O Teatro Como Acontecimento Convival
O Teatro Como Acontecimento Convival
O Teatro Como Acontecimento Convival
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Jorge Dubatti em seu empenho por traar uma filosofia do teatro, o ensasta,o
crtico e terico argentino Jorge Dubatti reconhece que, assim como a Arte em ge-
ral, o teatro passa por um processo de desdefinio com a emergncia de aconte-
cimentos artsticos fronteirios desde o incio do sculo XX; contudo, apesar dessa
desdelimitao com outras artes e com a vida, Dubatti identifica ainda uma singula-
ridade na teatralidade que sua estrutura matriz (2007, p. 14) e que o diferencia de
outras manifestaes culturais tambm fundadas na representao, como o cinema,
a televiso e o jornalismo. Essa singularidade o resgate do convvio, ou seja, a
reunio sem intermediao tecnolgica o encontro de pessoa a pessoa em escala
humana (Dubatti, 2007, p. 20) em uma encruzilhada espao-temporal cotidiana
(2007, p. 43).
Jorge Dubatti (Buenos Aires, 1963), Prof. Dr. Universidade de Bue- Mestre em Artes (UFMG). Jornalista e crtica de teatro.
nos Aires, onde atua em Histria e Teoria Teatral, bem como na Uni- [email protected]
versidade Nacional de Rosrio e Universidade Nacional de San Mar- Profa. Dra. Programa de Ps-graduao da Escola de Belas Artes,
tn, Argentina. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atriz e diretora teatral.
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Teatro como acontecimento convival: uma entrevista com Jorge Dubatti
Jorge Dubatti - Sim. O que creio que o especfico do teatro, seu ncleo cen-
tral, o ator. H cenas neotecnolgicas em que se produzem combinatrias, mas o
que no se pode subtrair o ator. Ele verdadeiramente o gerador da ao, da po-
tica e do acontecimento. Isso seria a refutao da teoria de Josette Fral. Fral diz
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Luciana e Mariana - Faz sentido dizer que, quando o teatro evidencia a poisis
convivial, reitera sua importncia na atualidade?
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um ator que produz acontecimento e estabelece uma tica dialgica com o espec-
tador. Nesse sentido, creio que as luzes, a cenografia, a msica, so todos elementos
muito importantes, mas so acessrios porque, como diz Grotowski, poderamos ti-
r-los e o acontecimento se produziria. Ento, eu instalaria dois corredores tericos.
Um seria de quantas possveis combinatrias h dentro das linguagens teatrais: infi-
nitas. E outro corredor terico seria o que no pode faltar no acontecimento teatral:
a reunio dos corpos viventes produzindo poisis em convvio, onde haja gerao
corporal de poisis e expectao. Seriam duas pertinncias diferentes, como dizem
os estruturalistas. Por isso, no fundo, a dramaturgia convivial constitutiva do teatro.
Em alguns casos pode ser sistmica, porque se busca estimular esse convvio, em
outros casos no, mas ainda assim est presente.
Jorge Dubatti - Voc est tocando em um tema que, para mim, um tema-cha-
ve. Ns temos armado uma epistemologia do teatro baseada na ideia do teatro como
linguagem. Uma ideia da linguagem como um corpo que produz signos e que so
expectados por outro corpo que produz sentidos atravs desses signos. Toda a teoria
bsica a da comunicao. Mas h outra coisa que importante e justamente a
convivialidade. O grande problema em que nos encontramos que h de se armar
uma epistemologia da convivialidade, no da linguagem, porque a linguagem no
necessariamente o que ocorre no acontecimento. Se estou observando um corpo
que produz acontecimento, de golpe me abstraio porque o relaciono com alguma
coisa e deixo de perceber os signos. Onde fica a teoria de que houve comunicao
ou que esse signo produziu recepo em mim? Nesse sentido, temos que reinstalar
um campo epistemolgico, que muitas vezes foi tapado pela vontade de certeza da
semitica. Por exemplo, leio um texto, analiso os signos desse texto e os projetos ao
funcionamento do espetculo, pensando que foi isso que se passou. A epistemologia
do convivial implicaria ver como fracassa a linguagem. Beckett disse: tenta de novo,
fracassa de novo, fracassa melhor. Tenho que ver onde fracassa a teoria semitica
porque a que estou entendendo a singularidade do teatro.
Jorge Dubatti - Sim. Tenho que poder pensar o acontecimento pelo que ele ,
no pelo que deveria ser enquanto linguagem semitica. No digo que no h lin-
guagem, mas que, no acontecimento, h muito mais que linguagem. E o aconteci-
mento, como pertence cultura vivente, implica categorias epistemolgicas muito
importantes, como a categoria do perdido, da ignorncia porque h coisas que vou
ignorar. Trabalho com espectadores todas as segundas, na Escola de Espectadores,
de maro a novembro, e estou disposto a no saber o que se passou porque o acon-
tecimento muito mais intenso do que os relatos posteriores ou uma estatstica.
Uma coisa que me parece muito importante - e estamos tratando de aprofund-la -
aceitar que o acontecimento teatral nos enfrenta com um limite. E que esse limite
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no se pode negar nem se pode tapar. O que a semitica fez foi negar e tapar os limi-
tes, pensando que se estudamos as cadeias de signos, estudamos o acontecimento.
