a professora pedia a
fim de dar nota.
(10) O que mais escrevia no ensino bsico eram resenhas, redaes,
crnicas e charges.
Nesses trechos, talvez a mudana mais significativa tenha sido a conscincia de
que os textos que devem ser escritos na universidade diferem dos textos que eram
escritos no ensino bsico.
Se os gneros que circulam na academia diferem dos acima citados, isso
evidencia que o aluno, ao ingressar na universidade, precisa engajar-se em uma prtica
de escrita e leitura at ento no familiar para ele. Segundo Street (1994), a escrita
acadmica um ato social. O aluno carrega experincias anteriores de produo de
sentidos, ou seja, diferentes prticas que ecoam nas novas prticas que a universidade
impe, em outras palavras, tudo o que o aluno j sabe sobre a escrita relevante para a
escrita que lhe ser exigida na universidade.
Trechos de textos de outros estudantes trazem reflexes que se aproximam. Uma
recorrncia a referncia escrita com a finalidade de ser avaliado pelo professor,
conforme podemos observar no trecho 9. Vejamos outros exemplos:
(11) A escrita servia para o professor atribuir uma nota.
(12) Minha professora trabalhava com a escrita de textos, mas na hora da
prova ela cobrava a gramtica.
Pela recorrncia ao aspecto da avaliao, podemos supor que esse um aspecto
muito explicitado nas prticas de escrita escolares, quando a escrita solicitada pelo
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professor aos seus alunos tem como finalidade avali-los. No entanto, parece que os
alunos esperam que essa no seja a nica finalidade da escrita na universidade, mesmo
que saibam que continua sendo uma delas.
Em alguns trechos os estudantes explicitam a sua preocupao em se inserirem
nas prticas de escrita da universidade:
(13) Aprender a escrever resumos, resenhas e artigos que tenham a ver com
o meu curso.
Esse aspecto explicitado, muito provavelmente, mostra que o estudante tem um
objetivo em relao escrita na universidade, entendido como aprender a escrever
determinados textos diferentes dos que escrevia na escola. Trata-se de uma tomada de
conscincia de que os gneros textuais que lhe sero exigidos pelos professores na
universidade so diferentes daqueles que faziam parte das prticas de leitura e escrita
antes do ingresso na academia. Cabe ressaltar novamente a importncia da experincia
como um fator determinante do aprendizado e da apropriao das regras e disposies
prprias dos gneros acadmicos, sustentando a proposta na teoria de gneros do
discurso formulada por Bakhtin.
Sabemos que a escrita na universidade algo bastante especializado, muito mais
especializado do que no ensino bsico. Os alunos necessitam aprender a usar
vocabulrios especializados. evidente que a falta de contato com os gneros
acadmicos faz o aluno perceber a sua dificuldade em escrev-los. Para Russel (2009, p.
241), a escrita no uma habilidade generalizvel que se aprende de uma vez por
todas, mas uma conquista ou feito que pode ser desenvolvido, que requer muita
prtica. O fato de saber que na universidade o aluno ir deparar-se com gneros
discursivos com os quais ele ainda tem pouco contato causa preocupao, isso pode ser
verificado no seguinte trecho:
(14)Assusta-me o fato de ter que escrever um resumo ou uma resenha.
Sobre o trecho acima, possvel afirmar que o aprendizado da lngua no um
aprendizado de formas, de uma gramtica, mas constitutiva do processo de
socializao, especialmente a lngua materna. O indivduo se socializa atravs da lngua;
para Bakhtin (1979), atravs dos gneros que se constituem por e para as atividades
humanas, as interaes sociais, em outras palavras, para que o aluno escreva resumos e
resenhas precisa necessariamente inserir-se em prticas de leitura e escrita de textos
desse gnero.
Nos trechos apresentados acima se confirma o conflito que se estabelece entre o
que o aluno escrevia antes de entrar no meio acadmico e a escrita que lhe ser exigida
pelos professores aps o seu ingresso. Alm disso, os textos mostram que o discurso dos
professores sobre o dficit dos alunos relevante, ou seja, os prprios alunos
reconhecem que sentem dificuldades quando se trata de ler e escrever textos que lhes
so exigidos na academia. Conforme Gee (2004), para que os alunos possam assumir-se
insiders da comunidade acadmica precisam entender o funcionamento dos inmeros
discursos que circulam nela, bem como as formas de constituio dos gneros prprios
dessa esfera.
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Por outro lado, os textos tambm mostram que os alunos j escreviam vrios
textos antes de ingressarem na universidade, significa que eles tm experincias com a
escrita. Fato que incoerente com o discurso de alguns professores que alegam que o
aluno no sabe nada. Segundo Gee (2004), os alunos encontram dificuldades na escrita
acadmica no por no saberem ler e escrever, mas pelo fato de no terem sido
expostos, no ensino fundamental e mdio, aos comportamentos lingusticos e sociais
especficos do domnio acadmico.
Consideraes finais
preciso reconhecer que o aluno aprendiz da escrita na esfera acadmica, em
outras palavras, para que o aluno passe a compartilhar dos modos de agir, de valorizar,
de acreditar do domnio acadmico e a produzir de forma eficiente os gneros
discursivos dessa esfera, faz-se necessrio que ele seja visto como sujeito de linguagem,
como de fato o , e com valores identitrios construdos ao longo das suas prticas
sociais prvias; esses aspectos so contemplados pelo modelo de letramento acadmico
proposto por Lea e Street (1998). O fato de os professores projetarem nos textos dos
alunos expectativas pouco compatveis com as suas experincias e conhecimentos sobre
esses gneros pode representar uma relao tensa para o aluno.
Assim, uma das questes que parece ser urgente responder esta: at que ponto
se criam condies para os estudantes serem identificados e se identificarem como
membros efetivos de um grupo, o da comunidade discursiva em que tm de ser bem-
sucedidos?
Os textos analisados apontam que os alunos tambm reconhecem que
desconhecem os gneros textuais que integram as prticas de letramento na
universidade. Para romper com o discurso do dficit o planejamento didtico do
professor tambm necessita ser repensado/aprimorado levando em conta as
necessidades apresentadas pelos recm-ingressos, possibilitando-lhes o letramento
acadmico. Isso significa conceber o ensino e a aprendizagem como um processo de
construo de saberes, no como uma transmisso de conhecimentos.
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Luciene Simes, Prof Dr do Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
e-mail: [email protected]
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Maristela Juchum, doutoranda do Curso de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).
e-mail: [email protected]
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