Estamos nas portas de uma nova maneira de entender as coisas, onde nos colocamos
num lugar de reconhecimento e de fracasso.
Luciana e Mariana - Essa uma tarefa para o pesquisador e uma tarefa para o
crtico?
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subjetiva, posso dizer que no me interessa, me incomoda, posso valorar o que est
acontecendo. So muitas estratgias distintas - passei o vero escrevendo sobre isso.
Outra estratgia uma espcie de dilogo com pessoas ausentes no acontecimento.
Sabe quando Eugnio Barba diz que pensa o espetculo para seis espectadores
uma criana, Borges, um msico, um cego etc.? Essas pessoas no vo ao aconteci-
mento, mas Barba o est construindo a partir de um lugar de pergunta, tirando-o da
instncia estritamente subjetiva dele. Eu sempre fantasio que vou ao teatro com dois
amigos - que obviamente no vo -, o Martin Esslin, crtico criador do conceito de te-
atro do absurdo, e Susan Sontag, a intelectual americana. Sempre me pergunto o que
estariam vendo eles que eu no estou vendo. Trata-se de pensar no s o que estou
vendo, mas o que poderia estar vendo e o que deveria estar vendo. Ento, abre-se
um monte de possibilidades pergunta sobre os convvios, relacionadas auto-ob-
servao, observao do outro e a instncias imaginrias que permitam fazer ao
acontecimento perguntas que no se faria por sua prpria subjetividade.
Jorge Dubatti - A grande pergunta que se deve fazer o que eu posso conhe-
cer de um convvio. O convvio um objeto de estudo evanescente, absolutamente
imprevisvel. Muitas vezes difcil predicar algo sobre esse objeto. Ento aparece
uma pergunta epistemolgica interessante: quais so os limites de conhecimento do
convvio enquanto objeto? Dentro dessa grande pergunta h uma em particular que
seriam os estudos dos processos de convvio. Podemos dizer que cada convvio ab-
solutamente diferente de outro. Posso encontrar regras de regularidade, mas talvez
o mais interessante no seja a regularidade, mas aquilo que o convvio muda. Espe-
tculos que me interessam muito, vejo-os mais de uma vez. impressionante no
s como eu mudo na relao com o acontecimento j tendo visto o espetculo uma
vez, mas tambm como muda o acontecimento pela nova composio do pblico e
pelo estado dos atores. Isso j foi muito dito: a apresentao nunca a mesma. Mas
h de se produzir categorias. Temos que partir da ideia de que estudar os convvios
implica estud-los micropoticamente. No vou estudar todos os convvios porque
no poderei estar l. Se, dentro de todos esses convvios, seleciono um, a estarei es-
tudando uma micropotica em particular. Questiono muito as observaes dos cr-
ticos e me incluo valorando um espetculo pelo que se passou numa apresenta-
o com outros crticos [na plateia]. H que se poder nomear certos critrios. Tenho
pelo menos dez grandes critrios: efetividade, historicidade, poeticidade etc. Mas o
mais importante o micropotico: reconhecer cada convvio e cada acontecimento
como nico e singular e no necessariamente representativo dos outros. H algo que
contradiz a investigao: tratamos de generalizar algo que no se pode generalizar.
A relao est dada por uma circunstncia, um momento, uma tenso de relaes
absolutamente micro, no esse modelo abstrato. Por isso sempre que estudamos
o convvio peo aos espectadores que digam que dia foi, em qual apresentao, se
esteve presente ou no, sobre qual vdeo est trabalhando e que esclarea que est
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Luciana e Mariana - E, nesses anos, o que voc pde sentir de como os encon-
tros semanais podem mudar a relao desses espectadores com o teatro e a sua com
esses espectadores?
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Jorge Dubatti - Um grupo me chamou para abrir em So Paulo. Creio que sim.
Vivendo em Buenos Aires, que uma grande capital teatral, comecei com oito pes-
soas e com muita resistncia. Ningum entendia que teria que estudar para ser es-
pectador eu dizia, claro que tem de estudar, eu vivo estudando para ser um bom
espectador. No entendiam do que teriam aulas. Sinto que isso j se instalou aqui. No
Brasil, a Escola de Porto Alegre comeou com 150 pessoas. J est criada a expectati-
va. Fez-se uma reunio no Festival Santiago a Mil e se falou da Escola de Espectadores
de Buenos Aires. Mas creio que em So Paulo j h um rapaz, o Flvio Desgranges,
que est fazendo escola de espectadores, mas nas escolas de educao bsica. So
duas coisas distintas. No trabalho com escolas, trabalho com espectadores. Estamos
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armando um mdulo para trabalhar com as escolas, mas sou muito crtico da forma
que se est trabalhando neste momento porque no creio que se deva transformar o
espetculo e o acontecimento em um espao pedaggico. Tem que ser puro espao
de gozo. Levar as crianas para que se divertir, desfrutar, como uma excurso. E que
no se transforme em uma aula, como de literatura.
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ver com o que vemos. A Amrica Latina tem uma misso agora: comear a falar do
que se passa nos teatros locais. Tenho que falar de Buenos Aires. E voc tem que falar
do teatro do seu lugar. E, claro, conhecer toda a bibliografia mundial.
Referncia
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